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COLECAO Dmeiro, RETORICA E ARGUMENTACAO RETORICA E Ecwa ARGUMENTACAO JURIDICA MODELOS EM ANALISE C1aupiA ROESLER PPOs LE Isaac Rets oe 2 Sumario Parte 1 - Pensando Modelos Capitulo | - A andlise da argumentagao judicial em perspectiva critica: 0 que fazemos quando analisamos decisdes judiciais? Claudia Roesler.... Capitulo Il - O esquema de Toulmin e a analise argumentativa de decisées judiciais: perspectivas a partir e além de "Harry nasceu nas Bermudas" Angelo Gamba Prata de Carvalho.............0++- Capitulo III - Os critérios de avaliagao das decisées judiciais segundo Neil Maccormick Gabriel Rubinger-Betti Capitulo IV - alidade discursiva na Teoria da Argumentacao Juridica: decisdo judicial e argumento Fabiano Hartmann Peixoto. Capitulo V - Andlise Empirico-Retérica do Discurso: fundamentos, objetivos e aplicacao Isaac Reis...... Capitulo VI - O lugar das emogées no discurso juridico Marcelo Fernandes Pires dos Santos... 19 Parte 2 - Aplicando Modelos Capitulo VII - Modelo desenvolvido e aplicado para andlise de argumentagao juridica em decisdo judicial Fabiano Hartmann Peixoto........... ee Lt9: Capitulo VIII - Argumentacao e Estado de Direito: uma anilise critica da ADPF 153 Laura Carneiro de Mello Senra........ eed OF: Capitulo IX - Teoria da Argumentagao Juridica como instrumento de avaliagao de um conjunto de decisées: periculosidade e medida de seguranca na argumentacao do STF e do STJ Leonardo Lage........... Capitulo X - Usando precedentes no layout de argumento proposto por Stephen Toulmin Paulo Alves Santos eats 281 Capitulo XI - Da (i)licitude do oficio de degustador de cigarros: uma andlise empirico-retérico-discursiva dos votos proferidos em julgamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Bruno Franco Candido Medeiros Gabriel Soares Eugenio 20 Capitulo | A analise da argumentacao judicial em perspectiva critica: o que fazemos quando analisamos decisGes judiciais? Ctaupia Roester 1 - INTRODUGAO O presente capitulo abre a coletanea devidamente apre- sentada em momentos anteriores desse livro, com a intengao de fornecer ao leitor um panorama geral das concepcGes tedri- cas que orientam os diversos trabalhos realizados no ambito do GPRAJ e aqui publicados. Seu principal intuito 6 mostrar, de modo sintético e informativo, como renasce o interesse pela retérica e pela argumentagao juridicas em meados do século XX. A partir desse momento, duas grandes concepcées tedricas que bebem da tradigaéo da Antiguidade Classica tomam seus contornos: a teoria da argumentacao juridica standard e a teoria retérica. Nao apresenta um contraste critico entre essas duas grandes concepg¢6es, mas procura enfatizar as diferengas e as semelhan- cas relevantes entre elas quando se trata de construir modelos de andlise voltados aos discursos judiciais, compreendendo que o objeto principal desse livro é a discussao metodolégica. 2l RETORICA E ARGUMENTAGAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE Certamente um ponto polémico, que pode inclusive causar dificuldades ao escritor e ao leitor, 6 aquele de escolher como denominar cada uma das partes dessas relacdes que aqui se estabelecem para fins didaticos. Seria a argumentacao juri- dica (e a sua teoria) uma designacao mais ampla e abrangente na qual caberia também a retorica juridica? Os termos discur- so, racionalidade, comunicagao e persuasao que compdem 0 pano-de-fundo dessa discussao se entrelagam em um longo e talvez infindavel debate tedrico e metodolégico. Pesam, a favor dessa solugao, usos, no Direito e fora dele, que consideram “argumentacdo” um termo suficien- temente amplo para conter todas as formas de uma longa e complexa tradicéo de pensamento, que remonta a Aristoteles. Nessa visdo, predominam as dimensdes racionais do discur- so - 0 logos - enquanto as demais sao vistas ou como coadju- vantes ou como desvios de boas praticas de comunicacao. Faz sentido, nessa verso, discutir a presenga de falacias (ainda que no estritamente l6gicas) e considerar que a dialética e a retorica sao campos de estudo que cabem na grande investi- gacao sobre a argumentacao nos discursos praticos e te6ricos.' E possivel também supor, partindo de uma tradigéo silenciada desde a Antiguidade Classica - a dos sofistas e reto- res - que a ret6rica é a designagéo mais ampla e adequada, porque se preocupa com a linguagem e a comunicacaéo huma- nas enquanto construtoras de sentido e de realidades simbdli- cas. Nessa visdo, portanto, formas de argumentacao racionais sao uma parte de um imenso esforco de comunicacao e tém suas formas e seus ritos, mas nao deixam de ser primariamen- te retoricas porque construidas dentro de comunidades que aceitam aqueles padr6es como racionais.? 1 Um bom exemplo dessa forma de ver pode ser encontrado no Handbook of Argumentation Theory, organizado por Van Eemeren et alii (2014), no qual constam dois capitulos destinados ao estudo de classicos e recentes desenvolvimentos da ret6rica. Do mesmo modo, ao discutir as diversas concepgdes de argumentacao juridica, ATIENZA, 2017a Por seu turno, essa forma de ver pode ser encontrada em BALLWEG, 1991, e em ADEODATO, 2013. N 22 CLAUDIA ROESLER Varios dos textos que sucedem este sobre o qual o leitor pousa os seus olhos exploram pressupostos de uma e de outra tradicéo ou visdo. Deve-se salientar, assim, que o grupo de pesquisa procura exatamente investigar os limites e as possi- bilidades de cada uma delas, em vez de escolher abstrata ou filosoficamente entre elas. E preciso, no entanto, fazer opcoes designativas para que a escrita e a comunicacdo sejam possiveis. Compreendendo a fragilidade de todo acordo estipulativo, proponho, neste capi- tulo, designar Teorias da Argumentagao Juridica 0 conjunto compreendido pela visao standard e pela visdo retérica e, ao me referir a cada uma delas, as chamarei de Teoria Standard e de Teoria Retérica. Um aprofundamento desse debate e novos desdobra- mentos dele certamente devem nascer do fazer continuo e da investigagao académica de qualidade, inclusive do GPRAJ. Quid, em algum momento do futuro préximo, sejamos capa- zes de oferecer ao leitor uma reconstrugao mais adequada desses usos. Por ora, pragmaticamente, opto por esse caminho. 2 - DE ONDE PARTIMOS QUANDO ARGUMENTAMOS JURIDICAMENTE? Todo aquele que argumenta opera sempre de um contexto, mais ou menos consciente, de formas aceitas como corretas ou normais. Quando se trata de uma argumentacgao judicial, a organizacao do discurso supée a realizacao de duas tarefas concomitantes e que nao podem ser separadas entre si: convencer os destinatarios de que a solucao é correta em sentido juridico e eventualmente moral; mostré-la como inse- rida adequadamente no ordenamento juridico preexistente. A argumentacao judicial 6, portanto, limitada por dois vinculos: deve ser feita dentro dos parametros de um ordenamento juri- dico que é aceito previamente como vinculante; deve ofere- cer a melhor solucdo possivel de acordo com regras que, ao menos aparentemente, nao estao disponiveis ao intérprete, mas devem ser aplicadas por cle. 23 RETORICA E ARGUMENTAGAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE A argumentagao judicial é, por isso, definivel como um complexo jogo de sombra e luz na qual 0 desenvolvimento do Direito depende da capacidade dos intérpretes de mostra- rem continuidade e inovagao como as duas faces da mesma moeda. Em ambos os casos, ou seja, quando é mais luz ou mais sombra, 0 jogo consiste em mostrar a descontinuidade como apenas aparente e a escolha de um novo curso de acdo ou deci- sao como uma consequéncia “natural” daquilo que 0 ordena- mento ja continha, Como se pode pressupor, toda argumentacao se desen- volve no interior de uma cultura juridica. Por cultura juridica entende-se, portanto, a forma pela qual os juristas compreen- dem 0 que é 0 Direito e onde “nascem” os direitos. Em um determinado espaco e tempo, considera-se “normal” argu- mentar de um certo modo quando se tematiza 0 Direito. Neste sentido, existe uma forma de argumentar que nos permite traduzir aquilo que é o contetdo do Direito, A forma de argu- mentar nao é nunca completamente explicada ou discutida explicitamente, mas se revela na medida pela qual os parti- cipantes da cultura juridica adquirem-na como natural nas suas proprias praticas discursivas e advém dos processos de socializacao profissional e académica, realizados por diversas instituicgdes. Este jogo de sombra e de luz, que aparece na cultura juridica, define um dos limites do Direito, ou seja, 0 campo das argumentacOes possiveis no momento histérico no qual se insere o jurista. Este limite pode ser chamado de “interno” porque diz respeito ao ponto de vista do participante do siste- ma, aquele que utiliza os seus elementos para encontrar solu- goes no ambito das instituigdes juridicas e judiciais. Se estreitarmos 0 foco e pensarmos na argumentacao especificamente judicial, veremos que o juiz é precisamen- te um dos sujeitos que mais precisa estar atento ao comple- xo jogo de luz e sombra. Argumentar em uma decisao judi- cial poderia ser descrito como um processo de construcao de razGes que soem suficientemente convincentes a um auditorio bastante heterogéneo: as partes, os colegas, a comunidade juri- 24 CLAUDIA ROESLER dica, a sociedade. A dimensao persuasiva desse trabalho deli- cado aparece com maior frequéncia quando percebemos que uma argumentacao lidou com esse limite interno de um modo demasiado evidente. Ao revelar 0 esforcgo para nos convencer, deixa a descoberto o manejo dos instrumentos oferecidos pela cultura juridica. Quando esse processo de oferecimento de razdes e de persuasao sobre a correcao da decisao tomada é observado do ponto de vista das suas caracteristicas argumentativas em sentido estrito, pode ser analisado pela teoria da argumenta- cao. Se o interesse maior é desvelar suas formas retoricas, ou seja, localizar os elementos que 0 fazem ser mais persuasivo, pode ser descrito a partir do instrumental tedrico da teoria da argumentagao juridica que podemos qualificar como retorica. Vejamos como essa distingao entre as duas vertentes se cons- tr6i para, entao, voltarmos a discussao dos limites e das possi- bilidades de andlise das decis6es judiciais. 3 - NOCOES GERAIS DAS TEORIAS CONTEMPORANEAS DA ARGUMENTAGAO O nascimento da teoria da argumentacao juridica é normalmente atribuido a obra de trés autores que publica- ram seus trabalhos ao longo dos anos cinquenta do século XX: Theodor Viehweg, com Topik und Jurisprudenz: ein Beitrag zur rechitswissenschaftlichen Grundlagenforschung, Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, com Traité de l’Argumentation: la nouvel- le Rhetorique, e Stephen Toulmin, com The Uses of Argument. Perelman e Olbrechts-Tyteca, assim como Viehweg, retornam ao antigo patrimOnio da cultura ocidental, o pensa- mento greco-latino da Retérica. Ambos os livros recuperam Aristételes e fazem uma releitura contemporanea de seus livros do Organon. Perelman e Tyteca (1992, p. 7) se interessam mais pela ret6rica classica e voltam a sua atencao para a ideia de discur- so como decorrente do jogo entre um orador e seu auditério.* 3 “L.uJ] cette idée d’adhésion et d’esprits auxquels on adresse un discours 25 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE Viehweg (1979) esta mais centrado na Tépica e procura mostrar que a jurisprudéncia, entendida como o conhecimento do jurista, é um pensar por problemas e, por consequéncia, tem uma estrutura topica e nao sistematica como os esforgos dos jusnaturalistas modernos ou dos positivistas nos fizeram crer4 Toulmin, um filésofo da ciéncia, procura reconstruir a logica daquilo que propde chamar a argumentacao da vida Pratica e critica a excessiva concentracao dos logicos modernos € contemporaneos sobre a forma. Assim, afirma ele, ignora- mos e deixamos de fora de nossas indagagdes um importante campo que nos permitiria compreender como os seres huma- nos argumentam partindo de pretens6es de racionalidade.5 ° est essentielle dans toutes les théories anciennes de la rhétorique. Notre rapprochement avec cette derniére vise a souligner le fait que c’est en fonction d'un auditoire que se développe toute argumentation [...]”. 4 De acordo com 0 autor: “Os principais resultados desta dissertagao sao os seguintes: a topica ¢ uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retorica. Ela se desdobra numa contextura cultura que se distingue claramente nas menores particularidades de outra de tipo sistematico dedutivo. A topica @ encontrada no ius civile, no mos italicus bem como na civilistica atual e presumivelmente em outros campos. As tentativas da era moderna de desligé-la da jurisprudéncia tiveram um éxito muito restrito.” (VIEHWEG, 1979, p. 17). 5 Philippe Breton e Gilles Gauthier, quando analisam a contribuigao de Toulmin a moderna teoria da argumentacao juridica: “A iniciativa de Toulmin ¢ largamente heuristica. Como escreve no inicio da introdugao a The Uses of Argument, a sua intencéo declarada é atrair a atengdo para o campo da investigagao da argumentagdo e nao tanto darlhe um tratamento sistematico. Segue este intuito com uma ideia muito precisa: como sublinha na conclusao sua tentativa de balizagem da argumentacao baseia-se, essencialmente, na contestagao da formalizacao da légica.” (BRETON; GAUTHIER, 2001, p. 75). 6 Na primeira pagina de sua introdugdo em The Uses of Argument (1958, p. 1), Toulmin assim se posiciona, localizando o leitor sobre a natureza dos problemas que trata: “What is the nature of these problems? In a sense they are logical problems, Yet it would perhaps be misleading to say that they were problems in logic, for the whole tradition of the subject would lead a reader to expect much that he will not find in these pages. Perhaps they had better described as problems about logic; they are problems which arise with special force not within the science of logic, but only when one withdraws oneself for a moment from the technical refinements of the subject, and inquiries what bearing, the science and its discoveries have on anything outside itself - how they apply in practice, and what connections they have with the canons and methods we use when, in everyday life, we actually assess the soundness, strength and conclusiveness of arguments.” (TOULMIN, 1958, p. 1). Um tratamento mais detalhado das contribuigdes de Toulmin e da utilidade de seu esquema de andlise de argumentos pode ser encontrado no capitulo II dessa coletanea, 26 CLAUDIA ROESLER Dos trés citados, 0 livro que se dedica mais diretamente a argumentacao juridica ¢ 0 de Viehweg. A sua releitura de Arist6teles e Cicero serve para afirmar que, na Antiguidade Classica, descobrimos algo fundamental que posteriormen- te esquecemos: 0 homem precisa deliberar exatamente sobre aquelas coisas que nao sao dadas por natureza e, para fazé-lo, € necessario contrastar as opinides, escolher as autoridades confidveis, examinar a qualidade das premissas. No campo da politica e da ética, portanto do Direito, nao possuimos verda- des necessdrias, mas temos a experiéncia humana para nos guiar, Para compreendé-la e assegurar uma técnica de racioci- nio que nos permita algum grau de seguranga sobre as conclu- sdes, temos a ret6rica, a topica e a dialética.” Viehweg afirma, assim, que, para além de tudo aquilo que mudamos na forma de compreender 0 Direito, a nossa forma de raciocinar é ainda similar aquela dos antigos, ou seja, aquela que inauguraram os romanos. Partindo de um proble- ma - judicial ou nao - 0 jurista procura uma boa resposta para resolvé-lo. Para responder ao problema, busca em suas fontes pontos de partida para construir um raciocinio que seja veros- simil e aceito pelos participantes de uma cultura juridica. Mais importante do que o sistema no qual se insere o proble- ma e a sua resposta, 6 a capacidade de responder adequada- mente e com vistas a realidade. Os juristas fazem um trabalho constante e quase sempre invisivel de inser¢ao das inovacdes em uma tradicao juridica. O direito ¢, nesse sentido, menos a premissa dada pelo Legislador e mais 0 resultado da intera- ¢4o continua entre Legislador, juiz e doutrina. Nao 6 compos- to apenas, portanto, por um sistema ordenado de regras. O Direito 6 uma praxis.® Como se pode imaginar, essas obras tiveram um impor- tante papel nos anos sucessivos a sua publicacao, mas também Alguns conceitos utilizados pelo autor serao posteriormente retomados e aprofundados nos escritos reunidos em VIEHWEG, 1995, ou, na versaoespanhola, VIEHWEG, 1997. 8 Uma visdo mais aprofundada dessa discussao pode ser encontrada em ROESLER, 2013. A recepgao de Cicero por Viehweg também foi discutida em PRATA DE CARVALHO; ROESLER, 2015. 27 RETORICA E ARGUMENTAGAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE provocaram uma grande polémica em um ambiente de discus- sao bastante dominado pelo positivismo cientifico e juridico.? E somente no final da década de 70 do século XX queum outro movimento de similar importancia se fara notar, permi- tindo que se fale do nascimento da teoria da argumentacao standard. Robert Alexy (1983)"° e Neil MacCormick (1978)" publicam livros essenciais para a compreensao das pretensdes de racionalidade e os instrumentos de andlise e de avaliagao da argumentagao juridica. Alguns anos depois, obras de Aulis Aarnio (1991), Aleksander Peczenik (1983), Manuel Atienza (1991)", dentre outros, sdo incorporadas ao corpus desta visio da teoria da argumentacao juridica. Nessa fase, mais do que preocupacao com o lugar da légi- ca analitica e a afirmagao do papel decisivo da razao pratica, como haviam feito Perelman, Viehweg e Toulmin, os autores desenvolvem uma teoria preocupada com os diferentes aspec- tos da argumentagao jurfdica e, consequentemente, avancam em diregao a producao de modelos de analise e de avaliacao da argumentacao realizada em casos concretos. Ainda que 0 interesse seja discutir a racionalidade do discurso juridico em geral, o foco central acaba sendo rapidamente concentrado nos discursos judiciais realizados por ocasiao das decis6es tomadas institucionalmente por sujeitos encarregados da jurisdigao, O maior desafio, no inicio dessa fase, é justamente mostrar como se pode passar de enunciados universais a decisdes para casos concretos, mostrando os padrées decisérios e justificando-os de acordo com indicadores de racionalidade.? 9 Para a sintese dessas criticas, pode ser consultado ATIENZA, 1991. 10 A obra de Alexy foi editada pela primeira vez em 1978 e teve uma reimpressio em 1983. £ a partir desta reimpressdo que citamos 0 autor e que as traducoes que aqui utilizamos para facilitar a leitura foram realizadas. 11 Uma versao revisada da teoria do autor pode ser encontrada em Rhetoric and the Rule of Law, 2009, 12 Para uma sintese dos principais autores dessa fase e das criticas a eles realizadas, pode ser consultado ATIENZA, 1991 13 Assim, por exemplo, nas palavras de Alexy (2007): “La decisi6n juridica, que pone fin a una disputa juridica, expresable en un enunciado normativo singular, no se sigue légicamente, en muchos casos, de las formulaciones vigentes, juntamentecon Jos enunciados empiricos que hay que reconocer como verdaderos o probados” 28 CLAUDIA ROESLER Os modelos de andlise mais disseminados sao desen- volvidos para demonstrar como, sobretudo nos hard cases, € possivel argumentar racionalmente e indicar os fundamentos decis6rios que nos permitem controlar a subjetividade judi- cial, j que a teoria do direito aceita, de modo praticamente inconteste, a ideia da plurivocidade linguistica e, consequen- temente, da possibilidade de que as normas juridicas possam ser interpretadas de modos divergentes. Nos casos faceis, ainda que a plurivocidade linguistica das normas pudesse acarretar diversos sentidos possiveis, haveria um elevado grau de consenso sobre a decisao a ser tomada. Nos casos dificeis, ao contrario, ha uma aberta e difi- cilmente contornavel opcdo entre solugdes que podem ser claramente vistas como equivalentes e, consequentemente, uma maior necessidade de critérios para atribuir racionalida- de a justificagao apresentada. A distincao entre casos faceis e diffceis aparece, no contexto, como um modo de diferenciar uma argumentagao cotidiana, baseada em instrumentos ja muito conhecidos do jurista, e identificdveis com mecanismos subjuntivos, de uma argumentacao muito mais complexa e sofisticada, que exige a construgaéo do contetido das premissas faticas e normativas para, s6 entao, retirar as devidas consequéncias juridicas. E importante observar que nesse cenario tedrico, ainda que se possam diferenciar casos faceis e dificeis, nao ha, evidentemente, uma atribuicdo prévia e despida de interpreta- cao as premissas normativas e faticas em caso algum. Trata-se muito mais de uma distingado que opera a partir da percep¢ao de que as interpretagOes e as argumentacées a elas vinculadas ocorrem dentro de um horizonte de sentido determinado pela cultura juridica e por aquilo que denominamos anteriormen- te de limites internos do Direito. O caso facil pode ser assim visto, sempre e quando participantes de uma pratica juridica E ainda: “La cuestion es, dénde y qué medida son necesarias valoraciones, como debe ser determinada la relacién de éstas con los métodos de la interpretacion juridica, y como pueden ser racionalmente fundamentadas 0 justificadas estas valoraciones.” (ALEXY, 2007, p. 23 e p. 28). 29 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE reajam a ele de modo a evidenciar suas “qualidades” de solu- cao 6bvia. A passagem entre a atribuicdo do qualificativo de facil ou dificil 6, portanto, continua e constante. Depende das condic6es de argumentagao, nao de uma caracteristica fixada definitivamente no caso. A teoria da argumentacao juridica se torna, nesse senti- do, uma teoria essencialmente preocupada com as decisdes judiciais e usa como matéria-prima de sua reflexao as decisdes realmente tomadas por tribunais, concentrando-se, assim, em larga medida, nas possibilidades argumentativas dos casos dificeis. A sua principal atencao é destinada a definicao de pardmetros de racionalidade suficientes para definir uma decisao como justificada. Como se pode facilmente intuir, uma teoria com esta perspectiva tem em seu centro uma concepcao de racionalida- de. A teoria da argumentagao que qualificamos como standard se baseia em uma teoria forte da racionalidade, concebendo-a como discursiva e procedimental, capaz de atribuir a sua forga aos discursos feitos de acordo com as regras de uma pratica"’, A pratica social é, ao mesmo tempo, observada em suas caracteristicas empiricas e avaliada em sua correcao. Compreendida como uma pratica dotada de finalidade, esta pode ser usada como padrao para a construgao da ideia de correcao". O modelo de anélise e avaliacéo permite primeiro compreender e depois afirmar quando uma decisao pode ser considerada racional, oferecendo, portanto, uma reconstru- cao detalhada de como, dadas certas premissas, a decisao foi justificada. Entendé-la como justificada 6 considerar que os participantes da pratica, vivendo-a em uma perspectiva cons- trutiva, oferecem suas razGes buscando convencer os demais participantes de que sua solugao para o caso concreto em exame é a melhor. 14 Oexemplo dessa concepgao procedimental de racionalidade normalmente citada € ALEXY (1983), 15 Umasintese bastante didatica dessa: concep¢ao pode ser encontrada em ATIENZA. (2017a). 30 CLAUDIA ROESLER Essa concepcdo de racionalidade, quando aplicada a decisao judicial, supe uma visao do Direito como uma prati- ca social que é constante e deliberadamente desenvolvida por sujeitos sociais que consideram relevante viver de acordo com certos parametros valorativos de cunho moral e politico. Preci- samente por isso, pode-se, posteriormente, utiliz4-la para a discussao de discursos judiciais concretos. Diferentemente de visdes positivistas do Direito, como a hartiana, que consideram 0 momento decisério dos casos difi- ceis como uma ocasiao para 0 exercicio da discricionariedade judicial"®, a visdo de racionalidade compartilhada pelas teorias da argumentacao vai muito mais na direcao daquela presente nas perspectivas hermenéuticas do Direito, como em Dwor- kin. Nessa percepgao, a subjetividade inerente as atividades interpretativas e argumentativas nao é resolvida por uma qualificagao politica da decisao, mas se supde exatamente 0 controle racional e a possibilidade de discutir qual a melhor resposta jurfdica, a partir de formas argumentativas especifi- cas do discurso juridico e moral. Essas teorias sao tipicamente ps-positivistas em suas considerac6es sobre o Direito e ofere- cem uma maior ou menor adesao, a depender de cada autor, ds teses de um cognoscitivismo ético que Ihes permite lidar com as dimensdes valorativas do Direito”. Faz todo o sentido que as teorias da argumentagao consideradas standard facam grandes esforcos para oferecer modelos de andlise que permitam reconstruir 0 percurso de uma decisao judicial, aquilo que poderiamos metaforicamen- te chamar de sua “anatomia” ou seu “retrato”, mas também desejem nos dar critérios de avaliagao que permitam dizer quais séo as melhores decisées, as mais bem justificadas e as mais racionais no sentido antes mencionado. Esses critérios dependem diretamente da aceitacao do Direito como pratica 16 Pode se consultar, nesse sentido, o capitulo VII de "The Concept of Lo’, intitulado "Formalism and Rule-Scepticism” em HART (1994). 17 Uma boa discussao desse tema, na visto da teoria da argumentagao juridica standard esta em Atienza (2017b), no capitulo intitulado "Objetivismo moral y Derecho". 31 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA; MODELOS EM ANALISE social orientada por valores morais e politicos e funcionam a priori para a construcao de boas argumentacoes e a posteriori para a sua afericdo, permitindo que os participantes da pratica possam desenvolver mecanismos para orientar suas discus- s0es e presumivelmente melhorar suas praticas."° Se essa é a caracterizagao geral que podemos encontrar para a teoria standard, vejamos agora como uma versio alter- nativa e muito mais cética também aparece no vasto mundo das teorias que tratam das formas de argumentacao juridica na contemporaneidade, Do relacionamento com a retérica e com os autores como Viehweg e Perelman nasce também uma reflexao mais preocu- pada coma dimensao estratégico-retérica do discurso juridico, Para diferencia-la, qualificaremos esta verso de teoria retéri- ca, como explicamos sinteticamente no inicio desse capitulo." Nela, a preocupagao central nao é a de definir um modelo que nos permita apresentar uma critica da decisdo porque esta nao apresenta caracteristicas previamente fixadas de racionalida- de, mas compreender como o discurso juridico constréi uma realidade simbdlica linguistica propria e nessa sao disputadas, mais do que pretens6es de racionalidade, pretensdes de cons- trucao de sentido e de poder por intermédio da persuasao nos discursos.” 18 A preocupagao com o melhoramento da pratica juridica e judicial ¢ uma caracteristica importante e uma boa amostra de como ela se desenha teoricamente pode ser encontrada em ATIENZA (2017a). 19 Como exemplo dessa orientagao, podem ser consultadas as seguintes obras: BALLWEG (1970) e BALLWEG (1969); SCHRECKENBERGER (1978); SOBOTA (1992a, p.230-237), e SOBOTA (1992b, p. 39-54). 20 Nesse sentido, tomem-se como exemplo as seguintes consideracdes de Sobota (1992b): “In other words, human certainties (as, for instance, the systems of science, morality or law) are self-created products. Nietzsche sees our convictions as webs we are constantly weaving, believing at the same time the self-spun threads to be expressions of a pre-given order. What we believe to be the truth are invented metaphors by which we constitute our personal relations. We are no external observers, but are sitting in the centre of our star-shaped stabilizin, web of meanings. Within this, we behave as if we were the measure of all things.” (SOBOTA, 1992b, p. 40). Assim também em Adeodato (2013): “O mais dificil de fazer entender, talvez por nao se encaixar no uso comum da palavra, ¢ 0 primeiro sentido da retérica, 0 material, ou, como se prefere aqui, existencial. Significa considerar que tudo aquilo que se chama de “realidade”, a sucessao de eventos 32 CLAUDIA ROESLER A preocupacao coma racionalidade é deslocada para um ponto propriamente periférico ou simplesmente negada como possibilidade, a depender do autor que examinarmos. Tais teorias optam por perspectivas fortemente descritivas exata- mente em razao desse ceticismo que lhes informa. O esforgo teorico é dirigido para uma reconstrucao dos instrumentos de andlise que possam nos mostrar como a persuasado é buscada nos discursos juridicos e, dentro desses, nos judiciais. Esses instrumentos séo muito mais apropriadamente compreendidos como modos pelos quais se captura, a partir de analises textuais, os modos de argumentar do jurista que constituem constantemente as redes de significado e dao os contornos ao que chamamos anteriormente de limite interno do Direito. A teoria das figuras e a contagem da incidéncia de certos tipos de estruturas argumentativas reconstruidas a partir da observacao da pratica argumentativa podem ser consideradas dois exemplos significativos dessa criagao de mecanismos pelos quais os discursos juridicos séo esquadri- nhados e discutidos dentro dessa perspectiva.”! Na teoria retérica, portanto, também se fazem andlises de decisdes, e, obviamente, para fazé-las sao construidos mode- los metodolégicos que dependem de uma teoria do direito. A diferenga fundamental é que nao se busca avaliar as decisoes, os discursos ou a pratica juridica. Muito mais explicitamente descritiva, como menciona- mos acima, tal teoria permite ainda assim a critica dos discur- sos juridicos e judiciais porque quer mostrar, explorando as técnicas retoricas efetivamente usadas, as variagdes do discur- S80, as repetigdes e como os juristas e, sobretudo, os juizes jogam com as cartas que tém em maos, quando se trata de resolver problemas juridicos. Trata-se, no entanto, de um sentido de critica diverso do apresentado quando discutimos a teoria da argumentagao standard. Unicos e irrepetiveis no fluxo do tempo, consiste em um fendmeno linguistico cuja apreensao é retorica.” (ADEODATO, 2013, p. 12). 21 Exemplos dessa forma de construgdo de modelos podem ser encontrados em Sobota (1992a, p.230-237) e em Reis (2013) e Reis (2014, p. 70-90). 33 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA; MODELOS EM ANALISE A sua pretenséo nao é fornecer um modelo que nos permita corrigir ou melhorar a pratica judicial ou argumenta- tiva em sentido amplo. Um forte componente cético quanto a toda forma de generalizacao das observagoes realizadas sobre a pratica juridica faz desta teoria uma versdo muito “externa” a pratica juridica real, permitindo a critica apenas no sentido de apontar estruturas, sem pretender oferecer modelos paraa sua melhoria.” Guiada por um ceticismo valorativo forte e com grande frequéncia também por um ceticismo quanto as possibilidades de © conhecimento juridico oferecer qualquer elemento além daqueles contextuais e situacionais”, tais teorias duvidam das concep¢oes de racionalidade que chegam a ser qualificadas como formas ulteriores de producdo de persuasao, inseridas, portanto, dentro do jogo persuasivo de producao de sentido com vistas ao poder™. Critérios racionais de avaliagdo como 22. Sobota (1991), ao sintetizar os principais pontos da Escola de Mainz, afirma: “This criticism implied that Viehweg, had described the law as it should be. This kind of supposition is not surprising if one knows that most of the philosophers of law regard their task as normative, ic. “legal philosophy”. A “clinical approach” which seeks to reveal the actual patterns of legal decision making does not fit into this kind of thinking, So, as often is the case, Viehweg’s analysis, which indeed referred to something irritating, was taken to be the proof for its conveyer's irritating intentions. Vichweg was not the man to enter into such a discussion. Instead, he left it up to his disciples to respond. The first generation of these “members of the Mainz Schoo!” concentrated on the theoretical underpinnings and development of Viehweg’s inspiring ideas. His hypotheses reviving the “topical” style thought were integrated into the more comprehensive model of “rhetoric”. Especially Ottmar Ballweg succeeded in giving Viehwee’s gentle and elegant skepticism the precise shape of a thetorical analysis which left no space for normative findings, such as ideologies or other doctrines with criteria for good and bad.” (SOBOTA, 1991, p.276). 23 Assim, por exemplo, afirma Adeodato (2002, p, 318): “O ceticismo, ao lado do nominalismo, do empirismo, mesmo dos modernos funcionalismo, desconstrutivismo e etnometodologia, é uma das formas de combate aos ontologicos, ou “dogmiticos” na linguagem de Sexto Empirico. Os céticos constituem, entao, um dos grupos “retoricos”, eles tendem a ir contra o programa filos6fico hegeliano de afastar a contingéncia e tornar 0 ser humano absoluto, pois o ceticismo faz uma “apologia do casual, sua antropologia consiste em uma “filosofia do em lugar disso”, pois os eventos e a agao humana que neles se insere sempre poderiam ter ocorrido podem vir a ocorrer de maneira diferente daquela que efetivamente ocorreu.” 24 Nas palavras de Sobota (1992b, p. 50): “Even the concepts of “justification”, “interpretation” or the “compulsion to establish norms” do not seem to be real 34 CLAUDIA ROESLER 0s propostos pela teoria standard da argumentacao sao, nesse cendrio, nao apenas impossiveis, mas francamente criticados como elementos de ocultagao dos mecanismos de poder que governam a producao das decisdes nas comunidades discursi- vas nas quais se inserem. No nosso raciocinio sobre os limites internos do Direito, ou seja, do modo pelo qual os juristas veem as argumentag6es possiveis, aqui se pode pensar que o centro de interesse das teorias ret6ricas esteja nao no contetido do direito entendido como algo valorativamente positivo, mas na forma naturali- zada de apresentar os argumentos e suas fungodes persuasivas para que, ao final do processo, como em uma caixa preta, saiam contetidos legitimados discursivamente porque foram accitos por uma comunidade juridica em um determinado momen- to historico. A dimensao situacional e fortemente contextual retorna, pois, em toda a sua plenitude. ODireito é, assim, um poderoso mecanismo de produgao de estruturas sociais de divisdo de poder apelando, com gran- de frequéncia, para formulas linguisticas de sentido amplo e sem a pretensdo de diminuir a sua amplitude, precisamente para que a sua “magica” possa ser operada.* Uma teoria dos lugares comuns, 0s fopoi da tradicao aristotélica e ciceroniana, por exemplo, permite explorar esse jogo persuasivo percebendo como se eludem questoes cruciais mantendo termos de sentido aberto em constante reformulagao e, consequentemente, ajustando-os as diversas © eventualmente divergentes necessidades de resolugao de problemas sociais.”° Uma anilise da incidéncia das figuras, construida a partir da tradicao da retérica classica, em uma decisao judi- constraints of Law-construction; they are constraints only in the sense that they have to be part of a special occidental style of presenting legal decisions.” 25 Sobre esse aspecto da técnica discursiva juridica veja-se 0 ultimo capitulo {intitulado Apéndice sobre o Desenvolvimento Posterior da Topica) de Viehweg, 1979, especialmente as paginas 102 e 103. 26. Nesse sentido, veja-se a extensa andlise realizada por Schreckenberger, 1978; ou, na versio em espanhol, 1987. 35 RETORICA E ARGUMENTAGAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE cial, permitiria ver quando 0s juizes e os tribunais aumentam 0 esforgo persuasivo em partes especificas de uma decisao judicial e poderia colocar em questao, como sugere Katharina Sobota/ Graffin von Schlieffen, a reconstrucao da forma racio- nal das decisdes judiciais realizada pelas teorias contempora- neas da argumentacao mais disseminadas de que se oferecem razOes para garantir a adesao dos participantes da pratica juridica, Nessa perspectiva, ao invés de um oferecimento das razoes, estamos diante de um claro esforco de apelo emocio- nal, mediado pelas figuras do discurso. Na célebre divisao aristotélica entre logos, ethos e pathos, os mecanismos consti- tutivos da decisao judicial tém muito mais de pathos e de ethos do que estariamos dispostos a conceder na cultura ocidental. Deum modo genérico, portanto, podemos ver nas teorias retoricas uma concepcao de Direito que nao se coaduna com o pos-positivismo”, ainda que se possa considerar que também para elas o Direito é uma pratica social. Precisamente na medi- da em que se recusam a aceitar algum modo de cognoscitivis- mo ético, tais teorias precisam também recusar a ideia de que a pratica juridica (e dentro dela a judicial) pode ser lida a partir de certos valores morais e politicos*. Se € possivel afasta-las da perspectiva p6s-positivista, menos certa é a sua adesdo evidente a uma outra concepcao contemporanea de direito como o positivismo ou realismo. 27 Toda generalizagao que agrupa diversos autores sob uma visao teorica corre 0 risco de cometer imprecisées ou causar ditvidas no leitor. Convém, portanto, esclarecer 0 uso dos termos. Consideramos, no contexto da discussio que estamos realizando, que o pés-positivismo ¢ uma corrente te6rica nascida a partir de meados do século XX, que aceita certos pontos relevantes do positivismo normativista do século XX, como a tese das fontes sociais do Direito, mas advoga uma maior relacao entre o Direito, a Moral e a Politica, reconhecendo um papel (maior ou menor, a depender do autor) para os juizos morais e politicos nos discursos decis6rios. Uma boa discussao da diferenca entre uma concepgao do Direito que pode ser qualificada como positivista e uma pés-positivista pode ser encontrada em Aguild, (2008, p. 11-17). 28 E importante considerar, no entanto, que isso nao implica em afirmar que os partidarios de uma visio retorica ndo propugnem a sua vinculagdo com ideais politicos. Nesse sentido, afirma Ballweg (1990, p. 8): “Nesta oportunidade, para concluir, chama-se energicamente atencao para 0 fato de que democracia e ret6rica condicionam-se: ” ‘toda dominagao baseia-se na opiniao. tornou-se uma doutrina fundamental das democracias ocidentais.” 36 CLAUDIA ROESLER Em alguns momentos parece bastante razodvel supor que se tratem de teorias positivistas, na medida em que comparti- lham com essas 0 ceticismo valorativo. Em outros momentos, no entanto, parece que a radicalidade da perspectiva cética dificulta a aceitacao da ideia de que normas podem condicio- nar, ainda que de modo imperfeito ou aproximado, o compor- tamento dos participantes de uma pratica juridica. Nessas ocasides, parece mais razoavel vé-las mais préximas do realis- mo juridico do que de formas de positivismo juridico normati- vistas®’, Essa atribuicao de uma teoria do Direito que embasa a concepgao retérica é, no entanto, mais dificil e matizada, pois nao ha exatamente uma discussdo explicita realizada pelos seus autores quanto a ponto. Uma reconstrugao adequada de seus pressupostos, tomados em conjunto, é tarefa ainda a ser realizada e pode mostrar aspectos que nossa breve descrigao certamente nao seria capaz de alcangar. Explicitadas as duas grandes vertentes da teoria da argu- mentaco juridica, vejamos como podemos conceber os limites analiticos e metodolégicos do que elas nos oferecem. 4 - LIMITES E POSSIBILIDADES NA ANALISE DE DECISOES JUDICIAIS A teoria da argumentacao, seja em que vertente for, nao @ uma teoria da decisdo judicial, mas da justificagao (teoria standard) ou dos discursos judiciais (teoria retorica), como procuramos explicar de modo mais detalhado acima. Tentar retirar dela uma teoria da decisao significa presumir premis- sas nao assumidas pelos autores e utilizar a metodologia construida em suas perspectivas de modo inadequado™. Nos autores mencionados nos tépicos anteriores deste capitulo nao ha, de modo sistematico e organizado, uma anilise especifi- 20 Veja-se, nesse sentido, a abordagem por Reis no capitulo V desta coletinea W) As teorias que consideramos propriamente como “da decisdo judicial” sao aquelas que pretendem descrever ou eventualmente normatizar como um julgador opera seus processos cognitivos e préticos destinados a decidir por uma das possibilidades diante de um caso que esteja sob sua alcada. Um exemplo, para que o leitor perceba a diferenga, pode ser encontrado em Posner (2008). 37 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE camente voltada para a forma pela qual as decisdes judiciais sao tomadas, mas sim um conjunto de instrumentos analiti- cos sobre como, realizado o discurso judicial, certas estruturas argumentativas e/ou persuasivas nele aparecem. Compreender e aceitar esse limite sao, portanto, um primeiro aspecto muito relevante para a nossa considerac¢do metodoldgica. Se aceitarmos essa premissa e quisermos nos dedicar a discussao de uma decisao judicial, precisamos optar, entao, por um dos modelos dispon{veis ou construir um que atenda aos nossos objetivos especificos de pesquisa. Ao longo deste livro apresentamos varios desses modelos, orientados pore para ambas as perspectivas de teoria da argumentagao jurfdi- ca que explicitamos nos itens anteriores deste capitulo. Esta escolha implica, antes de tudo, na determinacao de qual 0 aspecto de um discurso judicial que nos interessa mais. Se nos movemos no ambito da justificacdo e queremos verificar como certas premissas foram utilizadas como razées para uma decisao, nosso modelo pode e deve utilizar auto- res e conceitos da teoria standard da argumentagao juridica. Se, ao contrario, nosso problema de pesquisa esta direcionado a percepcao dos elementos persuasivos do discurso judicial, nosso modelo parte da teoria retorica. E possivel, ainda, que nosso problema de pesquisa nos requeira a utilizacdo de ambos os tipos de instrumentos metodolégicos, considerando, por exemplo, que desejamos compreender tanto a dimensao justificat6ria quanto a persua- siva de um discurso judicial. Podemos também ter interesse em comparar certas estruturas argumentativas justificatorias com a incidéncia de certos recursos retéricos, mostrando, assim, as duas faces do processo de argumentacao. Nosso esforgo, nesse caso, deve ser voltado ao oferecimento de uma boa justifica- tiva metodolégica, articulada claramente com o problema de pesquisa e com os seus resultados, demonstrando que nao ha sincretismo e sim uma compreensao dos limites e das possi- bilidades de cada modelo empregado, dentro de seus pressu- 38 CLAUDIA ROESLER postos teoricos e sem tirar conclusées indevidas sobre como a decisao foi tomada. O segundo importante limite que precisamos ter em conta quando discutimos decis6es judiciais a partir da teoria da argumentacao juridica, aprofunda o que discutimos acima. Quando optamos por uma visao desse tipo, estamos tomando 0 texto da decisao judicial como ponto de partida e, portanto, nao estamos autorizados a retirar de sua anilise ilagdes sobre a motivacio psicoldgica ou sobre os vinculos sociolégicos do emissor do discurso. A exemplo do que acontece com a metodologia da analise do discurso, considera-se que 0 texto da decisao € uma espécie de veiculo no qual se pode ver um determinado momento historico condensado, tanto no que diz respeito 4 forma, quanto ao contetido (0 direito possivel dito na forma argumentativa can6nica do seu tempo). Toda argumentagao se insere em uma cultura juridica e, quando chegamos a sua andlise, devemos nos recordar que se cuida de um texto que se relaciona com outros dentro de um contexto. Explorar essas relacdes € possivel e vidavel, desde que nao se preten- da, a partir simplesmente do texto, descobrir elementos que digam respeito aos seus autores. A nogao de autoria, nesse cenrio, ¢ irrelevante, pois 0 objetivo nao € compreender como um determinado sujeito articulou o seu discurso, mas sim como esse discurso articu- lado expressa 0 seu tempo e os seus vinculos. Seja no discurso justificatorio, seja no discurso persuasivo, os pressupostos das teorias que aqui apresentamos nao nos autorizam a discutir mais do que o texto. O limite que nasce dessa ordem de consideracoes, portanto, é o de respeitar a independéncia do texto da decisao judicial e nao tentar retirar dele, por uma atribuicdo externa, uma leitura das intencdes do decisor, em uma mal arrevesa- da substituigao da Mens Legis pela “Mens do Juiz”. Ainda que possamos intuir certas vontades, 0 importante é mostrar como as estruturas argumentativas e retéricas foram acionadas, nao © que supostamente motivou este acionamento. 39 RETORICA E ARGUMENTACAO JURIDICA: MODELOS EM ANALISE Em sintese, podemos considerar que os modelos de andlise vinculados aos pressupostos da teoria standard da argumentagao juridica servem bem para elucidar os proces- sos internos de justificagao, pois permitem evidenciar quais as premissas utilizadas no esforco de motivacao judicial. Seu limi- te e sua potencialidade dependem de nao nos esquecermos de que estamos utilizando uma teoria que apela a nogdo de uma pratica argumentativa que faz sentido para os seus participan- tes na medida em que estes procuram premissas consideradas racionais no interior de sua cultura juridica e as manejam de modo proficiente*. Voltando a metafora da luz e da sombra, podemos imaginar que esse tipo de abordagem se volta mais aos elementos “luminosos” da pratica argumentativa. Modelos de andlise com énfase retérica, por seu turno, permitem compreender como se manejam instrumentos e recursos inseridos na tradicao da cultura ocidental (metafo- ras, lugares-comuns, outras figuras de linguagem) em esforcos que se destinam a cativar um auditério ainda que nao sempre e simplesmente pela qualidade racional aparente do discur- so. Sombras convivem, aqui, com 0 movimento sutil, porém poderoso das emocGes, dos siléncios e da capacidade humana de encantar pelo discurso.” Para encerrar essa reflexdo, usaremos um desses meca- nismos e faremos uma analogia, utilizando Marguerite Your- cenar (1991, p. 310). A autora, ao refletir sobre 0 processo de produgao de seu livro Meméorias de Adriano, diz, em passa- gem que consideramos muito feliz: Em certo sentido, toda vida, quando narrada, 6 exemplar; escrevemos paraatacar ou para defender umsistemademundo, para definir um método que nos é proprio. E nao é menos verdade que é pela idealizagao ou pela critica mordaz a todo custo, pelo detalhe fortemente exagerado ou prudentemente omitido, que se desqualificam quase todos os bidgrafos: 0 homem construido substitui o homem compreendido. Nunca 31 Veja-se, nesse sentido, os capitulos VII, VIII, IX e X desta coletanea, 32 O modelo de andllise que segue estes pressupostos é utilizado no capitulo XI desta coletanea. 40 CLAUDIA ROESLER perder de vista 0 grafico de uma vida humana, que nao se compée, diga © que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de trés linhas sinuosas, prolongadas até 0 infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: 0 que o homem julgou ser, 0 que ele quis ser, e o que ele foi. (Yourcenar, 1991, p. 310). Tomemos as belas palavras de Yourcenar e concluamos essa reflexao sobre os limites e as possibilidades das andlises de decisdes judiciais com os instrumentos metodoldgicos das teorias da argumentacao considerando que, assim como uma vida narrada por um biégrafo nao pode ser esterilizada e exem- plarizada sob pena de perder o sentido, uma anilise de decisao judicial nao sera adequada se nao se compreender, de ante- mao, que sombras e luzes convivem em nossos esforcos coti- dianos de construcao das instituicdes e das praticas. Enfatizar uma ou outra dimensao nos nossos esforgos de compreensao dessas praticas talvez seja inevitavel, mas mesmo 0 inevitavel nao pode nos levar a pretensdes de explicacao total. Aceitar que ha sombras e luzes e que nao podemos explica-las todas e, ao mesmo tempo, faz parte de todo esforgo sério de pesquisa académica. REFERENCIAS AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable. Un tratado sobre la justificacién juridica. 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