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Literatura Brasileira II

Capítulo 1: O Realismo-Naturalismo
Keila Fernandes Santos
Silvana Lovera Silva

Introdução
Conforme nos informam Cereja e Magalhães (2005, p. 281), “na segunda me-
tade do século XIX, o contexto sociopolítico europeu mudou profundamente, lutas
sociais, tentativas de revolução, novas ideias políticas, científicas [...]”. Dentro desse
contexto, outro mundo se abriria também à literatura, tendo de se adequar às mu-
danças e à realidade. Ao constatar as lutas sociais e as revoluções que aconteceram
nessa época, a literatura não podia ficar inerte e se manter nos moldes do Roman-
tismo, viver de idealizações, do culto do eu ou fugir da realidade. Era o momento
do embate entre se fixar em um mundo idealizado ou considerar e escrever sobre
o mundo real, composto de duras realidades, mesmo que por meio do artifício da
ficção.
Eis o nascimento de tendências que contrariam o Romantismo. Segundo Ce-
reja e Magalhães (2005, p. 281), são “três tendências antirromânticas na literatura,
que se entrelaçam e se influenciam mutuamente: o Realismo, o Naturalismo e o Par-
nasianismo”. Retrataremos, neste capítulo, duas delas: o Realismo e o Naturalismo.

1.1 Realismo e Naturalismo: um pouco de história


É na segunda metade do século XIX que, segundo Cereja e Magalhães (2005,
p. 282), “a literatura europeia buscou novas formas de expressão, sintonizadas com
as mudanças que ocorriam em diferentes setores: filosófico, científico, político, eco-
nômico e cultural”. A renovação na literatura manifestou-se na forma de três movi-
mentos literários, como já exposto na introdução. O Realismo, na França, teve início
com a publicação de Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert; e o Naturalismo,
com a publicação de Thérèse Raquin (1867), de Émile Zola.
Segundo Cereja e Magalhães (2005, p. 283), guardando diferenças “formais
e ideológicas, essas tendências apresentam alguns aspectos comuns: o combate ao
Romantismo, o resgate do objetivismo na literatura e o gosto pelas descrições”.
Embora o Realismo e o Naturalismo tenham ocorrido concomitantemente,
acabam por apresentar diferenças entre si, como, por exemplo, o Realismo retrata o

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homem interagindo com seu meio social, enquanto o Naturalismo mostra o homem
como “produto de “forças naturais”, desenvolve temas voltados para a análise do
comportamento patológico do homem, de suas taras sexuais, de seu lado animales-
co” (MAGALHÃES; CEREJA, 2005, p. 283). Observe outras características desses dois
movimentos na seguinte citação:
As características do Realismo estão intimamente ligadas ao mo-
mento histórico, refletindo, dessa forma, a postura do Positivismo,
do Socialismo e do Evolucionismo, com todas as suas variantes.
Assim é que o objetivismo aparece como negação do subjetivismo
romântico e nos mostra o homem voltado para aquilo que está
diante e fora dele, o não/eu; o personalismo cede terreno para o
universalismo. O materialismo leva à negação do sentimentalis-
mo e da metafísica. O nacionalismo e a volta ao passado histórico
são deixados de lado; o Realismo só se preocupa com o presen-
te, o contemporâneo. (Disponível em: <http://www.aprendemos.
com.br/realismo-e-naturalismo/>. Acesso em: 8 jul. 2013.) (grifo
nosso).

Como movimento estético, o Realismo refletiu as ideias científicas e filosófi-


cas dominantes na época, como o Positivismo, o Socialismo e o Evolucionismo. Por-
tanto, as obras desse período retratam essas tendências implicitamente. O Realismo
tem como características principais negar o subjetivismo romântico, é mais objetivo
em seus relatos; o homem não reflete mais sobre o seu interior, mas retrata tudo o
que está fora dele (seria o “não eu”); e o universalismo toma o lugar do personalis-
mo, nega o sentimentalismo e a metafísica e exalta o materialismo. Para o Realismo,
o presente é o tempo importante.
Conforme Coutinho (2002, p. 9), “é impossível uma definição completa do
Realismo, que é antes um temperamento, uma tendência, um estado de espírito,
do que um tipo ou gênero literário acabado”. Segundo o autor, o Realismo procura
apresentar a “verdade” por meio de um tratamento verdadeiro do material, da ve-
rossimilhança, do arranjo dos fatos selecionados, unificados. “O Realismo procura
essa verdade através do retrato fiel de personagens.” (COUTINHO, 2002, p. 9).
Sobre o Naturalismo, Coutinho (2002, p. 11) afirma que “é um Realismo a
que se acrescentam certos elementos que o distinguem e tornam inconfundível sua
fisionomia”, ou seja, não é apenas um exagero ou uma simples forma reforçada do
Realismo, mas um “Realismo fortalecido por uma teoria peculiar, de cunho científi-
co, uma visão materialista do homem, da vida e da sociedade”.

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A Zoomorfização é uma concepção do Naturalismo. Assim,


quando o homem é retratado como um animal, expressa-se a
ideia da época, muito influenciada pelo Darwinismo, de que
o homem não passa de um ser instintivo, consideravelmente
irracional e que é condicionado pelo meio em que vive.
Leia um trecho retirado do livro O cortiço, de Aluísio Azevedo
em que se pode observar a animalização do homem: “[...] via-
-se-lhes [das mulheres] a tostada nudez dos braços e do pesco-
ço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto
do casco [couro cabeludo]; os homens, esses não se preocupa-
vam em não molhar o pêlo, ao contrário, metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas [narizes ou
focinhos] e as barbas, fossando [revolver com o focinho] e fun-
gando contra as palmas da mão. (Disponível em: <pt.wikipedia.
org/wiki/Zoomorfização>. Acesso em: 1 jun. 2013.)

Ainda sobre o contexto do Realismo e do Naturalismo, é interessante obser-


var que, a partir da segunda metade do século XIX, muitas concepções estéticas dei-
xaram de ter espaço e nortear o “ideário romântico”. Surgia, então, uma tendência
que baseava sua trama no aspecto psicológico da personagem, sempre inspirada na
realidade. Estava aí sendo inaugurado o Realismo-Naturalismo também no Brasil,
em 1881, com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo, respectivamente. E é sobre o Realismo e
o Naturalismo na Literatura Brasileira, suas características e principais autores que
trataremos nos próximos tópicos.

1.2 O Realismo e o Naturalismo no Brasil


O Brasil, no plano sociopolítico e econômico, passa por mudanças que com-
preendem o período de 1850 a 1900, como a campanha abolicionista que se intensi-
fica em 1850; o advento da Guerra do Paraguai (1864/70) tendo como consequência
o pensamento “republicano” e o início da decadência da Monarquia. Mesmo com
a Lei Áurea (1888) não resolvendo o problema imediato dos negros e a situação de
escravidão, acaba-se por instaurar uma nova realidade social que é a luta pelo fim da
mão da obra escrava e a substituição pela “mão de obra assalariada”. Essa alteração
do quadro social também interfere no quadro cultural, que faz com que os escritores
busquem novas formas de abordar a realidade, ou seja, uma realidade menos ide-

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alizada, menos romantizada e mais objetiva, mais crítica e também participante. É


nesse contexto sociopolítico que surge o Realismo-Naturalismo no Brasil.
O Realismo brasileiro foge, e muito, dos aspectos do Realismo europeu. Um
exemplo disso é a obra de Machado de Assis, que, na sua fase madura, escapa a
qualquer determinismo, pois “Machado produz uma literatura essencialmente pro-
blematizadora” (CEREJA; MAGALHÃES 2005, p. 289). É com uma minuciosa investiga-
ção psicológica que Machado indaga a existência humana, substitui o determinismo
biológico por acentuado pessimismo existencialista e discute temas como a relativi-
dade da loucura e a exploração do homem pelo próprio homem.
Já no Naturalismo, a narrativa é fortemente marcada pela análise social com
enfoque em grupos humanos “marginalizados”. Um exemplo disso é a obra de Aluísio
de Azevedo, o principal autor naturalista brasileiro. Encontramos em sua obra carac-
terísticas como o determinismo social predominante, além da construção, por meio
da observação, do mundo físico e da chamada zoomorfização de suas personagens.
Sua obra oferece uma interessante análise de comportamentos sociais.
Retrataremos um pouco da vida e da obra de dois autores representativos:
Machado de Assis e Aluísio de Azevedo.

1.3 Joaquim Maria de Machado de Assis

“Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista,


dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crí-
tico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em
21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de
negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Ma-
ria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a
tornar-se o maior escritor do país e um mestre da lín-
gua, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta,
Maria Inês, também mulata, que se dedica ao menino e
o matricula na escola pública, única que frequentará o
Fonte: navras.com.br autodidata Machado de Assis. Em 1897, foi eleito presi-
dente da Academia Brasileira de Letras, cargo que ocu-
pou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. Sua
oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa.” (Disponível em: <http://
www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp>. Acesso em: 1 jun. 2013).

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Machado de Assis, como autor realista, produziu desde o início uma obra mais
equilibrada, sem o compromisso exagerado com a ciência e a biologia determinista.
Por meio de sua obra, imprimiu um “vigor novo à literatura no Brasil”.
O escritor teve uma atividade literária ininterrupta, que durou desde 1855,
quando publicou seus primeiros versos na revista Marmota, até o aparecimento de
seu último livro, Memorial de Aires, em 1908. Machado de Assis “representa, no Bra-
sil, o primeiro e o mais acabado modelo do homem de letras autêntico” (COUTINHO,
2002, p. 151).
Leia com atenção a produção literária de Machado de Assis.

Comédia
Desencantos (1861)
Tu, só tu, puro amor (1881)

Poesia
Crisálidas (1864)
Falenas (1870)
Americanas (1875)
Poesias completas (1901)

Romance
Ressurreição (1872)
A mão e a luva (1874)
Helena (1876)
Iaiá Garcia (1878)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Quincas Borba (1891)
Dom Casmurro (1899)
Esaú e Jacó (1904)
Memorial de Aires (1908)

Conto
Histórias da meia-noite (1873)
Papéis avulsos (1882)
Histórias sem data (1884)
Várias histórias (1896)

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Páginas recolhidas (1899)


Relíquias de casa velha (1906)

Teatro
Queda que as mulheres têm para os tolos (1861)
Desencantos (1861)
Hoje avental, amanhã luva (1861)
O caminho da porta (1862)
O protocolo (1862)
Quase ministro (1863)
Os deuses de casaca (1865)
Tu, só tu, puro amor (1881)

Algumas obras póstumas


Crítica (1910)
Teatro coligido (1910)
Outras relíquias (1921)
Correspondência (1932)
A semana (1914/1937)
Páginas escolhidas (1921)
Novas relíquias (1932)
Crônicas (1937)
Contos fluminenses (1937)
Crítica literária (1937)
Crítica teatral (1937)
Histórias românticas (1937)
Páginas esquecidas (1939)
Casa velha (1944)
Diálogos e reflexões de um relojoeiro (1956)
Crônicas de Lélio (1958)
Conto de escola (2002)

Antologias
Obras completas (31 volumes) (1936)
Contos e crônicas (1958)
Contos esparsos (1966)

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Contos: Uma antologia (2 volumes) (1998)

(Disponível em: <http://www.releituras.com/ma-


chadodeassis_bio.asp>. Acesso em: 1 jun. 2013).

Como notamos, a obra de Machado de Assis é vasta e diversificada em sua


expressão e qualidade, por isso é um marco na Literatura Brasileira. Vamos comen-
tar um de seus romances mais notórios, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse
romance, primeiramente, foi publicado, na forma de folhetim, na Revista Brasileira
do Rio de Janeiro, em 15 de março de 1880, aparecendo em livro apenas no ano
seguinte.

Saiba mais

Para saber mais sobre Machado de Assis, acesse o link destinado ao autor pela
ABL (Academia Brasileira de Letras): <http://www.machadodeassis.org.br/>.

Fernandes (2001, p. 2), em sua análise da obra machadiana, afirma que


No ano de 1881 lançavam-se as Memórias Póstumas de Brás
Cubas, consideradas a divisora de águas entre a primeira e a se-
gunda fase de sua extensa obra. O livro apresenta propostas li-
terárias diferentes do padrão romanesco de sua época. Tomando
como objeto de análise várias abordagens temáticas que vão des-
de o estudo biográfico ao desdobramento formal da obra, os críti-
cos vão traçando o seu perfil e engendrando cada vez mais uma in-
finitude de opções temáticas, o que dá valor singular ao romance.

É essa qualidade temática encontrada na obra machadiana que dá a ela sua


inevitável essência. A obra de Machado de Assis pode ser analisada de tantos vieses
quanto for possível encontrar e desdobrar os labirintos de seus relatos psicológicos.
Por exemplo, quando pensamos em realismo fantástico, podemos atribuir esse as-
pecto também à obra machadiana, e uma referência a ele encontramos em Memó-
rias Póstumas de Brás Cubas. Sobre isso, Fernandes (2001, p. 6) esclarece que,
Primeiramente, temos a representação do realismo fantástico já
patenteada no primeiro capítulo quando Brás Cubas diz que não
é “propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. [...]

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o narrador flui sua história com indistintos movimentos alegóricos


que enviesam a realidade objetiva.

Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance narrado em primeira pes-


soa em flashback, ou seja, na forma de retrospectivas, por Brás Cubas a partir de
sua morte. Temos aqui mais uma genialidade da narrativa de Machado, formar uma
história a partir da narrativa de um defunto que conta suas aventuras em vida, to-
talmente destituído de preocupações em magoar quem quer que seja, já que há
um distanciamento entre narrador e os fatos narrados. A obra é interessante, entre
outras razões, porque apresenta ironia e humor mordaz. É essa condição de defun-
to autor que permite ao narrador suspender a narrativa ou o tempo dela e dialogar
com o leitor de maneira descomprometida com os fatos.
Vejamos os personagens principais e um trecho da obra.
Lista de personagens

Brás Cubas: filho abastado da família Cubas, é o narrador do livro; conta suas
memórias, escritas após a morte, e nessa condição é o responsável pela carac-
terização de todos os demais personagens.
Virgília: amante de Brás Cubas, sobrinha de ministro, e a quem o pai do pro-
tagonista via como grande possibilidade de acesso, para o filho, ao mundo da
política nacional.
Marcela: paixão da adolescência de Brás.
Eugênia: a “flor da moita”, nas palavras de Brás, já que era filha de um casal
que ele havia flagrado, quando criança, namorando atrás de uma moita; o pro-
tagonista se interessa por ela, mas não se dispõe a levar adiante um romance,
porque a garota era coxa.
Nhã Lo Ló: última possibilidade de casamento para Brás Cubas, moça simples,
que morre de febre amarela aos 19 anos.
Lobo Neves: casa-se com Virgília e tem carreira política sólida, mas é traído pela
esposa com o protagonista.
Quincas Borba: teórico do Humanitismo, doutrina à qual Brás Cubas adere.
Morre demente.
Dona Plácida: representante da classe média, tem uma vida de muito trabalho
e sofrimento.

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Prudêncio: escravo da infância de Brás Cubas, ganha depois sua alforria.


(Disponível em: <http://www.not1.xpg.com.br/machado-de-assis-obras-realis-
tas-caracteristicas-contos-e-prosa/>. Acesso em: 29 maio 2013).

CAPÍTULO 1
Óbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim,
isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto
o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a
adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor
defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda
é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre
este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de
1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos
e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado
ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas
nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste
e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última
hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de mi-
nha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo
que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos
caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é
a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um
sublime louvor ao nosso ilustre finado”.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi
assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para
o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço prín-
cipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde
e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras,
minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e...

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Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Con-
tentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do
que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo
que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente
dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos
convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os
olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha
extinção.
— Morto! morto! dizia consigo.
É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o
voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a
imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até
às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quan-
do eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, me-
todicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva
que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma nava-
lha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que
essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo
ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com
uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilida-
de física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que
uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me
não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por
si mesmo. (Disponível em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://
www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/brascubas.htm>. Acesso em: 29
maio 2013).

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1.4 Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo

“Considerado o pioneiro do Naturalismo no Brasil, o ro-


mancista Aluísio de Azevedo nasceu em São Luís, Mara-
nhão, em 14 de abril de 1857. Seu primeiro romance
publicado foi Uma lágrima de mulher, em 1880. Funda-
dor da cadeira número quatro da Academia Brasileira
de Letras e crítico social, esse escritor naturalista foi au-
tor de diversos livros. Entre eles, estão: O Mulato, que
provocou escândalo na época de seu lançamento, Casa
de Pensão, que o consagrou, e O Cortiço, sua obra mais
importante. Faleceu em Buenos Aires, em 21 de janeiro
brasilescola.com de 1913.” (Disponível em: <http://www.suapesquisa.
com/biografias/aluisiodeazevedo/>. Acesso em: 29 maio 2013).

Aluísio Azevedo, em seus romances, procurou discutir e mostrar os problemas


sociais, principalmente o racismo, além de tecer críticas ao clero.
Antônio Candido (1999, p. 57-58) teceu alguns comentários a respeito das
características e das obras do autor:
Dos inúmeros narradores de tendência naturalista, o mais impor-
tante foi Aluísio Azevedo (1857-1913), que era também caricatu-
rista e jornalista. Esta circunstância influiu na sua escrita e, quando
avultou de maneira excessiva, comprometeu-a sob a forma de es-
quematização e sensacionalismo. Alguns dos seus muitos roman-
ces são apreciáveis, inclusive um dos primeiros, apesar dos traços
melodramáticos, O Mulato (1881), estudo do preconceito de cor,
tão odioso quanto irracional num país mestiço como o Brasil. Mais
seco e melhor construído é Casa de Pensão (1884), violenta des-
crição dos descaminhos e da morte de um estudante. Mas ele só
alcançou a maestria n’O Cortiço (1890), que denota influência di-
reta de Émile Zola, sendo o único dos seus livros que se sustenta
plenamente.

É interessante observar que Candido ressalta algumas obras de Azevedo. A


obra O Mulato foi considerada, pela sociedade da época, um verdadeiro escândalo,

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pois incitou grandes polêmicas em relação ao racismo e à corrupção dos padres. O


Cortiço também recebeu bastante destaque na sociedade, pois retratava com re-
quintes naturalistas a realidade de uma sociedade constituída de lavadeiras, ope-
rários, prostitutas e toda a sorte de pessoas marginalizadas. Sua narrativa mostra
um ambiente social totalmente degradado e jogado à sorte, ou seja, um verdadeiro
amontoado de corpos a ir e vir, um cortiço. Apresentamos dois fragmentos desse
romance para sua leitura.

E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no “Cabeça-de-Gato”,


que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando
acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo
satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal
fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem flu-
minense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por
noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos;
viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na
mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde
brota a vida brutalmente, como de uma podridão. (Disponível em: <http://mau-
ravoltarelli.wordpress.com/tag/aluisio-azevedo/>. Acesso em: 29 maio 2013).

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele rece-
beu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho
das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o
atordoara nas matas brasileiras, era a palmeira virginal e esquiva que se não
torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti
mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite
de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida,
que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os
desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-
-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor
setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva
daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalha-
vam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. (Disponível em: <http://maura-
voltarelli.wordpress.com/tag/aluisio-azevedo/>. Acesso em: 29 maio 2013).

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O crítico Antônio Candido (1999, p. 58) faz algumas ponderações interessan-


tes sobre a obra O Cortiço e sobre o que Azevedo buscou retratar nela:
É a história de uma habitação coletiva do Rio de Janeiro, segundo
uma visão naturalista que se desdobra em simbolismos curiosos,
inclusive porque percebemos que o cortiço é no fundo o próprio
Brasil, regido pela exploração econômica do estrangeiro e a sujei-
ção do povo humilde, que então era composto em grande parte
de negros, mestiços e imigrantes pobres. O Cortiço ilustra uma
contribuição importante do romance naturalista: a ampliação do
panorama ficcional, pela franqueza realista com que descreveu e
deu destaque a esta parte da população e seus ambientes, como
se estivesse rejeitando a velha tendência transfiguradora da nossa
literatura.

Concluindo, é interessante ponderarmos o quanto a literatura interage


com a realidade, mesmo que por imitação, e como esse processo se dá a partir
das obras que citamos e como os autores usam recursos da linguagem, até mesmo
simbólicos,retratados, por exemplo, na personificação de um local como O Cortiço,
dando-lhe vida por meio das personagens e reações do ambiente.
No próximo capítulo, conheceremos um pouco da história do Parnasianis-
mo no Brasil, seus autores principais e características.

Referências
CANDIDO, Antônio. Iniciação à Literatura Brasileira. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1999.
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. São
Paulo: Atual, 2005.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil: era realista, era de transição. São Paulo:
Global, 2002.
FERNANDES, Marcos Rogério Cordeiro. O paradoxo do Realismo em Machado de
Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas. Revista CES, 2001.

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