Gênero Neutro

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REVISTA DA ABRALIN ENSAIO TEORICO Sobre género neutro em portugués brasileiro e os limites do sistema linguistico Luiz Carlos SCHWINDT@ sr a do Rio Grande do Sul (UFRGS RESUMO Neste texto, proponho uma abordagem de neutralizagio de género em portugués brasileiro na perspectiva do sistema linguistico. Para isso, parto de consideragdes sobre a caracterizacao de mudangas deliberadas e sobre 0s padrdes de marcagao e produtividade de género gramatical na lingua Sao avaliados, nessa perspectiva, quatro tipos de empregos correntes de «género inclusivo: uso de feminino marcado no caso de substantivos co- ‘uns de dois géneros (ex. a presidenta); emprego de formas femininas 3 ‘masculinas, sobretudo em vocativos, em vez do uso genérico do masculino oPrn access (ex, alunas ¢ alunos); inclusdo de novas marcas no final de nomes e adjeti- vos, como x € @ (ex. amigs, amiga), ou empliagdo da fungdo de marcas Jé EpvrApO POR existentes, como -e (ex. amigue); alterago na base de pronomes e artigos Raquel Fras (cx. ile, le), Desses empregos, além do feminino marcado ¢ do contraste ‘AvALIADO POR entre formas femininas e masculinas, que jé tm uso significativo na Papnlcawwaina 08) ua, proponho que, no dominio da palavra, -e encontra condigdes menos limitadas para expansao no sistema no subconjunto de substantivos e ad- Mere Cetlo:s Rosa (. paras jetivos sexuados. RRecebioa 03/1 Acsito 03 ABSTRACT Pupicado 11 In this paper, I propose an approach to gender neutrality in Brazilian Por- como ciran tuguese from the perspective of the linguistic system. For this, I start from considerations about the characteristics of deliberate changes and the patterns of markedness and productivity of the grammatical gender in the language. In this perspective, four types of current uses of inclusive gen- 1 p28 2 der are evaluated: marked feminine in case of two genders nouns (eg. a onazsiearateanvion 09 'SSA-onine.ON27I88 | VK Le revotmotmainerg 1 REVISTA DA ABRALIN ‘ontrastive and concurrent feminine presidenta ‘the president’, ferinin and masculine forms, especially in vocatives, instead of the generic use of masculine (eg alunas e alunos, ‘students’, feminine and masculine special characters closing nouns and adjectives, such as x and @ (eg amigs, amiga, ‘friend’, neuter), or extension of the function of existing marks, such as -e (eg amigue ‘friend’, neuter); change in the base of pronouns and articles (eg ile ‘ard sing neutral pronoun’, le ‘definite neutral article). Among these forms, in addition to the marked feminine and the contras tive use of feminine and masculine forms, which already have significant use in the language, I propose that, in the domain of the word, -e finds less restricted conditions for expansion in the system considering the subset of nouns and adjectives denoting biological sex. PALAVRAS-CHAVE Género neutro. Género gramatical. Mudange deliberada. Linguagem inclusiva keywoRDS Gender neutrality. Grammatical gender. Deliberate change. Inclusive language. Introdugao (© debate pela inclusto de grupos pertencentes a géneros em alguma medida marginalizados na esfera social atingiu de cheio a linguagem, em diferentes pafses, de modo especial na tltima década. Em por= ‘tugués brasileiro (PB), Isso repercutiu em propostas /usos como os exemplificados em (1), que contem- plam, respectivamente: 0 uso marcadamente feminino de nomes comuns de dois géneros; o emprego de formas femininas ¢ masculinas, sobretudo em vocativos ¢ pronomes, em vez do uso genérico do ‘masculino; @inclusdo de novas marcas no final de nomes e adjetivos, como x e @; @ampliacdo da fun¢ao de marcas ja existentes, como e; alteragdes na base ou raiz.de pronomes e artigos. () a. presidenta b. alunas ¢ alunos, todas ¢ todos c-amigx, amig@, amigue ile, nile, dile, aquile, le Embora nem todos os exemplos em (1) se caracterizem como estratégias de neutralizagao, dia~ Jogam com essa nocdo, muitas vezes trivializada. A linguistica deve interessar um entendimento claro onazsiearateanvion 09 'SSA-onine.ON27I88 | VK Le revetmotsainony 2 REVISTA DA ABRALIN sobre neutralizagao enquanto expediente formal das linguas naturais, Neste texto, proponho, & luz desse entendimento, uma reflexéo sobre as estruturas em (1), algumas jé caracterizadas em dada ‘medida no uso, outras ainda figurando como propostas para o uso inclusive da linguagem. Convidado a co-organizar um painel no evento ABRALIN AO VIVO sobre uso inclusivo de género © aproferir uma palestra sobre tema andlogo no evento CONVERSA COM 0 GEFONO, e tendo realizado pesquisa sobre produtividade de marcadores gramaticais de género nos iltimos 4 anos, identifiquei a demanda de pensar sobre as restrigdes de natureza fonolégica € morfolégica envolvidas na instancia- ‘cdo de um suposto género neutro em portugues, objeto central deste artigo.’ A ideia foi produzir um ‘material capaz de informar inclusive nao linguistas, ainda que atenda o pedido direto de colegas lin- guistas, que, confrontados com o tema no seu fazer dir, identificaram a necessidade de um texto que adotasse os graus de tecnicalidade e de simplificagao que tento equilibrar aqui Nao esté em primeiro plano aqui o debate sobre o caréter sexista de Iinguas como o portugues ‘ou qualquer outra, ainda que este seja tema de reconhecicia relevancia. Com isso nao se assume que ‘marcas linguisticas nao possam refletir preconceitos de ordem diversa. Trata-se, a rigor, tio so- mente de recorte, que se justfica pela perspectiva tedrico-analitica que assumo no artigo, O texto se organiza como segue. Na seca |, trago uma reflexao breve sobre o que se entende por sistema ou gramética em Iinguas naturais, partindo do Curso de Lingufstica Geral e, para além dele, contemplandoa dinamicidade da mudanga. Na seqao 2, em posse de uma tentativa de conceptualizagao de género enquanto categoria gramatical, descrevo alguns dos principals indicadores de produtividade de marcadores de género no PB. Essas duas segdes subsidiam a reflexdo sobre os limites para a instan- clagdo de género neutro em PB, realizada na segdo 3. Na sego 4, apresento uma breve sintese das principais ideias desenvolvidas no texto e algumas consideragdes finais. 1. A nocao de sistema e os limites da mudanga linguistica ‘Qualquer linguista, ao falar pela primeira vez sobre a ciéncia para alguém, precisa explicar pelo me- rnos duas coisas: que linguas naturais no so objetos cadticos e que nio prescrevemos comporta- ‘mentos lingufsticos. Se isso € bem assimilado, falamos, entao, de regras ou restrigdes sem medo de 0 evento ABRALIN AO VIVO éiniciativa de Associagio Brasileira de Lingutica em cooperacio com diferentes asociages nacio~ nals internacional da drea. A referida mesa reallzou-se no dia 14/7/2020, 0h, fo organizada em parceria com as professaras Raquel Metter Ko. Freitag e Ana Paula Rabelo. CONVERSA COM O GEFONO & um evento promovda pelo Grupo de Pesquisa em Fonologia de Universidade Federal de Userindi, coordenado pelo Prof José Magalhies. Minha paricipaggo aconteceu em 24/0/2020, is ih onazsiearateanvion 09 'SSA-onine.ON27I88 | VK Le revetmotsainony —§ REVISTA DA ABRALIN ‘sermos confundidos com moralistas da linguagem. Nos termos da lingu(stica formal, tratamos, neste caso, de sistema, ou de gramética, sem o pejo do arbitrio © Curso de Linguistica Geral (CLG), obra inaugural da Linguistica Moderna, publicado em 1916, de autoria atribuida a Ferdinand de Saussure, assume a nogdo de sistema para definir 0 objeto da linguistica. A lingua, opondo-se & fala, é eleita 0 objeto estrito dessa ciéncia. Homogénea, psiquica e coletiva, a lingua opera com unidades que, complementares, distinguem-se, levando em conta sons ‘mentais e sentido. Valor, entao, nessa concepgao, depende de distintividade. Exemplificando no con- texto do fendmeno abordado aqui, podemos dizer que um félante de portugues atribui valor de fe minino a nomes sextados terminados na vogal a, como menina, em contraste & sua auséncia, em menino, que tem valor oposto, de masculino, Saussure assume o signo como a principal entidade de analise ¢ 0 observa numa perspectiva fonocéntrica, Por desejar focar género como categoria morfo- fonolégica, essa também é a abordagem predominante neste texto, ainda que exemplos envolvendo formas escritas e estruturas maiores do que a palavra sejam explorados na medida de sua relagao com recorte assumido. Uma das propriedades desse controverso objeto estabelecido pelo CLG define-se por um su- posto paradoxo: o signo linguistico €, a um tempo, imutavel e mutavel. Enquanto heranga, a lingua limita sincronicamente o falante, é uma carta forgada, Por outro lado, a forga social combinada aos efeitos do tempo € capaz de deslocar as relagdes entre as unidades pré-estabelecidas nos sistemas, rresultando em mudanga, perceptivel, contudo, do ponto de vista da lingua apenas diacronicamente. [A visio estatica de mudanca linguistica preconizada pelo CLG € redimensionada a partir dos achados da soctolinguistica variacionista, Labov (1966), 20 propor que a mudanga pode ser captada ‘em tempo aparente, a partir do exame dos fatores que concorrem para a variacio na sincronia das linguas, em particular a variével idade, consolida um olhar dinamico sobre o fendmeno. [A questio sobre como uma mudanea se implementa & complexa e extrapola os objetivos deste artigo. Para discutir, porém, a possivel reestruturagao do PB para comportar a marcagao neutra de -género, ¢ inevitével que reflitamos pelo menos sobre a maior ou menor necessidade de consciéneia dos falantes para que uma mudanga tome lugar. Labov propos uma distingao, de base psicolégica € social, entre mudangas vindas de cima, as que se processam acima do nivel da conscléncla e so introduzidas pela classe dominante, e mudancas vindas de baixo, as que se processam abaixo do nivel da consciéncia ¢ tém origem no vernéculo. Segundo Guy (2011), essa distingao ¢ insuficiente, se considerarmos que hé mudangas que, apesar de espontaneas, sio conscientes, e outras que, mesmo refletindo acomodagao a um modelo externo, podem se processar nconscientemente, Tam~ bém contraditando 2 dicotomia laboviana, Thomason (2007) defende que nao apenas mudancas in- cconscientes mas também mudangas deliberadas podem ser entendidas como naturais e atingir de ‘modo permanente uma comunidade de fala. * 0 termo formal aqui € usado na perspectva ampla da ditinggoseussuriana forma rs. substanciaInscreve-se sob esse rétulo também steariageratva, com oposigiocompeténcla vs. performance, mas também auras teorias que concebem algum nivel de modularidace inguistica, estabeleca por grau de abetragto. onazsiearateanvion 09 'SSA-onine.ON27I88 | VK Le revetmotsainony REVISTA DA ABRALIN Assumindo-se, entao, o pressuposto de que, sim, o sistema pode se sujeitar a mudangas deman- dadas conscientemente pelos falantes, como uma que alterasse a morfologia de género do PB, o ‘questionamento se situa no seu grau de espontaneldade e de naturalidade ~ critérios igualmente nao dispensados por uma mudangs deliberada. A nogdo de espontaneidade nio é de fécil caracterizacio em Linguistica. Nos dias atuais, no caso cespecifico de uma mudanga envolvendo marcas inclusivas de género, esses usos podem facilmente se ou xi <§> (ver Bonaz2i, 2020: Matthews, 2019). Género nao esta definido no ensaio. E se ao invés de género empregéssemos classe de nomes? E se, como no estudo de linguas do Caucaso, rotuléssemos os géneros por algarismos romanos? (ver Corbett, 1991) Em segundo lugar esta 2 ampliagio do significado do vocabulo género fora dos estudos linguis- ticos. Num dos verbetes da 2007 Wikipedia Selection for schools, do Reino Unido, hé uma nota que ode ser aplicada ao portugués: “In some parts of the socialsciences, following a usage shift that began in the 1950s and was well established by the 1980s, gender has been used increasingly to refer to social rather than biological categories, for which the word sex is used”. At que ponto a relagao lingua~ rrealidade focalizada no ensalo deriva dos novos empregos da palavra género? Assegao A nogdo de sistema eos limites da mudanca linguistica discute as mudangas introduzidas na lingua de modo consciente. Exemplos como amigx, amigg@ nascem da escrita. © Curso de Saus- sure reconheceu essa possibilidade, mas enfatizou o aspecto “teratolégico” de mudangas que nascem a escrita, Uma vez que 0 ensaio retoma a nocao de sistema em Saussure, seria interessante adicio- nar a visio fonocéntrica de Saussure & discussio. Cabe notar, porém, que as mudancas nos exemplos saussureanos afetavam fonemas de palavras isoladas. Sinto falta de mais atencio a propriedades _gramaticais lidas pela sintaxe, Em outras palavras: de inovagdes deliberadas na flexao. © texto parte da nogdo de neutralizagao em Fonologia: “Neutralizagdo, no sentido da Escola de Praga, envolve cancelamento de wi contrast, sto é, em lugar quando duas ou mats entidades opostas deixam de se diferenciar [...] Esse entendimento de neutralizagao, assim concebido para a fonologia pode, mutatis mutandis, ser considerado na anailise de fenémenos morfofonolégices”(p. 12). Esse en- tendimento leva a propor que Ouso de caracteres como x ou @ ¢ 0 uso de ¢ fechando substantivos e adjetivos é de fato uma, estratégia de neutralizacio de género, em que se propée o emprego de uma terceira marca além da ‘masculina ¢ da feminina. A oposi¢ao neste caso nao é privativa nem equipolente, mas gradual, nos termos da Escola de Praga. (p. 15) Seria interessante aprofundar o significado de *mutatis mutandis”: qual seria, por exemplo, ‘© membro extremo da oposi¢ao gradual? (Trubetzkoy (1969: 75). onazsiearateanvion 09 'SSA-onine.ON27I88 | VK Le revototminerg 22 REVISTA DA ABRALIN 2.4, Otexto ‘Nao hd problemas com a redagdo do texto. (© artigo pode ser publicado, mas gostaria de ver o aprofundamento das questies apontadas. Referencias ‘BONAZZL Mauro. 2000, Protagoras In ZALTA, Edvard N, fd) The Stanford Enejlopeda of Philosophy (all 2020 Ea ion), (CORBETT, Greville. 191. Gender. Cambridge: Cambridge University res. [ATTHEWS, PH, 2019 What Graeco-Roman Grammar ws about. Oxford: Osford Unversity Press. SSAUSGURE, Ferdinand de 191, Cansode_Lingsstien Geel orgenizade por Charles Salle alner Sechehaye coma claboragto ‘e Abert Reinger. Trad . Chel. Paes eI Blstein. Sto Paulo: Cults, 1972 “TRUBETZKOY, N.S. Prineples of Phonology. Berkeley / Los Angele: Universi of Catornia Press, 1969. 2007 Wikipedia Selection for schools.

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