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CRISTO E O SÁBADO

Parte II
O paralítico e o cego

Esta relação entre o sábado e a obra de salvação está bem evidente nos dois milagres aos
sábados relatados no Evangelho de João (João 5:1 a 18; 9:1 a 41). Devido à sua substancial
semelhança, vamos considerá-los juntos. A semelhança é notada em vários aspectos: Os dois
homens curados haviam sido doentes crônicos: um, inválido por 38 anos (João 5:5) e o outro,
cego de nascença (João 9:2). Nos dois exemplos, Cristo disse aos homens para agirem. Ao
inválido Ele disse: “Levanta, toma a tua cama e anda” (João 5:8); e ao cego: “Vai, lava-te no
tanque de Siloé” (João 9:7).

Em ambos os casos os fariseus acusaram a Cristo formalmente de quebrar o sábado e


consideraram isto como uma evidência de que Ele não era o Messias: “Esse homem não é de
Deus, porque não guarda o sábado” (João 9:16; João 5:18).

Nas duas situações, a acusação contra Cristo não envolve primariamente a ação da cura em si,
mas a violação das leis rabínicas do sábado, quando ordenou que o paralítico levasse a sua
cama (João 5:8, 10 e 12) e quando preparou o barro (João 9:6 e 14). Uma das 39 atividades
proibidas para o sábado era “transportar de um lugar a outro” (Mishnah, Shabbath 7, Soncino
ed, do Talmude, p. 349.) A preparação do barro também estava entre as restrições das leis
rabínicas do sábado.)

Nos dois exemplos Cristo repudiou a acusação de violar o sábado, argumentando que Suas obras
de salvação não eram impedidas e sim previstas pelo mandamento do sábado (João 5:17; João
7:23; João 9:4).

Antes de examinar a justificativa de Cristo por Suas atividades salvadoras no sábado, deve-se
dar atenção ao verbo “respondeu- άπεκρίνατο usado por João ao apresentar a defesa de Cristo.
Rodolf Bultlnann, in “The Gospel of John, A Commentary”, 1971, p. 244, também comenta:
“apecrivnato” ocorre apenas aqui e no verso 19. . . talvez para demonstrar o caráter oficial da
resposta.

Esta resposta, em sua primeira vez, quando Cristo replicou a acusação dos judeus (João 5:17) e
a segunda, quando esclareceu a resposta dada (João 5:19). O uso especial da voz central do
verbo άπεκρίνατο implica, por um lado, numa defesa pública e formal, e por outro lado,
conforme disse J. H. Moulton, que “o agente está extremamente relacionado com a ação”. (J.
H. Moulton, A Grammar of the New Testament Greek, 1908, 1, pp, 153, 157.)

Isto significa que Cristo não apenas fez uma defesa formal, mas que também identificou-Se
com o conteúdo de Sua resposta. As poucas palavras da defesa de Cristo merecem, portanto,
cuidadosa atenção.

O que Cristo pretendeu quando Se defendeu formalmente contra a acusação de violar o sábado,
dizendo “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também” (João 5:17)?

Primeiro, necessitamos primeiro averiguar o significado da expressão “Meu Pai trabalha até
agora – έως άρτι” e, subsequentemente estabelecer sua relação com a questão sábado-
domingo. Há um amplo consenso de opinião em considerar o “trabalha até agora” do Pai como
uma referência ao trabalho da Criação mencionado em Gênesis 2:2. (Cf. W. Rordorf, Sunday p.
98.)

A espécie de interpretação usada para chegar a esta conclusão é emprestada do filósofo judeu
helenístico Filo, que defendeu a ideia da criação contínua para evitar um aspecto muito
antropomórfico do repouso de Deus. (Filo, Leggum Allegoriae, 1, 5-6.). Posteriormente (cerca
de 100-130 AD) os rabinos Gamaliel II, Josué ben Chananiah, Eliezer ben Azariah e Aqiba
declararam explicitamente em Roma que Deus continua Sua atividade criativa. (H. Strack, P.
Hillerbeck, Kommentar, II, pp. 420-434. Cf. G. Bertram, TDNT, 11, pp, 639-640.)

Esta noção de uma contínua criação divina presente no judaísmo helenístico é, todavia,
estranha aos ensinos do Evangelho de João. Semelhantemente, Hebreus 4:3 nos diz que “...suas
obras estivessem concluídas desde a fundação do mundo”

Em harmonia com o ponto de vista de todos os livros da Bíblia, João ensina que as obras da
criação de Deus foram realizadas em um tempo passado conhecido como “princípio” (João
1:1) Neste princípio, a través do Verbo que estava com Deus (1:1) “todas as coisas foram
feitas… e sem Ele nada do que foi feito se fez” (João 1:3). Ambas as frases “No princípio – άρκή”
e a forma aorista do verbo “ έγένετο – fazer (ou trazer) à existência” indicam com suficiente
clareza que as obras da Criação são consideradas como concluídas em um indefinido passado
distante.

Além disso, o fato de que em João 5:17 as obras do Pai são identificadas com aquelas
desempenhadas por Cristo na Terra, indica que não é possível que sejam as obras da criação,
porque Cristo naquele momento não estava ocupado em obras de criação. Fazer distinção
entre as obras do Pai e as do Filho seria destruir a absoluta unidade entre os dois, que é
enfaticamente declarada no Evangelho de João.

A que se refere então este “trabalha até agora” do Pai? Há indicações conclusivas de que a
expressão se refere não à atividade criativa, mas redentiva de Deus. O Velho Testamento
apresenta um antecedente explicativo. No Evangelho de João estas obras de Deus são
repetidamente identificadas como o ministério redentor de Cristo. Jesus diz, por exemplo, “as
obras que o Pai Me confiou para que Eu as realizasse, essas que Eu faço testemunham a Meu
respeito, de que o Pai Me enviou” (João 5:36).

O propósito da manifestação das obras do Pai através do ministério de Cristo é também


explicitamente declarado: “A obra de Deus é esta, que creiais nAquele que por Ele foi enviado”
(João 6:29). E também: “Se não faço as obras de Meu Pai, não Me acrediteis, mas se faço e não
Me credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai está em Mim, e
Eu estou no Pai” (João 10:37 e 38; João 14:11; João 15:24).

Esta amostra de referências esclarece a natureza redentiva e o propósito do trabalho que Deus
está fazendo até agora, mencionado em João 5:17. Uma breve comparação com a passagem
paralela de João 9:4 deve remover quaisquer dúvidas. Jesus diz: “É necessário que façamos as
obras daquele que Me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar”
(João 9:4).

Nos dois exemplos Cristo defende Suas “obras” aos sábados de serem violação do sábado,
como acusam Seus inimigos. Entretanto, em João 9:3 e 4 a natureza redentiva das obras de
Deus está absolutamente clara. Não apenas o Pai é descrito como Aquele “que envia” o Filho
para fazer Suas obras, implicando assim o caráter missionário da atividade de Cristo, mas a
própria cura do cego é descrita como manifestação das “obras de Deus” (João 9:3). Estas
evidências forçam a conclusão de que o “trabalhar até agora” do Pai, de João 5:17, não se
refere a uma ininterrupta atividade criativa de Deus que possa anular qualquer observância
sabática, mas sim às obras de salvação realizadas pelo Pai através do Filho.

Então, nossa identificação do “trabalha até agora” do Pai (João 5:17) como a missão salvadora
de Cristo está correta, conclusão esta que nos parece inevitável, então aquelas interpretações
que apenas explicam as obras de Cristo como uma referência ao repouso sabático da Criação,
que supostamente Deus não guardou ainda, são, portanto, incorretas, já que a noção de
criação não está absolutamente presente em João 5:17.

Portanto, não podemos entender que através de Seus feitos no sábado Cristo estava
anunciando (embora de uma maneira velada) o fim da observância do sábado, pois, isto é
sustentar a mesma posição dos judeus que acusaram a Cristo de quebrar o sábado (João 5:16 e
18; João 9:16). E esta era a acusação que Cristo firmemente recusava admitir.

Vemos assim que Cristo defendeu Suas atividades salvadoras aos sábados com base nas
considerações humanitárias previstas, pelo menos em parte, até mesmo na legislação rabínica.
Vimos também em João que Cristo refutou formalmente a acusação de quebrar o sábado com
um argumento teológico admitido por Seus oponentes. Antes de considerar o argumento de
Cristo, deve-se enfatizar que neste e em todos os outros exemplos, Ele não admite ter
transgredido o sábado, antes defende a legalidade de Sua ação.

Fica muito claro que Jesus não aceita a acusação de transgredir o sábado lançada sobre Ele
pelos judeus. Ele está realizando a obra de salvação que é lícito praticar no sábado.

Para compreender a força da defesa de Cristo em João, precisamos lembrar o que já discutimos
em parte, ou seja, que o sábado tanto está associado ao cosmos através da Criação (Gênesis
2:2 e 3; Êxodo 20:8 a 11) como à Redenção exemplificada através do êxodo (Deuteronômio
5:15).

Enquanto pela interrupção de todas as atividades seculares os israelitas estavam lembrando o


Deus-Criador, pelos atos de misericórdia aos semelhantes estavam imitando o Filho-Redentor.
Isto era verdade não apenas na vida das pessoas que, conforme observamos, deviam aos
sábados ser compassivas para com as classes inferiores da sociedade, mas particularmente nos
serviços do Templo. Ali, no sábado, os sacerdotes realizavam muitos trabalhos comuns que os
israelitas eram proibidos de fazer.

Por exemplo, enquanto nada devia ser cozido nos lares aos sábados (Êxodo 16:23), no templo o
pão era cozido nesse dia (1Samuel 21:3 a 6) para substituir o pão da presença que era renovado
cada semana (Levítico 24:8; 1Crônicas 9:32). O mesmo é verdade quanto a todos os serviços
relacionados com a manutenção do sistema sacrifical do templo. Muitas atividades que por si
eram comuns, tornavam-se santas no sábado, já que contribuíam para apresentar o processo
de salvação às pessoas.

Estas atividades salvadoras podiam ser realizadas no sábado, pois o próprio Deus, como diz o
salmista, “desde a antiguidade… opera feitos salvadores no meio da Terra” (Salmos 74:12). Com
base nesta teologia do sábado admitida pelos judeus, Cristo defende a legalidade de Seus atos
salvadores aos sábados dizendo: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também” (João
5:17).
Isto equivale a dizer, virtualmente: “Aos sábados Eu estou empenhado na mesma atividade
salvadora que o Pai, e isto é perfeitamente legal”. Para evitar mal-entendidos Cristo explica a
natureza das obras do Pai que o Filho também faz (João 5:19). Elas consistem em ressuscitar e
vivificar mortos (João 15:21) e realizar um julgamento que salva (João 5:22 e 23).

Para os judeus que estavam sem vontade de aceitar a reivindicação messiânica de Cristo, esta
justificação de realizar no sábado as obras de salvação do Pai, tornaram-nO culpado, aos seus
olhos legalistas, por dois motivos: “não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus
era Seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (João 5:18), ou seja, Filho de DEUS, conforme João
10:36

Esta hostil reação levou Cristo a esclarecer posteriormente a legalidade de Sua ação. Em João
7:21 a 23 (a passagem que a maioria dos comentaristas reconhece como relacionada ao capítulo
5), encontramos o eco da controvérsia. Aqui Cristo elabora Sua anterior justificação teológica
para seus atos aos sábados, usando sabiamente o exemplo da circuncisão: “No sábado
circuncidais um homem. E se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei
de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num
sábado, ao todo, um homem? Não julgueis segundo a aparência, e, sim, pela justiça” (João 7:22
a 24).

Por que era legítimo circuncidar uma criança no sábado quando o oitavo dia (Levítico 12:3)
após seu nascimento caía nesse dia? Nenhuma explicação é dada, já que isto era bem
compreendido. A circuncisão era considerada como um ato redentivo que mediava a salvação
do concerto. Era legal, portanto, mutilar num sábado, uma das 248 partes do corpo humano
(que os judeus reconheciam) para salvar toda a pessoa. Com base nessa premissa, Cristo
argumenta que não há razão para se preocupar com Ele por restaurar neste dia “ao todo, um
homem” (João 7:23).

Este exemplo esclarece e substancia a prévia declaração de Cristo a respeito do “trabalhar até
agora” referente a Seu Pai, já que sugere que as obras de salvação são realizadas no sábado não
apenas por Seu Pai, no Céu, mas também por Seus servos, tais como os sacerdotes, na Terra,
até o momento.

O sábado é, então, para Cristo, o dia de trabalhar para a redenção de todo o homem. Nas duas
curas, realmente, Cristo encontrou mais tarde, no mesmo dia, os homens curados, e ministrou
quanto a suas necessidades espirituais (João 5:14; João 9:35 a 38). Seus oponentes não podem
perceber a natureza redentiva do ministério de Cristo aos sábados porque eles “julgam segundo
a aparência” (João 7:24). Consideram o fato do paralítico carregar a cama no sábado mais
importante do que a restauração física e a reunificação social que isto simbolizou (João 5:10 e
11). Acham que misturar o lodo no sábado é mais significativo do que a restauração da vista
ao cego (João 9:14, 15 e 26).

As provocadoras infrações dos regulamentos rabínicos por parte de Cristo (tais como carregar
uma cama ou misturar lodo no sábado) destinavam-se não a invalidar o mandamento do sábado,
mas a restaurar o dia à sua função positiva.

Cristo foi cuidadoso em distinguir o que era contrário e o que estava em harmonia com o espírito
da Lei. Jesus estava trabalhando como o Pai e se as ações do Pai de nenhum modo
contradiziam o repouso prescrito pelas Escrituras, então as atividades realizadas no sábado
pelo Filho não eram contrárias ao espírito dessa instituição.
Podemos concluir que as obras do Pai a que Cristo Se refere quando diz “Meu Pai trabalha até
agora, e Eu trabalho também” (João 5:17) não são as obras da Criação que João considera como
completadas, mas as obras da Redenção. Deus descansou ao completar a Criação, mas por causa
do pecado, Ele ainda está trabalhando para realizar sua restauração. Estas obras de salvação, às
quais o Pai está constantemente dedicado, são previstas e permitidas pelo mandamento do
sábado.

Cristo, portanto, nega ter agido contra o sábado quando restaurou pessoas enfermas, pois
estava realizando exatamente a mesma missão salvadora do Pai. Além disso, em João 9:4,
Jesus aparentemente estendeu a Seus seguidores o mesmo convite para fazer a obra de Deus
“enquanto é dia; a noite vem quando ninguém pode trabalhar” (João 9:4).

Alguns interpretam esta “noite” como uma referência à morte de Cristo que inaugurou o
verdadeiro repouso de Deus em virtude da Ressurreição comemorada pela observância do
domingo. Embora seja verdade que para Cristo a “noite” da cruz estava muito próxima, é difícil
que o termo se aplique exclusivamente à morte de Cristo, já que tal “noite” é descrita como um
tempo “quando ninguém pode trabalhar” (João 9:4). A morte de Cristo dificilmente pode ser
considerada como a interrupção de toda a atividade redentora divina e/ou humana. Não poderia
este termo referir-se ao fim da história da Redenção quando o convite de Deus para aceitar a
salvação não será mais atendido?

Por outro lado, as expressões “Meu Pai trabalha até agora” (João 5:17) e “é necessário que
façamos as obras… enquanto é dia” (João 9:4), ditas por Cristo para defender o Seu ministério
de salvação no dia de sábado, bem resumem a compreensão do Salvador a respeito do sábado,
isto é, que se trata de um tempo de experimentar a contínua salvação de Deus partilhando-a
com outros.

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