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Boécio e 0 De Trinitate Tradugiio e estudo introdutério: Luiz Jean Lauand nlaua@us| Introdugio Com esta tradugdo“ para o portugués do tratado De Trinitate de Boécio o leitor entra em contato com um dos mais notaveis textos da histéria da cultura. O surgimento desse opisculo, no inicio do século VI, assinala o nascimento da Escoldstica, um método que iria marcar por quase mil anos o pensamento ocidental e, séculos mais tarde, consubstanciar-se em sua mais importante instituigdo educacional: as Universidades. Mas 0 interesse do De Trinitate nao se restringe a aspectos formais ou metodolégicos. Ao valer-se do instrumental aristotélico para a anilise do conteido da fé, Boécio langava conceitos ¢ teses fundamentais, que exerceriam extraordinaria influéncia sobre 0 pensamento teolégico posterior. E 0 caso do maior dos tedlogos, S. Tomas de Aquino, que nao sé se apoiou em teses boecianas para escrever o seu proprio tratado sobre a Trindade da Suma Teoldgica, mas também compés um importante comentirio ao opiisculo trinitério de Boécio. Boécio, 0 educador e 0 fundador da Escolistica'2! Anicio Manlio Torquato Severino Boécio (c. 480-525) nasceu em Roma, descendente das nobres familias dos Anfcios ¢ dos Torquatos. Estudou por muitos anos as ciéncias, a literatura e a filosofia gregas, adquirindo assim um profundo conhe-cimento da cultura classica, que 0 capacitaria mais tarde para desempenhar o papel his-térico de singular importincia que Ihe estava reservado: em meio da barbarie domi-nante, realizar (na medida do possivel...) a salvagao e transmissio da cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente, instalados onde florescera 0 Império Romano. As invasdes barbaras representavam o risco de um iminente desaparecimento da cultura greco-romana que plasmara o Ocidente. Boécio percebeu perfeitamente a gravidade do momento histérico e, de volta a Itdlia (reino ostrogodo), valeu-se dos cargos que Ihe foram confiados pelo rei Teodorico para exercer sua tarefa pedagégica. De Boécio, por exemplo, procedem dezenas de contribuigdes para a lingua latina (sobretudo devidas a seu trabalho de tradutor) e diversas formulagées filoséficas que sero repetidas mil vezes pelos pésteros como de dominio piblico. E 0 caso das definigdes de pessoa (como substdncia individual de natureza racionaly, de felicidade (como 0 estado de perfei¢do que consiste em possuir todos os bens); de eternidade (como a posse total, perfeita e simulténea, de uma vida sem fim) Boécio foi o homem certo no lugar certo. Estava habilitado como nenhum outro para langar os fundamentos da transmissao do saber classico aos barbaros e tal projeto, como se sabe, contém um dos elementos essenciais daquilo que se convencionou chamar "Idade Média" Sé com seu trabalho de tradutor ¢ comentarista - com que estabelece a ponte entre a cultura antiga e a Idade Média -, Boécio jé teria garantido um lugar de relevo na Histéria da Educagao ¢ justificado o titulo de fundador da Escoléstica, "primeiro escoléstico" (Grabmann). Pois, nao por acaso, Escolistica se relaciona com escola, escolar, e 0 ensino da Idade Média muito deve a esse educador. Mas, hé ainda uma outra contribuigdo inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento ainda mais decisivamente essencial na constituigao da escoldstica como método: um estilo de pensamento teolégico. Os opitsculos teolégicos de Boécio - dos quais o principal & precisamente 0 De Trinitate - sio as "primicias do método escolistico" e, por isso, & Boécio considerado "um precursor de S. Tomas" (Stewart ¢ Rand). 6 titulo de seu livro ("Como a Trindade é um tinico Deus e nio trés deuses") expressa 0 propésito de esclarecer racionalmente a verdade de f8 Certamente isto no algo de novo. Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliés, Agostinho havia afirmado a necessidade de cooperagio entre fé e razio, com a célebre sentenga do Sermio 43: intellige ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "cré a fim de que entendas". Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé ¢ a razio"!!4], conselho com que encerra uma carta ao Papa Joao I. A primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, esta em que esse propésito tenha sido assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que antes podia ser unicamente uma atitude fatica tornava-se agora um principio. Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate, encontram-se varias concepgdes platénicas e neo-platénicas; as dez categorias, os géneros, as espécies e diversos outros conceitos de Aristételes; todo tipo de anélises filos6ficas de linguagem. Mas nao ha nem sequer uma nica citagdo ou referéncia 4 Biblia, ¢ isto num tratado teolégico sobre a Santissima Trindade! Nao que a Escolastica se caracterize por ser racional, nao-biblica, mas é preciso frisar aqui a especial importancia dada a razdo na tarefa de conjugar razio e fé. Este cardter inovador racional ndo passou despercebido a Tomas de Aquino. Na Introdugdo do seu comentario ao De Trinitate de Boécio, Tomas!I, a propésito do tema da Trindade, explica que hd dois modos fundamentais de procedimento teoldgico: per auctoritates ¢ per rationes. E que se Ambrésio e Hilario enveredaram pelo primeiro, e se Agostinho mistura os dois procedimentos, Boécio segue decididamente o segundo: a radicalidade da investigago racional. O De Trinitate de Boécio O De Trinitate € dirigido ao seu sogro, Quintus Aurelius Memmius Symmachus, tnico interlocutor a altura do filésofo naquela regio ¢ circunsténcias. Em seus desabafos, ao longo da Introducdo, nota-se a angustiosa soliddo intelectual e espiritual de Boécio no reino ostrogodo. Boécio afirma, desde o inicio, a intengdo de levar a investigago até onde o permitam as forgas do intelecto humano; dada a especial dificuldade do tema, pede também uma especial benevoléncia do leitor. A Introdugdao termina com uma referéncia 4 influéncia que recebeu de Agostinho. De Agostinho, com sua base neo-platénica (a que Boécio acrescentara contribuigdes de Aristételes), procede 0 estimulo para a investigagdo filoséfica da f€, acentuando mais o intellige ut credas do que 0 crede ut intelligas. Também de Agostinho é 0 conceito de Deus como essentia, 0 que nao muda, porque é 0 que é aquele que é (Ex 3,14). Tomas, porém, aponta a semente agostiniana tematicamente decisiva: a distingo entre o que diz respeito absolutamente a Deus, sem distinguir as Pessoas, ¢ 0 que relativamente as distingue. A categoria relagdo como chave do trata-mento da questdo da Trindade sera o grande mérito do desenvolvimento boeciano, que culminari no século XIII no De Trinitate do préprio Tomas. De fato, a questo 28 da prima da Summa, dedicada as relagGes divinas'], é um desenvolvimento das idéias de Boécio. No artigo 3, no sed contra, cita-se a sentenga de Boécio, niicleo central de todo 0 tratamento teoldgico do dogma: "A substancia contém a unidade; a relagdo multiplica a Trindade" (cap. VI). E em outro sed contra decisivo'®!, Tomas vale-se de Boécio para afirmar que "pessoa"!!, em Deus, significa precisamente relacao. capitulo I discute a sentenga da unidade da Trindade e aponta um importante erro da heresia ariana: estabelecer diferengas entre Pai, Filho e Espirito Santo, atribuindo-lhes graus de dignidade diversos. E explica como a alteridade s6 se pode dar pelo género, espécie ou mimero (diferengas que nao ocorrem na Substéncia divina). Para Boécio, seguindo a tradigao grega, a Filosofia comporta ciéneias de duas espécies: tedricas (ou especulativas) e priticas (ou ativas). No capitulo II, em que afirma que a substancia divina é forma, estabelece uma divisio das ciéncias teéricas baseada na diversidade das formas de seus objetos. As trés formas correspondem trés métodos de conhecimento distintos. Deus, sendo forma sem matéria, Forma por exceléncia, € Um e Simples e exclui todo nimero e toda possibilidade de nEle inerirem acidentes. No capitulo II, discorre sobre o fato de que na substancia divina nao ha numero ¢ aplica & questo da Trindade uma interessante discussio de linguagem a partir da distingo entre o "nimero pelo qual numeramos;" a "realidade numerada”. O capitulo IV, dedicado a como se predicam de Deus as categorias, comega por enumerar as 10 categorias de Aristételes, que o leitor encontraré bem explicadas pelo proprio Boécio. Baste aqui sua apresentacio pelo cléssico exemplo mneménico: Arbor sex servos ardore refrigerat ustos. Cras ruri stabo sed tunicatus ero. A arvore (substancia) refrigera (atividade) seis (quantidade) servos (qualidade) queimados (pas- sividade) pelo ardor (relagdo) do sol. Amanha (quando) no campo (onde) estarei de pé (situagdo), mas estarei tunicado (condigao). Em seguida, Boécio mostra como, sendo as criaturas tio diferentes do Ser de Deus, nossa linguagem nfo é univoca quando apli-ca as categorias as criaturas ¢ a Deus. Deus, alids, para Boécio, ndo ¢ sequer substan-cia, mas ultra~ substincia. Essa diferenga de potencial expressive da linguagem no caso particular da categoria relago é analisada nos cap. V e VI, nos quais se discutem respectivamente a relagdo em Deus e a Unidade e Trindade em Deus, estabelecendo a conclusio: "A substincia € responsavel pela unidade; a relagio faz a Trindade". Como a Trindade é um Deus e nao trés deuses Boécio Pesquisei por muitissimo tenpo“l a questdo da Trindade, até onde podem as forcas da pequena chama' da mente, que a luz de Deus se dignou conceder-nos. Tendo chegado a estruturar os argumentos e a redagdo, submeto- os @ ti (Quintus Aurelius Memmius Symmachus, 0 sogro), pois anseio pelo teu abalizado juizo, tanto quanto pelas préprias descobertas de ‘minha diligente pesquisa. Bem poderds compreender 0 que sinto todas as vezes que confio & pena meus pensamentos: seja pela propria dificuldade do tema, seja pela escassez de interlocutores: na verdade és 0 tinico capaz de entendé-los ¢ 0 tinico com quem os discuto. Nao escrevo por desejo de fama nem pelo vaéo aplauso do vulgo; se houver algum fruto externo néo pode ser outro que esperar o teu juizol!21 sobre o assunto tratado. Pois, excetuando a ti, para onde quer que eu othe 86 vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a inveja astuta, de modo que pareceria um insulto aos tratados de teologia submeté-los a esses brutos que, mais do que interessar-se por aprendé-los, caledé-los-iam aos pés. Assim, serei conciso, e 0 que extrai do fundo da Filosofia encobrirei sob palavras novas"31 que falam s6 a ti e a mim, se te dignares a olhar para elas; quanto aos demais, eles ndo nos interessam: ndo podem chegar a compreendé-las e néo sdo dignos de lé-las. Certamente, devemos pesquisar até onde for dado ao olhar da razéio humana ascender as alturas do conhecimento da divindade. Pois também nas outras disciplinas hé limites além dos quais a raz&o nao pode chegar. A Medicina nem sempre traz a saide ao doente e a culpa nao serd do médico, se tiver feito tudo 0 que estava ao seu alcance. E 0 mesmo vale para os outros conhecimentos, No caso do presente estudo, tanto mais benevolente deve ser 0 julgamento, quanto téo mais dificil é a questo. No entanto, tu examinarés se as sementes lancadas em mim pelos escritos de S, Agostinho produziram seus frutos. Mas comecemos a discussdo da questao proposta. I Hé muitos que usurpam a dignidade da religiéo crista, mas a fé que é vilida principal e exclusivamentel4] é aquela que, tanto pelo cardter universal de seus preceitos''51 - que déo a medida da autoridade da religido -, quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo é chamada catolica ou universal. Dessa fé, a sentenca da unidade da Trindade é: "0 Pai é Deus, o Filho & Deus, 0 Espirito Santo é Deus], E, portanto, Pai, Filho e Espirito Santo sao um deus e ndo trés deuses. A razio de sua unidade é a auséncia de diferenca'l: e na diferenca incorrem aqueles que aumentam ou diminuem a Unidade, como os arianos48) que, atribuindo graus de dignidade & Trindade, desfazem a unidade e caem na pluralidade. Pois o principio da pluralidade é a alteridade%l: fora da alteridade nem sequer pode ser entendida a pluralidade. Pois a diferenca entre trés (ou qualquer niimero de) coisas!4l reside no género, na espécie ou no mimero. O nimero de modos de igualdade!2\) Ora, a igualdade pode se dar de trés modos. acompanha o de diversidade. 1) pelo género: como sao iguais quanto ao género (animal) 0 homem e 0 cavalo; 2) pela espécie: como Catéo e Cicero so iguais quanto a espécie (homem); 3) pelo nitmero: como Tiilio e Cicero sdo um eo mesmo 221 Do mesmo modo, a diversidade também se dé pelo género ou pela espécie ou pelo nitmero. Mas a diferenca pelo nimero se dé pela variedade de acidentes. Pois trés homens niio diferem pelo género, nem pela espécie, mas pelos seus acidentes. E se nés mentalmente retiramos deles todos os demais acidentes, cada um, no entanto, continua ocupando um lugar diferente e de modo algum podemos supé-los num mesmo e tinico lugar, pois dois corpos néo podem ocupar um mesmo lugar. Ora, 0 lugar é um dos acidentes. E assim, porque sao plurais em seus acidentes, sdo plurais em nimero. via Trata-se, pois, de adentrar, e examinar com atengao cada ponto para que possamos entender e captar25l; pois, como muito bem se disse4l; "ao erudito compete tratar de captar a sua fé, tal como na realidade ela é". Ora, sdo trés as ciéncias especulativas: a Fisica, que esta em movimento e nao é abstrativa ou separdvel - anypexairetos - ndo abstrai 0 movimento, pois considera as formas dos corpos com matéria, formas que em ato néo se podem separar dos corpos. E os corpos, estando em movimento, a forma, unida a matéria, tem movimento: com a terra, tendem para baixo; com o fogo, para cima. A Matemdtica, esté sem movimento e no é abstrativa, pois ela estuda as formas dos corpos sem a matéria e, por isso, sem movimento. Porém essas formas, em unido com a matéria, néo podem separar-se dela. A Teologia, esta sem movimento e é abstrativa, pois a substancia de Deus carece de matéria e de movimento. Das trés ciéncias, a Fisica trabalha racionalmente (rationabiliter); a Matemdtica, disciplinarmente (disciplinaliter) e a Teologia, intelectualmente (intellectualiter). : pois ndo se trata aqui de lidar com imagens, mas antes de olhar para a forma que é, ndo imagem, mas verdadeira forma: ela mesma ée é por ela que o ente é Pois tudo é pela forma. Uma estétua se constitui como tal e se diz efigie de ser vivo, ndo pelo bronze, que é matéria, mas pela forma nela esculpida. E, do mesmo modo, o préprio bronze é bronze néo pela terra que é sua matéria, mas pela forma. E mesmo a propria terra nao é terra por ser matéria informe (apoion hylen), mas por causa da secura e do peso que sao formas. Nao ha nada, pois, que seja 0 que é pela matéria, ‘mas sempre pela forma propria. Ora, a divina substancia é forma sem matéria e, portanto, é Um e é co que é. Qualquer outro ente nao é 0 que é, pois, cada ente tem seu ser das partes de que esté constituido, da conjungao de suas partes: mas nao tal € tal tomadas separadamente. Por exemplo, 0 homem na condic&o presente consiste em corpo e alma, é corpo e alma, nao corpo ou alma separadamente e, portanto, néo é 0 que é. Aquele, porém, que néo é composto disto e daquilo, mas é simplesmente isto, esse verdadeiramente é o que é, e é belissimo e poderosissimo porque em nada se assenta. Dai que Ele seja verdadeiro Um25), no qual néo ha miimero nem nada que ndo seja o que é. Nem pode tornar-se substrato de algo, pois é forma e as formas néo po- dem ser substratos. Pois 0 que nas outras ‘formas & substrato para os acidentes, como por exemplo a hominalidade, néo recebe os acidentes pelo fato de ela mesma ser, mas sim pela matéria que Ihe esté sujeita. Assim, quando a matéria sujeita & hominalidade recebe um acidente qualquer, parece que é a prépria hominalidade que 0 assume. Jé a forma que é sem matéria no pode ser substrato, nem nela inerir matéria, senao néo seria forma, mas imagem'25), Pois da forma que esté & margem da matéria procedem as que est&o na matéria e produzem 0 corpo. E, pois, um abuso de linguagem que cometemos quando chamamos formas 0 que so imagens, somente assemelham-se @ forma que no esté constituida em matéria: nEle nada hé de diversidade; nem de pluralidade decorrente da diversidade, nem de multiplicidade decorrente de acidentes; e dai que tampouco haja niimero. i Assim, Deus ndo difere de Deus a titulo algum, pois ndo hé diversidade de sujeitos por diferencas acidentais ou substanciais!22l Onde, pois, ndo ha diferenca, n&o havera pluralidade alguma, e dai tampouco mimero, mas somente unidade. E quando dizemos trés vezes Deus e dizemos Pai, Filho e Espirito Santo, estas trés unidades nio fazem pluralidade numérica naquilo que elas mesmas sao, se consideramos a propria realidade numerada e néo 0 modo pelo qual numeramos. Neste caso, a repeti¢&éo de unidades produz pluralidade numérica; quando, porém, se trata da consideracéo da realidade numerada, a repetigao da unidade e 0 uso plural néo produzem de modo algum diferenca numérica nas realidades. Pois ha dois tipos de mimeros: um, pelo qual numeramos; outro, que consiste nas coisas numerdveis. Assim, dizemos um para a coisa real; enquanto unidade designa aquilo pelo que dizemos que algo é um. Assim também dois pode referir-se a realidade - como, por exemplo, homens ou pedras -, mas dualidade ndo: dualidade refere-se somente aquilo por que 2 constituem dois: homens ou pedras. E assim também para os outros niimeros. Portanto, no caso do mimero pelo qual numeramos, a repetic&éo da unidade faz pluralidade; nas coisas, porém, a repeticéo de unidades néo produz nimero, como por exemplo se da mesma e tinica coisa eu dissesse: "uma espada, um gladio, uma lamina", Podemos referir-nos a essa realidade com um tinico vocébulo, "espada’, e a repeti¢@io de unidades (palavras) ndo é uma numeragao: se dizemos "espada, gladio, lamina” é uma reiteragéo e ndo uma enumeracéo de diversos; do mesmo modo, quando repito: "sol, sol, sol” nao se trata de trés sdis, mas de um s6. Assim, pois, se se predica do Pai, Filho e Espirito Santo trés vezes Deus, a predicagdo triplice no constitui nimero plural. Este é, pois, como dissemos, o perigo daqueles que fazem distingdio por dignidade entre os trés. Nés, os catdlicos, porém, nao admitimos nenhuma diferenca no que constitui a propria forma e afirmamos ndo ser Ele outra coisa que aquele que €. E para esta doutrina, dizer: "Deus Pai, Deus Filho, Deus Espirito Santo, ¢ esta Trindade & um sé Deus", é tal como dizer: "uma espada, um gladio, uma Iémina” ou "sol, sol, sol: um sol”. Com 0 que até aqui dissemos, procuramos deixar claro que nem toda repeti¢ao de mimero produz pluralidade. Quando, porém, dizemos, "Pai e Filho e Espirito Santo" no estamos usando sinénimos diversos como seria 0 caso de "espada" e "gladio", que sito iguais e idénticos. Pois Pai, Filho e Espirito Santo, sdo iguais, mas ndo séo 0 mesmo, Este ponto merece um pouco de atengao. A quem pergunta: "E 0 Pai o préprio Filho?”, respon-demos: "De modo algum". E: "E um 0 mesmo que 0 outro?", novamente: "Nao!" Nao ha, pois, entre eles - sob um determinado aspecto - uma total indiferenca em todos os aspectos; ¢ assim pode-se falar em nimero que, como explicamos acima, procede da diversidade de sujeitos. Discutiremos brevemente esse determinado aspecto, depois de termos examinado como é que se predica de Deus. WV Hé ao todo dez categorias que podem ser universalmente predicadas de todas as coisas: substancia, qualidade, quantidade, relacéo!28), lugar (onde)!22), tempo (quando), condigéo!22), situagao!SLl, atividade e passividade, Elas séo determinadas pelo sujeito a que se referem: parte delas - quando se aplicam a outras coisas que néo Deus -, referem-se a substanci ; parte, aos acidentes. Quando, porém, estas categorias sao aplicadas @ divindade, todas elas se tornam substanciais. Quanto & relacao, ela ndo pode de modo algum ser predicada de Deus'=2), pois a substancia nEle nao é propriamente substancia, mas ultra-substéncia Também néo podem ser predicadas de Deus a qualidade e as demais categorias, das quais vamos dar exemplos para melhor compreensiio. Ao dizermos "Deus", aparentemente estamos designando uma certa substincia, mas, na verdade, aquela que é ultra-substancia; ao dizermos "justo" (aplicado a Deus), referimo-nos a uma qualidade, mas néio 4 qualidade acidental, e sim a prépria substancia ou ultra-substancia, Pois em Deus nao é uma coisa ser, e outra ser justo, mas é-Lhe idéntico ser Deus e ser justo. E quando dizemos "grande ou 0 maior" parece que nos estamos referindo a uma determinada quantidade; mas, no caso, é é prépria substéncia ou, como dissemos, ultra-substancia: para Deus é 0 ‘mesmo ser e ser grande. E quanto @ sua forma, jd mostramos acima como Ele é Forma e certamente Um e excluindo toda pluralidade. Mas essas categorias sito tais que dio & coisa a que se aplicam 0 cardter que expressam: nas coisas criadas, a diviséo; em Deus, porém, apresentam-se conjugadas e unidas: quando dizemos "substincia” (aplicada por exemplo a homem ou Deus) é como se aquilo de que predicamos fosse ele mesmo substancia, como substancia "homem" ou "Deus". Na verdade, porém, n&o é a mesma coisa: 0 homem néo realiza em si a totalidade do ser humano, e por isso nao é substiincia; 0 que ele é, deve-o a outras coisas que nao sao homem!3), Deus, porém, é 0 préprio Deus; néo é outra coisa sendo "o que é" e, por isso, é Deus mesmo. E assim também quando dizemos "justo", que é uma qualidade, dizemos como predicagao do sujeito, isto é, se dizemos: "homem justo” ou "Deus justo", afirmamos que 0 proprio homem ou o préprio Deus sdo justos. Porém, uma coisa é 0 homem; e outra, 0 homem justo; enquanto Deus Ele mesmo é 0 que é justo. "Grande" também se diz do homem ou de Deus como se fosse a mesma coisa dizer "homem grande" ou "Deus grande"; na verdade, porém, o homem pode até ser grande; mas Deus é, Ele mesmo, o proprio grande Quanto as outras categorias, também elas no podem ser predicadas de Deus nem (substancialmente) dos outros entes. Pois 0 lugar ndo se pode predicar do homem nem de Deus: do homem se diz que esta na praca; de Deus, que esté em toda a parte; mas n&o como se fosse 0 mesmo a coisa e 0 que dela se predica. Pois dizer que 0 homem esté na praca é totalmente diferente do que afirmar seu modo de ser, por exemplo, branco ou alto ou qualquer propriedade que, por assim dizer, 0 circunscreva e determine e pela qual se possa descrevé-lo em si. A predicagéo lugar, pelo contrdrio, somente afirma onde se situa a substancia em relagdo a outras coisas. Com Deus, porém, nao € assim, pois "estar em toda parte” néo significa que esteja em cada lugar (Ele absolutamente ndo pode estar num lugar), mas que cada lugar é-Lhe presente para ocupar, embora Ele néo possa ser recebido espacialmente e, por isso, nao se diz que ele esteja situado em lugar algum porque esté em toda parte, mas ndo alocado. O mesmo se dé com o "quando", a categoria de tempo: tal homem veio ontem; Deus & sempre. Quando se predica o "vir ontem", aqui, novamente, ndo se diz algo sobre o homem em si, mas 0 que the sucedeu no tempo. Jé 0 que se diz de Deus, "sempre é", significa um continuo presente que abarca todo o passado e todo 0 futuro. Os fildsofos dizem que isso pode ser também afirmado do céu e de outros corpos imortais, mas, mesmo assim, néo do mesmo modo que de Deus. Pois Ele é sempre porque "sempre" é para Ele presente: e hd uma grande diferenca entre 0 nosso "agora", que é do tempo que corre, e a sempiternidade: 0 "agora" divino permanece, néo corre, e consistindo, faz a eternidade, Junta eternidade e sempre, e terds 0 agora perene e incessante e, portanto, 0 transcurso perpétuo que é a sempiternidade. Também so vilidas essas consideragées para as categorias condigao e atividade; pois dizemos do homem: "ele, vestido, corre"5], ¢ de Deus: "Ele, possuidor de todas as coisas, governa". Aqui também n&o se diz nada do ser de ambos ¢ essas sto predicagaes exteriores; ¢ todas as categorias até agora tratadas referem-se a outras dimensées que nio & substancia. A diferenca entre um e outro caso é facil de perceber: "homem" & "Deus" referem-se & substncia pela qual o sujeito é algo: homem ou Deus; "justo” refere-se a uma qualidade pela qual o sujeito é algo, a saber: justo; "grande", 4 quantidade pela qual ele é algo: grande. Jé com as demais categorias isto n&o se dé: quando se diz que alguém esté na praca ou em toda a parte, referimo-nos a categoria lugar, que no faz com que 0 sujeito seja algo, como pela justica ele é justo. O mesmo ocorre quando se diz "ele corre" ou "governa” ou "é agora" ou "é sempre": nestes casos estamos expressando tempo ou atividade - se é que 0 "sempre" divino pode-se encaixar em tempo -, mas néo algo pelo qual é algo, como pela magnitude se & grande. Quanto ds categorias situagio e passividade nem precisamos ocupar-nos delas porque, claramente, sequer ocorrem em Deus Jé se tornam evidentes as diferencas da predicagdo? Algumas categorias apontam para a coisa; outras, para circunsténcias da coisa, Aquelas dizem que a coisa é algo; estas , ndo incidem sobre o ser da coisa, mas sobre aspectos antes extrinsecos que lhe s&o aderentes. As categorias que determinam de algum modo o ser de algo chamam-se categorias segundo o ser; quando pressupéem sujeito, séo chamadas acidentes segundo o ser. Quando se trata de Deus, que de modo algum é sujeito4), sé se pode falar de predicacdo segundo a substancia. v Trata-se agora de examinar a categoria relagio, para cuja discusséo valer-nos-emos de tudo o que anteriormente foi tratado; a relacdo, mais do que qualquer outra categoria, constitui-se por referéncia a outro e parece especialmente nao ser predicacdo relativa coisa em si "Senhor” e "servo", por exemplo, sao relativos; examinemos se sio predicados da substancia. Suprimindo o servo, suprime-se 0 senhor. Mas se suprimimos a brancura nao suprimimos alguma coisa branca, embora, certamente, ao suprimir a brancura particular34) desta coisa branca suprimamos também conjuntamente a coisa. No caso do senhor, se suprimimos a palavra "servo", destrdi-se também a palayra "senhor"': n&o porque 0 senhor seja substrato do servo como a coisa branca é substrato da brancura, mas sim porque se desfaz a relagao (o poder) que sujeitava 0 servo ao senhor. Jé que o poder se desfaz ao suprimir-se 0 servo, vé-se que 0 poder nao é algo que per se esteja no senhor, mas é algo extrinseco que the advém pela relagdo com os servos. Nao se pode, portanto, afirmar que uma predicacao de relag&o acresca, diminua ou altere de algum modo a coisa em si a que se refere. Pois a categoria relagdo néo diz respeito a coisa em si; ela simplesmente aponta uma condigéo de relatividade (e ndo sempre ou necessariamente para outra substancia mas as vezes para uma mesma)! Assim, suponhamos um homem em pé. Se eu me dirijo a ele pela direita e me coloco a seu lado, ele estaré d esquerda em relagao a mim no porque ele mesmo seja esquerda, mas porque eu me coloquei a direita. Agora, se eu me aproximo pela esquerda ele se torna direita em relagdo a mim: e, de novo, nao porque ele seja em si direita (como ele é branco ou alto), mas por causa do meu posicionamento. Fica tudo na dependéncia de mim e nada tem que ver com o seu ser em si. Essas categorias que néo afetam a coisa em si no podem mudar, alterar ou afetar de nenhum modo sua esséncia. Dai que se Pai e Filho sdo termos de relagéo e, como dissemos, nao tém outra diferenca que a de relacéo, e se a relacdo ndo é predi-cada daquele de quem se predica como se fosse o proprio sujeito e qualidade sua, en-téo ela nao produziré nenhuma alteridade de substancia em seu sujeito mas - numa frase dificilmente compreensivel e que requer explicagdo - uma alteridade de pessoas. Pois é uma regra basica a de que as distingdes em realidades incorpéreas sto estabelecidas por diferencas e ndo por separag&o espacial. Nao se pode dizer que Deus se tornou Pai pelo acréscimo de algo; pois Ele nunca comecou a ser Pai, jé que a producdo do Filho pertence d sua propria substancia; embora o predicado Pai, enquanto tal seja relative. E se nos lembramos de todas as proposicées feitas sobre Deus na discusséo prévia, devemos admitir que Deus Filho procede de Deus Pai e Deus Espirito Santo de ambos e que eles néo podem ser espacialmente diferentes por serem incorporeos. Mas jé que o Pai é Deus, 0 Filho é Deus e o Espirito Santo é Deus, e jé que em Deus n&o ha pontos de diferenca que o distingam de Deus, Ele néo difere dEles. Mas onde n&o hé diferenca, nao ha pluralidade; e onde ndo hd pluralidade, ha unidade. E, novamente, nada seniio Deus pode ser gerado por Deus e, na realidade numerada, a repetic&éo da unidade nao produz pluralidade. E assim a unidade dos trés esté convenientemente estabelecida. VI Mas, como toda relagéo sempre se refere a outro, pois a predicaciio que se refere ao préprio sujeito é sem relac&o, a numerosidade da Trindade & garantida pela categoria relagao, enquanto a unidade é preservada pelo fato de que néo hd diferen-ca de substincia ou de operacéo ou de qualquer predicado substancial. Assim, a subs-tancia é responsdvel pela unidade e a relagdo faz a Trindade. E assim, somente os termos referentes & relacdo podem ser aplicados distintamente a cada um. Pois 0 Pai ndo é 0 mesmo que o Filho, nem cada um dos dois é 0 mesmo que o Espirito Santo. Ainda que Pai, Filho e Espirito Santo sejam 0 ‘mesmo e tinico Deus, 0 mesmo em justica, em bondade, em grandeza ¢ em tudo que pode ser predicado segundo o ser. Nao se deve esquecer que a predicagdo de relatividade nem sempre envolve diferenca (como servo para o senhor). Porque o igual é igual ao igual, o semelhante é semelhante ao semelhante, e 0 mesmo é 0 mesmo que 0 mesmo; e a relagdo do Pai para o Filho, e de ambos para o Espirito Santo, é relacdo de igual para igual=% Uma tal relagdo no seré encontrada nas coisas criadas, mas isto é por causa do modo de diferenciagao que afeta as transitérias criaturas. Ao falar de Deus, porém, ndo devemos deixar-nos guiar pela imaginacéo; mas pelo puro intelecto elevar-nos e acometer o entendimento de tudo 0 que importa conhecer. Mas jé basta acerca da questéo proposta. Agora a acuidade da discusséo aguarda 0 critério do teu julgamento: 0 pronunciamento de tua autoridade sobre se discorri corretamente ou ndo. Se pela graca de Deus apresentei argumentos para este ponto que se sustenta por si no firmissimo fundamento da fé, volto-me gozosamente em louvor, pela obra feita, para Aquele de quem procede o efeito. Se, porém, a natureza humana nao logrou transcender seus limites naturais, valha pela intengao 0 que tiver fathado pela fraqueza. LJ. A partir do original latino apresentado por Stewart e Rand em Boethius - The Theological Tractates, London-Cambridge, Loeb, 1953. [2]. Em Educagéo, Teatro e Matematica medievais, 2° ed., S. Paulo, Perspectiva, 1990, comento mais amplamente o trabalho pedagdgico de Boécio, sobretudo no que se refere 4 Geometria. Este t6pico recolhe e resume algumas consideragdes de J. Pieper em Scholastik, cap. I, Miinchen, DTV, 1978, [3]. Rationalis naturae individua substantia; statum bonorum omnium congregatione perfectum; interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio. [4]. O si, no caso, mais do que condicional ou dubitativo indica algo que muito provavelmente iri ocorrer. Como se disséssemos: "se chover em janeiro (o que é praticamente certo), o transito ficara congestionado" [5]. Certamente, também Tomés & um escolastico nesse sentido profundamente racional, mas no Prélogo ao Comentario ao De Trinitate de Boécio cita vinte vezes a Biblia e nenhuma vez Aristételes. [6]. In Boethium De Trinitate, Proemii textus et explanatio. [2]. Ea relagao é, vale insistir, 0 conceito chave de acesso a Trindade. [8]. 1,29, 4. [9]. E oportuno lembrar que também é de Boécio a propria definigdo de pessoa utilizada por Tomés: rationalis naturae individua substantia. [10]. Tomas comenta que, neste parigrafo ¢ nos seguintes, Boécio apresenta seu trabalho segundo as quatro causas aristotélicas: material (0 proprio assunto: a Trindade), eficiente (as luzes de Deus e da inteligéncia humana), formal ("Tendo chegado a estruturar...") e final ("Nao escrevo por desejo de fama..."). LL). dgniculus, pequena chama, Tomas faz ver (In Boethium De Trinitate, Proemii textus et explanatio) que a luz por exceléncia & a do conhecimento de Deus; os anjos, um termo médio; quanto ao homem, s6 dispée de uma "pequena chama". [12]. 0 juizo do sabio. Conforme o comentario de Tomas, o principal é 0 fruto interior: o conhecimento da verdade divina. O juizo do sabio (e nao 0 rumor do vulgo) é 0 tinico fructus exterior aceitavel. [13]. Como diz Tomés, a brevidade, a profundidade e a novidade das palavras so trés recursos que se unem a dificuldade da matéria para subtrair a sublimidade do tema a profanagdo do vulgo (eft. Mt. 7,6). [14]. A rigor, comenta S. Tomas (/n Boethium De Trinitate, Lectio 1), os hereges nao so cristios, embora assim sejam considerados pela opiniao dos homens ao vé-los confessar 0 nome de Cristo. Daf a distingdo entre "principal e exclusivamente". [15]. Que, comenta Tomis (/n Boethium De Trinitate, Lectio 1), se dirigem a todos os homens: ao contrario da Lei de Moisés (que foi dada a um tinico povo) e das diversas seitas heréticas da época, que se ditigiam s6 a um determinado tipo de homem (umas, s6 aos solteiros; outras, excluiam os pecadores, etc.). [16]. Pater deus, Filius deus, Spiritus Sanctus deus, Dada a inexisténcia de artigo em latim, uma tradugao mais literal seria: "O Pai é 0 Deus, o Filho é 0 Deus, o Espirito Santo é 0 Deus". [1]. Boécio emprega em sentido técnico as palavras: differentia, numerus e species [18]. Para os hereges arianos, comenta S. Tomas (Jn Boethium De Trinitate, Lectio I), a dignidade do Filho é menor que a do Pai ¢ a do Espirito Santo menor que a de ambos. [19]. Tomés (Jn Boethium De Trinitate, Lectio 1) propde aqui, a propésito da precisio de linguagem de Boécio, uma interessante discuss sobre a diferenga entre alteridade (alteritas) e aliedade (alietas). Tanto alter como alius significam: outro. Alter, porém comporta as diferengas nfio sé de substincia (como é o caso de alius) mas também as acidentais. [20]. Boécio, comenta S. Tomas (In Boethium De Trinitate, IV.I.c), refere~ se aqui a pluralitate compositorum, pois género, espécie e acidentes s6 se dio nos compostos: as criaturas; Deus, porém, é simplicissimo. [21]. Igualdade traduz idem. Aqui também cabe uma observagao sobre a preciso boeciana: idem e ipse indicam igualdade, mas enquanto idem pode indicar igualdade em relagdo a este ou aquele aspecto, ipse indica identificagio, o mesmo ¢ tinico sujeito ele proprio. [22]. Cicero &, na época, comhecido e citado pelo seu nome Tillio, [23]. Intelligi atque capi. Tomas (In Boethium De Trinitate, Lectio ID) interpreta esta passagem dizendo que a discuss%o do tema deve adequar-se tanto & realidade envolvida (¢ a essa dimensio diz respeito o intelligere) quanto a nés (capere), que ndo podemos abarcar a grandeza de Deus do mesmo modo como compreendemos uma realidade sensivel ou uma demonstragao matematica. E lembra que nfo é a mesma a evidéneia que temos nas diversas disciplinas. [24]. Stewart e Rand anotam: Cicero (Tusc. V. 7. 19), [25]. "Um", para os antigos, mais do que um numero expressa o proprio ser. [26]. Imagem significa aqui forma unida 4 matéria. [27]. Tomés, comentando (I, 30, 1) esta passagem que, aparentemente, faz uma objegio a pluralidade de pessoas em Deus, responde com o proprio Boécio (veja-se o cap. VI ou o tiltimo paragrafo do cap. III), esclarecendo que a suma unidade e simplicidade de Deus exclui, em sentido absoluto, toda pluralidade; mas admite-se a pluralidade do ponto de vista da relago, pois, sendo a relago "para outro", nfo implica composigao. [28]. Ad aliquid. A relagdo nao & um algo (aliquid), mas um "a algo" (ad aliquid). (29). Ubi. [30]. Habitus. [31]. Situm esse. O acidente situs indica no a presenga num lugar (ubi), mas a estruturagio espacial interna da propria coisa. [32]. Tomés, comentando (I, 28, ad 1) esta passagem A primeira vista contraditéria, diz que o que ndo é possivel é predicar de Deus a relagio a titulo do carater proprio dessa categoria: que no se refere ao sujeito no qual inere, mas "a outro" [pois, como préprio Boécio explica neste capitulo, em Deus (ultra-substancia), confunde-se cada predicado com sua propria substancia]. Mas isto nao significa que nao haja em Deus relagdes, e sim que, precisamente no caso desta categoria das relagdes, elas nfo se dio em Deus inerindo nEle, mas por uma certa referéncia a outro. [33]. S6 Deus, que & 0 que é & simples; as criaturas, sio compostas. O homem, por exemplo, compde-se de substancia ¢ acidentes; a substdncia, por sua vez, é composta de matéria ¢ forma; ete. [34]. No comentirio de Gilberto Porretano, "o proprio Deus € a razio de ser do que é grande" (PL 64, 1285). [35]. E preferivel "ele, vestido, corre ordem de apresentagdo das categorias. a “ele corre vestido" para manter a [36]. Isto é substrato de acidentes. [37]. Podemos prescindir intelectualmente da cor (acidente que inere na coisa), embora concretamente a coisa se dé com cor. Jé a categoria relagdo envolve dois pélos relativos e nem sequer se pode pensar, por exemplo, em direita sem esquerda ou em senhor sem servo. [38]. Nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem. Trata-se de uma passagem muito sutil: a tradugo inglesa neste ponto ("a condition of relativity: (...) not necessarily to something else, but sometimes to the subject itself", p. 27) contradiz-se na p.29: "no relation can be affirmed of one subject alone (nulla relatio ad se ipsum referri potest", cap. VI, inicio). A solugdo nos é dada por Tomas num artigo em que, por acaso, nio faz nenhuma referéncia a Boécio (I, 31, 2,). Tomas comega por expor as incompariveis dificuldades de linguagem no tema da Trindade: para falar da Trindade de pessoas sem ferir a Unidade deve-se evitar as palavras diversitas ¢ differentia, mas pode-se usar distinctio. Do mesmo modo, como em Deus no ha distingio de substincia, mas sé de pessoas (relages): o Filho & outro (alius) que o Pai (outra Pessoa), mas nao é outra coisa (aliud) que o Pai (a mesma substancia). Assim se compreende que Boécio empregue, nessa sentenga, 0 neutro aliud e no o masculino alius. [39]. Comentando esta passagem, que parece conduzir 4 conclusio de que as relagdes em Deus sio meramente de razdo e nao reais, Tomas (I, 28, ad 2) afirma a coeréncia da formulagio, desde que se entenda a igualdade tal como Boécio a quis caracterizar: nao indicando uma identidade absoluta, mas somente que pelas relagdes nio se altera a identidade da mesma e nica substancia divina.

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