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Sósias do Rei

Soyuti, célebre historiador árabe, de origem persa, que viveu na segunda metade do século XV, escreveu:

"O califa Al-Motassim, de Bagdá, merece ser apontado entre os soberanos mais gloriosos do mundo!"

Para aqueles que vivem alheios aos episódios da vida árabe, a opinião do erudito Soyuti sobre o emir Al-Motassim
parece repintada com as cores berrantes do exagero.

Não vale a pena discutir, meu amigo, sobre a validade e justeza desta ou daquela opinião. Em nossas tendas jamais
acendemos o narguilé venenoso das controvérsias inúteis. Vou apenas recordar um singular episódio ocorrido com o
famoso califa que o sábio historiador pretendeu incluir entre os "mais gloriosos do mundo" .

Conta-se (Allah, porém, é mais sábio!) que AI-Motassim, califa de Bagdá, chamou um dia o seu prefeito e disse-lhe:

- É verdade, ó prefeito!, que vivem nesta cidade, e já foram vistos pelos meus amigos, homens extremamente parecidos
comigo? Respondeu o prefeito:

- É verdade, sim, ó Emir dos Crentes! Conheço dois muçulmanos que são como retratos vivos de Vossa Majestade. Um
deles exerce a profissão de pasteleiro e outro é fabricante de tapetes. É possível, porém, que existam outros sósias de
Vossa Majestade sob o céu desta gloriosa Bagdá.

- Pois faço grande empenho em conhecer os meus sósias- declarou o rei. - Convida-os a uma reunião em palácio, pois a
todos darei, sem exceção, ricos presentes.

Aquela ordem do monarca foi atendida com a maior solicitude e presteza. O prefeito fez anunciar, pelos pátios das
mesquitas, bazares e pelos recantos longínquos da grande cidade, que todos os homens que se julgassem parecidos
com o Califa deveriam comparecer, em dia e hora certos, ao "divã" das audiências. O poderoso Emir prometia generosas
recompensas.

O caso despertou grande curiosidade. Quantos sósias teria, afinal, o rei?

No dia marcado, no suntuoso salão das audiências, o poderoso monarca, rodeado de seus vizires, cádis e altos
funcionários da corte, recebeu os pretendentes, que eram, aliás, em número de sete!

Havia, entretanto, uma particularidade que fez sorrir o rei e causou certa impressão de constrangimento aos cortesãos.
Dos sete candidatos aos prêmios, seis eram parecidíssimos como monarca: o sétimo, porém, era inteiramente diferente.

Os sósias foram, um a um, recebidos em audiência e chamados para junto ao trono. A cada um dirigia o rei palavras de
estímulo, de bondade e simpatia. E todos partiam radiantes de alegria com vinte dinares de ouro e um belo turbante de
seda.

Chegou, finalmente, a vez do último - o tal cuja figura em nada se assemelhava à do rei.

Os vizires e cheiques entreolhavam-se espantados.

O pretenso "sósia", num andar tranqüilo e firme, aproximou-se da larga escadaria de mármore cor-de rosa que conduzia
ao trono.

- Meu amigo - disse-lhe o bondoso soberano árabe -, sei que há enganos sérios na vida e que não raramente o homem
é levado a errar, sem querer, nas coisas mais simples e pueris. O teu comparecimento a este concurso só pode ser
explicado por um lamentável equívoco de tua parte. Não quero admitir a hipótese de teres sido inspirado pelo desejo
audacioso de zombar de mim.
Ora, o meu convite era dirigido exclusivamente àqueles que se julgassem parecidos comigo,e pelo que me é dado
observar somos inteiramente dessemelhantes. Repara bem, meu amigo. Sou corpulento, alto e forte; és, ao contrário,
franzino, baixo e fraco; tenho os olhos negros e a pele morena; os teus olhos são azulados e a tua pele é clara; o meu
rosto é emoldurado por uma pujante barba preta e tu és inteiramente imberbe!

A única semelhança, ó muçulmano! que se pode observar entre nós, é sermos ambos homens, isto é, servos de AI-lah!
E, assim, não terás direito ao mesmo prêmio que foi dado aos outros seis. Receberás um prêmio bem menor. Um dinar
de prata... e nada mais. O homem de olhos a zuis, depois de ouvir, com a maior serenidade, a sentença do califa,
inclinou-se respeitosamente e assim falou:

- Agradeço o vosso dinar, ó Comendador dos Crentes!, mas não posso aceitá-Io. Não tenho direito a recompensa
alguma. Fui iludido pelas aparências. Quando aqui compareci julguei, realmente, que éramos muito parecidos... –

Parecidos! - estranhou o rei com certo movimento de impaciência. - Por Allah! Estavas, então, certo de tua parecença
comigo?

- Sim, ó Emir dos Crentes! - confirmou, com absoluta firmeza, o desconhecido. - Certíssimo! Julgava que havia entre nós
grande parecença. Essa parecença, porém, não era física - pois a semelhança física que acaso exista entre duas criaturas
o tempo facilmente destrói e aniquila. Certo estava de que éramos unidos por uma profunda semelhança de sentimento
e de espírito, isto é, julguei que as nossas almas fossem como duas almas gêmeas. Sou inteligente e estava convencido
de que éreis inteligente também. Sou sincero, generoso e simples, e julguei que éreis, do mesmo modo, sincero,
generoso e simples.

- Basta - interrompeu placidamente o rei. - Se assim pensavas, não houve, asseguro, erro algum de tua parte. Somos,
realmente, muito parecidos. É grande a afinidade espiritual que nos aproxima. E posso demonstrar-te facilmente. Sou
inteligente, pois compreendi muito bem a profunda lição moral que acabas de me dar; sou generoso, pois receberás de
mim uma recompensa vinte vezes maior do que a que esperavas; sou simples e sincero, pois não hesito em reconhecer
o meu erro diante de meus amigos e auxiliares.

Era assim, com destemor e sinceridade, que pensava e agia o magnânimo califa AI-Motassim, Príncipe dos Crentes.

Não nos parece, portanto, envolver o menor traço de exagero o elogio formulado pelo historiador Soyuti (que era
árabe, mas de origem persa).

Al-Motassim foi glorioso entre os mais gloriosos! Uassalã!

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