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Il O deus que mede o tempo Uma vez, outras vezes, e meia vez. “REVELAGAO” Ohomem, como cagador, nao precisava de mais nada além do nascer e do por-do-sol, de sentir o ritmo das estagdes do ano e de saber quando procurar a presa. A mulher, como geradora de filhos, s6 precisava do choro do bebé para saber quando oferecer © peito, ver uma fogueira comesar a se apagar para nela jogar mais lenha, e olhar os frutos para saber quando. colhé-los. Avida exigia pouco planejamento antecipado, além de coordenar a migra- fio de acordo com 0 movimento da cata e de estar em qualquer lugar onde fos- se possivel sobreviver da melhor maneira no inverno antes que este chegasse. No entanto, quando homens € mulheres se transformaram em agricultores, comegaram a medir 0 tempo com mais exatidao. Nao se tratava sé da necessi- dade de planejar mais com antecedéncia. Com uma organizagao social mais complexa, os acordos miituos relativos a agdes futuras, acontecimentos e reu- nides exigiam um padrao de medida de tempo aceito por todos. 19 A tinica coisa disponivel para definir o tempo com precisado era a Lua. Ob- servadas com cuidado, as fases da Lua podiam ser apontadas dentro de cinco ou seis horas, digamos. Por outro lado, era muito mais dificil localizar ° ciclo olar. O dia exato em que o Sol invertia a diminuicao da sua elevacao no solsti- cio de inverno, por exemplo, nao se definia sozinho do mesmo modo que alua nova ou a lua cheia e podia levar uma ou duas semanas para ser reconhecido. Além disso, no que se refere aos primeiros métodos que a humanidade usou para medir o tempo, mais valia uma indicagao mensal precisa do que uma vaga indicagao anual. “Vamos nos encontrar na préxima lua cheia” era uma combinagao pratica, © que nao se podia dizer de “Vamos nos encontrar quando faltar um sexto do percurso para 0 Sol atingir a elevagao maxima”. Por isso, a Lua foi a primeira a permitir a medida do tempo, e os primeiros calendarios foram lunares, fato que sobrevive na divisdo inapropriada do nos- so atual calendario solar em meses.” A incompatibilidade entre os calendarios solar e lunar sé criou problemas mais tarde. Podemos dizer que 0 uso deliberado das fases da Lua para medir 0 tempo com precisdo é basicamente um processo intelectual. O intelecto humano, isto é,a fungao légica linear, 0 cérebro esquerdo, havia sido usado com bons resul- tados durante muito tempo. No entanto, conquistar o fogo, fazer ferramentas, construir cabanas, plantar sementes, tudo isso implicava aplicd-lo a problemas materiais, a coisas que podiam ser manuseadas. Por outro lado, medir o tempo lunar era aplicar o intelecto a um problema abstrato. A humanidade notou um fendmeno que nao podia ser apalpado, observou as leis desse fenomeno e de- pois usou-as para fins praticos. Talvez a medida do tempo tenha sido o primeiro aspecto ldgico linear a ser acrescentado ao deus filho e amante, gue: treiro viril que mencionamos no capi- tulo anterior. O Deus mais ‘moldado’ de épocas posteriores comegava a surgir. Em vista disso, era compreensivel que, no inicio, muitas divind lades luna- res fossem masculinas. Desses deuses da Lua, um dos mais caracteristicos era o Toth egipcio, do qual vamos falar detalhadamente no capitulo XX. Mais tarde, Toth, de de deus da sabedoria, participou fundamentalmente de mas continuou a ser o deus egipcio titular da Lua. Outro exemplo foi o deus Sin dos caldeus, sumérios e assirio-babildnios, cujo nome deu origem ao do Monte Sinai. Um dos atributos de Sin era ser ini- migo dos malfeitores, que tendem a agir a noite, cuja escuridao é iluminada pela Lua. Sin era um deus da sabedoria, como Toth. O babilénio foi um dos mais importantes calendérios lunares. na qualida- assuntos terrenos, * Fin inglés montis, que provém de mouths, cujo radical 6 ‘moon, ou seja, lua (N. da T.). 20 E, como vimos, em geral a Lua também re} do Deus; a crenga na fecundagao das mulheres Aevolugao das divindades lunares era lizava apenas a medida do tempo, sentido de ser a luz do Inconsciente que corresponde ao das mulheres. Assim, desde os tempos primordiais havia deusas e deuses da Lua. A t6ni- ca tendia a se deslocar para 0 lado das deusas 4 medida que o papel de medido- ra solar do tempo ficava mais importante. Localizar os pontos nodais do ano solar ainda é uma facanha intelectual. O método mais simples consiste em fincar dois paus ou colocar duas pe- dras no chao antes do meio do inverno, alinhando-os com o ponto em que 0 Sol nasce no horizonte leste e corrigindo 0 alinhamento todos os dias. Com a apro- ximagao do meio do inverno, o ponto em que o Sol nasce continua a se deslocar para a direita. (Obervacao: isto refere-se ao hemisfério norte). No dia do solsti- cio, esse ponto para e daf em diante passa a se deslocar para a esquerda. Duran- te alguns dias, parecerd estatico, mas 0 solsticio pode ser determinado com boa preciséo como 0 ponto médio daquele periodo estatico. Os paus ou pedras po- dem ser deixados no lugar, como indicadores de solsticios sucessivos. Os cérebros da Idade da Pedra conseguiram fazer essa medida e dali em diante o ano solar péde ser definido. Isto teria incentivado a transferir a impor- tancia para os deuses do Sol, aliado ao fato de que, para os agricultores, este era 0 fertilizador dos campos. Permaneceram algumas exce¢es (como Amaterasu, deusa do Sol e Tsu- kiyomi, deus da Lua dos japoneses, ou a deusa do Sol Yhieo deus da Lua Bahlu dos aborigines australianos), mas a principal tradicao do paganismo posterior passou a ser a de um deus do Sol que media 0 tempo e uma deusa da Lua que menstruava e iluminava o Inconsciente. 7 - As estruturas megaliticas imponentes dos povos neoliticos podem nao nos ter dado respostas exatas, mas ao menos forneceram elementos para especular- mos a respeito das praticas rituais daqueles povos. _ . : Uma das mais admirdveis € a de Newgrange, elevacaio megalitica majesto- sa que domina o rio Boyne. E 0 ponto focal do complexo de Boyne, rico agrega- do de estruturas separadas por um ou dois quilometres 7 construidas pela co- i fc 6 ue ld viveu por volta de c Gocree inane € dserito como um tamulo que encerra uma Passa- gem feita de pedra e que mede 19 metros, terminando em uma camara cer dotada de trés recessos em formato de cruz. O teto é sustentado por consolos ainda esté firme e seco, como ha 5 mil anos. Sobre a passagem e a camara foi le- vantado um enorme monte de pedras que hoje estdo cobertas de grama; 0 mon- te foi cercado com enormes pedras. A estrutura abrange 0,4 hectares de solo e ‘Presentava a fungaio de fertilizacgao peloluar era muito difundida. ‘omplexa porque a Lua nao simbo- mas também certos aspectos de deusa, no que ilumina a intuigao, além de ter um ciclo 21 jeve conter aproximadamente 200 mil toneladas de pedra, tendo sido cons. de a truida sem ferramentas de metal e sem argamassa. . Newgrange sempre foi conhecido e,domesmo modo que Brugh na Boinne (‘Palacio sobre 0 Boyne’), desempenhou um papel importante na mitologia cel- ta (veja a p. 121). $6 nas décadas de 60 700 professor Michael J. O'Kelly e sua equipe fizeram uma escavacao magnifica e recuperaram Newgrange, ocasiao em que descobriram algo impressionante. Acima da entrada havia uma fenda debruada de pedra, denominada Caixa do Telhado; na manha do solsticio de inverno, 0 sol nascente lanca um feixe luminoso ao longo da passagem e da ca- mara e ilumina a parte central dos trés recessos durante quase 17 minutos. possivel observar o mesmo efeito, se bem que com intensidade menor, trés ma- nhs antes e trés semanas depois do solsticio. Apartir dessa descoberta foram pesquisados outros montes megaliticos ir- landeses, verificando-se que muitos eram orientados de acordo com o Sol, em- bora nem todos seguissem a orientagdo dos mesmos nodos do ciclo solar. Muitas vezes e com facilidade excessiva, Newgrange é considerado um tu- mulo grupal e uma estrutura destinada a determinar 0 solsticio de inverno em beneficio de uma comunidade agricola. Se é um mero ttimulo, porque la foram encontrados os despojos cremados de algumas pessoas, podemos concluir que algumas catedrais também sao timulos, porque nelas também foram enterra- dos homens. E se os construtores de Newgrange tivessem conhecimentos e téc- nica suficientes para incluir 0 aspecto do solsticio de inverno, devem ter sabido determinar o solsticio muito tempo antes daquela época, com dois paus ou duas pedras, sem precisar de 200 mil toneladas de pedra, em grande parte le- vadas de lugares situados a quilémetros de distancia. Podemos visualizar o renascimento anual do deus do Sol quando celebra- do naquele local, com o fato impressionante de ver o sol renascido anunciar a sua chegada, iluminando 0 coragao do santuario mais sagrado da tribo. E talvez, naquela manh solene, uma Suprema Sacerdotisa se acomodaria no recesso central a espera de ser fecundada espiritualmente pelo proprio Deus, de modo que ela mesma pudesse fazer profecias para a tribo. Talvez, como em outros lugares, também houvesse um hieros gamos (casamento sagra- do) com um Sumo Sacerdote que personificasse o Deus; mas, mesmo que tudo isso se desse, o verdadeiro momento da concepgio teria ocorrido nos 17 minu- tos da luz do proprio Deus. Talvez, talvez... Sejam quais forem os fatos, uma coisa é certa: 0 deus-Sol, que fertiliza ¢ ee ‘0 tempo, ainda se manifesta vividamente em Newgrange na virada escu- ra do ano.

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