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Um encontro às margens do Rio Negro

Suzy Lagazzi
Cabocla de Barcelos

Esta fotografia, de Araquém Alcântara, captura meu olhar na força do afeto que
se apresenta na delicadeza deste encontro. Uma foto que prende meu olhar no trajeto de
uma face a outra, e, neste dueto silencioso, imprime sua potência e me expõe a seus
efeitos. Uma conjunção em que a cabocla menina se faz menina preguiça, em que a
preguiça se faz cabocla e menina. O entrelaçar dos nomes movimenta os sentidos. Uma
composição em que os corpos se juntam no deslimite de um abraço. O braço da
preguiça adorna o pescoço da menina enquanto o envolve. O corpo da menina sustenta e
acolhe o abraço da preguiça. Novos contornos em limites que se enlaçam e projetam o
afeto. A intimidade dos corpos desenha de maneira muito especial a partilha desse afeto,
marcado nas expressões que estranha e, incrivelmente, se assemelham. Lado a lado, a
menina e a preguiça parecem duplicar uma à outra. O olhar baixo, que resiste à câmera,
me convida a um percurso que se abre.
Cabocla de Barcelos, menina de Barcelos, preguiça de Barcelos. Uma referência
que mobiliza uma memória e projeta um imaginário. O que abriga o nome Barcelos?
Segundo atesta a voz branca e colonizadora1, em 1758, a aldeia Mariuá, terra dos
índios Manaus e localizada às margens do Rio Negro, recebe o nome de Vila Barcelos.
Um modo bastante objetivo de se relatar um conflito, um confronto, um massacre, sem
que perguntas importantes e respostas incômodas atravessem a narrativa e
desestabilizem a informação oficial. Entre a aldeia Mariuá e a Vila Barcelos, muitos
silenciamentos constroem uma história de evolução natural entre o primitivo e o
civilizado, dando as boas-vindas ao modo branco de ocupar o espaço e dominar a terra.
Complementa a narrativa branca que Barcelos se torna a primeira capital do Amazonas,
na verdade, a primeira capital da Capitania de São José do Rio Negro. São quase
trezentos anos de muita história que se passou na confluência entre o rio e a floresta,
entre brancos e índios, entre os muitos seres que habitam esse espaço. Terra mariuara,
terra indígena, terra cabocla.
Longe dessa narrativa oficial, Barcelos me é apresentada, por Araquém
Alcântara, no enlace caboclo entre a menina e a preguiça. Uma apresentação que, ao se
dar por uma foto tão singular, provoca o imaginário em relações sensíveis, num enlace
que se faz na poesia do encontro e na provocação do desconhecimento. No jogo
imaginário que a foto desperta, a menina cabocla e a preguiça protagonizam uma
relação de cumplicidade em sintonia, sob o efeito da autenticidade, da pureza e do belo.
Dois mundos abraçados, em que a menina cabocla e a preguiça me capturam em
primeiro plano na serenidade do seu encontro. Em contraste a este primeiro plano quase
hipnotizador, vejo um entorno desfocado e sombreado, cuja indefinição traz a pergunta
pelo espaço que margeia e acolhe essa cumplicidade que me seduz. Que lugar é esse
marcado pelo encontro, pelo afeto, num registro artístico cuja força me afeta? Barcelos,
me responde a foto de Araquém Alcântara. O nome Barcelos determina a menina
cabocla, que se torna a Cabocla de Barcelos. Um nome que instaura uma referência a
ser imaginariamente trabalhada. Que lugar é esse? Quem são os caboclos e as caboclas
de Barcelos?
Barcelos, o paraíso amazônico2, Barcelos do Cardinal, Barcelos do Acará Disco,
Barcelos do Festival do Peixe Ornamental, Barcelos da Cachoeira do El Dorado,
Barcelos do maior arquipélago fluvial do mundo. O Rio Negro, na sua vazante, brinda

1
Voz que circula em vários sites disponíveis sobre Barcelos. Site acessado em 01/03/2020:
https://www.viverde.tur.br/barcelos.html
2
https://www.amazonasemais.com.br/amazonas/barcelos/cardinal-e-acara-disco-mostram-historia-e-
tradicoes-de-barcelos-21o-festival-peixe-ornamental/ Acesso em 01/03/2020.
Barcelos com praias que estão entre as dez mais famosas do Amazonas; os peixes
Cardinal e Acará Disco disputam sua beleza no Festival do Peixe Ornamental de
Barcelos; a cachoeira El Dorado é a mais alta queda d’água do Brasil, com quase 400
metros; Barcelos tem o maior arquipélago fluvial do mundo, com mais de 1400 ilhas.
Uma Barcelos exuberante, que se mostra por um viés turístico e que convida os
viajantes a conhecerem suas belezas e uma das maiores áreas de lazer à beira do Rio
Negro. Uma Barcelos olhada de fora, que fica distante da Barcelos cabocla clicada por
Araquém Alcântara. Imaginariamente, duas Barcelos distintas. O olhar que busca e
encontra a Barcelos turística e exuberante é um olhar estrangeiro à foto, distante dos
efeitos que o clique de Araquém Alcântara produz. A fotografia de Araquém me traz a
força do acolhimento que me enlaça e do afeto que me afeta. Que olhar é este que
encontro no clique Cabocla de Barcelos? Que interlocução a história ali fotografada
busca? Que história é essa?
Venho insistindo sobre a força do afeto, e mais especificamente sobre a força do
afeto no encontro, como um modo de estar com o outro, na partilha de um espaço, de
um momento, de um estar consonante na diferença que constitui esse encontro.
O aconchego do abraço que a foto retrata, e que traz como um efeito a partilha
do afeto na cumplicidade, fala também da diferença, uma diferença que converge para a
sintonia no gesto de estar junto, mas que me permite falar de alteridade. Sintonia e
convergência na diferença. Convergência, mas não coincidência. A diferença, que
resiste nos sentidos que convergem, permite o encontro, que precisa do não-mesmo para
acontecer3. Isto é fundamental! O encontro não acontece no mesmo. O encontro se dá na
alteridade. Entre a preguiça e a menina cabocla, neste encontro de afeto, que afeta, o
laço aproxima e também faz mover. Um abraço que conjuga o estar na ressonância do
outro que me afeta e se afeta. Um encontro que demanda o movimento dos sentidos,
espaço do entrecruzar do um no outro, espaço da alteridade que se constitui pela
diferença. Um afetar inesperado, que faz laço na incompletude simbólica e projeta o
alhures como realização possível. Afetar-se no outro, no inesperado do vir-a-ser.

Sob a assinatura de Araquém


A circulação da foto Cabocla de Barcelos sob a assinatura de Araquém
Alcântara se produz como um gesto importante no cenário artístico de um Brasil que se

3
Cf. a discussão de Zoppi Fontana (2014) sobre “o encontro paradoxal entre Althusser e Pêcheux”,
discussão na qual a autora retoma o encontro em suas contingências, tal qual proposto por Althusser.
quer mais sensível, mais plural, com um olhar atento para o que tantas vezes fica
invisível e silenciado.
Em sua coluna “A Ferro e Fogo” 4, publicada em 21 de agosto de 2019, Araquém
Alcântara inaugura sua contribuição à Mídia NINJA com um texto sobre a Amazônia
em fogo. Recorto aqui alguns trechos que me permitem dar o tom de sua fala, que
acompanha fotos impressionantes da tragédia denunciada pelo fotógrafo e jornalista:
Neste exato momento, bem diante dos meus olhos, a Amazônia arde no
calor das queimadas. [...] só um paredão cinza de fumaça, o cheiro da terra
calcinada, animais mortos, o gado pastando em áreas desmatadas, as
carvoarias engolindo madeira, a soja avançando sem parar. [...] Ela está
realmente se fragmentando e já é possível prever uma Amazônia dilacerada,
sem produzir chuva e completamente modificada na sua fisionomia original.
A destruição da floresta escancara nosso descaso, nossa conivência com o
crime inominável. [...] A motosserra, o grileiro, o boi, a soja e sobretudo
uma política ambiental pífia já fizeram com que a Amazônia perdesse 18%
de sua cobertura original. Hoje 4% dessa área não serve mais para nada,
nem para pasto. Virou deserto. Somos os maiores devastadores do planeta.
[...] A questão amazônica não encontra eco na sociedade. Parece que a
Amazônia é problema dos outros, parece que os 25 milhões de brasileiros
que lá vivem não precisam de médico, dentista, mantimentos e dignidade.
[...] Por que não dizemos basta de tanta destruição? Por que somos tão
passivos? Por que permitimos que os governos ignorem a ganância dos
senhores de terras, a voracidade das grandes madeireiras, o enriquecimento
ilícito, as carvoarias e mineradoras ilegais, o garimpo sangrando a terra?
Tudo em nome de um progresso que sempre enriqueceu alguns indivíduos e
empresas e deixa o povo na mais absoluta miséria. [...] E uma outra
revolução mais sutil, mas igualmente importante: o modo como encaramos a
Amazônia, o que realmente queremos para a Amazônia. [...] Toda a minha
obra clama por indignação e atitude.
Impactam as palavras, tanto quanto as fotografias escolhidas por Araquém para
sua coluna. Uma composição que prima por sua força, que se expõe ao olhar e à leitura,
ao gesto da espectação.
Trago duas das fotos que acompanham o texto publicado na coluna “A Ferro e
Fogo”:

4
https://midianinja.org/araquemalcantara/a-ferro-e-fogo/ Acesso em 22/03/2020.
Estas fotos radicalizam a interlocução com o espectador. Araquém Alcântara faz
destes cliques um gesto de luta que confronta o olhar e desenha a “destruição”, o “crime
inominável”, como afirma o autor. Um confronto que me fala do outro em diferentes
vozes, em diferentes olhares. Um outro que ameaça, corta, serra, devasta, asfixia,
desdenha, faz calar a vida na floresta, na relação com um outro que agoniza, morre
queimado, passa fome, vive a miséria... Nestas duas fotos, a alteridade fica marcada
num confronto duro, árido, em que o olhar que mira a foto vai sendo exposto ao ferro e
ao fogo na arte de fotografar de Araquém Alcântara.
Em Cabocla de Barcelos, a arte da fotografia se apresenta nos detalhes da
composição. Meu olhar fica demandado num movimento pendular, que, de uma face a
outra, vai perscrutando e sendo surpreendido pela incrível relação de semelhança entre a
menina e a preguiça. Elas realmente parecem duplicar uma à outra, num efeito de
equivocidade que reitera o mesmo na diferença. O artístico vai se expondo ao meu olhar
no refinamento dos detalhes que vão produzindo o efeito de um duplo, um já-visto que
vai afetando meu olhar no desconcerto do equívoco. De uma face a outra, o mesmo e o
diferente se imbricam na arte de Araquém. Um enlace que me acolhe na poesia do
encontro e que me provoca pelo (des)conhecimento. No deslimite do abraço que une os
corpos, meu olhar fica indagado pela alteridade que vai se desdobrando num jogo
imaginário em que a memória delineia os contornos que se avizinham.
E o fato de que exista assim o outro interno em toda memória é, a meu ver, a
marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior, quer
dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma memória pode
ser um frasco sem exterior (PÊCHEUX, 1999, p. 56).
Volto-me para os vários outros que se fazem presentes em Cabocla de Barcelos.
Um afetar-se que vai se compondo como gesto de leitura na espectação do meu olhar.

O gesto de (se) olhar (n)o outro


O olhar se constitui na alteridade. Sem o olhar do (O)outro5, nosso olhar não se
realiza.
Duas afirmações fortes, que me levam a buscar algum suporte para dar consequência a
essa relação de alteridade que constitui o olhar.
Com Mariani (2017, p. 43), chego a uma afirmação instigante de Novaes (1988,
p. 9): “o olhar deseja sempre mais do que é dado a ver”. Chamando a atenção para a
diferença entre “ver” e “olhar” na psicanálise, Mariani afirma que “o desejo, através do
olhar, interroga o que se vê” (ibidem). A autora ressalta que o “ver” se liga ao “rever”,
ao “reconhecer”, e continua:
Se nosso olhar, a princípio, dá existência às coisas, aos pequenos outros que
nos cercam e a nós mesmos – lembro aqui o estádio do espelho, tal como
formulado por Lacan, em que o infans reconhece sua imagem no espelho e
precisa confirmar o que vê voltando seu olhar para o espelho do Outro – o
olhar não vê sem o apelo do Outro [...] O infans supõe se saber, a partir
dessa externalidade do olhar e da linguagem do Outro (MARIANI, 2017, p.
44).

5
Agradeço a Olimpia Maluf-Souza a sugestão destes parênteses.
Ser sujeito é estar constituído, necessariamente, na alteridade, em relações de
identificação nunca saturadas e, por isso, com espaço para a movência. O Outro e seus
consequentes outros garantem a não-coincidência, barram a imobilidade dos sentidos e
fazem do reconhecimento um processo simbólico dialético entre o conhecimento e o
desconhecimento. Desconhecer-se para se (re)conhecer.
Precisar do olhar do Outro e dos outros para dar direção ao seu olhar e para se
reconhecer é ter a diferença como parâmetro e possibilidade do desejo que move o
sujeito. Significa poder situar o desejo como contraditoriamente histórico. O desejo
move o sujeito na história e o olhar preside a busca ensejada pelo desejo na contradição,
interrogando o ver.
Justen (2018), em seu artigo O que vemos, o que nos olha, título que a autora
toma emprestado do livro de mesmo nome de Georges Didi-Huberman, caminha na
mesma direção de Mariani ao afirmar que, na frase-título, “olhar e ver não estão na
mesma direção” (idem, p. 40). Lemos com Justen:
Porém, quando o mundo passa a provocar nosso olhar, aí vem o sentimento
de estranheza que algo tocou e afetou, o que recorda o sentimento
Unheimlich, o estranhamente familiar como propôs Sigmund Freud em “O
inquietante”. [...] Esta sensação de estranhamento que atrai o nosso olhar
possibilita ler que a citada separação entre o que vemos e o que nos olha da
frase-título causa assim como a divisão do sujeito. Pois, o que chama o
nosso olhar é justamente aquilo que nos olha ao tocar, afetar e inquietar
como indica Didi-Huberman na abertura de seu livro: “O que vemos só vale
– só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (JUSTEN, 2018, p. 41).
Não só o equívoco entre o ver e o olhar, mas também o equívoco entre olhar e
ser provocado no olhar é perturbador. São funcionamentos equívocos que se sustentam
na falta, tal como podemos compreender com Lara (2019, p.238), que ao retomar a
“dialética do olho e do olhar” de Lacan, ressalta que essa é uma relação de logro, na
qual o olho “funciona” “no nível da falta”, não havendo coincidência entre “o como o
sujeito se apresenta”, “o que se dá para ver” e “o que o sujeito quer ver”. (LACAN,
2008, p.104-105).
O olhar nos equivoca e aí está sua força. A afirmação de Didi-Huberman de que
“o que chama o nosso olhar é justamente aquilo que nos olha ao tocar, afetar e
inquietar” faz retornar a questão que formulei mais acima sobre o gesto de leitura na
espectação do olhar como um afetar-se que vai se compondo.
Meu olhar se afeta pelo que me afeta. Uma compreensão que faz ressoar o
funcionamento da alteridade. Ao buscar o que me afeta, esbarro nos muitos outros que
me seduzem, espreitam, amedrontam, ameaçam, apoiam. Um conjunto difuso que
potencializa o equívoco na relação com esse(s) outro(s).
Em sua polissemia, o afeto irrompe e desorganiza, suspende, abala, fazendo do
encontro com o outro um espaço de um vir-a-ser importante, porque imprevisível. “O
encontro com a alteridade não se dá sem o encontro e o desarranjo de si” ( (LAGAZZI;
MEDEIROS, 2019, p.81). Neste ponto, a psicanálise tem muito a dizer. E não se dá,
tampouco, fora do social, fora da história, fora da ideologia. Neste ponto, a análise do
discurso tem muito a dizer.6
A partir do percurso que venho traçando neste texto, em que me guia a análise
do discurso, entre algumas incursões psicanalíticas sérias – porém despretensiosas – no
que concerne à minha possibilidade de refinar os conceitos trazidos desta área; em que o
olhar se faz instrumento de ancoragem material sobre a arte fotografada em Cabocla de
Barcelos, sigo dando vazão ao que me afeta, como um procedimento importante para
dar consequência ao social que me aflige e sobre o qual insisto em meus gestos de
leitura.

A materialidade do visual na historicidade de um encontro


Para dar vazão ao que me afeta e afeta o meu olhar quando ele se lança sobre
Cabocla de Barcelos, volto à formulação visual deste clique de Araquém Alcântara para
perguntar pela alteridade que ali se faz presente no modo da sua formulação.
Pêcheux reitera, como vimos acima, a necessária remissão ao real histórico para
que o analista de discurso possa dar consequência aos seus gestos de compreensão, de
modo a considerá-los em sua dimensão interdiscursiva. O que está formulado só pode
ser discursivamente compreendido se os sentidos forem localizados no confronto das
posições ideológicas que presidem a filiação do dizer do sujeito, na relação com as
determinações históricas que delimitam o funcionamento discursivo. A remissão à
memória do dizer permite localizar a interpretação do sujeito no que concerne ao
funcionamento da ideologia, no jogo entre as formações discursivas. Portanto, a
interpretação é sempre uma versão, como bem nos disse Orlandi (2001, p. 13). As
diferentes versões nos dizem das diferentes posições discursivas em concorrência,
aliança, contradição...

6
Estas considerações estão discutidas em maior detalhe no capítulo Resistência e Ética em Tempos
Difíceis: a Política no Esquecimento em Esse Viver Ninguém me Tira (LAGAZZI; MEDEIROS, 2019),
em que analisamos o afeto em sua política de resistência.
Em minhas análises da imagem, sempre reitero a importância da remissão do
intradiscurso ao interdiscurso7, um trabalho do formulado sobre o (não-)formulável, em
que o analista busca, no intradiscurso, as marcas que, remetidas à memória do dizer, vão
explicitando o funcionamento discursivo que caracteriza o processo discursivo a ser
compreendido. É por meio de procedimentos parafrásticos que ressaltam a tensão entre
o mesmo e o diferente que essas marcas vão colocando em relação o conjunto do
material, configurando as regularidades relevantes do processo em análise. São as
reformulações no intradiscurso que permitem estabelecer a divisão entre as famílias
parafrásticas, no interior das quais o limite entre o formulável e o não-formulável fica
definido. As marcas localizam “a repetição do idêntico sob formas necessariamente
diversas”, definição de Pêcheux (1990a, p. 97) para o “efeito metafórico”. Nesse
procedimento de deslinearização discursiva, em que o analista dá o primado à descrição,
“as marcas, pontos de ancoragem do analista para o gesto de descrição, vão orientar o
recorte do material nas diferentes materialidades significantes que o constituem” 8. A
fotografia, em sua formulação visual, tem na imagem um importante ponto de
ancoragem material.
A remissão do intradiscurso ao interdiscurso no trabalho com esta fotografia de
Araquém faz voltar no meu olhar o que me afeta em Cabocla de Barcelos e se afirma
como marca significativa na sua composição. Ao mesmo tempo, busco dar
consequência a uma leitura que pergunta pela potência desta foto em sua circulação, no
que tange à alteridade.
Na sensibilidade do artístico, o clique de Araquém se impõe ao olhar. Neckel
(2015, p.271) nos fala da especificidade do discurso artístico na intersecção entre a
ludicidade e a polissemia. Dando consequência a esta relação, a autora afirma:
É essa dimensão polissêmica do lúdico/poético que me interessa.
Compreendo que a arte se constitui na dimensão do prazer estético e, o
processo de fruição se estabelece pelo jogo/ritual entre o poético e a estesia.
A poiésis marca a estética. Nesse sentido, quando falo em Projeções
Sensíveis, falo no ato de ler/fazer e fruir arte. Falo da leitura/fruição/criação
marcadamente de uma posição sujeito dentre outras possíveis (NECKEL,
2015, p.277).

7
A “remissão do intradiscurso ao interdiscurso” assim como a “deslinearização da imagem” são
procedimentos que elaborei a partir de um fotograma de Boca de Lixo (Eduardo Coutinho, 1993), que
apresenta os catadores com o corpo fletido em meio ao lixo (LAGAZZI, 2013, 2014, 2015).
8
Cf. Lagazzi (2019).
Nessa relação entre as instâncias poética e estética, próprias do artístico, como
reitera Neckel (idem, p.278), quero pensar a remissão do intradiscurso ao interdiscurso
em Cabocla de Barcelos, trazendo o que (me) afeta (em) meu olhar.
Ao protagonizarem a cena no enlace dos seus corpos, no deslimite do abraço que
as une, na reiteração das expressões que as aproximam em semelhança, a menina
cabocla e a preguiça me falam do(s) outro(s) em laços possíveis. O deslimite entre uma
e outra, formulado no intradiscurso da fotografia, se marca como ponto equívoco entre a
convergência dos corpos e a afirmação das singularidades que resistem. O abraço e as
expressões em sintonia marcam, no intradiscurso, o enlace na diferença, uma diferença
que na remissão ao interdiscurso agita a memória do dizer enquanto possibilidade do
deslimite nas fronteiras do social9. Este é o ponto em que a memória do dizer se afeta na
equivocidade e faz retornar essa afetação, provocada pelas imagens que vão se
projetando no incessante trabalho do vir-a-ser no movimento dos sentidos.
Essa afetação do social pelo movimento nas fronteiras dos sentidos, na latência
do equívoco, entrecruza as discursividades sob a determinação do artístico. Que
imagens se projetam a partir desse enlace pelo artístico? A que outro(s) me leva a
menina cabocla enlaçada pela preguiça?
Quando discute as formações imaginárias, Pêcheux (1990a) ressalta que as
representações imaginárias que cada interlocutor faz de si e do(s) outro(s), antecipando
essas imagens na tentativa de se colocar no lugar do(s) outro(s), vêm atravessadas pelo
“já ouvido” e o “já dito”, “através dos quais se constitui a substância das formações
imaginárias enunciadas” (idem, p. 85-86). Nessa trama, a não-coincidência entre o lugar
social ocupado pelo sujeito e seu(s) interlocutor(es) e as representações projetadas é
fundamental para compreendermos “a eficácia material do imaginário”, ressaltada por
Pêcheux (1988, p. 125), eficácia que determina que o sujeito se reconhece tal como se
projeta, identificando-se com essa projeção, assim como reconhece o outro tal como o
projeta, ou seja, a eficácia material do imaginário produz para o sujeito a evidência de
que suas projeções são a representação exata do outro e de si.
Na circulação da fotografia Cabocla de Barcelos, considerar a eficácia material
do imaginário em funcionamento sob a determinação do discurso artístico, no
dimensionamento da possibilidade do deslimite que venha a afetar o social em sua

9
O Discurso nas Fronteiras do Social: diferentes materialidades significantes e novas tecnologias de
linguagem é o nome do grupo de pesquisa registrado no CNPq e coordenado em parceria por mim e
Guilherme Adorno de Oliveira. O trabalho com as fronteiras do social vem permitindo ao grupo
discussões muito importantes no que tange à resistência e à contradição.
alteridade constitutiva, me leva a mais uma pergunta: Quem são os outros que me/nos
seduzem e assombram no (des)conhecimento que me/nos afeta?

No inesperado do vir-a-ser
Quando afirma a circulação como um momento importante no processo de
produção do discurso, Orlandi (2001, p.11) nos convida a focar nos “trajetos dos
dizeres”, nos modos dessa circulação e nas determinações que a definem.
Quando pergunto pela potência desta foto de Araquém em sua circulação sob a
determinação do artístico, no que tange à alteridade que ela projeta, busco o
funcionamento imaginário em sua potência de afeto, busco essa potência enquanto
espaço do possível na relação com o(s) outro(s), potência do alhures realizado 10 na
tensão da diferença.
A assinatura de Araquém Alcântara legitima esta fotografia e a faz reconhecida
pela discursividade do artístico. Este é um ponto importante. Em sua luta por dar
visibilidade a povos, espaços e relações historicamente silenciados em suas contradições
e resistências – neste caso a Amazônia, o “povo caboclo” que a habita, a natureza que a
constitui – sob o efeito do poético e do estético, sob a fruição da arte, Araquém faz furo
no discurso hegemônico que ainda determina sentidos estanques para esse mundo
(des)conhecido e seus povos, sentidos que imobilizam a afetação do olhar.
A memória da natureza marcada pelo exotismo11, que tantas vezes domina as
relações com povos, comunidades e espaços estranhos à nossa hegemonia branca,
ocidental e moderna, fica sobredeterminada, em Cabocla de Barcelos, pelo artístico na
injunção do poético e do estético que o constituem. Sob o regime da arte, a lente de
Araquém abre possibilidades de leitura que desfocam as interpretações estabilizadas
sobre a região amazônica. Aliás, não se trata de uma região, mas de um mundo outro. A
lente de Araquém convida a uma leitura que transborda o imaginário exótico sobre a
Amazônia em sua eficácia material, convida ao (re)conhecimento de relações
silenciadas, dando espaço para a equivocidade no limite das fronteiras entre os sentidos
que tensionam o nome Amazônia.

10
Lembro aqui o jogo entre o “alhures realizado” e o “realizado alhures”, trabalhado por Pêcheux (1990b,
p. 14).
11
Agradeço a Fábio Ramos Barbosa Filho e a Rogério Modesto as considerações extremamente
pertinentes a esta discussão sobre o imaginário amazônico e os povos que habitam esse território. O
incômodo que os moveu foi muito importante para as considerações aqui tecidas, estas sob minha inteira
responsabilidade.
O olhar que mira Cabocla de Barcelos, capturado na alternância entre a menina
cabocla e a preguiça, é um olhar que se afeta pela poesia do encontro entre os dois
corpos, sob o efeito do estético. Este olhar afetado pelo encontro com a arte atravessa o
(des)conhecimento produzido pela foto em sua provocação: que mundo é este clicado
por Araquém Alcântara? Quem é o povo caboclo? O olhar em estesia que converge
sobre a menina cabocla e a preguiça confronta o (des)conhecimento do mundo retratado
por Araquém, configurando para o sujeito capturado pela foto a possibilidade de
identificação na alteridade que constitui a polissemia do poético.
O(s) outro(s) que eu (des)conheço, que me seduz(em) e assombra(m), me
convida(m) ao (re)conhecimento.
Cabocla de Barcelos me/nos leva ao encontro d(n)o (des)conhecido pelo enlace
n(d)a diferença. Importa, nesta foto de Araquém, o convite ao (re)conhecimento, que
desloca Barcelos e a Amazônia do discurso oficial, oferecendo ao olhar que mira o
encontro com o equívoco pela arte. Um mundo a ser olhado em suas contradições, um
mundo a ser contado em suas resistências. Um convite em que a arte me fala do muito a
ser compreendido no enlace que captura o olhar n(d)a diferença d(n)o social.
Em sua potência de circulação, Cabocla de Barcelos se faz um gesto político
pela arte, afirmando a resistência na força do afeto, no deslimite de um abraço.
Resistência praticada por um olhar como poucos, o olhar de um mestre da fotografia
que no clique da poesia de um encontro registrou a força da sua luta. O mestre é
Araquém Alcântara.

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