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Sem teologia nem libertação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de janeiro de 2015

O estilo é o homem? Sim, e o é para o bem e para o mal. Para o bem,


quando a análise revela, por trás das construções sintáticas e figuras de
linguagem, a percepção viva de aspectos obscuros e dificilmente dizíveis
da experiência humana, que assim emergem da nebulosidade hipnótica
onde jaziam e se tornam objetos dóceis da meditação e da ação,
transfigurando-se de fatores de escravidão em instrumentos da liberdade.
Para o mal, quando nada mais se encontra por baixo da trama verbal
senão o intuito perverso de construir uma “segunda realidade” à força de
meras palavras, transportando o leitor do mundo real para um teatro de
fantoches onde tudo e todos se movem sob as ordens do distinto autor,
elevado assim às alturas de um pequeno demiurgo, criador de “outro
mundo possível”.

Para demonstrá-lo, pedirei ao leitor a caridade de seguir até o fim esta


exposição do sr. Leonardo Boff, conselheiro de governantes e, segundo se
diz, até de um Papa, bem como, e sobretudo, porta-voz eminente de uma
“teologia da libertação” onde não se encontra nenhuma teologia nem
muito menos libertação:
“A pobreza não se restringe ao seu aspecto principal e dramático, aquele
material, mas se desdobra em pobreza política pela exclusão da
participação social, em pobreza cultural pela marginalização dos
processos de produção dos bens simbólicos…

“A pauperização gera por sua vez a massificação dos seres humanos. O


povo deixa de existir como aquele conjunto articulado de comunidades
que elaboram sua consciência, conservam e aprofundam sua identidade,
trabalham por um projeto coletivo e passa a ser um conglomerado de
indivíduos desgarrados e desenraizados, um exército de mão-de-obra
barata e manipulável consoante o projeto da acumulação ilimitada e
desumana.

“Essa situação provoca um modelo político altamente autoritário…


Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode
manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que
vêm da pobreza.”

O trecho é extraído do livro E a Igreja se Fez Povo (Círculo do Livro, 2011,


p. 167). Tudo o que aí se descreve realmente aconteceu. São fatos, e fatos
tão bem comprovados historicamente, que não teríamos como recusar ao
sr. Boff um definitivo “Amém”, se não nos ocorresse a idéia horrível de
perguntar: Aconteceu onde e quando?

O segundo parágrafo fala-nos de algo que aconteceu na Europa nas


primeiras décadas do século XIX: massas de camponeses reduzidos à
miséria pelo rateio dos seus parcos bens e obrigados a deixar suas terras
para vir à cidade compor um “conglomerado de indivíduos desgarrados e
desenraizados”, reservatório de mão-de-obra barata para a prosperidade
dos novos capitalistas. Karl Marx descreve em páginas que se tornaram
clássicas a formação do proletariado urbano com os destroços do antigo
campesinato, no começo da Revolução Industrial.

Mas justamente onde isso aconteceu não aconteceu nem pode ter
acontecido o que se descreve no parágrafo anterior: a “pobreza política
pela exclusão da participação social” e a “pobreza cultural pela
marginalização dos processos de produção dos bens simbólicos”. Bem ao
contrário, a vinda dos camponeses para as concentrações urbanas
coincidiu com o advento das eleições gerais, não apenas convidando mas
forçando a participação das massas numa política que lhes era totalmente
desconhecida no tempo em que viviam no campo, isoladas dos grandes
centros.

E coincidiu também com a criação da instrução escolar obrigatória, que


extraía os filhos dos proletários das suas culturas locais provincianas para
integrá-los na grande cultura urbana da razão, da ciência e da tecnologia,
substancialmente a mesma cultura das classes altas, dos malditos
capitalistas. Pode-se lamentar a dissolução das velhas culturas locais,
mas ela não aconteceu pela exclusão e sim pela inclusão das massas na
vida política e na cultura urbana.

A “exclusão da participação social” e a “marginalização dos processos de


produção de bens simbólicos” aconteceram, sim, mas a centenas de
milhares de quilômetros dali, em países da África, da Ásia e da América
Latina que viriam a ser chamados de “Terceiro Mundo” justamente porque
neles não houve Revolução Industrial nenhuma, nem portanto integração
das massas, seja na política, seja na cultura urbana.

O sr. Boff cria a unidade fictícia de um espantalho hediondo com recortes


de processos históricos heterogêneos e incompatíveis, ocorridos em
lugares enormemente distantes uns dos outros. A única realidade
substantiva desse monstro de Frankenstein é o ódio que o sr. Boff
desejaria instilar contra ele na alma do leitor.

Mas a fisionomia do monstro não estaria completa sem uma terceira peça,
que o sr. Boff vai buscar em outro lugar ainda:
“Esta situação, diz ele, provoca um modelo político altamente autoritário…
Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode
manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que
vêm da pobreza.”
Descontemos a imprecisão vocabular — “provocam” em vez de
“produzem” – e a sintaxe subginasiana: “esta” em vez de “essa” e “se
pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos” em vez de “se
pode produzir um mínimo de coesão e abafar os gritos”. Vamos direto aos
ponto essencial: é verdade que para controlar as massas esfomeadas
surgiram governos autoritários, mas não na Europa da Revolução
Industrial nem nos EUA da mesma época, onde justamente iam triunfando
as instituições democráticas junto com o capitalismo nascente, e sim,
bem ao contrário, em países subdesenvolvidos (ou empobrecidos pela
guerra), que, invejando a prosperidade das nações industrializadas, mas
não dispondo de uma classe capitalista pujante e criativa, resolveram
industrializar-se às pressas e à força por via burocrática, desde cima, por
meio do investimento estatal maciço e da economia planificada. Foi essa a
fórmula econômica da Alemanha nazista, da Itália fascista e, obviamente,
a de todas as nações socialistas queridinhas do sr. Boff. Foi também,
pelas mesmíssimas razões, e embora em menor grau, a da ditadura
Vargas e a do governo militar brasileiro.

Em suma, se fosse possível juntar o que há de mau nos países mais


distantes, nos tempos mais diversos e nos regimes mais heterogêneos,
teríamos aí o monstro ideal contra o qual o sr. Boff deseja voltar a ira da
platéia. O sr. Boff aposta na possibilidade de que o leitor não repare na
superposição postiça de recortes e, impressionado pela soma de
maldades, acredite piamente estar vivendo entre as garras do monstro,
tirando daí a conclusão lógica de que deve deixar-se libertar pelo sr. Boff.
Nisso, e em nada mais, consiste a “teologia da libertação”. A técnica da
superposição é, a rigor, o único procedimento estilístico e dialético do sr.
Boff e o resumo quintessencial do seu, digamos, pensamento. Podemos
encontrá-la, praticamente, em cada página da sua autoria, onde em vão
procuraremos outra coisa.

Já poucas linhas adiante temos outro exemplo, no trecho em que ele usa
a figura de são Francisco de Assis como protótipo do revolucionário que
ele mesmo pretende ser. O leitor, paciente e bondoso, por favor, siga mais
este paragrafinho:

“Tal atitude [a de S. Francisco ao rejeitar os bens do mundo] corresponde


à do revolucionário e não a do reformador e do agente do sistema vigente.
O reformador reproduz o sistema, introduzindo apenas correções aos
abusos por meio de reformas… O que [Francisco] faz representa uma
crítica radical às forças dominantes do tempo… Não optou simplesmente
pelos pobres, mas pelos mais pobres entre os pobres, os leprosos, aos
quais chamava carinhosamente ‘meus irmãos em Cristo’.”

Francisco aparece aí, pois, como o revolucionário que em vez de servir ao


sistema vigente busca destruí-lo e substituí-lo por algo de totalmente
diverso. Nem discuto a inverdade histórica, que é demasiado patente. São
Francisco jamais se voltou contra o sistema hierárquico da Igreja, mas, ao
contrário, fez da sua ordem mendicante o instrumento mais dócil e
eficiente da autoridade papal. Para usar os termos do próprio Boff,
corresponde rigorosamente à definição do “reformador” e não à do
“revolucionário”.

Mas o ponto não é esse. A coisa mais linda é que, segundo o sr. Boff,
quando Francisco se aproxima não somente dos pobres, mas “dos mais
pobres entre os pobres”, isto é, dos leprosos, há nisso um claro protesto
contra a hierarquia social. Mas desde quando a lepra escolhe suas vítimas
por classe social? Não eram leprosos o rei de Jerusalém, Balduíno IV, e o
rei da Alemanha, Henrique VII, filho do grande imperador Frederico II e de
Constança de Aragão? Francisco recusaria o beijo ao leproso de família
rica? Superpondo artificialmente a idéia da deformidade mórbida à da
inferioridade econômica, que lhe é totalmente alheia, o sr. Boff faz do
menos anti-social dos gestos de caridade cristã um símbolo do ódio
revolucionário, e o leitor, estonteado pela imagem composta, nem
percebe que foi feito de trouxa mais uma vez, engolindo como pura
teologia católica a velha distinção marxista entre reforma e revolução.
Desfeito pela análise o jogo de impressões, a “teologia da libertação” do
sr. Boff revela-se nada mais que uma técnica de escravização mental.

Sim, o estilo é o homem. Uns escrevem para mostrar, outros para


esconder e esconder-se, lançando, desde as sombras, a miragem de uma
falsa luz.
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