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=3 Doris Sayago Beare melt ine lie Marcel Bursztyn rua ore UnB Equipe editorial ‘Ana Flavia Magalhies Pinto + Preparacdo de originate revistio Raimunda Dias Projeto grdfico e editoragdo eletronica Jean-Frangois Tourrand: Foto da capa Flavia Rubenia Barros * Criagao da capa Heonir Soares Valentim: Finalizagdo de capa Copyright © 2004 by Doris Sayago, Jean-Francois Tourrand ¢ Marcel Burszeyn (organizadores) Impresso no Brasil Direitos exclusivos para esta edigdo: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2- Bloco C- n® 78 - Ed. OK - 2% andar 70300-500 Brasilia-DF tel: (Oxx61) 226 6874 fax: (Oxx61) 225 5611 editora@unb.br ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagio poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagao por esctito da Editora, Ficha catalogréfica elaborada pe Biblioteca Central da Universidade de Brasilia AtmazOnia: cenas e cenérios / Doris Sayago, A489 Jean-Francois Tourrand, Marcel Bursztyn (organizadores). — Brasflia ; Universidade de Brasilia, 2004. 382p. ISBN 85-230-0750-4 1. Amaz6nia-Ameérica do Sul. 2. Amaz6nia Legal-América do Sul. I. Sayago, Doris, Il. Tourrand, Jean-Francois. II]. Bursztyn, Marcel. CDU- 908(811) Pesos e medidas da Amazdénia Hervé Théry Antes de iniciar o debate sobre os possfveis cendrios da Amaz6nia, algumas imagens realizadas a partir de indicadores estatisticos podem ajudar a situd-la melhor dentro do Brasil: es- tas mostram que a AmazOnia ainda tem um peso muito reduzido no conjunto do pais. Porém, as transformagées recentes que a afetaram e 0 surgimento de novos eixos e de novas redes, ao mesmo tempo em que diferenciam as regides que a compdem, mudam também a sua relagdo com o resto do pais: todas as medidas da regidio esto mudando. * Uma selecdo de indicadores de varias ordens (figura 1) mostra a clara defasagem existente entre a superficie ocupada pela Amaz6nia € seus pesos econdmico e social: se ela representa 60% da superficie do Brasil, seu PIB nao passa de 5% do PIB nacio- nal, retine apenas 10% da populacio urbana e 12% da popula- (o toral do pats, «um ponee mais 14% — dos migrantes recen- tes, das estradas, do ntimero de municfpios. O tinico indicador, pouco invejével, para o qual a Amaz6nia supera sua quota de territério € o ntimero de mortos em conflitos fundiarios... + Em termos de populagéo, a Amaz6nia Legal continua sendo a parte menos povoada do pais: mesmo a regiao ganhando 13 milhdes de habitantes desde 1970 (ou seja, aumentou 172% enquanto o pais aumentou 82%), continua representando ape- nas um pouco mais de 12% do total (contra 8% em 1970), e as densidades continuam baixissimas: a Amaz6nia Legal sé tem 4,18 habitantes por km?, e o Amazonas, 1,83 habitantes por km?, en- Prefaicio Figura 1 Aparticipagao da Amazénia Pia Telefones, Populardo urbane Etotorado Populaaio Mig 18 Esrodas Municipios do foal nacional Forse. PEA, Entre ‘enrac03 quanto a densidade nacional é de 20 hab./km*. A figura 2 con- trasta claramente as massas de populagao do Sudeste-Sul com as poueas concentragées que se alinham na Amazénia ao longo dos rios e — cada vez mais — das estradas e das capitais. A Amaz6nia continua sendo, portanto, a grande reserva de espago do pats, a sua tltima fronteira de migragao e de expansao. * Usando um eritério mais qualitativo, o ntimero de dou- tores e pesquisadores declarados ao CNPq, a Amazénia tam- bém aparece numa situagao dificil: com 3,8% dos pesquisadores e 2,7% dos pesquisadores doutores (indicadores para os quais 0 es- tado de Sao Paulo representa respectivamente 29,7% e 34,7% do total nacional), a Amaz6nia é a tiltima colocada das cinco regides Cenase cendrios | 10 Pesos e medidas da Amaz6nia Figura 2 Populagdo da Amazénia Legal e do Brasil em 2000 Populagio ‘unicpal em 2000 10.406 200, — 5.950840 : 5000 [OD mazda tga brasileiras, um fato que claramente pesara sobre o seu futuro, uma vez que a formacao de elites regionais é um requisito para 0 desenvolvimento sustentavel (ver figura 3). Porém, a Amaz6nia esté mudando, principalmente por meio dos efeitos produzidos pelas rodovias, que permitiram a chegada de migrantes vindos de outras regiées, além de varios outros tipos de efeitos, alguns claramente positivos, outros nem tanto. A cons: 11 | Cenase cenarios Prefacio Pesos e medidas da Amazénia Figura 3 Figura 4 Eixos de ontem, de hoje e de amanha Pesquisadores ‘Numero de AAmazénia said —. doutores ae cer ose pee Diplomas dos. pesquisadores: Perioda =) 1100-100 semen, Anos 1960 > 081970 > Ares 2000 272 eHT2003 trugdo dessas rodovias — mas também a melhoria das hidrovias e das redes de telecomunicagées — est4 mudando profundamente a situagao da Amaz6nia, econdmica e estrategicamente: apesar de todos os seus atrasos, pode-se achar nessa mudanga um novo impeto (ver figura 4). Durante séculos, a Amaz6nia estruturou-se em fungao dos trios, e os pontos nodais eram cidades situadas em confluén- cias. Com a construgao das grandes estradas, nos anos 1970, ‘Cenas e cendrios Cenas e cenarios 12 Prefiicio outros eixos e outros pontos nodais apareceram, alguns dos quais eram cidades A beira-rio, outros nado. Dessa confrontagao, nas- ceu uma tensdo que ainda hoje altera as hierarquias e as dreas de influéncia. Resumindo cinco séculos de histéria numa imagem, pode- se mostrar os deslocamentos do principal eixo de propagagio inovagao na tegiao e o que foram e o que serao provavelmente os futuros “pontos quentes” da tegiao: Da chegada dos primeiros colonos europeus até os anos 1960 — de longe o perfodo mais longo na histéria plurissecular da Amazénia —, 0 eixo principal de pe- netra¢do foi o Rio Amazonas ¢ seus afluentes, sempre percorridos da foz para a montante. Nos anos 1960, o eixo principal passou a ser uma di- reco sul-norte, ao longo da rodovia Brasflia-Belém. Nos anos 1970, o fluxo principal ia do leste para o este, ou do sudeste para o noroeste, ao longo das novas rodovias, BR-364 e Transamaz6nica. Nos anos 1980 € no inicio dos anos 1990, por falta de uma politica amaz6nica bem-definida, diversas dire- Ges de propagacao misturam-se (sul-norte, oeste-leste, leste-oeste), uma indecisdo que reflete bem as incer- tezas dessa “década perdida”. Finalmente se retoma hoje uma tendéncia a um movi- mento sul—norte, ao longo do eixo Araguaia~Tocantins, da BR-163 e dos eixos Manaus—Venezuela e Amapé— Guiana, Entre os fatores mais susceptiveis de produzir efeitos pro- fundos na regido esta a abertura de ligacdes com os paises vizi- Cenas e cenfrios | 14 Pesos e medidasda Amaz6nia ~__ nhos, até entio praticamente impossfveis. Dos vizinhos amaz6ni- cos do Brasil, 6. a Colémbia nao tem hoje um acesso rodoviario (e nao terd téo cedo se a atual situacdo politico-militar se prolon- gar). Vale notar que os eixos imaginados ha um pouco mais de yinte anos, pelos tedricos da geopolitica militar, foram quase to- dos realizados, ainda que o contexto tenha mudado radicalmen- te, uma vez que no se trata mais de conquista e de satelitizagao, mas de cooperagio transfronteirica e de integragao continental. Obviamente, essa transformacao néo altera inteiramente a regidio, tendo efeitos seletivos e discriminantes: alguns cixos foram privilegiados; as infra-estruturas planificadas e financia- das pelo Programa Brasil em Agdo de 1996-1998 concentram-se em boa parte ao longo de dois eixos, um deles norte-sul, 0 Araguaia—Tocantins e 0 outro, aquele que liga, via Cuiabé, Manaus e Boa Vista, Sao Paulo (e portanto o Mercosul) ao Caribe. Os investimentos consentidos estado configurando um novo eixo continental que oferece uma alternativa — passando pelo territé- tio brasileiro — ao principal eixo norte-sul atual, a Carretera Panamericana, que leva da Tierra del Fuego ao Panama. A Amaz6nia est4, portanto, vivendo um momento de mu- tages, que transforma até as suas dimensdes. Nao no sistema métrico, no qual se mantém os milhdes de metros ctibicos de gua, de quilometros quadrados de florestas e de espécies ainda desco- nhecidas, que fazem dela uma das principais zonas de biodiversidade do planeta. Mas na métrica mais sutil do peso demografico, eco- némico e social, na topologia dos transportes, em que o tempo de percurso conta mais do que o espago bruto, ¢ as ligag6es efetivas mais do que as proximidades. E nesse contexto novo que se pode apreciar plenamente as cenas e os cendrios da Amazénia dos tios, das estradas, das regides ¢ das politicas que formam a trae ma deste livro. 15 | Cenase cenérios Introdugéo Um olhar sobre a Amaz6nia: das cenas aos cenarios Doris Sayago Jean-Francois “Tourrand . Marcel Bursztyn Desde 0 inicio da colonizagio, a Amaz6nia brasileira tem sido alvo de uma acio sistemdtica de extragao de riquezas, que se configurou em diferentes modos de produgao de organizagao social e politica. Um trago relevante que marca as diferentes ati- vidades que prevaleceram em momentos distintos é, em geral, o nao-encerramento de cada uma delas. O que houve, sim, foi uma alternancia de hegemonia. Assim, 0 chamado das drogas do Ser- tdo, que muito marcou 0 perfodo dominado pelos jesuitas e a épo- ca da colénia até o fim do século XIX, esta ainda vigente. Da mesma forma, o ciclo da borracha, que comegou na segunda década do século XIX e teve seu apogeu na primeira década do século XX, no se encerrou, embora tenha perdido boa parte de seu vigor e, sobretudo, tenha passado a um plano bem mais se- cundério no panorama da economia regional. A castanha, cuja extragio j4 teve dias mais florescentes, segue como uma atividade presente na teia de fontes mercantis que asseguram a subsisténcia de populagées ribeitinhas, juntamente com a pesca, @ cagaea exploragiio de outras frutas que se destinam ao mercado (como 0 agaf no Paré ¢ a améndoa do babagu no Maranhao). Na verdade, para se assinalar atividades econ6micas que de fato foram ciclicas ¢ que, portanto, se esgotaram, sera preciso nos reportarmos a periodos mais recentes. Af, entdo, encontrares mos 0 garimpo, alguns pdlos mineradores e, até mesmo, inddstrias. Introdugao Jé temos aqui uma primeira conclusao: as atividades tradi- cionais séo mais duradouras! Ou, em outras palavras, as modernidades sfio efémeras. Analogamente, ao se estudar 0 padrao de ocupagao do es- paco geogrifico da regifo, fica muito claro que ao longo de sécu- los os nticleos de povoamento sempre obedeceram as caracteristi- cas impostas pela natureza. Os rios serviam de vias de interiorizagio eas terras mais afastadas das margens ficavam despovoadas. Até hoje, uma boa parte da produgao do extrativismo (borracha, cas- tanha, agaf, etc.) € comercializada pelos rios, tanto em nivel local como regional. Assim, pode-se associar o circuito da produgao tradicional como caracteristica da Amaxénia dos rios, pela relagio estreita entre a economia local e a rede fluvial de comunicagées. Se a Amaxénia dos rios foi o padrao que marcou mais de quatro séculos de ocupagdo européia, a coisa comega a mudar de figura nas trés ultimas décadas do século XX. A era desenvol- yimentista, inaugurada ainda nos anos 1950, no governo de Jus- celino Kubitschek, chega de fato 4 Amaz6nia apés a retomada da dinamica da economia no final da década de 1960, j4 no regime militar, Uma série de fatores convergiam para a promogio de um. artojado projeto de “conquista” da regido, reproduzindo na escala nacional um fendmeno semelhante ao que ocorria também nos ou- tros pafses da bacia amaz6nica. Em nosso caso, merece referénci: © Na dimensio geopolitica, a doutrina de seguranca nacional justificava uma atengio especial, que se resumia na idéia de integracdo daquele vasto territério ao_ resto do pais. Na esfera demografica, excedentes populacionais das regides mais populosas convertiam-se em um duplo “risco” — as mi- gragdes para as cidades, onde crescia a oposigéo ao regime Cenas e cendrios | 18 Cenas e cendrios militar, e a latente demanda por terras para a pequena pror dugio, que alteraria o equiltbrio politico vigente. No nivel econémico, o Brasil vivia um momento de euforia que se traduzia em grandes obras de infraestrutura; estradas eram abertas, as telecomunicag6es espalhavam-se pelo terri- trio nacional, usinas hidrelétricas eram construfdas. Aos poucos, também na organizagdo politico-territorial mudangas seriam promovidas, visando a servir de contraponto ao avango da oposigéo consentida, Novos municfpios seriam criados, antigos territérios federais seriam transformados em estados e logo estados seriam subdivididos. No quadro internacional, 0 perfodo posterior 4 crise do petré- leo de 1973 torna possfvel a disponibilidade de liquidez (petrodélares) para empréstimos sob baixas taxas de juros. Com isso, organismos como o Banco Mundial passaram a oferecer um volume substancial de capital para obras ptiblicas. Um eixo de politicas ptiblicas, entre tantas vertentes de intervengdio governamental na Amazénia, teré papel de destaque a partir da década de 1970: a colonizagao rural. Grandes levas de agricultotes vindos de todos os cantos do pais foram sistematica- mente transferidas para a regido, dentro do espirito da integragdo nacional, da ocupagio das fronteiras. Despreparados para a vida na floresta, os novos colonos reproduziam e adaptavam ao novo meio as mesmas praticas que conheciam em suas localidades de origem. £ evidente que o desmatamento seria um efeito inevité- vel, uma vez que o sistema de corte e queima sempre foi adotado para implantar atividades agricolas em ecossistema florestal. Além disso, na escala da grande produgio, incentivos fiscais e financia- mentos irrecusdveis serviam de forte atrativo a uma verdadeira revolugdo na ordem fundifria regional. Grandes glebas passaram. 19 | Cenase cenarios Introdugio _ ase constituir em propriedade de grupos econémicos do sul e su- deste do pais ¢ algumas delas logo passaram & produgao para o mercado. O processo foi similar na agricultura familiar. Um grande contingente de pequenos colonos foi atrafdo pela possibilidade de ter acesso a terra. As proprias regras da colonizagao promovida pelo poder ptiblico e iniciada pela abervura de estradas induziam a luta do produtor, grande e pequeno, pela produgao agropecudria e contra a mata. E nesse sentido que a denominagao Amaxénia das estradas é adotada para caracterizar essa fase de avango da fronteira agricola, que comegou na segunda parte do século XX. Ressalte-se que o mesmo processo aconteceu quase da mesma for- ma nos outros pafses amaz6nicos. As atividades econémicas da Amaxénia das estradas sao a) a exploragao florestal, que abre espago & agricultura da maio- ria das frentes pioneiras; b) a pecudria bovina, que ocupa parte da 4rea desmatada; c) a lavoura branca (arroz, milho, feijao ¢ outros) como cultura de abertura do plantio de pastagem; e d) as culturas perenes (cacau, pimenta-do-reino, café), quando € pos- sivel, de acordo com a qualidade do solo e a distribuigdo da pluviometria. Nos anos 1990, a produgdo leiteira desenvolveu- se bastante no contexto da agricultura familiar. A chegada da agroindtistria leiteira est criando novos pélos de atividade para esse setor, Mais recentemente, a cultura mecanizada de graos (arroz, milho e soja) comegou a entrar na Amaz6nia, primeiro nas 4reas intermediarias entre os ecossistemas amazOnicos e de cerrados, localizadas ao longo das grandes estradas (Belém- Brasilia, Cuibé-Santarém, Cuiaba-Porto Velho e Transamazénica), que servem para o abastecimento em insumos e a comercializagao dos produtos. Um balango rapido de quatro décadas da Amazénia das estradas 4 aponta importantes transformagée® Do ponto de vi Cenas ¢ cendrios | 20 Cenase cendrios ta ecoldgico, quase 15% do espacgo amazénico foi transformado em 4rea agricola (ver www.inpe.br). O fracionamento dos ecossistemas naturais ¢ a exploragio florestal envolvem uma su- perficie bem maior, o que ultrapassa amplamente o contexto das Areas desmatadas. Do ponto de vista social, a maioria dos colonos considera ter melhorado suas condigées de vida, e os que se decepcionaram com a colonizagéio no estéo mais presentes para testemunhar, pois j4 voltaram para as suas regides de origem ou terminaram se somando ao contingente de favelados nos cen- tros urbanos. Do ponto de vista agricola, os novos ciclos dominam as atividades tradicionais que permanecem, como é 0 caso do extrativismo e da mandioca, ou ressurgem com regularidade em alguns lugares, como, por exemplo, o garimpo. Uma constatagao € que, nas frentes pioneiras, a floresta é entendida pelos novos atores locais como um capital dispontvel para ser transformado em renda, pela madeira nela contida. Na frente pioneira € mais rentavel cortar e queimar uma parcela florestal e, em seguida, plantar do que produzir numa parcela j4 desmatada, onde geral- mente é implantada pastagem. Isso explica as praticas tipicas de contextos onde a terra é barata e a natureza farta, que geram desmatamento e, na sua esteira, atividades mais extensivas do que intensivas. Essa tem sido a dinamica do avanco da frente pioneira no “arco de desmatamento” e ao longo dos eixos rodoviarios. A partir da ultima década do século XX, as herangas das diversas épocas e sistemas sucessivos combinam-se, dando origem a novas estruturas regionais mais complexas do que os esquemas relativamente simples da Amazénia dos rios e da Amaz6nia das estradas. Por exemplo, as redes de transporte integram os eixos fluviais e rodoviarios em sistemas multimodais, que permitem uma maior capilaridade na ocupacao do territério por atividades vole 21 | Cenase cendrios Introdugio ee —————EEEEEE tadas ao mercado. Da mesma maneita, circuitos de mercado locais aparecem e as relagdes cidade-campo consolidam-se. Pe- quenos povoamentos passaram, em menos de trinta anos, a ci- dades de varias dezenas de milhares de habitantes. Vantagens comparativas ¢ peculiaridades locais vao conformando um mo- saico de atividades produtivas, no qual se destacam algumas atividades, como é 0 caso das novas bacias leiteiras. Essas novas dindmicas geram sinergias que podem favorecer localmente mudangas técnicas e iniciar processos de intensificagio agricola. Com as novas geragées de atores, filhos de imigrantes vin- dos de outras regides, comegam a surgit identidades culturais nas freas de fronteira de ocupagao das tiltimas décadas. A visio simplificada de fronteira agricola comega a evoluir para uma no- Gio de nova regiao, em que se constituem contextos diferenciados e com identidades proprias. Um indicador politico dessa evolugao € 0 movimento de emancipagio e formacao de novos estados (Amapé, Roraima e Tocantins nos anos 1980, Carajés ¢ Tapajés nos proximos anos). Essa nova configuragao geopolitica e huma- na serviu de referéncia para a definigao dos programas federais da tiltima década do século XX, como 0 “Brasil em agdo” e o “Avan- cat Brasil”. Os eixos econdmicos propostos levam, em suas tespec- tivas bases territoriais, as novas conformages de mercado agrico- la, qualidade de vida, fluxos migrat6rios, tecnologias de producio, mercados fundiérios, fluxos financeiros, inserg4o nos circuitos regionais, nacionais e internacionais. As dinamicas citadas inscrevem-se e devem ser analisadas nesses novos con- textos. Os modos de exploragao das florestas, os sistemas de produgao agricola, as cadeias, as formas de uso da terra variam de um desses novos contextos regionais pata outro, fazendo que, no conjunto, se verifiquem ritmos diferenciados da dinamica de intervengao humana no territério, ao que chamamos Ama- zonia das regides. Cenase cendrios | 22 Cenas e cendtios ne Uma mudanga profunda do espago amaz6nico tera im- pacto na escala mundial. Um dos grandes desafios €, nesse sen- tido, a adogao de padrées de colonizagéio que sejam sustenté- veis, 0 qué implica a definigao de sistemas de produgao também sustent4veis. Tal conduta deve ser extensiva as populagées tra- dicionais (comunidades indigenas e caboclas), que sao susceti- veis ao efeito de demonstrago das praticas e métodos adotados pelos colonos. O proceso de colonizagao jé é bem conhecido e pode ser sintetizado no conjunto complexo de cadeias e ciclos produtivos integrados, envolvendo varios grupos sociais. No universo das cadeias, destacam-se principalmente as cadeias produtivas men- cionadas, mas também as cadeias politicas envolvendo represen- tantes eleitos nas diversas unidades administrativas (municipal, regional, estadual e federal), e outras cadeias de interesses, como aquelas das instituigdes socioprofissionais (sindicatos, federacoes, associacbes, etc.), das igrejas e das diversas entidades da sociedade civil. Como ciclos, ressaltam-se atividades produtivas extrativistas e agricolas (drogas do sertao, borracha, madeira, pecuatia, cultu- ras perenes e, mais recentemente, leite ¢ soja), a mineragao (ouro, ferro, aluminio, bauxita, manganés e outros), a exploragéo de petrdleo e gés natural, a construgao das hidrelétricas, etc. O ca- rater ciclico estende-se as esferas institucional, social e ambiental. Se no infcio da intensificagao da ocupagao da regiao prevaleciam as instituigGes do Estado, agora ha também uma notavel presenga de organizagSes nao-governamentais atuantes em nivel local, re- gional, estadual e federal. A predominancia da grande produgao no cenério regional, que foi marcante nos anos 1970 e 1980, passa a partilhar espago com a agricultura familiar. A questao indigena ganhou destaque nas politicas publicas, da mesma for ma que os instrumentos de regulagao voltados & gestio ambiental, 23 | Cenase cenarios i Introdugio No Ambito dos empréstimos internacionais, a determindncia das taxas de rentabilidade, caracterfstica da época dos financiamen- tos aos grandes programas governamentais para a regio, passa a ser relativizada pela atengao aos critérios do desenvolvimento sustentavel. Esses novos elementos que dao conformagao ao entrela- camento das cadeias e dos ciclos apontam no sentido de que uma nova ¢ pulsante sociedade est se construindo, preenchendo os diversos espacos vazios da Amazénia, nas esferas fisica, espa- cial, social, polftica, institucional, cultural, religiosa e econé- mica. A organizagdo dessas variag esferas, em diversos lugares, resulta de medidas de politicas ptiblicas e ages privadas, o que gera novos ciclos de polfticas que substituem os anteriores. E nesse sentido que, paralelamente A integragio da Amaz6nia dos rios com a Amaz6nia das estradas e & configuragio de uma Amaxénia das regides, identifica-se a Amazénia das politicas, que se reflete de maneira transversal. Em trés décadas, a Amaz6nia experimentou mais trans- formagées em seu ambiente do que nos quatro séculos prece- dentes. Agora, com o inicio do novo século, entra em evidéncia © imperativo de se buscar um novo modelo para a regiaio. Todo o conjunto de circunstancias que explicaram o modo de ocupa- ao predatério da Amaz6nia parece entrar numa fase de gran- des mudangas, cabendo destacar: © A abundancia de capitais para empréstimos internacionais converteu-se em grave divida externa. Os juros agora séo elevados e a capacidade de endividamento do pais € um fator limitante. Por outro lado, o mesmo Banco Mundial, que antes emprestava sob critérios estritamente técnicos ¢ econémicos, agora impée rigorosas restrigdes ambientais a seus empreendimentos, respondendo & cobranga da socie- dade nos paises onde sao captados os seus recursos. Cenase cenarios | 24 Cenas e cendrios * Por outro lado, empreendedores agroindustriais (nacionais e internacionais) estado sendo atraidos para a Amazdnia, aproveitando o baixo prego da terra; 0 baixo custo da mao- de-obra; 0 baixo custo de produgdo, que resulta da grande quantidade de chuva e de luz; entre outras vantagens. Essa presenga € marcante, especialmente, no setor do reflores- tamento e da produgao de madeira; na produgdo de grios, com destaque para a soja e, em menor escala, para 0 arroz eo milho; e na agroindistria bovina (frigorfficos e laticfnios) O excedente demografico nacional no meio rural atualmente nfo € mais uma pressio que leva a fluxos migratérios no rumo da fronteira amaz6nica. Pequenos agricultores sem-terra lu- tam para permanecer em suas origens territoriais, no quadro de uma reforma agréria que por muito tempo era adiada. Pa- ralelamente, diversos grupos de sem-terras da prépria regifio manifestam-se de forma mais ativa, ocupando propriedades abandonadas ou improdutivas, configurando novos confli- tos. A propria dinamica demogréfica da Amaz6nia j4 confi- gura um movimento de deslocamento e ocupagao de novas fronteiras no rumo norte, tendendo a ultrapassar os limites do territério brasileiro. As condigées de transporte podem, por outro lado, tornar viavel a atragio de trabalhadores dos pafses vizinhos, na busca de melhores condig6es de vida. Os tempos atuais so adversos as praticas de incentivos fiscais ou a créditos com juros subsidiados. Demandas urgentes de infra-estrutura nas dreas mais densamente povoadas, espe- cialmente nos centros urbanos, impedem a alocagao de recur- 0s na ampliacio da malha vidria na fronteira agricola. Com. ‘mais de 80% da populagao nacional vivendo em aglomeragées urbanas, 0 eixo das prioridades das politicas ptiblicas desloca- 8 para as cidades (até mesmo para as da Amaz6nia). 25 | Cenas e cendrios Introdugao © A participagéo dos investimentos governamentais acaba sendo eclipsada pelos financiamentos bancérios. Osalto tecnoldgico que aconteceu em diversos setores agropecudrios brasilei- ros na tiltima década tornou atrativos os empréstimos ban- cArios, tanto privados como piblicos. Assim, em menos de cinco anos, o Banco da Amazénia S.A. (Basa) financiou vArias centenas de sistemas de manejo intensivo de pasta- gem com bom retorno bancario. Nao menos importante é 0 novo contexto que serve de mol- dura para 0 processo de decisao em politicas ptiblicas. Dife- rentemente dos anos em que foram empreendidos os progra- mas governamentais que atualmente respondem por uma boa parcela da degradacao ambiental da Amaz6nia, no momento as decisées obedecem a um complexo conjunto de fatores. Niio so apenas os aspectos econémicos ou os interesses po- liticos imediatos que determinam. Uma legislagdo ambiental cada vez mais substantiva estabelece que os projetos este- jam devidamente enquadrados ao sistema de licenciamento vigente, sob a pena de complicagées na alcgada da justiga. Por outro lado, aos antigos centralismo e autoritarismo com que se praticavam as decisées do planejamento governamental, hé hoje uma crescente participagao dos atores sociais inte- ressados em cada questo. O avango da democracia participativa, paralelamente ao lento, mas constante, ama- durecimento da democracia representativa, surge como um importante contraponto € filtro, assegurando maior grau de acerto, mesmo que por vezes implique morosidade. 6 tempo de reunir conhecimentos ¢ experiéncias no sen- tido de instruir novas condutas em matéria de politicas publica para a Amaz6nia. Sabemos dos males provocados pelas estraté- Cenase cenarios | 26 Cenas e cendrios gias equivocadas de desenvolvimento. Temos plena conselén- cia de que o princfpio da sustentabilidade deve se impor como um atributo indissocidvel do desenvolvimento. O desafio agora é juntar partes de um intrincado quebra-cabegas. Dentro desse espfrito, o Centro de Desenvolvimento Sus- tentével da Universidade de Brasilia (CDS-UnB) concebeu 0 Programa Monitoramento Estratégico das Transformagées mbientais (Meta), que tem um de seus focos na Regiio Amaz6- nica. A idéia central é partir da identificagao de casos tfpicos de intervenges humanas que provocam efeitos sobre o meio ambiente stradas, hidrelétricas, mineragio, extragdo madeireira, pecud- teferenciados a contextos ecoldgicos, torna-se possivel inferir § possiveis resultados da reprodugao do mesmo padrao em outros ais que tenham caracterfsticas semelhantes ou compardveis. A presente obra constitui um esforgo no sentido de mostrar mas relevantes para o entendimento da complexa questao ama- Marios possiveis. Assim procedendo, pretende-se langar elemen- de referéncia para a definigéio de politicas publicas mais con- mites com o desenvolvimento sustentavel. A obra est4 organizada em quatro partes: a Amazénia dos is para a identificagdo de cendrios/tendéncias. Ao final, a tf- de posfdcio, apresenta-se um texto no qual é tragado um. Os trabalhos aqui reunidos sao 0 resultado de uma sele- 9 de trabalhos expressivos apresentados nas 1* Jornadas Onicas, realizadas em junho de 2002. O mérito dessa sele- 27 | Cenas e cenarios Introdugao cdo se-deve, sem diivida, a disposigao de cooperagio dos se- guintes pareceristas externos: Dra. Maria Conceicio d’Incéo (Unicamp/MPEG), Dra. Maria de Nazaré Angelo Menezes (Ufpa), Dra Marianne Schmink (Center for Latin American Studies/University of Florida), Dra. Maria Amalia Gusmao Martins (Embrapa/DF) e Dr. Roberto Muniz B. de Carvalho (CNPq). Um grande ntimero de instituigdes contribuiu para que esta obra se materializasse. Merece referéncia a Universidade de Brasilia (UnB), 0 Centro Nacional de Pesquisa (CNPq), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecudria (Embrapa Amaz6- nia Oriental), a Universidade Federal do Paré (Ufpa), a Universi- dade de $0 Paulo (USP), 0 Centre de Coopération Internacionale em Recherche Agronomique pour le Développement (Cirad-Fran- ca), a University of Florida (UFL-USA), o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS-France) e 0 Center for Interna- cional Forestry Research (Cifor-USA). Cenas ¢ cenarios | 28

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