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PRESSUPOSTOS SINTÁTICOS E SEMÂNTICOS, Língua Portuguesa III, 2020 1

1 A SEMÂNTICA NA GRAMÁTICA.
Para começar, recuperando: 1. A semântica tem muita história.
2. A semântica é pelo menos três.
3. A semântica não está sozinha.

1.1 Relações entre Fonologia, Sintaxe e Semântica.


Contraexemplos de ambigüidade (sentenças labirinto) entre Fonologia e Sintaxe (GONÇALVES, 2004):
(1) a. The boat floated down the river sank (de oração principal – NP relativo)
b. The horse raced past the barn fell

(2) a. The doctor told the patient He was having trouble with to (de oração complemento – oração
live relativa)

(3) a. After Susan drank the water evaporated (de objeto-sujeito)


b. While she was mending the sock fell

(4) a. Todd gave the boy the dog bit a bandage (de duplo objeto)
b. Ian gave her earrings to Mary

(5) a. The old train the children (lexical)


b. O navio angolano entrava no porto o navio brasileiro

Solução: prosódia, em Steedman (2002), apud Gonçalves (2004).


(1’) b. The horse raced past the barn fell (Which horse fell?)

(The horse raced past the BARN) (FELL)


H* L L+H* LH%
Rema Tema
Onde: H e L indicam tom alto e baixo, % é fronteira prosódica, * é subida rápida do contorno entoacional, e +
é subida mais lenta.

1.2 Relações entre Sintaxe e Semântica.


Contraexemplos de ‘regência’. Novamente, as preposições
(6) Ouviu o barulho ⇒ Ouviu do barulho
Penetrar a parede ⇒ Penetrar na parede
Perdi o viço ⇒ Já perdi desse viço
Prejudicou a lavoura ⇒ Prejudicou com a lavoura
Produzi o tecido ⇒ Produzi desse tecido
Procurei o documento ⇒ Procurei pelo documento
Quebrei a porta ⇒ Quebrei com a porta
Ralei a cenoura ⇒ Ralei da cenoura
Reatei o namoro ⇒ Reatei com o namoro
Recortei o papel ⇒ Recortei do papel
Refleti o problema ⇒ Refleti sobre o problema
Ele respirou o ar puro ⇒ Repirei do ar puro

1.3 Relações entre Cognição e Semântica.


A ergativização do PB (NEGRÃO & VIOTTI, 2011):
(7) a. ? O assunto trata
b. Se eu tivesse mandado o trabalho pro congresso, eles tinham me colocado na mesa que esse assunto
tava tratando.

Resposta: As mudanças gramaticais nas línguas são condicionadas pelo modo de conceptualização de mundo
(LANGACKER, 1993)
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2. PRESSUPOSTOS SINTÁTICOS (KATO & MIOTTO, 2009)

Há três grandes motivações empíricas e teóricas para a representação X-barra na sintaxe: a fronteira entre
palavras de classe aberta e as palavras de classe fechada; a vantagem da representação binária em detrimento
da ternária; a assimetria entre sujeito e objeto.

2.1 Classes abertas e classes fechadas.

(8) O cantor encaixotou os instrumentos ontem.

As classes abertas resumem-se a quatro: a raiz cant-, a raiz caix-, a raiz instrument- e a palavra ontem. O quadro
abaixo faz a correspondência com seus significados conceituais:

Palavras de classe aberta Significados conceituais


cant- Evento agentivo de alguém emitir som ritmado
caix- Objeto físico concreto de diversos formatos com alguma
funcionalidade, convencionalmente para guardar objetos
instrument- Nome genérico de objetos com alguma funcionalidade; no
contexto: instrumentos de música
ontem Nome de um intervalo de tempo, convencionalmente de
24h, que antecede o dia do enunciado pelo falante

As classes fechadas, relacionais, vão construir outros significados às palavras sobre as quais operam:

Palavras de classe fechada Relações que estabelecem


o Determinante (artigo) masculino singular que seleciona um
nome (substativo) para significar sua especificidade
-or Sufixo que seleciona um nome para significar um agente de
uma ação.
-ot Sufixo que seleciona um nome para significar grau
diminutivo
-ou Flexão de terceira pessoa do singular que seleciona um
verbo para significar passado declarativo (ou indicativo)
os Determinante (artigo) masculino plural que seleciona um
nome (substantivo) plural para significar sua especificidade
-s Flexão que seleciona um nome para significar plural

Mas: Classe aberta pode ser relacional? Classe fechada pode ter significado? Sim.

2.2 Representação binária

Da sintaxe de reescritura (década de 70, da Gramática Gerativa) para a sintaxe X-barra (década de 90 pra
frente).
Uma gramática de reescritura:
vocabulário: Det ⇒ o, a
N ⇒ mesa, cozinha, armário, lavanderia, joão
V ⇒ comprou
P ⇒ de
Conj ⇒ e
regras de reescritura: S ⇒ NP VP
S ⇒ S Conj S
NP ⇒ (Det) N (PP)*
NP ⇒ NP Conj NP
VP ⇒ V (NP) (PP)
PP ⇒ P NP
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*Os parênteses indicam constituintes opcionais

Um sintagma nominal como a mesa da cozinha tem a seguinte estrutura ternária:

NP

Det N PP

a mesa P NP

de Det N

a cozinha
Figura 1: estrutura arbórea ou derivacional ternária de a mesa da cozinha, segundo o fragmento de gramática
acima.
Problemas: como decidir se a direção da derivação? Qual é a diferença entre a mesa da cozinha e a construção do
muro pelo pedreiro? A estrutura não dá conta. Então:

NP

Argumento 1 N’

N0 Argumento 2
Figura 2: estrutura arbórea ou derivacional binária de um NP, desdizendo o fragmento de gramática acima, e
contemplando a teoria X-barra.

DP

D’ NP

D0 N’ PP

a N0 pelo pedreiro
construção
PP

do muro
Figura 3: estrutura arbórea, derivacional, binária X-barra, com projeção DP para a construção do muro pelo
pedreiro.
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DP

D’
posição de adjunção – na duplicação de
NP
D0 NP

a NP PP

N’ P’

N0 P0 DP
mesa de
D’

D0 NP
a
N’

N0
cozinha
Figura 4: estrutura arbórea, derivacional, binária X-barra, com projeção DP para
a mesa da cozinha.

2.3 A assimetria entre sujeito e objeto

As leituras distributiva e coletiva:


(9) a. Meus três irmãos correram no parque ontem, ⇒ Leitura distributiva
(mas cada um perto da sua casa)
b. Meus três irmãos correram no parque ontem, ⇒ Leitura distributiva
(mas só João e Marcos no velódromo)
c. Meus três irmãos correram no parque ontem, ⇒ Leitura coletiva
(e foram os três juntos)

O papel do VP:

(10) Meus três irmãos são roqueiros


(11) Meus três irmão abraçaram o pinheiro do sítio

A iteratividade:

(12) a. Marcos redigiu os três pedidos, ⇒ Leitura iterativa


(um de cada vez)
b. Marcos redigiu os três pedidos, ⇒ Leitura iterativa
(dois e depois mais um)
c. Marcos redigiu os três pedidos, ⇒ ? Leitura episódica
(? os três ao mesmo tempo)

Novamente, os VPs:

(13) a. A mulher do Marcos gestou os gêmeos por 7 meses


b. Marcos visitou os parques da cidade
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E ainda o tema incremental:

(14) a. Manuela leu o livro.


b. Thais pintou o quadro.
c. Érica correu um quilômetro.

Mas nem sempre o objeto é tema incremental:


(15) a. Manuela consertou a geladeira.
b. Thais rasgou a folha de papel.
c. Érica quebrou o copo.

O tema incremental restringe alternância causativa:

(14’) a. ? O livro leu.


b. ? O quadro pintou.
c. ? Um quilômetro correu.

(15’) a. Ok A geladeira consertou.


b. Ok A folha rasgou.
c. Ok O copo quebrou.

Logo, a estrutura x-barra parece dar conta de classes abertas e fechadas, da vantagem da estrutura binária e
da assimetria entre sujeito e objeto:

XP

Argumento 1 X’

X0 Argumento 2
Figura 5: representação genérica de constituinte XP.

A figura acima aplica-se a NP, VP, AspP, TP, MoodP, etc., fazendo com a que derivação sintática ocorra sob
um menor conjunto de regras possível.

3 PRESSUPOSTOS SEMÂNTICOS (FREGE, 2009[1892])

3.1 Em Frege (suas opções em itálico): referência e conceito.

Sentido e referência (a relação intuitiva de Frege para a conceituação de ‘significado’)


“Um nome próprio (palavra, sinal, combinação de sinais, expressão) expressa seu sentido e designa ou refere-
se à sua referência.” (p. 136)
“O pensamento permanece o mesmo se o nome “Ulisses” tem referência ou não.” (p. 138)
“a = a e a = b são, evidentemente, sentenças de valor cognitivo [Erkenntniswert] diferentes” (p. 129)
“A idéia é subjetiva: a idéia de um homem não é a mesma de outro. Disto resulta uma variedade de diferenças
nas idéias associadas a um mesmo sentido... Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo provavelmente associarão
idéias muito diferentes ao nome “Bucéfalo”. A ideia, por tal razão, difere essencialmente do sentido de um
signo, o qual pode ser a propriedade comum de muitos e, portanto, não é parte ou modo da mente
individual.”(p. 134)
“De fato, para a poesia basta o sentido, basta o pensamento sem referência, sem valor de verdade; mas tal não
basta para a ciência.” (p. 166)
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Predicado e sujeito (a relação na tradição gramatical)


“O melhor seria eliminar totalmente da lógica as palavras ‘sujeito’ e ‘predicado’, posto que elas nos levam
continuamente a confundir duas relações radicalmente diferentes: a de cair um objeto sob um conceito e a de
subordinar um conceito a outro conceito.” (p. 162)

Signo e referente (a relação na Semiótica)


Semiótica

Conceito e objeto (a relação na Filosofia)


F
“O conceito – tal como entendo esta palavra – é predicativo [aa referência de um predicado gramatical](...) “A
referência da palavra Vênus nunca pode ser um conceito, mas somente um objeto” (p. 112, 114)

Função e argumento (a relação mais abstrata, na lógica)



“O conceito é uma função de um argumento, cuja referência é um valor de verdade.” (p. 160)

Significado analítico e significado sintético

3.2 Em uma visão pictórica:

SENTIDO
+HUMANO

Aristóteles ⇒⇒⇒⇒⇒⇒

REFERÊNCIA

Ser grego
Ser filósofo
CONCEITO Nascer em Estagira
Ser aluno de Platão
...
Figura 6: esquema das noções de sentido, referência
referência e conceito, em Frege.

3.3 Problemas de referência (LYONS, 1977, p. 147-163;


147 CANÇADO, p. 77-90)

Fenômeno Exemplo de Problema da referência


referencial sentença
(16) a. Pressuposição ⇒ O atual rei da França A pressuposição da descrição
descr definida é a
temporal é calvo de que existe um rei da França, mas não
hoje
b. Sintagmas nominais ⇒ Giscard d’Estaing é o Em posição pós-verbo
pós cópula (é), a
definidos não- presidente da França descrição definida, perde o valor
referenciais referencial para auusmir f
função
predicativa
c. Ambiguidade ⇒ Aqueles livros custam Com função dêitica, os pronomes
coletivo VS. cem reais demonstrativos podem ganhar dupla
distributivo leitura: cada um custa 100 reais, ou todos
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eles juntos custam 100 reais?


d. Referência ⇒ Todas as noites às seis O sujeito uma cegonha, com determinante
indefinida específica horas uma cegonha indefinido, pode indicar a mesma cegonha
e não-específica sobrevoa a nossa casa ou uma diferente a cada noite.
e. Opacidade ⇒ O Sr Smith procura o A descrição definida o professor de
referencial professor de matemática pode significar a pessoa ou o
Matemática lugar profissional vazio, numa escola, por
exemplo, a ser preenchido.
f. Referência genérica ⇒ O leão é um animal Apesar de ser uma expressão definida, o
pacífico sujeito o leão pode ter significado genérico:
toda a espécie de indivíduos que são leão.

3.4. A gramática formal

Cálculo de Predicados: um sistema formal que inclui sintaxe e semântica, cujas regras relacionam-se
isomorficamente.

Figura 7: O mundo de Rolo e Tina para a construção de sua gramática formal.

As sentenças possíveis:
Rolo anda
Tina anda
O passarinho voa
Rolo fotografa o passarinho
Rolo mostra a língua
Tina projeta a sombra na grama
Rolo projeta a sombra na grama

E a semântica formal? “Sistema regrado, referencial, composicional” (Basso, 2013, p. 136)


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CÁLCULO DE PREDICADOS

língua relação mundo


SINTAXE SEMÂNTICA MODELO DE MUNDO
M = <U, F>
Léxico Universo do discurso
Constantes: r; p; t Rolo, o-passarinho, Tina.
Variáveis: x, y, z, ...
Predicados1 lugar: A (andar); S
(sorrir); V (voar); ...
Predicados2 lugares: F (fotografar); M
(mostrar)... ⇒⇒⇒⇒⇒⇒
Predicados3 lugares: P (projetar)... F
Conectivos: ¬ ∧ ∨ ∨e → ≡ (função de
Quantificadores: ∀ ∃ atribuição
Regras de boa formação sintática denotacional) Regras de interpretação
1) Constantes individuais e semântica
variáveis são termos; 1) F(r) = Rolo; F(o-passarinho) =
passarinho; F(t) = Tina
2) Se A é um predicado de n-
lugares e t1...tn são termos, então 2) F(A) = ({Rolo}, {Tina}); F(S) =
A(t1...tn) é uma fórmula; {Tina}; F(V) = {o-passarinho};
F(F) = {<Rolo, o-passarinho>}
F(M) = {<Rolo, a-língua>}
3) Se φ é uma fórmula, então ¬φ é F(P) = {<Tina, sombra, grama>,
uma fórmula; <Rolo, sobra, grama>}
3) [¬φ]M = 1 sse [φ] = 0
4) Se φ e ψ são fórmulas, então (φ ∧
ψ) (φ ∨ ψ) (φ ∨e ψ) (φ → ψ) (φ ≡ ψ)
são fórmulas; 4) [φ ∧ ψ]M = 1 sse [φ] = 1 e [ψ] = 1
...
5) Se φ é uma fórmula e x é uma
variável, então ∃xφ e ∀xφ são 5) [∃xφψ]M = 1 sse φ ∩ ψ ≠ ∅
fórmulas [∀xφψ]M = 1 sse φ ⊆ ψ

3.5 Uma visão geral, voltando à semântica de mente, mundo e língua.

Tem que fazer abstração... Ou levitar. (Em verde, mudança lingüística)


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Teoria cognitiva

História: mudança nos modelos de


conceptualização de mundo

Repressentação - Propriedades conceituais de


estruturas de eventos em árvore (CAUSE,
PROCESS, PATH) ou /\
/\
/\
Metalinguagem - Sistemas cognitivos: figura e
fundo→relação→cadeia causal

MENTE

Teoria sintática Modelo de mundo


História: O portão cantou
História: mudança na estrutura
(ergativização do PB)
lógica
Representação: [S NP[VP V
Representação: λxλy (C(x,y) →
NP]] ou
λy (C(∅,y)) ou /\
/\
/\
/\
/\
/\
Metalinguagem - Teoria de
conjuntos: no conjunto
Metalinguagem (NP, VP,
DP...) denotado pela função C existe o
LÍNGUA par ordenado {Pedro, samba} →
e mais o par {∅,y}
MUNDO

Pedro canta samba MENTE


MENTE
→ O portão cantou

LÍNGUA
☺ MUNDO

Figura 8: O exercício da tripla abstração teórica para a semântica de língua, mente e mundo.
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Referências
BASSO, Renato. Semântica formal. In: BASSO, R.; FERRAREZI Jr., C. (Orgs.) Semântica, semânticas: uma
introdução. São Paulo: Contexto, 2013, p. 135-152..
FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. Trad. Paulo Alcoforado. São Paulo: Edusp, 2009[1892].
GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Caminhos para fora do labirinto. Dissertação de mestrado. PGLetras/UFPR.
Estudos Linguísticos, 2004, 118p.
KATO, Mary; MIOTTO, Carlos. A arquitetura da gramática. In: Kato, M.; Nascimento, M. (Orgs.) Gramática
do português culto falado no Brasil, v. 3, A construção da sentença. Campinas: Martins Fontes, 2005, p.
23-41.
LANGACKER, Ronald W. Universals of construal. In: The annual Proceedings of the Berkeley Linguistic
Society: General session and parasession on semantic typology and semantic universals, 1993, p. 447-463.
LYONS, J. Semântica. Lisboa, Portugal: Editorial Presença, vol 1, 1977.
NEGRÃO, Esmeralda; VIOTTI, Evani. A ergativização do português brasileiro: uma conversa continuada com
Carlos Franchi. Da HORA, D.; NEGRÃO, E. (Eds.) Estudos da linguagem – casamento entre temas e
perspectivas, João Pessoa: Ideia Editora Universitária, 2011, p. 37-61.
RAPPAPORT, Malka; LEVIN, Beth. Change of state verbs: implications for theories of argument structure. In:
Erteschik-Shir, N.; Rapoport, T. (Eds.) The sintax of aspect – deriving thematic and aspectual
interpretations. Oxford, 2005, p. 274-302.
VERKUYL, H.J.. A theory of aspectuality – the interpretation between temporal and atemporal structure.
Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

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