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Jussara Hoffmann Naggomos nés que defiftiimos os ramos qué@ vida toma. A vida segue, leva- {0s com ela por estranhos caminhos, ‘Assim foi comigo... Primeiro, a magia de ser professora, desde muito cedo. Depois, o curso de Letras, por gostar de ler ¢ de escrever, Entao, 0 envoh mento com a teoria da avaliagao no Pés-Graduacao na UFRJ que me levou 4 Educagao. Entrelacaram, os caminhos, definiu-se o destino. » 4 Y Sy Antes de me aposentar da UFRGS,, , ] Ae ee ata e URS *% Avaliar avaliagao e educe infantil. mt fi ii al K; E de escritora, por um convite anal { i 3 i mesmo destino, tornei-me editora @ de livros para professores. No cruzax mento de minhas vivéncias, somada 8 emogo por vive-las, tornei-mey pois, educadora, escritora e edit f Wan respeitar primeiro Meu ponto de ancoragem, nail . da Béitora Media¢ao em Poggleare; educar depois ha 14 anos, é a convieeao de que : a leitura é um dos pilardfessenciais : coi para a educagéo de w crucial A ® na formagiio de professones. 1 ‘i 2 Ser editora de livrasygem sendo g ‘uma tarefa, muito envélvente que | 4a permeia e enriqi@ee 0 meu trabalho i de consultoria As escolas, fortalece ‘0. meu oficio de escritora. i H uuBUgjoH v. &. Sata www.editoramediacao.com.br Avaliar respeitar primeiro educar depois Jussara Hoffmann Editora Mediagio 2 Edigao Porto Alegre 2010 Copyright © by Eaitora Mediaga 2008 Nes rte des oe pe re od ce tapi sem arate egren So Br. Diresio Eiitorial: Jussara Hoffmann Assistente Editorial: Luana Aquino Revisto de Texto: Rosa Susana FerreralSéssca Feiten Capa: Mayana Redin Eaitoragio: Setor Editorial Mediagio DADOS INTERNACIONAIS DE. CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO (CIP) 116990 Hoffmann, Jussara Maria Lerch ‘Avaliar:respetar primeiro, educar depois / Sussara Mari ‘Lerch Hoffmann. ~ Porto Alegre: Mediaglo, 2010. (2. ed tual. org.) Isp. ISBN: 978-85.7706-031-3 1. Avaliagdo da aprendizagem. 2. Professor - Formagbo. 3. Inclusto escolar. 4. Leitura. 5. Mediagio ~ Escola, 6. Aprendizagem sigaificativa. 1. Titulo, cpu : 371.26 Biblioecéra: Denise Selbach Machado ~ CRB 100720 1+ Bdigio: agosto de 2008 Eaigio: janeiro de 2010 aca seu pedido diretamente & Editora Av, Taquara, 386/906 Bairro Petrépolis Porto Alegre/RS CEP 90460-210 Fone/Fax (51) 3330.8105 editora mediacao@terra.com.br \wwv.editoramediacao.com.br Mediagao Printed in Brazilmpresso no Brasil _ a Para Marina, minha netinha, “que roubou, que roubou meu coragao” ‘Sua ternura 6 minka companhia ao lutar pelo direito de todas as criangas viverem plenamente a meiga alegria da infancia Sumério Introdugao Marcas de uma trajetéria. 1. Respeitar primeiro, educar depois .. 2. Procuram-se professores jm 8. Um passo pra frente, dois pra tras. 4, Um apagio na educagio.. 5. Os pais na escola: pa icipar ou decidir? 6. Professor sem stress? ss. 7. Volta as aulas: alunos ou pessoas, professor? .. 8. Tempo de admiragao e nao de reprovagio . 9. Acesso ou permanénci: 10. Enturmagao 11. Aescola quer alunos diferentes? 12. Mae, passa pela minha escola? .... 13, Relatérios de avaliagao 1: compreender e compartilhar histérias .. 14, Relatérios de avaliagao 2: do agir ao pensar na formago docente se. 93 15. Avaliagdo mediadora é formativa? 99 16.Educar primeiro para nao aprisionar depois! 17, Infancia atropelada sss 18, Dizer nfo ou educar para 0 no? 19. Leitura e avaliagao: nas entrelinhas dos textos e contextos 20. Brasil: um pais de leitores’ 21. Aprender a ler ou a gostar de Ler? samunnunee 137 22. Por uma mudanga efetiva da avaliagio . 23. Préticas avaliativas e instrumentos de avaliagao Referéncia: Introdugao Marcas de uma trajetéria ‘Nao somos nés que definimos 08 rumos que a vida toma, Avida segue, leva-nos com ela por estranhos caminhos. Assim foi comigo... Para aqueles a quem nunca encontrei e que nao conhecem minha histéria, retomo algumas experiéncias da minha caminhada ao longo desse tempo. Vivéncias so como tatuagens: marcas dificeis de se remover. Nasci em Bagé, cidade da campanha do Rio Gran- de do Sul. A quinta filha de sete irmaos, quatro mulhe- res e trés homens, estudei para ser professora como 0 fizeram minhas outras irmas. Vim com nove anos para Porto Alegre. No Colégio Nossa Senhora do Bom Conse- Iho, de religiosas franciscanas e s6 para meninas, tor- nei-me PROFESSORA e vivi papéis decisivos para a escolha de alguns rumos profissionais. Fui aluna, esta gidria, professora e coordenadora pedagégica ao longo de 19 anos de vida nesta escola. Minha experiéneia ini- cial no magistério foi maravilhosa, entre envolvente ¢ inquietante, Exercer o magistério me deu enorme pra- zer. A relagao estabelecida com as criangas foi sempre 9 Edltora Mediagao intensa, de amizade e cumplicidade que se estende aos dias de hoje quando as encontro - uma bonita descober- ta do ensinar e do aprender com elas. Considerando o meu entusiasmo pela carreira que iniciava, 0 curso de Letras foi decepcionante. Buscava a licenciatura e encontrava o bacharelado: 0 latim, a critica literéria, a filologia... Nao constitufamos, como alunos, gru- os capazes de reivindicagdes e calévamos diante de um curso estruturado para a formagao de criticos literdrios, mas formado, em sua maioria, por estudantes em busca de disciplinas que auxiliassem a ensinar a ortografia, a gra- mética, a literatura, além de uma consistente formagao pedagégica. Natural a impressio que me causou a passa- gem pela Faculdade de Educagao da UFRGS. As discipl nas que af cursei, principalmente a psicologia e a didatica, interessaram-me muito pela ressondncia com o que vivia {ja sendo professora, provocando-me novos olhares sobre a rea da educagio e fazendo-me buscar outros rumos. Formada em Letras, casada e ja mae de dois me- ninos, passei a exercer miiltiplas fungdes, ndo apenas no colégio particular, mas também em escola estadual de 1° e 2 graus (como eram denominados o ensino fun- damental e médio), em busca, talvez, de contornos mais nitidos para minhas escolhas. Vivi com intensidade nes- sas escolas, ao longo de alguns anos, as fungdes de pro- fessora de portugués e de disciplinas do magistério (di- datica de lingua portuguesa), de regente de turmas e de coordenadora pedagégiea da pré-escola, das séries iniciais e do 2 grau -fung6es exercidas simultaneamente na escola particular. Delinearam-se, por meio dessa pluralidade de ex- periéncias, questées primeiras sobre posturas pedagégi- cas e praticas avaliativas que, desde entao, provocam- me desassossego. Editora Mediagio Jussara Hoffmann 11 Em 1978, completara dez anos de magistério. Mi- nhas experiéncias profissionais haviam sido fortemente direcionadas para questies pedagégicas mais amplas e complexas. Natural, portanto, que procurasse o Mestrado em Educagao e nao em Letras. Foi o que busquei na UFRJ. Desde meu ingresso no Pés-Graduacao, fiquei entusias- mada com a area de pesquisa em avaliagao em que me inseri, por me parecer instigante e aberta a investigagdes sobre as concepedes e praticas vividas nas escolas em que trabalhara. Por meio desses estudos, poderia fazer o res- gate reflexivo de minha agdo docente e da agao supervisora que muito haviam girado em torno da problematica da avaliagaio. Em dois anos cumpri todos os créditos e fiz. a defesa de tese, tal o entusiasmo com que me envolvi nes- ses estudos. A avaliagdo da aprendizagem, nos anos 90, re- presentava um grande desafio aos educadores de todo 0 pais pelas criticas severas sobre esta prética nas escolas (uma agdo controladora, autoritéria). Na época, poucos estudiosos brasileiros se atreveram a desenvolver pesqui- sas nessa drea. Hoje percebo que este passado é ainda presente, que avanga em direcao ao futuro que agora venho narrar. Em 1985 entrei por concurso na Faculdade de Educagao, Curiosamente, o tema da prova foi “avaliagao educacional”. Defendi entdo o principio que vem “sendo a marca mais forte de toda a minha trajetoria profissio- nal”: 0 papel mediador do professor neste proceso, rece- bendo a aprovagao undnime dos examinadores quanto as concepgies criticas defendidas em relagéo a avaliagao classificatéria. ‘Como professora universitadria, envolvi-me, em pri- meiro lugar, com a formagao de professores em educacdo infantil, compartilhando com as estagidrias em creches Ezitora Mediagio 12. Avaliar: vopetar primeira, eacer depsin publicas, assistenciais e particulares, experiéncias que elas realizavam com as criangas durante 12 anos. Percebi, a partir do trabalho com bebés de classes socialmente desprivilegiadas, 0 quanto a sociedade descré de suas possibilidades e aposta precocemente em seu fracasso, ¢ passei a contribuir com meus estudos para mudar essa realidade. Esta rica experiéncia exigiu-me grande aprofundamento teérico, principalmente sobre as teorias de Freire, Piaget e Vygotsky, e deu origem a novos olha- res sobre a avaliagdo/mediagao. A valorizagdo & educagao dos zero aos seis anos, as questies de acesso e permanéncia na escola, o papel mediador do professor constituem, desde entdo, os eixos tematicos principais na continuidade de minhas investi- gages sobre avaliagao do desempenho escolar. Nao foram ficeis os primeiros tempos dessa dis- cussdo... Apesar de esse tema ser muito debatido entre os professores nos anos 90, encontrei-me bastante solitaria em sua defesa, o que exigiu persisténcia e tenacidade diante da critica de muitos académicos quanto a estudos e pesquisas na rea. Por isso o nome do meu primeiro livro: “Avaliagao: mito & desafio”. Ao publicé-lo desafia- va, de fato, 0 mito de “nao se falar em avaliar”, Ao final dos anos 90, tornou-se mais e mais pun- gente a necessidade de se discutir a problematica da ava- liagdo educacional nas escolas do pais. O despertar de uma consciéncia politico-pedagégica provocou um olhar cada vez mais critico dos educadores sobre a prati avaliativa seletiva e classificatdria. Escolas e professo- res passaram a buscar orientagao para transformar esta pratica, fato este que me levou a atender muitos convi- tes para semindrios, encontros e cursos de formagao de professores sobre esse tema em todo o pais. Pesquisando, debatendo com eles, escrevendo sobre um tema que me Edlitora Mediagao Jussara Hoffmann 13 apaixonava, desencarcerei os fantasmas da avaliagao, provocando narrativas de casos dos professores, muitas perguntas, desabafos... Provoquei-os a falar, para as- sim poder objetivar a sua fala, refletir, analisar. Ouvi suas historias e as transformei em estudo de caso: geri leituras como fundamentagao as suas préprias cri- ticas; aprofundei-me na teoria. A partir da andlise de seus mitos e representagées, do resgate do seu cotidia- no, procurei constituir questdes, organizar espagos e tex- tos para reflexio, no sentido de desafid-los a ampliar suas perspectivas sobre a avaliacao... Depois de 40 anos ouvindo que “nao dé para mudar” o sistema de avalia- ¢40 que se pratica porque “outros nao deixam”, venho insistindo para que cada professor faga “o jogo do con- trério”: procure ver os alunos de outros jeitos, pense de jeito diferente sobre a escola que ai esta... A energiae a ‘emoedo fazem toda a diferenga! ‘Nao somos nés que definimos os rumos que a vida toma. A vida segue, leva-nos com ela por estranhos cami- nhos. Assim foi comigo. Primeiro, a magia de ser profes- sora, desde muito cedo. Depois, o curso de Letras, por gostar de ler e de escrever. Entao, a paixao pela avalia- ¢40. Entrelagaram-se 0s caminhos, definiu-se 0 destino. Proximo a aposentadoria da UFRGS, ja havia publicado seis livros sobre avaliagdo e educagao infantil. E de escri- tora, por um convite desse mesmo destino, tornei-me edi- tora de livros para professores. No cruzamento de mi- nhas vivéncias, somadas A emogao por vivé-las, tornei- me, pois, educadora, escritora e editora. ‘Meu ponto de ancoragem, na diregao da Editora Mediagao, em Porto Alegre, é a conviceao de que a leitura 6 um dos pilares essenciais para a educagao de um povo, crucial na formagéo de professores - tema que abordarei em mais de um capitulo deste livro. Penso que editores 880 su- Editora Mediagio guardiées da cultura de um pafs, na medida em que ga- rantem a difusao de bons textos e, por meio deles, os escri- tores de uma nagao, a lingua culta, a evolugao cientifica, 0s valores sociais e humanos de cada época. Ser editora de livros para professores, ha 14 anos, vem sendo uma tarefa muito envolvente que permeia e fortalece o meu trabalho de consultoria as escolas. O que alguém fala e escreve e como fala e escre- ve, tudo é expressiio objetiva do seu espirito, diz Ernani Maria Fiori (in Freire, 1987, p.12). Assim espero que esta série de artigos e entrevistas', escritos um a um em dife- rentes tempos, me ajude a dialogar de coragao aberto com © leitor sobre 0 que penso e defendo para a educagao: tantas indignagées e muitas esperangas. Estarei torcendo para que professores, coordena- dores, gestores e pais/educadores encontrem razées para aqui chegar e ficar, para concordar e discordar, para in- dignar-se, para sonhar... Ficarei no aguardo, sobretudo, dos interlocutores para esse didlogo que ora se inicia. Jussara Hoffmann * Os textos reunidos neste livro esto complementados e revisados. Foram publicados entre os anos de 2005 e 2008 na Revista Direcional Educador, de Sao Paulo Coluna Pontos & Contrapontos -, que tive a satisfagio de assinar, Editora Mediagio 1 Respeitar primeiro, educar depois “Quem nao compreende um olhar, tampouco compreende uma longa explicagao”, esereveu Quintana. Em 30 de julho de 1906, nasceu Mario de Miranda Quintana’, em Alegrete, Rio Grande do Sul Estudou no Colégio Militar (Porto Alegre) e s6 gostava de portugués, francés e histéria. Contava que era sem- pre reprovado em matematica, porque sé assinava as provas. Afinal de contas, para que Ihe servia a raiz quadrada? Este aluno rebelde, tradutor por profissao, um bom caixeiro que gostava de livros, farmacéutico por obrigagéio, tornou-se muito mais que um poeta ~ foi sempre um grande educador. Os poetas se tornam poetas porque brincam com as palavras. Dizem do seu jeito brincalhao as coisas sérias que precisamos ouvir. Do seu jeito de Quintana (in IEL, © poeta faleceu em 05/05/1994, em Porto Alegre, RS. Que este texto sirva como homenagem ao poeta, cujos textos e poemas me ajudaram tanto a gostar de ler. 17 Editora Mediagio 18 Avaliar: sapeiargrimsite, eben 2006), 0 poeta educador escreveu: “Cada um pensa como pode...” Concordo com ele: nés s6 podemos compreender as coisas a partir do que somos, sabemos e sentimos. Olhar os outros, as pessoas que nos ceream, nada mais é do que fazer uma sensivel leitura do mundo. E aprender a conviver com palavras, textos e contextos di- ferentes, a buscar consensos. Até onde aleanga nosso olhar? O que dizem aqueles que conosco falam? As pala- vras sao fluidas, vivas, expressam saberes, crengas, cul- turas e emogées... Além das palavras, os gestos, 0s suspi- ros, 08 olhares..."Quem nao compreende um olhar”, tam- bém escreveu Quintana, “tampouco compreenderé uma longa explicagao”... Hé pontos & contrapontos tecidos em torno da edu- cagdio/escolarizagao. As divergéncias sobre o papel da es- cola vém contribuindo para um clima de tensao entre edu- cadores, pais e varios setores da sociedade. A ligdo do po- eta é que nao ha apenas um saber em jogo, mas milti- plos saberes (cada um pensa “a escola” como pode). As- sim, diferentes leituras entram em jogo, cujas dissonancias nem sempre favorecem as tomadas de decisao. 0s alunos, contudo, sao sempre os mais afetados. Em geral, criangas e jovens permanecem em siléncio, sem escuta em meio aos conflitos de poder. Educagdo em res- peito aos estudantes exige aproximagao entre familia, es- cola, governo e sociedade civil. Escutas, nao disputas! ‘Antes de tudo, é preciso uma conversa franca so- bre questdes importantes, buscar-se 0 didlogo quando surgem conflitos: a partir de que pontos de vista cada um tece julgamentos sobre a escola brasileira? Uma mesma situagao pode levar pessoas as mais diversas in- terpretagdes, dependendo de suas experiéncias de vida ou conhecimentos sobre 0 assunto. Cito 0 exemplo de um fato ocorrido em uma pesquisa. Ao responder uma Editora Mediagio Jussara Hoffmann 19 entrevista sobre “se estaria ou no de acordo” coma ava- liagao formativa nas escolas do pais, o pai de um aluno revelou-se “contra”. Sua justificativa: “Fico chocado cada vez que mando meu filho estudar para as provas e ele me responde que nao precisa, que jé fez as contas dos pontos que tem com os trabalhos. Diz que 86 precisa ti- rar trés na prova, entdo nem estuda. Isso esta errado”. A resposta do entrevistado foi tabulada como “nao estou de acordo” com a avaliagaio continua, mas sua justifica- tiva 6 “evidéncia” de que esta descontente, isto sim, com a prética avaliativa classificatoria, terminal (provas fi- nais e calculo de pontos e médias) que a escola publica de seu filho adota ao contrario do que os dados da pes- quisa apontam. Ele se coloca francamente a favor de um sistema de acompanhamento permanente da apren- dizagem, longitudinal, nao classificatério, ou seja, de acordo com a metodologia propria de um sistema de ava- liagdo formativa/progressao continuada. Af est a confusdo. O entrevistador registra 0 “nao”, mas nas entrelinhas da justificativa do pai com- prova-se o “sim”, ou seja, que ele deseja que “o processo avaliativo seja diferente do que o praticado por esta esco- la”, Andlises desencontradas como essas nao contemplam a complexidade e a diversidade do contexto educacional levando a conclusdes precipitadas sobre mudangas em educagao. Dados de pesquisas nacionais e internacionais re- velam ha varios anos que os estudantes brasileiros nao aprendem como deveriam. Que nossos professores nao tém 0 respeito que merecem da sociedade. Que experién- cias educativas de sucesso so pautadas pela ética da in- clusao, do respeito, da solidariedade, em lugar da compe- tigdo e da selecdo. Que nagdes democriticas asseguram o direito a escola de todas as suas eriangas.. Exlitora Mediagio aprofundar as perguntas e as respos- tas em pesquisas sobre a realidade ese quer mudangas em educagao, principalmente em avalia- sao. “Pensar de forma diferente” s6 acontece a partir do didlogo entre todos os elementos da agao educativa, da permanente reflexdo sobre a pratica. E urgente a revisao dos posicionamentos dos edu- cadores, dos pais ¢ de toda a sociedade brasileira sobre os objetivos da escola, o que significa, sobretudo, a celebra- gao da diversidade: respeitar primeiro, educar depois, Finalizando com Quintana: “Ou nos conformamos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutamos para realizar todas as nossas loucuras...” lar antes de quais- Editora Mediaga0 2 Procuram-se professores Ninguém se surpreenda ao cruzar, em breve, por algum outdoor com os dizeres: “Procuram-se professores desesperadamente!” Em outubro de 1991, o Jornal El Pais, de Madrid, dedicou 0 Caderno Educacién ao professor. A manchete de capa: Una imagen rota: alarma en Europa ante la pérdida de identidad del profesorado y la crisis de vocaciones. Um colega, na ocasiao, enviou-me 0 jornal. A ‘matéria principal das seis paginas do caderno, com depo- imentos de érgaos oficiais, sindicatos, tedricos e professo- res, referia-se 4s campanhas publicitrias de revalorizagao do magistério diante do sério alarme dos paises europeus frente a deterioracao da imagem do professor e & decor- rente desergo dos jovens dos cursos de magistério. A cri- se estava to séria que os érgiios oficiais estariam util zando, pela primeira vez na histéria, agéncias de publi- cidade, outdoors ¢ amincios de televisao. Na Franga, cartazes de rua com professores e alunos felizes, de maos dadas, serviam para anunciar concursos para o magistério com os dizeres: “Profissdo Professor!” 23 Ezitora Mediagio 24 Aval Uma campanha publicitaria, em Madrid, incluia a manchete: “Com a ajuda de minha professora, voarei com minhas préprias asas!” Os comentarios do jornalista davam destaque a ideia de que “nao se improvisa um professor e que essa profissdo exige ensino superior e for- magao continuada nas escolas”. “Ensinar, que grande tarefa!” — era o tema do anuncio de televisdo recém-langado em Andalucia, Espanha, mostrando professores alegres ensinando a sor- ridentes alunos. ‘Na Inglaterra, por sua vez, aparecia uma man- chete intitulada: “As sequelas do thatcherismo”, tendo como subtitulo: “A dama de ferro se empenhou em culpar os professores por todos os males da juventude britani- ca”-, justifieando por af a atual desergao dos jovens da carreira do magistério. Dizia esta reportagem que, em Londres e em algumas cidades da Gra-Bretanha, a dra- mitica falta de professores ameagara 0 inicio do ano leti- vo de 1990 no ensino primario e secundério. Para com- pletar o corpo docente desses graus de ensino, fora neces- sdrio colocar anuncios publicitarios em outros paises, a procura de professores australianos, neozelandeses, ho- landeses e sul-africanos. “Seja professor em Londres!” — havia sido o slogan da campanha. Desde a leitura dessa reportage, venho imagi- nando quando surgirao cartazes semelhantes em nossas cidades, diante do descrédito, das criticas aos professores e da escassez de candidatos a cursos de pedagogia e li- cenciaturas em universidades do pais. “Meu filho, professor? Deus me livre!” — dizem as familias. Ironia, pois elas deixam, cada vez mais, a edu- do de suas criangas e jovens sob inteira responsabili- dade dos mesmos profissionais a quem tanto contestam, de quem esperam (e muitas vezes exigem) que sejam com- preensivos, pacientes, bondosos, humanos, competentes, Euitora Mediagio Jussara Hoffmann 25 alegres, comunicativos, honrados, imparciais, democrati- cos... Enquanto isto permanecem céticos ou indiferentes diante de suas reivindicagées e questées profissionais. Os professores brasileiros tém muita garra e ou- sadia em continuar a ser professores. Viajo por muitos lugares. Mal acredito no que vejo. Dificuldade de acesso, estradas esburacadas por onde supervisores e professo- res circulam noite e dia; escolas e salas de aula sujas, calorentas, atrolhadas de alunos; uma indescritivel falta de recursos para dar conta de sua “grande tarefa de ensi- nar”, Em algumas ocasises, falta-me o folego diante dos problemas que fazem parte do seu dia a dia. Para os pro- fessores, todo dia. Quem se preocupa, dentre os varios segmentos da sociedade, em valorizar, em qualificar a “profissdo pro- fessor” como o fizeram as nagées que obtiveram éxito em suas reformas educativas? E urgente recuperar-Ihe a imagem, devolver-Ihe © orgulho de uma profissdo imprescindivel a qualquer sociedade culta e democratica. Nao estou falando apenas de maiores salérios ou de melhor formagao. Revalorizagao da imagem ¢ questo de respeito e de dignidade (Demo, 2004b; 2007). O desanimo comeca a tomar conta de muitos. Em pouco tempo de nada valerao, até mesmo, campanhas, me- Ihores saldrios, prémios de incentivo a esta profissio. Nos- 08 netos ja correm um sério risco de nao ter escolas. Um risco ainda mais sério de nao contar com bons professores, Ninguém se surpreenda ao cruzar, em breve, por algum outdoor com os dizeres: “Procuram-se professores desesperadamente!” " Enquanto este livro estava sendo revisado, uma matéria do Jornal Zero Hora (17 de junho de 2008) anunciava que, passados quatro me- ‘ses do inicio do ano letivo no Rio Grande do Sul, varias escolas gatichas permaneciam com falta de professores em varias disciplinas! Eulitora Mediagio 3 Um passo pra frente, dois pra tras Jao hé mudancas sem o sofrimento da transigao, do préprioesforco implicado que exige, muitas vezes, rentincia, disciplina, dedicacao. ‘Vivernos em tempo de mudancas, de ressignificagses, de contestagdes acerca de modelos e posturas de todas as ordens. Em meio a velocidade com que acontecem os avan- gos, entretanto, a escola se mantém extremamente conser- vadora. Por que é to dificil desenvolver projetos inovado- res em educagao? Quem ja mudou de residéncia uma ou mais vezes sabe das dificuldades de se aventurar ao novo, ao desco- nhecido, mesmo que a troca seja por um espaco maior ou melhor: os méveis antigos nao cabem; nao hé lugar sufi- ciente nos armarios para o que se trouxe; dé uma trabalheira instalar lumindrias, pendurar quadros, ajus- tar cortinas, ver se os chuveiros funcionam... Afinal de contas, chega-se a perguntar, era mes- mo preciso mudar? Nao hé mudanea sem o sofrimento da transicao, do préprio esforgo implicado que exige, muitas vezes, re- mincia, disciplina, dedicagao. Pergunte aos professores de 29 Editora Mediagio 80. Avallar: eepeitar primeira eduar septs uma escola: vocés acreditam que sua pratica precisa mu- dar? Se eles nao entenderem o significado das inovagées, sera natural que as resisténcias ocorram, porque todos gostam de mudar, mas ninguém gosta de “ser mudado"! O primeiro dilema em termos de formagao con- tinuada de professores af reside: nao se pode ensinar ao professor o que ele precisa aprender, porque apren- dizagens significativas so reconstrugdes préprias de cada profissional. Exigem processo reflexivo, compre- ender o que esté fazendo, antes de se aventurar a fazé- lo, Aprende-se 0 novo pelo envolvimento préprio, ind vidual. Aprende-se, ainda melhor, compartilhando no- vas experiéncias com os outros, porque nos sentimos fortalecidos, apoiados (6 dificil pendurar quadros sozi- nhos). Mas, sobretudo, aprende-se ao “perceber 0 novo” como uma opgao melhor. Sem desejar, sem participar, sem assumir as concepgies que regem um projeto educativo, é impossivel que se reaja positivamente aos “vendavais da mudanca”. Dai decorre o segundo dilema: mudangas resultam em sofrimento. Mudar de ideia d6i mais do que trocar de pele. O professor precisa abandonar praticas seguras e conhecidas, arriscando-se a perder seu status de compe- téncia, seu controle sobre a situagaio, sua confianga no pré- ximo passo. O que se vé pelo Brasil afora é que se da um passo pra frente e dois pra trés em termos de questdes essenciais tais como a universalizagao do ensino, a melhoria. dos indices de alfabetizagao, o privilégio ao desenvolvi- mento moral ¢ intelectual de eriangas e jovens, ete. Isto porque mudancas significativas nao acontecem por decre- to ou resolugdo. Sao as novas concepgdes que regem e dio sustento a reconstrugao das préticas, ndo o inverso. E a perigosa tendéncia no Brasil 6a de gestores normatizarem “como fazer”, decretarem mudangas de todas as ordens, Euitora Mediagio Jussara Hoffmann 31 sem que o préprio educador, sujeito desta mudanga, estu- de, experimente ou compreenda o significado do “novo”. Decorre da‘ o tereeiro ponto: mudangas permanen- tes desenvolvem-se passo a paso, solidariamente e nao solitariamente, envolvendo processos de compartilhamento de experiéneias, de reflexao conjunta, mediados por um ‘educador experiente que instigue ao avango. Déris Bolzan (2002), acompanhando e mediando as trocas de um grupo de professoras alfabetizadoras de uma escola publica, des- creve as etapas vividas por elas: Etapa 1 - resisténcia: dificuldade de refletir sobre a propria pratica, resisténcia em participar de discussées coletivas, negagao ou contradigao acerca de novos proj tos e experiéncias, Etapa 2 — ruptura da resisténcia: primeiras apro- priagdes das ideias construidas no coletivo, retomada da prépria pratica como um exercicio de reflexdo, primeiras verbalizagoes de conquistas em novas experiéncias. Etapa 3 — tomada de consciéncia: busca individu- al de aprofundamento teérico e de novas metodologias, disposig&o permanente para repensar a prépria pratica. Conforme a pesquisa que realizou, somente apés varios encontros de discussao e para trocas de experiéncias, diz Bolzan, um grupo de professoras alfabetizadoras alean- ‘sou “o espirito de aprendizagem permanente”, demonstran- do mudangas efetivas em suas praticas cotidianas, Ninguém muda porque o outro assim 0 deseja ou impée. Como procuraras por algo quem nem ao me- nos sabes o que 6? Como determinarés que algo que no conheces € 0 objeto de tua busca? Colocando de outra forma, mesmo que esbarres nisso, como sabe- rrés que 0 que encontraste ¢ aquilo que nao conhecias? (Platdo, 1956, p.128) Euitora Mediagio 32 Aval Efetivar mudangas significativas em educagao exige um duplo compromisso de gestores e formadores: 0 de mobilizar os docentes & discussao de suas praticas e concepgées bem como 0 de mediar a construgao de novos saberes. Para Fiori (in Freire, 1979, p.12), a rigor, nao se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciéneias”; nao ha professor, ha um coordenador, que tem por fungao dar as informagies solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condigies favoré- veis & dindmica do grupo, reduzindo ao minimo sua intervencao direta no curso do didlogo Mas € preciso lembrar que buscar 0 novo nao deve significar uma batalha contra o velho, negando a experi- éncia e os valores cultivados por uma institui¢do e seus educadores. 5 primeiro passo reconhecer que nao se sabe de tudo (Demo, 2001) e que “cada um pensa como pode” (Quintana) — prineipios importantes para garantir a interlocuedo e o tom afetivo entre as vozes de quem se propoe a mudar. Euitora Mediaglo 4 Um apagio na educacgao Enquantoo discurso politico é de uma escola inclusiva, a realidade mostra 0 abandono dos alunos no interior das escolas. Vivemos nos tiltimos anos um sério caos na avi- agao brasileira, resultando em trégicos acidentes. Os familiares das vitimas tém repetido a mesma pergunta a quem os tenta consolar: “Quantas pessoas mais pre- cisaréo morrer para que as autoridades tomem as pro- videncias necessérias?” Um experiente comandante de voos internacionais, em entrevista a televisdo, afirmou que sao trés os fatores responsaveis por acidentes aé- eos: falha humana, falha de equipamento e més con- digdes ambientais. Em geral, os acidentes ocorrem por- que os trés fatores se fazem presentes em determina- das circunstancias. Numa triste, mas pertinente associagao, refiro-me a caos semelhante em que vive a escola publica, um ver- dadeiro “apagio na educagao”. Pergunto-me a que nivel de degradagao das escolas precisaremos chegar para que governantes e politicos acionem as devidas providéncias. 35 Editora Mediagio 86 Avaliar: rapier prime, edcar depots Ha muitos anos, os trés fatores citados anterior- mente se fazem presentes na escolarizagaio publica provo- cando o caos: falta de professores, desvalorizacao e m4 qua- lificagdo docente (falha humana); falta de escolas e/ou es- colas sucateadas com precirios recursos materiais (falha de equipamento); salas de aula superlotadas de alunos, e onde impera um ambiente de indisciplina, dispersao e vio- léncia entre estudantes (mas condigdes ambientais). Nada se faz a respeito, ou pior, medidas governa- mentais contribuem para que se torne cada vez mais tra- gica esta realidade. No Rio Grande do Sul, que sempre primou pela qualidade do ensino, uma determinagao da Secretaria de Educagao, em 2007, foi a de extinguir tur- ‘mas do ensino médio com menos de 30 alunos para for- mar novas turmas com 50 alunos. A explicagao: otimizar recursos humanos e materiais para pensar em melhoria salarial dos professores. A verdadeira razao: despesa com pessoal e com encargos das escolas para reduzir a divida piiblica (expectativa da Secretaria de mil turmas extin- tas). O resultado: uma escola de faz de conta, cujo prinei- pio é 0 descaso pela efetiva formagao moral e intelectual dos estudantes, razdes politicas e econdmicas que desconsideram todo e qualquer fundamento pedagégico. importante acrescentar que tais medidas costumam ter fortes reflexos na rede particular. Brasil na contramao da hist6ria? Na Alemanha, a média de alunos no ensino médio fica entre 15 e 19 estu- dantes (de 15 a 21 anos); em Cuba, pais de melhor qua- lidade em educagao da América Latina, a média ¢ 20 alu- nos; na Inglaterra é de, no maximo, 25 alunos. Apenas para citar alguns exemplos de paises que primam pela exigéncia e competéncia pedagégica. Como fardo os professores para acompanhar e atender de forma diferenciada 50 alunos em sala de aula? Editora Mediagio ——--- Jussara Hoffmann 37 Se os processos avaliativos so complexos, se os indices de reprovagao/evastio na escola publica séo preocupantes, a qualidade do ensino, com tais medidas, estar cada vez mais comprometida. Falta de controladores aéreos, pistas escorregadi- as, pilotos mal treinados, lotagdo em excesso nos avides e aeroportos sé impactaram a populagao brasileira depois de resultar em muitas vitimas e desordem total nos aero- portos brasileiros. As vitimas da escola publica, infelizmente, sao cri- angas e jovens adolescentes e familiares que nao chegam a perceber ou reclamar pela enorme e irrecuperdvel per- da social com o descaso das autoridades pela educagio nas tiltimas décadas. Enquanto o discurso politico é de uma escola in- clusiva, a realidade mostra 0 abandono dos alunos nas escolas, de uma escola do anonimato, onde “todos” sao sempre “todos”, pois nao ha possibilidade de acompanha- mento da aprendizagem de cada um. Mostra também 0 descaso com a qualificagaio e formagao do corpo docente, auséncia de reunides pedagégicas, a falta de agdes de fomento a leitura e a recursos tecnolégicos nas escolas. aitora Mediagio participar ou decidir? a ° 9 a o g a a S a Y ° Participar da escolarizagao dos filhos nao é decidir os rumos da escola, assim como 0s professores nao devem delegar aos pais a fungao ‘gion. Ha algum tempo ouvi de professores, em semind- rio, comentarios acerca da interferéncia dos pais nas es- colas: “Por vezes, néo temos nenhum poder de decisao, os pais tém toda a preferéncia!” “Muitos pais que eriticam os professores nao sabem nem mesmo educar seus filhos!” “Nao temos apoio da diregio quando eles reclamam do que se faz.” Na mesma semana li uma matéria em revista para professores, trazendo a opinido de alguns especialistas sobre isto. Defendia a matéria “que quanto mais os pais, se envolverem (com a escola) e cobrarem isto (qualida- de), maior a possibilidade de garantirem um estudo de qualidade para suas criangas”. Fao aqui um contraponto a este argumento, pre- sente em matérias jornalisticas, programas e novelas da televisao brasileira, que encontra eco em muitas camadas sociais da populagao brasileira: a qualidade do ensino nas escolas nao depende dos pais ou de sua “cobranga”, mas da 41 Editora Mediagio atuago competente dos profissionais que ali atuam, so- mada & adequada infraestrutura das instituigdes; quais- quer reformulagées pedagégicas devem ser decisdes de pro- fissionais da educacdo, embasadas em fundamentos te6ri- cos consistentes. Nesse sentido, resgatar a credibilidade da socie- dade quanto & competéncia dos professores é uma das condigdes necessérias para qualquer avango. Como es- creve Pedro Demo (2006), 0 professor é o profissional da aprendizagem, pega absolutamente chave de uma socie- dade intensiva do conhecimento, figura crucial dos pro- cessos formativos que implicam formagao do carater, da personalidade das pessoas. Ninguém se torna profissio- nal sem passar por muitos professores. Professores de educacao infantil e das séries iniciais, por exemplo, parti- cipam ativamente da vida das criangas. Em muitos ca- 505, passam mais tempo com elas do que seus pais, ofere- cendo-thes, para além da aprendizagem, a seguranga e 0 afeto que muitas nao encontram em casa. Para tornar-se “bom professor”, por outro lado, 6 necessério estudar muito, realizar est4gios em escolas, especializar-se, participar de semindrios e de atualiza- ¢40. Imimeros profissionais frequentam cursos univer- sitarios (especializagao, mestrado, doutorado) ao longo de sua carreira profissional, apesar do esforgo que isto representa, do pouco tempo disponivel e da falta de apoio das instituigdes publicas e privadas as quais pertencem. E direito e dever dos pais “acompanharem” a escolarizacao dos filhos? As familias brasileiras tém direi- to a uma escola de qualidade? Resposta afirmativa para as duas perguntas. O que nao transforma os pais em “pro- fissionais da educacdo” ou Ihes dé a formagao/competén- cia necesséria para decidir sobre agies pedagégicas. Muito menos a sua “cobranga” encontrara algum eco se o corpo docente nao for qualificado. Ealitora Mediaga0 Jussara Hoffmann 43 Fago, entretanto, a esse respeito, um segundo contraponto, questionando se algumas atitudes dos edu- cadores nao estariam dando origem a tamanho “controle ou cobranga” dos pais. Imaginemos, pois, esta situagéo: uma crianga do- ente, hospitalizada, aos cuidados de uma equipe de pro- fissionais da satide; um diagndstico a fazer; um trata- mento ou cirurgia.a decidir. Como procedem esses profis- sionais em relagao aos pais do paciente? Primeira hipétese: retinem-se, estudam, debatem 0 caso e decidem sobre o melhor tratamento. Apés toma- rem tal decisio, conversam com os pais e explicam como iro tratar a crianga, usando uma linguagem para lei- gos. Solicitam, é claro, mais atengao e cuidados ao seu filho, definindo com clareza o papel dos médicos e da fa- miflia nesse sentido. Segunda hipétese: retinem-se, debatem 0 caso, con- cluindo que é muito dificil de resolver. Alguns profissio- nais da equipe mostram-se bastante desanimados, outros inseguros, ha ainda aqueles que culpam a familia pelo problema diagnosticado. Entao a equipe chama estes pais para conversar e aponta as inimeras “dificuldades”. Apre- senta-lhes algumas “linhas de agao” (em linguagem técni- ca), e pede sua opinio a respeito, acatando decisées, mes- mo que os pais nao entendam do assunto ou que eles, médicos, néo considerem adequado o tratamento a seguir. ‘Sugiro que os leitores transponham estas situagdes para o dia a dia das escolas brasileiras, pensando em situ- ages similares a essas que ocorrem com frequéncia. Como poderdo reagir os pais diante da inseguranea e desinimo de muitos? Em que medida alguns professores responsabi- lizam os proprios pais pela melhoria dos estudantes em alfabetizagio, na aprendizagem da matemética ou em outras areas — tarefa que néo Ihes compete? Poderdo as familias sentir confianga na escola que assim se comporta? Euitora Mediagio Quem revela autoria e competéncia no exercicio de sua profissao aleanga credibilidade da sociedade e po- der de decisdo no que Ihe compete. Quem demonstra in- seguranga, ao contrério, est sujeito a que outros inter! ram em suas decisdes. Participar da escolarizagao dos filhos nao é deci- dir os rumos da escola, assim como professores nao de- vem delegar aos pais a funcao pedagégica. Pais e profes- sores devem redefinir o papel que de fato Ihes cabe na luta por uma educagao de qualidade para milhares de criangas e jovens deste pais Editora Mediagio 6 Professor sem stress? O stress é energia que move, dinamiza a agéo. Torna-se problema quando a energia € desperdicada, em nada resulta. De 26 de outubro a 11 de novembro de 2007, acom- panhei a exposigao e venda de livros da Editora Media- ¢Go na 53° Feira do Livro de Porto Alegre. E com grande curiosidade, como escritora e editora, que observo, a0 lon- go desses dias, o interesse e a reagdo dos professores que visitam o estande. Nessa ocasidio posso ver quais 0s livros mais manuseados, os temas mais procurados, de que for- ma os leitores analisam os livros antes de compré-los, entre muitas outras “aprendizagens”. Dentre os livros mais “olhados” por quem visitou 0 nosso estande, cito a obra “Professor sem stress: realizagao ebem-estar profissional”, de um educador portugués: Saul Neves de Jesus, langada em 2007. Pode-se dizer que pou- cos foram os leitores que, ao olhar os livros em exposigao, deixaram de fixar-se neste titulo, tecendo sempre comen- térios anedéticos ou criticos sobre ele. “Professor sem stress” — disse uma professora, “este deve estar morto, 86 morren- do para nao ter mais stress!” ~ rindo as duas, mas nao 47 Editora Mediagio deixando de dar uma paradinha para ver mais de perto 0 livro e folhear suas paginas. Noutra ocasiao, uma crianga de nove anos mostrou este mesmo livro para sua mae, in- sistindo para que ela 0 comprasse. Os professores andam mesmo estressados? Desde o século XX, luta-se pela escola inclusiva, por uma escola para todas as criangas e jovens brasilei- ros. Alcancou-se, felizmente, um aumento consideravel da oferta de vagas em escolas piblicas. Mas 0 que acon- teceu a partir da‘? Ampliaram-se as verbas em educa- a0? Construiram-se escolas para “todos”? Ampliaram-se os recursos materiais e humanos necessdrios 4 deman- da? Nao. O que se observa, como decorréncia, 6 0 aumen- to considerdvel de alunos por sala de aula, oriundos de diferentes camadas sociais, exigindo mais e mais profes- sores, escolas sucateadas, com escassez de recursos de toda natureza, sem bibliotecas, laborat6rios ou equipamentos de informatica, ete., ete., ete. Por outro lado, quem sao esses “corajosos” professo- res das escolas piblicas? Habilitados, em grande parte, por diversificada rede de instituigdes que se espalha pelo pais (nem todas qualificadas a uma formagao competente), s80 pessoas que leem muito pouco, que néio vo a teatros, néio frequentam museus, néo acessam a internet, entre outras restrigdes culturais — conforme revelam as pesquisas (Demo, 2006). Nao porque nao queiram. Muitos nao dispem de tempo nem recebem saldrios que Ihes permitam ter acesso a tais bens culturais. Recebemos intimeros estudantes e professores em nosso estande na Feira do Livro e pudemos comprovar 0 que as pesquisas revelam. Eles vieram em busca dos lan- gamentos, das promogdes. Nao raro deixaram o estande com mais de um livro em sua sacola. Varios com vontade de comprar em maior mimero, de ler outros assuntos, mas visivelmente receosos em gastar mais. Temas como inclu- Egitora Mediagio Jussara Hoffmann 49 sao, formagao de professores, disciplina/indisciplina e ava- liagdo foram os mais solicitados, revelando 0 seu interes- se em torno dessas questdes. Em seus comentarios se pode perceber 0 socorro tedrico-prético de que necessitam, a falta de bibliotecas nas escolas, 0 pouco tempo de que dispdem para ler e estudar como gostariam. Saul Neves de Jesus escreve que o mal-estar docen- te é diretamente decorrente desta deterioragao do contexto social dos professores e de suas condigées de trabalho que os impede de promover uma aprendizagem de qualidade dos alunos. A chave do seu mal-estar est na impossibilidade de dar conta da tarefa docente com a competéncia desejada, Nao haveria stress se o professor, pelo contrério, conseguis- se fazer frente As exigéncias profissionais e aleangasse a aprendizagem eo bem-estar dos seus alunos. O stress 6ener- gia que move, dinamiza a ago. Torna-se problema quando muita energia ¢ desperdigada, em nada resulta Uma jovem professora, ao final de uma palestra que proferi para representantes da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, comentou que se sentiu completamente im- potente num dado momento, pois, A medida que eu comen- tava sobre a construgio de condigies “digas” de aprendi- zagem, ela pensava que suas criangas, moradoras em fave- las, chegam & escola sem conhecer um vaso sanitsri condigdes de vida sao completamente miserdveis. Este 6 apenas um exemplo de repetidas vivencias e dificuldades que geram insatisfagdo e stress em professores. Dar conta da escolarizagao das criangas e dos jo- vens brasileiros é tarefa de enorme complexidade diante do cenario sociocultural que se descortina e por isto os pro- fessores pedem socorro. Hé que se atuar prioritariamente sobre suas condigdes de trabalho, sobre formacao continu- ada em servigo, melhorando suas condigdes de vida e valo- rizando-os profissionalmente. Edlitora Mediagio 7 Volta as aulas: alunos ou pessoas, professor? Dei-me conta de que convivia com a aluna ha trés meses e no conhecia sua histéria, no conhecia a pessoa, apenas a aluna. Estavamos em final de outubro. Como Professora da Faculdade de Educagaio da UFRGS, coordenava a dis- ciplina de ago educativa com eriangas de zero a quatro ‘anos em instituigdes de educacao infantil. Tratava-se de uma disciplina de 20 horas semanais e que possibilitava extenso convivio com as alunas. Desta forma, pelos mui- tos encontros de orientagao e pelo acompanhamento did- rio de seu trabalho nas creches, imaginava conhecé-las muito bem. Dentre os prineipios do trabalho desenvolvido, insistia com as estagidrias que procurassem conhecer cada uma e nao se referissem a elas no plural: criangas, quan- do relatassem suas observagées. “Lembrem-se”, dizia, “elas tém nome, idade, jeitos de ser, de brincar, histérias de vida... Sao pessoas e tnicas! E preciso tentar perceber suas diferengas. Deem muito colo, conversem com elas, chamem-nas pelos nomes...” 53 Baitora Mediagao 54 Avaliar: Entao ocorreu uma situagao inesperada. Uma das estagidrias do grupo comegou a faltar & creche, a nao entregar relatérios, a ndo planejar, a nao realizar as lei- turas... E eu a questionei “severamente”. Entdo, s6 en- to, eu soube o que jé deveria saber: sua mae, com uma séria doenga degenerativa, enfrentava uma crise, Era ela, desde bem jovem, quem tomava conta da mie. A alu- na pediu-me tempo para se “estabilizar”. Voltaria ao nor- mal! Dei-me conta de que convivia com a aluna hé trés meses e nao conhecia sua histéria, nao conhecia a pes- soa, apenas a aluna. Que tempos sao oportunizados nas escolas para que tais encontros sejam possiveis entre educadores e educandos? Diz Madalena Freire (1995) que admirar o aluno pressupde a escuta dos siléncios e rufdos na comunica- 40; a escuta do aprendiz em sua propria histéria; um olhar, curioso, pesquisador. Para Edgar Morin et al. (2002), precisa-se distinguir explicagao de compreenséo. Uma explicagio descreve 0 ser humano como objeto (fu- lano mede 1,73m, pesa 74 kg, tira nota 8,5 em matemati- ca). A compreensao é outra coisa, exige envolvimento, sentimento, relacdo humana. $6 compreendemos um pou- co da dor do outro quando somos capazes de nos colocar no seu lugar, projetivamente. Formar pessoas (nao apenas instruir) pressupée resgatar suas hist6rias de vida, conversando com educandos em sala de aula e fora dela, sobre suas vidas e suas aprendizagens (Hoffmann, 2005): — Como foi sua vida até esse momento? — Como se deu sua escolarizagio? — Como estudam na escola e fora dela? —De que tempos e recursos dispdem para isso? ~ Quais os sous maiores interesses? Projetos? Amigos? — O que pensam da escola e dos professores? Editora Mediagio Jussara Hoffmann 55 Nao tenho a pretensio de dizer que se conhece verdadeiramente a pessoa do aluno apenas convivendo com ele por algumas horas semanais. Por vezes, um edu cador, por mais que tente, nao consegue conhecer os es- tudantes em um més, em um semestre, em um ano. O desenvolvimento humano, como processo de significagao de mundo, é sempre dindmico e, portanto, as reagdes in- dividuais sao inesperadas, inusitadas. Mas conviver/sen- sibilizar-se é 0 compromisso do educador, por um lado, e, por outro, a grande magia da tarefa educativa. Pressu- pée manter-se permanentemente atento a cada aluno, olhando para o atrés e para o agora, ou seja, procurando captar-Ihe as experiéncias vividas para poder cuidar mais, de quem precisa mais, Minha aluna, naquela ocasifio, enfrentava uma situagao adversa de vida. Eu nao sabia. E, depois de sa- ber, nada pude fazer em relagio a isto. O educador nao pode mudar as condigdes de vida de seus educandos & isto lhe causa muito sofrimento. Por isto prefere, muitas vezes, negé-las. Mas nao se devem confundir as duas questées: condigdes de vida e potencialidades de aprendi- zagem. Condigdes adversas nao significam, via de regra, obstéculos & aprendizagem e podem gerar, por parte dos alunos, estratégias de sobrevivéncia de criatividade es- pantosa. Prova disto 6 que esta jovem teve meu apoio, das colegas, “estabilizou-se” e concluiu muito bem seu estagio. Segue, hoje, sua carreira com brilhantismo. E necessdrio se pensar em espagos, tempos e ma- neiras de se estabelecer vinculos significativos com os alu- nos nas escolas para que se possa estar cuidando deles como pessoas todos os dias, sem deixar para “depois”! Editora Mediagio 8 Tempo de admiragaio e nao de reprovagao Hé muitas Lauras que permanecem no anonimato do coletivo das salas de aula, aquem é necessério dar atengao... Final de ano nas escolas, mas nao final de caminho. Os caminhos da aprendizagem nao sao trajetos lineares, com inicio, meio e fim. As criangas e jovens surpreendem a cada momento. “Nenhum dia igual ao outro”, para quem os observa curiosamente. Avaliar em educagdo significa acompanhar estas surpreendentes mudangas, “admirando” aluno por aluno em seus jeitos especiais de viver, de aprender aller ea escre- ver, em suas formas de conviver com os outros para ajudé- los a prosseguir em suas descobertas, a superar seus anseios, diividas e obstaculos naturais ao desenvolvimento. Ninguém aprende sozinho. E 0s alunos nao aprendem sem bons pro- fessores. Para favorecer, de fato, o melhor desenvolvimento possivel, 6 necessdrio conhecé-los muito bem, conversar com eles, estar junto deles (Hoffmann, 2001; 2005). ‘Vou contar a histéria de um “tempo de admiragao” em avaliagao. E uma historia real dentre duas centenas ‘que ja tive o privilégio de acompanhar. 59 Editora Mediagio Em agosto de 2005, a supervisora educacional de uma escola particular do Nordeste escolheu a aluna Laura’ para “admirar” e para “cuidar” que aprendesse melhor. Em seu primeiro relatério, entre outras observa- bes, esereveu: Laura é uma adolescente de 13 anos, com cor- po franzino, olhar distante, que cursa a 5* série, e que escolhi para cuidar porque ¢ bastante timida. Tudo com Laura é a0s “pouquinhos” - fala pouquinho, apren- de pouguinho... Conseguiu aprender a ler na 3* série, ‘mas precisou repetir, pois sentia um “pouguinho” de dificuldade em portugués e matemética. Pela minha observagao, 1é gaguejando e soletra para ler. Esta em aula de reforgo e acha que esta melhorando em mate- ‘matica “um pouco”, mas em portugués nao consegue avangar. Gosta da escola, de fazer trabalhos em gru- po, de conversar com as amigas. Confessou que du- ante as tarefas avaliativas sente frio nas maos e fica trémula, pois sabe que “na hora H” a meméria nao funciona, dé um branco... Em conversa da supervisora com seus professo- res, eles foram undnimes em diagnosticar a aluna como ‘um caso sem solugao: “Nao aprendeu nada durante o ano, esta com notas baixas ~ sem chance de mudar de série; aquilo 6 um caso sui generis, nao participa, ndo faz tare- fas, até a chamada responde baixinho; apresenta-se apd- tica em sala de aula, nao hé motivagao; nunca faz. as tarefas, s6 funciona no grupo”. Os pais de Laura, em conversa com a supervisora por ocasiao do estudo, disseram que ela tinha sérias limi- tagdes desde pequena, que haviam consultado médicos e *O nome da aluna utilizado no texto 6 ficticio para preservar a identidade da estudante, da supervisora e da escola. Editora Mediagao Jussara Hoffmann 61 especialistas: “Nao faz nada em casa, sempre se sente cansada, ndo tem rotina de estudo, se acha feia, burra...” Mas a supervisora acreditou na menina. Conver- sou com ela, ofereceu sua ajuda e se dispds a fazer do “pouquinho” de Laura, de sua voz inaudivel, do seu “caso critico”, o seu maior compromisso naquele momento. Sen- tou com ela para orienté-la a se organizar em suas tare- fas, comprou-lhe um pequeno didrio para se corresponderem por escrito, trocou Laura de lugar na sala, sentando-a bem na frente e pedindo aos professores que se comprometessem a orienté-la, leu com a menina livros de histérias para adolescentes. Mais do que isso, a supervisora “mimou" Laura. Ta buseé-la na hora da saida para lhe dar um beijo e ver como estavam as coisas, elogiou seu corpo magrinho e esbelto, sugeriu que soltasse os cabelos, que usasse ba- tom. A relagdo entre as duas tornou-se uma amizade ver- dadeira. E Laura, que escondia até entao seu desejo de “ser modelo e de desfilar”, no fundo de uma sala, emudecida, revelou-se uma linda e esperta adolescente de 13 anos. Fez mais amigos na escola. Foi convidada para novos grupos de trabalho. Em trés meses, Laura estava lendo e escrevendo melhor, fez e apresentou o melhor trabalho de geogra- fia da classe na Mostra Cultural da escola, progrediu em todas as disciplinas como comprovaram os professo- res (nem tanto em matemitica, cuja professora resistiu em acreditar). Foi aprovada para a série seguinte. Em seu depoimento em video, Laura disse que mudou de “lugar na sala e na vida, e que agora estava tudo diferente”. Os pais agradeceram por sua notavel evolugao e desejo de aprender. O que se viu na tela foi ‘uma menina alegre e charmosa, de brincos, cabelos sol- tos, com um largo sorriso no rosto. Euitora Mediagio A supervisora me disse que iria continuar “cuidan- do” de Laura no ano seguinte, que considerava seu com- promisso dar continuidade ao que iniciara, pois ela ainda precisava de auxilio em leitura e escrita. Ha muitas Lauras que permanecem no anonimato do coletivo das salas de aula, a quem é necessério dar aten- ensinar o que ainda nao aprenderam, auxiliar a or- ganizar agendas e cadernos. Ao invés disto, por vezes, fi- cam abandonadas. “Nao sei por onde comegar!” — me disse uma professora. Nao hé caminhos prontos, metodologias definidas para se aproximar dos alunos e compreendé-los melhor. Esta é uma tarefa que se inicia sem saber por onde continuar ou se teremos coragem de interromper. Como a supervisora que cuidou de Laura percebeu — fica- se eternamente comprometido com os alunos a quem “ad- miramos promovemos E sempre “tempo de admiré-los”, nao de reprova- los! Pouco tempo, alguns meses apenas ao final do ano podem representar a superacao de uma vida inteira para criangas e jovens. Posso dizer que tenho o privilégio de ter visto isto acontecer pela coragem e compromisso de educadores que acreditaram nesta possibilidade. Editora Mediagio 9 Acesso ou permanéncia? Muitas criangas e jovens chegam a ter acesso, como sindnimo de ingresso, & escola ptiblica, mas terao ‘acesso a uma escola de qualidade? Ha uma grande preocupacao dos governantes em apresentar indices de acesso de alunos & escola publica. Sustenta-se, pelos dados de pesquisas, 0 atendimento es- colar & grande maioria da populagao brasileira que de- manda 0 ensino fundamental e médio, Entretanto, em relacdo A qualidade do ensino, 0 Censo Escolar 2006 di- vulga que a expectativa de conclusao atinge somente 59% dos alunos que ingressam nas escolas do pais. Muitas criangas e jovens chegam a ter acesso, como sinénimo de ingresso, a escola publica, mas terdo acesso a.uma escola de qualidade? Qualidade em educagao nao significa apenas propi- ciar-lhes a escolarizagao, mas acesso, de fato, aos bens cul- turais da sociedade, acesso & cidadania, acesso & universi- dade, acesso a uma profissio, enfim, acesso & aprendiza- gem que propiciara tudo isto, Significa, dessa forma, per- manéncia! Uma educagao basica com o direito a permane- cer na escola por nove anos é 0 que precisamos aleangar, & 65 Editora Mediagao semelhanga dos paises desenvolvidos: uma escola que rece- ba todas as criangas e jovens brasileiros e que va além do que hoje se vé, ou seja, que lute, efetivamente, para a me- Thor aprendizagem possivel desses estudantes durante 0 tempo que Ihes é de direito, aleangando, nese espago para les constituido, uma formagao moral e intelectual digna No cerne dessa discussdo, encontra-se a concep- ao de qualidade das aprendizagens que somente sera aleangada pelo binémio diferenciagao/acompanhamento individual dos estudantes, 0 que ainda nao ocorre: por que estes estudantes tém a sua permanéncia na escola interrompida? Que dificuldades apresentam a ponto de 1ndo permanecerem, de nao conclufrem seus estudos? Sera que 41% dos estudantes do ensino fundamental apre- sentam problemas tao sérios de aprendizagem a ponto de a nossa escola nao dar conta de sua tarefa basica? Esta questao nos leva, neste momento, para o in- terior das escolas. Percebo, por depoimentos de professo- res, que em agosto/setembro varios alunos jé sao consi- derados “casos perdidos”, “casos de reprovacao”. Cabe-me entao perguntar: Quem é este aluno “caso perdido”? Contem-me a respeito de sua histéria pessoal/fa- miliar, falem-me de seu hist6rico escolar. Em que aspectos apresenta necessidade de orientagao? Como evoluiu em suas tarefas e trabalhos? Perceberam-se avangos, retrocessos, dtividas re- petidas ao longo do proceso? Ele lé e compreende 0 que 1é? Escreve com clareza e correc? Suas atitudes interferem na aprendizagem global? que se veio fazendo para orienté-lo a superar eventuais dificuldades e desde quando? Editora Mediagio Jussara Hoffmann 67 Responder a essas e a outras perguntas é avaliar. Sao tais respostas que nos permitem oferecer uma orien- tacdo efetiva a cada aluno. Alguns perguntam-me sobre o significado dos estudos de recuperagao, Recuperar é si- nénimo de mediar. Nao significa repetir, retomar, ensi- nar de novo uma lista de contetidos programéticos, refa- zer tarefas as pressas ¢ coletivamente ao final de perio- dos letivos. Tais estudos destinam-se a oferecer oportuni- dades de um atendimento diferenciado aos estudantes que apresentam dificuldades e/ou maior necessidade de orientagao em alguma érea. Sem acompanhamento e com- preensio da trajetéria de conhecimento percorrida por cada um, esta oportunidade se esvai. Em cerca de duzentos estudos de casos “dificeis” de alunos (em programas de formagao de professores que coordeno), varios professores revelaram, no primeiro mo- mento, um conhecimento superficial e genérico dos seus alunos. Os professores, em geral, sabiam que os alunos estavam tendo sérias dificuldades, mas nao sabiam iden- tificar em que reas, desde quando, e por que razao elas haviam surgido. Em alguns casos, os alunos haviam sido reprovados por mais de uma vez na série e 0s seus pro- fessores no sabiam disso. E por que nao? Em primeiro lugar, porque o foco continua centrado no ensino, na programagao curricu- lar, nas atividades pedagégicas e nao nas aprendiza- gens. Segundo, porque a avaliagdo cumpre um papel burocrético: nao se “acompanham” os alunos para compreendé-los e ajudd-los, mas com a finalidade de decidir sobre aprové-los/reprové-los. Em terceiro, por- que as agdes pedagégicas sao sempre uniformes, padro- nizadas, nao se efetivando um atendimento diferencia do e intencional em termos de suas necessidades e pos- sibilidades (Perrenoud, 2000). uitora Mediagio 68 Avaliar: verter primsir,ecerdopeie Estudos de recuperagao s40 comumente ofereci- dos aos estudantes que nao aleangaram notas ou concei- tos satisfatérios — uma obrigagao regimental que a escola e seus professores cumprem de mau grado. Retomam-se 0s contetidos programéticos em tempo recorde, superfici- almente, para diferentes alunos com diferentes graus de interesse e de dificuldades em limitado espago de tempo. Se Juilio no compreende o que Ié, se Marina nao enten- deu a formula matematica, se Claudio adoeceu e faltou a muitas aulas, os trés assistirao as mesmas “aulas de re- cuperacdo” ou fardo idénticos trabalhos e tarefas. Nao é ao final dos bimestres ou dos anos letivos que se decidem as estratégias de recuperagao, mas no dia a dia da sala de aula. A observagao curiosa, investigati- va, permanente é que leva o professor a tomar conscién- cia da heterogeneidade, buscando a diferenciagao peda- gégica. Esta observagdo nao pode vir desacompanhada de registros, de dossiés, de arquivamento de tarefas rea- lizadas — dados mediadores essenciais para 0 acompa- nhamento individual. Investigar seriamente 0 que os alunos “ainda” nao compreenderam, 0 que “ainda” nao produziram, no que “ainda” necessitam de maior tengo e orientagao denota compromisso do educador com a continuidade do proceso, permite oferecer-lhes apoio na hora certa, sem deixar ninguém para trés. Da mesma forma possibilita a0 grupo de professores que lidam com um mesmo alu- no conhecé-lo melhor, definir estratégias conjuntas, gerir novas leituras ou tarefas, enfim, localizar cada es- tudante em seu momento e trajetos percorridos, alte- rando-se radicalmente 0 enfoque avaliativo e as “prati- cas de recuperagao”. Editora Mediagio 10 Enturmagao Tenham os alunos a mesma idade, pertencam eles ao ‘mesmo niicleo social ou correspondam eles aum “padro estipulado em exa- mes”, continuardo a ser diferentes no ato de aprender e aexigir esta compreensao. ‘A pratica de enturmagdo dos alunos por grau de aprendizagem persiste em muitas escolas piblicas e par- ticulares do pais, contrapondo-se aos principios de uma escola inelusiva e aos ditames de uma pedagogia diferen- ciada. Também é costume, em varias escolas, nao trocar os alunos de turma ao longo de sua escolaridade, com a justificativa de favorecer as relagbes afetivas, a maior integragao, etc. Tais praticas, que nao encontram nenhu- ma defesa em teorias de conhecimento/desenvolvimento, parecem persistir nas escolas para facilitar o trabalho dos professores e dirigentes e para agradar as familias. Pri- vilegia-se ainda um ensino padronizado, para turmas pressupostamente equilibradas, homogéneas, tanto no que se refere organizagio do trabalho pedagégico (au- las expositivas, sistema de apostilas, semana de provas, notas e médias aritméticas, seriagdo, etc.), como no que se refere a constituicaéo do espago fisico (classes enfileiradas, quadro de giz, professor frente & turma, ete.) nm Editora Mediagio 72 Avaliar: Organizar turmas homogéneas 6 sério equivoco, € pura ilusdo. Serve para confirmar que o ensino esta centrado no professor, em planejamentos, critérios de ava- liagdo e normas escolares. Serve para confirmar que nao se leva em conta os alunos como pessoas tinicas, singula- res em seus modos de aprender. Nao fosse este o grande mal, esta pratica, além disso, é inécua em termos do pro- cesso de aprendizagem. 1.Aprende-se com os outros. 2.De- safios cognitivos variados e significativos favorecem so- bremaneira as aprendizagens. 3.0 professor nao é 0 tni- 0 detentor do conhecimento em sala de aula ou quem deve “transmiti-lo” da mesma forma para todos e ao mes- mo tempo. Seu compromisso 6, sobretudo, criar estratégi- as interativas, organizar situagdes e espacos educativos onde ocorra a maior variedade possivel de trocas entre os alunos e com o professor (Piaget, 1974). Dois problemas originam-se de uma suposta homogeneizagao das turmas. O primeiro 6 0 sério preju- izo a autoestima e ao desenvolvimento de criangas e jo- vens decorrente de expectativas rigidas da escola em relacdo a atitudes e ritmos de aprendizagem. Surgem dai os preconceitos de alunos “lentos”, “agitados”, “atra- sados”, “casos perdidos” porque nao correspondem aos padrdes institufdos (Baptista et al., 2008). Estas expres- ‘sdes pejorativas costumam acompanhar os alunos pela vida afora, repercutindo em suas relagies afetivas com colegas, familiares e outros professores. O problema se agrava quando algum desses es- tudantes “enturmado” em classes definidas como len- tas ou atrasadas é inserido em outra turma, passando a sofrer uma exclusdo ainda mais séria na sala de aula (os excluidos nas escolas). £ o que estamos vendo acon- tecer a partir das denominadas turmas de progresséo ou similares. Editora Mediagio Jussara Hoffmann 73 O segundo perigo que se corre com a enturmagao € torna-los competitivos, individualistas, limitados e in- seguros fora de seus “feudos” ou “grupos de iguais” — 0 que em nada contribui para sua cidadania e sociabilida- de. O que aprendem com isto? A comparar, classificar, segregar quem ¢ diferente em termos de A ou B. Em algumas escolas, as competigdes esportivas en- tre turmas transformam-se em disputas acirradas que se estendem para fora da escola, com agressdes verbais fisicas. Isto acontece prineipalmente nas que costumam manter as turmas inalteradas no ensino fundamental e médio, formando grupos fechados de alunos (e mesmo de familias) dentro das préprias escolas —o que é outro gran- de equivoco. Ha décadas que estabilidade e padrao sao voea- bulos em desuso na sociedade. Familias mudam de ci- dade a todo momento, eriangas e jovens convivem em casas e micleos parentais dos mais diversos. Diferen- ¢as religiosas, étnicas, sociais, sexuais fazem parte de sua vivéncia didria, os recursos teenolégicos ampliam sobremaneira a dimensao do mundo. As experiéncias e valores de vida que os alunos trazem para a escola so igualmente miltiplos, diversos, em permanente muta- ao (Justo, in La Taille, 2006). Tenham eles a mesma idade, pertengam eles ao mesmo niicleo social ou correspondam eles a um “padrao estipulado em exa- mes”, continuarao a ser diferentes no ato de aprender e aexigir esta compreensao. Para Edler Carvalho (2008, p.98), uma “proposta inclusiva diz respeito a uma es- cola de qualidade para todos, uma escola que nao se- gregue, nao rotule e ndo expulse alunos com proble- mas, uma escola que enfrente, sem adiamentos, a gra- ve questo do fracasso escolar e que atenda a diversi- dade de caracteristicas do seu alunado”. Editora Mediagio TA Avaliar: eepeitar primero edu de Tal proposta se nutre justamente da rica diversi- dade dos individuos com os quais trabalha: trinta alunos em uma classe significam trinta interpretagtes diferen- tes de uma 56 poesia, por exemplo. Aescola na contemporaneidade ndo pode dar mar- gens ao estabelecimento de fronteiras de relacionamento interpessoal. Para isto nao acontecer, sugiro: a) variar constantemente as turmas na passagem dos anos letivos (minimizando preconceitos conflitos);, b) trocar constantemente os participantes dos gru- pos de trabalho (favorecendo o coleguismo, a interagéo no grande grupo e a diversidade de pontos de vista); ©) propor tarefas de reforgo em duplas, em trios (para que os alunos se apoiem mutuamente); 4) promover ages cooperativas em pequenos grandes grupos, interclasses e entre escolas com esema participagao das familias (oportunizando aconvivéncia entre idades, etnias, religides, gru- pos sociais diferentes, ete.) “Somos diferentes e queremos ser assim”, diz Edler Carvalho (2008, p.23), “e no uma e6pia malfeita de modelos considerados ideais”. E mais do que urgente perceber que ao se negar as difereneas 6 que se produz a exclusao, Editora Mediaga0 11 A escola quer alunos diferentes? Avaliar aprendizagens exige ultrapassar leituras preconce- bidas sobre as manifestagies dos alunos, buscando-se leituras positivase multidimensionais. Qualquer pessoa, sejam criangas, jovens ou adul- tos, aprende sempre, a cada minuto de sua vida. Apren- der 6 como respirar. Cada suspiro ou nova vivéncia re- presenta sempre novas aprendizagens (sentimos, perce- bemos, pensamos sobre nés mesmos, sobre as coisas da vida de outra forma). E previsivel e humano que novos saberes venham a ser adquiridos por qualquer um de nés enquanto vivermos, nao importa a idade, etnia, clas- se social, grau de deficiéncia fisica ou mental. Por certo, 0 espectro do “fracasso” em termos de aprendizagem surge e se amplia com a invencao da esco- la na modernidade que passa a julgar e a classificar “o que aprende/nao aprende, o que é capaz de/néo 6 capaz de” baseando-se em parametros questiondveis. Inime- ras criangas, jovens e adultos af ingressam com medo deste fracasso que representaré frustrago, obstdculo, exclu- so social (Martins, 1998). 17 Euitora Mediaglo 78 Avaliar: rrpiter primsir,edcar dete Por um lado, o “nao aprender” esta sempre atrela- do a parametros de julgamento preestabelecidos (critérios de avaliagao lineares e padronizados). A partir destes 6 que se diz, por exemplo, que um aluno “nao aprendeu” os contetidos programados; que “nao aprendeu” a ler ou escrever em um ano letivo; que “nao aprendeu” a se comportar de acordo com as regras escolares, etc. O “no aprender”, como os negritos revelam, vem sempre atre- lado a um padrao de referéncia, a indicadores em que se baseia a escola, tal como programagées curriculares, tempos definidos, normas disciplinares, etc. A resposta diferente do aluno, que foge aos indi- cadores predeterminados, 6 considerada falta, retroces- so, interrupedo. A aprendizagem, contudo, nao segue um curso linear. Esteban (in Silva, 2003) carateriza o erro, a0 contrario, como um evento da aprendizagem. A evo- lugao intelectual nao acontece sem o tentar, errar, fa- Ihar, fazer/refazer. Avaliar “aprendizagens” exige ultra- passar tais leituras preconcebidas e negativas sobre as manifestagdes dos alunos, buscando-se leituras positivas e multidimensionais. Por outro lado, é preciso dar-se conta de que ne- nhuma “leitura” que se faga sobre alguém ou sobre suas aprendizagens 6 neutra, objetiva ou imparcial. Pelo con- trério, é fortemente influenciada por critérios pessoais de julgamento (subjetiva): ‘Sao olhares diferentes aqueles de um observa- dor que descreve a realidade pensando que nao interfere na mesma, incapaz de reconhecer que cada observador ‘que age em um sistema faz parte desse sistema com 0 qual interage, e aquele que aprende e reconhece que, ‘como pessoa ou sistema que observa, enquanto descreve ‘um mundo esta descrevendo a si mesmo que descreve 0 mundo (Perticari, 1995, in Baptista et al, 2008). Edltora Mediagio Jussara Hoffmann 79 Varias pesquisas comprovam, inclusive, que os examinadores ou julgadores “reintérpretam” os pardmetros de avaliagao preestabelecidos em concursos, por exemplo, a partir dos seus préprios saberes, posturas e percepgies, por mais que se julguem “objetivos” em suas corregdes ¢ andlises de desempenho. Neste ponto, retomo a pergunta que da origem a este texto: as escolas trabalham no sentido de formar pes- soas diferentes? Tém por objetivo provocé-los a construir solugdes diferentes? Para educar para a diferenca é pre- ciso revisar as perguntas que se fazem, amplid-las, individualizé-las, diferencié-las (Perrenoud, 2000; Edler Carvalho, 2004). Leituras positivas alicergam-se em uma anélise qualitativa, multidimensional do aprender: O que o aluno aprendeu além do que se preten- deu observar? Apresentou avangos, interesses, reflexos em ou- tras areas? As tarefas avaliativas/observagées permitem per- ceber avangos em que sentido? Ele precisaria de mais tempo ou de mais atengao dos professores para alcangar as aprendizagens necessarias? Compreendem-se as razées didatica, epistemolégica, relacional de o aluno nao avangar na diregéo espe- rada? Em que momentos o professor observa os alunos ou 08 apoia individualmente? E preciso ter a intengdo de se valorizar as dife- rengas entre os estudantes no sentido de provocar a di- versidade do agir, do pensar, de formas de se expressar, Ezltora Mediaglo 80 Avaliar: vspsin buscando-se a variabilidade didatica, perseguindo-se uma ago pedagégica diferenciada, como exemplifico a seguir: - organizando tempos e espacos para que alu- nos e professores se conhecam melhor e con- versem sobre a escola que desejam; propondo tarefas ou situagdes com a intengao de obter “respostas e/ou comentarios diferentes” dos alunos em diferentes tempos, tais como ler diversos livros e discuti-los entre si; ~ elaborando tarefas com graus variados de difi- culdade que tenham por foco atender os inte- esses e necessidades individuais; - valorizando as varias formas de expresso (mii- sica, fotografia, poesia, teatro, exposi¢ao oral) a0 explorar um mesmo objeto de conhecimento; realizando apontamentos que permitam acom- panharfintervir/promover oportunidades de aprendizagem a cada um sem perder a atengao a0 grupo. A avaliacao da aprendizagem consubstancia-se no contexto préprio da diversidade. E angustiante saber que milhares de criangas e jovens tém 0 seu percurso obstaculizado nas escolas porque se deixou de conhecé- los em seus jeitos de viver e de aprender. Editora Mediagio 12 Mae, pass: pela minha escola? A melhor escola para cada crianca ou jovem é aquela onde revelam estar felizes, que 08 torna confiantes em sua capacidade de aprender... Novo ano, tempo de terminar e de recomegar, uma inexplieével nostalgia em todos e, ao mesmo tempo, sen- timentos de esperanga, de renovagaio. Talvez porque, des- de nossa infaincia, este tempo represente “férias escola- res”, liberdade, novidades... Para as criangas menores, as férias ndo sao tao atrativas, pois parecem nao termi- nar nunca. Mas os maiores, principalmente adolescen- tes, nao veem a hora de elas comegarem. Jovens pais, entre parentes e amigos, costumam. me consultar nesta época sobre boas escolas onde matri- cular seus filhos: “a escolha certa da escola certa”” Nessas ocasiées, além de educadora, baseio-me na experiéncia de mae/professora para dizer-Ihes que esta nao é uma decisao tao facil, e que nao podemos pensar em escolhas definitivas. Meus dois primeiros filhos trocaram de escolas mais de uma vez acompanhando-nos em mudangas de 83 Editora Mediagio cidade. Quando nos estabelecemos novamente no sul, € com mais uma filha, investigamos muito para encon- trar uma boa escola onde os trés permanecessem até 0 ensino médio. Mesmo assim, nao fizemos a escolha defi- nitiva. A escola era conceituada, os trés tinham “notas” boas, mas estudar para eles era sindnimo de obrigagao, de “decoreba” e havia muita competigao entre os cole- gas. Estdvamos em conflito com a escola, 0 que nao era bom para nés ou para os nossos filhos. 0 mais velho foi © primeiro a pedir para sair, na 5* série. Os outros dois foram trocados por nés, com alguma resistencia. Deixa- ram amigos, passaram por adaptacdes menos e mais di- ficeis... Entao, passados alguns anos, como educadora e mae, a diivida persistia: teriamos nés, pais, tomado a deciso correta? Quem me deu esta resposta foi a minha filha nas férias do primeiro para o segundo ano do ensino médio. Cagula dos trés ¢ a mais mimada, nao era uma estudante exemplar (do tipo certinho, que gosta de escola). Recla- mava para estudar, ficou em varias recuperagdes, rece- ‘amos reclamagoes de professores por conversas ¢ ba- gungas em sala de aula. Minhas dividas eram se nao devia ter permanecido na escola anterior, mais rigida, mais controladora. Transcorridas apenas duas semanas de férias, numa ida ao supermercado, ela me surpreen- deu, insistindo que eu mudasse de trajeto para “passar em frente & escola”. “Nao acredito, mae” — disse-me ela — “que 86 voltarei aqui em margo. Eu adoro o meu colégio!” Minha filha, naquele momento, dava-me a certe- za que ainda nao tinha. Nao estava feliz em estar de férias! Estava com saudades! Aquela escola, para uma “adolescente festeira”, nao representava castigo! Como e quando saber se escolhemos uma boa es- cola para nossos filhos? Em suas reagdes encontramos Editora Mediagao Jussara Hoffmann 85 esta resposta, nao nas teorias, nos especialistas, nos rankings de vestibular, no confronto com’ as expectati- vas que criamos para eles. A melhor escola para cada crianga ou jovem € aquela onde revelam estar felizes, que os torna confiantes em sua capacidade de aprender, que favorece, principalmente, a sua socializagéo, a ami- zade profunda com colegas, onde os professores so seus amigos “sem perder o respeito e a autoridade”. Como se sabe se isto acontece? Quando eles sim- plesmente querem ir pra escola todo dia e dela retornam comentando de amigos, de trabalhos que fizeram, do que irdo fazer. A melhor escola 6 a que se constitui em um espago de aprendizagem com muita liberdade e prazer - sem estigma da obrigagao, da competi¢ao e do fracasso (Parolin, 2006). Meus filhos mais velhos foram bagunceiros festeiros na escola, como todo jovem saudavel tende a ser. Com 6timo rendimento escolar, ingressaram na uni- versidade no primeiro concurso vestibular. Hoje ainda convivem com colegas do tempo de escola. Minha filha também esteve longe de ser “aluna nota dez”, mas viveu feliz seu tempo de estudante. O “resultado” disto transpareceu nos outros cursos que fez, transparece hoje em sua vida profissional. Tivemos parte, como pais edu- cadores, em suas aprendizagens? E claro! Mas o grande mérito de seu desenvolvimento intelectual 6 das escolas onde estudaram na infancia e a adolescéncia. Pais educam, formam hébitos e valores. Escolas, para além disto, “ensinam a aprender e a aprender a con- viver socialmente” (talvez o principal critério de escolha). Ha muitos dados sobre os excluidos das escolas. Pouco se estuda, entretanto, sobre os “excluidos no inte- rior” delas, como denuncia Bourdieu (1982). Por precon- ceitos, abandonos, deficiéncias pedagégicas, relagdes de Editora Mediagio poder e de saber ocorre um proceso de exclusdo ainda mais estigmatizante. Criangas e jovens vivem anos de escolaridade sem se sentirem felizes ou integrados ao ambiente escolar. Muitas familias, mesmo com boas condigdes soci- ais, por saudosismo pela “educagao severa que tiveram”, ou por receio das trocas, nao se dao conta de que os filhos estdio desconfortaveis na escola, sofrendo abandonos, autoritarismos, recebendo apelidos e rétulos. O que é mui- to sério para o seu desenvolvimento moral e intelectual. Criangas tristes, controladas, pressionadas nao aprendem, nao interagem, no se desenvolvem. Sao cri- angas e jovens dentro da escola esperando pela vida “I fora’. Por vezes, ougo a pergunta: “E se meu filho nao estiver preparado para uma outra escola que escolher- mos?" Nao sao as criangas ¢ os jovens que devem estar preparados. As escolas é que devem estar preparadas para recebé-los em qualquer tempo e em suas préprias condi- goes de vida e de aprendizagem. Boas escolas sao espagos sociais de convivéncia, de brincadeira, onde educadores esto disponiveis para descobrirem o melhor do talento e da boa indole de cada estudante. Atentos sempre a cada um, nao para dimi- nuir sua confianga e autoestima, mas, ao contrério, para fomentar o desenvolvimento de suas potencialidades. Se, depois das férias, criangas ou jovens nao sen- tirem vontade de voltar para a escola, é aconselhavel ou- vir suas razdes e levé-los a sério. Euitora Mediagao 13 latérios de avaliagao 1: compreender e ompartilhar histérias Relatérios de avaliacao permitem a todos conhecer e refletir sobre caminhos diferentes e singulares percorridos pelos estudantes de todas as idades. Dentre as diretrizes legais do ensino fundamen- tal de nove anos, insere-se o sistema de progressdo con- tinuada nos dois primeiros anos e 0 acompanhamento dos alunos por meio de relatérios descritivos do acompa- nhamento escolar. Hé, entretanto, muita resisténcia de professores e pais sobre a validade dos relatérios em ava- liagdo, preferindo, a maioria, o sistema classificatério de atribuigio de notas por consideré-lo um registro mais fiel e preciso sobre as aprendizagens dos alunos. Falsa verdade: a fora do conservadorismo limita a reflexao sobre o significado de determinadas praticas. Escolas de educagio infantil ha tempos adotam pareceres/relatéri- 0s que em muito contribuem para o acompanhamento das criangas (Hoffmann, 1996). Relatérios de avaliagao, ao contrério do sistema de notas e conceitos, permitem a todos conhecer ¢ refletir s0- bre caminhos diferentes e singulares percorridos pelos es- tudantes de todas as idades. Ao mesmo tempo, retratam 0 89 Euitora Mediagio 90 Avaliar: rrpaiter primer, ecu depaie interior das salas de aula, revelam concepgies e juizos de valor dos professores (que as notas escondem), favorecen- do a melhoria da agdo educativa nas escolas e a melhor aprendizagem dos alunos. Oconjunto de anotagdes que se constitui sobre um estudante, com base em pressupostos mediadores, dina- miza e otimiza 0 acompanhamento individual, retirando 08 alunos do anonimato dos “ntimeros” ¢ elevando-os & condigao de pessoas, sujeitos de uma histéria unica, cujo acompanhamento é papel do educador. Ha mais de um sentido para a expresséo acompa- nhar. O Dicionario Aurélio aponta algumas definigdes in- teressantes: fazer companhia; seguir a mesma diregdo de; participar dos mesmos sentimentos; observar a marcha, a evoluco; entender; unir-se, juntar-se a. Assim, acompa- nhar tanto pode significar “estar junto de, ou ao lado de”, entender, observar a evolugdo, participar de. Na visdo comportamentalista, costuma-se acom- panhar para “ver e registrar 0 que se viu” acerca do alu- no, ou seja, estar ao lado de, sem a preocupacao de seguir asua marcha, o seu ritmo. Digo isto a partir de estudos e pesquisas que realizei sobre o acompanhamento de estu- dantes da educacdo infantil ao ensino superior que me fizeram chegar a uma lamentavel conclusio: “muitos sa- bem que eles nao sabem, mas nao sabem o que ndo sa- bem e nem por que nao sabem”. Isto acontece porque a agdo avaliativa se restringe a observar suas atitudes e a corrigir-lhes tarefas, atribuindo, entéo, notas e calculan- do médias. Notas e conceitos sdo para os educadores da- dos genéricos e superficiais da aprendizagem, que se trans- formam, em decorréncia do viés comparativo, em perigo- so instramento de exclusio. ‘Na perspectiva mediadora da avaliagao, ao contra- rio, acompanha-se para “entender, observar a evolugdo, Euitora Mediagio Jussara Hoffmann 91 refazer 0 processo junto ao aluno, propor-Ihe novos desafi- 0s (mediagdio)”. Daf porque, nesta outra perspectiva, 0s relatorios descritivos e/ou dossiés tornam-se essenciais & prética avaliativa (Hoffmann, 1993; 2001; Godoi, 2004). Entende-se, nesta concepgao, que tal acompa- nhamento é sempre de carater multidimensional e sub- jetivo e busca responder a algumas questdes como as que seguem: em que dimensdes da aprendizagem cada aluno apresenta avangos ou necessidades? qual a razao (epistemol6gica, didatica, relacional) dos jeitos e tempos de aprender de cada um? em que 4rea do desenvolvimento precisaria de maior atengao ou de novos desafios do professor? = que alternativas pedagégicas individuais e/ou co- letivas poderao ser desenvolvidas? Para explicar melhor esta segunda perspectiva, fago um contraponto entre ela e a pratica de atribuigao de notas e médias: se, ao final de um bimestre ou de um ano letivo, ‘um professor tiver apenas como dadoinformagao que dez alunos alcangaram a média quatro em uma disciplina, teré como responder a essas questdes sobre cada um? Saberao professores e pais as razées para a nota atribufda, ou onde estes alunos precisam de melhor orientagao? A observagao do cotidiano é 0 primeiro passo para © acompanhamento, mas ela nao pode vir desa- companhada de anotagées, registros, descri¢des “qualita- tivas”, tais como: Josio nao realizou a tarefa referente & diferenga entre... e falou que nao compreendeu a nocao. O segundo passo envolve reunir, apés um perfodo dessas anotagées, as informagées feitas e atribuir-lhes significa- do: duas semanas depois, Jodo continua a nao entender Edlitora Mediagto 92 Avaliar: rspetar prime, edecar depts a diferenga entre...? 0 nao fazer foi ocasional ou frequen te? Neste passo, os dados de registro permitem a andlise didatica (Joao se interessou pelas atividades propostas?); epistemologica (Joao compreende e expressa com coerén- cia suas ideias sobre a nogdo desenvolvida?); relacional (Jodo interagiu com os colegas ao longo desse estudo?). O terceiro passo representa, ento, a etapa de reconstrugao das praticas, buscando-se estratégias especificas, diferen- ciadas em relagao ao Joao que tenham por foco o apoio! reforco individual nas varias dimensdes do aprender. © que esta em jogo, portanto, em termos dos re- gistros em avaliagao, é a consisténcia da “meméria” do professor sobre cada aluno, que iré possibilitar-The ou nao uma ago intencional e diferenciada sobre suas manifes- tagdes singulares de aprendizagem. Para isto 6 preciso fazer muitas anotagées, arqui- var exemplares de textos, de trabalhos e tarefa se um conjunto de dados evolutivos e complementares acerca dos processos individuais que favoregam decisoes pedagégicas pertinentes De posse destas “memérias construidas” estabe lece-se 0 didlogo efetivo entre professores e alunos, en- tre os préprios professores e com as familias, comparti- Ihando-se hist6rias significativas de aprendizagem. s, reunir- Editora Mediagio 14 latérios de avaliacgao 2: do agir ao pensar na formagao docente O que se pretende é garantir que cada educador, por meio do agir reflexivo, seja reconstrutor das praticas avaliativas. A elaboragdo de registros e relatérios descritivos em avaliagao nao favorece apenas o acompanhamento dos alunos. Estudos realizados (Hoffmann, 198; 2005) comprovam que o exercicio de observar, anotar e refletir 0 longo do cotidiano escolar transforma o fazer pedago- gico do professor e de toda a escola. Ao elaborar relatérios parciais e/ou gerais, estagidrios e professores superam a visio comparativa/classificatéria da avaliagdo, evoluin- do em termos de uma postura investigativa e mediadora das aprendizagens. ‘Vamos aos pontos & contrapontos da questao que ora levanto.. Quando os registros de avaliagio sao de caréter classificat6rio/burocratico, a tarefa do professor pode se re- sumir: a) em corrigir tarefas dos alunos, calcular notas e atribuir-lhes pontos por atitudes; ou b) observar os alunos de tempos em tempos e responder a um rol preestabelecido 95 Bditora Mediagio

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