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——— = = - = = ete etc ees ocC Cece 1 intuito de oferecer ao leitor uma Pee one rer ttcry Coane es eee ere ee Crecente erent resect Ree aCe ae Re CREA bojo dese processo foi constituide um feces emer CRO IeC Cam or ie ere more tte (tte Italiana, que se tornou um ator estratégico Geter errata Mewes stents cot Ree te ean etre Pree eee eee eieeeremr eee omen Ceara Seen eee oe re tar iolénciac exclusao social Visite-nos em |_www.garamond.com.br = Ny Se iS i) i Franco Basaglia BS OR lel OS SELECIONADOS em satide mental e reforma psiquidtrica Garamond » . . » . » e ® ° e e ® ® ® e e e * ° ° a ° ° ° ° * o e e e e e besa) Cooxoeacho Maria Alzira Bram Lemos Conseino EprroriaL Bertha K. Becker Candido Mendes Cristovam Buargue Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislan Dowbor Pierre Salama Colegae insoipa roe Paulo Amarante ALcooLISMO NO TreanaLto Magda Vaissman CCutnica 2 Movinteno. por uma sociedade sem manicdmios Ana Marta Lobosque Exrrnityerss pa Lovcura ‘Ana Marta Labosque Franco Basaglia ESCRITOS SELECIONADOS em satide mental e reforma psiquidtrica Paulo Amarante Tradugto Joana Angélica d’Avila Melo Copyright © 2005 by Franco Basaglia Direitos cedidos para esta ediglo a ra Garamond Ltda Diagramagao Luiz Oliveira Capa Estidio Garamond Revisio técnica Sandra Aréca Preparacio de originais Marco Schneider Revisio Argemiro Figueiredo Baise Basaglia, Franco, 1924 Escritos sclecionados em sade mental ¢ reforma psiquiatrica / Franco Basaglia ; organizagio Paulo Amarante ; tradugdo Joana Angélica d'Avila Melo = Rio de Janeiro + Garamond, 2005 4336p. - (Garamond Universitiria ; Loueura XI) ISBN 85-7617-087-4 1. Hospitais psiquidt siquiatria social. 3. Politica de satide mental 4. Servigos de saide menial. 5. Psiquiatria. |. Amarante, Paulo. 11. Titulo, It Série. 05-1862 cpp 362.2 616.8 Todos os direitos reservados. A reproduc nlio-autorizada desta publicagio, por qualquer meio, seja total ou pareial, constitui violagio da Lei n® 9.610098. Sumario Apresentagao - Paulo Amarante. Prefiicio - Ernesto Venturini A destrui¢o do hospital psiquiatrico como lugar de institucionalizagaio: Mortificago ¢ liberdede do “espago fechado” Um protlema de psiquiatria institucional: A exclusiio como categoria sociopsiquistrica Apresentagio a Che cos’é la psichiatria? ituig e psicopatolégicas em psiquiatria instit Corpo e in: o - Consider: As instituigdes da violéncia .. Introduglio a Asylums Carta de Nova York - © doente artificial ‘A doenga e seu duplo: Propostas criticas sobre o problema do desvio Amaioria desviante .. A.utopie da realidade O cireuito do controle: do manicémio & descentralizagao psiquiatrica Loucura/delirio Lei e ps:quiatria: Para uma andllise das normas no campo psiquiatrico Preficio a J! giardino dei gelsi 161 187 .. 225 LDVRTTTITULETELILILULLULLIVALTTVAIVS PLPPEPELELESEELELEE ESTES EFFEEEEEES Apresentagao Esta coletanea foi elaborada com o intuito de oferecer 20 leitor uma selezio das principais produgdes de Franco Basaglia, o psiqui- atra que liderou 0 mais importante processo de reforma psiquiditriea ¢ satide mental. Estou me referindo & experiéncia iniciada em 1961, em Gorizia ¢ posteriormente em Trieste, cidades situadas no norte da Itélia, e que foi desdobrada em muitas outras cidades e paises, sendo atzalmente uma referéncia internacional reconhecida tanto pela comunidade ciemtifies quanto pela Organizago Mundial da Satide. No bojo desse processo foi constituido um importante mo- vimento social, denominado Psiquiatria Demoeritica Italiana, que se tormou um ator estratégico e fundamental na Tuta pela extingtio dos manicmios na Itélia ¢, posteriormente, base para muitos ou- tros movimentos, em diversas partes do mundo, que se dedicaram ‘4 esse mesmo projeto: o fim da instituigao psiquidtrica como lugar de violéncia ¢ exclusao social. Ainda nese contexto, foi aprovada a Lei 180,em 13 de maio de 1978, que determinow o fim dos manics- mios em todo o territério italiano e consolidou 0 processo de cria- ‘40 de novas priticas de atengo psicossocial ¢ de satide mental. Essa lei ficou conhecida como a Let Basaglia. Os textos aqui reunidos esto dispostos em ordem cronoldgica, a fim de dar ao leitor uma visio histérica € evolutiva dessa trajet6- ria, A coletinea comega com “A destruigdo do hospital psiquidtrico como lugar de institucionalizagio”, apresentado originalmente no I Congresso Internacional de Psiquiatria Social em Londres, no ano 7 de 1964. Na organizagao e classifi agiio de sua prépria obra," Basaglia Se refere a esse texto como o marco de uma nova etapa em sua Wajetéria, que ele denomina de fase da negagato institucional ¢ é centrada na “negagdo da psiquiatria enquanto ideologia”, na medida em que a psiquiatria, afirma Basaglia, “ vas teéricas e respostas priticas a uma realidade que a prépria cién- cia contribui para produzit™ (1982: XXID) fe texto refletem 0 profundo impacto que representou 0 contato de Basaglia com a assisténcia psiquiatrica, apés um perfodo de vida académica, por certo distanciada tende a fornecer juistificati- AS idéias expressas nes. = como ocorria em geral com as clinicas universitérias — da realidade cotidiana da assisténcia piblica italiana, A inf ‘cia de Erwing Goftman ¢ visivel logo no subtitulo do escrito (“Mortificasao e liberdade no espago fechado”), no qual Surge a nogo de mortificagdo, conceito marcante em Asylum que serd também muito importante p: rv.a démarche basagliana, Outra referencia tedrica importante presente nesse texto, e que confirma ‘hiptese le que estamos assistindo a uma ruptura na obra de Franco Basaglia, 6a referéncia a Histéria da loucura na Idade Classica, de Michel Foucault, certamente uma bibliografia pouca conhecida ¢ Utilizada nas produgdes académicas italianas de entio, Enfim, “A destruigao do hospital psiquidtrico” ¢ também importante por de Imarear 0 inicio do fim da experiéncia da “comunidade terapéutica”, que inicialmente estava sendo implantada em Gori . quando Basaglia ainda acreditava na possibilidade de reformar 0 hospital psiquidtri- ©0, de fazer do manicémio um lugar de cura, © segundo texto que selecionamos para esta coletinea é “Um problema de psiquiatria institucional”, escrito em 1966, em cola- Basaglia Seriti 1 (1953-1968), Datla pstchiatria fenomenelogiea alt esperienza ali Gorizia. Einaudi: Torine, 1981. No ano sequinte Tot publics do Basaglia Seri 11 (1964-1980). Dall'apertura del maniconte cil uova legge sul'essistenza psichiairica, Os dois volumes Toran ereavng dos por Franca Ongaro Hasagha, boraszo com Franca Ongaro Basaglia, O texto é significativo tanto pelas incursdes na antropologia, sociologia ¢ filosofia das ciéncias, quante pela introdugzo do conceito de institucionalizagao, seja na versilode Burton, como “neurose institucional”, seja na de Goffinan, como “institucionalizagio total”, algo que sempre se revela como uma forma de regressdo, que se sabrepde é doenca original em indi vidos 76 psiquicamente frigeis ov doentes, gracas ao proceso de aniguilamento e destruicdo individual a que sao submetidos pela vida no asilo. Nesse texto, pela primeira vez, Basaglia adota o prin- cipio epistemol6gico da épocke, introduzido pelo fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, sugerindo que a doenga mental seja colocada entre parénteses. Para Basaglia, a psiquiatria ps a pessoa entre parénteses para se ocupat de uma doenca abstrata, simbélica e, enquanto tal, ideotégica. Seria entao necessirio colo. car a doenga mental entre parénteses para que possamos nos ocu- Par da pessoa, do doente real em suas circunstincias e experiéncias subjetivas ¢ objetivas A “Apresentagdo a Che cos’é la psichiatria?™ foi escrita en. 1967, partindo de uma provoeagio que Basaglia faz a si préprio, inspirado em O que 6a literaiura?, de Jean-Paul Sartre, em que este autor considera que ideologias sdo liberdade enquanto se fazem, opressio quando estio feitas”. Para Basaglia, essa questo exige um debate sobre a ideologia psiquidtrica, opressora ¢ fecha da em seu papel de ciéneia dogmética, que termina por produzir estigina e exelu: € no cuidado c tratamento. O texto desenvol- ve uma dura critica ao saber © a0 humanismo psiquitrico, que fracassam no enconizo com o real. E aqui Basaglia nos coloca coma dupla face do sofrimento, que a psiquiatria nega e, por isso, se afasta da realidade da pessoa: de um lado, a problemitica Psicopatolégica (dialética ¢ nao ideolégica), e, de outro, a pro- blemaitica da exclusio e do estigma LLLTTELTUITTT LTT ttatt.2000 LELELELELELLELELELELELELERDEEEEEELEEEE Em “Corpo e instituigdo”, também de 1967, aparece pela primei- ra veznos textos de saglia a fébula oriental do homem e a serpen- te, que servira de analogia, em toda a sua trajetdria, para analisar a condig0 institucional da pessoa com sofrimento mental internada nos maniedmios, em que o intemo literalmente incorpora a institui- gio, O processo de coisificagdo das pessoas, promovido pelas ins- tituigdes, & aqui detalhadamente analisado ¢ nos servird de ferra- menta permanente na luta contra todas as formas de institu- cionalizagao. Basaglia retoma e aprofunda também a estratégia da poche, de colocar a doenga mental entre parénteses, como forma de superar 0 olhar coisificante da ciéneia e reconstruir um olhar sobre as pessoas em suas experiéncias. 0 livro que ficou conhecido como o mais importante de Franco Basaglia & 4 instituigdo negada, publicado em 1968. Na verdade, ele foi 0 organizador dessa coletinea € escreveu seu capitulo cen- tral, em que relata todo o processo da experiéneia vivida por toda a sua equipe no Hospital de Gorizia. Esse capitulo, intitulado “As ins- tituiges da violencia” — e que compde a presente selegiio mente um dos mais contundentes registros e disseegdes dos pro- écerta- ‘cessos € mecanismos da instituigdo psiquidtrica, Basaglia faz so- bressair 0 papel dos técnicos nessa violencia, seja utilizando seu mandato de controle social, seja suavizando os atritos ¢ conflitos sociais no sentido de perpetuar a violencia global. Esse texto des- monta nossas pretensdes de reformar 0 hospital psiquiatrico, de acreditar que seja possivel um hospital psiquiitrico terapéutico, mesmo entre aqueles submetidos a experiéncia da comunidade te- rapéutica, ¢ consolida o princi jo de sua completa superagao. Dai a importaneia da questio antimanicomial em Basaglia, que tem sido, desde ento, uma significativa referéncia teériea ¢ pritica para a experiéneia brasileira. A importincia da negagao/superagaio manicomial se faz mais presente ainda na introdugo que Franco 10 Basagliae Franca Ongaro fizerama Asylums, 0 clissico livro de Erwing, Goffman (publicado no Brasil com o titulo de Manicémios, prisdes e conventos), A “Introdugaio” foi escrita em 1969 para a primeira edi- gio italiana do livro de Goflinan, que constituin um marco, como vvimos anteriormente, para a démarche de Basaglia. Alguns dos con- ceitos irtroduzidos por Gofiman, tais como institwiedo total, morti- ficagio to ew, carreira moral, entre outros, serio ferramentas preci- jises basaglianas em toda a sua trajetéria, sas para as ans ‘Ao término da experiéncia de Gorizia, em 1969, Basaglia foi con- vidado, como Professor Visitante, para conhecer um dos Centros de Saiide Mental Comunitaria de Nova York, onde estava ocorrendo aquela que viria a ser denominada (se bem que pelos préprios norte- americanos) a terceira revolugio psiquidtrica, Tratava-se da pro- missora experiéneia da Psiquiatria Preventiva, formulada ¢ desen- volvida por Gerald Caplan, que ameagava extinguir 0s manicémios eas enfermidades mentais. Dessa visita nasceu, naquele meso ano, um dos mais perspicazes ¢ sensiveis escritos de Franco Basaglia: “Carta de Nova York. O doente artificial”, Ali Basaglia observa que a prevengiio caplaniana serve mais para dilatar 0 campo da “doen- ga", e rfio para reduzi-lo, Além de desmontar a légica cientifica € administrativa da proposta preventiva, Basaglia desnuda suas rela- es com as estratégias de controle social das chamadas “popula- des derisco”. Foi a primeira, mais forte e mais competente critica 4 Psiquiatria Preventiva — que, paradoxalmente, ainda é uma das ais fortes referéneias ¢ fundamentos das politicas piblieas de satide mental no mundo ecidental, mesmo no Brasil, “A doenga e seu duplo” foi publicado em 1970, também com colaboragao de Franca Ongaro, ¢ tem como objeto central a critica a uma nova ideologia do desvio, isto &, a uma nova produgio incrementada pelas novas disciplinas e abordagens interdisciplinares, de mais © mais comportamentos ditos “desviantes”. O texto nos n ulverte para o processo de patologizacilo, e néio apenas médica, dos comportamentos sociais, a partir de uma profunda revisio e dis- cusso da literatura oriunda das ciéncias sociais e humanas relativa 0 tema, A nogao do duplo, inspirada em Artaud (O teatro e seu duplo) diz.respeito as inerustacdes, isto 6, iquilo que nao é proprio da condigao de estar doente, mas de ser e estar institucionalizado, ou de ser visto como docnte, ¢ abre uma enorme perspectiva no lidar efetivamente com S pessoas em softimento, e no com as was “doengas”. O texto seguinte ¢ um aprofundamento do anterior ¢ também foi escrito em colaboragao com Franca Ongaro, “A maioria desviante”, uum livro langado em 1971 reunindo varios art s, inclusive com a Participagdo de Laing ¢ Cooper, trata da questiio da produgao social © cientifica dos comportamentos desviantes, O capitulo seleciona- do € 0 que da titulo ao livro e &, sem sombra de diivida, o mais rico © instigante. Além da desconstrugdo do conceito de desvio, 0 texto retoma, mais uma vez, a critica ao conceito de doenga mental, de- unciando seu cariter ideolégico ¢ absolutamente inconsistente do ponto de v epistemolégico. Analisando um texto de Ruesch so- bre 0 aparente e surpreendente crescimento do percentual de com- portamentos desviantes em nossas sociedades, Basaglia introduz 0 debate sobre a importagio de ideologias produzidas pelos paises de economia central e observa que, em iiltima instancia, mantida a teo- ria dos desvios em que este conceito vem substituir e ampliar o de personalidade psicopatica -, a sociedac e seria, quase que totalmen- te, uma sociedade de desviantes ‘A utopia da realidade”, escrito em 1974, novamente em co- auioria com Franea Ongaro, nos faz refletir sobre o coneeito de reforma psiquidtrica como algo que transcende a mera transforma: 0 de servicos e teenologias. ‘oi com Basaglia, a partir deste texto, que percebemos que a transformagio das instituigdes e das politi- cas piiblicas s6 possivel na medida em que possamos transformar as relagdes entre a sociedade ¢ os cidadiios, porque é ai que se insere a relago entre saiide e doenga. Em 1977 foi realizado em Trieste o III Encontro da Rede Inter- nacional de Alternativa a Psiquiatria, do qual participaram varias personalidades da antipsiquiatria, da psiquiatria democra € da Iuta antimanicomial, tais como Robert Castel, Ronald Cooper, Felix Gattar,, Agostino Pirella, entre outros. Nesse encontro, Ba apresentou uma comunicagao intitulada “O circuito do controle: do ca italiana manicémio a descentralizagdo psiquidtrica”, na qual nos transmite uma visi hist6rica e conceitual das priticas e politicas desenvolvi- das em Trieste durante sua gestiio, no periodo de 1971 a 1979, relatando e analisando todo o processo de desconstrugio do mani- cOmio local. Trata-se de uma verdadeira aula pritica de planeja- mento € ges 10 de politicas de saiide mental, Pela primeira vez 0 termo éerritério assume um significado inovador, Nao 0 de comin dade ou de regitio geogrifica, mas o de contradigdes, lutas, produ- ‘ses sbciais ¢ ideolégicas da vida conereta ¢ simbélica em um pro- cesso hist6rico. Nesse momento, Basaglia nos transmite uma idéia sensfvel que Ihe surge quando pensa em contar suas experiéncias: “E impossivel contar as coisas que aconteceram”, pois a histéria de ‘Trieste seria cada vez menos a hist6ria da instituigdo, dos nomes, das datas, e cada vez mais as histérias de muitas vidas e significa dos que se fzeram inventar ¢ sentir ao longo do processo. Um dos trabathos mais consistentes elaborados por Franco ¢ Franca é, sem sombra de diivida, o verbete “Loucura/delirio”, es- crito para a Encielopédia Einaudi e publicado em 1979. De inspira- so fortemente foucaultiana, o texto se inicia com uma referéncia a0 monélogo da raza sobre a loucura, pois “niio existe histéria da loucura que no seja histéria da razao”. E um escrito denso, com uma profundidade impar, em que os autores fazem uma revisio de PEVEEELESEEEEEEELELEELSDES EEE EEEDEES toda a construgiio do campo da psiquiatria ¢ da filosofia sobre a Joucura. Ii certamente um texto que se tomar referéncia obrigaté- ria para todos aqueles que se dedicam ao estudo do tema Apés a aprovagdo da Lei 180, Basaglia e Maria Grazzia Gianichedda redigiram uma avaliagao das legislagdes psiquiitricas em varios paises do mundo, analisando as relagdes entre psiquiatria ¢ justiga, psiquiatria © ordem social ¢ psiquiatria e poder: “Lei e psiquiatria”, Escrito em 1979, 0 texto assume ainda maior impor- tncia pela qualidade e seriedade da andlise realizada sobre a lei ita- liana, seja com uma contundente e bem argumentada defesa, seja ‘com uma oportuna e perspicaz critica a alguns de seus aspectos. E também um texto absolutamente necessdrio para a andlise da lei da reforma psiquitrica brasileira, a Lei 10.216/01 reficio” que Franco Basaglia escre- veu para 0 livro JI giardino dei gelsi, coletinea coordenada por Ernesto Venturini publicada em 1979, Trata-se do tiltimo escrito de Franco Basaglia, para um livro que nos oferece um amplo pano- A selegio finaliza com 0" rama das mais significativas experiéncias municipais de reforma psiquiatrica na Itilia. Em resumo, as andlises apontam para muitos problemas, mas apontam também para a confirmagio das hipéteses originais de Franco Basaglia, & necessirio negar e superar o mani- cémio e as categorias objetivantes da psiquiatria positivista que Ihe deram fundamento e legitimidade; ¢ possivel construir uma aten- sto © um cuidado diferentes que acolham ¢ tratem as pessoas em softimento psiquico; & possivel mudar a cultura ¢ superar as rela oes estigmatizantes e de segregacao em relagao & loucura. Nao podemos deixar de agradecer & querida ¢ saudosa Franca Ongaro Basaglia, que nos deixou ha pouco tempo, bem pertinho da publicagdo deste livro que tanto desejivamos entregar-Ihe em mios, € para o qual ela tanto contribuiu com a sugestio de textos, com seu apoio ¢ afeto, alm de ser co-autora de uma sigt icativa parte deles; a Emesto Venturini, pela forga e generosidade, ¢ também pela pparticipagio na selegaio e revisio dos textos; e, finalmente, a Femanda Nicdcio, amiga ¢ companheira desde os primeiros momentos do projeto desta edig&o, pela sua dedicasio, apoio e colaboragaio na selegio 2 revisdo dos textos. Esperamos estar fazendo chegar 8s mios do piblico brasileiro uma obra que vai marcar profundamente a histéria de nossa Iuta por uma sociedade scm manicémios, sem violencia e sem exelusio, uma obra, como desejava Basaglia, que possa contribuir para pro- duzir mais dircitos e mais vidas. Paulo Amarante Coordenador da Colegio Loueura X31 Prefacio Ja qu da Iuta contra manicémio que se realizou na Itilia, em alguns outros pi no se pode negar 0 suces: es europeus e, em parte, no Brasil, certos adversdrios da mudanga assumem uma ati tude arrogante em relagio a Franco Basaglia e Franca Ongaro Basaglia. Comportam-se como a raposa da diante da impossibilidade de ateangar: ibula de Fedro que. uuvas, tenta aliviar sua raiva afirmando que elas ainda esto verdes. Analogamente, esses adver- sdrios, desde ja derrotados, adotam um mecanismo de racionaliza- 40: afirmam que o alcance da mudanga se limita lei de reforma psiquidtriza ¢ ao fechamento dos hospitais psiquidtricos, mas subli- nham que proc: jo de consisténcia cientifica ¢ niio reconhecem a influéneia que a obra de Basaglia exerceu sobre a psiquiatria e sobre as cincias humanas em geral. Para dar suporte a essa tese, equivocam- e quanto a recusa de Franco Basaglia a caracterizar 0 processo de desinstitucionaliz Jio como uma nova técnica terapéutica ¢ sua iniciativa de por a doenga mental entre parénteses. Na reelidade, reduzi a figura de Franco Basaglia a simples apro- vvagao da Lei italiana de reforma psiquidtrica (a lei 180/1978) €um dos muitos peradoxos a que ele foi submetido. Muito mais articulada © complexa, a0 contririo, 6 sua fungo no interior do pensamento cien- tifico atu; e, se Franco Basaglia inspirou essa lei, também é verdade queacritcou varias vezes. Ele vislumbrava, na defesa da menciona- da lei ~ fruto de mumerosas mediagdes politicas ~, o risco de uma BPRPFEEERPERLEREEEEEELELEDESEEERELELEEL perda de identidade por parte do movimento anti-institucional e de uma subseqitente normalizaga0 institucional da psiquiatria. Ademais, Basaglia nfo negou a existéneia da doenga mental: no méximo, bus- cou superar a conduta t{pica da psiquiatria, que justificava o insucesso do encontro com o Outro pela incompreensibilidade deste tiltimo, negando qualquer valor a tudo aquilo que, por limititagaio propria, 130 conseguia compreender. A opg0 dos Basaglia foi uma rigorosa op- Gio cientifica, que subverteu o vicio, tipico dos intelectuais, de arro- gar-se 0 direito de falar em nome dos outros. Franco Basaglia pos a doenga mental entre parénteses a fim de dar voz, sem interpretar, e fazer emergir novos sujeitos no paleo da histéria — os pacientes, os familiares, os no-especialistas. A relagiio terapéutica devia instaurar- se dentro de um espago no qual toda resposta pré-fabricada ¢ todo preconceito ficassem entre parénteses: somente assim seria possivel ir ao encontro do doente num plano de liberdade, Tal atitude nos levou, depois daquela opgao, a uma liberdade radical em relagio aos preconceitos nos fez 0s impedimentos increntes as teorias anteriormente aprendidas: per- mitiu-nos descobrir a riqueza da subjetividade do Outro. Em suma, a suspensio de juizo operada pelos Basaglia possibilitou-nos escu- tar 0 Outro sem os preconceitos que invalidam a comunicaga uma capacidade rara, essa da escula, afirmada mais com as palavras do que com os fatos, e cuja falta é particularmente grave na relagiio de ajuda. Quando declarou seu interesse pela pessoa, mais do que pela doenga, € quando, com sua pritica, nos mostrou sua coeréneia com este principio, Franco Basaglia conseguiu algo mais profundo que a simples afirmagiio de uma instdncia ética: ele pds em crise 0 paradigma da psiquiatria. Franco Basaglia ~ ¢ sublinhar isto me é particularmente impor- tante ~ nao foi apenas, para quem teve o privilégio de trabalhar com 18 ele, um grande mestre de vida; foi também um grande mestre de Pensamento. Junto com a concretude das priticas, seus escritos revolucionaram a resposta 8 doenga mental ¢ desestabilizaram 0 cariter absoluto das nogdes de objetividade ¢ de cientificidade da cultura ccidental moderna. © fim do manicémio representou 0 questionamento pritico, mas também teérico, dos aparatos cultu- ais ¢ cientificos que se apoiavam nessa instituigZio. O rigor ¢ a tensio dessa critica refletem a particular atmosfera cultural dos anos 60 ¢ 70, mas nem por isso as palavras de Franco Basaglia e as de sua mulher Franca Ongaro Basaglia perderam forga ¢ atualidade. Penso mesmo que suas palavras falam precisamente para os ho- mens de aoje, com a mesma intensidade emotiva daqueles anos, e, a cada nova leitura, pen nho da nossa liberdade. sm descobrir novas fronteiras no cami- A coletinea de escritos presentes neste volume possibilita ao piiblico brasileiro fazer essas descobertas. Este livro responde & exigéncia de esclarecer alguns dos aspectos filoséficos, cientificos € operativos do questionamento langado sobre a “ciéncia” psiquid- trica, construida com base na opressfio e na tomada de distancia frente a0 softimento psiquico. Ele surge em sintonia com algumas publicagées italianas recentes, que demonstram o renovado interes- se pelas >roblemiticas conexas ao desenvolvimento histérico da idéia de norma e de anormalidade, Por outro lado, os escritos aqui reunidos (citarei, como exem- plo, “Um problema de psiquiatria institucional”, “A maioria desviante”, “O circuito do controle”) condensam a esséncia do pensamento basagliano e permitem fazer uma leitura critica dele. Outros escri- tos (“Corpo e instituigao”, “Carta de Nova York. O doente artifici- al”, “A deenga e seu duplo”, “Loucura/delirio”, por exemplo) possi- bilitam pereeber melhor como o pensamento dos Basaglia se desen- 19 volve dentro de uma cultura curopéia, rica e entrelagada, Nele reco- nhecemos a antropologia fenomenolégica, a daseinsanalyse, mas também o existencialismo, o estruturalismo e a escola de Frankfurt. © pensamento dos Basaglia remete as reflexdes de E. Husserl, K. Minkowski, J.-P. Sartre, M. Merleau-Ponty, M. Foucault, Jaspers, ‘mas também encontramos ali referéneias a A. Artaud, E. Goffman, R. Laing e, sobretudo, a T. Adorno, W. Benjamin, T. Kuhn, P. Feyerabend e A. Gramsci. Franco Basaglia, em particular, parte da oportunidade fenomenologica de exprimir a propris tubjetividade e prossegue com 2 conseqilente aboligio da distingio normativa entre sto ¢ doente, preconizada pela psiquiatria positivista, até subverter a nogio de “norma”, prépria da psiquiatria oficial. E sta agio tedrico-pritica, supera a artificiosa separagiio entre psiqué e soma e restitui impor- tancia a0 “corpo nio-objetivado™. Interroga-se sobre a loucura, sobre a convivéncia desta com a razdo, ¢ assume a loucura no sé como objeto, mas também como sujeito, como meio de conhecimento Do existencialismo, os Basaglia compartilham a aspiragao de avan- sar, para além da prépria mé-f& ou inautenticidade, em direclo & conquista de uma liberdade que é consciéneia da prépria histéria e da do onto e a0 direito de sermos sujeitos. Por fim, a meu ver, hi alguns conceitos dsicos que, nesta nossa época de revisionismos € de perda da meméria, considero totalmente atuais: a analise das re lages de poder, a critica & ideologia como falsa conscién ia, a no- so de hegemonia e a de intelectual organico A tradugto destes escritos e sua publicago no Brasil certamente proporcionariam grande prazer a Franco Basaglia: para ele, esta se- ria mais uma oportunidade para exprimir 0 profundo afeto que o ligava a este pais. Por outro lado, o verdadeiro reconhecimento de sua obra, como ele mesmo nos ensinou com sua vida, nio reside no prazer intelectual da produgdo de saberes, mas na forga de enlagar 20 0s momentos da teoria e dos saberes c 0 das priticas e fins éticos inspiradores das politicas necessarias para realizar transfor- ‘magdes itcis e duradouras. O verdadeiro reconhecimento do valor do pensamento de Franco ¢ Franca Basaglia consiste na capacida: de encarregar-se coneretamente do doente, nfio se concentrando na docnga, mas considerando o tratamento como uma tentativa de Teconduzir a pessoa as suas plenas possibilidades existenciais ¢ 4 Prdtica dos seus direitos... ¢ tudo isto com a paixdio, com a intensi- dade ideal ¢ com a lucidez que sempre acompanharam esses extra. ordinatios seres bumanos. Ernesto Venturini Assessor da Organizacio Pan-Americana de Saide 2 PPRETLLLLAL PLELELEEELEEELELE EEL ED EER EE EEREEEE A destruigéo do hospital psiquidtrico como lugar de institucionalizagéo! consideragdes sobre o sistema “open door Em 1525, um manifesto de artistas franceses que assinavam “la révolution surréaliste”, ditigido aos diretores dos manicémios, ter: minava assim: “Amanhd de mand, na hora da visita, vando, sem nenhum dicionério, tentarem se comunicar com esses homens, quei- ram lembrar ¢ reconhecer que, diante deles, os senhores tm uma tinica superioridade: a forga” Quarenta anos depois ~ como grande parte dos paises euro- peus, atrelados a uma lei antiga, ainda indecisa entre assisténcia e seguranga, piedade e medo —, a situagio nijo mudou muito: limites forgados, burocracia e autoritarismo regem a vida dos internados, em nome dos quais Pinel ja reclamara clamorosamente o direito & liberdade, Mas a liberdade de que Pinel falava tinha sido concedida num espago fechado, e deixada nas maos do legislador € do médi co, que a deviam dosar e tutelar. Por isso, apés aquela espetacular ruptura dos grilhdes, 0 ritmo da vida dos de dois séculos asilos ainda ¢ mareado por regras forgadas © mortificagdes, exi- jalmente levem em conta 0 homem no seu livre situar-se no mundo, gindo ura solugdo urgente, com férmulas que 1 Comunieagao a0 t Congresso Internacional de Psiquiatria Social, Londres, 1964. In: Annali di Newrologta e Psichiatria, 49, 1, 1965 De fato, s6 agora 0 psiquiatra parece redescobrir que 0 primeiro passo para o tratamento do doente € 0 retorno a liberdade, da qual até hoje ele mesmo o privara. A necessidade de um regime, de um sistema, na complexa organizacao do espago fechado em que 0 do- ente mental foi isolado durante séculos, atribuia a0 médico 0 mero papel de vigilante, de tutor intemo, de moderador dos excessos a que a doenga podia levar: o valor do sistema superava 0 do objeto dos seus cuidados. Mas, hoje, 0 psiquiatra se dé conta de qu mio produzem primeiros passos em diregtio a “abertura”” do mani no doenté uma transformagio gradativa do seu espaco, da sua rela- 40 com a doenga e com o mundo, da sua perspectiva das coisas, restringida e diminuida nao s6 pela condigdo mérbida, mas também pela longa hospitalizagao. A partir do momento em que transpde os muros do internamento, o doente entra numa nova dimensio de vazio emocional (resultado da doenga que Burton denomina stitutional neurosis ¢ que eu chamaria, simplesmente, de institucionalizagao); ou seja, vé-se introduzido num lugar que, cria- do originalmente para torné-lo inofensivo e a0 mesmo tempo trata lo, na pritica surge como um espago paradoxalmente construido para um aniquilamento completo de sua individualidade, como lugar de sua total objetificagao. Se a doenca mental, em sua prépria ori- gem, é a perda da individualidade e da liberdade, no manicémio 0 doente ndo encontra outra coisa sendo o espaco onde se verd defini- doenga e pelo ritmo tivamente perdido, transformado em objeto pel do internamento. A auséneia de qualquer projeto, a perda de um futuro, a condi- go permanente de estar a mercé dos outros, sem a minima iniciati~ is dias fracionados e ordenados segundo hora va pessoal, com i= 0s ditados unicamente por exigéncias organizacionais que — justa~ ‘mente enquanto tais —ndo podem levar em conta o individuo singu- lar © as circunstincias particulares de cada um: este € 0 esquema 2 institucionalizante sobre o qual se articula a vida do asilo, O novato, no momento em que ingressa no complexo sistema de internagio, deve deixar atris de si os vinculos que nao pode mais manter, os projetos que j4 ndo poder realizar, enfim, a vida que no pode vi- ver, pois o proprio hospital o impede de continuar a buscar o seu lugar, de projetar-se no futuro, inibindo a “conquista” da prépria subjetividade, Trancado no espago estreito da sua individualidade perdida e oprimido pelos limites impostos pela doenga, 0 doente mental €:mpelido pelo poder institucionalizante do asilo a objetificar- se nas préprias regras que o determinam, num processo de dimi- nuigao ¢ de restrigdo de si mesmo que — originariamente superposto A doenga— em sempre é reversivel. Entretanto, poder-se-ia dizer que toda organizacto de carater coletivo (grandes complexos industriais, por exemplo), ainda que no apresente o clima dos espagos fechados (manicémios, prisdes, campos de concentragio, instituigdes religiosas, colégios), viola, em certo sentido, o projeto individual, embora conserve uma mar- gem peSsoal a vida de cada membro, F essa margem que resulta, a0 contratio, deliberadamente cancelada pelo poder da instituig&o, por- que € justamente a iniciativa pessoal (“doente” ou nfo) o que pode perturbara ordem e a regra da complexa organizagio, minando-Ihe, portanto, a eficiéncia. Assim, quando o doente entra no asilo, alie: nado pela enfermidade, pela perda das relagdes pessoais c mo ou- tro ¢, portanto, pela perda de si mesmo, em vez de encontrar ali um lugar onde possa libertar-se das imposigdes dos outros sobre sie reconstruir scu mundo pessoal, depara-se com novas regras e es- truturas que o impelem a objetificar-se cada vez mais, até identifi car-se com elas. Isto se dé porque as conseqiiéncias da loucura — que constituem 0 centro das apreensdes dos nossos legisladores — do mais valorizadas que o doente mental enquanto homem. Isola- do, segregado, tornado inofensivo pelos muros que 0 encerram, 0 2s PHLETTTTTIL IC IT TTT AALTTTT TTA Trea? PELELELELELE EERE LEE LE ELSES EEEEREEEEREL internado parece converter-se em algo para alm do humano ~ en- tre um animal décil e inofensivo e um bicho perigoso ~ por todo 0 tempo em que a doenga for considerada um mal irreparvel, contra © qual ndo ha nada a fazer, a ndo ser defender-se. Mas o manicémio — nascide como defesa dos sos contra a Ioucura, como protege contra os “eentros de infecclo” ~ parece finalmente estar sendo considerado como 0 lugar do qual © doente mental deve ser defendido e salvo. “O objeto da psiquiatria” ~ diz By num artigo recente —“nilo é mais o paciente que di medo, mas © homem doente que tem medo”. A descoberta da liberdade pela psiquiatria conduz, portanto, & questi do doente mental fora do manicémio. Na realidade, por toda parte ainda cxistem grades, chaves, barras, portdes, pessoal com escassa preparacio técnica ¢, muitas vezes, humana, mas a questiio, de qualquer forma, esta em aberto: a destruigio do mani- cémio é um fato urgentemente necessirio, se nilo simplesmente obvio. Na verdade, a descoberta da liberdade é a mais ébvia que a psi- quiatria poderia fazer, tao dbvia que nao deveria provocar discussio alguma: mas, evidentemente, o dbvio é a coisa mais dificil de en- frentar quando poe o homem frente a frente consigo mesmo, sem anteparos nem refragées. Pinel também jé havia invocado esta éb- via liberdade para os alienados, quando os encerrava ~ depois de solté-los das correntes — no espago fechado, limitado, onde até hoje vivem 08 nossos internos. Mas, “no fim do séeulo XVIII" diz Foucault em sua recente Histéria da loucura ~, “nio se assiste a uma libertagao dos loucos, ¢ sim a uma objetificagiio do conceito da sua liberdade”, objetivagao que, desde entio, impeliu o doente identificar-se gradativamente com as regras ¢ com 0 esquema da stituigdio, ou seja: a institucionalizar-se, Despojado de qualquer clemento pessoal, dominado pelos outros, presa de seus préprios 26 medos, 0 doente devia ser isolado num mundo fechado, onde, me- diante o gradativo aniquilamento de qualquer possibilidade pessoal, sua loucura j& no tivesse forga A imagem do institucionalizado corresponde, portanto, a0 ho- mem petificado dos nossos hospitais, 0 homem imével, sem obje~ tivo, sem futuro, sem um interesse, um olhar, uma expectativa, ‘uma esperanga para a qual apontar; o homem aplacado ¢ livre dos excessos da doenga, mas j4 destruido pelo poder da instituigdo; 0 homem que s6 poder ser impelido & busca de si mesmo, recon quista da prépria individualidade somente pela posse da propria li- ‘derdade, se nfo quisermos que continue a identificar seu vazio inte~ rior com o espago limitado ¢ impositive do manicémio. Para 0 do- ente, a perda da liberdade que esté na base da sua doenga se identi- fica inevitavelmente com a liberdade da qual nés 0 privamos: ele éa porta fechada contra a qual qualquer projeto, qualquer futuro se chocam. Naturalmente, o problema da liberdade para 0 doente mental ~ ou melhor, 0 problema do doente no hospital — no surgiu de repente, pela stibita revelagtio de uma realidade desconhecida, mas ressurgity com ums exigéneia que jé mio se pode ignorar, depois da transforma- gio produzida, pelos firmacos, na relaglo entre o doente ¢ sua doen- ‘ga. Se 0 doente perdeu sua liberdade por causa da doenca, a liberdade de recuperar a posse de si mesmo Ihe foi dada pelo ffrmaco. Portan- to,se f0i possivel ignorar o apelo langado pelas teorias psicodinmicas, que propunham uma nova abordagem da doenga mental, agora que 08 novos firmacos criaram uma dimensio inédita entre © doente € sua doenga, fazendo-o aparecer aos nossos olhos ~ livre dos velhos esquemas das sindromes clamorosas ~ numa esfera completamente humana, ja nio é possivel isoli-lo no efrculo dos loucos, tampauco deixar de consideri-lo simplesmente um homem doente. hora, en- tdo, de enfrentar o problema do doente mental no hospital, nesse espago fechado, vedado a qua quer relago que ndo seja enferma, com vistas a reconquistar sua liberdade pessoal, que nto Ihe pode ser dada pelos ffrmacos nem pelo médico. Mas Burton, em sua monografia, reconhece também nos firmacos um poder institucionalizante, ¢ no podemos deixar de nbi- cnte seriamente institucionalizante: se o hospital, simultaneamente & concordar com ele, se 0 medicamento for administrado num a agao do firmaco, nao fizer um movimento de defesa da liberdade, de euja perda o doente ja padece, o medicamento ~ ao Ihe proporci- onar, com sua ago, um limite mais vasto de consciéncia — aumen- tard nele a conviegao de estar definitivamente condenado, e de que nenhuma apelacio poderd rever a sentenga inicial. A atitude particu- lar do paciente em tratamento farmacolégico a indifei a apa tia sob muitos aspectos, semelhantes a perda de qualquer interesse pela vida por parte do institucionalizado—pode ser atribuida ao cons- tante poder institucionatizante do hospital, que continua a agir sobre tle no sentido de uma posterior deterioragio. Mas a dbvia descoberta da liberdade, que o psiquiatra parece ter feito, pressupde nele 0 conhecimento de sua liberdade pessoal: isto é, a superagio de um vinculo objetivo com o paciente, que jai nao pode ser visto apenas como um objeto de estudo ou de andilise numa relagdo alienante entre servo senhor (neste caso, continuariamos em uma atmosfera de pseudoliberdade como em Pinel), mas como ‘um sujeito cuja subjetividade ¢ liberdade pessoal ele reconhece. O médico~ encarregado pela sociedade do tratamento do doente mental ‘ontato do mundo dos sos com o mundo alie- enquanto ponto de nado — nao pode mais espelhar, num plano executivo, a a sociedade. Se a soviedade e as organizagdes administrativas das titude da quais dependem os manicémios parecem viver num constante culto a0 pessimismo, o psiquiatra nao pode ser seu porta-vor desinteres- sado. Se 0 fatalismo diante da doenga mental podia ser justificado pela falte de terapias eficazes, com o advento da era farmacolégica ele se toma inexplicavel, a menos que se impute & atual classe psi- quidtrica um papel determin: Os servicos psiquidtricos externos, particularmente a chamada “psiquiatria de setor”, sto erguendo as primeiras barreiras capa- zes de irmpedir a entrada no manicémio. Mas, se estas estruturas poderdo diminuir 0 afluxo de novos internados, ainda resta 0 pro- blema do manicémio como habitagao forgada, como lugar de per pétua institucionalizagdo, onde 0 doente esté constantemente “sob processo, condenado” ~ como diz Foucault ~ “a ser alvo de uma acusagao cujo texto nunca é mostrado, porque estd impresso em toda a vida do asilo Estas reflexdes © a3 que se seguirio resultam de trés anos de estudo e ‘rabalho para a reorganizac&o de um hospital com aproxi- madamente 600 doentes, sobre os quais o poder institucionalizante do internamento havia a tal ponto se sobreposto & doenga original, que muitas vezes era impossivel estabelecer a proporgio da agao de um ou de outro fator no estado dos internados. Nao é possivel, nesta breve anota , expor com a necessaria amplitude os passos gradualmente adotados (que sertio documenta- dos num trabalho a parte); queremos apenas acentuar os elementos sobs ‘0s quais foi e é possivel agir, sem 0 menor apoio de uma lei ¢ de uma sociedade que se di em ainda despreparadas e imaturas para experiéncias deste género. Por outro lado, os passos dados 0 fas cilmente intuiveis, ou até mesmo dbvios, ainda que ~ como em nosso caso ~ 0 culto ao pessimismo tenha enfraquecido, ¢ ainda quesa, qualquer iniciativa, que s6 pode ser levada a cabo man- tendo vivo o senso de responsabilidade de todos zagio dos objetivos prefixados. Se) frustrada reali- ‘omo for, os dados podem concretizar-se em alguns pon- tos: LEELERELELELEELELE ELE LASSE ELELEEEEEL 1) Introdugo de firmacos mediante os quais ~ apesar do clima institucionalizante foi possivel eliminar as contengdes ¢ comegar a distinguir os danos causados pela doenga daqueles provocados pela institueionalizagao. 2) Tentativa de reeducagfo tedrica humana do pessoal. 3) Reatamento dos vineulos com o exterior. 4) Destruigiio das barreiras fisicas (redes ¢ grades), na maioria das vezes executada materialmente pelos préprios doentes. 5) Abertura das portas segundo o sistema open door, compativel com a lei atual 6) Criagao de Hospital de Dia em um prédio~aproveitado de um pavilhdo anterior ~ pronto ha quase um ano, mas que permanece fechado, & espera do beneplicito da administragao, que parece nko conseguir achar uma solugio administrativa para 0 novo servico. 7) Tentativa de organizar 2 vida no hospital segundo os concei- tos de uma Comunidade Terapéutica Estas providéncias, todas tendentes a criar um clima de liberda- de dentro do hospital, conduziram a livre movimentagao de 400 doentes (num total de 600); 4 constituigao de grupos de trabalho, de discussao cte., que envolvem a metade dos internados; ao esboso, por assim dizer, de uma comunidade terapéutica, ¢ & reducllo das fugas, cujo niimero resultou inversamente proporcional a liberalizaglo efetuada. A realizagio dessas primeiras etapas com vistas & transforma ¢40 do manicémio num hospital terapéutico apresentou, porém, sérios problemas na relag3o com os enfermos, que aos poucos vo conquistando a conseiéneia dos préprios direitos humanos. 0 doente mental (refiro-me aqui A maioria dos doentes cujo nivel de deterioragio psiquica resultava mais do poder institucionalizante do asilo que da doenga original) j4 no se apresenta como um homem resignado e décil As nossas vontades, intimidado pela for- 30 a ¢ pela autoridade de quem 0 tutela; um homem que, submissa- mente, aceita como natural e légica sua inferioridade diante dos outros, mas sim como um doente que, transformado em objeto pela doenga, nilo mais aceita ser objetivado pelo olhar do médico que o mantém A distancia. A agressividade que de vez em quando interrompia o estado de apatia e desinter 1e — como expresso da doenga mas, sobretudo, da institucionalizagaio ~ da lugar, em mui- tos pacientes, a uma nova agressividade brotada da sensagio obs cura, para além de seus delirios particulares, de estarem sendo “injustamente” considerados nao-homens somente porque se en contram “no manicémio” E nese momento que o intermado, com uma agressividade que transcende assim a propria doenga, descobre seu direito de viver uma vida humana, E 6 entiio que © médico no pode trair sua rela- sho de igualdade com ele: depois de ter-Ihe despertado o sentimento de humanidade mortificada, nio pode deixa-lo permanecer naquele espago fechado no qual suas novas ilusdes estiio fadadas a despe- dagar-se. A “porta aberta" — prova definitiva do abandono, por parte do médizo, do mundo do engano ~ age sobre o doente demonstran- do-Ihe que © psiquiatra jé nao vive no culto ao pessimismo de que a sociedade ainda parece impregnada. © paciente sente o significado deste ato antes da sociedade a qual, até entao estranha a tais proble- ‘mas, parece s6 conseguir abordé-los com um espitito paternalista e piegas, do qual o doente 0 necessita. A “porta aberta” (terror dos nossos legisladores), a aboligio das grades, a abertura dos portdes tém pro‘undas repereussies, dando ao doente a percepgtio de estar vivendo num lugar de atamento onde pode conquistar em cuida dele, gradativamente sua rela¢ao com os “outros”, com qt com seus companheiras. Luger de i Psiquidtrico corre, porém itucionalizagdo e de alienagdo induzida, o Hospital © risco de transformar-se — com as no- snago, se for organi- mo, no qual todas as feitas, como numa gaiola de ouro, vas medidas adotadas — em outro lugar de zado como um mundo completo em si me necessidades so satis © desaparecimento das contengdes fisicas liberou 0 enfermo do scu estado de sujeigao & “forga” contra a qual, de um modo ou de outro, cle se rebelava deliberada e pessoalmente — como reagao. a. um movimento arbitrario e profundamente mortifieante - med ante scus “excessos”. A liberdade que o médico e 0 novo clima hospitalar Ihe deram pode agora produzir um estado de sujei ainda mais alienante, por estar mesclado a sentimentos de devotamento ¢ gratidao que ligam o doente ao médico numa rela gio ainda mais estreita, mais sélida, m profundamente mortificante ¢ destrutiva do que qualquer contengao fisica: uma relagdo de devotamento ¢ rendigdo absolutos ao “bondoso” que se dedica a ele, que se inclina ~ de toda a sua altura ~ para escuté-lo nunca diz nao, Isto poder acelerar o processo regressivo, que o impeliré a merguthar gradativamente numa suave e indolor aniqui- Jago total, que eu chamaria de uma espécie de institucionalizagao branda, Por isso o paciente continuars a sentir a liberdade ~ de cuja pre- senga se dé conta ~ como algo que Ihe veio de fora, e nao como resultado de uma conquista sua. Assim, por longo tempo aps a abolico das grades que ele mesmo arrancon e destruiu a convite do médico, no ultrapassara o limite que Ihe era imposto antes: o dese- tho do patio continua em sua mente, ¢ a porta aberta ainda the parece uma porta fechada. Ele fica ali, na expeetativa de que al- guém pense ¢ decida cm seu lugar, porque nflo sabe, ou nao querem ‘que saiba, que pode recorrer a sua propria niciativa, 4 sua respon- liberdade como dadiva do médico, permanece, em relago a ele, na primitiva relagao alienante servo-senhor. sabilidade, a sua liberdade. Portanto, ao aceitar es: Ora, para que o manicémio, depois da gradativa destruigaio de suas estruturas alienantes, nfo se limite a ser um ameno asilo de servos sgradecidos, 0 tinico ponto que podemos levantar & quanto & agressividade individual. Nessa agessividade ~ que & 0 que nds, psiquiatras, buscamos para uma ligagao auténtica com o paciente poderemos alicergar uma relago de tensio reciproca, a tinica a possibilitar ~ atualmente ~ uma ruptura nos vinculos de autoridade € de paternalismo, até recentemente causas da institueionalizagdio. A complexa organizagio do hospital pode enfrentar sérios ris cos, mas talvez seja no risco que o psiquiatra deva situar-se de igual para igual perante o doente, num jogo de tensiio e contratenstio que envolve paci ente e médico. Este iltimo aspecto, contudo, necessita de uma andlise mais aprofundada e fundamentada, que ser objeto de um trabalho posterior. A experiéncia de uma organizagio perfeita, que paradoxalmente tende, com sua massa de normas ¢ de regras, a0 fracasso em sua tarefa (0 homem institucionalizado), autoriza-nos contudo a tentar uma nova concepgao do Hospital Psiquidtrico, na qual se considere em primeiro lugar o doente e, depois, a construgao ao seu redor de uma dimenso adequada a ele, no sentido de surgir de suas préprias necessidades: ser as relagdes grupais, as t apias comunit 05 clubes, as discussdes de grupo para as quais se encaminha a agressividade do doente, que criardo em torno dele um espaco nas- cido do seu “mover-se”, do seu viver com os outros. Nessa comu- nidade terapéutica, construida sobre o terreno dos seus interesses e dos seus estimulos, ele reconquistari 0 valor e o dominio de si, 0 seu lugar, e mesmo 0 seu papel no espago do hospital, cujos muros silo apenas um limite de propriedade, além do qual no ha separagaio Nesta dimensio, 0 Hospital de Dia se situaré como ponto de uniflo, por meio da “psiqui ria de setor”, entre o interior e o exteri- PREEECCTCCTTTTCL LTT TTT T TTT ate cia? SEELEEEEELEEEEESEEEEATILEEEELEEEELE or. Nesse hospital de meio expediente, o doente poder viver em dois registros: o do tratamento e 0 da gradual conquista de uma liberdade da qual se sentir dono ¢ pela qual seri responsivel. ‘Trés anos de trabalho neste sentido niio sito suficientes para tirar conclusdes, mas apenas para tragar perspectivas, sobretudo por- que o culto generalizado ao pessimismo ea exigdidade dos recursos tornam tudo lento ¢ cansativo, e os resultados, menos evidentes, Os espagos ainda s0 mobiliados com bancos ¢ grandes mesas; 05 servigos higiénicos quase sempre contrariam qualquer senso de dignidade; o vestuério é remendado e pobre; o pessoal sanitario é eseasso em relacaio as exigéncias terapeuticas crindas; ainda se aguar- dam providencias de maxima urgéncia, porque a administracao, por entraves burocriticos, no consegue obter o financiamento de melhorias no hospital. Ainda assim, o clima de liberdade é sentido a tal ponto, que o doente suporta a falta dessas providéncias, tornan- do-se ctimplice e colaborador do médico ao exigir ser instalado num, espago adequado & sua humanidade e & sua doenga, Entretanto, o principio de liberdade conseguiré derrubar o da autoridade? As premissas da comunidade terapéutica parecem nos dar raziio, porque pacientes, médicos e funciondrios esto todos envolvidos na mesma crise, € nela encontram sua base humana co- mum. Bibliografia Burton, R., Institutional Neurosis, Bristol, John Wright, 1959. Ey, H., “L’essence de la maladie mentale et la loi de 1838 (alignation, espace et liberté)”, Evol. Psych., 39, 1-5, 1964. Foucault, M., Folie et déraison. Histoire de la folie a lage classique, Paris, Plon, 1961 34 Um problema de psiquiatria institucional: A exclusio como categoria sociopsiquidtrica Imagine-se agora wm homem a quem sio tiradlos, junto com seus entes queridos, sua casa, seus costumes, suas vestes, tudo enfim, literalmente tudo 0 que possui: serd um homem ido a sofrimento e caréneta, atheio & dignidade © a0 discernimento; pois a quem tudo perdeu, facilmente corre perder asi mesmo, P. Levi, Se este é 1am homem, A psiquiatria se vé hoje confrontada com uma realidade que foi Posta em discussdo a partir do momento em que ~ superado o impasse da dualicade cartesiana—o homem se revela como objeto num munda objetal, nas simuttaneamente sujeito fe todas as suas possibilida- des. Somente a comprecnsao desta premissa pode explicar a crise de uma ciéncia que, em v cedade em que este vive -z.de ocupar-se do doente mental na soci construiu gradativamente uma imagem ide. al do homem, de modo a garantir a validade cientifiea do castelo de entidades mérbidas no qual havia encerrado os respectivos sinto- mas. De fato, a psiquiatria clissica limitou-se a definigao das sindromes em que o doente, arrancado de sua realidade e apartado do contexto social em que vive, vé-se etiquetado, aderir a uma doenga abstrat trangid simbélica e, enquanto tal, ideoldgica Mas essa objetivagiio do homem como sindrome, operada pela psiquiatria positivista, trouxe conseqiiéncias muitas yezes 1 In: Rivista Sperimentale di Freniatria, 90, 6, 1966. Em eolaboragto coin Franea Ongaro Basaglia iveversiveis para 0 doente mental, que ~originariamente objetivado € restrito aos limites da doenga ~ foi confirmado como categoria Para além do humano por uma ciéncia que precisava afastar © ex- cluir aquilo que niio conseg’ via compreender. Se ¢ verdade, contudo, que uma anélise cientifiea — seja qual for a problematica de que se ocupa ~ representa a busca da esséncia? de um fenémeno, uma vez isolado das superestruturas e ideol que habitualmente 0 esconde, © problema do does ¢ quisermos enfrentar cientificamente le mental serd preciso, em primeiro lugar, por “entre parénte: "a doenga ¢ 0 modo pelo qual ela foi classificada, ara considerar 0 doente no desdobramento em modalidades huma- has que ~ justamente enquanto tais — nos paregam abordiveis. Neste sentido, pretendemos analisar aqui o problema do doente mental a partir de uma modalidade de ser que se manifeste mum, a0 seu mundo, tanto como ao da pessoa sf, para além de qualquer esquema e qualquer definigao de doenga, Tal nos parece a modali dade do exchuir ¢ ser excluido, no sentido de que se esta f z parte dos modos de relagio humana, ela se encontra simultaneamente na b pria realidade do doente mental, em sua condig’io de excluido da sociedade. da modalidade psieética, enquanto exchusio do real, e da pré- Qualquer sociedade cuja estrutura se baseie em diferengas eul- turais, de classe ¢ em sistemas competitivos, cria dentro de si areas de compensagio para as préprias contradigdes internas, nas quais coneretiza a necessidade de negar ou de afirmar, numa objetualizagio,’ uma parte da prépria subjetividade, 2 No original, “representa a busca do fundamento de um fendmeno" (N.do E.). 3.0 autor uso 0 termo oggettualizzazione, que existe no di (vais ligado a definigdes psicanaliticas), 0 que tamisém et 4 palavea nto exista no Aurelio) (N. do E:). cionérie italiano re agus (embora 36 A busca, dentro de um grupo, do bode expiatorio, do membro a excluir e sobre 0 qual descartegar a propria agressividade s6 pode ser explicada pela vontade do homem de excluir a parte de si de que tem medo. O racismo, em todas as suas facetas, nfo passa de ex. pressio da necessidade dessas 1s de compensagio, assim como a existéncia dos manicémios, como simbolo daquilo que poderia- mos definir como “a reserva psiquidtrica”. E equiparando-a ao apartheid do negro ou aos guetos, & a ¢ exeluir aquilo que se teme por ser ignoto ¢ inacessivel. Von justificeda e cientificamente confirmada por uma psiquiatria que considcrou o objeto dos seus estudos como incompr ‘pressio da vontade de vel e, en- quanto «al, relegivel a lista dos excluidos, Diante dos seus medos e da essidade de assumir as préprias responsabilidades, 0 homem tende a objetificar no outro a parte de si que nio sabe dominar: ou seja, a excluir 0 outro que ele tem dentro de si como sua contingéncia, um modo de n la em si negando 0 outro; de afasta-la, excluindo os grupos em que foi objetivada. A modalidade da exclusio, de considerar-se no direi do proprio horizonte ui mal do mundo, no pode ser consid to de suprin Erupo ao qual se atribui o ada no plano de uma opiniio pessoal, tao aceitiivel quanto outra, Ela investe contra o modo glo- bal do estar no mundo, € tomar uma posigao geral: a escolha de um mundo maniqueista no qual o papel do mal é sempre desempenhado pelo ou'ro, pelo excluido, e somente nessa exclusio eu afirmo a minha forga e me diferencio.* Masse, historicamente, a lista dos excluidos vai diminuindo em fungio ca tomada de cor iéncia de seu papel como bode expiatorio de uma sociedade ou de uma classe, 0 tinico exeluido que no atual a. a respeito J.P, Sartre, Réffesions sur Ja question juive, Paris, Gallimard. 1947 POGELCCCCCTCCCOC LT LAL ATT TLLAL TC ce LERLELLELESEELEEELELE IEE EEE EE EEELE momento histérico nfo esti em condigdes de se conscientizar so- bre quanto de seu estado se deve a doenga e quanto a exclusio que a sociedade the impée, é ainda o doente mental, que niio pode ~ ¢ nesta sua impoténeia esti toclo o drama social da doenga mental ~ conhecer por si mesmo os limites da sua doenga. Tudo 0 que ele sabe de si mesmo ¢ do seu estado mérbido limita-se ao papel que a sociedade ¢ a psiquiatria Ihe atribuiram, e portanto acha que todo ato de contestagao 4 realidade brutal que vive e que recusa ¢ apenas um ato doente que sempre o reconduz a si mesmo, sem nunca liberté-lo das forgas que o dominam, Neste sentido, se é muito grave a responsabilidade da sociedade na exclustio de grupos indesejados, aos quais resta, ainda assim, a possibilidade de salvar-se, nem que seja lutando, no caso do doente mental é enorme a responsabilidade da sociedade e da psiquiatria que a representa: elas Ihe negam ~ além de submeté-los 20 enclausuramento & mortificagio, ¢ a0 etiquetamento de qualquer ato seu — toda possibilidade de oposigao, de recusa da realidade; portanto, toda esperanga de libertagio. O doente mental é um exclu ido que, numa sociedade como a atual, jamais poder opor-se a quem o exchi pela doenga, Assim, somente a psig) co € social, pode ter condigdes de revelar ao doente 0 que é a sua porque todo ato seu esté circunserito e definido ria, no seu duplo papel médi- doenga ¢ 0 que a sociedade the fez. a0 exclui-lo: somente tomando consciéneia de ter sido excluido ¢ recusado que o doente mental poder sair do estado de institucionalizagao a que foi induzido. Ao ser-the reconhecida uma possibilidade dialética sem a qual nao exis te relagdio humana, nem existem homens, ele poder contestar a realidade, seus porta-vozes ~ nés, 08 psiquiatras ~ e sua prépria doenga como monstruosidade social, de modo que seja finalmente possivel aproximarmo-nos dele vendo-o apenas como um doente a ser tratado, Ms Se a definigao clissica da psicose era feita com base na falta de consciénsia quanto 4 docnea, ¢ a sua cura era vinculada justamente A tomada de conscigncia sobre 0 estado patoldgico, poderiamos propor aqui estimular tal processo de reabilitagao do doente mental por meic da tomada de consciéncia de ter sido considerado nao 66 um monstro biolégico, mas também um monstro social: de ter sido excluido enquanto incompreensivel ¢ recluido enquanto perigoso. Problema antropolégico e clinico da exclusio Se existir significa ser para estar com os outros, todo existente exercera seu modo de ser, seu comportamento, pela superagio da propria situagao diante dos outros e do mundo, na escolha do seu projeto, do seu fim, © homem ~ pela prépria natureza de sua facticidade, que pode ser definida na necessidade do seu nascimento ¢ da sua morte esti condenado a se accitar € a se escolher, se quiser ser livre. © que significa que cle esté condenado ~ para, do nuiltiplo, fazer-se um ~a conviver coma ansiedade que de fato deriva dessa situagao, sem recorrer a mecanismos de compensagao que o protejam. Se, diante da angiistia, do af%, da Sorge, nfo souber aceitar a prépria responscbilidade e liberdade, estard objetificando e alienando a parte de si que no sabe dominar, Como niio pode subjetivar-se sendo na escolha 2 na aceitagiio de si ¢, portanto, do outro que tem dentro de si — a presenga da sua corporeidade objetual — na auséncia de tal escolha (que revelaria seu apossamento da prépria corporeidade do mundo), ele projeta fora de si a zona obscura que ndo consegue individualizar, objetifica-se nos outros, aliena-se, d-se ao mundo: nfo faz seu 0 mundo, nao se apropria dele, mas coloca-se como um objeto do mundo, cujas relagdes com o outro s6 podem ser objetuais. ‘A parte obscura de si que ele nfo consegue subjetivar faz com que 0 outres a possuam, to objetos quanto ele. Neste sentido, a andilise antropolégica do excluide como homem feito objeto pelo outto e por si mesmo, vem inserir-se no tema da relagdo entre o cu e 0 outro, segundo a conhecida interpretagio hegeliana da dialética servo-senhor: O senhor, a0 objetificar os se Vos aos seus olhios, a0 exclui-los de uma relagao dialética capaz de contestar sua posi 10, nega e exclui uma parte de si que ele presu- me distanciar, objctificando-a nos servos que nele confiam. Por outro lado, estes ~ diante das responsabilidades que a propria liberdade implicaria —iludem-s e acreditando afastar € negar seus medos, fiando-os aquele que os defende, excluindo-se de toda possibilidade de ser donos da prépria vida, objetiticados aos olhos do senhor, excluidos da propria liberdade. Nessa reciprocidade mistificadora, 9 servo — que em troca da propria liberdade obtém apenas o fantas- ma do enhor como protesao para a propria ansiedade ~ torna-se, 0 contrario, a justificagao e a razio de ser do senhor, que sé con- segue viver objetivando nele a parte de si que niio sabe dominar. Assim, 0 servo fica reduzido & fungio de bode expiatorio, ‘imica ¢ paradoxalmente para a defesa do préprio senhor, porque ence ae coneretiza em si o mal pelo qual aquele nuio quer ser tocado, e que mantém 4 di . cireunserevendo-o num espago facilmente localizavel: 0 espago reservado aos excluidos. Omecanismo através do qual se produz esta relagiio de exclusdio expressa 0s limites do proprio campo de possibilidades, de interes- ses, de relagdes, Objetificando-se no outro que foi exeluido, o cam- po das prdprias experiéncias subjetivas reduz-se pouco a pouco, visto que a exclusto do outro para fora de si no & sendo a 5G. W.F. Hegel, Fenomenologia dello spirite. Indipendenza ¢ dipendenza Aell'autocosciensa; signoria © servitiy Florenga, La Nuova Italia, 1963, pp. 153-164, Deve-se ler presente que a dialética servo-senhor phe a r so num plano de reciprocidade, ao passo ue, ma siluagte Wo exclutde, o hor = como diz Fanon ~ “ado faz caso da conscitncia do exerave" c eras © apenas instrumentalizando-o coneretizagaio dos limites pessoais, simbolizados nas regras institucionalizadas que justificam a efetivagao desses limites. Neste sentido, a modalidade da exclusto, analisada em seu interi- ©F, mostra-se intimamente ligada ao processo de apropriagio do real, em que o homem exclui no outro aquilo que nao conseguin incorpo. rar e tomar préptio. Se o proceso de apropriagio do real se desen volve no encontro e no reconhecimento do outro como materialidade opaca e, ao mesmo tempo, como ponto de partida de um eu que funcione como eu sou, a0 aceitar a minha facticidade (este meu set corpo opaco e passive e simultaneamente sujeito dessa passividade) vejo-me tendo de aceitar em mim o outro a partir de mim, o estranho que cu sou enquanto objeto de uma subjetividade que niio é a minha; reconhecer 0 outro como sujeito que pode objetivar-me tanto quanto 1, sujeito, sou objetivavel aos olhos dele, Isso significa que, na acei- tagdo da minha facticidade, na escolha do meu corpo, eu aceito ¢ ‘colho 0 outro, 0 estranho, como aceito ¢ escolho a mim mesmo na minha corporeidade. Na recusa do outro esti ainda o eu, a minha alteridade, que eu refuto © excluo na recusa a mim mesmo como materialidade destacada do eu que a projeta ea significa. Umi exemplo disso pode ser identificado no problema da experi- éncia corpérea, A criagio de reiras e fortalezas capazes de man- ter uma distancia entre o eu e a prépria ansiedade, evidenciada na ‘exclusio do outro como corpo, de fato nao passa da expresso de ‘um debilitado proceso de apropriagio da realidade corpdrea: a par- te de si que nao é individualizada e possuida pelo eu segundo um Processo harménico de apropriagao do real, é objetivada no outro, reificada c, por fim, recusada, Sentimentos como a vergonha, 0 pudor e particularmente 0 desgosio pelo obsceno so apenas a simbolizagio da projegao do préprio corpo no outro, considerado como objeto: uma falida incorporagao do outro como uma falida incorporagio de si. IFECCKCICCLICCEC Ce Tater eres EESCSEESSESCESESCSHPESSHSCSSHSFISHSSSHSSSSSCKES 0 Erlebnis* do obsceno ~ a recusa do préprio corpo no outro — € portanto a defesa da ansiedade diante da aceitagiio da propria facticidade, um modo de transcender essa contingéncia inaceitivel ©, como tal, obscena — quando mantida a uma certa distineia do eu «, assim, no ineorporada a ele ~ a0 ponto de precisar ser reba na reeusa do outro como corpo a excluir. A obscenidade nio seria senfio a simbolizao da distincia interposta entre 0 eu eo proprio corpo, distancia que vem a exprimir-se coneretamente no Evlebnis do viver 0 outro como obsceno para manté-lo estranho a mim, e assim afasti-lo © exclui-lo, na ilusio de afastar, excluir e negar 0 corpo do qual no me apropriei originalmente. Portanto é na vivéncia do outro como obsceno, como corpo objetivado e reificado, como exeluide de mim, que reside ainda a questo do préprio corpo como tema central; o problema da apro- ptiagao do real, do meu colocar-me diante do outro ¢ das coisas, mantendo a distncia necesséria para que eu possa apropriar-me do corpo ¢ fazé-lo meu, para fazer-me um tinico, destacado do milti- plo, que conserve em si ‘numa alterndncia dialética — uma subjeti- vidade objetiva e uma objetualidade subjetiva, Visto antropologicamente, o fendmeno da exchisio coneretiza antes 0s limites, as caréncias e o amesquinhamento de quem exelwi que os do exclufdo, pois este deve ser considerado apenas o objeto no qual se concretiza, se objetiva e se nega aquilo que, em um pro- cess0 nao realizado de apropriagio do real, & recusado por quem exelui Mas de que modo o exeluido aceita passivamente sua exelustio? ‘Um tal mecanismo deve ser bi seado no processo de identificagaio do excluido com quem exclui, 0 senhor com quem vive somente Termo alemto muito utilizaéo em filosofia e que significa vivéncia (Wd a uma relacdo fantasmuitica, Bettelheim’ e Steiner* sustentam um ponto de vista andlogo referente & sobrevivéneia de presos em campos de coneentragdo nazistas, devida & adestio fantasmatica aos valores dos dominadores, acestio que praticamente legitimava a sujeigao total ‘em que cles tinham que viver. Neste sentido, a dialética da relagiio servo-senhor se reapresenta num plano de reciprocidade que, toda- via, parece paradoxal e mistificada no préprio mecanismo de proje- 80 que esti em sua base: 0 senhor projeta no servo 0 mal que rectsa em si, enquanto o servo projeta no senhor sua necessidade de bem ¢ de forga, t talizagio. Transferindo para um terreno mais propriamente clinico as consideragdes antropolégicas esbogadas até aqui, podemos ago ra nos asroximar do problema da exclusio como modalidade “doente", analisando, sob 0 mesmo Angulo, a posigio do doente mental diante da realidade, bem como seu modo de apropri-la ou exclu. ida pelo senhor mediante sua instrumen As cigncias natura limitavam-se a considerar 0 coneeito de exclu: siio como modalidade passiva: 6 doente mental era exeluido por sua periculosidade, dado que seu caréter objetual havia sido con firmado ao ser ele reconhecido como um abjeto de estudo, que contém ¢ encobre suposta causa orginica responsavel pelo fenémeno da loucura, De resto, a propria interpretagdo de Jaspers, c de psicopaiologia compreensiva,a a introdueqo do conezito 10 continuar mantenido o doente mental ‘num mb to estritamente objetual quando ~ indefeso este tiltinto diante de sua ininteligibilidade quanto aentender suas modalidades de existén- cia —abdica de qualquer aproximagao posterior para, entiio, re fileira dos excluidos, objetos aos olhios da ciéneia, loa 7B. Bettehheim, The faformed Heart, Glencve, The Free Press, 1960. 81. F. Steiner, Trebtinka, Paris, Fayard, 1966, Excluido porque incompreensivel, excluido porque perigoso, 0 doente mental continua a ser mantido além do limite do humano, como expressao da nossa desumanizaglo e da nossa incapacidade de compreender £, contudo, no novo humanismo psiquiitrico que a pesquisa se orienta para 05 modos em que a realidade ¢ vivil ita, softida ou exclufda. Isso significa que no poderemos nos limitar a considerar © delirio na escala de um elemento parasita que — como um corpo estranho ~ corréi a existéneia do doente. Ao contrario, devemos reconhecé-lo como uma modalidad: significante do préprio deli- ante e, como tal, intencional e motivada, Se isto for verdade, o que se vé no delirante € a exclusiio gradual da realidade que ele nio cons "gue Se apropriar, e a escolha intencional de um mundo utépi- ©0, onde a disparidade entre real ¢ irreal, entre sim e no, no preci- sa tera face dramstica da dialética, mas a maleabilidade de um mundo que ele consegu manejar, Considerando-o desse modo, o incompreensivel de Jaspers, objetivado pela nossa incompr: 0, revela-se, ao contrério, o sujeito de uma ago significante de exchusio do real. Os limites, a restrigdio, 0 amesquinhamento, em suma,a regressio psicética, Bo Seriam senao o resultado do lento processo de exelusao do real ao qual o psicético ja no consegue se opor. Traido pela realidade, que continua a se Ihe apresentar sob a efigie da imeaga, porque nio sabe dominé-la, ele mascara sua faléneia excluindo-a, refugiando- se no mundo do seu delirio, na utopia onde néio encontra contesta- ‘ges nem limites.® 9 F, Basaglia © A. Pirella, “Deliri primati ¢ deliri secondari e problemi Fenomenologiei dt inquadramento”. SimpStia sobre delirios erénicos, XXIX Congresso Nacional da Sociedade Italiana de Psiguiatria, Pisa, maio de 1966. © caso do neurstico, por sua vez, apresenta uma forma distinta de exelusio do real, que podemos definir como ideolégica, contra- pondo-e a utopia psiestica, A organizasao da personalidade neurética ~ abordada tanto no sentido tradicional quanto sob o Angulo antropolégico — sempr evidencia uma diminuta capacidade de enfrentar as instdncias emotivas que solicitam 0 individuo a ponto de fazé-lo perder a espontaneidade da propria experiéneia corpérea, Neste sentido, 0 neurstico ~ no podendo viver © préprio corpo imediatamente na espontancidade e na fusiio somatopsiquica — vé-se obrigado a cons- truir uma imagem de si, uma ideologia"® capaz de ligi-lo de algum modo ao outro, do qual nio suporta ser excluido. Quer seja impa se entendido como a evidéncia de um mau funcionamento genérico do instrumento nervoso, como expresso de um modo Particular de estar no mundo ou como resultante de uma relagio interpessoal alterada, aca a uma desadaptacio frente aos esque mas culturais da sociedade, 0 neurético sempre se manifesta ini bido, impossibilitado de aceitar e escolher a propria existéncia, portanto de escolher-se, 2 ponto de precisar se adaptar a um com- promisso que Ihe permita uma aproximagio interpessoal qualquer: Tal é justamente a expressividade neurética, que, mediante a ex- clusio da prépria cont \eia, concretiza-se na escola de uma imagem ideal do proprio corpo que mais se aproxi do outro, ainda que © distanciamento do eu em relagio ao corpo pague 0 prego do estado de incerteza, de irrelevancia, de diivida em que 0 neurdtics & obrig a viver. De fato, niio tendo conseguide con- quistar 0 préprio corpo, ele no consegue conquistar a propria individualidade e liberdade diante do outro, a quem nao pode con- 10 F. Baseglia, “L'ideologia det corpo come espressivita nevrotica. Le nevrost ‘neurasteniche”. Comunicagao a0 XXIX Congresso Nacional da Sociedade Haliana de Psiquiatria, Pisa, maio de 1966. BELLELERELEERLER EEL EDS ELELELELEELE testar, Nao podendo, portanto, aceitar ~ em razio da carga de ansiedade que o invade em seu encontro com a Sorge ~ a propria facticidade (recusando ¢ exeluindo seu corpo, que cle nio pode viviveneiar como vefeulo das préprias experiéncias, mas somente como cindido emotivamente de si ¢ colocado a uma certa distan- cia), 0 neurético vé-se impossibilitado de contrapor-se ao miilti- plo para fazer-se um (contestando, assim, 0 outro ¢ © mundo). Mas, sob a necessidade de manier-se pelo menos no co-mundano, ele prefere excluir a propria corporeidade, da qual no se apro- priow, para construir uma imagem de si, uma ideologia do préprio corpo que, edificada sobre os valores do outro, Ihe dé a ilusdo de ser aceito por ele. Problema sociolégico da exclusio: autoridade, poder e regressio Depois da investigagao antropolégica do fendmeno da exclusio da andlise mais propriamente clinica do exeluir como modalidade psicdtica e neurdtiea, resta examinar o problema do doente mental como excluido da sociedade. Se, no segundo ponto, havia-se posto “entre parénteses” o contexto social em que a doenga mental se instaura, a fim de abordar o desenvolvimento do fendmeno puro no doente mental, agora, invertendo os termos, tentaremos isolar e colocar “entre parénteses” a doenga mental, para analisar suas rela- Ges com o contexto social em que se desenvolve, Mencionamos um excluir psicético ¢ neurdtico que produz res- trigio € regressio. Porém, outra restrigdo e outra regressio ~ que se sobrepdcm as primirias ~ sio idemtificaveis no doente mental, quando nos dispomos a analisa-lo em suas relagdes com a socieda- de de que ele ainda faz parte, somente enquanto excluido. Neste caso, trata-se de uma regressiio institucional, na medida em que é claramente produzida pela internagao em instituigdes psiquiatricas, 46 as quais, nascidas essencialmente para tratar do doente ¢ protege: lo, tiveran por demasiadas vezes a tinica fungao de proteger 0 stio dos exeessos e da periculosidade do louco. Portanto, & somente remontando & a sociedade imps ao doente, que podemos compreender © que esta — no estado de aniquilamento do reeluso ~ da doenga mental original ¢ 0 que é atribuivel ao lento processo de destruigto operado pela sua internagio. Porque foi aqui, dentro dos muros do manicé: mio, que a psiquiatria clissica demonstrou sua faléneia: frente a0 xclusfio € ao isolamento que problema do doente mental, ela 0 solucionou negativamente, exclu~ ade. Experimentando a ininteligibilidade do fendmeno psicopatolégico indo-o do contexto social e, portanto, de sua prépria humani como uria monstruosidade sociobioldgica, o doente sempre foi duplamente exelufdo: 1) ao ser considerado uma entidade ineom- preensivel, que a ciéneia, para nfo ser obrigada @ reconhecer a pré= pria impoténeia, deve negar mediante uma abordagem fantasmatica da doenea ¢ 2) ao ser socialmente excluido, justamente com base na inititeligibilidade, cientificamente reconhecida, do seu mundo enfermo, E por esta razio que os manicémios surgem habitualmente 1 periferia das cidades, em zonas isoladas ¢ cercadas por muros, que demarcam precisamente o sentido da separagio, da fratura, do limi- te, A figura do doente mental, como expresso de uma ruptura da norma, é uma imagem que deve ser mantida 4 distdncia, para que hilo vena a perturbay 0 ritmo de uma sociedace que necesita de reas de compensagio sobre as quais descarregue as forgas agres sivas que no pode canalizar de outra forma, Mas esta necessidade de dividir, de isolar, de afastar 0 doente mental, expressa também o estado de debilidade e de amesquinhamento de uma sociedade que tende a eliminar o que perturba sua expansiio, sem levar em conta a responsabilidade que também Ihe cabe nesses processos. “7 © problema do doente mental se apresenta, sim, ‘omo um pro- blema social, mas a ser resolvido fora da prépria sociedade, sem que ninguém, além de suas vitimas, deva pagar por causa de uma doenga que ~ catalogada ¢ definida como incompreensivel e, en- quanto tal, perigosa ~ representa uma sé ia ameaga social. Contudo, © ato de exclusdo desses elementos desagradiveis ao sistema soa Paradoxalmente como um acting out da sociedade, que parece des. carregar simbolicamente, nessas reas de compensagio, agressividades ¢ violéncias que pouco tém ver com adoenga men- tal, © cujo “desafogo" garante a manuteng&o da ordem ta & todavia, a sociedade em que acontece de o home: ado- sta é a sociedade que, impregnada de desconfianga e pessi- mismo em relagao ao doente mental e sua doenga, ergue os muros dos manicémios e estabelece as r ras para defender-se dele, Esta € também a sociedade em que se forma o psiquiatra, por cla encar- Fegado do tratamento dos doentes. Qual pode ser a ago do psiqui: atra diante do paciente? Quais os pedidos do doente a sociedade e 20 psiquiatra que a representa? Qual o mandato atribuido pela soci- edade ao psiquiatra? A situagao poder mida assim: foram construidos locais de tratamento, onde se pode isolar o doente mental, tendo sido de- legada 80 psiquiatra a tarefa de tuteli-lo em seu isolamento, de modo a proteger ¢ defender voear. Porém, simu sociedade do medo que continua a the pro- ancamente a esta agio defensiva, a sociedade demanda do psiquiatra o tratamento do docnte. Estas intengdes, estas incumbéncias atribuidas pela sociedade 80 psiquiatra, apresentam uma evidente contradigao interna. O trae tamento do paciente (e nao nos referimos apenas ao tratamento farmacolégico, que, embora tendo trazido © doente ao campo da medicina, mediante a solugao magica da monstruosidade biolégica deste, ainda nao deu um passo em diregao a ele como homem) nao a8 € possivel em uma atmosfera de medo e repressio, criada pela ne. cessidade de defesa e tutela que ainda regem a sociedade (e, portan- to, 0 proprio psiquiatra). O tratamento do doente mental deveria tender a reconquista de uma liberdade perdida, de uma individuali- dade subjugada: o que é exatamente 0 oposto daquilo que significa o conceito de tutela, defesa, separacio, segregag gras das nossas instituigdes. , implicito nas re- Historicamente, o manicmio nasceu para a defesa dos sos. Os, muros, quando a auséncia de terapias impossibilitava a cura, servi- am para excluir e isolar a loucura, a fim de que no invadisse 0 nosso espago. Mas até hoje eles conservam essa fungi: dividir, separar, defender os sios diante a exclusiio de quem jé nfo é sto. Dentro dos muros, que 0 psiquiatra faga 0 que puder. Conce- dam-Ihe ou no os meios para trabalhar, consintam-Ihe ow no tra- tar de quem Ihe foi confiado, ele deve antes de tudo responder pela seguranga da sociedade, que quer ser defendida do louco, ¢ pela do préprio louco. Se o doente, antes de ser visto como tal, vem a set considerado como perigoso para si e para os outros, as regras sobre quais o asilo se edifica sé podem ser instituidas em fungao dessa pcriculosidade, € nao em fungo da doenga. Por isso, a figura do doente mental, como nos aparece habitualmente em nossos hospi- tais, a do homem oprimido, esmagado, objetivado na institui 'S organizagdo e eficiéncia si condigdes cada vez mais impor- tantes quea sua reabilitagdo e ressocializagdo: estas sozinhas, pode- riam garantir seriamente a seguranga ¢ a incolumidade fisiea tanto da sociedade quanto do préprio doente, Por isso, no momento de sua exclusiio da sociedade, 0 docnte j4 amesquinhado pelos limites a que a doenga © constrange — pene- tra em uma nova dimensio, na qual se vé forgado a renunciar gra- dualmente a tudo 0 que ainda possui de pessoal e vivo, em nome do “0 JLLLTULLTITULLLLLILALLLIT eT tt atts. PELELELELLELERELELELEL DD ELELEEEELEL bom andamento e da simplificagao da vida da instituigao, Comega assim o que Goffman” chama de carreira moral do institucionalizado, cujas etapas sao mareadas pela gradativa restrigao de si, pela perda de interesses, pelo abandono dos vinculos com 0 exterior ¢ com sua vida passada, que ja nao Ihe pertence, ¢ com o futuro, diante do qual no Ihe & consentido nenhum projeto, sendo impelido pelas regras da instituigao a se humilhar, mortificar e a reconhecer como logia a perda da prépria individualidade, o estado de inferioridade diante dos outros ¢ a recusa por parte da instituigao que o tutela a aceité-lo em sua dignidade de homem e de pert apesar da doenga, 0 diveito a um mini bilidade. Redu tir que conserve, no de autonomia e responsa- ido a um campo de possibilidades que nio Ihe permi- tc encontrar saidas, ¢ que, em nome da ordem e da eficiéncia, nto Ihc demanda participagaio ou intervenges pessoais, s6 Ihe resta anu- Jar-se, aceitando como razoaveis sua exclusio € objetificag3o nas regras da instituiglo que o determinam, definitivamente institu- cionalizado. © conceito de institucionalizagao nao é novo. A velha expresstio “artificios manicomiais”, passivamente aceitos como conseqliéneia inevitvel de uma internacdo prolongada, se refere justamente a deter- ‘minadas atitudes dos internados ~ confundidas, muitas vezes, com sintomas de doenga ~as quais, mediante uma imposigio coercitiva ¢ autoritéria, provocam a superposigiio de uma doenga a doenga origi- nal. A apatia, 0 desinteresse e 0 lento e monétono caminhar de eabega baixa, sem rumo, pelos corredores ou pelos patios fechados; certos impulsos imotivados (com demasiada freqiténcia reportados & does 54); um comportamento submisso de animal domesticado; as lamiri- as estereotipadas; o olhar perdido, desprovide de um ponto de apoi a mente vazia porque nao tem uma meta para a qual voltar-se estes 11 E. Gottinan, asylums, Nova York, Anchor Books, Doubleday, 1961 50 so apenes alguns aspectos desta sindrome. Representam a lenta gradativa e artificial adaptagio do paciente a um poder que, surgido para tuteli-lo e traté-lo, recorreu ao tiltime instrumento sobre © qual poderia apoiar-se no caso deste docnte especifico: a forga. Definida como “neurose institucional” por Burton,"* como “institucionalizagao total” por Goffman," como “social break-down syndrome” pelos autores americanos,'* ela sempre se revela uma forma de regressio, que se soprepde & doenga original em individu- os jf psiquicamente frageis ou doentes, gragas ao processo de an quilamento e destruigéo individual a que sto submetidos pela vida no asilo. Neste sentido, formam um complexo de sindromes, mui- tas vezes confundido com os sintomas da propria doenga: inibig6es, perda de inieiativa, de interesses etc Assim, 0 intemado perfeito, no dipice dessa desoladora trajetéria a parece ser a destruisiio do doente ~ ser aquele que se ado, décil & vontade dos enfermeiros ~ euja me mostra completamente aman ¢ do médico; que se deixa vestir limpar sem reagir; que aceita receber a comida na boca e se ofereee para ser arumado como se arruma seu quarto de manhi; aquele, em suma, que ndio complica as coisas com reagBes pessoais, mas se amolda passivamente & internado de quem se diz ~com satisfa- autoridade que o tutela, ‘gio ~ estar bem adaptado ao ambiente, que colabora com o enfer- meiro e com médico, que se comporta bem em relagiio a todos, a (0 nos congratulamos nada se opde e no cria complicagdes,"* Ent pelo fato de que o paciente ~ confiado a nés para que fosse tratado e reconduzido a sua dignidade humana — nao existe mais como ho- mem, € 208 alegramos por ele nilo ser mais capaz~ devido a impul- 12 R. Burton, Institutional Newrosis, Bristol, J. Wright, 1959. 13 E. Gottman, Asylum, op. eit 14 The Program drea Commitee ow Mental Health: Memal Disorders, Nove York, American Public Health Association, 1962 15 D. Martin, Lancet, 2, 1188, 1955, S08 € necessidades pessoais ~ de estorvar a organizagio ¢ 0 bom andamento da instituigdo. Se, mais tarde, atingir a condigao de nao-periculosidade para si © para os outros, a ponto de poder deixar o hospital, esse paciente deixard uma comunidade onde, em troca da tutel ar a si mesmo, ¢ serd langado em um m: la, teve de renunci: indo onde no encontrara lugar. Habituado a no contar consigo mesmo, sera imediatamente derrotado, Imagine-se agora um homem a quem sdo tirados, junto com seus entes queridos, sua casa, seus costumes, suas vestes, tudo enfim, literalmente tudo 0 que possui; seré um homem vazio, reduzido a sofrimento e caréncia, alheio 4 dignidade ¢ ao discernimento; pois, a quem tudo perdeu, facilmente ocorre perder a si mesmo," Estas palavras, que parecem resumir instit a trajetéria do cionalizado que ¢ aniquilado e objetificado em nossos asilos Psiquidtricos, foram escritas por um prisioneiro num campo de eli minagio nazista e referem-se ao processo gradual de desintegraglo jo a que estava submetido desde © momento de sua entrada no campo, e que precedia su: © despersonaliza ia eliminagao total. O pro- rece muito diferente daquele a que é submetido o inter nado em nossos hospitais psiquidtricos. Se, quanto a este tiltimo, ainda no é de todo evidente qual parte ¢: cesso nio pa ‘ube & doenga ¢ qual foi o Papel da internagao no desenvolvimento de sua sindrome, que po- demos det finir como de desumanizacao, o relato de Pr imo Levi so- bre o estado de regressio, de resirig: tio e de ma etapa da trajetéria do preso, revela que nos encontramos na Presenga de um processo idéntico, em cu nclausuramento, tilti- génese a doenga mental, como causa priméria de regressiio, é puramente casual, 16 P. Levi, Se questo é wn womo, Turim, Einaudi, 1958. O fato de 0 excluido nos campos nazistas ter a mesma face do doente mental nao significa que ~ mediante privagdes, padecimen. tos ¢ torturas ~ 0 internamento enlouquece, mas que, posto num espaco de coagio, onde mortificagdes, humilhagdes ¢ arbitrarieda des consiituem a regra, o homem ~ seja qual for seu estado mental - objetifiea-se gradativamente nas leis do intemamento, identifican- do-se com elas. Assim, a formago de uma erosta de apatia, desin- teresse e insensibilidade consistiria acima de tudo em um ato extre- mo de defesa contra um mundo que primeiro 0 exclui ¢ depois 0 aniquila, ou seja, seria o diltimo recurso pessoal que o doente, assim como 0 prisioneiro, opde 2 este mundo para defender-se da experi- enc como exeluido."” insuportivel de viver conscientem 170 problema do outro como excluide foi analisado — no caso especifico do negro, mas segundo uma interpretagdo amplidvel a toda categoria de recu sado ~ pelo psiquitra Frants Fanon. A interpretaqd dele alinharse aguela dada por Sartre sobre © problema do judatomo, € parece perfcitaments adaptivel 4 andlise aqui Proporta do doente menial come excluide, no fentide de que pe a mu 0 processo de projerdo pelo qual e senor (neste {udo'o que recusa em si. “Na medida em que descubro emt mim ago de insolit, de reprovavel, sé tenho uma solugdo: desembaragar-me disso, Alribui a pateridade ao outre, Desse todo, encerro um clrevito Ue Wnsto tho pelo Negra. homer negro fo cartico, Satange& ogee oe trevas, quando alguém estd sujo, esti preto.. Na Europse 0 negro, seja conersiamente, seja come simabolo, representa 0 laa perverse da persona lidade.. Na Europa, o negro tom sia ungdo: a de representar sevmentos inferiares, as tendéncias ruins, o lado obscura da alma. Ore, 9 bode explaterio para sociedade branca (bareada nos mites: progress, evilde: de, liberalismo, educagdo, luz, refinamento) sera precisemente orga quc se opd> & expansto, 4 viléia daqueler mito, & 0 neBre que farnoce casa brutal forga de oposigho.." (1! Negro e lati, ta6. W. Seats, Mil, I Sagginore, 1965). "..0 cotono ¢ quem fea e contimia a fazer colonies don, Besde o nascimento, ent elaro para cle que nquele. mundo resto, -digdes, 30 pode ser encarado por meio du violencia sbsoluta. © mundo colonial € um'mando de compertimentos", onde “forges estétcas do respeito 4 ordem constiuida criam em torno do’ explorado uta atmo fera de submissto e de humilhagdes gue alivia notavelmente a tarets das forgas #8 ordem... O nativo € um ser fechado num recinto, 0 aparthetd ni (annati deta terra, wad. iC. Cignett, Tarim, Einaudi, 1962). cheio ce in 3 LPELTLILULUILIITIVLIRLRTTURLARLIReA 88. PERRELELELLELLELELEL ELLER OSE EEEEEEUEEEE Voltando ao problema do doente mental como exeluido, se ana~ lisarmos quais foras podem ter agido -lo afastado da sociedade, reco- profundamente sobre ele a ponto de aniquilé-lo depois de mheceremos que somente uma seria capaz, de provocar semelhantes danos: a autoridade, Uma organizagio baseada unicamente no principio de autorida- de, € eujos objetivos principais sejam a ordem e a eficineia, tem que optar entre a liberdiade do doente (c, portanto, a resisténcia que este pode Ihe opor) e o bom andamento do asilo. Sempre se esco- Ihew a eficiéneia, e em seu nome o doente foi sacrificado. Porém, a partir do momento em que se introduziu 0 férmaco na psiquiatria, tal atitude se toma ineompreensivel e, se ela expressa 0 ‘grave estado de institucionalizagaio em que vive a atual sociedade, a qual, reificada em suas regras ¢ seus mitos, nfo sabe dar um passo {que soe como ruptura ¢ renovagio, o psiquiatra nfo pode continuar a ser seu porta-voz desinteressado, Ji & suficientemente frustrante ter- ‘mos que reconhever que foi preciso esperar a descoberta dos firmacos para que pudéssemos devolver a esses doentes a humanidade da qual somente a segregagio por né: agao dos firmacos demonstrou coneretamente para o psiquiatra que ele no estava diante de uma doenga, mas de um homem doente, no se pode continuar considerando este homem apenas como um exelu- fdo, de quem a sociedade quer ser protegida. Afinal, esta sociedade tendera sempre a defender-se daquilo que lhe dé medo ¢ a impor seu sistema de restrigdes ¢ limites ts organizagdes encarregadas de tratar dos docntes mentais. Mas 0 psiquiatra no pode continuar assistindo 8 destruigdo do doente que Ihe foi confiado, transformado em objeto ¢ reduzido a coisa por uma organizagao que, em vez de buscar imposta os privara, Mas depois que a didlogo com ele, continua a falar consigo mesma. até agora a sociedade, ¢ com ela o psiquiatra, consideraram necessario recorrer & forga para conter ¢ reprimir a agressividade sé incontrotada do doente que thes incutia medo, o médico, diante das novas propostas de liberalizagio dos hospitais, vé-se amedrontado por uma liberdade que ele nfo quer reeonhecer, pois isto pressupde reconsiderar sua propria liberdade pessoal, o que implicaria na su- perasio de uma relagdo chjetiva com o paciente. © que pressuporia, por sua ver, uma tomada de posigo do psiquiatra diante do seu papel, das suas relagdes com a autoridade institucionalizads ¢ do seu grau de integragfo numa sociedade que permanece ambigua em suas proptias solicitagdes e exigéncias. ‘Nao importa que a agressividade do doente mental tenha side considerada perigosa pela sociedade, ¢ que uma tal periculosidade demandasse margens de seguranga que a contivessem (como se fosse o caso de uma imprevisivel fitria original, ¢ no ~ como freqdentemente acontece — também de uma reaco natural ao com plexo de frustragdes sofridas): 0 psiquiatra nfo pode mais manter- se num plano de neutralidade entre o doente e a sociedade, porque continuaria a fazer 0 jogo desta jitima, Se ele nfio compreender aparentemente estiipida e incom- significado dessa agressividade preensivel, ser cle que, com sua autoridade, sancionard — tecni- camente —o iiltimo ato de condenagao do doente, 2 quem 56 res- tard uma possibilidade: serializar-se,"* mereé do poder que 0 de- termina. ‘Se a mudanga no for efetuada na relagio entre médico, staff doente, nfo serd a construgio de novos hospitais psiquidtricos, or- ganizados com 0s mais modernos equipamentos sanitérios, que tra- ra resultados distintos daqueles dos velhos manie6mios, Se antes © médico impunha seu dominio sobre o doente ¢ 0 mantinha cm seu poder, institucionalizando-o con 0 auxilio da forca © da eoers30, agora corre-se o tisco de se provocar uma situag20 andloga de su- Te Sobre o conceito de “serializagao”, ver JP. Sartre, Critique de ta raison idialectique, Paris, Gallimard, 1960. Jeigdo, estruturada desta vez nos sentimentos de gratidio ¢ devotamento do internado para com 0 médico, que, do alto de sua Posigio, se inclina para interessar-se por ele. O doente se s objeto de cuidados e: tid ngdes que o ligardo ao médico numa relagtio nda mais mortificante e destrutiva do que a autoritéria. Em tal tipo de relagdo, a dupla doente-m ico ainda ndo se situa num plano de Paridade: o doente é sempre mantido a distancia de quem trata dele ~ distancia entre quem dé e quem recebe, entre generosidade e gra- ‘ida, mas ndio entre dever e direito, N ia relago, na qual o doente, embora no pertencendo mais & dimensio dos excluidos, s6 é visto. como objeto de tratamento afetuoso, ele afundara lentamente num estado de aniquilagao total, que um de nés jé chamou alhures de ‘uma espécie de institucionalizagao branda."” Qualquer tipo de organizagio que nao leve em conta o doenteem seu livre ¢ pessoal situat-se no mundo fulharii em sua tarefa, porque agird sobre ele como uma forga negativa, ainda que, aparentemente, voltada para a sua cura. Um poder que se exerga sobre uma com. nidade deve tender a manter ativo um estado de conflito, a fim de respeitar cada um dos membros, Todo poder que tende a eliminar as resisténcias, as oposigdes € as 1 igdes de quem Ihe foi confiado & arbitririo e destrutivo, quer se apresente sob a efigie da forga, quer sob a do paternatismo e da beneficéncia Portanto, 0 primeiro ato diante do exeluido, do institucionalizado ae vegeta em nossos asilos, deveria ser 0 de despertar nele um Sentimento de oposi¢ao ao poder que até aquele momento o deter- minot e institucionalizou, A partir desta tomada de consciéncia de sua posicao de excluido, e da parte de responsabilidade que coube A Sociedade nesta exclusio, 0 vazio emocional em que o doente viveu 19 F Basaglia, “Ls distruzione dell"ospedale psichiatrie I 8 spedale psichiatrico come Iuogo di istituzionalizzazione”, Anna. Neurol. e Peichs 49. | 1965 56 durante anos sera gradualmente substituido por uma carga de agressividade pessoal que se resolveré numa agao de aberta oposi sao a0 real, que ele agora recusa ndo mais como ato de doenga, mas Porque se trata de uma realidade que nao pode ser vivida por um homem: sua liberdade sera ent&o fruto de sua prépria conquista, e nao uma dadiva do mais forte. Isto no significa caos e anarquia, Significa reconhecer o poder fonte de como elen:ento coordenador, como ponto de apoio, como jo, mas nao como autoridade absoluta Protegio, quando necess imposigo, controle. Significa um poder que se mova num nfvel tal que possibilite manter o conflito constante na relagao com quem Ihe foi confiaco. Signifiea viver num estado de tensio reciproca no qual — reciprocamente ~ sejam levadas em conta a necessidade e a caréneia de liberdade do outro. Nao ¢ ficil, contudo, desmontar regras, instituigdes € precon- ceitos que nd séculos determinam nossa vida. A sociedade em que vivemos (e da qual também fazenios parte) ende a defender o cida dio de fudo o que pode perturbar o frdgil equilibrio ema que ele se ta, move. Mas, a partir do momento em que ele cai na doenga mi cla no mais reconhece qualquer responsabilidade quanto a isto. O ‘mesmo cidadio cuja tutela a sociedade Ihe garantia perde repentina- mente aos olhos desta qualquer direito de ser defendido, passando a fazer parte, do outro lado da barreira, do grupo daqueles contra os quais ela quer ser protegida. Por isto, enquanto 0 clima de medo, de recusa ¢ de exclusio do doente mental nao morrer na sociedade atual, mediante uma radical mudanga de suas estruturas sociais, enquanto a distdncia entre sao e doente nio se encurtar em seu reconhecimento reciproco, en- quanto a barreira de prevencdes, de preconceitos que os separa no cait, a doenga mental continuaré a apresentar-se com a face do excluido, ainda que venham a set construidos novos hospitais psi- - 2 . - » . » Cd - - ” - = - - o - e o ° = - - - 2 2 2 2 2 2 E quidtricos, modemamente organizados como mundos completos em si, nos quais todas as caréncias sejam satisfeitas, Saturado ¢ com- pensado nosso sentimento de culpa diante dos doentes, nos limita- remos, na construgdo de novos hospitais, a transferir para dentro de muros transparentes, mas niio menos resttitivos, nossa estrutu- ra hierdrquico-autoritéria, fonte de todo tipo de exclusio e, consequentemente, de regressao, Se, até agora, o doente pagou com a exclustio pela incolumidade da sociedade, scrao os psiquiatras que teri que se expor para criar ‘uma nova situagiio hospitalar em que o proprio doente seja o agente da conquista de sua liberdade. Todavia, nossa posigao de privilégio erante um docnte que foi inferiorizado aos nossos olhios no seri facilmente superdvel (dificilmente conseguiremos cancelar nosso Papel, que nos coloca numa posi¢do de vantagem); mas poderemos tentar viver as exigéncias que fazem parte da realidade do doente, desencadeando uma relagdo que — para além de qualquer esquema institucionalizado ~ se tensione sobre o fio do risco e da contesta- so reciprocos. problema ser como organizar uma comunidade que nilo deve ser determinada ou comandada, mas apenas dirigida por um poder que saiba limitar-se a encaminhé-la e coordenar-lhe as forgas. ara esse ponto que convergem as experiéncias daqueles que se colocam nesta dimensio, quando, recusando-se a objetivar com a forga o doente a eles confiado, tampouco desejam manté-lo & mes- ‘ma distineia por meio do sentimento de devotamento e compaixdo, que o anularia, objetivado pela piedade. E é entio que se descobrem ~ cada um por caminhos diversos, os caminhos da prépria experi- éneia ~ a inventar noves modos de organizar 0 que nto pode ¢ nao deve ser organizado, em busea de um método de tratamento que no precise, necessariamente, institucionalizar-se em regras e numa ordem codificada; diante da necessidade de uma organizagao ¢ da ss impossibilidade de concretiza-la; diante da preméneia de formular um esbogo de sistema ao qual possam referir-se, para logo o trans- cender ¢ destruir; do desejo de provocar os acontecimentos a partir de cima e da necessidade de esperar que eles se elaborem e se de- senvolvam a partir da base; diante da busca de um novo tipo de relagio er:tre doente, médico ¢ sociedade, na qual o papel protetor do hospital seja igualmente dividido entre todos; diante da necessi dade de manter 0 nivel de conflito apropriado para estimular, em vez de reprimir, a agressividade e 0 poder de se opor ao real, embo- ra nds sejamos os primeiros a fazer parte deste mesmo real

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