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O Livro do Destino

Ninguém escapa ao Destino


Oculto ou aparente,
De face serena ou inclemente...
(Das “Mil e uma noites”)

Certa vez — há muitos anos — quan tando entre as mãos o turbante esfar
do voltava de Bagdá, onde fora ven rapado:
der uma grande partida de peles e — Mac Allah! ó muçulmanos!2 *
tapetes, encontrei num caravançará,' Eu já fui poderoso! Eu já tive o Des
perto de Damasco, um velho ára be tino nesta mão!
de Hedjaz que me chamou, de cer to — É um pobre diabo — afirma
modo, a atenção. Falava agitado com vam alguns. — Não regula bem do
os mercadores e peregrinos, ges miolo! Allah que o proteja!
ticulando e praguejando sem cessar; Eu, porém, confesso, sentia irre
mascava constantemente uma mistu ra sistível atração pelo desconhecido
forte de fumo e haxixe e, quando de turbante esfarrapado. Procurei
ouvia de um dos companheiros uma aproximar-me dele discretamente,
censura qualquer, exclamava, aper-
2
Mac Allah! (leia-se: Mak-alá) — exclamação usual en tre
os árabes — “Por Deus!” — ou ainda: — “Exalta do
Caravançará — refúgio construído, pelo governo ou seja Allah”.
por pessoas piedosas, à beira dos caminhos para servir Muçulmanos— nome derivado de “musin” — “aquele
de abrigo aos peregrinos. Espécie de “rancho” de gran des que se resigna à vontade de Deus”. Os muçulmanos se
dimensões em que se acolhiam as caravanas. guem a religião de Mafoma.

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falei-lhe várias vezes com brandura rem na terra, desde o cair de uma fo
e, ao fim de algumas horas, já lhe ha lha seca até a morte de um califa,
via captado inteiramente a confian ça! estão escritos — estão fatalmente es
— Os caravaneiros me tomam por critos — no “Livro do Destino”!
doido — ele me disse uma noite, E sem esperar que o interrogasse,
quando cavaqueávamos a sós. — prosseguiu meneando a cabeça dolo
Não querem acreditar que já tive nas rosamente:
mãos o destino da humanidade intei — Salvei das mãos do cheique
ra. Sim, Senhor: o destino do gêne ro Abu Dolak, depois de uma “raz-
humano. zia”4 * terrível, que esse impiedoso
Esbugalhei os olhos, assombrado. beduíno fizera num acampamento
Aquela afirmação insistente, de da tribo dos Morebes, um velho fei
que havia sido senhor do Destino, era ticeiro que ia ser enforcado. Esse fei
característica do seu pobre estado de ticeiro, em sinal de gratidão, deu-me
demência. um talismã raríssimo que possuía
O desconhecido, porém, que pare uma pedra negra, peqúenina, em for
cia não perceber os meus sustos e des ma de coração, encontrada, anos an
confianças, continuou: tes, dentro do túmulo de um santo
— Segundo ensina o Alcorão — o muçulmano. E essa pedra maravilho
livro de Allah — a vida de todos nós sa permitia a entrada livre na famo sa
está escrita — maktub!' — no gran de gruta da Fatalidade, onde se acha
“Livro do Destino”. Cada ho mem — pela vontade de Allah — o Livro
tem lá a sua página, com tudo o que do Destino. Viajei longos anos até o
de bom ou de mau lhe vai acontecer. alto das montanhas de Masirah, pa ra
Todos os fatos que ocor além do deserto de Dahna, a fim de
alcançar a gruta encantada. Um
i
Maktub — (estava escrito!) — particípio passado do
verbo catab (escrever). Expressão que bem traduz o fa
talismo muçulmano.
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Ataque de beduínos, seguido de morticínio, devasta
ção e saque.

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djim 5 — gênio bondoso que estava dos os haveres; ficará cego e morrerá
de sentinela à porta — deixou-me en de fome e sede no deserto!” E assim,
trar, avisando-me, porém, de que só sem piedade, ia ferindo e atassalhan
poderia permançcer na gruta por es do todos os meus desafetos!
paço de poucos minutos. Era minha — E na tua vida? — indaguei,
intenção alterar o que estava escrito mirando-o com surpresa. — Que fi
na página de minha vida e fazer de zeste, ó caravaneiro, na página que
mim um homem rico e feliz. Basta va o Destino dedicara à tua própria exis
acrescentar com a pena que eu já tência?
levava: — “Será um homem feliz, es — Ah! meu amigo! — atalhou o
timado por todos; terá muita saúde desconhecido, contorcendo as mãos,
e muito dinheiro!” Lembrei-me, po desesperado. — Nada fiz em meu fa
rém, dos meus inimigos. Poderia, na vor. Preocupado em fazer o mal aos
quele momento, fazer grande mal a outros, esqueci-me de fazer o bem a
todos eles. Movido pelos mais torpes mim mesmo. Semeei largamente o in
sentimentos de ódio e de vingança, fortúnio e a dor, e não colhi a me nor
abri a página de Ali Ben-Homed, o parcela de felicidade. Quando me
mercador. Li o que ia suceder, no de lembrei de mim, quando pensei em
senrolar da vida, a esse meu rival e tornar feliz a minha vida, estava ter
acrescentei embaixo, sem hesitar, minado o meu tempo. Sem que eu es
num ímpeto de rancor: — “Morrerá perasse, me surgiu pela frente um
pobre, sofrendo os maiores tormen “efrite”6 — gênio feroz — que me
tos!” Na página do cheique Zalfah el- agarrou fortemente e, depois de
Abari gravei, impetuoso, alteran do- arrancar-me das mãos o talismã, me
lhe a vida inteira: — “Perderá to- atirou fora da gruta. Caí entre as pe
dras e, com a violência do choque,
■ Djins e efrites são gênios sobrenaturais, em cuja exis
tência os muçulmanos acreditavam. Atualmente essa perdi os sentidos. Quando recuperei
crendice só subsiste nas classes incultas. Os djins são
benfazejos, ao passo que os efrites se divertem com o
mal que podem fazer às criaturas. Efrite — veja a nota 5.
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a razão, me achei ferido e faminto, Seria verdadeira essa estranha
muito longe da gruta, junto a um oá sis aventura?
do deserto de Omã. Sem o talis mã Até hoje ignoro. O certo é que o
precioso, nunca mais pude descobrir o triste caso, do velho árabe de Hed-
caminho da gruta encan tada das jaz, encerrava profundo ensinamen to.
montanhas de Masirah! Quantos homens há, no mundo, que,
E concluiu, entre suspiros, com preocupados em levar o mal a seus
voz cada vez mais rouca e baixa: semelhantes, se esquecem do bem que
— Perdi a única oportunidade que podem trazer a si próprios...
tive de ser rico, estimado e feliz!

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