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ARTE E BELEZA NA ESTETICA MEDIEVAL UMBERTO ECO Traducao Mario Sabino*Filho Revisdo técnica Roberto Romano 2." Edigao 1. INTRODUCAO éndio de histori jas estéticas, ela- Este é um compéndio de histdria das teorias es ' boradas pela cultura da Idade Média latina, dos séculos VI a XV de nossa era. Trata-se, porém, de uma definig&o cujos ter- mos devem ser definidos um a um. Compéndio. Nao se trata de uma pesquisa com pretenses de originalidade, mas de um resumo e de uma sistematizacdo de pesquisas precedentes — entre as quais, também a realizada pelo autor em seu estudo sobre o problema estético em Tomds de Aquino (1956): Em particular, este compéndio nao poderia ter sido concebido se nfo tivessem sido publicadas, em 1946, duas obras fundamentais: Etudes d’esthétique médiévale, de Ed gard de Bruyne, ¢ a coletanea de textos sobre a metafisica do belo feita por D.H. Pouillon. Acho que se pode tranqiiilamen- te dizer que tudo que foi escrito antes dessas duas contribui- g6es é incompleto e que elas so a base de tudo o que foi escri- to depois. Sendo um compéndio, este livro pretende ser acessivel mes- mo a quem ndo € especialista em filosofia medieval ou em his- toria da estética. Neste sentido, todas as citagdes latinas — e sdo multas —, quando breves, vém logo parafraseadas e, quando longas, vém seguidas de tradugdo.? Histdria, Compéndio histérico e n&o teérico. Como tam- bém se esclareceré no final, o objetivo deste livro é oferecer uma imagem de uma época, néo uma contribuicdo filoséfica a defi- nig&o contemporanea de estética, de seus problemas e de suas solug6es. Esta explicacio deveria bastar, e bastaria se esta fos- se uma historia da estética classica ou da estética barroca. Po- rém, como a filosofia medieval foi objeto, desde o século pas- sado, de uma reatualizacdo que tendeu a apresenté-la como phi- 9 losophia perennis, todo discurso sobre ela deve sempre esclare cer a fundo os préprios pressupostos filosSficos, Esclarego: es. te estudo sobre a estética medieval tem os mesmos propésitos Ge compreensiio de uma ¢poca histérica que poderia ter um outro sobre a estética grega ou sobre a estética barroca, Naturalmen- te, decide-se estudar uma época por aché-la interessante e por Considerar que vale a pena compreendé-la melhor. j Histéria das teorias estéticas. Justamente por se tratar de um compéndio histérico, nao se pretende redefinir, em termos ainda hoje aceitaveis, o que seja uma teoria estética. Partiu-se da acepgo mais ampla do termo, que da conta de todos os ca- sos em que uma teoria apresentou-se ou foi reconhecida como estética, Assim, entenderemos como teoria estética todo discurso que, com qualquer propssito sistemdtico e pondo em jogo con- || geitos filds6ficos, ocupe-se de alguifis fendmenos teferentes A) moral, fineao doa de-orne: mental, de estilo, aos juizos de gosto e também a critica destes |, juizos, €as teorias e (cas de interpretacic ou do, isto é, a t4o_hermenéutica — pois 08 problemas precedentes,.mesmo que, como acontecia parti: | cularmente.na Idade Média, ndo interesse apenas a0s.fendme- ), nas ditos estéticos, ~~ =~ ae No fim das contas, em vez de partir de uma definiedo con- tempordnea de estética e verificar se numa época passada ela era satisfeita (0 que deu lugar a péssimas histOrias da estética), melhor partir de uma definigao 0 mais sincrética e tolerante pos- sivel, e depois ver o que se encontra, Com estes objetivos, e as- sim como outros estudiosos fizeram, procurou-se integrar na medida do possivel os discursos te6ricos propriamente ditos com todos os textos que, embora escritos sem propésitos sistemati- cos (como, por exemplo, as observacdes dos preceptores de re- t6rica, as paginas dos m{sticos, dos colecionadores de arte, dos educadores, dos enciclopedistas ou dos intérpretes das Sagra- das Escrituras), refletem ou influenciam as idéias filosficas da época. Assim como procurou-se, no limite do possivel ¢ sem propésitos exaustivos, deduzir idéias estéticas subjacentes aos aspectos da vida cotidiana e & prépria evolugdo das formas.e das téonicas artisticas. 10 MMP UT he tReet Idade Média latina. A Idade Média fez em latim os discur- 08 tebricos, filos6ficos ou teoldgicos, e de lingua latina é a Idade Média escoléstica. Quando se comega a conduzir um discurso tedrico em lingua vulgar, a despeito das datas, jd estamos fora da Idade Média. Ao menos em boa parte. Este compéndio exa- a as concepsSes estéticas expressas pela Idade Média latina endo toca, a nao ser de leve, nas idéias da poesia trovadoresca, dos estilonovistas, de Dante (ainda que, no caso de Dante, te. nham sido feitas substanciais excegdes, especialmente no ult mo capitulo), para nao dizer de que vem depois dele. Sublinha- ria que na Itdlia estamos acostumados a colocar Dante, Petrar- cae Boccaccio na Idade Média, a espera de que Colombo des- cubra a América, enquanto em muitos paises, em relacdo a es- tes autores, jé se fala de inicio do Renascimento, Para contra- balangar, os mesmos que situam Petrarca no Renascimento fa- Jam de outono medieval referindo-se ao século XV borgonhés, flamengo ¢ alemao, ou seja, aos contemporaneos de Pico della andola, Leon Battista Alberti e Aldo Manuzio. nostalgia ——~Enifre as muitissimas acusagdes que eram dirigidas a essa época sem identidade (exceto a de ser “do meio”), havia justa~ mente a de nao ter tido sensibilidade estética, Nao discutiremos agora este ponto, pois os capitulos seguintes servem exatamen- te para corrigir essa falsa impressdio — e o capitulo conclusive mostrar4 como, por volta do século XV, a sensibilidade estéti- ca jd havia se transformado tdo radicalmente, para explicar, se ndo para justificar, o véu lancado sobre a estética medieval. ‘Mas a nocdo de Idade Média é embaracante também por ou- tras razbes, Como se pode reunir sob 0 mesmo rétulo uma série de sé- culos téo diferentes entre si? De um lado, aqueles entre a que- da do Império Romano ¢ a reestruturagdc carolingia, nos quais a Europa atravessa a mais assustadora crise politica, religiosa, demografica, agricola, urbana, lingifstica (ea lista poderia con. tinuar) de toda a sua histéria, e, do outro, os séculos da renas- 1 cenga apés 0 ano mil, pelos quais se falou em primeira Revolu- 40 Industrial, quando nascem as lnguas ¢ as nages moder- nas, a democracia comunal, 0 banco, a promisséria € as pal das dobradas, quando se revolucionam os sistemas de tracdo, de transporte maritimo, as técnicas agricolas, os procedimen-~ tos artesanais, inventam-se a buissola, a abébada ogival e, per- to do final, a pélvora e a imprensa? Como se pode ajuntar os séculos em que os arabes traduzem Aristételes e se ocupam de medicina e astronomia, quando a leste da Espanha, embora te- ham sido superados os séculos ‘“barbéricos””, a Europa toda- via ndo pode se orgulhar da prépria cultura? ‘No entanto, a culpa, se assim se pode dizer, desse “‘paco- te" indiscriminado de dez séculos & também, um pouc que, tendo escoll F 0 Jatim como lingua franca, o texto bit do pattistica como tinico Gultura cléssica, trabalha comentando e citando = nao dizer nunca nada de noyo, Nao é ver- io da inovasdo, mas pro- -la sob as vestes da repetico (ao contratio da cul ura moderna que finge inovar mesmo quando repete). A trabalhosa experincia de entender quando algo d€ no- vo foi dito — ao passo que o medieval se apressa em nos con- vencer de que esta simplesmente redizendo o que foi dito antes — também é sofrida por quem quer ocupar-se de idéias estéti- cas. Para tornd-la menos ardua, ao menos para 0 leitor, este compéndio avanca por problemas e ndo por perfis de autores. Ao tracar perfis, corre-se 0 risco de achar que cada pensador, j4 que usa os mesmos termos e as mesmas férmulas dos seus ppredecessores, continua a repetir a mesma coisa (para compreen- der que acontece 0 contrério, seria necessério reconstruir um a.um cada sistema). J4 avangando por problemas fica mais fé- cil, nos limites de uma répida pincelada, na qual se dedicam menos de duzentas paginas a quase dez séculos, seguir 0 per- curso de certas formulas e descobrir como estas, amitide insen- sivelmente, as vezes de modo bem evidente, mudam de signifi- cado — tanto que, ao final, percebe-se que uma expresstio muit _desgastada, por exemplo forma, no inicio era usada para indi Car o que se'vé na superficie, e no fim para indicar 0 que se oculta no Amago, ~ Por isso, mesmo reconhecendo que certos problemas e cer- 12 aneceram inalterados, preferiu-se, com fre- s momentos de desenvolvimento, de trans- indo cair no vicio historiogréfico (que nos tas solugGes perm: giténcia, acentuar 0 en 5 medieval avance “melii ‘ertamente a estética medieval sofreu uma matura- “Gao, levando-se em conta que, de citagdes um tanto acriticas de idéias recebidas de modo indireto do mundo classico, che- ga a se organizar no interior daquelas obras-primas de rigor sistematico que so as summae do século XIII. Mas se Isidoro de Sevilha nos faz sorrir com suas etimologias fantasiosas e Gui- Therme de Ockham, ao contrdrio, nos obriga a interpretar um. pensamento denso de sutilezas formais que ainda poem a pro- ‘ya os légicos do nosso tempo, isto nao significa que Boécio fosse ‘menos arguto que Duns Scotus ainda que tenha vivido oito sé- culos antes dele, A historia que nos dispomos a seguir é complexa, ¢ feita, rr nas paginas, conclusivas) que consiste_ de permanéncias e de rupturas. Em boa parte é histéria de per-—", manéncias, pois.a Idade Média foi uma época de autores que Sé Gopiavam em cadeia sem citar. mesmo porque em uma. \@Boca de Cultura manuscrita; comm os maniuscritos dificil icessiveis, copiar era o tinico meié de fazer circular as lingliéiti COnsiderava isso tum delito; de cépia em cépia, era fre- Gliente que ndo se soubesse mais qual a verdadeira paternidade de uma formula; no fim das contas, pensava-se que, se uma idéia era verdadeira, pertencia a todos. Mas essa histéria tem também alguns golpes teatrais. Nao apenas cenas barulhentas como 0 cogito cartesiano. Jacques Ma- titain observa que s6 com Descartes um pensador se apresenta Como ‘um iniciante em absoluto"* — ¢ depois de Descartes to- do pensador procuraré surgir, por sua vez, num palco jamais Pisado anteriormente. Os medievais no eram assim to espe- taculosos; pensavam que a originalidade fosse um pecado de orgulho (¢, naduela época, ao se pr em questio a tradigao ofi. cial, corriam-se alguns riscos, ndo s6 académicos). No entanto (¢revelamos isso s6 a quem ainda no sabia), eles também eram capazes de achados engenhosos ¢ lances geniais, 13 \ J + 2 A SENSIBILIDADE ESTETICA “MEDIEVAL 2.1 0s interesses estéticos dos medievais # °° %4,,.0_ A Idade Média tirou da antigitidade classica grande parte | de seus problemas estéticos, mas conferiu a tais temas um no- Yo significado, inserindo-os no sentimento do homem, do mundo da divindade tipicos da visdo crista. Extraiu da tradigdo bi- blica patristica outras categorias, mas empenhou-se em inseri- Jas nos quadros filos6ficos propostos por uma nova conscitn- cia sistemética. Em conseqiiéncia, sua especulagaio estética de- senvolveu-se num plano de indiscutivel originalidade. Todavia, temas, problemas ¢ solugdes poderiam ainda ser entendidos tam- bbém como depésito verbalista, assumido & forca de tradico, vazio de ressondncias efetivas no animo tanto dos autores co- mo dos leitores. Foi observado como, no fundo, ao falar de problemas estéticos ¢ a0 propor regras de producdo artistica, a antigtlidade cldssica tinha o olhar yoltado para_a natureza,. iuanto os medievais,.ao tratar dos mesmos temas, tinl o olhar voltado para a antigilidade cldssica; e, por um lado, to- da.a cultua medieval &, efetivamenite, mais do que uma refle- x80 sobre.a tealidade, um comentario da,tradieao cultural, ~) Mas este aspecto ndo exaure a atliude eritica do homem ~~ medieval: ao lado do culto dos conceitos transmitidos como de- éxito de verdade ¢ sabedoria, ao lado de um modo de ver a natureza como reflexo da transcendéncia, obstéculo e dilacdo, estd viva na sensibilidade da época uma fresca solicitude para com a realidade sensivel em todos os seus aspectos, compreen- dido 0 de sua fruigio em termos estéticos. Reconhecida a presenga desta reatividade espontdnea & be- Jeza da natureza e das obras de arte (talvez solicitada por est mulos doutrinais, mas que vai além do fato aridamente livres- 15 co), temos a garantia de que, quanda.9.filésofo medieval fala de beleza, no entende somente um conceito abstratoy-mas sé” remete a experiéncias concretas. ——Frelaro que na Idade Média existe uma concep¢do da bele- za puramente inteligivel, da harmonia moral, do esplendor me- tafisico, e que nds s6 podemos entender este modo de sentir se penetrarmos com muito amor na mentalidade ¢ na sensibilida- de daquela época. A propésito disto, ‘Curtius (1948, 12.3) afir- ma que: Quando a Escolastica fala da beleza, ela a entende como um att buto de Deus. A metafisica da beleza (por exemplo Plotino) ¢ a teoria da arte ndo tém nenhuma relacdo entre si. © homem ‘‘mo- “demo” supervaloriza exageradamente a arte porque perdeu 0 sen- tido da beleza inteligivel que possufam 0 neoplatonismo ¢ a Ida~ de Média (,..) Trata-se, aqui, de uma beleza da qual a estética ndo tem nenhuma idéia ° Porém, tais afirmativas ndo devem limitar em nada o nos- 0 interesse acerca destas especulagdes. De fato, a experiéncia da beleza inteligivel constitufa, antes de tudo, uma realidade moral e psicolégica para o homem da Idade Média, ¢ a cultura da época ndo permaneceria suficientemente iluminada se nos descuidassemos deste fator; em segundo lugar, ampliando 0 a 9 sensivel, os.medis gia, por paralelos| vais elaboravam a0-mesn dove: ‘ou implicitos, uma série de opini da beleza das coisas da natur neja da beleza en © gosto do homem comum, do artista “edo amante das coisas de arte, vigorosamente voltado para os aspectos sensiveis. Os sistemas doutrinais procuravam justfi- car e dirigit.este-gosia, documentado de muitas manciras, de odo" que a atencio para o sensivel ndo sobrepujasse jamais a tensdo para o espiritual, Alcuino admite que € mais facil amar 9s objetos de belo aspecto, os doces sabores, os sons suaves””, e assim por diante, do que amar a Deus (ver De rhetorica, in Halm 1863, p. 550). Mas se saborearmos estas coisas com a fi- nalidade de melhor amar a Deus, entdo poderemos também se- 16 in gos cundar a inclinacdo para o amor ornamenti, para as igrejas sun- tuosas, para o bel canto e para a bela miisica. ; ‘Pensar na Idade Média como a época da negado morali ta do belo sensfyel indica, além de um conhecimento supe! cial dos textos, uma incomy a0 basica dai dieval.” ose" , flaticos e rigoristas frente a beleza, tem-se um exemplo clarifi cador. Os moralistas e os ascetas, em qualquer latitude, nao so certamente individuos que ndo percebem o atrativo das alegrias terrenas; alids, sentem tais solicitagdes em grau mais intenso que 05 outros e precisamente neste contraste entre a reatividade ao terrestre e a tensdo para o sobrenatural funda-se o drama da disciplina ascética, Se esta disciplina atingir seu objetivo, o mis- tico € 0 asceta encontrardo na paz dos sentidos sob controle a possibilidade de contemplar com olhos serenos as coisas do mun- do; e poderdo avalid-las com uma indulgéncia que a febre da luta ascética Ihes proibia. Rigorismo e mistica medieval nos ofe- recem numerosos exemplos destas duas atitudes psicolégicas, e com eles uma série de documentos interessantissimos.sobre a sensibilidade estética corrente. talidade me~ 2.2. Os misticos E conhecida a polémica conduzida por cistercienses e cartu- xos, sobretudo no século XII, contra o luxo e o emprego de meios figurativos na decoracdo das igrejas: seda, ouro, prata, vitrais coloridos, esculturas, pinturas, tapetes so rigorosamente banidos pelo estatuto cisterciense (Guigo, Annales, PL 153, col. 655 ss.). J} Sao Bernardo, Alexandre Neckman, Hugo de Fouilloi se langam. ‘com veeméncia contra estas superfluitates que desviam os fitis da piedade e da concentragdo na prece. Mas em todas.estas.con- sdenagdes a beleza e a graga dos ormamentos nunca £ negada; aliés, ¢ justamente combatida porque se reconhece seuatrativo.ines— i cilidvel com_as exigéncias do Jugar sagrado,_ ‘A propésito, Hugo de Fouilli fala em mira sed perversa de- lectatio, (um prazer maravilhoso ¢ perverso), O perverso, como em todos os rigoristas, € ditado por razSes morais e sociais: isto é, questiona-se se se deve decorar suntuosamente uma igreja quando 08 filhos de Deus vivem na indigéncia. Mas o mira manifesta ‘um assenso indiscutfvel as qualidades estéticas do ornamento. 17 = Bernardo nos confirma esta disposic&o de animo, estendi- da as belezas do mundo em geral, quando explica a que os mon- ges renunciaram abandonando o mundo: Nos vero qui iam de populo exivimus, qui mundi quaeque pre- tiosa ac speciosa pro Christo reliquimus, qui omnia pulchre lu- centia, canore mulcentia, suave olentia, dulce sapientia, tactu pla- centia, cuncta denique oblectamenta corporea arbitrat! surnus ut stercora... Nés, monges, que estamos agora separados do povo, nés que abandonamos pelo Cristo todas as coisas preciosas e especiosas do mundo, nés, que, para alcanear Cristo, julgamos esterco to- das as coisas que resplandecem de beleza, que acariciam 0 ouvi- do com a dogura dos sons, que tem cheiro suave, que tém gosto doce, que agradam ao tato, e tudo aquilo, em suma, que acaricia © corpo... ; (Apologia ad Guillelmum abbatem, PL 182, col. 914-915; . 209.) it, Nao hé quem nio repare, mesmo na ira da repulsa e no insulto final, um vivo sentimento das coisas refutadas e uma sombra de saudade. Mas hé uma outra pagina da mesma Apo- logia ad Guillelmum que constitui um documento mais explici- to de sensibilidade estética. Langando-se contra os templos muito vastos e ricos demais de esculturas, Sao Bernardo fornece uma imagem da igreja estilo Cluny ¢ da escultura romanica que cons- titui um modelo de eritica descritiva; e, ao retratar 0 que re~ prova, demonstra o qudo paradoxal era o desdém deste homem, que conseguia analisar com tanta sutileza as coisas que no que- ria ver. Primeiro é desenvolvida a polémica contra a amplidao imoderada dos edificios: Omitto oratoriorum immensas altitudines, immoderatas longitu- dines, supervacuas latitudines, somptuosas depolitiones, curio~ sas depictiones quae dum orantium in se retorquent aspectum, ‘impediunt et affectum, et mihi quodammodo repraesentant anti- quum ritum Tudaeorum. Onito as alturas imensas dos oratérios, os comprimentos desmen- surados, as ampliddes desproporcionais, os soberbos polimentos, as pinturas curiosas que, ao desviar para si os olhos dos que oram, 18 impedem-Ihes a devogdo ¢, de certo modo, dao-me a impressio do antigo rito dos judeus. (PL 182, col. 914; tr. it. pp. 207-209.) Tantas riquezas ndo teriam sido dispostas para atrair ou- tras ¢ ajudar o afluxo de donativos as igrejas? ‘ Auro tects reliquiis signantur oculi, et loculi aperiuntur. Osten- dditur pulcherrima forma sancti vel sanctae alicuius, et €0 credi- tur sanctior, quo coloratior. Os olhos sao feridos pelas reliquias cobertas de ouro, enquanto das bolsas saem as moedas. Uma imagem belfssima de santo ou de santa é mostrada, ¢ os santos so tidos como mais santos qian- to mais vivamente sio colorido: (PL 182, col, 915; tr it, p. 210.) O fato estético nao & posto em discuss4o; é criticado, a0 ‘O'Seui emprego em fins i “worifessaveis de lucro. Currunt homines ad osculandum, invitantur ad donandum, et ma- gis mirantur pulchra quam venerantur sacra. ‘A gente corre a beijar, é convidada a fazer donativos ¢ mais ad- g 5 O ornamento distrai da prece. E entéo para que servem to- das aquelas esculturas que se observam nos capitéis? Ceterum in claustris, coram legentibus fratribus, quide facitilla ridicula monstruositas, mira quaedam deformis formasitas ac for- ‘mosa deformitas? Quid ibi immundae simiae? Quid feri leones? Quid monstruosi centauri? Quid seminomines? Quid maculosae tgrides? Quid milites pugnantes? Quid venatores tubicinantes? Videas sub uno capite multa corpora, et rursus in uno corpore capita multa. Cernitur hine in quadrupede éauda serpentis, illine in pisce caput quadrupedis, Ibi bestia praefert equum, capram tra- ‘hens retro dimidiam; hic cornutum animal equum gestat poste- rius, Tam multa denique, tamque mira diversarum formarum ap- Paret ubique varietas, ut magis legere libeat in marmoribus, quam 19 in codicibus, totumque diem occupare singula ista mirando, quam in lege Dei meditando, Proh Deo! Si non pudet ineptiarunt, cur vel non piget expensarum? De resto, o que faz nos claustros, onde os frades estio lendo o Oficio, aquela ridicula monstruosidade, aquela espécie de est: nha formosura deforme e deformidade formosa? O que esto a fazer ali os imundos macacos? Ou os ferozes leOes? Ou os mons- truosos centauros? Ou os semi-homens? Ou os manchados tigres? ‘Ou os soldados na batalha? Ou os cagadores com as tubas? Po- ddemse ver muitos corpos sob uma tinica caberae, vice-versa, mui tas cabesas sobre um tinico corpo. De um lado, discerne-se um ‘quadripede com cauda de serpente, do outro, um peixe com ca- beca de quadriipede. Lé, uma besta tem 0 aspecto do cavalo ¢ atrds arrasta uma meia cabra; cd, um animal chifrado tem o pos- terior de cavalo. Em suma, em toda parte aparece uma variedade ‘Ho grande e tHo estranha de formas heterogéneas que se prova maior géudio a ler 0s marmores que os cbdigos © a ocupar a jor- nada inteira admirando uma a uma estas imagens que'meditan- do allei de Deus. Ob, Senhor, se no nos envergonhamos destas criancices, por que, 20 menos, nfo nos desagradam as despesas? @PL 182, col. 915-916; tr. it. p. 213.) Nesta pagina, como na citada anteriormente, podemos en- contrar um alto exercicio de belo estilo, segundo os ditames da €poca, com todo 0 color rhetoricus j4 recomendado por Sid6- nio Apolinério, a riqueza das determinationes ¢ das hdbeis con- traposicbes. E também esta é uma atitude tipica dos misticos; veja-se, por exemplo, Sdo Pedro Damiao, que condena a poe- sia ou as artes plésticas com a oratéria perfeita de um retorico consumado. O que nao é de espantar, pois quase todos os pen- sadores medievais, misticos ou n4o, tiveram ao menos na ju- ventude a sua estag&o postica, de Abelardo a Séo Bernardo, dos vitorinos a Santo Tomds e Sao Boaventura, produzindo mui- tas vezes simples exercicios de escola, amitide exemplos entre 8 mais altos nos limites da poesia latina medieval, como ¢ 0 caso do Oficio do Sacramento, de Santo Tomés.! Voltando aos rigoristas (jé que é este exemplo-limite o que nos parece 0 mais convincente), eles parecem sempre polemi- zar sobre algo de que percebem todo 0 fascinio, positivo ou pe- rigoso que se afigure, B encontram neste sentimento um prece- dente bem mais apaixonado e sincero no drama de Agostinho, 20 qual fala do diss{dio do homem de fé que teme continuamen- te ser seduzido durante a prece pela beleza da musica sacta (Con- ‘fess. X, 33). Enquanto isto, Santo Tomés, com maior pacatez, volta 4 mesma preocupacdo quando desaconselha uso litur- gico da misica instrumental. Os instrumentos devem ser evita- dos justamente porque provocam um deleite de tal maneira in- tenso que desviam o 4nimo do fiel da primitiva intengdo da mui- sica sacra, que é realizada pelo canto. © canto move os &nimos & devogdio, enquanto musica instrumenta magis animum mo- vent ad delectationem quam per ea formetur interius bona dis- ‘positio (os instrumentos musicais mais incitam 0 animo ao prazer {que as boas disposi¢des interiores).? A repulsa é inspirada no reconhecimento de uma realidade estética danosa em tal sede, mas em si valida, Obviamente a Idade Média mistica, ao desconfiar da bele- za exterior, refugiava-se na contemplagdo das Escrituras ou no 020 dos ritmos interiores da alma em estado de graca. E, a este propésito, falou-se de uma estética socrdtica dos cistercien- ses, fundada na contemplacdo da beleza da alma: Ovvere pulcherrima anima quam, etsi infirmum inhabitantem cor- usculum, pulchritudo caelestis admittere non despexit, angelica sublimitas non reiecit, claritas divina non repulit! Oh, alma, que és verdadeiramente a mais bela, mesmo habitan- do um frégil corptisculo, a beleza celeste ndo se recusou a acolher- te junto a si, a sublime natureza angélica no te rejeitou, a luz divina néo te repeliu! (S40 Bernardo, Sermones super cantica canticorum, PL. 183, col. 901; também Opera I, p. 166.) Os corpos dos mértires, horriveis & visdo depois dos hor- ores do suplicio, resplandecem de uma vivida beleza interior. A contraposicdo entre beleza exterior e beleza interior é, efetivamente, tema recorrente em toda a época, Mas também aqui a fugacidade da beleza terrena é sempre percebida com um sentimento de melancolia, da qual a expresso mais comovida é talvez encontravel em Boécio, que no limiar da morte lamen- ta, na Consolatio philosophiae (III, 8), quanto é rapido o es- plendor das feicdes exteriores, mais répido e fugaz que as flo- a res primaveris: Formae vero nitor ut rapidus est, ut velox et vere nalium florum mobilitate fugacior\ Variagko estética ae tema moralista do ubi sunt, difundido em toda a Idade Média (onde estdio os grandes de um tempo, as magnificas cidades, as Tique- 2as dos orgulhosos, as obras dos poderosos?). Atrés da cena da danga macabra que celebra o triunfo da Morte, a Idade Me, dia manifesta, a intervalos, o sentimento outonal da beleza que Morre, ¢ por mais que uma f€ inabalavel permita que se olhe Com serena esperanea a danca da irma morte, resta sempre aquele véu de melancolia que, além da maneira retérica, transparcce exemplarmente na villoniana Ballade des dames du temps ja. dis: “Mais ou sont le neiges d’antan?”3 Frente a perecivel beleza, a tinica garantia é dada pela beleza interior que ndo morre; e, ao recorrer a essa beleza, a Idade M&- dia opera, no fundo, uma espécie de recuperacdo do valor estéti- co frente a morte. Se os homens possulssem os olhos de Linceu, diz Boécio, perceberiam quao torpe é a alma do belissimo Alcc- ‘biades, que, pelo seu vigor, parece-Ihes to digno de admiracio, ‘Mas a esta manifestagdo de desconfianca (para reagir a ela Boé- Gio refugiava-se em seguida na beleza das relagdes matemético- musicais) corresponde uma série de textos sobre a beleza da recta anima in recto corpore, da alma honesta que se difunde e mani- festa por toda a figura exterior do cristo ideal: Et revera etiam corporales genas alicujus ita grata videas venus- tate refertas, ut ipsa exterior facies intuentium animos reficere Possit, et de interiori quam innuit cibare gratia. E de fato tu vés que as faces de uma pessoa sto tdo cheias de gra ciosa beleza que 0 aspecto exterior pode reavivar os animos dos que as olham e pode alimenté-los da graga interior da qual ele é sinal, (Gilberto de Hoyland, Sermones in canticum salomonis 25, PL 184, col. 125.) E Sao Bernardo afirma: (Cum autem decoris huius claritas abundantius intima cordis re- pleverit, prodeat foras necesse est, tamquam lucerna latens sub ‘modio, immo lux in tenebris lucens, latere nescia. Porro efful- 4gentem et veluti quibusdam suis radiis erumpentem mentis simu lacrum corpus excipit, et diffundit per membra et sensus, quate- 22 ‘us omnis inde reluceat actio, sermo, aspectus, incessus, risus, si ta- ‘mem risus, mixtus gravitate et plenus honesti. Em seguida, quando o esplendor desta magnificéncia preencheu mais abundantemente os recessos do coragdo, é necessirio que este se mos tre ao exterior, como uma lucerna escondida sob o alqueire; ou me- Ihor, como uma luz incapaz de permanecer escondida nas trevas, re. luzindo, Ademais, o corpo recebe o simulacro da mente, que brilha ‘equase irrompe com seus raios, eo difunde através dos préprios mem. bros e sentidos ate que resplandega;-por isso, toda aco, discurso, olhar, 0 porte ¢ 0 modo de rir — contanto que se trate de um ris misturado & dignidade e pleno de verecindia. (Sermones super cantica canticorum, PL 183, col. 1193; também Opera Tl, p. 314,) Portanto, mesmo no auge de uma polémica rigorista apa- rece também o sentimento da beleza do homem e da natureza. ‘Mais ainda, em uma mistica que superou 0 momento do asce- tismo disciplinar para resolver-se em mistica da inteligéncia € do amor serenado, na mistica dos vitorinos a beleza natural apa~ tece finalmente reconquistada em toda a sua positividade. Pa- ta Hugo de Sao Vitor, a contemplacdo intuitiva é uma caracte. ristica da inteligéncia que ndo se exercita apenas no momento especificamente mistico, mas também pode-se voltar para o mun do sensivel; a contemplacdo é um perspicax et liber animi con. fuitus in res perspiciendas (ura olhar livre e arguto do animo, Voltado para o objeto a ser colhido) que se resolve em uma ade, sio deleitosa ¢ exultante ds coisas admiradas. O deleite estético Provém, efetivamente, do fato de que o animo reconhece na matéria a harmonia de sua propria estrutura; e, se isto aconte- ceno plano da affectio imaginaria, no estado mais livre da con. templacdo a inteligéncia pode voltar-sc verdadeiramente para © espeticulo maravilhoso do mundo e das formas: Aspice mundum et omnia quae in eo sunt; multa ii specie pul- chras et ilecebrosas invenies... Habet aurum, habent lapides pre. asi Fulgorem suum, habet decor carnis speciem, picta et vestes Fucaiae colorem, Olha o mundo ¢ todas as realidades existentes: ha muitas coi- sus belas © agradéveis... O ouro e as pedras preciosas refulgem diversamente, a beleza do corpo humano tem muitos atrativos, 23 98 arrases de varias cores e as vestes resplandecentes tém seu fascinio. oliloquium de arrha animae, PL 176, col. 951-952,)* Afora, portanto, as discussdes especificas sobre a natureza do belo, a Idade Média é cheia de interjeigdes admirativas; ¢ ‘so essas interjeipdes que garantem a ades&o da sensibilidade ao discurso doutrinal. Buscd-las nos textos dos misticos, e nao em outros lugares, parece-nos constituir uma. espécie de prova dos nove. Um tema como o da beleza feminina, por exemplo, constitui para a Idade Média um repertério bastante utilizado. Quando Mateus de Vendéme, em sua Ars. versificatoria, nos da as regras para compor uma bela descrigdo de uma bela mulher, 9 fato nos impressiona pouguissimo; trata-se, metade, de jogo ret6rico e erudito, de imitagdo cldssica, e, quanto & outra meta de, € I6gico que entre os poctas estivesse disseminado um senti- mento da natureza mais livre, como testemunha toda a poesia latina medieval. Mas quando os escritores eclesidsticos comen- tam 0 Céntico dos cénticos e discutem a beleza da esposa, em- bora o discurso esteja voltado para o discernimento dos signifi- cados aleg6ricos do texto biblico e das correspondéncias sobre- naturais de cada aspecto fisico da menina nigra sed formosa, toda vez que o comentador descreve, com fins didaticos, o pré- Prio ideal da beleza feminina, revela um sentimento esponta- ‘neo, imediato, casto mas terreno deste valor. E Ppensemos no elo- sio que Balduino de Canterbury faz. aos cabelos femininos pre- sos em tranga, onde a referéncia alegérica no exclui um indu- bitavel gosto pela moda corrente, uma descrigdo exata e con- vincente da beleza de tal penteado, e a explicita admissio do fim exclusivamente estético de tal uso (Thactatus de beatitudini- bus evangelicis, PL 204, col. 481). Ou ainda no singular texto de Gilberto de Hoyland, que, com uma seriedade que sé agora, ands modernos, pode parecer temperada de uma certa malici define quais devam ser as justas proporgdes dos seios femi nos para que resultem agradaveis. O ideal fisico que dele emer- ge parece muito préximo as mulheres das minjaturas medievais, pelo estreito corpete que tende a comprimir e a realgar 0 seio: Pulchra sunt enim ubera, quae paululum supereminent, et tument modice... quasi repressa, sed non depressa; leniter restricta, non Sluitantia licenter. 24 Belos sdo, de fato, os seios que pouco se elevam e so mesurada- mente timidos... contidos, mas ndo comprimidas, ligados doce- mente e néo livres para ondear. (Sermones in canticum 31, PL 184, col. 163.) 2.3 O colecionamento Quando se abandona o territério dos misticos e se entra no campo da cultura medieval restante, tanto laica como esco- léstica, a sensibilidade ao belo natural e artistico é, entdo, um fato concreto, Observou-se que a Idade Média mun; tegoria tala de bel “de arte, de modo que ‘Esem qualquer ay Nos pardgrafos seguintes examinare- mos também esta questo, propondo uma solugdo menos pes- simista; mas desde jé no podemos deixar de notar um aspecto da sensibilidade comum e da linguagem cotidiana, que associa va pacificamente termos como pulcher ou formosus a obras da ars. Textos como os recolhidos por Mortet (1911-29), erdnicas das construgdes de catedrais, epistoldrios sobre questdes de ar- te, comissées a artistas misturam continuamente as categorias da estética metafisica com a avaliagdo das coisas de arte, Indagou-se, ainda, se os medievais, Prontos a usar a arte para fins didascélicos ¢ utilitérios, percebiam a possibilidade de uma contemplacdo desinteressada de um | este qite comporta da tica, Para res- ponder @ fais questdes, existiriaim mimierosos textos, thas alguns exemplos parecem singularmente representativos e significativos. Observa Huizinga (1955, pp. 378, 381) que “‘a consciéncia de um gozo estético e sua expresso em palavras 6 se desen- volveram tardiamente, O homem do século XV dispunha, para [ exprimir sua admiraga¢ freite is.ob: esperariamos de titi burgués estupefat Baile exalt, cont difuma certa ir ia.de.gosto._ Huizinga mostra como os medievais convertiam répido 0 sentimento do belo em um sentido de cominliaotor -viver, Bles, € certo, néo ti- 208 mostraram ay corpo Satta da religio david como » 08 romfinticos) ou da religito tou? court 20 tout aa cfinte, soo bee eas). Como veremos o bom, com 0 verdadeiro e com todos os cine it com ser eda divindade, A Idade Média nfo podia, nfo cmtee oo aura oon Sad aat its re S7a de Satands, Nem mesmo Dante cbnseguird isto, anan gntender a beleza de uma paixio que leva a0 pede te Para compreender melhor 0 gosto medieval, deveinos re- correr a um protétipo do homem de gosto e amante da arte do século XII: Suger, abade de Saint Denis, animador das maio- res empresas figurativas ¢ arquitetOnicas da lle de France he. mem politico e humanista refinado (cf. Panofsky 1946, Taylor 1954, Assunto 1961). Como figura psicoldgica e moral, Suger € 0 oposto de um rigorista como Sao Bernardo: para o ‘abade de Saint Denis a casa de Deus tem de ser um recepticulo de be. leza. Seu modelo é Salomao, que construiu o Tempio; o senti- mento que o guia é a dilectio decoris domus Dei (0 amor pela beleza da casa de Deus), O tesouro de Saint Denis é rico em objetos de arte e ouri- vesaria, que Suger descreve com miniicia e comprazimento “‘por temor que o Esquecimento, rival ciumento da verdade,insinue-se € apague o exemplo para uma agao ulterior’’. Por exemplo, ele nos fala com paixdo de “um grande cdli- ce de 140 oncas de ouro, adornado de gemas — zirconitas ¢ to- pazios — e de um vaso de pérfiro, 0 qual havia permanecido inutilizado num cofre por muitos anos, que a mao do escultor tornou admirdvel, ao transformé-lo de anfora na forma de uma guia”. E ao enumerar essas riquezas no péde conter a entu- sidstica admiragdo e satisfagdo por ter omamentado o templo com objetos tao admirdveis: Hace igitur tam nova quam antiqua ornamentoruim discrimina ‘ex ipsa matris ecclesiae affectione crebro considerantes, dum illam ammirabilem sancti Eligii cur minoribus crucem, dum incompa- rabile ornamentum, quod vulgo “crista” vocatur, aureae arae su- erponi contueremur, corde tenus suspirando: Omnis, inquam, lapis preciosus operimentum tuum, sardius, topazius, jaspis, cri- ssolitus, onix et berillius, saphirus, carbunculus et smaragdus, 26 Freqllentemente contemplamos, para além da simples ligago com nossa mae igreja, estes diversos ornamentos velhos ¢ Novos; € quando olhamos a maravithosa cruz de Santo Elsi — juntamen- ‘tecom as menores — e aqueles incompardveis ornamentos... que esto colocados sobre o altar dourado, entdo digo, suspirando das profundezas do meu coracdo: “Toda pedra preciosa foi tua veste, a sardénica, 0 topazio, 0 jaspe, o ctisélito, o nix, o ber= fio, a safira, a granada; a esmeralda’’, (De rebus in administratione sua gestis, PL 186; ed. Panofsky 23, 17 ss,, p. 62.) Diante de tais paginas, sem diivida deve-se concordar com Huizinga: Suger aprecia, antes de tudo, os materiais preciosos, as gemas, o ouro; o sentimento dominante € odo maravilhoso, fio 0 do belo entendido como qualidade organica. Em tal sen- tido, Suger aparenta-se aos outros colecionadores da [dade Mé- dia, que enchiam indiferentemente seus tesouros de obras de arte propriamente ditas e das mais absurdas curiosidades, co- ‘mo transparece por inventérios semelhantes ao do tesouro do duque de Berry, contendo chifres de unicérnio, o anel de noi- vado de Sao José, cocos, dentes de baleia, conchas dos sete mares (Guiffrey 1894-96; Riché 1972), B frente a colegdes de trés mil Objetos, entre os quais setecentos quadros, um elefante embal- samado, uma hidra, um basilisco, um ovo que um abade havia encontrado dentro de um outro ovo, e mand caido durante uma carestia, € mesmo de se duvidar da pureza do gosto medieval ¢ da sua capacidade de distinguir entre belo e curioso, arte € teratologia, Porém, mesmo diante das listas ingénuas, nas quais ‘Suger quase se compraz dos termos que utiliza ao catalogar ma- teriais preciosos, percebemos como, a um gosto ingénuo pelo prazet imediato (¢ também esta é uma atitude estética elemen- tar), a sensibilidade medieval unia, no fundo, a consciéncia cri- tica do valor do material no contexto da obra de arte, para a qual a escolha da matéria a ser composta ja 6 um primeiro fundamental ato compositivo, Um gosto pela matéria plasma- da, ndo s6 pela relacdo plasmante, que indica uma certa segu- Tanga e sanidade de reagdes. J4 quanto ao fato de o medieval, ao contemplar a obra de arte, deixar-se arrastar docemente pela fantasia, sem se deter na unidade do conjunto, a traduzir a alegria estética em alegria de viver ou alegria mistica, isto é mais uma vez documentado 21 por Suger, que diz palavras de efetivo arrebatamento a propd- sito da contemplagio das belezas da sua igreja: Unde, cum ex dilectione decoris domus Dei aliquando multico- lor, gemmarum speciositas ab exintrinsecis me curis devocaret, ‘sanctarum etiam diversitatem virtutum, de materialibus ad im- ‘materialia transferendo, honesta meditatio insistere persuaderet (su) videor videre me quasi sub aliqua extranea orbis terrarum laga, quae nec tota sit in terrarum faece nec tota in coell purita- te, demorari, ab hac etiam inferiori ad illam superiorem anago- ico more Deo donante posse transferi. Por isso, quando pelo amor que nutro pela beleza da casa dé Deus, ‘a caleidoscépica formosura das gemas me distrai das preocupa- ges terrenas e, transferindo também a diversidade das santas vir- tudes das coisas materiais aquelas imateriais, a honesta medita- edo me persuade a conceder-me uma pausa (...) parece-me ver a mim mesmo em uma regido desconhecida do mundo, que nio std completamente na lama terrestre, nem se acha de todo colo- cada na pureza do céu, e me parece ser possivel transferir-me, com a ajuda de Deus, desta inferior aquela superior, de modo anagézico. (De rebus, ed. Panofsky 23, 27 s8., p. 62.) As indicagdes deste texto so miltiplas: de um lado, nota- mos um ato de contemplacdo estética propriamente dita, pro- vocada pela presenca sensfvel do material artistico; do outro, esta contemplagao tem caracteres proprios que no so nem os do gozo puro ¢ simples dos sensfveis (‘‘lama terrestre””) nem os da contemplacdo intelectual das coisas celestes. Todavia, a passagem da alegria estética para a alegria de tipo mistico é quase imediata, A degustacdo estética do homem medieval nao con- siste, portanto, em fixar-se na autonomia do produto artistico ou da realidade da natureza, mas em colher todas as relagbes sobrenaturais entre 0 objeto ¢ 0 cosmo, em perceber na coisa cconereta um reflexo ontoldgico da virtude participante de Deus, 2.4 Utilidade e beleza E dificil hoje compreender esta distingao entre beleza e utili- dade, beleza e bondade, pulchrum e aptum, decorum e hones- 28. tum, da qual esto repletas as discuss6es escolésticas ¢ as inves- tigagdes de técnica poética, Freqiientemente, os tedricos se es- foram em distinguir estas categorias, ¢ temos uum primeiro exem- plo numa pagina de Isidoro de Sevilha (Sententiarum libri tres 1, 8, PL 83, col. $51) para quem o pulchrum € aquilo que ¢ belo por si mesmo, e 0 aptum, aquilo que é belo em fung&o de algo (doutrina, de resto, transmitida pela antigiiidade e passada de Cicero a Agostinho e de Agostinho a toda a Escoléstica). Mas a atitude prética perante a arte manifesta mais uma mistura que ‘uma distingdo de aspectos. Aqueles mesmos autores eclesidsti- cos que celebram a beleza da arte sacra insistem depois em seu fim didascélico; 0 objetivo de Suger € o jé sancionado pelo si- nodo de Arras, em 1025; aquilo que os simples no pudessem entender através da escritura deveria ser aprendido através das figuras; 0 objetivo da pintura, diz Honério de Autun, como bom enciclopedista que reflete a sensibilidade de sua época, ¢ tripli- ce: ela serve, antes de tudo, para embelezar a casa de Deus (ut domus tali decore ornetur), para révocar a vida dos santos e, fi- nalmente, para o deleite dos incultos, j4 que a pintura é a litera- tura dos laicos, pictura est laicorum iitteratura.’ B quanto & li- teratura, o ditame corrente € o por demais conhecido “ser util e deleitar”’, da intelligentiae dignitas et eloquit venustas (digni- dade do conceito ¢ beleza do eléquio), através do qual se difun- de a estética conteudistica dos literatos carolingios. E necessdrio lembrar que tais concepgSes ndo represen- tam nunca um depauperamento didascdlico da arte: na verda- de, para o medieval € muito dificil ver os dois valores separa- dos, € ndo por falta de espirito critico, mas porque ndo conse- gue conceber uma oposicdo entre valores — quando se trata de valores. Endo por acaso um dos grandes problemas da estética escoldstica foi precisamente o da integracdo em nivel metafisi- co do belo com os outros valores. A discussdo sobre a trans- cendentalidade do belo constituiu a maior tentativa de legiti- mar a sensibilidade da qual se falou, embora elaborando dis- tingdes que justificassem planos de autonomia nos quais 0 va- lor estético podia realizar-se, 29

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