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Eugenia: a higiene como estratégia de segregacao* Christiane Gioppo * Neste ensaio, faremos uma breve reflexo sobre a segregago racial em seu tratamento mais cientffico, a eugenia. A partir da cunhagem do termo na Inglaterra do século XIX e fundamentada em teorias cientfficas, a eugenia passou de popular a cientéfica ¢ foi disseminada por aparatos le- gais, propiciando métodos eficazes de manipulagdo, orientago e controle dos considerados menos capazes que, no coincidentemente, faziam parte de um estrato da populagao pertencente as classes trabalhadoras, Na seqiiéncia, 0 texto discorrer4 sobre a mudanga do termo de eugenia para higiene e mostraré como a higiene foi pega fundamental para a formagdo e manipulagdo do pensamento operdrio no contexto da cons- trugdio © organizagio da indistria brasileira, no final do século XIX e inicio do século XX, Chegaremos, finalmente, ao fundamento do idedrio segregador li- gado a higienizagao do trabalhador e mostraremos de que forma este fun- damento ideolégico perpassou a formagdo dos professores que, para perpetuar a segregacio, deveriam ser formados com tal orientag%o. Outros profissionais, como agentes sanitérios e médicos, também foram for- mados para identificar e segregar os menos capazes em vista de seu * Texto produzido para o Programa de Pés-Graduagdo em Educagio (Mestrado) da Universidade de Si0 Paulo, Agradego aos professores Nélio M. Vicenzo Bizzo, da Faculdade de Educagéo da USP; Anténio Lineu Carneiro, Vera Costa, Reny Guindaste e Vanitley Pedroso Guelfi, da UEPR. *** Professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Educagao da Universidade Federal do Parané. Educar, Cit, n.12, p. 167-180, 1996. Edivora da UFPR 167 GIOPPO, C. Eugenia: a bigiene proprio bem. E conclufremos em termos da permanencia destas idéias nos livros didaticos de hoje, que aparecem, de forma sutil, sub-repticia e disfargada. Este ensaio nao pretende aprofundar conhecimentos sobre o tema, mas apenas tragar um panorama do conceito desde sua origem até a per- manéncia nos livros didaticos atuais, visando a gerar discuss6es junto aos, professores. A segregagao humana é uma construgao social que existe desde a origem das sociedades e ainda hoje ocorre, mesmo entre as tribos mais primitivas do interior do Amazonas ou da Africa. No entanto a transfor- magiio da segregagao em limpeza racial, em eugenia, s6 ocorreu no século XIX com Francis Galton, sobrinho de Charles Darwin, em seu livro He- reditary Genius, publicado em 1869. Bizzo (1994) ressalta que, ao utilizar-se de métodos estatisticos, Galton matematizou a visio popular sobre as diferengas entre as classes, conferindo-Ihes um caréter “cientifico”. A segregagdo possuiria, a partir daf, um argumento de validagao. © fundamento te6rico para explicagdo das diferencas raciais foi a Teoria Pangenética de transmissio dos caracteres, elaborada por Charles Darwin, que sustentou serem os caracteres adquiridos numa geracao transmissiveis ds geragdes seguintes. Galton observou que filhos de homens talentosos, advogados e médicos, geralmente seguiam a carreira de seus pais € utilizou de artificios estatfsticos para mostrar que estes transmitiam tais caracteres a seus filhos, igualmente inteligentes e bem- sucedidos, enquanto os pobres geralmente continuavam pobres. Mas Gal- ton ignorou, em toda sua obra, as diferengas de condigdes materiais concretas para 0 individuo se desenvolver. Foi com este viés radical que cle propos 0 termo eugenia para falar em melhoria das ragas, enfatizando que quanto mais pura a raga mais forte e melhor ela seré.! Na Inglaterra e, principalmente, em sua ex-colOnia americana, a eugenia veio, pois, a ser legitimada como cientffica pela influéncia inicial desse autor, a partir da Teoria Pangenética de Darwin e com base no de- lineamento da curva normal da Estatistica. As teses segregacionistas que surgiram, portanto, na metade do século XIX, fundamentadas numa teoria de reprodugao nfo mais aceita atualmente, parecem, porém, estar tomando novo fOlego. Em outubro de 1 BIZZO, Nélio M. V. Meninos do Brasil: idéias sobre reprodugio, eugenia © cidadania na escola, Sao Paulo, 1994, Tese (Livre-Docéncia) - Faculdade de Educagio, USP, p. 68-77, 168 Ecducar, Curitiba, n.12, p. 167-180, 1996, Editors da UFPR GIOPPO, C. Eugenia: higiene 1994, apareceu nos Estados Unidos 0 livro The bell curve, que compila varias pesquisas sobre testes de QI e diferenga de inteligencia entre bran- cos € negros. Apesar de retomar intata a velha polémica das diferengas ra- ciais, promete ser um sucesso de vendas, As idéias eugenistas comegaram a chegar ao Brasil no final do século passado e, no inicio, com uma repercusso muito mais dilufda do que a inglesa ou americana; “o Brasil assistiu a manifestagdes até bem comportadas dos defensores do melhoramento racial”.” Em 1870, os jor- nais das Faculdades de Medicina j4 discutiam a importancia do médico higienista e seu papel na sociedade, mas a populacdo de forma geral nao tinha contato com esses periédicos. Na década de 20, a Teoria Pangenética de Darwin era considerada ultrapassada © poderfamos esperar, como conseqiiéncia légica, que a eugenia também se tornasse superada, uma yez que utilizava como funda- mento a pangénese, Mas isto no ocorreu, pelo contrério, a eugenia estava em ascendéncia, nao s6 na Europa e nos Estados Unidos, mas também no Brasil, Em Piracicaba - SP, nessa época, fundava-se a Sociedade Brasi- leira de Eugenia, que reuniu médicos higienistas e outros simpatizantes € divulgou os preceitos higienistas em boletins ¢ jornais de medicina; e para atingir a maioria da populagio, em livros de literatura ¢ livros de for- magio de professores. Esta contradicao entre a teoria superada e a as cencio da eugenia foi registrada como paradoxo. (Schwarcz, 1993; Bizzo, 1994) O ideario eugenista parece ter influenciado muito algumas Areas, s quais as idéias de organizag4o € formaguio de m&o-de-obra eram es- senciais, como a rea industrial. Os conhecimentos higienistas eram im- portantes para a “construg’o” de um operdrio padrao, cuja formagio precisava ser minuciosamente elaborada para que toda sua vida estivesse orientada em fungao da fabrica. A higienizacdo foi o principal argumento para iniciar esta discipli- narizagio, que pretendia mudar habitos e moldar 0 operario para o seu espago de trabalho — enfim, criar uma nova mentalidade, A higienizagio, ou higiene, foi o sindnimo, o termo substitutivo en- contrado para a eugenia, criada por Galton na Inglaterra. Portanto, antes mesmo da introdugio do taylorismo e do fordismo no Brasil, delineia-se 0 desejo burgués de construgio da fabrica higiénica, espago racional e apolitico da produgao, até transformar- 2 BIZZO, Nélio M. V. op. cit. p. 96. Ecducar, Curitiba, n.12, p.167-180, 1996, Edivora da UFPR 169 GIOPPO, C. Eugenia: a higiene se num projeto enunciado e assumido pelo conjunto de especialis- tas, do empresariado e do Estado, * As primeiras indistrias fabris no Brasil comegaram com um modelo rude, quase escravagista, de disciplinarizagao. Pelo insucesso de seus métodos, os burocratas rapidamente perceberam que haveria de se mudar a estratégia para conquistar 0 funcionério, convencendo-o das van- tagens da mudanga, que the propiciaria mais tempo para dedicar-se ao tra- balho, mais proximidade de sua casa com a fabrica e que seus filhos estudariam para ser futuros empregados da empresa. Foi uma técnica muito mais eficaz, opondo-se ao modelo de fébrica satanica criado pelos operdrios ingleses da revolugao industrial; passaram a adotar, entio, 0 modelo de fabrica higi¢nica, que tem como projeto subliminar um regime de disciplinarizagio que tornaria o espago de produgio atraente ¢ aprazivel para 0 funcionério, de acordo com preceitos de satide © moral pré-determinados: “é preciso que se ensine aos trabalhadores rudes ¢ ig- norantes uma nova forma de vida, mais higiénica e adequada, antes que cles mesmos o fagam (...) Assim se pretende formar o novo proletariado, impondo-Ihe uma identidade moralizada, construfda de cima e do exte- rior”. d As terapias disciplinares deveriam necessariamente atender também & familia do trabalhador, pois a mudanga de postura € uma mudanca com- pleta de modos e visio de vida: uma engenhosidade para penetrar na casa € na familia do operdrio, As formas de agao eram fundamentais ¢ de- veriam inspirar confianga e oferecer vantagens a toda a famflia. Mulheres e criangas também deveriam ser adestradas, vislumbrando-se para tais criaturas perspectivas futuras de trabalho e melhoria de vida. Estratégia disciplinar suave e sutil de adestramento dos corp: do espirito, a terapia do trabalho vi pados o tempo todo: (...) nas instituigdes assistenciais ou nos pa- tronatos © orfanatos, no caso dos pobres. Tratava-se de fixar as criangas e, conseqiientemente, toda a familia no interior da habi- tao e impedir que se organizassem atividades fora da intimidade doméstica, e ava manter OS menores ocu- 3 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil: 1890-1930. 2. ed. Sio Paulo: Paz-e Terra, 1987. p. 19. 4 Ibidem. p. 17-18. 5 Ibidem. p. 122-23. 170 Educar, Curitiba, n12, p167-180, 1996. Editora da UFPR GIOPPO, C. Eugenia: a bigiene Para facilitar 0 sucesso do adestramento era necessério eliminar aglomeragoes e fazer com que cada familia sentisse a importancia de man- ter-se no interior de seu lar. Isso era, na verdade, um deslocamento tatico do ptiblico ao privado. Para tanto havia total respaldo dos médicos higienistas: poder médico persegue a infecgio no espago privado do traba- Ihador, invade sua casa, inspeciona seu quarto e prescreve normas de conduta (...) Cada um deve dormir em sua cama individual As casas operdrias federdo menos e perderdo a marca negativa de ameaga pestilencial — promete o saber médico.® Em vista dessa disciplinarizagio foram construfdas vilas operdrias proximas as fabricas, como cuidado de que seus funciondrios nao se atrasassem e tivessem todas as condigdes necessdrias para absorver a in- culcagio higienista que a fabrica sutilmente impunha. Para eles, era im- prescindfvel modificar aquela criatura tio desprezivel — 0 trabalhador pobre: No discurso dos higienistas, dos industriais ou ainda dos literatos, a representagio imagindria do pobre estrutura-se em fungio da imundicie. O pobre & 0 outro da burguesia: ele simboliza tudo 0 que ela rejeita em seu universo. E feio, animalesco, fedido, rude, selvagem, ignorante, bruto, cheio de superstig6es. Nele a classe dominante projeta seus dejetos psicolégicos: ele representa seu lado negativo, sua sombra. Como Parent-Duchatelet ou os médicos brasileiros, Aluisio Azevedo sente néuseas com 0 cheiro repug- nante do povo_amontoado nos cortigos, gerados espontaneamente ‘como vermes. Ve-se, portanto, que todo 0 processo de higienizagao tinha como objetivo fundamental disciplinar o trabalhador para que ele produzisse mais, orientando toda a famflia para uma mudanga de atitudes. Havia também outro objetivo embutido nesta idéia: o de isolar 0 pobre com o intuito de separd-lo das elites, criando locais préprios, as vilas operdrias, para que nfo fosse necessério conviver com eles. 6 RAGO, op. cit, p. 173. 7 Atente-se para a concepgio de reprodugao sugerida. RAGO, op. cit, p. 175. Eclucar, Curitiba, n.12,p.167-180, 1996, Edtora da UFPR m GIOPPO, C. Eugenia: a bigiene Reflexos na educacao Como a maioria dos projetos educacionais que foram introduzidos no Brasil, a eugenia obviamente também nio teve grande impacto. Textos, porém, explicando eugenia positiva e negativa e suas vantagens, passaram a estar presentes nos livros de formagio de professores por muitos anos. Este fato, por si s6, jé representa muito, Somado & escassez da diversidade de livros para formagio de professores, podemos supor que grande parte dos professores formados no Brasil tiveram em suas mios, em algum mo- mento, um destes livros. O livro A hereditariedade em face da educagdo, de Octavio Do- mingues, era fregiientemente citado nos Boletins de Eugenia, da So- ciedade Brasileira de Eugenia (que existia em Piracicaba nessa época) € traduz em palavras simples 0 pensamento eugénico, embora j& se desli- gando de uma das suas premissas bésicas: a transmissio pangenética de caracteres — teoria de Darwin — para aproximar-se do pensamento mende- liano, Com isto, a eugenia perde um grande aliado, tornando-se menos radical. Mas nem por isso deixando de orientar-se a uma “eugenia posi- tiva”, ou seja, aquela que aconselha e procura convencer, como na citagio de Octavio Domingues: (...) € preciso que nos sujeitemos aos dictames das leis da heredi- tariedade, e fujamos convictamente das unides féra das regras eugnicas, ou quando nao, conscientemente, sopitemos por todos ‘os meios a formagio de uma prole geneticamente miserdvel. Esse é um dos urgentes ¢ preciosos auxilios que a Eugenia esta solicitando da educacdo: explicar, convencer a0 homem, ao ci- dadio, que as mas herangas s6 se acabario se o individuo geneti- ‘camente mau nao procriar. * (grifo do autor) No texto, o autor enfatiza que a ciéncia j4 nao aceita a teoria repro- dutiva de Darwin exposta por Galton no livro Hereditary genius — que 6 a base da eugenia -, mas ainda assim apresenta 0 que pode ser feito: “O mais pritico e acertado, portanto, € agir, € influir, € actuar sobre o in- dividuo pelo ensinamento dos princfpios eugénicos, despertando-Ihe a consciencia, antes que promulgar leis, talvez niio executaveis, e destinadas e serem burladas. ” 8 DOMINGUES, Octavio. A hereditariedade em face da educagdo, 2. ed. Sio Paulo: Cia Editora Melhoramentos, 1935, p. 144-45. in Euan, Carita, n.12,p. 167-180, 1996. Editora dt UEPR GIOPPO, C. Eingenias a higiene Domingues faz. uma clara referencia ao papel da educacao em orien- tat, dirigir 0 pensamento e inculear idéias para que as leis sejam bem acei- tas; caso contrério, jamais seriam cumpridas por nao terem aprovagio da populacao, Ja no livro Higiene e puericultura, de Valdemar de Oliveira, de 1966, sdo ignorados os conhecimentos da genética mendeliana. O autor prefere citar as teorias de Darwin sobre reprodugiio, mesmo que elas ja no fossem mais aceitas hé décadas: A verdade cientifica, portanto, 6 esta: 0 casamento de dois tarados produz um terceiro tarado. Quantas familias, no mundo, poderao orgulhar-se de no possuir taras? Além do que, nem sempre pode a medicina despistar certos caracteres hereditérios. S6 a prova real da unido de dois seres definiré a pureza da semente de que provém. (...) O que a lei prevé, proibindo os casamentos con- sangtiineos, 6 a unidio temivel de elementos degenerados cujas taras se somariam nos filhos com evidente prejuizo para a espécie. (...) alei deveria considerar, entre os impedimentos ao matrimOnio, © estado de satide dos cOnjuges, estabelecendo o exame médico pré-nupcial, baseado na conhecida lei de Darwin: “Os ascendentes tém tendéncia a transmitir aos descendentes seus caracteres gerais ¢ individuais, antigos e adquiridos”. Essa transmissdo se traduz. pelo aparecimento, na pessoa dos des- cendentes, de caracteres ora paternos, ora maternos, ora de paren- {es colaterais, ora de avés (atavismo). Deles, herdamos as boas ¢ més qualidades fisicas e morais,!? E importante notar que o autor propde o exame pré-nupcial baseado na “lei” darwiniana da transmissio dos caracteres adquiridos e que os atributos morais também so herdaveis, ou transmissfveis geneticamente, devido a esta mesma “lei”, ignorando simplesmente todo 0 conhecimento da genética mendeliana, j4 amplamente difundida em 1966, Isto ocorria ha apenas duas décadas atrds, 0 que nos leva a crer que provavelmente algu- mas professoras formadas por este livro ainda devem estar em sala de aula transmitindo tais conceitos e inculcando idéias de segregagao. Analisando as citagdes presentes na formagio de professores até duas décadas atrés, percebe-se 0 quanto devem ter influfdo na formagao 9 DOMINGUBS, op. cit., p. 145. 10 OLIVEIRA, Valdemar de. Higiene e puericultura, Si0 Paulo: Editora do Brasil, 1966, p. 265-66. Ecducar, Curitiba, n.12, p.167-180, 1996. Editora da UFPR m GIOPPO, C. Eugenia: a higione de conceitos € atitudes, uma vez que este é 0 objetivo fundamental da eugenia: a disciplinarizagao e a orientagdo da populacao. Estes pontos nos levam a refletir sobre os conceitos “cientificos” que estilo por tras de algumas atitudes “naturais” na escola e que, no en- tanto, parecem refletir as idéias de segregac’o, como a separagao de tur- mas fortes e fracas, ou filas de carteiras com alunos acima da média, na média e abaixo da média, ou ainda, chavoes utilizados por professores € até por pais quando se referem a um aluno com dificuldades de aprendi- zagem, como “a cabecinha dele é fraca, nao tem jeito mesmo, por isso precisa reprovar”. Tais atitudes nos levam a crer na presenga das idéias cugenistas no aparelho escolar, Atitudes segregat6rias, infelizmente, no sio exclusivas da edu- cagao escolar, Mello, em seu artigo “O elitismo no setor de satide”, relata © caso da epidemia de meningite meningoc6cica na cidade de Sio Paulo, que surgi em 1971, atingindo a populagio de baixa renda e teve cen- surada sua divulgagio até que atingiu, em 1974, o bairro elitizado do Morumbi; a partir daf divulgada, combatida e controlada, ficando conhe- cida como a Sindrome do Morumbi. Este fato ilustra 0 quao presente e grave 6 a segregagdo, embora muitas vezes escondida, em desfavor das populagdes de baixa renda, Outros exemplos de casos semelhantes que acontecem diariamente revelam o papel da segregagao intensificada pela sociedade de classes, Por isso, 0 professor deve perceber a dimensio de seu papel social como agente de mudangas, identificando e discutindo com seus alunos as praticas de segregagdo e ndo se permitindo fazer 0 papel de agenciador e divulgador das idéias eugenistas pela via da higienizacio, A eugenia e 0 livro didatico Este t6pico no tem o propésito de aprofundar uma anélise da eugenia no livro didético, mas enfatizar 0 que j4 vem sendo alertado imimeras vezes quando se faz andlise de livros didaticos. O livro de Nosella, por exemplo, jé discutia o tema em 1981, Nele, a autora faz uma extensa pesquisa em livros didaticos e de literatura infantil, separando por t6picos os problemas encontrados. Ao concluir 0 livro, deixa claro que: ~ 0S negros ¢ as mulheres, quando aparecem nos desenhos de livros, so menores que os meninos brancos, esto em segundo plano ou repre- sentam papéis inferiores, submissos; m Educar, Curitiba, 12, p.167-180, 1996. Editora da UPR GIOPPO, ©. Eugenia: a higiene = 0s textos que tratam de higiene fazem relagdo com a pobreza e in- centivam textualmente a segregagdo em frases como: “Vocé nao gostaria de sentar perto de alguém cheirando mal, mal vestido e sujo, nao €?”; - colocam sempre a mulher como a responsével pela higiene da casa € pela educagio das criangas. Sobre a higiene nos livros didaticos, a autora escreve: Os textos de leitura siio vefculos de propaganda, portanto, de mo- dos de vida positives, mas fora do alcance da classe pobre, Entre estes esto os “habitos de higiene” descritos com todo o aparato de instalages sanitérias do “quarto de banho”. Escovar os dentes, utilizando-se de escova e pasta dental: tomar banho com sabonete ¢ um bom chuveiro, para depois vestir roupas bonitas. As preocu- pages com a higiene estio relacionadas a tais artigos de toalete, indispensaveis para se comegar a desenvolver hibitos de higiene. Textos de contetido elitista como estes humilham as criangas po- bres, que na maioria das vezes, sentem-se sujas, ndo por ignorarem os habitos de higiene, mas, principalmente, por falta de recursos para desenvolvé-los da maneira como sio descritos. Se elas nio possuem condigdes materiais e so pressionadas a serem “limpas”, devem ficar sem saber por onde comegar (...). A grande maioria da populagio pobre do pafs nao possui nem ao menos rios limpos, para praticarem “habitos de higiene”, pois os res{duos quimicos que as inddstrias atiram estio poluindo as éguas de todos eles.' (grifos da autora) A autora firmemente enfatiza o papel da inculcagdo ideolégica pre- sente nos textos e desmascara a formagiio de uma massa de manobra pronta para ser ordenada e cumprir alegremente as ordens, Em alguns tex- tos, virtudes sio comportamentos desejados, principalmente na mulher, mie e responsdyel pela educagio dos filhos. Os livros geralmente utili- zam-se da simbologia animal das fabulas, perpetuando as diferengas so- ciais como vontade de Deus ou como determinagao biolégica e hereditaria (como queria Francis Galton). A autora denuncia tais idéias, contidas nes- ses livros: A ideologia dominante, subjacente a estes textos, veicula uma mensagem onde a mansido, a docilidade diante da exploracao, 11 NOSELLA, Maria de Lourdes Chagas Deir6. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didéticos. 7", ed. Sao Paulo: Editora Moraes, 1981, p. 159-60. Ecducar, Curitiba, n.12, .167-180, 1996. Editora da UEPR 5 GIOPPO, C. Eugenias a higiene siio valorizadas, porque tais virtudes, assimiladas pela estrutura da personalidade, transformaro as criangas em seres facilmente manejaveis e, além disso, felizes em sua disposigio de servir. ' (gtifos da autora) Todas estas situagdes aparecem com mais freqiiéncia nos livros de 1 a 42 séries do 1.° grau, mas também ocorrem de maneira sutil nos livros de 5.* a 8.* séries. Parece haver nos livros de Biologia Educacional um incentivo A ingenuidade da professora e de seus alunos que, se for seguido ao pé da letra, apenas auxiliaré na formagdo de criaturas déceis ¢ meigas, reforcando a alienagao como forma de dominagao das elites sobre as Camadas sociais menos favorecidas. Exemplos da sutilidade da inculcagao ideol6gica podem ser encon- trados em muitos livros de leitura infantil, que incentivam a ingenuidade, a alegria ¢ sub-repticiamente induzem & alienacio. A colegio O mundo da crianga esta repleta de exemplos. Vejamos: CASINHA RELUZENTE, Nancy M. Hayes Adaptagio de Helena Pinto Vieira Eu desejo...tanto, tanto Uma casa pequenina, Bem pintadinha de branco. Minha casa entao teria Um tapete para o gato; Na parede, bem redondo, Um buraco para o rato. Um relégio, tique, taque, Que as horas marearia, Enquanto eu fosse fazendo Tudo, tudo com alegria, Para a escola mandaria Os meus queridos filhinkos, Depois de dar-thes, contente Beijos, lapis e docinhos Entdo comegaria a faina, O dever nosso de todo dia; Com um pano, a casa toda, ‘Com esmero limparia. 12 NOSELLA, op. cit, p. 172. 76 Educar, Curitiba, 12, p.167-180. 1996, Editors da UFPR GIOPPO, C. Eugenia: higine Faria brithar vidros e janelas, Os armdrios e 0 chao. Depois as grades, as portas, Fechos, ladrilhos e fogao. E, anoite, com as criangas Dormindo sossegadas nas caminhas, Na cadeira de balango, bem trangiiila, Consertaria as roupinhas, Que linda casa a minha, Que eu sempre limpa traria. Em um lar assim brithando Muito feliz eu seria. Note-se que a idéia est4 em ligar a organizagHo familiar 4 res- ponsabilidade da mulher, bem como a felicidade a higiene e limpeza da casa. Outro exemplo, do mesmo livro, também relaciona a limpeza a ale- gtia, 2 felicidade de ver tudo limpo e arrumado; e os desenhos mostram uma linda menina, loira de olhos azuis, “bem eugenica”, muito limpinha e contente, dangando ao realizar sua tarefa: QUANDO LILI VARRE Nancy Byrd Turner ‘Tradugio de Edvete da Cruz Machado Vejam como estd contente a Lili Varrendo, varrendo aqui e ali Anda na sala toda faceira, Yai a vassoura como parceira. Nao sei como a Lili ndo se cansa, Quando trabatha ela também danca. E tao engracado o seu bailado que deixa tudo bem arrumado: as vezes parece que esté valsando. 13. Colegio © MUNDO DA CRIANGA, v. 2, Rio de Janeiro: Delta S.A. , 1949, p. 16. Ecducar, Quritba, n.12, 1.167.180. 1996, Edivora da UEPR wr GIOPPO, C. Eugenia: a bigiene Outras parece estar cumprimentando; Demora um pouco em cada cantinho E quando sai deixa tudo limpinho. E afinal, ao parar de dangar, Pode-se ver, estd tudo a brithar. E divertido para se ver, Quando a Lili comega a varrer.\4 Exemplos como esses mostram 0 quanto os livros didéticos e de li- teratura infantil podem ser os divulgadores de um idedrio de segregagiio, a partir de textos aparentemente muito ingénuos e sem cariter segregador. Propomos aos professores, portanto, que atuem criticamente na deniincia destas estratégias de segregagio e usem outras taticas que permi- tam as classes trabalhadoras, ou minorias raciais, poder contra-argumen- tar e exigir os direitos que tém todos os cidadiios. Consideragies finais Esta reflextio procurou apresentar o pensamento segregador, desde a cientifizagao da eugenia por Francis Galton, transformando-a em limpeza racial, at€ 0 reflexo deste pensamento na formagdo de professores e na sua ago educativa — de modo suave e sutil, pelo uso do termo higiene e de seus conceitos correlatos, como forma de inculcago ideoldgica por meio dos livros didaticos. Ao finalizar a leitura deste ensaio, no entanto, podem surgir novas perguntas ao leitor, tais como: € agora? como identificar nos textos ele- mentos sutis de segregago? como trabalhar com livros que nos so im- pingidos © que trazem em seu bojo toda uma carga de preconceitos sociais? A resposta a estas quest6es no é facil, pois 0 livro didatico é hoje, principalmente no Brasil, um grande veiculo de formagao e manipu- lagao de opinides e, por conseqiiéncia, de alienagiio. Mas muitos autores vem batendo insistentemente na tecla da alienagao e, inclusive, alguns 6r- gios governamentais tém acordado para o fato. No Parand, por exemplo, a licitag4o piblica para compra de livros didaticos de 1.° grau, em 1994, inseriu no edital de convocacio um anexo 14 Colegio O MUNDO DA CRIANCA, v. 2, p. 15. 178 EAucar, Curitiba, n.12, p.167-180, 1996. Editora da UEPR GIOPPO, C. Eugenia: a higiene contendo itens de qualidade no que se refere a especificagdes técnico- pedag6gicas mfnimas de aceitabilidade do material, quanto a alguns requi- sitos educacionais, como contetido programatico e metodologia utilizada. Os itens de qualidade eram classificatorios (juntamente com os itens de menor prego). Quanto A qualidade o edital foi categérico: Refutar-se-do livros didéticos que forem apresentados de forma simplificada e descontextualizada, com base no cientificismo arti- ficial, pois desta maneira cria-se uma visao esteriotipada, precon- ceituosa e equivocada do processo de produgio do conhecimento cientifico (...) (..) O ensino de ciéneias deverd contribuir na tentativa de libertar os alunos dos preconceitos, do misticismo, da magia e crendices presentes no seu cotidiano Na especificag%o dos contetidos sobre Satide e Higiene, presentes Nos livros didaticos, o edital citou: — 0s aspectos referentes & satide nos livros didéticos, devem res- tringir-se as agSes comportamentais do individuo, nio se priori: zando 0s efeitos socioeconémicos que interferem e direcionam os programas governamentais; — A satide no poderd ser trabalhada meramente como regra de higiene.'® Este passo inédito e ousado pretende forgar a produgio de livros didaticos de qualidade e voltados para uma percepgtio de mundo mais abrangente e relacionada com a vida dos estudantes. Este fato apenas, de forma isolada, de nada adiantard se 0 professor nao estiver atento para perceber os erros, as incoerdncias dos textos didsticos e se nao revelar as contradiges que continuam a perpass4-los de forma sub-tepticia. Para perceber tudo isto, 0 professor deve ser preparado, deve discu- tir com seus colegas, contar € escrever suas vivéncias e, principalmente, fazer andlises criticas das situagdes que ocorrem em seu cotidiano. 15 PARANA, Secretaria de 0014, Anexo 2, p. 18-24, 16 Ibidem, p.19-24 tado da Educago, Concorréncia ECP/SEED n. Educar, Curitiba, 12, 167-180. 1996, Editora da UFPR 1” GIOPPO, C. Eugenia: a igiene REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BIZZO, Nélio M. V. Meninos do Brasil: idéias sobre reprodugao, eugenia € cidadania na escola, Sio Paulo, 1994, Tese (Livre-Docéncia) - Faculdade de Educagio, USP. Colegio O MUNDO DA CRIANGA. vy. 2: Hist6rias contadas ¢ outros poemas. Rio de Janeiro: Delta, 1949, DOMINGUES, Octivio. A hereditariedade em face da educacdo. 2. ed. Sio Paulo: Melhoramentos, 1935. FREITAG, Barbara. et al. O livro diddtico em questo. Si Paulo: Cortez, 1989, JAPIASSU, Hilton. As paixdes da ciéncia: estudos de histéria das cién- cias, Sao Paulo: Letras ¢ Letras, 1991. 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