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COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO

D É N È T E M T O U A M BO N A

TRADUÇÃO: MILENA P. DUCHIADE


Cosmopoéticos do refúgio. Dénètem Touam Bona. 2020

© Cultura e Barbárie, 2020

tradução Milena P. Duchiade


revisão Fernando Scheibe

imagem da «PA Nicolas Lo Calzo: Gerardo De Souza et la Mort sur la plage de Ouldah, Bénin, 2012.
Séries Agoudas - Cham. © Nicola Lo Calzo - Courtesy of Dominique Fiat

A máscara da morte simboliza o poder do senhor. Ela faz parte do bourian - "a burrinha do
Benin" - uma cerimónia familiar introduzida em Uidá no fim do século XVIII pelos descendentes
dos brasileiros que vieram da Bahia se instalar no oeste da África, tam bém chamados agudás. Em
Uidá, sede histórica da comunidade, as máscaras do bourian fazem reviver a relação de poder entre
senhores e escravos. Na verdade, dentro das próprias famílias coabitam descendentes de escravos e
de traficantes de escravos, ascendência livre e ascendência servil. A linha de fratura entre senhores
e escravos que marcava a sociedade brasileira se recriou na África. Ela perdura até hoje no interior
das famílias agudás, em que cada um conhece sua linhagem e não ousa transgredi-la, ciente de
que se exporia a uma reprovação familiar e social. Essa hierarquia familiar fica visível no bourian:
durante a cerimônia, as máscaras que representam os senhores são usadas exclusivamente pelos
descendentes de escravos, numa inversão de papéis conhecida de outros carnavais.
Nicola Lo Calzo

Cultura e Barbárie Editora


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Florianópolis/SC
A arte é a força de fazer a realidade dizer o que ela não
teria conseguido dizer por seus próprios meios ou, em
todo o caso, o que ela perigava deixar voluntariamente
em silêncio (...) exijo um outro centro do mundo, outras
desculpas para nomear, outras maneiras de respirar...
porque ser poeta, hoje em dia, é querer, com todas as suas
forças, com toda sua alma e toda sua carne,
face aosfuzis, face ao dinheiro que também se toma um
fu zil, e sobretudo face à verdade recebida, sobre a qual
nós, poetas, temos autorização de mijar,
que nenhum rosto da realidade humana
seja empurrado para baixo do silêncio da História.
Sony Labou Tansi
Les sept solitudes de Lorsa Lopez, 1985
PR E L Ú D IO

Penso que nosso trabalho é


fazer com que o Antropoceno
seja o mais curto/fino possível, e
cultivar, uns com os outros e em
todos os sentidos imagináveis,
épocas por vir, capazes de
reconstituir refúgios.
Donna Haraway1

De setembro de 2018 a março de 2019, “greves


escolares pelo clima” se sucederam pelo mundo,
especialmente no hemisfério norte. De que adianta ir
para a escola se a água, o ar, a fauna e a flora, elementos
fundamentais da vida, estão destinados a desaparecer num
futuro próximo? “Ninguém tem vontade de estudar ou de
se esforçar por um futuro que não vai existir”, declarava a
estudantada. Grito de alerta, essas greves inéditas também
eram o sintoma de uma esterilização do futuro, de uma
perda global de sentido.
Desde sua expansão para fora da China, a Covid-19,
mais do que qualquer outra pandemia, nos fez relembrar os
efeitos patogênicos da plantation. Por plantation entendo
aqui os sistemas industriais de monocultura e de criação
de animais que, por fragilizarem, empobrecendo-os ao
6 DÉNÈTEM TOUAM BONA

extremo, os ambientes de vida, estimulam inevitavelmente


a proliferação de agentes infecciosos tanto para as plantas
(fungos, parasitas, etc.) quanto para os animais (“gripe
aviária”, “vaca louca”, etc.) e para os humanos (Sars-
CoV, Mers-Cov, Ebola, etc.). Impondo aos ecossistemas
uma simplificação radical — um verdadeiro processo de
depuração biológica - a exploração capitalista produz
necessariamente ecocídios. Como nota Anna Tsing, a
plantation é concebida “para eliminar todos os seres que
não possam ser identificados como possíveis ativos”, isto
é, como recursos potencialmente lucrativos. E, assim, as
ecologias simplificadas da plantation se tornam o “suporte
de novas ecologias de proliferação, que geram a propagação
irrefreável de doenças e poluentes”.2 A emergência do
Sars-CoV-2 em Wuhan demonstra claramente que a
fronteira entre florestas, plantations e metrópoles está
prestes a desaparecer; o que só faz favorecer as zoonoses,
bem como sua disseminação acelerada em escala global
por meio das redes de transporte cada vez mais rápidas
e interconectadas. E a extinção dessa fronteira significa
simplesmente a extinção do “fora” (o latim foris está na
raiz de “floresta”). Então, como escapar, onde encontrar
refugio?
Face a essa pandemia inédita e à asfixia por ela
provocada, o Capitalismo Mundial Integrado3 nos
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propõe, uma imersão ainda maior em seu seio, em sua


matriz cibernética: nossa salvação estaria num futuro
Imunizado, isto é, contactless. “Os humanos são riscos
biológicos, as máquinas não!”, declarava triunfalmente,
cm fevereiro deste ano, Anuja Sonalker, CEO de uma
empresa estadunidense que desenvolve tecnologias “sem
contato”. Para além do paradoxo de pretender aproximar
seres humanos por meio de tecnologias de distanciamento,
esse futuro smart prometido para nós,

é um futuro que alega ser executado por


“inteligência artificial”, mas na verdade é
mantido em funcionamento por dezenas
de milhões de trabalhadores anônimos
escondidos em armazéns, centros de
dados e moderação de conteúdos, fábricas
escravizantes de eletrônicos, minas de lítio,
fazendas industriais, frigoríficos e prisões,
onde são deixados desprotegidos de doenças
e hiperexploração.4
Em suma, o “e-fúturo”, atrás da tela de fumaça do
clean, do soft, do smart, do “desmaterializado”, terá mais do
que nunca como combustível a “e-scravidão”. De maneira
que as fronteiras de gênero, de classe, de “raça”, etc. serão
reforçadas e, sobretudo, bem mais insidiosas.
Querendo ou não, já estamos engajados na “batalha
do vivo”, como proclama uma das publicações do coletivo
8 DÉNÈTEM TOUAM BONA

de secundaristas Contrafilé, que tive a oportunidade de


encontrar durante uma estadia em Sáo Paulo.5 É bem
possível que, em nossas futuras lutas - lutas por um mundo
náo mais governado pelo medo do outro, pela predação
e mercantilização generalizadas — tenhamos de aprender
alguns subterfúgios com aqueles que, até bem pouco
tempo, eram qualificados de “selvagens”... É assim que toda
a obra de Sony Labou Tansi, esse grande poeta kongo que
sempre colocou sua escrita a serviço da vida, nos convida a
um trabalho de análise e de imaginação: contra a necrose
das ditaduras e conformismos, contra o desmatamento,
contra o esfumaçamento generalizado de Gaia.

Senhores, gentes do N orte, seu


desenvolvimento nos custa caro
demais. Chegou a hora de m udar esse
desenvolvimento. Vocês não têm mais
ouvidos para escutar isso. Não têm mais
olhos para ver isso. Não têm mais sonho
para encarar isso. Mas nosso dever é dizer,
com toda a força que nos resta, que já
basta terem nos roubado cinco séculos (...).
Como estivemos esperando pela queda do
Muro de Berlim, esperamos a queda do
desenvolvimento. O consumo não tem
porque ser Deus. É babaca demais para viver
duzentos anos. Moralmente, esteticamente,
racionalmente e humanamente, a babaquice
COSMOPOËTICAS 0 0 REFÚGIO 9

de vocês é ridícula demais. O barco está fazendo


água. Vocês ainda podem fazer ouvidos moucos
diante do cataclisma ecológico, ainda podem
esconder a gangrena econômica e dissimular a
dimensão do desarranjo social, mas a morte do
pensamento espreita vocês, o fim do sonho bate
à porta, pois seu desenvolvimento é moralmente
insustentável, suas economias do desperdício
são injustificáveis do simples ponto de vista
da razão. No triplo plano moral, ecológico e
lógico, o Norte meteu nosso planeta na direção
de um suicídio coletivo. [...] Chegamos a esse
momento crucial em que é preciso aprender a
reinventar tudo: os conceitos, as abordagens, os
hábitos, os métodos, as ferramentas, as nações,
os espaços... tudo, hoje, deve ser reinventado. E
a única possibilidade que nos resta para evitar
o cosmocídio de nosso planeta. Porque vocês
não dão nenhum tempo ao tempo, nenhum
espaço ao espaço e nenhuma chance à sobrevida
do futuro, vocês mataram o necessário em prol
do bom andamento dos supérfluos. Em uma
palavra, o progresso de vocês se resume em
termos de assassinato da necessidade para os bons
ofícios do supérfluo. A quantificação de tudo os
tornou surdos e cegos à vida. A morte se tornou
seu único deus. Ir rápido não importa aonde,
não importa como, não importa para quê, é
esse todo o sentido profundo da civilização que
nos enfiaram goela abaixo, fora de toda forma
10 DÉNÈTEM TOUAM BONA

de razão, de inteligência, de conhecimento


e de cultura: chegamos ao século do “jeter-
aller”6. Vocês esqueceram que o único sonho
que nos resta para sonhar é o da sobrevida de
um futuro potável”.
Carta fechada às gentes do Norte e Companhia
(extratos), Sony LabouTansi, 1992.

Como falar do futuro a seus filhos? Como não lhes


causar angústia, paralisia, asfixia, sem ter de mentir ou
esconder a cara... Se devemos encarar o estado alarmante
de nosso planeta e de nossas sociedades, não é para ceder
ao fatalismo, mas, pelo contrário, para reabrir o horizonte.
A poesia é celebração da terra, celebração do céu,
celebração do cosmos. Um grande Sim à vida. Mas é
justamente esse Sim que nos obriga a dizer Não. A dar
testemunho do intolerável, do imundo, da destruição do
mundo: quer se trate da 6a extinção em massa das espécies
vivas ou da sinistra agonia do direito de asilo.
Para além de sua dimensão crítica, os ensaios reunidos
nessa coletânea buscam reabilitar as potências do sonho e
da poesia: essa inteligência do sensível que retesa o arco íris
do possível. Na origem de toda espiritualidade e de toda
especulação teórica, está a experiência poética: a apreensão
do mundo como totalidade viva, a intuição de que todos os
elementos que nos cercam, nos atravessam e nos compõem
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 11

- o vegetal, o mineral, a água, o ar, as ondas magnéticas - se


correspondem, se entrelaçam e formam um único e mesmo
cosmos. A cosmopoética é a forma primeira da ecologia:
uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação pela qual
pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagãs7 e outros
mestres do invisível estabelecem um diálogo obscuro,
tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra.
Para evitar qualquer mal-entendido, esclareço que
cosmopoética náo é nem um fetiche nem uma marca
registrada, apenas um termo, um modo entre outros de
apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie
a escuta - o sentido das ressonâncias e das correspondências
—mais do que a visão. É o privilégio excessivo concedido
pelo Ocidente à theoria, levado ao seu paroxismo na era das
imagens de síntese e da “visão aumentada”, que nos conduz
a perceber nosso “ambiente” como um simples cenário,
que pode ser modificado à yontãáe como as cenografias
dos jogos virtuais.
O devir-simulacro de nosso mundo leva ao seu
paroxismo o logocentrismo ocidental, para o qual
somente o Homem está apto ao logos, isto é, à palavra e
à inteligência. Em A queda do céu, Davi Kopenawa explica
com grande propriedade: “[Os brancos] pensam que
a floresta está morta e vazia, que a Natureza está aí sem
motivo e que é muda. Então dizem para si mesmos que
podem se apoderar dela para saquear as casas, os caminhos
e o alimento dos xapiri como bem quiserem!”.8 Mas como
alguém pode crer que a natureza não tem voz e não tem
o que dizer, quando a primeira música é a da terra! É em
função da rapsódia dos ventos e das águas, dos movimentos
do solo, dos acidentes de relevo, da umidade e da seca,
que são modulados os assobios, os estalidos, os gritos, os
grunhidos, os bzzzz da “grande orquestra dos animais”
(Bernie Krause). E o conjunto dessa biofonia forma uma
paisagem sonora, uma paisagem em fuga, uma paisagem
jazz. Aqui, nenhuma partitura escrita de antemão, antes
um improviso, uma variação contínua, a do próprio vivo.
A vida é artista, de modo que as verdades só fazem sentido
se restituídas a esse movimento perpétuo de criação. Eis
porque Édouard Glissant, esse grande bardo da Martinica,
que cantou as paisagens do arquipélago, declara que “nada
é Verdadeiro, tudo é vivo”...9
Toda paisagem é rosto. Os traços de um território
remetem ao traçado de uma partitura que seus habitantes,
humanos e não humanos, tocam e retocam constantemente,
engendrando assim uma esfera de existência cujas pulsações
- em contraponto a uma multidão de outras esferas -
contribuem para o movimento perpétuo de inspiração e
de expiração da biosfera chamada Terra. Por levar em conta
COSMOPOÉTICAS 0 0 REFÚGIO 13

a infinita pluralidade dos pontos de vista não humanos, a


cosmopoética nos imerge num pluriverso ondulante. Nas
cosmologias ameríndias, aborígenes ou bantus, o sonho
não se opõe à realidade; antes, constitui sua dimensão mais
profunda: os contornos e categorias se esvanecem para
dar lugar ao curso das metamorfoses. Os sonhos, sejam
diurnos ou noturnos, devaneios íntimos ou mitologias
coletivas, oferecem a possibilidade de experimentar o
“ponto de vida”10 de um pássaro, uma árvore ou um rio, e
nos despertam assim para o que está ao mesmo tempo além
e dentro de nós. É primeiro pelos sonhos que percebemos
que só podemos viver em relação com outras inteligências
terrestres.
Ao clamar por uma cosmopoética do refugio, não
pretendo inventar nada, só faço retomar, a meu modo, o
apelo de Sony Labou Tansi (e de muitos outros, em especial
dos movimentos decoloniais e ecofemínistás) a “reinventar
tudo: os conceitos, as abordagens, os hábitos, os métodos,
as ferramentas, as nações, os espaços...” a fim de conjurar
o cosmocídio.
COSMOPOËTICAS DO REFÚGIO 15

C O SM O PO ÉTIC A DO R E FÚ G IO 11

Somos Semente da Terra


A vida que se percebe
Em Mudança.
Octavia E. Butler, A Parábola do semeador

“Em Sáo Tomé, os escravos se revoltam, se refugiam


nos morros, de onde partem em verdadeiras incursões para
atacar as plantations alguns anos depois da instauração
desse regime de cultivo”.12 Estamos em 1555, ao largo
da costa africana, num dos numerosos arquipélagos do
Oceano Atlântico invadidos pelos portugueses, durante
uma das primeiras insurreições marrons importantes.
A partir daí, a marronagem se tornará indissociável do
sistema protoindustrial da plantation, do qual a Ilha de
São Tomé constituiu o principal laboratório africano, antes
de sua transferência e aperfeiçoamento no Brasil. Assim
como a escravidão colonial, a marronagem tem início em
terras africanas^ desde o começo, trata-se de fenômeno
transatlântico. Mas é evidentemente nas Américas -
transformadas no núcleo do sistema escravocrata - que
essa forma de vida e de resistência vai conhecer sua maior
pujança, até se tornar a matriz de verdadeiras sociedades
marrons.
16 DÉNÈTEM TOUAM BONA

A marronagem - o fenômeno geral da fuga de escravos


- pode ser ocasional ou definitiva, individual ou coletiva,
discreta ou violenta; pode alimentar formas de banditismo
(caubóis negros do Faroeste, cangaceiros do Brasil, piratas
negros do Caribe, etc.) ou acelerar uma revolução (Haiti,
Cuba); pode lançar mão do anonimato das cidades
ou da sombra das florestas. Inútil então procurar uma
definição precisa pois, profundamente polifônica, a
noção de marronagem remete a uma multiplicidade de
experiências sociais e políticas, que se espraiam por cerca
de quatro séculos, em territórios tão vastos e variados
como os das Américas ou dos arquipélagos do oceano
Índico. O essencial é compreender que, no conjunto desses
territórios, a memória dos negmawons (Antilhas francesas),
dos quilombolas (Brasil), dos palenqueros13 (América
hispânica) continua a irrigar as lutas contemporâneas por
meio das práticas culturais (maloya,14 capoeira, cultos afro-
diaspóricos, etc.) que, por reativarem a visão das vencidas e
dos vencidos —sua versão da história, logo, da “realidade”
- , subvertem a ordem dominante. Se, em meu trabalho,
privilegio a “secessão marron” - e por secessão entendo o
entrincheiramento silvestre de subalternas e subalternos,
quaisquer que sejam, sob a forma de comunidades furtivas
- é porque a marronagem aparece plenamente aí como
matriz de formas de vida inauditas.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 17

Situadas nas zonas tropicais, as plantations costumam


estar cercadas por florestas densas e impenetráveis, por
pântanos e manguezais labirínticos, por morros íngremes
cobertos de espessa vegetação, por caatingas áridas e
agressivas; e todas essas extensões hostis — à penetração
da ci-vi-li-za-ção - constituem também espaços de
desaparecimento. A “Floresta” - o conjunto das linhas e
elementos que recobrem o homem com uma malha vegetai
- oferece assim aos marrons um refugio, uma cidadela, um
lugar de vida privilegiado.
A raiz latina de floresta, derivada do advérbio
foris - “de fora” - nos indica que os espaços silvestres
sempre constituíram um “fora” para a “civilização”: o
fora da “selvageria” —da “zona de não-direito”, diríamos
hoje. Se quisermos responder à ofensiva globalizada
dos conquistadores sem rosto (as multinacionais do
extrativismo, da mercantilização dos seres vivos, etc.),
precisamos, seguindo os pajés, os n ganga,15 os fundi
m adjini^ e outros mestres do invisível, redescobrir no seio
da floresta nossa própria potência: a do que ali vive e se
manifesta, mas também a das comunidades e povos que se
erguem em seus recantos silvestres (marrons e ameríndios,
zapatistas, ZAD,17 Selva de Calais, etc.).
18 DÉNÈTEM TOUAM BONA

"Babylon system is the vampire"

A expressão “país de fora”, pela qual


o m undo rural do Haiti costuma ser
designado, expressa uma exclusão secular.
Todo o campesinato, a maioria da população
haitiana, organizou-se sob a forma de um
enclave de resistência face a um Estado
vampiro; organizou-se, portanto, com sua
religião, sua cultura, seu modo de vida
próprio. [...] A sociedade é marron pois,
desde sua constituição, o Estado haitiano
encarna a nova figura do senhor.18
Seria muito demorado detalhar aqui os desafios da
Revolução Haitiana, que faz surgir em 1804 a primeira
República Negra. Por certo, trata-se de movimento
antiescravagista em seu princípio; mas a realidade é bem
mais complexa pois, desde o início, os líderes oficiais
dessa insurreição apresentam, por uma série de razões,
a tendência a reproduzir o modelo que supostamente
deveriam combater. A Revolução Haitiana só derruba o
sistema escravagista para inaugurar uma república negra
que vai se comportar, em relação a sua própria população,
como um Estado colonial: os “grandons” (grandes
proprietários de terra) e o exército vão constituir, para a
massa de camponeses “boçais” (nascidos na África), forças
de ocupação e de exploração. É preciso destacar que, ao
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 19

explodir a Revolução, dois terços da população da ilha são


compostos por “negros boçais”, percebidos pelos “livres de
cor” (os “crioulos” ali nascidos) como “selvagens africanos”.
E a nova elite crioula, que toma as rédeas do poder depois da
independência, tem como principal aspiração a reprodução
da “civilização”, do modo de vida e do desenvolvimento
ocidentais.
Um dos aspectos interessantes dessa territorialidade
paradoxal do “país de fora” é que ela nos lembra que a
marronagem é um tipo de resistência que pode ser acionada
e pensada para além do próprio contexto escravagista. A
secessão marron é a primeira forma de anarquismo afro-
diaspórico —ela escapa tanto das presas do capital quanto
das presas do Estado.

O grande man (chefe) não detém quase


nenhum poder temporal [...]. No que se
refere à vida material, cada um tem o direito
absoluto, se poderia até mesmo dizer o dever,
de agir como lhe apetece, na medida em
que não prejudica ninguém [...]. Nenhum
comércio era ^praticado, essa atividade
estando claramente ligada para eles à ideia
de exploração de outrem .19
Como nota Jean Hurault, os bonis (um dos povos
bushinenguês da Guiana) estabeleceram uma série de
mecanismos para impedir a acumulação de poder e de
20 DÉNÈTEM TOUAM BONA

riqueza. Trata-se para a comunidade marron de afastar o


risco da formação em seu seio de um poder separado dela
própria: a dominação de um aparelho estatal.20
A experiência da marronagem moldou o conjunto da
cultura bushinenguê, o que explica as proibições envolvendo
tradicionalmente o comércio ou o ato de empregar outras
pessoas (a situação mudou hoje) e o caráter sagrado, como
entre os rastafáris, da autonomia do ser humano.
Quando, em 1940, no alto de um morro coberto
de mata, Leonard Percival Howell funda na Jamaica a
primeira comunidade Rastafári, batizada the Pinnacle,2'
o que ele faz é retomar o gesto dos marrons. Com a
proposta de autossuficiência alimentar e de uso coletivo
da terra e dos meios de produção, Howell refaz a busca
marron de um “fora” da sociedade colonial. “Babylon
system is the vampire”, nos lembra Bob Marley. Na leitura
marxista, libertária e pan-africanista da Bíblia operada
pelo rastafarianismo, Babylon representa qualquer sistema
de predação, de exploração, de alienação. O escravismo
colonial constituindo apenas uma das modalidades do
capitalismo e do Estado. Babylon se perpetua sob novas
formas, como as multinacionais, o consumismo, o culto
às celebridades, etc. Por que essa referência ao vampiro?
Porque o que o vampiro caça é o humano. Ora, o sistema
COSMOPOÊTICAS DO REFÚGIO 21

escravagista é um sistema de caça ao humano. E o senhor


- isto é, segundo Marx, o capital, cujo primeiro servidor é
o Estado, aparenta-se ao vampiro que só se anima ao sugar
o trabalho vivo.22

A organização rítmica do coumbite23 se opõe a todas as


hierarquias

Nos morros do Haiti, é pelo ritmo que se transmite e


se reinventa a tradição das sociedades de trabalho africanas,
à medida que os antigos escravos tomam posse de parcelas
de terra para garantir uma liberdade conquistada após uma
luta ferrenha contra as tropas napoleônicas, mas também,
depois da Revolução, contra as tentativas das novas elites
crioulas de restabelecer o regime disciplinar das grandes
plantations (instauração do trabalho forçado por meio de leis
que criminalizam, como no Ocidente, a “vagabundagem”).
Ao retomar por sua própria conta as práticas de aliança
desenvolvidas no interior das comunidades marrons,
esses grupos de camponeses se baseiam em princípios de
reciprocidade e de igualdade: cultiva-se a terra do próximo,
o qual, por sua vez, ajudará a cultivar a sua. O trabalho não
é pago, mas sim trocado. No caso do esquadrão haitiano,
oito lavradores trabalham juntos o ano todo, nas terras de
cada um de seus membros; cada compadre beneficiando do
trabalho de todos os demais um dia por semana. Trata-se de
22 DÉNÊTEM TOUAM BONA

um sistema extremamente igualitário: aquele que comanda


o esquadrão é o dono do campo. A rotação dos campos leva
então à rotação do comando.

Em fila! —gritavam os chefes de grupo.

O acompanhador Antoine passava a tiracolo


a bandoleira do tambor, Bienaimé ocupava
seu posto de comando à frente da linha dos
seus homens. Antoine preludiava com umas
curtas pancadas; depois o ritmo crepitava
sob seus dedos. Num impulso unânime, eles
erguiam as enxadas. Um relâmpago feria o
ferro; por um segundo, os homens brandiam
um arco-íris.

A voz do acompanhador subia rouca e forte:


- a té...
De um só golpe, as enxadas caíam num ruído
surdo, atacando o pelame malsão da terra. [...]
Os homens avançavam em fila. Sentiam em
seus braços o canto de Antoine, as pulsações
precipitadas do tambor, como um sangue
mais ardente. [...] Uma circulação rítmica
se estabelecia entre o coração palpitante
do tambor e o movimento dos homens: o
ritmo era como uma corrente poderosa que
os penetrava até o mais profundo de suas
artérias e nutria seus músculos de renovado
vigor.24
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 23

Ao garantir a sincronia dos gestos, a cadência regular


dos esforços, o alinhamento coreográfico dos corpos,
o ritmo produz a comunidade fraternal dos compè. Essa
tradição do trabalho dançado e cantado assumiu, no sul
dos Estados Unidos, a forma das work songs, matriz do
blues. Trabalhar junto é partilhar uma pulsação coletiva,
vibrar em uníssono, comungar num só canto.

Essa sociedade recusa as estruturas sociais


que podem desembocar em estruturas
de poder [...]. Ela encontrou no ritmo a
ferramenta ideal para fazer surgir modos
espontâneos e imediatos de organização,
que tornam possível o controle tanto da
produção material quanto do sagrado.25
No mundo rural haitiano, o ritmo representa um
princípio de organização social integral que, por intermédio
de práticas como a do coumbite, se opõe a toda e qualquer
hierarquia.

0 vodu, uma ecologia política

Hoje, o som potente do lambi26 - antigo sinal de


alerta dos marrons - ainda ressoa às vezes, de um vale a
outro, sobre as encostas íngremes dos morros do Haiti.
Junto com a rapsódia dos cantos de trabalho, o palpitar dos
tambores, o martelar das foices, transforma o mundo do
24 DÉNÈTEM TOUAM BONA

campo numa paisagem musical e mística. Ao cair da noite,


as sociedades “da madrugada” (sociedades de trabalho)
por vezes se transformam em confrarias vodus; o transe
noturno sucede então ao labor diurno. Dos coumbites às
cerimônias místicas, uma mesma rítmica se propaga, e
com ela uma mesma cosmovisão afro-diaspórica: uma
concepção do mundo que se contrapõe, ponto por ponto,
aos valores do sistema capitalista (propriedade privada,
busca do lucro, etc.). A dispersão aleatória do habitat, a
extrema mobilidade dos lavradores, a relação cósmica com
a terra, todo um conjunto de elementos torna a cultura
dos camponeses haitianos uma resposta formidável ao
sistema de plantation. Longe de se resumir a práticas de
“magia negra” ou a superstições, o vodu envolve uma
espiritualidade (não emprego a palavra religião por não
ser a mais adequada, devido à ausência de dogmas, à
plasticidade dos rituais, etc.) e uma relação singular com o
mundo, a matriz de uma agricultura cósmica: herdar um
campo é na verdade herdar os Iw af7 que o habitam, os
únicos verdadeiros proprietários da terra. O vodu constitui
uma ecologia política, pois instaura uma relação de aliança
entre as comunidades que lavram a terra e o ambiente de
vida de que têm o dever de cuidar, pelo diálogo com as
plantas e com os elementos.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 25

Essa visáo ecoa a cosmologia ameríndia:

Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o


centro das palavras que os brancos chamam
de ecologia. É verdade! M uito antes de essas
palavras existirem entre eles e de começarem
a repeti-las tantas vezes, já estavam em nós,
embora náo as chamássemos do mesmo
jeito. Eram, desde sempre, para os xamãs,
palavras vindas dos espíritos, para defender
a floresta. [...] Na floresta, a ecologia somos
nós, os humanos. Mas são também, tanto
quanto nós, os Xapiri, os animais, as árvores,
os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o
sol! É tudo que veio à existência na floresta,
longe dos brancos; tudo o que ainda náo tem
cerca.28
Como nos mostram as palavras do pajé e líder indígena
da Amazônia, Davi Kopenawa, para os povos nativos e para
a maioria das comunidades tradicionais do Sul, a ecologia
não representa um saber teórico, um discurso separado dos
demais aspectos da vida. “As palavras (da ecologia) [...]
já estavam em nós”: a ecologia nesse tipo de sociedade é
imanente, é indissociável dos gestos mais corriqueiros, os
da jardinagem, da pesca, da caça: expressa-se no próprio
modo de se deslocar na floresta, ou de cantar para as plantas
ou para os espíritos-animais.
26 DÉNÈTEM TOUAM BONA

No Haiti, a instituição do lakou ou demanbré constitui


uma das expressões mais poderosas da ecologia marron.
Trata-se de uma porção de terra familiar que não pode
ser vendida, dividida, desmembrada nem transformada
em propriedade individual, porque está ligada aos Iwa
heritaj - os ancestrais e divindades tutelares da família. A
vinculação da família camponesa a uma territorialidade
ancestral constitui, no Haiti, a mais poderosa ferramenta
de autodefesa29 contra os processos de cercamento, de
privatização, de apropriação capitalista das terras. A
ecologia integrada do vodu se manifesta também nas lutas
contemporâneas de alguns coletivos haitianos30 que buscam
criar ou reativar florestas sagradas: rearmar a natureza pelo
seu re-encantamento.31

A nanm [alma, força cósmica] das plantas


é concebida de modo mais pessoal do que
a dos demais objetos. Os “doutores-folhas”
[rezadores ou curandeiros] aproveitam a
hora em que pensam que as plantas estão
adormecidas para delas se aproximarem e
colhê-las bem devagar, para não assustarem
sua nanm. Ao arrancá-las, murmuram:
“levante-se, levante-se, venha curar um
doente, sei que você está dormindo, mas
preciso de você.” Têm o cuidado de deixar
ao pé do arbusto algumas moedas que
representam o pagamento oferecido à alma
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 27

pelo esforço que lhe será demandado. [...]


O lenhador prestes a derrubar uma árvore
bate primeiro no tronco com o dorso de seu
machado para avisar a alma que o habita e
lhe dar tempo de sair. [...] Ao lado da “grande
alma da terra” {gâ nâm tè), cada campo é
animado por um espírito que, agindo sobre
as plantas, garante sua fertilidade. A alma
da terra não é imaterial, o lavrador que, em
pleno meio-dia, trabalha seu campo pode
sentir sua presença como uma brisa em seu
rosto e perceber sua sombra se perfilar atrás
dele.32
No livro Gouverneurs de la rosée, publicado em 1944,
o escritor comunista haitiano Jacques Roumain destaca o
alcance utópico das sociedades de trabalho do Haiti, cujo
modelo político e social ele sonhou, por algum tempo,
generalizar para todo o seu país:

Então, que é que somos nós, os colonos,


negros descalços, desprezados e maltratados?
[...] Se é uma pergunta, vou dar a resposta;
pois somos este país e ele é nada sem nós,
nada de nada. Quem planta, quem rega,
quem colhe? [...] Mas sabes por que, irmão?
Por causa da nossa ignorância: não sabemos
ainda que somos uma força, uma força
única: todos os camponeses, todos os negros
das planícies e dos morros juntos. Algum
28 DENÈTEM TOUAM BONA

dia, quando a gente meter na cabeça essa


verdade, nós nos levantaremos de um canto
a outro do país e faremos a assembleia geral
dos donos do orvalho, o grande mutirão dos
trabalhadores da terra, para acabar com a
miséria e plantar a vida nova.33
O “dono do orvalho” (“mèt lawouze") é o responsável
pela rega, o que está encarregado de distribuir a água e
de repartir entre lavradoras e lavradores os trabalhos de
irrigação na comunidade. Esse personagem encarna um
ideal de justiça, de equidade, de solidariedade e de vida
em harmonia com a natureza. Como pressupõe uma
organização autônoma e igualitária, oposta ao regime
disciplinar da plantation, a rítmica mística do coumbite terá
contribuído para a gênese de um Haiti marron: o péyi an
déyo, o país de fora.

A libertação do escravo exige um verdadeiro desenca­


deamento

Os nègrer34 são “migrantes nus”, nos recorda o


pensador da Martinica Édouard Glissant: mulheres,
crianças e homens nus e reduzidos à “vida nua” —
estritamente biológica —do ventre do navio negreiro. No
entanto, parece que, desde o embarque, algo inscrito nos
corpos tenha resistido ao desnudamento, ao apagamento
da memória, à zumbificação, a toda essa feitiçaria
C0SM0P0ÉTICA5 DO REFÚGIO 29

escravagista que se esforça em converter os humanos em


gado para as plantations. De fato, os documentos da época
não descrevem corpos nus, mas corpos-hieróglifos, corpos
cobertos por motivos indeléveis. Uma descrição, entre
outras: “Congo apresentando marcas do país que formam
uma cruz sobre cada lado do peito.” Essas escarificações
são os únicos traços visíveis que os deportados subsaarianos
conservam de sua terra natal: uma cartografia existencial
gravada na própria pele. O corpo escarificado é corpo-
memória: superfície onde se desdobra a escrita de um
povo, o relato singular de uma vida, a genealogia de um clã.
Nos sulcos, nas fendas, no relevo acidentado de sua carne,
o nègre encontrará sempre a certeza de sua humanidade: de
onde vem e qual é sua história.
Mas a essa escrita em carne viva se justapõe uma
marcação invisível, mais íntima, que opera na junção
entre o espírito e a carne: a tatuagem rítmica dos corpos
afro-diaspóricos. A memória do corpo não é estática, é
motora, dinâmica, só se atualiza em gestos, em posturas,
numa série de práticas corporais tais como a dança ou a
música. Os ritmos do Atlântico negro se confundem
muitas vezes com a própria repetição do mito: sua
atualização ritual. As cerimônias do candomblé, do vodu
ou da santeria testemunham isso: “cada divindade tem
seus motivos tamborilados, infinitamente repetidos, que
30 DÉNÈTEM TOUAM BONA

constituem uma espécie de leitmotivs wagnerianos dessa


mística africana”.35 Roger Bastide enxerga no ritmo a fonte
de um verdadeiro “misticismo africano”. A essa mística
“afro” enraizada nas ressonâncias do corpo, opõe a mística
cristã que supõe, inversamente, a extinção do corpo. Por
meio da tatuagem rítmica de seus corpos, é, portanto, toda
uma cosmovisão que foi trazida por esses migrantes nus
no porão do navio negreiro. E as resistências negras vão
se desencadear precisamente a partir da reativação criadora
dessa memória, a partir do ritmo, pensamento encarnado.
A libertação do escravo exige a reapropriação de seu corpo:
um verdadeiro desencadeamento.

As m e tam o rfo se s do tra n s e


Na origem, todo ritmo é um ritmo de corrida: o
martelar dos pés sobre o chão, o martelar do coração dentro
do peito, o martelar das mãos sobre o couro estendido. É
antes de tudo por meio do ritmo que o nègre traça uma
linha de fuga. Propulsor de sonhos, o fraseado rítmico opera
distorções nos próprios corpos e no espaço-tempo. Durante
o transe ritual, o possuído é o cavalo das divindades. Em
terras submetidas à escravidão, esse teatro do invisível não
pode deixar de ser subversivo: no decorrer da cerimônia,
a condição de escravo fica suspensa, é negada, derrubada,
abolida. Ao atravessar o ciclo das metamorfoses místicas, o
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 31

nègre passa da escravidão à epifania dos deuses e deusas: “o


rosto se transforma: o corpo inteiro se torna um simulacro
da divindade.”36 E o que uma divindade poderia temer?
í1' *
O transe é uma técnica de intensificação dos fluxos:
o corpo não se reduz mais a uma coleção de órgãos, se
transforma em onda vibratória. A metamorfose surge
das pulsações rítmicas de um erotismo sagrado. O corpo
tomado pelo transe é corpo carnavalesco, utópico, onde
se opera a subversão da identidade, do estado civil, da
máquina binária dos gêneros. Das metamorfoses do transe
às transformações carnavalescas, encontramos os mesmos
fenômenos de inversão dos papéis, de derrubada das
hierarquias, de paródia dos conformismos e dos poderes.
O transe implica uma transsexualidade, pois os Iwas são
incorporados pelos botins?7 sem levar em conta seu sexo.38
Tomada por Ogum, a divindade ioruba da guerra, a
menina mais franzina brandirá um facão à guisa de espada,
usará uma linguagem chula, gritará ao pedir cachaça e
correrá atrás das saias da assistência. Dominado por Erzulie
Freda, o equivalente vodu de Vénus, o rapaz mais adético
vai carregar na maquiagem, trocar as calças por uma saia e,
balançando os quadris e jogando olhares lânguidos, encarar
os machos em busca de um beijo ou de uma carícia. Como
transgridem diariamente a ordem social heteronormativa
32 DÉNÈTEM TOUAM BONA

“consagrada” pela Igreja (uma das matrizes da ordem


colonial), pois seu modo de vida já pressupõe uma espécie
de metamorfose, travestis e homossexuais ocupam um
lugar privilegiado no vódu.39
Mas o questionamento do dualismo dos gêneros e das
normas sexuais não se restringe ao tempo da cerimônia.
Seja no Haiti, no Brasil ou em Cuba, os espaços de culto
“afros” representam verdadeiros refúgios para LGBTQ+
confrontados ao machismo de suas sociedades, bem como
ao crescimento da intolerância religiosa —em especial por
parte das igrejas evangélicas neopentecostais. Foi assim que,
em 2016, Erica Malhunguinho, uma artista e ativista trans
afro-brasileira, inaugurou em São Paulo um Quilombo
urbano dedicado às Artes e às culturas negras, batizado de
Aparelha Luzia. O fato de afro-brasileiras e afro-brasileiros
conceberem espaços de criação e de resistência como
quilombos atesta a atualidade da secessão marron.
O u seja, as reativações de quilombos e mocambos
não se limitam às lutas em defesa dos direitos e territórios
das “comunidades remanescentes”,40 reconhecidas como
herdeiras de comunidades marrons ou de comunidades
camponesas em luta pela autonomia; redesenham, para
além das comunidades afrodescendentes, as formas de
luta, de criação e de organização popular nas mais variadas
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 33

áreas: desde a instituição de zonas autônomas urbanas que


conjugam permacultura e centro de formação musical
(como a Casa de Cultura Tainá em São Paulo) até o
estabelecimento de uma rede solidária de quilombos e
comunidades subalternas, tal como o projeto Rota dos
Baobás.41
'

A so cied ad e se c re ta , a a lian ça n o tu rn a e n tre a m arro n a-


g em e o vodu

A comissão, informada de que encontros


perigosos, conhecidos sob o nome de Vodu,
continuam a acontecer, apesar das proibições
que haviam sido feitas pelas autoridades
constituídas (...); considerando que essa
dança parece ter como objetivo lembrar as
ideias perigosas a respeito de um governo
republicano (...). A comissão deliberou
e decreta o seguinte: Artigo 1: as reuniões
conhecidas sob o nome de Dança do Vodu
ficam severamente proibidas.
Trecho do Boletim Oficial de São Domingos (1797)42

É do apelo às deusas e aos deuses da Guiné43 —


mobilização de uma memória africana múltipla —que as
resistências populares afro-americanas tiram seu entusiasmo
e sua força. Experiência espiritual em que o corpo se
torna espaço de iniciação e de konesans (conhecimento),
34 DÉNÈTEM TOUAM BONA

o transe fornece o modelo geral do desencadear do


escravo. A explosáo das revoltas sempre corresponde ao
desencadeamento dos poderes cósmicos. Prova disso é o
evento fundador da Revolução Haitiana, “Bois-Caïman”, a
cerimônia vodu em que foi selada em sangue a conjuração
entre escravos e marrons em revolta. O abolicionismo
dos Jacobinos negros foi ao mesmo tempo movimento
revolucionário e realização da Revolução Francesa44 em
sua radicalidade plena; e isso muito antes do decreto de
abolição de Victor Schoelcher ( 1848), cuja celebração tende
a excluir os afrodescendentes de sua própria libertação.
O que distingue radicalmente a Revolução haitiana
das Revoluções francesa e americana é o fato de ela ser
profundamente atravessada por uma espiritualidade
política afro-diaspórica. Em fins do século XVIII, é
durante as reuniões noturnas das “calendas” e “vodus”
que se difunde a subversão, que são organizadas as redes
de dissidentes, que se entrelaçam as solidariedades e os
compromissos secretos. A marronagem alimenta o segredo
e se alimenta do segredo como “secreção”, como forma
de vida, como modus operandi. Começa ao cair da noite,
quando, aproveitando da escuridão, os escravos escapam
das senzalas para comungar nas danças, nos cantos, nos
juramentos ocultos. As famílias místicas — os iniciados
dos cultos afrodescendentes são considerados como
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 35

filhos e filhas dos orixás — que se formam durante essas


reuniões noturnas constituem microcosmos clandestinos:
sociedades paralelas que, sub-repticiamente, náo cessam de
trabalhar, de se infiltrar, de subverter a ordem escravagista.
Não importa qual seja a forma de dissidência considerada,
o segredo sempre desempenha um papel criador e
dinâmico: prática do segredo (senhas, códigos, itinerários
cantados, etc.), experiência do segredo (com frequência,
uma experiência do sagrado, o segredo representando
um conhecimento proibido), comunidade do segredo
(a dos conjurados, ligados pelo segredo). No contexto
escravagista, cultos e sociedades secretas configuram
formas privilegiadas de resistência popular; e servem como
cimento unificador entre escravos e marrons. “As sociedades
secretas constituíram, no curso da história do Haiti, a expressão
da resistência popular face à tirania e à desordem do Estado.
Surgidas durante o período colonial, ressurgindo no início
do século X IX (...), prolongavam o espírito da marronagem
e se inscreviam no imaginário do vodu. ”45 É por meio da
sociedade secreta que se percebe melhor, no Haiti, a aliança
noturna entre a marronagem e o vodu.
36 DÉNÈTEM TOUAM BONA

A d issid ên cia sem p re p ro ced e de um a ru p tu ra do


continuum te m p o ral

Das confrarias vodus aos bandos furtivos de marrons,


trata-se sempre do mesmo modo menor de existência, uma
mesma cadência poética, uma mesma potência opaca que
se desdobra: à noite, acontecem os complôs, as danças,
os sonhos, as rezas, os escritos, os debates, os sacrifícios.
De modo semelhante aos afrodescendentes, artesáos e
proletários europeus também recorriam à opacidade da
noite e aos códigos sussurrados:

Assim, a sociedade dos Fundidores de Ferro,


criada em 1810, teria se reunido em noites
escuras, nos picos, charnecas e regiões ermas
das terras altas dos Condados das Midlands
(...). Provavelmente, eram muito difundidos
juramentos imponentes e cerimônias de
iniciação.46
A dissidência sempre decorre de uma ruptura do
continuum temporal. Ruptura da narrativa dos vencedores
— essa fábula que torna os subalternos horrendos aos
seus próprios olhos — mas também ruptura da sucessão
aliénante do trabalho e do repouso, como explica Jacques
Rancière em seu ensaio dedicado à gênese do movimento
operário: “ Tudo começa ao cair da noite quando, nos anos
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 37

1830, alguns proletários resolvem romper o círculo que coloca


o sono reparador entre os dias do salário."47
A história das revoltas ameríndias guarda semelhanças
com a das revoltas afro-americanas. Nas sociedades
indígenas, a conquista espanhola provoca um trauma
coletivo incomensurável: a morte dos deuses, a queda e
rompimento do Sol (um “desabamento” que prefigura o do
mundo globalizado contemporâneo). É assim que as grandes
revoltas ameríndias iniciavam sempre com a ressureição das
divindades e o repúdio à fé cristá. De fato, em 1541, uma
das mais terríveis rebeliões indígenas testemunhadas pelo
Império espanhol estoura no norte do México, nas terras
dos nômades chichimecas: a “Guerra de Mixtón”. Tinha
como líderes “bruxos selvagens” que “anunciavam a vinda
de ‘Tlalol’, acompanhado de todos os ancestrais ressuscitados".48
Do mesmo modo, ao ressuscitar Ogum, Xangô, Legba e
compor novas divindades, os afrodescendentes conferiram
um espírito aos seus combates. A linha de fuga do marron
se conjuga com a linha “do além” do pajé: um para além
do visível, que também é um além da realidade colonial, a
projeção de um mundo ao mesmo tempo passado e ainda
por vir, aquilo que Édouard Glissant chama de “visão
profética do passado”: “No interior dessa contestação
global representada pela marronagem, o curandeiro se
torna de algum modo o ideólogo, o sacerdote, o inspirado.
38 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Em princípio, é o depositário de uma grande ideia, a da


manutenção da África, e, em consequência, de uma grande
esperança, a do retorno à África”.49

0 continuum d as re sistên c ia s

A idealização do escravo rebelde, e mesmo


revolucionário, tendia a privilegiar o combate
dos homens em detrimento do combate das
mulheres e a subestimar as formas de luta
e de resistência menos evidentes por meio
das quais a imensa maioria das escravas e dos
escravos havia sobrevivido e uma minoria,
inclusive várias mulheres, havia se libertado.
(...). A resistência discreta ou “sutil” era
mais eficaz a longo prazo do que a rebelião
violenta, a qual, salvo algumas poucas
exceções, conduzia a uma repressão maciça,
sangrenta e exemplar.50
Assim, para superar a síndrome de Spartacus - a
mania de considerar o escravo rebelde do sexo masculino
como o modelo supremo da luta contra a escravidão - é
preciso conceber as resistências afrodescendentes como um
continuum que vai da lentidão no trabalho até a secessão
marron, passando pelas revoltas desarmadas e pelos
suicídios nos navios negreiros. Não cabe, portanto, opor
os nègres que teriam ficado de maneira dócil nas plantações
COSMOPOÉTICAS DO REFUGIO 39

aos marrons, que teriam sido “heroicos”. A menos que se


exclua, por exemplo, as resistências “sutis” praticadas pelas
mulheres negras: a riqueza dos modos de transmissão da
memória, o domínio da farmacopeia e das cosmologias
associadas,51 o poder de influência e de manipulação da
“favorita” sobre o senhor, o infanticídio como gesto de amor
paradoxal (retratado de modo magnífico no incandescente
Beloved, de Toni Morrison). Para que se possa compreender
como ela traça uma linha de fuga a partir do próprio
“interior” do sistema escravagista, a marronagem deve
ser pensada como um processo contínuo de libertação.
De fato, é pelo viés de práticas culturais tais como as
comunhões místicas e festivas das macumbas, os torneios
verbais nas noites em que se contam histórias, as variações
criadoras das falas crioulas e negro speeches que as escravas
e os escravos conquistam espaços de liberdade, até mesmo
no seio das plantations. A comunidade marron representa
a realização suprema desses processos de subjetivação,
dessas artes de si por meio das quais —pelo improviso, pela
variação contínua dos ritmos, do fraseado corporal e vocal
—o escravizado escapa da anulação própria à condição de
escravo e advém ao ser, ou seja, torna-se novamente, para si
e para os outros, sujeito de ações e de criações.
40 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Os n eg m aw ons, a a r te da m e ta m o rfo se e d a dissolução


d e si
Ao breakbeat dos ritmos afro-diaspóricos, na ruptura do
continuum temporal, corresponde uma difração do espaço
em múltiplas e inéditas espacialidades: espaço-tempo do
culto, do conto, da dança marcial, etc. No entanto, com a
secessão marron, o combate contra o sistema escravagista
ingressa numa fase estratégica,52 que desloca e torna perene
o teatro de operações. Forma coletiva da fuga, a secessão é
resistência territorial: faz parte de um território labiríntico
cujos meandros e acidentes constituem aliados naturais
para os rebelados. O marron não foge, ele se esquiva,
escapa, desaparece; e pela sua retirada, se metamorfoseia e
cria um fora: o quilombo, o palenquey o mocambo, o péyi
an déyo...
Mas como é possível que aquilo que inicialmente não
passava de uma fuga (mesmo sendo coletiva) - um recuo
face à adversidade - se transforme numa notável forma
de luta? A fuga dos escravos não surge como covardia,
como um fenômeno passivo, a menos que se adote
uma concepção redutora da resistência, que confunda
resistência e enfrentamento, e esteja restrita a uma visão
viril e heroica do combate. Do mesmo modo que a batalha
não passa de uma das modalidades particulares da guerra,
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 41

o frente-à-frente constitui apenas uma das modalidades


específicas da resistência. A guerrilha - a tática privilegiada
dos nômades, dos marrons, de todos os grupos e minorias
banidos —apresenta-se entáo como uma não-batalha, em
que a astúcia, as artimanhas enganosas, os disfarces, a
camuflagem, as fugas e os ataques surpresa zombam da
moral dos poderosos.
Em fins do século XIX, no sertão brasileiro, uma
insurreição milenarista culmina na criação de Canudos, a
“Troia de farrapos”. Essa experiência espiritual e política se
inscreve na continuidade dos quilombolas, cujas táticas de
guerrilha são retomadas.

A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o


como Anteu, indomável. (...). (...as caatingas
são um aliado incorruptível do sertanejo em
revolta. Entram também de certo modo na
luta. Armam-se para o combate; agridem.
Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro,
mas abrem-se em trilhas multívias, para o
m atuto que ali nasceu e cresceu. (...). [Os
soldados] espalham-se, correm à toa, num
labirinto de galhos. Caem, presos pelos
laços corredios dos quipás reptantes, ou
estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos
tentáculos.53
42 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Em Os Sertões, Euclides da Cunha pinta com maestria


essa “tática espantosa da fuga” que moldou formas de
vida furtivas, bem como paisagens agrestes e confusas nas
quais essas vidas se entranhavam. Desaparecer na natureza,
uma das táticas básicas da Arte da Guerra, de Sun Tzu, é
dobrar-se ao ciclo das mutações. Os neg mawons ião negros
e negras ninjas que dominam perfeitamente essa arte da
metamorfose e da dissolução de si. Através de seus gestos
e movimentos hábeis, de sua desarticulação rítmica, seus
corpos se purificam, se apagam, se virtualizam na suspensão
de uma blue note indócil. Assim como os marrons, os
rebeldes de Canudos se fundem com o território onde se
retiram.
“Esse refúgio era muito forte: era cercado de todos os
lados por um grande pântano, formando uma ilha. Só podia
ser alcançado por picadas cobertas de água, conhecidas
somente pelos seus habitantes.”54 Quer adote a retidão de
uma linha geométrica ou o serpentear de um rio, quer seja
fixa ou móvel, quer possua a materialidade de uma muralha
ou a espiritualidade de uma manifestação de forças invisíveis
(espíritos e ancestrais protetores abrigados nas pedras, nos
animais, nos rios), uma fronteira opera a inscrição espacial
de uma coletividade humana num dado território. Por
instaurar e delimitar um território, uma heterotopia que
curto-circuita a ordem escravagista, a secessão marron
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 43

produz necessariamente fronteiras. Mas essas só podem


se manter graças ao seu próprio apagamento. A fronteira
marron deve efetivamente marcar, codificar o território da
comunidade sem deixar traços visíveis, sem permitir sua
localização pelo aparato de captura colonial. Eis porque o
sistema defensivo das comunidades marrons se apresenta
desde o princípio como um sistema de camuflagem. A
secessão marron é paradoxal pois, ao invés de inaugurar o
nascimento oficial de um novo Estado, ratifica o ingresso
na clandestinidade de uma comunidade de seres indóceis.
Trata-se não apenas de combater o Estado escravagista, mas
de repudiar o seu próprio princípio. Que o senhor nunca
possa retornar ao seio da sociedade marron.

0 fo ra e stá em processo d e ab o lição

M EM ENTO

Contemplar imagens da Terra iluminada à noite


Observar as sinapses fosforescentes que se agitam em sua
superfície
E nos envolvem a nossa revelia
Compreender que vivemos sob uma abóboda invisível
Fazer o luto da transgressão enquanto gesto último e heroico
de resistência
Fazer o luto da plena luz viril do enfrentamento
44 DÉNÈTEM TOUAM BONA

A visibilidade é uma armadilha (Foucault)


Cultivar a sombra dasflorestas
Prolongar a bruma dos pântanos
Escorrer ao longo das linhas de falha dos lagos e montes
escarpados
O fora está em processo de abolição.

Ali, você tem a cerca e o arame farpado,


eu corto, corto e entro. O responsável pelo
scanner se levanta para conferir o caminhão.
Eu olho para ver se tem polícia. Abro o
caminhão e pulo. Se eu não for visto e não
houver cães, OK. O último controle é ele, o
cão. Se ele não sentir meu cheiro, vou para
a Inglaterra.55
É desse modo que um jovem refugiado etíope descreve
suas tentativas para embarcar em uma balsa, saindo de
Calais. O negro marron e o cão feroz formam uma dupla
indissociável, tanto no imaginário como na realidade das
sociedades escravagistas. Na era da cibernética, o faro e os
dentes dos mastins compõem os traços de uma fronteira
móvel e reticular56 que não mais se confunde com os
limites territoriais do Estado-nação. As fronteiras se
tornaram smart, verdadeiros microprocessadores que não
cessam de ultrapassar os limites das nações, de proliferar ao
mesmo tempo no interior de cada uma delas, a ponto de
transformar em checkpoint a menor via de acesso a um local
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 45

público ou privado, e tornar suspeito qualquer elemento


humano que integre um fluxo. Para separar o joio do trigo,
acabou-se por estender ao conjunto dos humanos processos
restritos anteriormente aos bípedes clandestinos: o registro
das impressões digitais, a inquisição biométrica, a detecção
de pessoas perigosas.
A smart border57 se transformou em elemento central
do sistema de predação capitalista e da nova governabilidade
algorítmica: ela desempenha um papel essencial na
produção, por meio de uma série de dispositivos (um
aparato jurídico, instituições internacionais como a
Frontex,58 campos e centros de detenção, etc.), de uma
humanidade exposta ora à sujeição, ora à expulsão, na figura
do migrante, hoje objeto de uma perpétua caça ao humano,
que o mantém fora do Direito, numa condição de apátrida
e de pária próxima da condição de escravo. As reportagens
dedicadas aos mercados de escravos na Líbia recobrem sob
o véu do sensacionalismo aquilo que, longe de constituir
uma exceção, tornou-se a norma: a desumanização dos
infiltrados59 por meio de procedimentos de triagem. Em
dezembro de 2013, a desinfecção de migrantes nus com
o uso de equipamento de limpeza de alta pressão na ilha
italiana de Lampedusa desencadeou reações indignadas na
mídia internacional: o ato não podia deixar de remeter a
cenas comuns em campos de concentração nazistas. Que o
46 DÉNÈTEM TOUAM BONA

mundo tenha deixado de considerar como sagrada a nudez


de um ser humano (Hannah Arendt), eis o escândalo
na origem de todos os outros: o tráfico de órgáos, o
encarceramento de crianças em centros de retenção (muitas
vezes separadas de seus pais), a expulsão de refugiados para
países sob regimes ditatoriais, onde correm o risco de sofrer
tortura e de serem executados, etc.

O poder espacial da sociedade de controle


não se caracteriza mais pela oposição entre
um dentro e um fora, mas por uma gestão
diferencial da permeabilidade dos lugares. A
partir daí, o gesto de transgressão não possui
mais nenhum sentido político. (...) Não há
mais um fora para onde se mirar, sair de uma
bolha significa penetrar em outra.60
Com a abolição em escala planetária do direito de
asilo e a aceleração da sexta extinção em massa das espécies
vivas, é a própria possibilidade do refugio que se perde.
Busca e produção de um fora da sociedade escravagista, a
marronagem só pede para ser reinventada, pois encarna a
utopia em ato do refugio, num mundo regido pela caça ao
humano e pelo saque do vivente, do qual não saímos até
hoje. A secessão marron remete então a uma cosmopoética:
ela é produção de um mundo, criação de um fora com
valor de refugio e de utopia concreta para todos que ainda
permanecem cativos. Os quilombos representam de fato
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 47

“um apelo constante, um estímulo, uma bandeira para os


escravos negros”.61
É preciso insistir nesse ponto: o refugio não preexiste
à fuga; é ela que o produz, o secreta e o codifica. A arte
da fuga, de que a experiência histórica da marronagem
representa apenas uma das modalidades, é subversão a partir
de dentro, seja esse dentro a colônia ou nossa sociedade de
controle —e por mais que ele nos pareça completamente
fechado e sem saída. A fuga não é transgressão ilusória em
direção a um fora transcendente, mas secreção de uma
versão subterrânea - clandestina e herética - da realidade.
Pois construir uma fuga não significa ser posto para correr.
Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações
sem fim para contornar qualquer tentativa de captura.
Um texto de 2016 contra o projeto de enterrar rejeitos
nucleares Cigéo,62 em Bure, no departamento francês de
Meuse, propõe justamente bancar o camaleão, confundir
os procedimentos de identificação e de registro:

Uma estratégia de resistência geral e


coletiva pode consistir em nos tornarmos
indiscerníveis. (...) As táticas e os papéis que
representamos devem (...) se transformar
ao sabor das circunstâncias e das relações
de força (...). Agitador num campo um
dia, cidadão legalista que exige a prestação
48 DÉNÈTEM TOUAM BONA

de contas no seguinte, dançarino louco no


outro.63
Usando subterfúgios, o construtor de fugas se produz
como simulacro, se faz trânsfúga.
Nesses tempos sombrios em que proliferam os
dispositivos de controle, as resistências devem ser furtivas,
mais do que frontais. Atacar em terreno aberto é se oferecer
como carne de canhão aos múltiplos poderes que tendem
a nos sujeitar, expor-se a ser capturado, desacreditado,
criminalizado. Trata-se então de resistir em modo menor,
pois colocar-se como maior, maduro, responsável, significa
obrigatoriamente ter de se render quando a polícia, os
serviços secretos, as agências de segurança nos convocam
para prestar contas de nossas vidas furtivas.
A marronagem, portanto, é menos uma forma de
conquista do que de subtração ao poder. As táticas furtivas
são táticas de des-captura: a qualquer tentativa de captura,
opõem o vazio. É essa potência corrosiva da marronagem
diante dos aparelhos de captura e dos simulacros produzidos
que chamo de fuga. E, por essa palavra, entendo uma
forma de vida e de resistência que, longe do frente-à-
frente espetacular da revolta heroica, opera na sombra uma
retirada, uma dissolução contínua de si. A fuga é ascese:
arte paradoxal da derrota, um desfazer que se aplica tanto
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 49

às instâncias de dominação quanto à sua reverberação no


mais profundo de nós. Qual seria o sentido de uma vida
marron hoje em dia? O de uma vida gazeteira sempre
construindo fugas do amor ao poder e do devir-fascista que
ele implica.64
C0SM0P0ÉTICAS DO REFÚGIO 51

H ERO IC LAND65

E sp ectro g rafia da fro n te ira


Na Africa do Sul, a fobia aos estrangeiros -
em especial aos procedentes de outros países
africanos —cristalizou-se numa forte antipatia
voltada contra os “imigrantes clandestinos”,
que são encarados como pertencentes a uma
espécie de nação subterrânea e fantasm a (...)
J& J. Comaroff, Zombies etfrontières à 1ère
néolibérale66

O negro marron e o cão feroz67 formam uma dupla


indissociável, tanto no imaginário como na realidade das
sociedades escravagistas. Na era da cibernética, o faro e as
garras dos mastins compõem os traços de uma fronteira
móvel e reticular que náo mais se confunde com os limites
territoriais do Estado-nação. Pelo contrário, se derrama por
toda parte, para fora e para dentro, estendendo a lógica da
triagem e da desconfiança - aplicada, de início, somente
aos indesejáveis, migrantes, delinquentes —para o conjunto
das populações, reduzidas a fluxos de dados, sejam elas
“estrangeiras” ou “autóctones”. A fronteira se tornou hoje
um processo imunitário, reforçado pelo estado globalizado
52 DÉNÈTEM TOUAM BONA

de emergência sanitária que se estabeleceu por conta da


pandemia causada pela Sars- CoV-2.
No texto experimental a seguir - algo entre um
conto de antecipação e um diálogo filosófico — esbocei
uma análise espectral68 das fronteiras que difratam nossas
vidas: uma volta no tempo a partir dos possíveis de um
enclave pós-colonial, a Selva de Calais,69 até as primeiras
“sombras” (Africano(a)s deportado(a)s para as Américas)
que cruzaram o Atlântico a partir das margens subsaarianas.
Como Moisés seria acolhido hoje? Como seria um
mundo em que não houvesse mais refugio nem para os
humanos obrigados a deixar seus países, nem para o
conjunto dos vivos ameaçados pela exploração desenfreada
dos “recursos naturais” e dos cataclismas gerados por ela?
A questão do asilo não se coloca somente para os assim
chamados migrantes. Todos nós estamos agora destinados
a nos tornar refugiados em nossas próprias terras; todos
estamos em busca de um solo, um ar, uma água que não
tenham sido corrompidos; estamos todos em busca de um
fora - um refugio - que escape ao cerco cibernético dos
espaços-tempos (o controle em tempo real dos indivíduos,
por meio das novas tecnologias).
Como salvar nossa pele? Como evitar que ela seja
reduzida a uma interface de controle? Diante do advento
COSMOPOÉTICAS DO REFUGIO 53

de uma lógica imunitária (amplificada pela Covid-19),


podemos ainda tocar e ser tocados? Enquanto o espectro de
uma sociedade contactless70 se torna cada vez mais palpável,
a fronteira que contesto aqui não é tanto a que separa um
país do outro, mas a que distingue o humano do inumano.
Uma praia deserta. Ao longe, o vaivém incessante
dos ferries, dos porta-containers e dos superpetroleiros.
Acima da charneca e da zona portuária, a trajetória
furtiva e aleatória de drones ovoides indiferentes ao vento.
Filtrado pela dupla cerca de um branco imaculado, o ruído
surdo das carretas a caminho da Inglaterra confere uma
tonalidade sepulcral à ressaca do mar do norte. Ao fundo,
além da estrada, uma das duas grandes fábricas de produtos
químicos de Calais. E ainda mais distante, para dentro das
terras, a torre cristalina de Heroic Land - um novo parque
de diversões que brotou pouco tempo depois da destruição
da Selva —cujos “Novos Mundos”, erigidos à glória dos
personagens de mangás, videogames e filmes de ficção
científica encantam os visitantes que chegam de todo o
planeta. Sob os raios oblíquos do sol poente, uma silhueta
fulgura no drapeado úmido da praia. O corredor, rosto
coberto por um capuz, se aproxima a largas passadas dos
blockhaus encravados nas dunas cobertas de arbustos, onde
seu trajeto acaba se cruzando com o de outro exilado: um
homem sem idade sentado no chão, de pernas cruzadas,
54 DÉNÈTEM TOUAM BONA

junto a uma fogueira, o olhar perdido em algum lugar


entre as duas margens do Canal da Mancha. O primeiro
dia do ano de 2025 chega ao fim.

A respiração ainda ofegante, depois de menear levemente


a cabeça, o corredor se agacha lentamente e estende as mãos
sobre as chamas. Sem dizer uma palavra, o homem sentado
lhe oferece um cigarro. Um fósforo estala ao abrigo da palma
da mão, ligeiro crepitar através de um halo de vapor ejumaça.

O homem sentado: Pra que correr? Se você olhar as


imagens da Terra iluminada à noite, se observar as sinapses
fosforescentes que se agitam em sua superfície e nos
envolvem à nossa revelia, vai compreender que vivemos sob
um domo invisível. Não adianta treinar, não vai conseguir
escapar deles...

O hom em que corre: Você não entende, m eu co­


ração está aqui, debaixo dessa pele engelhada de areia
branca. E a cada vez que m artelo o solo quebradiço
com meus passos fugidios, reavivo seu pulso. E sinto
o fogo em m eu rosto, o roçar incandescente do vento
que varre as peles m ortas. H a rra ff1 Sou um queim a­
dor de fronteiras: queim ei meus docum entos, queim ei
m eus dinares, m eus CFAs, m eus xelins, m inhas nairas,
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 55

queim ei m inha vida passada, queim ei até meus dedos,


não quero mais deixar pegadas, só quero m e jogar a
corpo perdido. E se devo me fazer ouvir, será de boca
costurada, pois um a som bra não tem voz.
O homem sentado: E quem iria querer te escutar?
Até parece que as angústias de um clandestino interessam
alguém! Quanto ao coração, você não sabe que ele sempre
nos trai? Coloque os pés de novo no chão, não se preocupe,
o solo continua bem firme. Falemos pouco, mas falemos
bem: engenheiros aperfeiçoaram detetores de batimentos
cardíacos, e também do fôlego, sem falar nos captores de
infravermelhos. Para cruzar a fronteira, o mais seguro é
entrar em coma... o que, a meu ver, é bem mais reparador
do que um sono povoado de desejos e de pavores insensatos.
Nada de muito complicado, você ingere o produto à base
de tetrodotoxina e desperta do outro lado. O TTX que eu
vendo é de primeira qualidade, orgânico, nada de coisa
sintética, extraído unicamente do baiacu, o peixe-balão.
O homem que corre: Tu tá de sacanagem pra cima de
mim! Virar cadáver em pé, essa é a tua solução?! Por nada
nesse mundo, nem mesmo uma passagem para o Eldorado,
eu renunciaria ao batimento dessa bolsa de sangue, a essa
queimadura que me anima e me consome. Um velho
cozinheiro chinês me contou um dia que a escrita nasceu das
56 DÍNÈIEM TOUAM BONA

pegadas semeadas na terra por um pardal. Um mandarim


que passava por ali as recolheu, e de sua combinação, fez
surgir o primeiro alfabeto. Muitas vezes me pergunto quem
saberá 1er minha corrida...
O homem sentado: Wake up brother. Jungle finished!
Depois de ter passado por tudo isso, você não pode morrer
na praia. Eu tava te esperando, já faz um tempo que tô
de olho em ti. Eu te passo a substância e você embarca
na nave dos mortos: lugares reservados aos migrantes nus
nas câmaras frias de containers de segurança. Graças à
aplicação de um gel criogênico, a interrupção da respiração
e do ritmo cardíaco, e todas aquelas carcaças de boi que
servem de proteção, os zumbis - é assim, meu irmão, que a
gente chama os que tentam a travessia - os zumbis passam
sem problema pelos detectores de humanos. O único
efeito colateral, uma leve alteração da memória. Detalhe
desprezível - vivemos aqui uma vida de morte, então,
melhor ir até o fim.

O corredor tem um leve sobressalto, como se despertasse


de um sonho ruim, e joga nervosamente alguns gravetos na
fogueira, enquanto olha fixamente para seu interlocutor.

Por que esses olhos arregalados? Sou apenas um


atravessador, estou apenas te oferecendo um favor, um
favor pago, é verdade, mas um favor: se não fosse eu, seria
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 57

um outro. Não pretendo ser um anjo, só desempenhar o


papel que me foi designado, e quero retirar minha parte na
transação. Nada de intrinsecamente diabólico, não vou te
pedir para assinar um pergaminho com teu sangue - isso
fica para os filmes - um aperto de mão bastará. Melhor me
encarar como um pioneiro, só faço obedecer à palavra de
ordem da época: “expandir os limites”, inclusive os da vida
e da morte.

O hom em que corre: Acha que não te reconheci ?!


Nunca devia ter aceito aquela água de procedência duvidosa
que você me ofereceu no deserto. E olha que já tinham
me avisado: você salva apenas para melhor perder teus
devedores. Você tem mil nomes: atravessador, chairman,
aliciador, locador, falsário. A verdade é que você é o Mestre
das Encruzilhadas. E um grande picareta! Tua agência de
viagens não passa de um conto do vigário, você trabalha
para os negreiros sem rosto.
O hom em sentado: Pronto, já conheço de cor tua
fábula sobre o tráfico de seres humanos! Me dá ânsia de
vômito todos esses nègres que passam a vida gemendo sobre
a própria sorte, E se acham diferentes, inocentes, porque
vítimas. Mas tudo o que querem, no fundo, é fazer negócios
em cima dos mortos, convertê-los em dinheiro vivo, é o
58 DÉNÈTEM TOUAM BONA

que vocês chamam de reparação. Vocês transformam a


história num tribunal, e a justiça numa revanche.
O homem que corre: Nem adianta te animar, tua
culpabilidade não me interessa. Você fala dos nègres como
se isso realmente existisse. Um nègre é um homem invisível!
Alguns anos atrás, acho que foi em 2017, topei com um
vídeo onde se via um ponto escuro emergir das ondas, a
algumas braçadas de distância de uma lancha de passageiros
veneziana. Tive que assistir à cena várias vezes até conseguir
entender o que estava acontecendo. “Africano!”, “deixa ele
morrer!”, “volta pra casa!”... Sob as risadas e insultos dos
que estavam no barco, um jovem de pele escura se afogava.
Soube depois que era um refugiado da Gâmbia, que se
chamava Pateh Sabally e tinha só 22 anos. Jovem demais
para ver Nápoles, ou melhor, Veneza, e depois morrer.
Naquele dia, percebi dentro do estojo do sonho veneziano
a atrocidade indizível de um pesadelo acordado. Hoje em
dia, isso se tornou tão banal, que nem chegamos mais a
nos irritar quando esbarramos em todos esses tiras, esses
guarda-costeiros, essa “gente de bem” que se caga de rir ao
ver árabes e negros desaparecerem debaixo d'àgua.
O homem que corre se cala de repente, é tomado por
convulsões. Os olhos esbugalhados, a voz rouca, parece estar se
dirigindo a uma multidão.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 59

Não sigam adiante, abram os olhos para o mundo


imundo que nos espreita. Para todos que zombam da
humanidade que se afoga, gostaria de dizer: o nègre que
agoniza à sua frente e que vocês insultam, esse nègre que
vocês fantasiam, nascido da decomposição do “branco”,
esse nègre não existe! Simplesmente porque ele só vive no
fundo de vocês. Mas o que é que vocês pensam?! Não dá
parase libertar tão fácil de seu lado sombrio... Sim, eu sei,
vocês não disseram nègre, vocês se contentaram em tratar
Pateh Sabally como um nègre, um rebotalho humano, uma
vida indigna de se viver. Vocês não o disseram, pois nègre
não é uma palavra, mas sim um latido que desumaniza
tanto o senhor quanto o escravo! Mas, ali onde vocês veem
um nègre, eu vejo um jovem, vejo a promessa, o desejo, o
alento, o sonho, a coragem, a humanidade que se apagaram
dentro de vocês —e que, secretamente, vocês invejam.
É preciso lembrar, nègre não é uma palavra, é o ancestral
comum de todos os clandestinos. Nègre não é uma palavra,
é um malefício: feitiçaria do capital que transforma seres
humanos em peças avulsas. Saibam que foi nas entranhas
do navio negreiro que se configurou essa estranha biologia
política que se dedica a escolher, a selecionar, a gerir vidas
desnudas. Foi nesse ponto que nasceu nossa humanidade
estocada: uma humanidade gerenciada em sistemas just-
60 DÉNÈTEM TOUAM BONA

in-time, conversível em açúcar, algodão, em tinta anil, em


ações, em algoritmos.
O nègre, garanto, é o nec plus ultra do trabalhador
flexível, o proletário integral, integralmente escaneado pelo
capital: seu preço é avaliado segundo seu ciclo de vida, o
custo de sua reprodução é calculado incluindo os gastos
com a criação, e apesar de assegurado o copyright sobre esta
última, seus donos geralmente preferem gastar as peças da
índia até o osso e importar novos lotes - de fato, é bem mais
lucrativo do que esperar que cresçam e deixá-los envelhecer.
Ah sim, vocês podem fazer pose, mas a verdade é que não
valem muito mais do que um nègre! Pouco importam seus
nomes e suas linhagens: diante do mercado universal, não
passam de “recursos humanos”, quer dizer, bem menos do
que corpos; corpos liquidados e liquefeitos, um fluxo que
se bombeia, ainda mais quando a intenção é refreá-lo.

Astro sombrio que sucumbe a sua própria densidade,


o fugitivo desaba num movimento de espiral sobre a areia
úmida efria.
Após recobri-las de cinzas, o homem sentado coloca as
mãos sobre as têmporasfebris de seu companheiro. Passam um,
dois, três minutos até que este volte a si num sobressalto, como
ao sair de um mergulho em apneia.
C0SM0P0ÉTICA5 DO REFÚGIO 61

O hom em que corre: Tem acontecido muito nos


últimos tempos, digo, faço coisas que logo esqueço, assim
que volto a mim.

Apalpando o rosto e a cabeça.

Quem está aqui? Podemos dizer eu quando nada nos


garante que se trata realmente de nós? Como dizer nós
quando eu é um outro?
Um dia, depois de uma dessas crises, me vi na tela do
celular de um amigo: estava dançando, pulava, rompia o
ar com uma espada fictícia dando voltas em torno de mim
mesmo, dervixe inebriado pelo sopro das dunas.
O hom em sentado: Hahaha! Sopro das dunas ou
sopro dos djinnsl Todo ritmo é ritmo de uma corrida:
martelar dos pés sobre o chão, martelar do coração dentro
do peito, martelar das mãos sobre a pele esticada. Não
se desenham linhas rítmicas impunemente, meu amigo:
os invisíveis estão à escuta... Mas fique tranquilo, você
desfruta dos favores deles, eu sei, estou bem informado. O
que acontece com você é uma benção. Especialmente para
alguém que vem de onde você veio...
O hom em que corre: De onde eu vim?!
O hom em sentado: Sim, de onde você veio, não
banque o ingênuo. Você estudou, não é mesmo? De
62 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Islamabad a Paris, encontrei muitos como você, pessoas de


boa aparência, que sabem “falar”, que nunca precisaram
trabalhar a terra, que nunca tiveram que vender bugigangas
na rua, que nunca desentupiram latrinas; cidadãos “bem-
nascidos”, produzidos e certificados em clínicas onde tudo
é branco e assepsiado. Vocês sempre foram servidos por
mulheres ou por descendentes de escravos, mas, no meio
dos “brancos”, não sei por que feitiço de magia negra, vocês
se tornam de repente “oprimidos”, até mesmo porta-vozes
da “comunidade”. Mas o que significa ser etíope, quando se
é oromo, ser mauritano quando se é haratine, ser birmanês
quando se é rohingya?!...
O homem que corre: Você esconde bem seu jogo,
meu irmão, bela raiva essa tua, e confesso que prefiro te
ver afiar palavras em vez de lâminas...Sim, eu sei, sou um
burguesinho de merda, e nunca deveria ter acabado nesse
perrengue! Tinha o futuro pela frente, era um herdeiro, um
“pele negra, máscaras nègres”, que louvava o dia inteiro os
faraós negros e os apóstolos da negritude, enquanto cuspia
na negada que transborda nas favelas africanas.
Mas depois que vi o mundo pelos olhos dos
condenados, o futuro que tinham traçado paramim me
causa náuseas: não quero mais viver num bunker dourado,
COSMOPOÉTICAS 0 0 REFÚGIO 63

náo suporto mais as senhas, as telas de controle, os guarda-


costas, o striptease do sucesso nas noitadas afropolitanas.
Durante minha travessia do continente, conheci a
extorsão incessante e a miséria que avilta, dividi minha
esteira com ratos em celas nauseabundas e infectas, e servi
de troféu para militares do Saara a serviço de uma Europa
tão arrogante quanto hipócrita. Mas experimentei também,
pela primeira vez, uma fraternidade sem limites.
O homem sentado: Pare logo com essa ladainha,
você me cansa, as coisas são simples: há uma fronteira, um
atravessador e um candidato que deseja passar. Então, se
não quer tentar a travessia, me explique que diachos está
fazendo aqui?
O homem que corre: Você realmente vai achar que
sou louco, eu só quero salvar a minha pele... We didn’t cross
the border, the border crossed us!

Para que atravessar as fronteiras, se elas já nos


atravessam, nos perseguem, estão gravadas em nossa pele.
Como as tornozeleiras eletrônicas, como os chips inseridos
sob a pele das crianças tão amadas, como a íris que abre
num piscar de olhos o portão de nossa residência protegida.
De que serve atravessar as fronteiras, se permaneceremos
sempre na soleira, já que esses muros, essas cercas, essas
barreiras blindadas que você propõe que eu atravesse são
somente sua forma mais grosseira. As fronteiras se tornaram
smarts, verdadeiros microprocessadores que náo param de
transbordar as bordas das Nações, de proliferar em seu
próprio interior, a ponto de transformar em checkpoint
qualquer ponto de acesso a um espaço público ou privado,
e de converter num suspeito qualquer elemento humano
integrante de um fluxo.
De que adianta atravessar as fronteiras, se elas passam
por dentro de nós e separam com o bisturi o autóctone do
estrangeiro, o homem da mulher, o branco do preto, o leigo
do muçulmano, o hétero do homo, o sadio do patológico,
e nos entregam assim às metástases da esquizofrenia. Para
separar o joio do trigo, acabaram por estender ao conjunto
de seres humanos procedimentos que antes ficavam
restritos aos “bípedes migratórios”, o registro das digitais,
a investigação biométrica, a detecção dos “elementos de
risco”.
O homem sentado: Você tem razão pelo menos
num aspecto, só o que interessa agora são nossos mil e
um perfis, a sombra digital que replica cada um de nossos
passos e de nossos atos, o ghost, como dizem os japoneses.
Essa hemorragia de dados que escorrem de nossas vidas e
são capturados e reconfigurados permanentemente pelas
nuvens de algoritmos; e isso, para a maior lucratividade dos
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 65

poderes ocultos do capital, dos quais os governos e agências


de segurança náo são mais que correias de transmissão.
O homem que corre: Louvemos a transparência, você
bem sabe que é para a segurança de todos! Nesses tempos
sombrios, os cidadãos têm a obrigação de ser claros como
água da fonte. Pois uma guerra sem fim está sendo travada
contra um inimigo tanto interno quanto externo, um
inimigo tão mais pernicioso porque se oculta nos mínimos
cantos das cidades, dos campos, dos corpos; sempre prestes
a ali se replicar.
Apesar de o medo do alien - o migrante virai - ter
se transformado quase numa segunda natureza, nem
conseguimos mais ficar arrepiados. Nossa pele - a antiga
fronteira sensível —não passa de uma superfície de controle.
Quem nunca sentiu esses pequenos terrores, na hora de
escanear as espirais de seus dedos ou a geometria fractal
de sua íris? Ser autenticado é ser admitido entre os eleitos,
pelo menos até a próxima passada pelo scanner. Preocupar-
se com a sorte do rejeitado, aquele que não nasceu no
bairro certo ou na margem certa, ou aquele que ousa entrar
em dissidência, já é ser considerado culpado antes mesmo
de ser julgado. A anestesia, esse é o preço da imunidade!

A silhueta do corredor congela bruscam ente na penum bra.


Com alguns gestos rápidos e eficazes, enterra as brasas da
fogueira e veste um traje biom im ético que só deixa os olhos
descobertos.

O homem sentado: Você está com os sentidos bem


afiados, eu mal percebo o zumbido dos cibermastins.
Parece, meu irmão, que tua pele perde valor a cada segundo.
O homem que corre: Fica tranquilo, ainda tenho
alguns truques na manga. Por que será que, com tantos
migrantes perseguidos, capturados, internados, só uma
pequena parcela acaba sendo realmente expulsa?

Do porto de Calais até o Cabo da Boa Esperança, é


a derrocada das Nações, então acalmam o cidadão como
podem: para esconjurar o feitiço, exibem muros como se
fossem talismãs, divindades protetoras, vade retro, Satanás,
mas sua ação repulsiva sobre os bípedes migratórios não
passa de uma distração.
A fronteira é mais um filtro do que um muro, ela capta
e gerencia recursos humanos, é uma máquina de triagem:
uma matriz que codifica os fugitivos em clandestinos,
sombras, mão de obra tanto mais dócil por ser espectral.
É preciso lembrar que empregar os “vivos”, ou seja, os
“autóctones”, tornou-se caro demais.
Você sabe disso muito bem, Babylon precisa de nós:
somos seus criados, seus operários, seus craques de futebol,
seus trabalhadores do sexo, seus inventores de algoritmos,
COSMOPOfTICAS DO REFÚGIO 67

seus médicos nas emergências e, claro, o alvo e a matéria


prima dessa nova guerra de captura: o grande negócio
do encarceramento. A grande caçada só visa nos manter
no além, sempre no limiar da vida e da lei, numa vida
nua e desprovida do direito de ter direitos, numa morte
indefinidamente adiada.
Quem ama, castiga, você vai me dizer! O estalido
do chicote, os tiros do policial, a mordida do cáo feroz,
a queimadura do gás lacrimogêneo, a laceração do arame
farpado, toda essa velha pedagogia da crueldade que sempre
teve como meta salvar os condenados de sua própria
indignidade. “A primeira coisa que o indígena aprende é
a ficar no seu lugar, não ultrapassar os limites”, dizia um
filósofo cujo nome esqueci.

O homem sentado: Você admite que os limites são


feitos para ser violados. O que tá esperando então para
correr atrás da tua sorte? Você pertence à galeria dos heróis
do grande Reality Show, sobreviveu à tortura dos campos
do Saara, aos mares revoltos, aos equipamentos de limpeza
de alta pressão de Lampedusa, às dissecções dos traficantes
de órgãos de Tripoli. Com tua garra, pode se tornar o que
quiser do outro lado. Não consigo entender o que te segura
por aqui. A Selva era só um acampamento, uma mega-
ocupação entre tantas outras.
68 DÉNÈTEM TOUAM BONA

O homem que corre: Escolas, restaurantes-cinemas,


banhos turcos, uma igreja etíope, mesquitas, um teatro,
padarias, hortas... Você chama isso de uma “ocupação entre
outras”?! Tentaram em vão transformá-la numa usina de
reciclagem humana, numa antecâmara de desumanização. A
fronteira sempre poderá ser subvertida. É essa possibilidade
de transgressão que a Selva realizava. Lembra das palavras
de Zimako, o criador da escola leiga das Dunas? “Isso aqui
não é uma selva, é um fórum!”, ele exclamava volta e meia.
E assim nos recordava que o primeiro fórum - a praça
pública onde se deliberava a respeito dos negócios comuns
de Roma - foi construído fora da Cidade, às suas portas,
nas suas fronteiras.
Em suma, o que é periférico pode um dia se tornar
central. A Selva, que deveria ser um espaço relegado,
distante da cidade, tornou-se finalmente, em muito pouco
tempo, um de seus corações: um lugar onde pessoas que, de
início, não tinham nada a ver umas com as outras (afegãs,
sudanesas, urbanistas, artistas, juristas, voluntárias de toda
a Europa) passavam a se relacionar, experimentavam outras
formas de organização, permitiam a circulação de saberes,
teciam novas alianças, elaboravam uma nova linguagem
comum. Algo capaz de sabotar a ordem humanitária e
policial da assistência controlada.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 69

Cosmópolis surgida da lama, pela sua liberdade


insolente, a Selva escapava ao imaginário do dejeto que
sempre tentam colar nos acampamentos e favelas. Não
era esse espaço indigno, desprovido de leis, povoado de
rebotalhos humanos dissecados ao vivo pelos repórteres dos
telejornais. Uma floresta sem dúvida, mas, com certeza, náo
a de Tarzan, e sim antes a dos negros marrons! Veja você, o
refúgio florestal pode nascer tanto no coração das cidades
quanto nas interzonas de trânsito: nasce de nossos desvios,
de nossas caçadas clandestinas, de nossos contrabandos, de
nossos passos perdidos e indóceis.
Sinto ainda as fogueiras da Selva sob as dunas. O
combate náo será travado do outro lado, pois náo há mais
dentro nem fora, vai acontecer no vórtice caótico dos
entremundos. O refúgio não está nem fora nem dentro
de nós, está na dobradura do mundo e de si, de si e do
outro, numa relação suspensa que só se atualiza no próprio
movimento da fuga - essa força de fugir que faz de nossos
corpos ondas gráficas e utópicas. A verdadeira questão
hoje não é como cruzar a fronteira, mas como habitá-la,
como transformá-la novamente numa linha geológica
de falha de onde possa jorrar o magma da humanidade
por vir. Sei que na palavra fronteira ouvimos sempre o
choque das armaduras, o corpo a corpo dos combatentes,
o clamor dos exércitos que se enfrentam. Mas antes de
70 DÉNÈTEM TOUAM BONA

ser linha de enfrentamento, a fronteira é zona de contato,


ela só distingue para conectar. Antes de serem linhas, as
fronteiras são espaços de vida onde os humanos sempre
se reinventaram alimentando-se da estranheza de seus
próximos. Como os recifes de coral, as fronteiras só
respiram e vivem pelos seus poros, suas asperezas, suas
superfícies vazadas onde se produz a fecundação recíproca
de mundos incomensuráveis.

Essa pele, pela qual eu te toco e que não cessa de se


trocar, não há afinal nada mais profundo do que isso.
Então, celebremos juntos nossas cinzas...
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 71

ENDOSSAR A SOMBRA ESTRIADA DAS FOLHAGENS


Sou um selvagem, mas não sou escravo.

Alfred Panou72

Ter um branco, nada mais banal: você se acalma,


dizendo que já vai voltar, que é culpa da emoção ou do
cansaço. Aquele nome que esqueceu e tá ali, na ponta da
língua, como a te desafiar, vai acabar vindo... Mas acontece
às vezes de a nossa própria vida nos escapar, se tornar
estranha, como uma cadela que acreditávamos fiel para
sempre e que, se aproveitando de um dia de tempestade,
fugisse para se juntar aos lobos —partisse em busca dessa
vida selvagem que um adestramento milenar devia ter
apagado de sua linhagem. É nesses momentos que, a todo
domínio, opomos o vazio, a defecção, a queda, a inservidão
de uma risada que nos faz explodir em estilhaços cortantes
—inassimiláveis.
Você não sabe mais quando isso começou, essa recusa
mais ou menos consciente de corresponder ao lugar e ao
papel que tinham lhe designado. Tua revolta era silenciosa
e imóvel, mais próxima da esquiva que do enfrentamento.
“Essa criança é realmente selvagem!” Quantas vezes você
ouviu essas palavras na boca de gente grande discutindo a
seu respeito. Você não gostava de falar, não queria se deixar
72 DÉNÈTEM TOUAM BONA

capturar pelos termos dos outros, essas malhas invisíveis


que nos entravam, que enquadram nossos movimentos e
nossos pensamentos, e tendem assim a determinar quem
somos.
A primeira coisa de que você gostou no Tarzan,
foi do seu mutismo: você tinha a impressão de que ele
compartilhava contigo uma mesma desconfiança diante
da linguagem. Era possível então ser “homem-macaco” e
herói! Era você o senhor da selva, que se lançava de cipó
em cipó, para além da tela, e que desfrutava de uma vida
tão selvagem quanto livre, sem calças compridas, sem
sapatos, sem sinal vermelho nem contramão, sem todos
esses prédios que rasuram o horizonte de Paris - uma vida
que só podia se expressar plenamente além das palavras,
nesse urro ciclônico que você sonhava soltar no meio da
rua ou nos corredores do metrô. Mas um dia depois de
Tarzan ter passado na televisão, algo estranho aconteceu
em tua pequena escola do 15° arrondissement, era como
se o filme prosseguisse ou antes te perseguisse: gritos de
macaco, “umgawa”, “Cheeta”, “bamboula”73, jorrando de
tudo quanto é lado. Foi provavelmente nessa hora que você
entendeu que não pertencia ao campo dos vencedores,
dos Colombos e dos Livingstones. Você gostaria de sumir
debaixo da terra, de esfregar, esfregar, e esfregar ainda mais,
com sabão, esponja, água sanitária essa pele que não podia
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 73

ser sua, poli-la até retirar dela toda obscuridade, até se


tornar transparente.
Depois de toda uma parte da vida alvejada pela cal
da integração - obedecendo, sem sequer se dar conta, à
injunção permanente a se esquecer, a se apagar - você
não passava de um zumbi: uma criatura errante e apática.
Nada de surpreendente, então, que, depois de um amigo
te falar dela, a indocilidade dos nègres marrons tenha
acabado te obsedando. À mais leve brisa, você parecia
sentir a respiração bravia daqueles homens e daquelas
mulheres que, em sua corrida enlouquecida, arrancavam
suas vestes de empregados para endossar a sombra estriada
das folhagens. Desde então, você já não sabe bem para
onde vai, sabe apenas que precisa correr para não perder
o equilíbrio sobre o fio estendido: correr e, sob a fricção
incandescente do vento, te despir das peles mortas —tua
pele de escravo.

P ara a c a b a r com a flo re sta virgem


Amazônia, bacia do Congo, arquipélagos da
Melanésia... para um ocidental, seguir a linha do Equador
com a ponta do dedo significa acionar todo um imaginário
da floresta virgem, onde se encontram lado a lado o canibal
e a moçoila taitiana, o bom selvagem e a amazona feroz, o
74 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Eldorado e o inferno verde. Por trás dessa figura da “natureza


selvagem”, que continua a se sobrepor à noção científica de
“floresta primária”, há “uma negação da humanidade das
sociedades florestais autóctones”.74 Essa negação não pode
ser dissociada de uma negação de historicidade própria da
mecânica colonial: “O colono faz a história. Sua vida é
uma epopeia, uma odisseia. Ele é o começo absoluto” nos
recorda Frantz Fanon.75 Enquanto o “bárbaro” —surgido
das estepes ou dos desertos —só se define pela relação com
uma civilização (que ele busca destruir ou de que tenta se
apropriar), o “selvagem” —o habitante da selva —é sempre
percebido sobre o fundo de uma mãe natureza da qual,
como uma criança, ele mal se destaca: ele “não ingressou o
bastante na História”.76
Se as florestas tropicais aparecem como terras virgens, é
porque, aos olhos dos europeus, não comportam qualquer
inscrição, qualquer vestígio de história, de monumento, de
estrada, de cidade digna desse nome. À nudez dos corpos
selvagens - característica recorrente nos relatos coloniais
— corresponde a nudez dos territórios silvestres. Terra
imaculada, a Amazônia é tratada pelos conquistadores
como uma página em branco, que apenas espera para
receber sua marca: cada plantation arrancada à selva, cada
posto avançado ou cidade erigida, cada estrada traçada
encena a grande narrativa da “civilização”.
É tempo de acabar com essa fábula da floresta virgem,
que ressoa como um convite ao estupro.77 A expressão
“floresta virgem”, que surge durante a conquista das
Américas, remete à imagem bíblica do jardim do Éden, à
ideia de uma natureza inocente, pura, autêntica, pois nunca
tendo sido penetrada pelo “Homem”. A metáfora de uma
floresta virgem não é anódina, ela ecoa o princípio jurídico
romano da terra nullius, o qual, ao definir uma terra
como “sem donos”, tornava antecipadamente legítima sua
colonização. A doutrina cristã da “Descoberta”, formulada
em 1455 por uma bula papal, estipula que “todo monarca
cristão que descobrir terras não cristãs tem o direito de
proclamá-las suas pois não pertencem a ninguém”.
Assim, antes de ser um discurso ideológico - que
nega a destruição dos judeus da Europa, o genocídio das
populações ameríndias ou a escravidão e o tráfico negreiro
- o negacionismo é a própria operação da colonização:
a negação da inscrição do colonizado em seu território,
salvo como figurante, fauna pitoresca, elemento acessório
e supérfluo. Compreende-se então por que nos filmes
de Tarzan os nègres geralmente só aparecem em segundo
plano, quase fora do quadro: criaturas talhadas na noite da
selvageria, que podem muito bem cair de um penhasco ou
ser devoradas por crocodilos sem despertar mais compaixão
do que a morte de um animal de carga. “Exterminai todas
76 DÉNÊTEM TOUAM BONA

as bestas!”, é assim que termina, em O coração das Trevas,78


o relatório sobre a missão civilizatória do homem branco. A
negação da humanidade leva ao genocídio, como atestam
tantos exemplos na história recente. Em regiões como a
Papua Ocidental, ou a Amazônia, o ecocídio é indissociável
da tentação de genocídio: “A cavalaria brasileira foi muito
incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-
americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em
dia não tem esse problema em seu país”.79

Uma p o lítica d a m em ó ria in cen d iad a


A colonização é geografia em sentido literal: marcação
e modelagem de uma terra “pagã”, percebida como oca
de sentido, como um nada. “O mapa é o instrumento
de uma domesticação do território do Outro (...). Antes
da conquista, o ambiente do habitante dos lugares ainda
era amorfo. Cabe ao colonizador, figura quase divina,
dar uma forma ao espaço”.80 O mapa colonial garante a
legibilidade das terras selvagens e esboça seu futuro destino
ao destacar os elementos (estradas, portos, fortes, rios
navegáveis, plantations, etc...) que permitirão, a médio
prazo, domesticá-las, dando-lhes forma humana. Mas,
nesse mesmo movimento, o mapa empurra para o ângulo
morto —para o vazio de um espaço branco —a conexão
das memórias indígenas e vegetais: a maneira como os
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 77

ameríndios, por exemplo, ao longo de milênios, pelas


suas itinerâncias, suas práticas hortícolas, seus rituais
xamânicos, a variedade de seus habitats, fizeram da
Amazônia náo apenas um vasto jardim, mas um cosmos:
um mundo povoado de ancestrais, de espíritos animais, de
seres de sonho, de forças elementares que, continuamente,
conferem sentido a territórios de vida. A multiplicação
exponencial dos incêndios na Amazônia náo poderia então
ser entendida como mera destruição de uma “floresta
primária”: ela constitui um verdadeiro cosmocídio.

O incêndio, em 2 de setem bro de 2018, do M useu


N acional do Rio de Janeiro se inscreve na trajetória
desse cosm ocídio sem fim que teve início com a che­
gada dos prim eiros conquistadores. O abandono ao
qual foi relegado esse prédio e centro de pesquisas, ao
longo de m uitos anos, nada tinha de passivo: náo foi
fruto de negligência, mas de um a política deliberada
(aplicada igualm ente a tudo que tem relação com a es­
fera pública, em osmose com a mecânica neoliberal).
O abandono constitui um a das m odalidades do poder
do soberano: um direito de m orte exercido a prazo. O
abandono é o banim ento do com um : expõe às intern-
78 DÉNÈTEM TOUAM BONA

péries, às doenças, à desarticulação, ao definham ento,


à m orte, aquilo que foi abandonado ou banido; seja
um indivíduo, um edifício histórico, docum entos e
objetos suportes de m em órias, populações, etc. C om
esse incêndio, foram as provas materiais da inscrição
territorial das com unidades am eríndias (mas tam bém
afrodescendentes) que se tornaram cinzas, fragilizan­
do ainda mais as garantias de seus direitos civis, cultu­
rais e territoriais.

Hoje, sob o codinome “desenvolvimento”, é ainda


a mesma “missão civilizatória” que devasta a Amazônia.
Seguindo a mais pura tradição colonial, Bolsonaro
considera os ameríndios como incapazes de valorizar suas
terras. Ao se apropriarem destas, os grandes latifundiários
e as multinacionais estariam colaborando para o bem
comum, fazendo recuar as fronteiras da “selvageria”. Essa
política da terra queimada é uma política da memória
incendiada: a produção acelerada de uma superfície
virgem e homogênea pronta para ser estripada, marcada,
espremida até a última gota pelos conquistadores sem rosto
do capitalismo globalizado.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 79

Viver d e n tro do bran co dos m ap as


Se o “branco” como esquecimento constitui uma
etapa essencial da fábrica cartográfica, é também porque
ele participa de uma mecânica do desejo, de uma erótica
da predaçáo: uma terra indígena é recoberta por um véu
de virgindade - a inocência daquilo que é sem história
— para que possa ser melhor estuprada. Como aponta
Matthieu Noucher, “os atores da colonização contribuíram
desse modo para o branqueamento dos mapas, apagando
referências para inventar do zero um espaço vazio, que se
tornava então um espaço a ser conquistado”.81 O branco dos
mapas é portanto o produto de uma operação estratégica
de branqueamento da história, de lavagem da memória dos
territórios.
Mas se o mapa é o instrumento de uma domesticação
do território, então viver na sombra —dentro do branco dos
mapas - não é nem estar marginalizado nem fugir, mas se
enfiar no humus de uma terra indómita: fazer corpo até se
fundir com ela. Apesar de serem os grandes esquecidos dos
projetos cartográficos na Guiana, os Bushinengês —negros
marrons da Guiana e do Suriname —nunca se apresentarão
como vítimas de uma invisibilização. De fato, há neles uma
desconfiança secular face aos critérios de conhecimento e
de reconhecimento instituídos. Para eles, viver no branco
DÉNÈTEM TOUAM BONA

dos mapas é escapar de propósito do mapa dos brancos.


Permanecer fiel a um modo de vida e de resistência furtivo,
que permitiu a sobrevivência de seus antepassados e a
eclosão de uma cultura amante das sombras. De fato, as
fronteiras dos territórios marrons só podiam se manter em
seu próprio apagamento, despistando continuamente os
radares dos senhores.
Com a secessão marron, a resistência ao
sistema escravagista (sabotagens, suicídios, revoltas,
envenenamentos, etc.) muda de teatro de operações. Torna-
se uma resistência territorial: passa a fazer corpo com um
território labiríntico cujos meandros e relevos constituem
aliados naturais para os rebeldes. O marron não foge, se
esquiva, se esgueira, desaparece; e por meio de sua retirada,
desdobra espaços-tempos inéditos: o quilombo (Brasil),
o palenque (América hispânica), o mocambo (São Tomé
e Brasil), o camp de marron (colônias francesas), etc. Nas
Américas, a relação de cuidado com a terra se encontra
intimamente ligada, no caso dos afrodescendentes, à herança
da marronagem (fugas e resistências criadoras dos escravos),
ao uso libertador da floresta como refugio, como espaço de
camuflagem e de reconstrução de si. Aqui, a floresta deve
ser entendida menos como um “meio ambiente” e mais
como o impulso indócil do vivo que, sempre, opóe-se em
nós ao movimento curvado da humilhação, da servidão
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 81

forçada ou voluntária. A camuflagem - confundir-se com


o entorno, meio ambiente de vida no qual evoluímos, até
ali desaparecer - supõe uma ecologia dos sentidos: sentir
o vento, o sol, a chuva, os elementos nos penetrarem por
todos os poros e abraçar o ciclo de Perceber
até devir imperceptível.

0 selv ag em sem p re te v e h o rro r ao " n a tu ra l"


Em meus escritos, foi a partir da privação radical
de mundo e de corpos constituída pela escravidão (cuja
contra-antropologia é representada pelo imaginário vudu
da “zumbificaçáo”82) que fui levado a pensar os corpos em
movimento e a meditar sobre suas potências utópicas: a
capacidade, por exemplo, de produzir um fora, nascido do
escapar de um canto ou de uma dança, no próprio seio
de um dentro asfixiante (a plantation escravagista). Em
sua origem, nas ilhas espanholas voltadas à produção de
açúcar, cimarron designa o animal doméstico que fugiu
para retornar à vida no mato. Por extensão, os espanhóis
qualificavam os escravos fugitivos de “negros cimarrones'.
É preciso então ver na marronagem um processo de des-
domesticação: um “devir selvagem” libertador. Ser marron
é abraçar o movimento de um cipó: deixar-se atravessar pela
selva, enquanto se a atravessa. O movimento de libertação
operado pela marronagem deve ser tomado em sentido
82 DÉNÈTEM TOUAM BONA

próprio: é antes de tudo uma liberação do movimento


disparado por um corpo dançante - todo passo de dança
podendo ser o esboço de um golpe83. Uma natureza virgem
é uma natureza desarmada. Trata-se então de rearmar
os corpos e os territórios nos quais eles se inscrevem,
reencantando-os pelos sortilégios de uma cosmopoética do
refugio.
Para concluir, recordemos que o “selvagem” sempre
teve horror ao “natural”, sempre foi “estiloso”. Como corpos
tatuados, escarificados, lancetados, pintados, besuntados,
perfurados, paramentados de plumas, poderiam estar nus?
Para além da incorporação da lei do grupo, da produção de
um corpo-memória,84 a marcação dos corpos é um ato de
estilização de si. Para os ditos “selvagens”, um corpo é, em
si mesmo, uma superfície de escrita, só se tornará humano
a partir do momento em que for trabalhado: um corpo
que não foi esculpido é um corpo vazio de sentido. Desse
ponto de vista, é o colono que parece informe e insensato:
sob suas vestes pudicas sua pele tem a nudez de uma página
em branco.
Em 1988, um militante aborígene desembarca em
Dover, finca ali a bandeira aborígene e declara:

Eu, Burnum Burnum, nobre da antiga


Austrália, tomo posse da Inglaterra em nome
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 83

do povo aborígene (...)• Viemos lhes trazer os


bons modos, o refinamento e a possibilidade
de um Koompartoo, um recomeço. Para os
mais inteligentes dentre vocês, trazemos a
língua complexa dos Pitjantjatjara-, vamos
x lhes ensinar como estabelecer uma relação
—espiritual com a terra e como encontrar
alimentos no bush.85
Sigamos então o ensinamento desse nobre aborígene,
e invoquemos os espíritos da selva, os espíritos “selvagens”,
a fim de conjurar os espectros de Colombo e do Eldorado,
que não cessam de retornar, por meio da recrudescência
de projetos de mineração ou agroindustriais que devastam
terras e modos de vida em toda Terra.
Bora endossar a sombra estriada das folhagens.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 85

PÓ SL U D IO

No (re)começo...entre terra e céu, um casulo suspenso


que um corpo, ainda confuso, rasga para desenrolar sua
linha de vida: uma Criança (re) nasce das feridas e das
cinzas de um mundo devastado.
A sombra da Criança está viva: táo grande quão
pequena ela é, táo colossal quanto franzina.
A Sombra e a Criança: dois corpos que se constroem
em fricções, contrapontos e acordes sutis.
A Sombra e a Criança: dois polos magnéticos que,
através de um jogo de cordas, (re)lançam um campo de
forças criador.
Nesse corpo a corpo com a Sombra, a Criança percebe
os mortos, dialoga com eles, extrai sabedoria e potência de
todas essas vidas que a antecederam, e que se inscrevem —
linhas espectrais - em sua própria carne. Fios invisíveis de
uma história rasurada que ela retoma: a das condenadas e
dos condenados cujos sonhos abortados precisa realizar sob
formas inauditas.
Sobreviver num universo em ruínas é se deixar
atravessar, deixar-se habitar pelo acréscimo de vida
prodigado pelos ancestrais, pelos animados (animais,
plantas e povos do infinitamente pequeno) e pelos
86 OÉNÈTEM TOUAM BONA

elementos: abraçar a própria morte, a potência da sombra


e do humus, para renascer.
A Criança é como o junco, só pode cantar e amar pelo
entalhe que a abre para o sopro do infinito.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 87

NOTAS ^ _ _ _
1. “Anthropocène, Capitalocène, Plantationocène, Chthulucène.
Faire des parents”. [Trad. Frédéric Neyrat]. Revista Multitudes
n°65, 2016.
2. “Résurgence holocénique contre plantation anthropocénique”.
[Trad. Dominique Quessada], Revista M ultitudes n°72, 2018.
3. “O capitalismo contemporâneo pode ser definido como
capitalismo mundial integrado, pois tende a que nenhuma
atividade humana do planeta lhe escape. Pode se considerar que
ele já colonizou todas as áreas do planeta e que o essencial de
sua expressão concerne, agora, às novas atividades que pretende
sobrecodificar e controlar”. Felix Guattari. “ Le capitalisme
mondial intégré et la révolution moléculaire ”. Journées du
CINEL - Centre d’information sur les Nouveaux Espaces de
Liberté, 1981.
4. Naomi Klein. “Screen new deal”. Disponível em português
[Trad. Maurício Brum]: https://theintercept.com/2020/05/13/
coronavirus-governador-nova-york-bilionarios-vigilancia/.
5. Aproveito para agradecer aqui o artista, pesquisador e militante
Amilcar Packer (com a ajuda do Consulado da França em São
Paulo) pelo convite para participar da experiência “Laboratório
para Estruturas Flexíveis” que transcorreu de 23 a 28 de outubro
de 2017 na Casa do Povo. Ver A batalha do vivo: https://issuu.
com/grupocontrafile/docs/a_batalha_do_vivo. https://issuu.
com/grupocontrafile/docs/a_batalha_do_vivo
6. “jeter-aller”: literalmente, “jogar (fora)-ir” “descartar-ir”,
trocadilho com a expressão “laisser aller” (“deixar estar”, “deixar
rolar”), lema do liberalismo [N.T.].
7. A respeito da figura da “bruxa”, que encarna a mulher
insubmissa, detentora de saberes terapêuticos, e perpetua uma
relação espiritual com a terra e as memórias de resistências, ver
o trabalho notável de Silvia Federici: Calibã e a bruxa, trad.
88 DÉNÈTEM TOUAM BONA

Coletivo Sycorax, Ed. Elefante, 2018. Ver também: Dreaming


the Dark: Magic, Sex and Politics, de Starhawk. Na literatura do
Caribe, há ainda o magnífico romance de Maryse Condé: Eu,
Tituba, bruxa negra de Salem. [Trad. Natalia Borges Polesso]. Rio
de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019.
8. Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de
um xamã yanomami. [Trad. Beatriz Perrone-Moisés]. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 476.
9. “Rien n’est vrai, tout est vivant”. Conferência de Edouard
Glissant. Paris : Maison de l’Amérique latine, 2010. Disponível
em: http://www.edouardglissant.fr/vraivivant.html.
10. Expressão do filósofo Emanuele Coccia, cf. A vida dasplantas.
[Trad. Fernando Scheibe]. Florianópolis: Cultura e Barbárie,
2018].
11. Publicado inicialmente no número 12 da Revista Z e na
Revista Terrestres de 15 de janeiro de 2019. Trata-se aqui de uma
versão ligeiramente modificada pelo autor para a publicação em
português.
12. Yann Moulier Boutang. De l ’esclavage au salariat —économie
historique du salariat bridé. Paris : PUF, 1998, p. 133.
13. Palenqueros-. moradores de palenques, enclaves afastados que
serviam de refugio para escravos e escravas rebeldes, em especial
na América Central, Colômbia e Cuba [N.T.].
14. Maloya: tipo tradicional de música, cantos e danças em língua
crioula dos habitantes da Ilha da Reunião, departamento de além-
mar francês situado no oceano Índico. Foi proibido pelas autoridades
francesas no final dos anos 1950, só retornando à cena pública em
1976. [N.T.].
15. Nganga: termo bantu para curandeiro ou herbalista, usado
em várias sociedades africanas e afro-brasileiras. [N.T.].
16. Fundi madjinv. mestre dos espíritos no arquipélago
das Comores, situado na costa sudeste da África, a leste de
Moçambique, no oceano Indico.
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 89

17. Z AD: zone à défendre, zona a ser defendida, neologismo


militante que indica um tipo de acampamento ou ocupação,
em geral ao ar livre, que pode perdurar por vários anos e reunir
centenas de pessoas, em geral como um protesto contra projetos
de urbanização ou uso do solo [N.T.].
18. Depoimento de Gary Victor, entrevistado pelo autor, em
“’Écrire’ Haïti... Gary Victor”. In: Africultures, 24/05/2004.
19. Jean Hurault. Africains de Guyane. Paris : Ed. Mouton. 1970, p.
20- 22.
20. Pierre Clastres. La Société contre l ’E tat. Paris : Ed. de M inuit
1974.
21. Hélène Lee. Le Pinnacle, le paradis perdu des Rastas. Paris: Ed.
Afromundi, 2018.
22. Karl Marx. O Capital, Crítica da Economia Política - Livro
Primeiro. Edições Avante! 1867. [“O capital é trabalho morto
que apenas se anima, à maneira de um vampiro, pela sucção de
trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais dele sugar”].
23. A origem do “coumbite” vem de longínquas tradições
africanas, presentes em várias regiões, como o “dokpwé’, do
Daomé, hoje Benin, onde designa um trabalho agrícola coletivo,
ou o “shungu”, no arquipélago das Comores, no oceano índico.
Deriva de uma adaptação da palavra “convite”, do espanhol, que
se transformou em “konbit” ou “koumbit” em língua crioula,
até se tornar “coumbite” em crioulo do Haiti, para indicar uma
reunião e uma festa. Mantém semelhanças com o trabalho em
mutirão. [N.T.].
24. Jacques Roumain. Gouverneurs de la rosée. Ed. Le Temps des
Cerises, 1944, p.17-19 [Os donos do orvalho, Coleção Romances
do Povo, dir. Jorge Amado, Editora Vitória, p.7-8, 1954].
25. Gérard Barthélemy. Créoles - Bossales. Conflit en H aïti. Ed.
Ibis Rouge, 2000, p. 156.
26. Lambi: Lohatus gigas, grande caramujo marinho, conhecido
como concha-rainha. [N.T.].
90 DÉNÈTEM TOUAM BONA

27. Iwas\ também chamados de “Mistérios” ou “Invisíveis”;


nome dado aos espíritos intermediários entre o grande criador
mbamawu e os humanos no vodu haitiano. [N.T.].
28. Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. P. 479-480.
29. Para além dos corpos subalternos, podemos estender as
táticas de autodefesa analisadas por Elsa Dorlin, [em Se défendre,
Une philosophie de la violence. Ed. La Découvertes-Zones, 2017]
aos territórios de resistência instituídos pelas táticas populares de
encantamento: cultos, rituais agrários, etc.
30. http://loophaiti.com/content/les-vodouisants-veulent-
construire-des-forets-sacrees-en-haiti/.
31. Ver Max Weber. Ciência e Política, Duas vocações [Cultrix,
1970], onde o autor define a modernidade como sendo um
processo de “desencantamento do mundo”, ou seja, uma
racionalização técnico-científica da natureza.
32. Alfred Métraux. Le Vaudou Haïtien. Paris : Ed. Gallimard,
1977, p. 137.
33. Os donos do orvalho. Capítulo 5.
34. Em francês, a palavra nègre, quase sempre pejorativa, é
praticamente inseparável da ideia de escravidão. [N.T.].
35. Roger Bastide. Imagens do Nordeste místico em branco epreto.
Rio de Janeiro: Empresa Gráfica. O Cruzeiro, 1945, p. 48.
36. Roger Bastide. O candomblé da Bahia (Rito Nagô). [Trad. Maria
Isaura Pereira de Queiroz]. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1961,
p. 248.
37. Ounsi: ou hounsi (mulheres) e Houngan (homens), termos
equivalentes às Filhas e Filhos de Santo do Candomblé, no vodu
haitiano.
38. O questionamento da naturalização do dualismo de gêneros
e dos papéis sexuais não se limita ao tempo da cerimônia. Essas
práticas espirituais não estão estruturadas em torno de uma
ordem moral.
39. Ver: Des hommes et des dieux, de Annie Lescot e Laurence
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 91

Maglore. http://www.queerdocumentaries.com/en/
documentaries/documentary/des-hommes-et-des-dieux.
40. Matéria sobre a maior comunidade quilombola brasileira, a
comunidade Kalunga, no interior de Goiás, publicada por Caio
de Freitas Paes em Autres Brésils, 26/07/2019: https://www.
autresbresils.net/Pour-faire-face-aux-menaces-le-plus-grand-
quilombo-du-pays-dresse-la-carte-de
41. Ver: https://mapa.taina.net.br/ , http://radio.taina.net.br/ ou
/ http://www.mocambos.net/tambor/pt/baobaxia.
42. Jean Fouchard. Les Marrons de la liberté. Porto Principe:
Henri Deschamps, 1988, p. 360.
43. Um dos termos genéricos que designa a África enquanto terra
dos ancestrais, relacionado de modo imaginário a uma origem
perdida, como “Angola” ou “Congo”.
44. Ver: Jean-Pierre Le Glaunec. L’A rmée indigène. La défaite de
Napoléon en H aïti. Montreal: Lux, 2014.
45. André Corten. Misère, religion et politique en H aïti.
Diabolisation et mal politique. Paris: Karthala, 2001, p. 62.
46. Edward P. Thompson. A Formação da Classe Operária Inglesa
-A força dos trabalhadores. [Trad. Denise Bottmann], São Paulo:
Paz e Terra, 1987, p.74-75.
47. Jacques Rancière. A Noite dos Proletários. Arquivos do sonho
operário. [Trad. Marilda Pedreira]. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988].
48. Nathan Watchel. La Vision des vaincus. Les indiens du Pérou
devant la conquête espagnole (1530-1570). Paris: Ed. Gallimard,
1999, p. 279.
49. Édouard Glissant. Le discours antillais. Paris: Ed. Gallimard,
1997, p.181.
50. Aline Helg. Plus jam ais esclaves ! De l ’insoumission à la
révolte, le grand récit d ’une émancipation (1492-1838). Paris: La
Découverte, 2016, p. 23.
51. Maryse Condé. Eu, Tituba, Bruxa negra de Salem. Ed. Rosa
92 DÉNÊTEM TOUAM BONA

dos Tempos, 2019 ou Évelyne Trouillot. Rosalie l ’infâme. Paris:


Dapper, 2003.
52. Retomo aqui a distinção estabelecida por Michel de Certeau
entre a estratégia, que pressupõe um local próprio (um território)
de onde as ações serão conduzidas, e as táticas, que remetem a
ações, usos e artimanhas que podem não estar apoiadas em lugar
algum, a não ser no corpo em si. Ver: M, de Certeau. A invenção
do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994.
53. Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo: Nova Aguilar,
1901/2002, p. 352-356.
54. John Gabriel Stedman, Sylvie Messinger. Capitaine au
Suriname. Une campagne de cinq ans contre les nègres révoltés.
1799/1989, p. 62.
55. L’H éroïque Lande. La frontière brûle. Filme de Nicolas Klotz
e Elisabeth Perceval, 2018 (3h40’). Documentário poético e
político dedicado à Selva de Calais.
56. Um arquipélago de checkpoints cada vez mais conectados, por
meio inclusive da troca de dados compartilhados e fornecidos
pelos Estados, por agências de segurança, transportadoras, etc.
57. Trata-se de antecipar o acontecimento. No campo das
políticas migratórias: parar o migrante em seu próprio país
(vistos, tratamento de dados das transportadoras, externalização
das fronteiras da União Europeia, etc.).
58. Frontex-, European border and Coast Guard Agency, agência
europeia responsável por cuidar das fronteiras terrestres e
marítimas da União Europeia e do Espaço Schengen. Dispõe de
um corpo de 1.500 agentes, número que deve chegar a 10.000
até 2027. [N.T.].
59. Como são designados os palestinos e refugiados africanos que
trabalham em Israel.
60. Olivier Razac. “Utopies banales”, blog Une philosophie
plébéienne, 29/08/2013. Disponível em: http//www. philoplebe.
lautre.net.
COSMOPOÉTICAS 0 0 REFÚGIO 93

61. Benjamin Péret. La Commune de Palmares. Ed. Syllepse,


1999 (original publicado em 1956). O poeta surrealista compara
o Quilombo de Palmares, no Nordeste brasileiro - que resistiu
durante cerca de 70 anos às investidas militares holandesas e
portuguesas - às experiências libertárias semelhantes à da Comuna
de Paris, em 1870-71.
62. Cigéo - Centre industriel de stockage géologique, projeto do
governo francês para descarte de rejeitos de usinas nucleares de
média e alta radioatividade, que seriam enterrados em contêineres
a grandes profundidades.
63. La Meuse: ses vaches, ses éoliennes, sesflics, s/a, em Plus Bure
sera leur chute...08/08/20l6.
64. Ver o prefácio de Foucault à edição estadunidense de Anti-
Édipo, ‘Introdução à vida não-fascista”.
65. Projeto de construção de um parque de diversão em Calais,
cujo custo seria de cerca de 300 milhões de Euros. Comunicado
da Prefeitura de Calais: “Ao acoplar o nome da cidade ao de uma
atividade com forte imagem positiva, [o empreendimento] tomará
possível destacar a notoriedade da cidade na França epaíses europeus
vizinhos".
66. Jean Comaroff, John Comaroff. Zombies et frontières à l’ère
néolibérale. Paris : Les Prairies ordinaires, 2010.
67. Encarnação por excelência do aparelho de captura
escravagista. Ver: Os fugitivos, conto de Alejo Carpentier ou
L’esclave vieil homme et le molosse, de Patrick Chamoiseau.
68. As fronteiras recobrem um largo espectro em nosso dia-a-
dia, dos acessos filtrados aos prédios até os postos da alfândega,
passando pelo controle de identidade; projetam sombras fluidas
em nossos imaginários e modelam nossas percepções.
69. Selva de Calais: acampamento de migrantes e refugiados que
tentavam ir para a Grã-Bretanha. Chegou a reunir quase dez mil
pessoas, a partir dos anos 2000. Foi desmantelado pela polícia em
2016.
94 DÉNÊTEM TOUAM BONA

70. Proliferação das tecnologias ditas “sem necessidade de


contato” que se propõem a nos aproximar.
71. Os harraga (plural de harrag) são jovens emigrantes ilegais,
originários da região do Magreb (países do norte da África: Argélia,
Marrocos, Mauritânia, Tunísia, Líbia) que buscam atravessar o
Mediterrâneo e chegar aos países da Europa Ocidental. O termo
remete a rituais iniciáticos, em que jovens “queimam” não só seus
documentos, mas suas amarras com o passado. Esses jovens não
se veem como fugitivos da miséria, mas como heróis em busca
de aventura.
72. Música do disco de Alfred Panou & Art ensemble of
Chicago, Je suis un sauvage, de 1969. Ver: https://www.youtube.
com/watch?v=yGH10yOwDH8
73. Umgawa-. palavra de múltiplos sentidos, usada nos filmes de
Tarzan para se dirigir aos animais; Cheeta (ou Chita): chimpanzé
amiga de Tarzan; bamboula termo pejorativo usado para se referir
aos negros como fanfarrões que só querem dançar ao som da
bambula. [N.T.].
74. Xavier Amelot. “Démystifier la forêt”. In: Atlas critique de
Guyane. Paris : Éd. CNRS, no prelo (setembro 2020).
75. Frantz Fanon. Os Condenados da Terra. Tradução de José
Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968,
p. 38.
76. “O homem africano não ingressou o bastante na história”.
Frase do discurso do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy na
capital do Senegal, Dakar, em 26 de julho de 2007. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2007/ll/09/le-
discours-de-dakar_976786_3212.html
77. “O interdito está lá para ser violado”, ressalta Georges Bataille
em O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013. A sacralização da “Natureza” não se opõe então
à sua exploração.
78. Obra de Joseph Conrad, escrita em 1899, alguns anos antes
COSMOPOÉTICAS DO REFÚGIO 95

do primeiro genocídio do século XX: uma política de extermínio


perpetrada pelo 2o Reich sobre os Hereros e os Namas na colônia
alemã do “Sudoeste africano” (Namíbia), entre 1904 e 1908.
79. Frase pronunciada pelo então deputado federal Jair Bolsonaro
em discurso na Câmara dos Deputados, em 15 de abril de
1998. Ver: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/12/06/
verificamos-bolsonaro-cavalaria/.
80. B. Westphal. Le Monde plausible. Espace, lieu, carte. Paris:
Éditions de Minuit, 2011.
81. “Le blanc des cartes: entre soif d’aventure, désir de
connaissance et appétit de conquête”. In: Atlas critique de
Guyane. Paris: Éd. CNRS, no prelo (setembro 2020).
82. Ver: “Chasse à l’homme”. In: Dénètem Touam Bona. Fugitif,
où cours-tu / Paris: PUF, 2016.
83. Como observa Elsa Dorlin a respeito de danças marciais como
o moringue da Ilha de Reunião - morengy em Madagascar, ou
mrengué nos Comores - ou a capoeira do Brasil. In: Se défendre.
Une philosophie de la violence. Paris: La Découverte, 2017.
84. Ver as análises de Pierre Clastres em La Société contre l ’État.
Paris: Ed. de Minuit, 1974.
85. https://www.monde-diplomatique.fr/2017/01/
LANCIEN/56970

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