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CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL MEDICO —O CONSENTIMENTO PRESUMIDO Manuel da Costa Andrade I — Introducio 1. Cabe-me a tarefa de convocar para o debate alguns dos tépicos mais salientes do regime juridico e do estatuto dogmatico do consen- timento face aos tratamentos médicos, em geral e, mais precisamente e acolhendo-nos a linguagem do Cédigo Penal portugués, as Interven- ¢6es e€ tratamentos médico-cirtirgicos (artigos 150.° e 156.°). Propo- nho-me sobretudo abordar os problemas atinentes ao chamado consen- timento presumido, uma figura de raiz consuetudindria e criagio doutrinal e a que a lei penal portuguesa assegurou expresso positivada (arti- gos 39.° e 156.°, n.° 2). A escolha justifica-se, em primeiro lugar, pelo facto de o consen- timento presumido assumir um relevo pratico-jurfdico irrecusdvel e em crescendo exponencial. Por um lado, no quotidiano dos hospitais séo cada vez mais fre- quentes e “normais” os tratamentos e cirurgias A margem do modelo tra- dicional de acg4o e interacgao: um paciente e um médico livremente escolhido; uma relagdo de confianga e de comunicagao directa; e uma decisdo esclarecida e livre do tratamento a adoptar. O progresso das técnicas e a intensificagdo das praticas cinirgicas multiplicaram as mani- festagdes concretas duma das constelagdes paradigmaticamente associa- das 4 figura do consentimento presumido: as situagdes em que, no con- texto de uma cirurgia e com 0 paciente anestesiado, os médicos concluem pela urgéncia de alargar a intervengdo a dominios que nao estavam PCC 14 (2008) 7 MANUEL DA COSTA ANDRADE cobertos pelo consentimento expressa e tempestivamente dado pelo Ppaciente. Por outro lado, sao conhecidas as sequelas da sociedade do risco (Risikogesellschaft) que, com uma frequéncia cada vez maior, fazem che- gar aos hospitais caudais massificados de sinistrados, inconscientes, an6nimos e sés, a necessitarem de intervengdes médicas cuja legitima- Gao se procura assegurar 4 sombra do consentimento presumido. Nao podem, para além disso, esquecer-se as tentativas mais recen- tes de questionar as virtualidades do consentimento presumido para superar conflitos em situagGes marginais, situadas na fronteira da vida eda morte. E, por vias disso, a reclamar decisGes existenciais que nos interpelam ao nivel das causas tltimas, pelo menos, na escatologia das coisas humanas. Por se tratar de decisdes sobre pessoas que per- deram definitivamente a capacidade de expressar e actualizar a sua autonomia. E face as quais é necessdrio decidir pela realizagéo ou denegagio da intervencao. Na certeza de que qualquer das alternati- vas se projecta decisivamente sobre o destino do paciente (!). Como acontece com a deciso de recusa ou interrup¢do de tratamento desti- nado a prolongar a “vida” de um paciente que perdeu irreversivelmete a consciéncia, mas a propésito do qual nao pode ainda falar-se de pro- cesso de morte nem de auxilio médico 4 morte (Sterbehilfe). Temos, por exemplo, em vista 0 que Os autores e os tribunais alemaes vém tra- tando sob o nome de appalischer Syndrom (sindrome apdlico) — em terminologia anglossaxénica persistent vegetative state (PVS) — e cuja superagdo no contexto e no regime do consentimento presumido vem sendo discutida na Alemanha, sobretudo a partir da decisio do BGH de 5-3-93 (2). Esta crescente importancia prdtica contrasta com o relativo esque- cimento e silenciamento do consentimento presumido no panorama doutrinal. Uma figura que, no essencial, continua a fazer curso segundo (Para uma primeira caracterizagio desta fenomenologia de casos trazidos com os desenvolvimentos da medicina intensiva, Cx. GAUL, “Kann Autonomie «fremd- vertreten» werden?”, Ethik in der Medizin, 2002, pp. 159 ss. @) BGHSt 40, 257 = NIW 1995, pp. 204 ss. Sobre a decisdo e para uma dis- cussio da doutrina que a sustenta, infra. 18 PCC 14 (2004) _DIREITO_PENAL_MEDICO — 0 _CONSENTIMENTO_PRESUMIDO © paradigma cunhado pela ligao j4 distante de MEZGER (3), nado moti- vando nos tempos mais recentes muitas e significativas tomadas de posigéo. Um panorama doutrinal onde, em qualquer caso, sobressai merecidamente o estudo publicado em 1974 por Roxin (‘), autor que nas sucessivas edigdes do seu manual tem dedicado ao tema um tratamento cuidado. 2. Duas observacgGes a comegar. a) A primeira, para demarcar o sentido e alcance desta comuni- cagao. Por razGes de economia, limitarei a abordagem As constelagdes facticas em que os conflitos — mormente o conflito entre, de um lado, a vida e a integridade fisica e, do outro lado, a autonomia ou a auto- determinagao do paciente — esgotam o seu sentido e relevancia no interior de uma mesma e Unica pessoa. Fora do nosso cuidado ficarfo, por isso, os problemas especificos suscitados pelas situagGes em que a intervengao médica contende com mais do que um sistema pessoal. Como as intervengdes médicas indis- pensdveis para acorrer a um feto em gestagio, que postulam a invasdo da integridade fisica e a ultrapassagem da autonomia da mulher gravida. No mesmo contexto, a intervengao no corpo da mulher para a implan- tagGo de um embrido resultante de uma fertilizacdo artificial (in vitro) (°). @) Como Roxtn refere, MEzGER foi, se nao o criador da figura, ao menos quem Ihe deu o nome e desenhou o enquadramento doutrinal a que, no essencial, os auto- res ¢ os tribunais continuam a prestar homenagem. De MezceR cf., sobretudo, “Die subjektive Unrechtselemente”, Der Gerichtsaal 1924, pp. 287 ss., ¢ Strafrecht, 1949, pp. 218 ss. () Roxty, “Uber die mutmassliche Einwilligung”, Welzel—FS, 1974, pp. 447 ss. Sobre a doutrina actual do autor, Sirafrecht. Allgemeiner Teil, 3. Aufl., 1997, pp. 696 ss. () Uma intervengao que pode suscitar problemas € conflitos cuja superagio depende da convocagao de principios e tépicos de indole constitucional e filoséfico Como os problemas nucleados em torno de um questiondvel “direito & vida” rectius de um “direito a nascer” do embrido a implantar. E que assumem particular acuidade € complexidade nos casos em que se questiona a implantago depois de um exame gené- tico pré-implantacional (preimplantation genetic diagnosis — PGD) desfavordvel. Para uma primeira sintese, DuTTGE, “Die Praimplantationsdiagnostik zwischen Skylla and Charybdis", GA 2002, pp. 241 ss.; HORNLE, “Praimplantationsdiagnostik als Eingriff RPCC 14 (2004) 119 MANUEL _DA COSTA ANDRADE Ou os casos andlogos em que, no interesse da vida ou da satde da futura crianga, se mostra indicado submeter a mulher gravida ao teste do HIV (6). E isto para nao citar j4 os casos de fronteira da terapia gené- tica e, particularmente, da terapia genética germinal. Tratamentos cujas consequéncias se prolongam e reproduzem nas geragGes futuras, con- dicionando e predeterminando o seu destino, a comegar pelo destino bio- légico. E, como tais, a suscitar, para além de problemas intersubjecti- vos, problemas e conflitos intergeracionais. b) Gostaria, em segundo lugar, de dar conta da honra que repre- senta para mim participar neste coléquio, partilhando o microfone com tao qualificados representantes da doutrina penal alema. A cujos labor e discussGes mais que seculares ficou a dever-se 0 modelo de categori- zagao dogmatica e de disciplina jurfdico-penal das intervengdes médicas a que o direito penal portugués presta claro e assumido tributo. Na homenagem que hoje prestamos a ALBIN EseR, um dos mais credencia- dos cultores do direito penal médico na Alemanha, evocamos a mem6- ria de toda uma galeria de eminentes penalistas que, ao longo do ultimo século, puseram de pé aquele paradigma de enquadramento juridico-penal dos tratamentos médicos. Recordamos, a titulo meramente exemplifi- cativo, os nomes de KAHL, BELING, ENGISCH, EB. SCHMIDT, MEZGER, GRUNWALD, ART. KAUFMANN, BOCKELMANN e GEILEN. Autores cuja ligdo persiste viva, como uma gramAtica ou metalinguagem atrds da lin- guagem da lei penal portuguesa que disciplina esta matéria. Cabe, de resto, sublinhar que a divida nao tem sé nem principal- mente a ver com o modelo dogmatico recebido e acolhido pela lei penal portuguesa. Para além disso e sobretudo, avulta uma ligdo de poli- tica criminal, de axiologia e mesmo de teodiceia, que nos permitiu referenciar com clareza os valores tiltimos que sustentam os conflitos que buscam superagdo juridico-penal. De um lado, o valor da autono- in das Lebensrecht des Embryos?”, GA 2002, pp. 659 ss.; HERDEGEN, chenwiirde im Fluss des bioethischen Diskurses”, JZ 2001, pp. 773 ss. (®) Para uma primeira consideragdo do problema, BENNETT, “Should we Routi- nely Test Pregnant Women for HIV?", in: BENNETT/ERIN (Edit.), HIV and AIDS. Tes- ting, Screening and Confidentiality, 1999, pp. 228 ss.; ETZIONI, The Limits of Pri- vacy, 1999, pp. 17 ss. “Die Mens- 120 RPCC 14 (2008) Ee Bae CONSENTIMENTO EM _DIREITO PENAL MEDICO — 0 CONSENTIMENTO _PRESUMIDO mia improgramével do paciente que, na formulagéo de Art. KAuF- MANN, eleva o homem 4a dignidade de pessoa, representando, por isso, “o seu valor supremo face a vida, a satide e ao bem estar” (’). Um valor que leva os seus defensores mais empenhados a denunciar a hybris tecnocratica duma ciéncia médica que, em nome de uma ética de Gesundheitsreparatur (BAUMANN) (°), sacrifica a autonomia, a verdade eo esclarecimento. Do outro lado, situam-se os valores da vida e da satide, em nome dos quais se fez ouvir a voz de IHERING, a criticar o endeusamento e o “servigo de Moloch da verdade” e a proclamar que “se a luz da verdade traz consigo a morte, é um dever apagé-la” (°). Como bem se representa, um conflito que tem a sua expressio mais exposta ao nivel do esclarecimento (do consentimento) e dos seus limites. E onde nao pode absolutizar-se a satisfagao das exigéncias de um dos Jados a custa do sacrificio total do outro. E onde, pelo contrario, 86 serao legitimas solugdes de relatividade e de equilibrio, seguramente mais dificeis, e sempre marcadas por lastros irredutiveis de angistia e de risco, Mas se, como ensinavam os gregos, s6 0 arriscado € que € belo, nada talvez melhor para o ilustrar do que a experiéncia e a li dos tribunais e dos penalistas alemaes sobre o direito penal dos trata- mentos médicos. Il — Principios de superagao normativa e de arrumacio dogmatica. a) Consentimento e acordo 3. Para uma correcta compreensio do sentido, fungio e regime juridico-penal do consentimento nos tratamentos médicos, comegare- mos por trés enunciados fundamentais. Que adiantaremos como outras (7) ART. KAUFMANN, “Die eigenmiichtige Heilbehandlung”, ZS*W 1961, p. 362. (8) BAUMANN, “Buchbesprechung”, GA 1962, p. 221. Na mesma linha, também KAUFMANN denuncia o perigo de se converter 0 médico num mero “Gesundheitsin- genieur". Cf. ob. cit., p. 359. () Cf. GEILEN, Einwilligung und drziliche Aufkldrungspflicht, 1963, pp. 64 ss. Para uma referéncia mais desenvolvida ao conflito assinalado, Costa ANDRADE, Con- sentimento e Acordo em Direito Penal, 1990, pp. 402 ss. RPCC 14 (2004) I MANUEL DA COSTA ANDRADE tantas teses cuja plausibilidade dogmatica e cuja pertinéncia face ao direito positivo portugués se nos afiguram seguras. O primeiro, rela- tivo ao estatuto dogmatico do consentimento e do acordo, o segundo, relativo ao enquadramento juridico-penal das intervengdes e tratamen- tos médico-cirtirgicos;, 0 terceiro, sobre a categorizagao dogmatica e disciplina normativa do consentimento presumido. Quanto ao primeiro tépico, comegaremos por recordar que o direito portugués sanciona um modelo dualista. Que distingue e contrapde entre si um consentimento (do lesado) justificante e um acordo que i. exclui o tipo. Se a validade juridico-positiva deste enunciado se afigura | irrecus4vel, estamos igualmente convencidos do seu acerto e adequacio doutrinais (!°). Em causa est&o, com efeito, duas figuras — que se lh podem designar, respectivamente, por consentimento e acordo, sendo i certo que os nomes sao seguramente o menos importante — diferentes tanto no plano teleolégico-axiolégico como no plano pratico-norma- tivo. Nao cremos, assim, que devam acompanhar-se os autores (v. g. Zipr, SCHMIDHAUSER ou ROxiN) (!!) que, retomando um entendimento que Kh fez curso nos fins do século XIX (ORTMANN, KESSLER ou KLEE) (!2), sus- tentam a parificacdo de todas as manifestagdes de concordancia do por- tador concreto do bem juridico, todas invariavelmente levadas 4 conta de causas de exclusdo do tipo. i 4. Nao se trata, naturalmente, de construgdes doutrinais inteira- i mente sobreponiveis. Nem no que toca aos pressupostos metodolé- I gicos e teleolégicos — maxime o conceito de bem juridico subja- (!°) Para uma sintese neste sentido, Costa ANDRADE, “Die Einwilligung des Verletzten in Gesetz und Lehre Portugals”, in: Rechtfertigung und Entschuldigung, Freiburg, 1990. | (") Cf. Zipr, Einwilligung und Risikoibernahme, 1970, passim; MAURACHZIPF, f Strafrecht, AT, Tb 1, 1983, pp. 215 ss.; SCHMIDHAUSER, Strafrecht, AT, 1975, pp. 267 ss.; ROxiN, Strafrecht. AT, Bd I, 1997, pp. 454 ss. (®) Ortmann, “Uber Verletzung, insbesondere Tétung eines Einwilligenden”, GA 1877, pp. 104 ss.; KESSLER, “Kritische Bemerkungen zu Binding’s Lehre von Einwil- ligung des Verletzten", GS 1886, pp. 561 ss.; KLEE, “Selbstverletzung und Verletzung eines Einwilligenden”, GS 1901, pp. 177 ss. 122 RPCC 14 (2004) i CONSENTIMENTO EM DIREITO_PENAL MEDICO — 0 CONSENTIMENTO _PRESUMIDO cente: autonomia ou v. g., integridade fisica — nem quanto As cate- gorias e principios dogmaticos. De acordo, por exemplo, com Roxin: “Nao considero o consenti- mento uma causa de justificagio. Pois, quando alguém consente efi- cazmente que outrem intervenha sobre os seus bens juridicos, esta inter- vengao nao constitui um dano para o portador dos bens juridicos, antes configura um auxilio na realizagao da liberdade de acgao que lhe é constitucionalmente assegurada (artigo 2.° da Lei Fundamental) e que se exprime precisamente na disposi¢ao sobre os bens juridicos ao seu dis- por. A semelhanga do que sucede com a disposigao dos bens juridicos por parte do proprio portador, também esta conduta ndo preenche o tipo criminal. Assim e a partida, é a sua tipicidade que € exclufda” ('). Para fundamentar esta tese, invoca ROxIN uma “doutrina liberal do bem juridico, referida 4 pessoa”. Pois, “se os bens juridicos est&o ao ser- vico do livre desenvolvimento do individuo, entaéo nao pode existir uma qualquer leséo do bem jurfdico quando uma acgio assenta numa dispo- sig&o do portador do bem juridico e, como tal, nao prejudica o seu livre desenvolvimento, antes e pelo contrdério, constitui a sua expresso” (!4). Resumidamente, 0 consentimento eficaz representa para quem o declara um “pedago de autorrealizagao responsdvel na comunicagéo com ou sob a assisténcia de outros (ein Stiick verantwortlicher Selbstverwirklichung in der Kommunikation mit oder unter Assistenz anderery” (!5), Em con- formidade, a accao do agente representa para o titular do bem juridico “o apoio no exercicio” de um direito ou de uma liberdade. Esta doutrina, que propende para a equipara¢do normativa e axio- légica entre a autolesdo e a heterolesdo consentida — “a lesao con- sentida de bens jurfdicos alheios nao é mais do que uma forma mediata de autolesio” (ScHMITT) (!©) — assenta, assim, em dois postulados. () Roxin, “Rechtfertigungs- und Entschuldigungsgrinde in Abgrenzung von sonstigen Strafausschliessungsgriinden”, JuS 1988, pp. 425 ss. ('4) Strafrecht, p. 462. No mesmo sentido, desenvolvidamente, RONNAU, Wil- lensmiingel bei der Einwilligung im Strafrecht, 2001, passim e sobretudo pp. 116 ss. (8) Id, p. 465. ('9) ScuMrrr, “Strafrechtlicher Schutz des Opfers von sich Selbst? Gleichzeitig ein Beitrag zur Reform des Opiumgesetzes”, Maurach—FS, p. 115. RPCC 14 (2004) 123, MANUEL DA COSTA ANDRADE Em primeiro lugar, a comunicabilidade e identificacao entre a liber- dade de acg4o ou autodeterminagao pessoal e o bem juridico protegido por incriminagdes como as Ofensas corporais. Em segundo lugar, a compreensiao unidimensional da heteroleséo consentida, como se esta acgdo esgotasse o seu significado e relevan- cia no interior do autorreferente e autopoiético sistema pessoal. E, por esta via, se excluisse toda a relevancia sistémico-social, se neutrali- zasse toda a conflitualidade e se afastasse toda a legitimidade da socie- dade para questionar a acco e estabelecer fronteiras a validade e efi- cacia do consentimento (!7). 5. Tais postulados sio equivocos e insustentdveis, pelo menos com este sentido e alcance. Nem a liberdade de acco se confunde com a integridade fisica como bem juridico da incriminagao da Ofen- sas corporais, nem se pode questionar a relevancia sistémico-social da heterolesao consentida. Esta ultima ideia é, de resto, contrariada pela cldusula dos bons costumes (Sittenwidrigkeit), que as legislagdes pro- pendem a erigir em baliza da eficacia do consentimento. E que no contexto das nossas sociedades — plurais, secularizadas e desen- cantadas — nao pode reivindicar um qualquer contetido de indole moralista. A parificagao dogmatica do consentimento e do acordo — ambos recondutiveis, a igual titulo, a categoria de causas de exclusio do tipo — é também posta em causa pelo lado do acordo: uma manifes- tagiio de vontade que mediatiza a realizacao positiva, e porventura a mais auténtica, dos bens juridicos pertinentes. Agora bens juridicos com a estrutura de liberdades que se actualizam na comunicagao intersubjec- tiva. Tanto quando o portador recusa a comunicagéo com “outros sig- nificantes” indesejaveis, como quando aceita e se abre 4 comunicacao com quem quer. Como acontece com os bens jurfdicos protegidos pelos crimes contra a liberdade, a liberdade sexual, 0 domicflio, a pri- vacidade, etc. E face aos quais nunca poderia interpretar-se a mani- (7) Para um tratamento mais desenvolvido, Costa ANDRADE, Consentimento e Acordo, pp. 193 ss. 124 RPCC 14 (2008) CONSENTIMENTO EM DIREITO_PENAL_MEDICO O_CONSENTIMENTO _PRESUMIDO festagio concreta de acordo como uma uma rentincia ao bem juridico ou a sua tutela. Nao fazendo, por isso, o menor sentido falar-se a este propésito de acordo do “ofendido”. Deve ainda precisar-se que a discussio nao se esgota no plano dogmatico. Ela projecta-se em implicagdes normativas e pratico-juri- dicas. E 0 que ilustra a assimetria das duas figuras em aspectos como os bons costumes, uma cldusula que limita a eficdcia do consenti- mento justificante, mas que nao pode invocar-se no contexto do acordo. Porque o acordo mediatiza a realizagio de bens juridicos com a estrutura de liberdades cujo exercicio nao é sistémico-social- mente sindicavel. E as distncias voltam a manifestar-se a propésito do erro-vicio. Por um lado, hoje nao pode continuar a subscrever-se a tese originaria de GEERDS, que concebia o acordo como um mero facto, valido e eficaz pela simples circunstancia de ter sido dado, mesmo que inquinado por vicios da vontade. Por outro lado, a partida, nada permite antecipar que as exi- géncias de esclarecimento e de liberdade tenham necessdria e invaria- velmente de ser menos fortes do lado do acordo. Tudo dependeré das concretas e tipicas manifestagdes de liberdade tratadas como auténomos bens juridico-criminais. De qualquer forma, os critérios de superagio ter’o de ser neces- sariamente diferentes. Do lado do consentimento, é possivel definir um critério geral, na linha, por exemplo, do critério da refereréncia- -ao-bem-juridico (Rechtsgutsbezogenheit) (!8). J4 do lado do acordo ser4 normal esperar critérios tendencialmente diferenciados e dis- persos, em fungao da concreta liberdade protegida como bem juri- dico (19), (!8) Sobre o estado actual da doutrina, AMELUNG, Irrtum und Tauschung als Grundlage von Willensméngein bei der Einwilligung des Verletzten, 1998; “Willens- mangel bei Einwilligung als Tatzurechnungsproblem”, ZS1W 1997, pp. 490 ss.; AME- LUNG/EYMANN, “Die Einwilligung des Verletzten im Strafrecht”, JuS 2001, pp. 937 ss. Para uma referéncia mais desenvolvida, RONNAU, ob. cit., pp. 264 ss. (9) Costa ANDRADE, 0b. cit., pp. 642 ss. RPCC 14 (2004) 125 MANUEL DA COSTA ANDRADE b) Estatuto juridico-penal das intervengées e tratamentos médico- -cinirgicos 6. Na linha da doutrina claramente dominante na Alemanha, o Cédigo Penal portugués prescreve um regime das intervencdes médicas que se analiza em dois enunciados normativos bdsicos: 1° A intervengdo médico-cinirgica — medicamente indicada, realizada por médico, segundo as ‘leges artis’ e com ‘animus curandi’ — néo preenche a factualidade tipica das Ofensas corporais nem do Homicidio. E isto qualquer que seja o seu resultado (artigo 150.°. 2.° A intervengdo médico-cinirgica realizada sem o consentimento vlido e eficaz — nomeadamente, esclarecido e livre — do paciente, é incriminada e punida a titulo de Intervencdes e tratamentos médico-cirtirgicos arbitrdrios (artigo 156.°). Portugal integra, assim, 0 conjunto de paises — a que pertence igualmente a Austria (§ 110 do OStGB) — que dispdem da incriminagao auténoma dos tratamentos arbitrérios 2°). E uma solugao de evidentes e reconhecidas vantagens pratico-juridicas. Ela evita que o intérprete e aplicador da lei tenham de navegar entre Cila e Carfbdis, destino a que de algum modo parecem condenados os juristas alemaes. Que, no siléncio da lei, tém de optar entre: a tese sufragada pela doutrina maio- ritaria, que retira os tratamentos médicos do 4mbito da factualidade tipica das Ofensas corporais (e do Homicidio), mas com o custo poli- tico-criminal de deixar a liberdade do paciente sem tutela face aos tra- tamentos nao queridos; ou a tese sistematicamente sustentada pelos tri- bunais, que pune o tratamento arbitrdrio como ofensa corporal tipica. Mas agora com o custo simbélico de se continuar a equiparar sub spe- cie da tipicidade o gesto do médico e o do faquista. E, para além disso, 0 custo e o desconforto — do ponto de vista da legalidade/tipi- @°) Para um exame comparatistico, EseR, “Zur Regelung der Heilbehandiung im rechtsvergleichender Perspektive”, Hirsch—FS, pp. 465 ss. 126 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL MEDICO — 0 CONSENTIMENTO PRESUMIDO cidade — de inscrever na area de tutela das ofensas corporais um valor que lhe é tipicamente estranho (?!). 7. Significativamente inscrito no capitulo dos Crimes contra a liberdade, 0 crime de Intervengdes e tratamentos médico-cirtirgicos arbitrérios protege como bem juridico uma especffica dimensao da liberdade pessoal. Que podemos, com 0 BGH alemio (Myom-Fall) (2), definir como “o livre direito de autodeterminagio da pessoa sobre o seu corpo (freien Selbstbestimmungsrecht des Menschen iiber sein Kérper)”. Ou, com FIGUEIREDO Dias, a liberdade de “dispor do corpo e da prépria vida”. E um bem juridico relativamente novo, a escala das grandes etapas da hist6ria. Nao serd arriscado acreditar que, em definitivo, se tera ganho a consciéncia desta liberdade com as experiéncias totalitdrias dos meados do século passado, que traziam consigo a ideia de uma “totale Inpflichtinahme”. Uma ideia a seu tempo e corajosamente denun- ciada por ENGISCH, no seu estudo significativamente datado de 1939 (23). Trata-se, alids, de um bem juridico que nao tem visto a sua per- tinéncia deixar de crescer. Isto devido, por um lado, aos progressos do “admirdvel mundo novo” das ciéncias e técnicas médicas, que induzem um sentimento colectivo de indisfarg4vel ambivaléncia, de “fascinio e inquietagio” (EsER). Para além disso, nao pode conside- rar-se definitivamente esconjurada a ameaga de um therapeutic state, (2) Para ultrapassar as consequéncias indesejaveis da falta de incriminagao aut6noma dos tratamentos arbitrérios, alguns autores tém tentado (re)interpretar 0 bem juridico das ofensas corporais segundo momentos de autonomia e subjectividade. Neste sentido, por exemplo, ESER, “Medizin und Strafrecht. Ein Schutzgutorientierte Problemibersicht”, ZS/W 1985, pp. 1 ss.; KRAUSS, “Zur strafrechtlichen Problematik der eigenmichtigen Heilbehandlung”, Bockelmann—FS, pp. 557 ss.; Horn, SK, § 223, Rn, 35. Este dltimo autor defende uma “aweispirige Lasung”, segundo a qual o tipo das ofensas criminais protege dois auténomos bens juridicos: a integridade fisica e a autodeterminagao. Em sentitdo convergente, KARGL, “Kérperverletzung durch Heil- behandlung”, GA 2001, pp. 539 ss. (2) BGHSt 11, 111 ss. = NJW 1958, p. 267. (@) Enoiscu, “Arztlichen Eingriff 2u Heilzwecken und Einwilligung”, ZS:W 1939, pp. 1 ss. RPCC 14 (2004) 127 MANUEL _DA_COSTA_ANDRADE ae com todo o cortejo de perigos para a liberdade e mesmo para a dig- nidade. A descoberta e 0 reconhecimento deste bem juridico — voluntas aegroti suprema lex! — significa a prevaléncia, de principio, da auto- determinagao sobre a satide e a vida. E, reversamente, a denegacao a sociedade, ao Estado e ao médico de qualquer Vernunfthoheit sobre a “jrracionalidade” da escolha do paciente. No sentido de que a recusa de tratamento por parte do paciente tem de ser respeitada, quaisquer que sejam as consequéncias. Mesmo que o prego seja a vida. Acolhendo-nos a_uma das recorrentes tomadas de posigao do BGH (7-12-84): “mesmo um paciente razodvel (...) pode ter respeitaveis razdes pessoais (...) para renunciar ao tratamento. O direito de autodeterminagao do paciente, que deve ser garantido pelo esclarecimento, protege também uma deci- so que, do ponto de vista médico, pode parecer insustentavel” (?4). Por vias disso, nao € punivel por Homicidio 0 médico que, correspon- dendo a vontade esclarecida, livre e inequivoca de um paciente, omite ou interrompe o tratamento indispens4vel para lhe salvar a vida: a cha- mada eutandsia passiva ou, talvez mais correctamente, auxilio médico a@ morte (passive Sterbehilfe). E sera assim mesmo que a doenga seja consequeéncia de uma tentativa de suicidio. Isto ao contrario da conhe- cida e controversa doutrina do Wittig-Urteil (25) do BGH alemao. 8. Diferentemente do que sucede com outras liberdades também protegidas como auténomos bens juridico-penais, a liberdade protegida pelo crime de Intervencées e tratamentos médico-cirtirgicos arbitrarios (artigo 156.°) nao se inscreve nem se afirma num espago vazio de valo- res e de reivindicagdes dissonantes e, como tal, asséptico de conflituali- dade. Trata-se, pelo contrario, de um espaco povoado de profundas representagdes antropoldégicas, mais ou menos anancdsticas, por Wel- tanschaungen de étimo filos6fico e moral e por teodiceias de diferente matriz religiosa e teolégica. Para além disso e sobretudo, ele € também ocupado por valores juridicamente reconhecidos, como a vida ou a satide, C4) BGHZ 90, 103 (111) = JR 1985, p. 67. (5) Decisio de 4-7-84. Cf. BGHSt 32, 367 = NJW 1984, pp. 2639 ss. 128 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL MEDICO — 0 CONSENTIMENTO PRESUMIDO muitas vezes a fazer valer reivindicagées de sentido irreconciliavelmente contraditério com a satisfagdo paradigmatica da autodeterminagao pessoal. Na verdade, a tutela da liberdade de dispor do corpo e da prépria vida, na medida em que se reveste de relevo juridico-criminal — sc, na dimen- sao negativa de recusa de tratamento — colide sistematicamente com a vida ou a satide, valores cuja dignidade seria ocioso sublinhar. Nao admira, por isso, que também a lei penal portuguesa se tenha decidido por solugées de favor vitae vel salutis, rarefazendo a area de tutela (penal) da liberdade de dispor do corpo e da prépria vida. E, nessa medida, reforgando a fragmentaridade dos comportamentos puniveis a titulo de Intervengées e tratamentos médico-cirtirgicos arbitrarios. Este programa desenhado em nome do favor vitae projecta-se tanto em sede processual como ao nivel material-substantivo. Neste plano —e para além das solugdes especiais previstas para incapazes, reclusos € pessoas em doenga terminal — avultam sobremaneira dois aspectos. Em primeiro lugar, a consagragao expressa (artigo 156.°, n.° 2) de um regime privilegiado de consentimento presumido — menos exi- gente do que o regime geral da figura (artigo 39.°) — como via de legitimago das intervengdes e tratamentos mais urgentes e indispensdveis para salvaguardar a vida ou a satde (26). Em segundo lugar, a consagragao de solugées de privilégio tera- péutico, como forma de justificar a recusa do esclarecimento em rela- Gao a tépicos cujo conhecimento pelo paciente poderia pér “em perigo a sua vida ou seriam susceptiveis de causar grave dano G saide, fisica ou psiquica” (artigo 157.°). Isto em prejufzo daquele arquetipico escla- recimento-para-a-autodeterminagdo, que € pressuposto para a salva- guarda integral da liberdade de dispor do corpo ou da vida (27). (5) Como figura geral (artigo 39.°), 0 consentimento presumido exige que o agente possa razoavelmente concluir que “o titular do interesse juridicamente prote- gido teria eficazmente consentido”. J4 no contexto dos tratamentos médico-cinirgicos basta apenas que “ndo se verifiquem circunstancias que permitam concluir com segu- ranca que 0 consentimnto seria recusado”. () Que € defendida, entre outros, por autores como GIESEN. Que denega a legi- timidade (paternalistica) da recusa ou limitagdo do esclarecimento em nome de eventuais contra-indicagdes médicas, Cf. GIESEN, Arzthaftungsrecht, 1995, pp. 273 ss. Segundo RPCC 14 (2008) 129 9 MANUEL DA COSTA_ANDRADE 9. Da estrutura do bem juridico protegido conclui-se que o “con- sentimento” do paciente pertence & categoria e obedece ao regime do acordo-que-exclui-o-tipo. Em vez de justificar uma lesio do bem juridico tipico, a concordancia do paciente mediatiza a realizagao positiva daquele bem juridico, a liberdade de dispor do corpo e da propria vida. Isto nao significa — como, na linha de GEERDS, pretendia a dou- trina tradicional — que este acordo valha pela simples existéncia fac- tica. Para ser valido e eficaz, ele tera de ser esclarecido — um escla- recimento que terd de abarcar o denso espectro de t6picos previstos no artigo 157.° — nao podendo assentar em erro, maxime em erro frau- dulentamente provocado. “‘S6 a margem de erro o consentimento (do paciente) representa um acto de livre autodeterminagao e sé como tal ele pode ser eficaz” (BOCKELMANN). Por vias disso, é ja possivel apon- tar toda uma série de erros — v, g., sobre a necessidade e natureza do tratamento ou sobre a identidade do médico — susceptiveis de com- prometer a validade e eficdcia do consentimento. Sem prejufzo da incontorndvel remiss&o para as circunst4ncias do caso concreto, seré, em geral, assim sempre que o erro comprometa insanavelmente a liber- dade e autodeterminagdo do paciente face ao tratamento médico. c) Consentimento — e acordo — presumido 10. O primeiro topos a sinalizar é que deste lado nao se repete a separacdo das Aguas entre um consentimento presumido justificante e um © autor, no assiste ao médico o direito de definir 0 bem do paciente & margem da sua vontade, j& que “Patientenwohl und Patientenwille untrennbar miteinander verbunden sind” (“o bem e a vontade do paciente esto indissociavelmente ligados entre si”) (id., p. 288). E 0 prego que tem de pagar-se “em nome do direito de autodeterminacio”. Esta visio extremada conta hoje com poucos apoios. A tendéncia dos autores é, pelo contrério, para sustentar um equilibrado privilégio terapéutico, comespondente aquele imenunciavel huma- nitdres Prinzip que & a marca do acto médico. Uma compreensio das coisas a que a juris- prudéncia — em principio mais propensa a sobrevalorizar a autonomia do paciente — nao deixa de prestar homenagem. Para uma referéncia mais desenvolvida, GIeseN, ibidem; LAUFS/UHLENBRUCH, Handbuch des Arztrechts, 1999, pp. 457 s.; DEUTSCH, “Das thera- peutische Privileg des Arztes: Nichtaufklarung zugunsten des Patienten”, NJW 1980, pp. 1305 ss. 130 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL MEDICO — 0 _CONSENTIMENTO _PRESUMIDO acordo presumido que exclui o tipo. Tudo, pelo contrério, sugere que tanto 0 consentimento presumido como o acordo presumido configurem, a igual titulo, uma auténoma e espectfica causa de justificagGo. Na ver- dade, as razdes que levam a doutrina a considerar 0 consentimento pre- sumido como uma causa de justificagio — e fazem-no mesmo aqueles que, como Roxin, denegam ao consentimento efectivo, (expresso ou concludente) a qualificagao como causa de justificagao — valem, por manifesta identidade, tanto para 0 consentimento como para o acordo presumidos. A semelhanga do que acontece do lado do consentimento, também do lado do acordo presumido “subsiste a possibilidade da lesio penalmente relevante do pertinente bem juridico” (78). 5) MAURACH/ZIPR, Strafrecht. Allgemeiner Teil, Tb I, 6. Aufl., 1983, p. 373. entendimento sumariamente referenciado nao é, todavia, pacifico nem consensual. Pelo contrario, as insuficiéncias, hesitagdes e divergéncias que marcam toda a expe- riéncia do consentimento presumido repetem-se, multiplicadas e ampliadas, do lado do acordo presumido. Além do mais por se tratar de matéria praticamente silenciada pelos autores. Mesmo no contexto da doutrina do consentimento presumido. De qualquer modo, no cremos que devam acompanhar-se os autores que negam pertinéncia e espaco a figura do acordo presumido como dirimente da ilicitude. Como o fazem, por exemplo, STERNBERG-LIEBEN, Die objektiven Schranken der Einwilligung im Strafrecht, 1997, pp. 206 s.; ou Lupwic/LaNce, “Mutmassliche Einwilligung und willensbezogene Delikte. Gibt es ein mutmassliches Einverstindnis?”, JuS 2000, pp. 446 ss. De acordo com estes Giltimos autores, os crimes que admitem acordo, isto €, o que designam por “willensbezogene Delikte”, devem interpretar-se como pres- supondo uma actuagao “contra a vontade” (real ou presumida) do portador do bem juri- dico e nao apenas “sem 0 consentimento”. Na falta desse elemento (“contra a vontade”), no se preenche a factualidade tipica, nao sobrando espago para uma dirimente da ilicitude. Ora, a verdade & que mesmo nos casos em que o agente nao pode presumir a vontade contrdria do portador do bem juridico, nao est4 exclufda a possibilidade de tal acontecer, com a consequente manifestacao de conflitualidade, que s6 uma causa de justificago pode superar. Nao deve, para além disso, esquecer-se que a expe- riéncia do consentimento presumido esta em grande parte associada a constelagdes tipicas de acordo presumido. Como a entrada sob consentimento presumido na habi- ago do vizinho, a abertura de uma missiva destinada a terceiro, ou o tratamento de um paciente sem consentimento ou para além do consentimento, Em abono do enten- dimento aqui preconizado, Lacopny, “Ubungsarbeit Strafrecht”, Jura 1992, p. 664; Roxtn, Welzel—FS, p. 449; MAURACH/ZIPF, ob. loc. cit.; JESCHECK/WEIGEND, Lehr- buch des Strafrechts, A.T., 1996, p. 387; Hirscu, LK, U. Aufl, Rn. 131 antes do RPCC 14 (2004) 131 MANUEL DA COSTA ANDRADE Compreender-se-4, por isso, que, a partir daqui e por razdes de economia, falemos apenas de consentimento presumido, uma expres- sao que deve, em qualquer caso, ser compreendida com o sentido com- plexivo que fica assinalado. Também nao seré dificil recensear os argumentos em nome dos quais se considera 0 consentimento presumido uma excludente da ili- citude. Diferentemente do que sucede com as manifestagdes de con- cordancia efectiva — expressa ou, ao menos, tacita ou concludente — © consentimento presumido representa a supera¢gao normativa de uma situagdo de conflitualidade, ao menos potencial. Temos em vista 0 conflito entre “a vontade presumida pelo agente e a vontade real, pos- sivelmente contréria, do titular do bem juridico. Uma colisao supe- rada porquanto, na base de critérios objectivos e diferenciados, se fixa uma vontade presumida que justifica a agressio (Eingriff), mesmo que depois venha a verificar-se que a verdadeira vontade do portador do bem juridico era outra” (ROxIN) (2°). Apesar da sua conatural orientagdo para a vontade hipotética, o consentimento presumido configura sempre um “normatives Konstrukt” (Roxin), que pode, em concreto, representar 0 triunfo da heteronomia sobre a autonomia. Sera assim sempre que, ex post, se conclua que a acgo do agente nao se conformava com a vontade real do portador do bem juridico. Porque entao sobrar4, irredutivel, uma intromissao inde- sejével, ou ao menos arbitrdria, na esfera do portador do bem juridico, s6 superdvel ex vi consentimento presumido. Isto diferentemente do que sucede com 0 consentimento/acordo expressos, cuja relevancia juridica — quer do ponto de vista da legitimagao quer no que respeita a exten- so da sua eficdcia — se mede sempre pela autonomia do portador do bem juridico. Nao pode, assim e em sintese, tomar-se ao pé da letra a assergao de MEZGER, segundo a qual o consentimento presumido nao § 32. Segundo HirscH, pela sua natureza, s6 0 acordo expresso pode determinar a exclusio do tipo. () Roxin, Strafrecht, p. 693. Do mesmo autor e desenvolvidamente, Welzel—FS, pp. 448 ss. No mesmo sentido, MAURACH/ZiPF, pp. 372 ss.; STERNBERG-LIEBEN, pp. 206 GepperT, “Aus strafrechtlicher Sinn”, JZ 1988, pp. 1024 ss.; F. MOLLER, “Operationserweiterung”, in: ROXIN/SCHROTH, Medizinstrafrecht, 2001, pp. 31 ss. 132 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL MEDICO -- 0 _CONSENTIMENTO_PRESUMIDO passara de um “prolongamento do pensamento do consentimento reconhecido pelo direito vigente” (2°). 11. Na impossibilidade de um exame mais aprofundado das sin- gularidades do estatuto dogmatico e do regime do consentimento pre- sumido, bastar-nos-emos com a mengao de alguns aspectos nucleares, cujo significado se nos afigura mais 6bvio, na perspectiva do “inte- Tesse Cognitivo” que aqui nos move. i Do ponto de vista dogmatico, 0 consentimento presumido emerge como uma causa de justificagao auténoma. Tanto face ao consentimento expresso (3!) — rectius, “efectivo”, pondo entre parénteses a controvérsia da prevaléncia, da “declaragao” versus “vontade” — como face ao direito de necessidade, figuras com que mantém importantes momen- tos de comunicabilidade, mas com que, de modo algum, se confunde ou (©) Strafrecht, 1949, p. 221. () Neste contexto cabe ainda referéncia a uma terceira categoria da doutrina do consentimento em sentido amplo: 0 consentimento hipotético. Uma figura que, de resto, tem mantido uma relagdo privilegiada com a problemdtica das intervengdes médico-cirirgicas e tanto no plano jurfdico-civil como criminal. Neste contexto, fala-se de consentimento hipotético nos casos em que 0 consentimento do paciente assenta em esclarecimento insuficiente do paciente, sendo como tal ineficaz, mas sendo outrossim certo que o paciente teria igualmente consentido se tivesse sido devi- damente esclarecido, Também o consentimento hipotético afasta a punibilidade do médico, mas agora por razSes que relevam dos principios da doutrina da imputagao objectiva, aplicada as causas de justificagao. O consentimento hipotético no se con- funde com 0 consentimento presumido. Além do mais, porque ele pode intervir em situagdes em que bem poderia obter-se a vontade efectiva do paciente, nio podendo, por falta de acessoriedade, falar-se de consentimento presumido. Em rigor e como Kun- LEN acentua, o consentimento hipotético nao configura uma terceira forma de justifi- cago, a par do consentimento efectivo e do consentimento presumido. Representa antes uma causa de exclusio do ilicito objectivo por falta de “causalidade da lacuna do escla- recimento (Kausalitdt des Aufkldrungsmangels)”, nos termos € segundo as regras da imputago objectiva, aplicadas por “analogia estrutural” (KUHLEN). Na jurisprudéncia, © consentimento hipotético conheceu a sua expresso paradigmatica no aresto do BGH de 29-6-95, vertido sobre 0 caso “Surgibone”-Diibel (JR 1996, pp. 69 ss.). Sobre a decisio, RIGIZAHN, JR 1996, pp. 72 ss.; € ULSENHEIMER, NSIZ 1996, pp. 132 s. Para uma referéncia doutrinal mais desenvolvida, KUHLEN, “Objektive Zurechnung bei Rechtfertigungsgrtinden”, Hirsch—FS, pp. 330 ss. RPCC 14 (2008) 133 MANUEL DA COSTA ANDRADE identifica. Isto sem esquecer 0 relevo do risco permitido, a que 0 con- sentimento presumido esté igualmente associado (3) A proximidade ¢, apesar de tudo, maior com 0 consentimento/acordo, cujos regimes predeterminam, em aspectos decisivos — v. g.: capaci- dade, disponibilidade (33) — 0 regime do consentimento presumido. Para além disso e sobretudo, a verdade é que a eficacia justificativa do consentimento presumido radica na vontade hipotética que € possivel referenciar, por mais irracional e incompreensivel que ela possa pare- cer. O que é decisivo é “um juizo de probabilidade de que o interes- sado, se tivesse tido conhecimento da situagdo de facto, teria consen- tido na acgio” (MEZGER). Pela negativa, o determinante nao é a ponderagiiao objectiva de interesses, menos ainda um qualquer Schénugsprinzip que legitimasse © agente a intervir em nome do que considera o “verdadeiro bem” do titular do bem juridico. O que equivale a concluir que naio devem acompanhar-se os autores (v. g., WELZEL) que projectam o consen- timento presumido como “um sub-caso do estado de necessidade supra-legal” (*4). (2) Sem esquecer 0 peso diferenciado dos diferentes topoi na fundamentagao e legitimago do consentimento presumido, ndo devem acompanhar-se as solucdes extre- madas como a sustentada por YOSHIDA que, a partir da ideia (irrecusavel) de que 0 con- sentimento presumido é apenas um “substituto do consentimento” (Ei ou um mero “sucedéneo” de um “consentimento que de facto nao existe” (Ersatz fiir eine tatsdchlichc fehlende Einwilligung) (HiRSCH), tenta apoid-lo exclusivamente no direito de autodeterminagdo. O que além do mais redundaria numa redugdo inaceité- vel do Ambito de aplicagao da figura, de que ficariam excluidos os casos de intervencao no interesse do préprio agente. Isto a partir do dogma de que tem de se garantir sempre que “fique em aberto a base de decisio (das Offenhalten der Entscheidungs- lage gewahren)” do portador do bem juridico. Neste sentido, expressamente, YOSHIDA, “Zor materiellen Legitimation des mutmasstichen Einwilligung”, Roxin—FS, pp. 418 ss. () Por todos, GePPErT, JZ 1988, p. 1026. Sobre a aplicabilidade do limite dos bons costumes, STERNBEG-LIEBEN, p. 207. (C4) WeLzeL, Das deutsche Strafrecht, 11. Aufl., 1962, p. 92. Na argumentacdo do autor: “o fundamento primério da justificagdo ndo € a rentincia aos interessess por parte do lesado (portanto o consentimento), mas a actuag0 positiva no seu interesse” (ibid.), Dentre as vozes que, em sentido convergente, levam a justificagao 4 conta da ponderagao de interesses sobressai a de SCHMIDHAUSER. Que assume expressamente 134 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO_EM_DIREITO PENAL MEDICO — O_CONSENTIMENTO _PRESUMIDO Nesta linha, nao cremos igualmente pertinente a tese que procura radicar a eficdcia justificativa do consentimento presumido no regime civilistico da gestio de negécios (Geschdftsfiihrung ohne Auftrag). O que significaria que a mera consonancia com a vontade hipotética do titular dos bens juridicos nao bastaria para assegurar a eficdcia justifi- cativa do consentimento presumido. Que exigiria, para além disso e cumulativamente, a actuagio em conformidade com o interesse objec- tivo do mesmo titular. O que equivaleria a erigir 0 interesse objectivo em limite da eficdcia do consentimento presumido (35). Esta compreensao das coisas, que tem apoios credenciados entre os autores, ganhou também o reconhecimento e 0 apoio explicito da juris- prudéncia, nomeadameente do BGH. Que ainda ha relativamente pouco tempo interpretava 0 consentimento presumido a partir do que consi- derava ser o interesse do portador do bem juridico e, particularmente, do paciente face ao médico (36). Numa viragem decidida e conse- quente, operada a partir da década de 90 (37), o BGH considera agora ‘a tese de que “a vontade hipotética é irrelevante”. Nas pertinentes situagdes de “neces- sidade, a autonomia do portador do bem juridico subordina-se ao interesse na preser- vagiio do bem juridico em perigo”. Uma consideragao das coisas que leva o autor a considerar “errada” a designacdo consentimento presumido. SCHMIDHAUSER, Straf- recht. Allgemeiner Teil. Lehrbuch, 1975, p. 317. Para um exame critico, YOSHIDA, pp. 402 ss. (3) A ideia foi, pela primeira vez, adiantada por Nout, Ubergestzliche Recht- fertigungsgriinde, im besonderen die Einwilligung des Verletzten, 1955, pp. 135 ss. No mesmo sentido, JAKOBS, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 2. Aufl., 1991, p. 451. Em sentido préximo mas nao inteiramente sobreponivel, SCHROTH, “Die berechtigte Geschiiftsfuhrung ohne Auftrag als Rechtfertigungsgrund im Strafrecht”, JuS 1992, pp. 479 ss. Para uma critica da doutrina, e continuando a por a t6nica na preferén- cia subjectiva do titular do bem juridico, mesmo que irracional, ROXIN, Strafrecht, p. 703; GErPert, JZ 1988, p. 1026; STERNBERG-LIEBEN, pp. 208 ss.; HIRSCH, LK, Rn. 130 ¢ 137 antes do § 32. Como Hirsci pertinentemente assinala, nao se trata de de “tutoria permitida mas da representacio de um outro na sua Nesta linha nao hé lugar para aquela “margem de seguranga” (Jakoss) contra intervengdes precipitadas ¢ arriscadas na esfera de terceiros. Contra a ideia da Geschaifisfiihrung ohne Auftrag, YosHIDA, Roxin—FS, pp. 406 s. C9) Cf. neste sentido, a marcante decisto de 7-11-73 do BGH, NJW 1974, p. 602. ©) Temos fundamentalmente em vista as decis6es, proferidas em sede civil no infcio da década de 90 — concretamente: 10-7-91 (NJW 1991, pp. 2955 ss.), 11-12-91 RPCC 14 (2008) 135 MANUEL DA_COSTA_ANDRADE que nao é possivel fazer assentar a forga justificativa do consentimento presumido “na situagdo objectiva dos interesses do portador do bem jurt- dico”. E que, em conformidade, no é admissivel “colocar a avaliagaio objectiva dos interesses no lugar de uma decisio livre do paciente” (38). Resumidamente, a consideragdo objectiva dos interesses poderd rele- var como critério, indicio ou suporte da vontade hipotética. Nao como fundamento da justificagdo a titulo de consentimento presumido (39). 12. A eficdcia justificativa do consentimento presumido est4 limi- tada pelo seu caracter subsididrio face ao consentimento/acordo expres- sos. Por forga desta exigéncia — que radica directamente no direito de autodeterminaciio do portador concreto do bem juridico (4) — s6 pode invocar-se 0 consentimento presumido quando ndo for possivel obter a manifestacdo expressa da vontade, ou houver perigo sério na demora. A impossibilidade de obter — ou de esperar pela possibilidade da sua obtengao — o consentimento expresso constitui-se, assim, em pres- (NJW 1992, pp. 737 ss.) e 20-5-92 (NJW 1992, pp. 2348 ss.) — e relativas ao problema especifico do consentimento presumido nos casos de transmissao de ficheiros, comu- nicago de informagdes e dados entre médicos. Para uma valoragio critica e para uma referéncia mais desenvolvida ao significado destes pronunciamentos do supremo tribunal alemdo, Tauprtz, “Die arziliche Schweigepflicht in der aktuellen Rechtspre- chung des BGH”, MDR 1992, pp. 421 ss.; NIEDERMAIR, “Verletzung von Privatge- heimnissen im Interesse des Patienten? Aus der neueren Rechtsprechung zur arztlichen Schweigepflicht”, in: ROxIN/ScHROTH (Herausg.), Jm Spannungsfeld von Medizin, Ethik und Strafrecht, 2001, pp. 393 ss. C3) NIW 1992, p. 739. () Expressivo neste sentido, o BGH: “tendo em vista a prevaléncia do direito de autodeterminagao do paciente, 0 contetido da vontade presumida hé-de determinar-se, em primeira linha, a partir das circunstancias pessoais do interessado, dos seus inte- resses individuais, desejos, necessidades ¢ representagdes de valor. Os critérios objec- tivos — em particular a qualificag%io de uma medida como, em geral, razodvel e nor- mal e cortespondente ao interesse de um paciente razodvel — nao tém significado aut6nomo, apenas servindo para a investigagao da vontade hipotética individual”, JZ 988, p. 1022, No mesmo sentido, MULteR-Dierz, “Mutmassliche Einwilligung und Opertionserweiterung. BGH, NJW 1988, 231”, JuS 1988, p. 282; GepreRr, JZ 1988, p. 1026; Yoscuipa, Roxin—FS, p 417. () Geprerr, JZ 1988, p. 1027. 136 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM _DIREITO PENAL MEDICO — OQ _CONSENTIMENTO _PRESUMIDO suposto auténomo do consentimento presumido. E um pressuposto cuja verificagdo, em concreto, precede !égica e normologicamente a indagagagao da conformidade da ac¢gio com a vontade hipotética ou com os interesses do portador concreto do bem juridico. E tudo com um corolario natural: o consentimento presumido nunca pode ultrapas- sar a recusa expressa de consentimento ou acordo (41). A exigéncia da subsidiaridade é, de resto, conatural as constelagées tipicas em nome das quais se langou mao da figura do consentimento presumido. E que na sua expressao eidéctica postulam “a necessidade de tomar uma decisao inadiavel e a impossibilidade de ela ser tomada pela pessoa que € chamada a decidir” (42). Nada, com efeito, justificaria uma intervengao na esfera juridica do portador do bem juridico em nome de uma vontade hipotética se 0 risco de uma presungao errada pode ser afastado interpelando-se directamente o interessado (43). Por essa via se abrindo a porta 4 manifestagéo auténtica da autonomia pessoal. 13. Uma referéncia, por ultimo, ao significado e as implicagdes da pertinéncia do consentimento presumido Aquele grupo de causas de jus- tificagao que prestam homenagem ao principio do risco permitido (“). (*) Cf. Geprerr, JZ 1988, pp. 1026 ss.; Hirsch, LK, 11. Aufl., Rn. 136 antes do § 32. (2) Strarenwerri, “Prinzipien der Rechtfertigung”, ZSiW, 1956, p. 48. (8) Desenvolvidamente, ROxIN, Strafrecht, pp. 700 ss.; Welzel—FS, p. 461; MoLer-Dierz, pp. 282 ss.; Geprer, JZ 1988, p. 1025; Hirsch, LK, 11. Aufl., Rn. 136 antes do § 136. ()O grupo abrange, para além do consentimento presunido, a prossecussdo de interesses legitimos, ¢ as situagdes de justificagao assentes em Amusrechte, particular mente das instancias da perseguigo criminal (Verdachtstatbestinde). Comum a todas elas o serem dirimentes “que, & vista da inseguranca ex ante, legitimam uma acgio que ex post se revela objectivamente nao necessdria para os fins do agente” (JAKOBS, p. 362). Na caracterizagdo de LENCKNER, a quem se deve o tratamento mais aturado e sistemético desta categoria de dirimentes — tanto no que toca A compreensdo axiol6gico-teleol6- gica como no que respeita As singularidades do respectivo regime — elas intrevém em situagdes especificas de conflito. A saber: situagdes em que, ao tempo da pratica do ‘facto, no € posstvel verificar com seguranga a subsisténcia do contetido factico que RPCC 14 (2004) 137 | MANUEL DA COSTA ANDRADE Nesta drea problemAtica avulta sobremaneira a questdo da exigéncia de uma comprovacdo conforme ao dever ou comprovagdo cuidadosa, que continua a motivar divisdes e desencontros. Cabendo, contudo, preci- € 0 referente material da justificagdo (“Die Rechtfertigungsgriinde und das Erforder- nis pflichtmassiger Priffung”, H. Mayer—FS, p. 179). Mas face as quais € “impera- tivo colocar o agente a coberto do risco de uma decisio tomada em conformidade com o dever, mesmo que no seu resultado final se revele errada” (id., p. 181). Nesta linha, LENCKNER € Ievado a sustentar a exigéncia da comprovacao conforme ao dever, como pressuposto auténomo e proprio das causas de justificagdo assentes na ideia do risco permitido. Um pressuposto a que, na estrutura normativa das dirimentes, cabe compensar a (possivel) falta dos elementos objectivos bastantes para a justificagdo (p. 179). Assim e reportando-se concretamente ao consentimento presumido e A actua- 40 de funciondrios: “o direito tolera 0 risco de decisées infundadas nos limites do risco permitido, 0 que converte a comprovacdo conforme ao dever em critério decisivo” (p. 181). E mais recentemente: “se, & partida, s6 podem ser ‘permiridos’ os riscos em que o perigo da sua realizagao sob a forma de uma lesdo do bem juridico, afinal nao justificada, é circunscrito ao minimo possivel segundo as circunstancias, segue-se que © agente tem de observar o cuidado devido, indispensavel para, na medida do po: vel, reduzir as oportunidades de uma avaliagao errada da situacio problemética’ (S/S/LenckneRr, 26. Aufl., Rn. 19 antes do § 32). A doutrina de um regime especifico das causas de justificago com momentos de risco permitido conheceu, no essencial, 0 aplauso maioritério dos autores. Que se afastaram igualmente do entendimento sistematicamente suftagado pelos tribunais, que generalizam a exigéncia da pflichimdssige (sorfaltige, gewissenhafie) Priifung ao uni- verso da causas de justificagao e, particularmente, ao direito de necessidade. Na sin- tese de RoxIN — que comecou por aderir 4 doutrina do tratamento especifico das cau- sas de justificagao assentes no risco — “o preenchimento do dever de comprovagao leva aqui (no consentimento presumido) a justificagao” (Welzel—FS, p. 453). Em abono desta doutrina, cf. ainda JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch, 5. Aufl., pp. 466 s.; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, AT, Tb 1, 6. Aufl., p. 375. Esta doutrina conta, porém, com a oposigao de um coro de vozes credenciadas. Entre outros: ROXIN, Strafrecht, pp. 533 ss. € 709 ss.; RupoPul, “Die pflichtmassige Priifung als Erfordernis der Rechtfertigung”, Schré- der—GS, pp. 73 ss.; Hirscu, LK, 11. Aufl., Rn. 140 antes do § 32; JAKoBs, Strafrecht, AT, 2. Aufl., p. 362; SAMSON, SK, Rn. 44 antes do § 32; ZIELINSKI, Handlungs- und Exfolgsunwert im Unrechtsbegriff. Untersuchung zur Struktur von Unrechisbegriindung und Unrechtsausschluss, 1973, pp. 271 ss.; Puppe, “Zur Struktur der Rechtfertigung”, Stree/Wessels—FS, pp. 193 ss.; Geprert, JZ 1988, pp. 1026 s. De forma ainda mais extremada, denegando qualquer significado normativo ou prético-jurfdico a ideia de risco permitido tanto na fundamentag3o como no regime do consentimento presumido, Yosutpa, Roxin—FS, pp. 412 ss. Para uma sintese no direito portugués, FIGUEIREDO 138 RPC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM _DIREITO_PENAL MEDICO ~ 0 _CONSENTIMENTO_PRESUMIDO sar que € sobretudo ao nivel do enquadramento dogmitico que as dis- tancias ganham verdadeira dimensao, encurtando-se significati vamente 4 medida que nos aproximamos das solugGes pratico-juridicas das cons- telages facticas segregadas pela vida. Desde Jogo, ninguém pde em causa a pertinéncia politico-criminal duma exigéncia acrescida de vigilancia por parte do agente que pre- tende prevalecer-se de uma causa de justificagao assente no principio do risco permitido, nomeadamente do consentimento presumido. Para evitar que a sua eficdcia justificativa se prolongue para o campo do “risco-nao-permitido”. Trata-se, assim, de erguer uma “barreira a uma intervengdo tutelar arbitréria e prejudicial” (ROxIN) (45). De outra forma, 0 direito penal teria de resignar-se com o resultado “‘pouco satisfatério” de ter de “tolerar nao s6 o arrogar-se proibido da soberania da razdo (Ver- nunfthoheit) mas até da soberania da ndo-razao (Unvernunfthoheit)” (4). A partir daqui, separam-se os caminhos dogmaticos empreendidos para prosseguir este programa politico-criminal. N&o que os autores que se opdem a construgéo ainda dominante nos tribunais e na doutrina recusem a pertinéncia da exigéncia duma comprovagao conforme ao dever. S6 que, em vez de a erigirem em pressuposto da justificagao, recuperam-na como critério de valoragdo do erro, particularmente do erro sobre a ilicitude — na Alemanha Verbotsirrtum —, sob a forma de erro sobre os limites legais de uma causaa de justificagio. Na sintese de Rupotput, ela “identifica-se exclusivamente com a questdo da Ver- meidbarkeit de um erro sobre a proibigdo no sentido do § 17” (47). Dias, O Problema da Consciéncia da Hicitude em Direito Penal, pp. 423 ss.; Costa ‘Avprapé, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, pp. 346 ss. (3) Welzel—FS, p. 455. (5) Roxin, ibidem. Significativa a este propésito a posigio assumida, v. g., por GEPPERT que, néio obstante recusar a comprovacdo cuidadosa como pressuposto auté- nomo da justificagao, nao deixa de sublinhar: “Um procedimento consciencioso e uma comprovacio cuidada do material de diagnose e de prognose subsistente no momento do facto, configura a todos os titulos um dever inequivoco para aquele que pretende reivindicar-se da justificagdo do consentimento presumido, como de qualquer outro prin- cipio de justificagao do risco permitido”. Geprert, JZ 1988, p. 1026. () Ob. cit, p. 78. No mesmo sentido, ROxin, Sirafrecht, pp. 534 ss. © 709; JaKons, pp. 362 ss,; GEPPERT, JZ 1988, pp. 1028 ss RPCC 14 (2004) 139 MANUEL DA COSTA ANDRADE As divergéncias nao impedem, em qualquer caso, a aproximagio e 0 consenso a propésito das constelagGes facticas em que, nao obstante a falta de comprovagao conforme ao dever, a verdade é que a acgao do agente est4 de acordo com a vontade real do portador do bem juridico. Com maior ou menor consisténcia sistematica, todos parecem concluir pela efectiva justificagao do facto (48). O quadro serd j4 outro face As constelagdes em que, por sobre nao se verificar o fundamento material da justificago (concretamente: a concordancia com a vontade real do titular do bem juridico), 0 agente nao procede 4 comprova¢ao conforme ao dever. O que nos confronta com a problemitica do erro sobre o consentimento presumido, uma drea onde a complexidade sobe claramente de tom. Isto devido, desde logo, A multiplicidade de topoi de distingao e diversificagao (4). Tudo a reclamar um atento exercicio de elaboragao dogmitica, que nao est4 ao nosso alcance no presente contexto (5°). Limitar-nos-emos a sublinhar () Cf, de um lado, Lenckner, H. Mayer—FS, pp. 176 ss.; ¢ S/S/LENCKNER, Rn, 19 antes do § 32. E, do outro lado, ROxtn, Strafrecht, p. 543; GePPERT, JZ 1988, p. 1026: Pure, Siree/Wessels—FS, p. 194. As coisas so, naturalmente, mais féceis do lado dos que contestam a exigéncia da comprovacao conforme ao dever como pressuposto auténomo. A auséncia do desvalor de resultado junta-se a falta do des- valor de acciio (ROXIN, ibid.). E so menos ébvias para autores como LENCKNER. Que, em qualquer caso, sempre poderao invocar a ideia de que a comprovagio desem- penha o papel de sucedaneo (Ersatz) do substrato objectivo que é o fundamento da jus- tificagio, Se este se vetifica, hé-de a fortiori adscrever-se-Ihe eficécia justificativa, De resto, e como ROXIN recorda, estas tenderdo a ser hipdteses de relevo meramente aca- démico, dada a ostensiva auséncia de conflitualidade, 0 que em geral as subtrairé aos tribunais (Welzel—FS, p. 460). () Recorda-se, por exemplo, que o erro tanto pode reportar-se aos dados de facto que sustentam a conelusao pela “probabilidade objectiva da concordancia’, como a esta mesma probabilidade. Ou, na expresso de GEPPERT, tanto ao erro sobre o “material de diagnose © prognose” como a esta mesma prognose (JZ 1988, p. 1026). Uma coisa é, por exemplo, o erro sobre uma grave patologia que atinge uma mulher gré- vida, outra 0 erro na conclusdo pela sua vontade hipotética de esterilizagao. Por seu tuno, também o dever de comprovacdo poder reportar-se tanto a um como a outro dos momentos. ©) Cf, por exemplo, MULLER-Dietz, JuS 1989, p. 284; S/S/LENCKNER, Rn. 60 antes do § 32. 140 RPCC 14 (2008) CONSENTIMENTO EM _DIREITO PENAL MEDICO — QO CONSENTIMENTO _PRESUMIDO que, também aqui, os defensores das diferentes alternativas dogmiaticas acabam, nao raro, por fazer caminho 4 custa de incoeréncias sistemati- cas ou de inconsisténcias politico-criminais, mais ou menos expostas (°!). III — Consentimento presumido e Intervengées e tratamentos médico-cirtrgicos arbitrarios 14, O consentimento presumido encontra precisamente nos trata- mentos médicos um dos campos privilegiados de intervengao justifi- cativa. Nao serd arriscada a assercio de que a trajectéria e a evolucao (°) Do lado dos que denegam a comprovacao como um pressuposto da justifi- cago propende-se a acentuar a distingZo entre: por um lado, 0 erro sobre os factos que permitem concluir pela vontade hipotética do portador concreto; e, por outro lado, aquele em que o “agente, na base de uma situagdo de facto correctamente represen- (ada, chega erradamente 4 conclusiio de que a sua acco corresponde & vontade hipo- télica do portador” (GePrErt, JZ 1988, p. 1029. Sobre a distingao e a doutrina a ela associada, ROXIN, Strafrecht, p. 709, e, jé antes, Welzel—FS, pp. 458 ss.). O primeiro € levado & conta de erro sobre os pressupostos da justificagdo, excluindo, nos termos gerais, 0 dolo; j4 0 segundo € qualificado como Verbotsirrtum, deixando subsistir 0 dolo e excluindo ou nao a culpa, em fungao da evitabilidade (Vermeidbarkeit). E isto por- quanto a conclusio pela vontade hipotética a partir de elementos de facto, correctamente representados mas insuficientes, isto € a “suposigio leviana” da vontade hipotética “alarga a causa de justificagao (consentimento presumido) a situagdes de facto para que ela nao vale”. Como parece claro, uma consideragao das coisas que leva implicito 0 reconhecimento de que se ultrapassaram os pressupostos do consentimento presumido ou, noutros termos, que nao se representaram todos os pressupostos. Ora, 0 pressu- posto em falta s6 pode ser a comprovacéo conforme ao dever. Enquanto isto, LENCK- NER classifica 0 erro como erro sobre os pressupostos de facto, um erro a que nao pode deixar de adscrever-se 0 efeito de exclusio do dolo. Assim, séo as doutrinas partida apostadas em contrariar 0 perigo da intervengao precipitada ou leviana na esfera juridica de terceiro que acabam por abrir a porta a maiores lacunas de puni- bilidade. Um perigo que esté longe de ser meramente tedrico, como 0 ilustra a decisao (25-3-1988) do BGH (BGHSt 35, 250, ou JZ 1988, p. 1022). Um aresto em que o Tri- bunal Federal considerou como erro sobre os pressupostos da causa de justificagao 0 facto de 0 médico ter apressadamente considerado que a paciente estaria de acordo com a esterilizagao. A menos que se opte pela solugao, sistematicamente pouco coerente, de adoptar — como parecem fazé-lo JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch, p. 467 — neste dominio especifico, as solugdes da doutrina da culpa estrita. RPCC 14 (2004) 141 MANUEL DA_COSTA_ANDRADE da figura do consentimento presumido estao intimamente associadas 4 experiéncia juridico-penal dos tratamentos médico-cirérgicos. E o que comprova um olhar atento sobre o panorama doutrinal e jurisprudencial. Por parte dos tribunais, o consentimento presumido tem sido prevalen- temente problematizado face a duas constelacGes facticas, ambas atinentes a relacdo entre médico e paciente. De um lado, para justificar a trans- missao de ficheiros e a comunicagao de dados entre médicos, a custa do sacrificio do dever de segredo. Por outro lado, para justificar a intervengdo médica em miiltiplas situagGes em que nao é possivel obter, ou obter em tempo Util, 0 consentimento expresso do paciente. Nao sera, asssim, de estranhar que o legislador portugués tenha privilegiado o regime das Intervengées e tratamentos médico-cirtirgicos arbitrdrios para lhe associar a consagragaéo de um regime especifico de justificagao a titulo de consentimento presumido, De acordo com o n.° 2 do artigo 156.°, o consentimento presumido justificar4 a inter- vengao “quando o consentimento: a) S6 puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para 0 corpo ou para a satide; ou b) iver sido dado para certa intervengao ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiéncia da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, 0 corpo ou a satide; e ndo se verifiquem circunsténcias que permitam concluir com seguranca que o consentimento seria recusado”. 15. Como resulta do teor verbal dos dispositivos acabados de citar, a lei portuguesa assume nesta matéria um decidido favor vitae vel salutis, alargando relativamente 0 4mbito de intervengao do con- sentimento presumido como justificagao das intervengdes médicas. Diferentemente do que sucede com o regime geral, 0 médico nao tera que buscar razGes que lhe permitam razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido. Ao médico basta apenas a suposigao fundada de que o paciente ndo se oporia. O que equivale a colocar sob 0 ambito da justificagao do con- 142 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO EM _DIREITO PENAL MEDICO — O_CONSENTIMENTO_PRESUMIDO sentimento presumido as situagdes de non liquet quanto 4 vontade hipo- tética do paciente. Para além disso, o consentimento presumido terd de satisfazer as exi- géncias e cumprir os pressupostos enunciados em sede de doutrina geral. Neste contexto devem sublinhar-se dois aspectos: a) Também face aos tratamentos médicos vale a tese de que 0 con- sentimento presumido nao representa uma modalidade ou derivado do direito de necessidade. Também aqui a eficdcia justificativa do con- sentimento presumido radica na valoragao normativa da vontade hipo- tética do paciente. Que nao pode ser ultrapassada pela ponderagao supra-individual e “mais racional’ dos seus interesses, na perspectiva do que se considere o seu “verdadeiro bem”. No que fica dito vai implfcito 0 coroldrio de que ndo pode invo- car-se o direito de necessidade como justificagdo subsididria em rela- ¢@o ao consentimento presumido (52). Comprovada a insubsisténcia dos pressupostos do consentimento presumido — no direito portugués: que se possa “concluir com seguranga que o consentimento seria recusado” — nao sobra espago para a intervengio justificativa do direito de necessidade. Na verdade, o direito de necessidade, subjectivizado por uma racionalidade objectivo-normativa, nao pode sobrepor-se 4 pon- deragao de interesses operada pelo autorreferente sistema pessoal ao nivel daquela “colisao interna de valores ou interesses (interne Giiter- und Interessenkolision)” de que fala JESCHECK (53). b) Em segundo lugar, também aqui deverd respeitar-se, em todas as suas implicagdes, a exigéncia da subsidiaridade face ao consentimento expresso ou concludente. Nao podendo, por isso, invocar-se 0 con- sentimento presumido quando é possivel colher a manifestago expressa da vontade real do paciente. Como MULLER-DIETZ refere, sera tanto mais assim quanto em causa estiverem intervengdes como, por exemplo, (2) MULLER-DIETZ, JuS 1989, p. 281. (3) JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch, p. 386. RPCC 14 (2008) 143 MANUEL DA COSTA ANDRADE uma esterilizagao, “que tém consequéncias irreparaveis e assumem um significado existencial e decisivo para a vida do paciente” (54). Nesta linha, nao pode deixar de acompanhar-se 0 coro de criticas dos autores alemies face 4 deciséo do BGH de 25-3-88 (55). Em que o Tri- bunal Federal considerou justificado por consentimento presumido o médico que, ao realizar uma cesareana, procedeu A esterilizagdo da mulher, que dava 4 luz o seu terceiro filho. E fé-lo porque “uma nova gravidez da mulher poria em risco a sua vida e a da futura crianga”. Isto sabendo-se que a mulher tinha dito a uma terceira pessoa que recusaria a esterilizagao porque queria ter um quarto filho. Como bem se repre- sentard, a violagao da subsidiaridade resulta manifesta. Porque o perigo s6 viria a revelar-se face a uma nova e eventual gravidez. E, entre- tanto, havia tempo para colher a vontade real e expressa da mulher (5). 16. No contexto do direito portugués vigente, ndo sobrarao divi- das quanto a bondade da solugao sustentada pelos autores e segundo a qual estaré justificada por consentimento presumido a intervengao medi- camente indicada e indispensdvel para salvar a vida de um paciente inconsciente. Sem comunicagao com o paciente, nao é possivel refe- renciar, a cada momento, a solugdo correspondente 4 autonomia do mesmo paciente. Uma lacuna que nao pode suprir-se através do tes- temunho de terceiros, nomeadamente dos familiares mais préximos, ou do chamado testamento de paciente (Patiententestament). N&o cremos outrossim que deva atribuir-se um significado decisivo ao facto de se saber que o paciente pertence a um agrupamento religioso que se opde ao tratamento medicamente indicado (57). () Ob. cit., p. 283. No mesmo sentido, GpPERT, JZ 1988, p. 1028. Sobre os critérios para determinar em que casos se pode adiar ou interromper a intervengo, GeP- PERT, ibid. (5) BGHSt 35, 250 = JZ 1988, pp. 1021 ss. () A decisio do BGH mereceu outrossim criticas praticamente undnimes em relag2o ao tratamento dado ao problema do erro. Cf. ROXIN, Strafrecht, pp. 709 s.; GEP- pert, JZ 1988, pp. 1024 ss.; MULLER-DIETZ, JuS 1989, pp. 284 ss. (31) RoxIN, Strafrecht, p. 707; BOCKELMANN, NJW 1961, p. 949; Nout, “Tat- bestand und Rechtswidrigkeit: die Wertabwgung als Prinzip der Rechtfertigung”, 144 RPCC 14 (2004) CONSENTIMENTO_EM_DIREITO PENAL MEDICO — 0 CONSENTIMENTO _PRESUMIDO Interrompida a comunicag4o com o paciente, s6 pode conhecer-se com seguranga o que ele terd querido num momento anterior. Entre- tanto decorreu algum tempo. O tempo densificado da mais radical “situacdo marginal” (JASPERS). Posto mesmo entre-parénteses o poder conformador do tempo sobre o ser, nada mais natural do que a pos- sibilidade de uma mudanga de atitude. De qualquer forma, s6 a salvagao da vida permite “manter em aberto a base da decisio”, contrariando 0 risco de a perda da vida arrastar consigo a perda irreversivel da auto- nomia. Na certeza de que, a salvar-se a vida e a persistir 0 conflito com a autonomia, sobraré sempre espago para a “assinatura da liberdade” (sui- cfdio) de que fala FLETCHER (5). Nesta linha, 0 consentimento presumido poder figurar ainda como causa de justificagao da administragao (v. g., através de injecg’o) de anes- tésicos a um paciente que j4 nao esté em condigées de declarar o seu ZSIW 1965, p. 27. Jé niio parece que deva acompanhar-se NOLL quando refere que nes- tes casos — intervengao para salvar a vida — “a intervengdo nio seria ilfcita mesmo que levada a cabo contra a vontade expressa do lesado” (p. 27). (5) que fica dito para a vida vale igualmente para as intervengdes destinadas a preservar a satide. Como vale igualmente para a chamada “experimetagdo terapéutica” (Heilversuch): 0 consentimento presumido pode também justificar a aplicagZo a um doente inconsciente de terapia que, embora ainda nao convalidada cientificamente (ainda ndo medicamente indicada), representa a tinica possibilidade de (tentar) salvar o paciente. Recorda-se que 0 que marca a Heilversuch e a contrapde & “experimentagao pura” e mesmo & comprovagdo clinica, 6 0 facto de ela obedecer exclusivamente a0 propésito de curar 0 paciente, sem reconhecer relevo directo ao prop6sito de obter conhecimentos médico-cientificos. Também nao estar4 liminarmente afastada a possibilidade de con- sentimento presumido justificar os estudos terapéuticos ou de comprovagdo clinica com doentes inconscientes. Trata-se agora de acgdes destinadas a convalidar novos meios tera- péuticos e que, por vias disso, prosseguem, a par da finalidade terapéutica, propésitos de indole cientifica, Sé que agora em termos muito mais restritivos e exigentes. E salva- guardada sempre, para além do primado da dimensao terapéutica, 0 respeito da vontade do paciente quanto 20 método que ele preferiria. Desenvolvidamente, neste sentido, KOHLER, “Medizinische Forschung in der Behandlung des Notfallpatienten”, NJW 2002, pp. 833 ss. Sobre os conceitos citados — tratamento (Heilbehandlung), experimenta- ¢a0 terapéuutica (Heilversuch), comprovacdo clinica (klinische Priffung) e experimen- tagdo pura ou humana (Humanexperimente) — e respectivos enquadramentos juridicos, KOHLER, ibid.; KOLLHOSSER/KREFFT, “Reclliche Aspekte sogennanter Pilotstudien in der medizinischer Forschung”, MedR 1993, pp. 93 ss. RPCC 14 (2004) 145 0 MANUEL DA COSTA ANDRADE. consentimento. Isto salvaguardada, mais uma vez, a possibilidade de o paciente rejeitar a medida. Como Roxin observa, o paciente pode sem- pre desejar “viver a sua morte em plena consciéncia, sem vé-la trans- formada num sono suave. O doente pode ter razGes teoldgicas ou filo- s6ficas para tanto, ou ser simplesmente uma pessoa sobremaneira corajosa, que deseje comunicar com os que lhe so mais intimos, ou regular problemas sucessérios. De qualquer maneira, 0 seu desejo deve ser respeitado” (5%). 17. J4 se nos deparam diividas (invenciveis) quanto as virtualida- des do consentimento presumido para justificar a recusa ou a interrup- ¢do dos tratamentos de pessoas que perderam irreversivelmente a cons- ciéncia. E sem, todavia, se poder ja falar de auxilio médico & morte (Sterbehilfe), no sentido proprio de Hilfe fiir den Sterbenden ou Hilfe beim Sterben. Nao podemos, por isso, acompanhar a decisdo de 13-3-94 do BGH (©) — nem das muitas vozes que, do lado da doutrina, a apoiam — na parte em que considera justificdvel por consentimento () Roxin, “Apreciagdo Juridico-Penal da Eutandsia", Revista Brasileira de Ciéncia Criminal n° 32 (2000), p. 12. (©) BGHSt1 40, 257 = NJW 1995, pp. 204 ss. Recordamos os factos, em ver- sio suméria, A, mulher de 72 anos, sofria de “profundo psicossindroma organico-cere- bral, no quadro de uma deméncia senil, com suspeitas de doenga de Alzheimer”. HA trés anos sofrera de paragem cardiaca, seguida de reanimago, 0 que provocou gra- vissimas e irreversiveis lesdes cerebrais. Dada a impossibilidade de deglutir, A foi inter- nada num lar sob 0 cuidaddo do médico M, onde era artificialmente alimentada, pri- meiro por sonda nasal, depois por sonda estomacal. Nao podia andar nem estar de pé € 86 reagia a estimulos Spticos e auditivos através de gemidos e contracgies do rosto. Cerca de dois anos ¢ meio depois e no se registando qualquer melhoria, M sugeriu a F filho e tutor (Betrever) de A, a substituigio da alimentagio por ché, 0 que deter- minaria a morte de A em cerca de duas a trés semanas. Em resposta a pergunta de E M assegurou que 0 procedimento era juridicamente correcto. Depois de ponderar durante dois meses — e recordando que havia cerca de 8-10 anos A, ao assistir a uma reportagem na televisdo sobre a morte de pessoas com incapacidade profunda, tinha dito que “assim nao queria eu morrer” — F concordou com o procedimento sugerido, dando a pertinente indicagio ao lar. A direcgo do lar, que no concordava com a solu- do, suscitou a intervengio do tribunal que recusou a solugo. A morreu 9 meses depois, de edema pulmonar. 146 RPCC 14 (2008) CONSENTIMENTO_EM_DIREITO_PENAL MEDICO — O_CONSENTIMENTO _PRESUMIDO presumido a interrupgao do tratamento que mantinha viva uma pessoa em sindrome apdlico ou estado vegetativo persistente. No que fica dito nao vai coenvolvida a censura da conduta do médico, menos ainda se pretende formular um juizo sobre a respec- tiva licitude/ilicitude. Também nao esté em causa a defesa das mani- festagdes mais extremadas de hybris técnico-médica. O que se contesta s&o as virtualidades do consentimento presumido para assegurar a cor- recta superagao dos problemas. Desde logo, nado pode deixar de se sublinhar 0 equivoco — mesmo a perverséo — de avancar com solu- ges de claro recorte heterénomo para as imputar 4 autonomia da pes- soa. Acresce que, na situacg’o em causa, a paciente tinha perdido irre- versivelmente a autonomia. Ora, como pode invocar-se 0 consentimento Ppresumido, que sempre apela para a autonomia da pessoa, quando jé nao pode falar-se de autonomia? (°!) Para além disso, a fundamentago da () Em sentido convergente, MERKEL, “Tddlicher Behandlungsabbruch und mut- massliche Einwilligung bei Patienten in appalischen Syndrom”, ZStW, 107 (1995), sobretudo pp. 563 ss. MERKEL afasta frontalmente a possibilidade (I6gica, normativa € teleol6gico-axiolégica) de invocacao do consentimento presumido neste contexto. Pois, argumenta, ndo faz sentido invocar uma figura que radica e se legitima na autonomia pessoal face a “pessoas que, com toda a seguranca, nunca mais voltaro a estar na posse da sua autonomia, nem em termos préticos nem em termos juridicos” (p. 563). Ape- lar nestes casos a0 consentimento presumido representa, mais do que uma especula- ¢40 em branco, uma impossibilidade Iégica, uma espécie de variante juridica da qua- dratura do cfrculo”. Isto sem prejutzo de o autor subscrever a tese da nao punibilidade dos agentes. S6 que buscando ancorar esta tese noutra instancia e noutra construgo para prevenir o perigo de uma solugo “mascarada sob a forma de um inventado con- sentimento presumido” (p. 364). Fé-lo apelando, concretamente, para um apondera- do de interesses, propria do direito de necessidade. Um caminho que desemboca num significativo alargamento das situagdes de impunidade, quando comparado com a tese do consentimento presumido a que 0 BGH se atém. Uma consideracao das coi- sas que MERKEL procura inscrever como homenagem ao Menschenbild do nosso tempo que no consentiria “que se recorresse 20 direito penal para impor uma concepgo exclu- sivamente biologista da proteccfio da vida humana, nem que se invocassem os pard- gtafos do homicidio para obrigar a preservagao de um corpo total e irreversivelmente incapaz de sentir € cujo anterior sujeito pessoal j4 ndo existe” (p. 573). A recusa do consentimento presumido nao esté necessarimente associada & punibilidade dos agen- tes. Nao vincula, noutros termos, a solugdes como a proposta por STORR, que, a par- tir da negagao do consentimento presumido, se orienta em sentido oposto, concluindo RPCC 14 (2004) 147 MANUEL DA COSTA ANDRADE nao punibilidade do médico em nome do consentimento presumido teria necessariamente como reverso a obrigagdo de assegurar o tratamento sempre que se pudesse afirmar que tal correspoderia 4 vontade hipoté- tica do paciente. Em sintese conclusiva: néo questionamos a solugao para que apon- tam tanto a decistio do BGH como a doutrina que a apoia (©). Cremos, porém, que tera de procurar-se noutro lado o fundamento e enquadra- mento normativo. Uma ideia que, de resto, nao € estranha ao horizonte em que se move o BGH. Que, em tiltima instancia, acaba por apelar para o que designa por “representacdes axiolégicas comuns (allgemei- nen Wertvorstellungen). pela punigao generalizada dos agentes em nome da continuidade da protecco da vida humana, Cf. STorR, “Der rechtliche Rahmen fur die Entscheidung zum Therapicab- bruch”, MedR 2002, pp. 436. (®) Recorda-se que o “Kemptener-Urtel” do BGH suscitou um coro de toma- das de posigao por parte da doutrina germanica, Em geral concordantes com 2 solu- ¢40 — dissonantes sdo pelas razdes e nos sentidos apontados vozes como as de MERKEL ou STORR — os autores alemies tendem j a dispersar-se no que toca fundamentagio, Para uma referéncia mais desenvolvida, ROXIN, Strafrecht, p. 707, e Revista Brasileira de Ciéncia Criminal, pp. 23 ss.; LAUFS, “Selbstverantwortetes Ster- ben?”, NJW 1996, pp. 763 ss.; ScHOCH, NSIZ 1995, pp. 273 ss.: “Offene Fragen zur Begeenzung lebensverlingernder Massnahmen”, Hirsch—FS, pp. 693 ss.; VERREL, “Selbstbestimmungsrecht contra Lebenschutz”, JZ 1996, p. 229. 148 RPCC 14 (2004)

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