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BERBER BEVERNAGE Historia, MEMORIA E Todos os direitos reservados, Nenhuma Parte desta ob; reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou 7 (eletrénico ou mecanico, incluindo fotocépia e gra ; permissao prévia da editora, Ta poderd ser Uaisquer meiog 'va¢ao digital) sem a Revisio Julio Bentivoglio Capa Imagem da capa: Marcha dos Cem Mil - Estudantes perseguidos na Avenida Rio Branco - Rj. Maio de 1968 - Fotografia de Evandro Teixeira Projeto Grafico e Editoracao Bruno César Nascimento Impressao e Acabamento GM Grafica e Editora Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) 552h BEVERNAGE, Berber. Historia, memoria e violéncia de Estado: tempo e justica. Berber Bevernage; Tradu¢ao André Ramos, Guilherme Bianchi; Revisdo técnica: Valdei Lopes de Aratijo, Walderez Ramalho. Serra: Editora Milfontes/ Mariana: SBTHH, 2018. 364 p. : 20 cm Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-94353-25-2 1, Justiga de transicao 2. Teoria da Histéria 3. Ditaduras 4. Comissao da verdade 5, Tempo historico I, Bevernage, Berber Il. Titulo. CDD 901 Berber Bevernage Capitulo I Querer libertar-se do passado: corretamente, pois nao é possivel viver a sua sombra e o terror ndo poderd ter fim enquanto culpa e violéncia forem retribuidas com culpa e violéncia; e incorretamente, porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo. T. Adorno’ A fim de lutar contra a retaliagao, o perdao encontra, no tempo, um poderoso aliado. W. Benjamin? Introdugao Diversos filésofos tém notado as dimensdes temporais da relac4o entre historia e justica ou ética. As posi¢des mais opostas € explicitamente pronunciadas no debate foram aquelas tomadas por Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. ParalNietzsche; la historia alcangar a justiga, historica ica.’ Nietzsche despreza a generalizada “febre 1 Adorno T., The Meaning of Working Through the Past. In: Critical Models. Interventions and Catchwords, New York, Columbia University Press, 1998, pp. 89- 104, 89. 2 Benjamin W., The Meaning of Time in the Moral Universe. In; Selected Writings, 1913-1926 (VOL 1) (ed. M. Bullock & M.W. Jennings). Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 2002, pp. 286-287, 286. 3, Nietzsche F., On the Uses and Disadvantages of History for Life. In: Untimely Meditations (ed, Daniel Breazeale). Cambridge, Cambridge University Press, 1997, 27 ¢, acorr ntado ao momente a humanidade. enterrada yassado. Para ser capaz de (Sanus es in prenons preciosa Os uiriam uma “fraca forca messianica” para assado catastrofico de tais posturas encontram-se concep¢des jiferentes do passado e de seu estatuto ontoldgico. Na) estatuto ontolégico ambiguo ou até mesmo inferior evou diversos filésofos, seguindo Nietzsche, a declarar- “obsessio” com a histéria e a argumentar, por sua ca focada no presente.’ Alideialdo'passadolenquanto eses on th Philosophy of History. In: Illuminations (Ed. and New York, Harcourt Brace Janovitch, 1968, pp. 253-264. anamnésica” foi postumamente atribuido @ filosofia nhardt: Lenhardt C,, Anamnestic Solidarity. The Telos, 25 (1975), pp. 133-154 cas importantes entre a conceituagdo do passado como do passado como “distante”. Contudo, no contexto do eu angumento, estas diferengas nao sdo tao relevantes. Tanto 0 * “passado ausente” 4o, em primeiro lugar, definidos como “nao presentes” e Leque ente, seu estatuto ontoldgico ¢ considerado inferior ou “derivative” Bo presente 1 exemy enkins K., Why Bother with the Past? Engaging with Some Issues Kaised by the Possible ‘End of aan as We Have Known It.’ In: Rethinking History, | (1997), |, pp. 56-66. Berber Bevermage e contribuir para a busca da justic¢a muitas vezes Parece ser limitada até inexistente. A estreita relacdo entre essa concep¢ao particular ¢ tempo histérico € 0 restrito Mandato ético da histéria torna-se parente quando essa antiga concepeao de tempo é contrastada com o¢ao de tempo muitas vezes implicita no discurso da jurisdigao. © historiador francés em uma dos crimes contra a humanidade), ” Rousso rejeita essa noga de um periodo de espera, mas parece nao perceber que tal crtagonisme temporal entre histra esa et enrtzad deforma muito mais profunda do que pode parecer & primeira vista. O contflito entre © “tempo da jurisdi¢ao” e o “tempo da histéria (me refiro aqui a historia como disciplina ou como um discurso mais amplo) pode ser interpretado como um antagonismo resultante de suas respectivas énfases na presenca ou na auséncia, e com a reversibilidade ou a _ Historia, Memoria e Violéncia de Estado: Tempo e Justiga O tempo irreversivel da histéria desafia o tempo jurid a justica reparatéria nunca pode ser rapida o suficiente para rey ou desfazer totalmente o dano produzido pois todo crime esta sempre ja parcialmente no passado e, portanto, apresenta sempre dimens6 de auséncia ou distancia. Isso torna impossivel, dentro do concej histérico de tempo irreverstvel, alcangar completamente a justi¢a apés_ um periodo decorrido de tempo. Aqueles que reivindicam uma dire moral para a histéria (em nome das vitimas da injusti¢a histérica) mi cedo ou mais tarde terao de confrontar esse conceito de tempo. I Horkheimer utilizou exatamente esse tempo hist6rico irrevers! como uma arma temivel em sua critica da filosofia escatolégica e anamnésica de seu amigo Walter Benjamin. A ideia de uma ju ti perfeita, de acordo com Horkheimer, é uma ilusdo recorrente q deriva de uma no¢ao primitiva de troca.’° @assado; O passado histérico ¢ nich twieder gut zu machende: injustigas [passadas] estdo feitas e acabadas. Os assassinados fc realmente assassinados”.’* O tempo irreversivel da historia esta certo em criticar “ideia primitiva de troca” que fundamenta o tempo rev. jurisdicao. Tanto Emmanuel Levinas e, na sua esteira, Jacques D 1 argumentam que 7 o podem ser / 10 Horkheimer M,, Thoughts on Religion, In: Critical Theory. S _ New York, Herder and Herder, 1972, pp. 179-180, 11 De uma carta para Benjamin (1937). Citada em; Peukert H., and Fundamental Theology. Cambridge (Mass.), MIT Press, 1984, pp. 12 Caputo J. D., No Tears Shall Be Lost. In; Carr D,, Flynn T. R. R,, The Ethics of History. Evanston, Northwestern University Press, 2004, 30 Berber Bevernage No entanto, © proprio tempo irre d > versivel da histéri nao sobredimensiona tamb: Mine ém a auséncia ou a di i a , istancia do passado? Nao ignora, ele também, as dimensdes de persisténcia e de presencas assombrosas” do passado e de suas injusticas?? A énfase na auséncia e na irreversibilidade do passado confere ao tempo irreversivel da histéria algo de desconfortavel, Por vezes de injusto e quase moralmente inaceitavel. E contra tal tempo irreversivel, que “ameaca destruir toda a moralidade”, que o sobrevivente belga-austriaco de Auschwitz, Jean Améry, rebela-se em seu notdério ensaio Resentments (1966). Améry chocou seus contemporaneos argumentando contra ° perdao e a reconciliagéo em favor do ressentimento e exigindo uma “inversaéo moral” do tempo. Ele queixava-se que “[...] o mundo inteiro compreende a indignacao dos jovens alemaes com os profetas ressentidos do 6dio, e se coloca firmemente ao lado daqueles a quem pertence o futuro. O futuro é obviamente um conceito de valor. O que sera amanha vale mais do que o que foi ontem”. Améry encorajou o ressentimento, mas percebeu que sua orientac4o temporal retroativa estava em conflito com alguma das ideias mais dominantes acerca da natureza irreversivel do tempo: Absurdamente, demanda-se que o irreversivel seja reyertido, que o evento seja desfeito. [...] 0 sentido temporal da pessoa aprisionada no ressentimento é retorcido, desordenado, na medida em que deseja duas coisas impossiveis: a regressao ao passado e a anulagao do que j4 aconteceu."* 13 Ao longo deste trabalho usarei o termo “persisténcia” para referir-me a “presenga” ambigua do passado assombroso, porque este termo é geralmente considerado como sendo metafisicamente neutro. Desta forma, posso evitar as discusses metafisicas, que creio infrutiferas, sobre a distingao entre “resisténcia” {endurance] e “persisténcia” [perdurance], como dois conceitos diferentes de como as coisas persistem através do tempo. Falando de maneira muito simples: os defensores da tese da persisténcia afirmam que as coisas persistem em virtude de terem partes temporais além das espaciais. Os defensores da tese da resisténcia, em contraste, afirmam que os objetos estao totalmente presentes em todos os momentos em que eles existem e, como tal, se movem através do tempo. Ver: McKinnon N,, The Endurance/Perdurance Distinction. In; Australasian Journal of Philosophy, 80 (2002), 3, pp. 288-306. 14 Améry J., At the Mina’s Limits. Contemplations by a Survivor on Auschwitz and its Realities. Bloomington, Indiana University Press, 1980, p. 68. 31 ee Historia, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justiga Ainda assim, como um cativo da “yerdade moral”, exige um direito de resisténcia contra 0 que chama de “biolégico” anti-moral que cura todas as feridas: O que aconteceu, aconteceu. Essa frase é tao verde como ¢ hostil 4 moral e ao intelecto. |...) A pessoa moral exige a anulagéo de tempo ~ no caso particular mediant a responsabilizagao do criminoso por seu feito. Assim, através de um recuo do reldgio, esse ultimo pode juntar-se 4 vitima como um ser humano companheiro."* a Além do presente e do ausente, do reversivel e do irreversivel: o irrevogavel Améry tem razio, é claro, quando admite o absurdo tentar desfazer 0 que ja estd feito. No entanto, quero levar a suas queixas sobre o carater amoral, ou mesmo, imoral do ten irreversivel - levar a sério 0 suficiente tal queixa como uma primeiras motivagées para este livro e para criticar e tentar repens de tempo. No entanto, fato, é possivel conceber uma terceira via, resistindo rigor aos dois polos de oposic¢ao dicotémicas do reversivel e do irrev ou do presente presente e do passado ausente? (Gilésofo francés Viadimir Jankélévitch) Numa de suas obras: filosoficas sobre tempo e temporalidade, “@Mirrevogavel”'’ Enquanto ambosyide acordo com Ja nkéles te diferentes do pa avo u GecifradovcomoimMtEFSId0 (avoir-été), r 15 Améry J., At the Mind's Limits, p. 72, ; 16 Jankélévitch V., L'irréversible et la nostalgie, Paris, Flammari 32 Berber Bevernage _ HOS C2 TOURESSEREOD QE GEETD um tendo- i mais frequentemente o-sconreieg associado com o te do-feito (avoir-fait), o contr ‘0, No entanto, de ek aoe ; trazer um passado ou banir um passado un passé trop present) daquele presente.’” A distingao analitica de Jankélévitch é de grande relevancia pois 0 conceito de irrevogavel nos permite escapar das dicotomias aparentemente convincentes que discutimos acima. E claro que a experiéncia temporal do irrevogavel, bem como ado tempo irreversivel da historia, salienta a inalterabilidade do passado - 0 que poderia significar chamar algo de irrevogavel senao, em primeiro lugar, que ele jamais pode ser revogado ~ mas, ao contrario do tempo irreversivel da histéria, ele néo condena o passado a um estatuto ontoldgico inferior que facilita sua negligéncia. Ao referir-se a um passado que ficou “preso” e persiste no presente, 0 conceito de irrevogavel de fato rompe com a ideia de “distancia temporal” entre o presente e o passado que é tao central para o tempo irreversivel da historia. Além disso, o irrevogavel desafia a dicotomia entre as categorias fixas do absolutamente ausente e do absolutamente presente ao se referir 4 “presenga” incompleta e aparentemente contraditéria ao que de modo geral se considera estar ausente, ou seja, 0 passado. muito passado (un passé trop passé) ao presente muito presente ( Essa “presenga” - ou, melhor, uma proximidade nao-espacial - do irrevogavel nunca deve ser confundida com a nogao metafisica de presenga, que funciona como anténimo de auséncia, uma vez que isso levaria a inconsisténcias légicas, No entanto, negando a absoluta auséncia do passado ou rejeitando 0 conceito de distancia temporal, ao dizer que o passado por vezes esta irrevogavelmente preso no 17 Ibid., p. 211-212, 33 Historia, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justiga presente, nao necessariamente nos compromiete com inconsisténciag i légicas ou absurdas - como a ideia de uma causalidade retrospectiya” 7 ou a negagao da “dependéncia de trajetéria” (path dependence),\® Ema outras palavras: a perspectiva do irrevogavel oferece uma grande oportunidade para criticar 0 tempo irreversivel da historia © para examinar a viabilidade de uma cronosofia alternativa que poderia desafiar a concepsao de passado como matéria “morta”, ausente oy distante, e uma oportunidade para permitir algum espago intelectual para levar a sério a ideia de passados “persistentes” ou assombrosos, Contudo, tendo dito isso, devemos levar 0 raciocinio para suas conclus6es: um “passado” persistente nao se limita a desconstruir as nocées de auséncia e distancia; em vez disso, embara¢gaa delimitagao _ rigorosa entre passado e presente e, assim, questiona até mesmo 4 existéncia de tais dimensdes temporais como entidades separadas, Portanto, espero que a reflexio sobre a nogao do irrevogé NOs provoque a repensar ou reconsiderar duas questées simples, n fundamentais: o que significa realmente para algo ou alguém no “passado”, e como coisas, pessoas ou eventos se tornam passa Parece-me que raramente os historiadores (Michel de Certeauapar ser uma exce¢do importante) levantaram explicitamente tais qi sobre a “transi¢éo” peculiar entre presente e passado. Reconsideren entao brevemente o comentario de Henry Rousso sobre 0 “periodo d espera” que foi e ainda é muitas vezes recomendado aos historiadore: Nao seria esse tabu de longa data sobre a escrita da “contemporanea” - mais que apenas resultado de um problema p relacionado aos arquivos fechados, ou de um medo de trabalhar ¢ certa insuficiéncia de visio retrospectiva — a sinalizacao desse P "problema: um tabu acerca de toda pratica que poderia evidenci _ questoes emaranhadas dos limites (ontoldgicos) de separacao passado e presente, entre os vivos e os mortos? Ou formulado demo um pouco distinto, o relativamente recente desmoronamento d 18 Para uma discussio interessante sobre 0 conceito de trajetorias dep ~ “[..] que o que aconteceu em um ponto anterior no tempo afetara os pt resultados de uma sequéncia de eventos ocorrendo em um ponto posterior no | = ver: Sewell Ww. H, Jr., Logics of History. Social Theory and Social Chicago, University of Chicago Press, 2005, pp. 100-101. 34 ee Berber Bevernage sobre a histéria contemporanea e a cri sobre passados cada vez mais recentes a presun¢ao mais fundamental que p base da historiografia académica: a P uma ruptura “natural” e “dada”, 0 presente?" Teria 0 passado, como alguma “meia vida natural” como empobrecido?® Uma historia ge se basear nas mesmas nogées (i €scente popularidade da escrita nos obriga a comegara repensar ‘or tanto tempo funcionou como Tesun¢io de que existe algo como uuma distancia, entre passado e Chris Lorenz belamente formulou, Se tratasse de uma porgao de uranio nuinamente “contemporanea” pode implicitas) de tempo e temporalidade que por tanto tempo fez com que muitos historiadores académicos acreditassem estarem trabalhando com um passado “morto” ou “acabado?” Uma vez que estdo tao relacionadas com a nogio de irrevogavel, tais questées irao nos acompanhar (embora muitas vezes permanecendo implicitas) ao longo de todo o livro. Infelizmente, Jankélévitch prematuramente abortou a abertura promissora oferecida pela nogao de irrevogavel quase imediatamente apdés declarar a existéncia do irrevogavel como uma categoria da experiéncia. Jankélévitch se apressa a sublinhar 0 carater meramente metaforico ou subjetivo da ideia de que o passado irrevogavel “sobrevive” no presente. Na realidade, Jankélévitch afirma que todo tempo se move constantemente em uma direcio, e a persisténcia do passado no presente, portanto, pode ser apenas uma experiéncia distorcida do que, na realidade, é 0 processo do tornar irreversivel. Ainda assim, apesar deste aborto prematuro, Jankélévitch nos apresentou um nome para a cronosofia alternativa que desejo examinar. Nos capitulos e partes subsequentes irei analisar 19 A pratica de escrever histéria contemporanea remonta, ¢ claro, pelo menos ao mundo helénico. No entanto, como escreve Charles Maier, durante os primeiros dias do surgimento da «histéria profissional», a escrita da historia contempordnea era muitas vezes descartada como uma atividade impossivel e nao cientifica que devia ser deixada aos amadores. A ascensao da histéria contemporanea profissional como a conhecemos hoje comegou nas décadas seguintes 4 Segunda Guerra Mundial. Maier C. S., Contemporary History. In: Smelser N. J. & Balthes P. B. (eds), International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. Oxford, Pergamon Press, 2001, pp. — vil? The German Impire of 1871 and Modern YZ Good and EB) Contino Journal of Contemporary History, 30 (1995), 4, pp. 729- 765, 729. 35 : : tado: Tempo € Justiga ticar io de tempo histérico irreversfy el (e seu uso), € tentarej efende téncia, a viabilidade e a significancia ética da nogig O dilema da justica de transicéo, comiss6es da verdade eo direito 4 verdade histérica sobre as dimensdes temporais da ética que discutimos a, referindo-nos as posigdes conflitantes de pensadores Nietz Benjamin, Horkheimer e Améry tem em tempos relativiamente recentes reaparecido no palco politico internacional com forga total e extrema urgéncia no emergente campo da justiga de transi¢ao. (GRREERSOTES"M A necessidade de sociedades em transi¢gaéo de enfrentar legados violentos de ditaduras ou de guerras civis nao é, naturalmente, nova. Concentrando-se na justiga de transi¢ao a partir de uma perspectiva histérica, Jon Elster alegou que a sua existéncia pode ser recuada para pelo menos 411 e 403 AC, quando atenienses tiveram que restaurar duas vezes a democracia, apds ela ter sido derrubada por oligarcas. Elser também prové seu “universo” de justica transicional com casos dos séculos dezesste, dezoito € @ezenove, incluindo a restauragéo monarquica na Inglaterra apos @ Declaracao de Breda (1660), a restauragdéo monarquica na Fran¢a ps a queda de Napoleao (duas vezes, em 1814 e 1815), ea transigao para a independéncia apés o tratado anglo-americano de 1783." AS 21 Teitel R. G., Transitional Justice Genealogy. In; Harvard Human Rights Journal, 16 (2003), pp. 69-94, 69, 22 Elster J., Closing the Books, Transitional Justice in Historical Perspective Cambridge, Cambridge University Press, 2004 36 iain anit a ii ithe ci Al aa Berber Bevernage origens da justia de transigao moderna, de acordo com Ruti Teitel poderia situar-se na sequéncia da Primeira Guerra Mundial, mas cla argumenta que a justiga de transigao apenas foi compreendida como extraordinaria e internacional no periodo pdés-1945. Tal delimitagao permite que Teitel esboce uma genealogia trifasica da justi¢a de transi¢ao, na qual a primeira “fase pés-guerra” associada com os julgamentos de Nuremberg é seguida por uma segunda “fase pos-Guerra Fria” associada com as transicées democraticas do final dos anos 1980, que por sua vez, direcionando-se para o fim do século vinte, é substituida por uma terceira “fase de curso estavel” da justica de transic&o “associada com as condi¢ées contemporaneas de conflitos persistentes que assenta a fundacéo para uma lei normalizada da violéncia”.* Ao falar sobre justica de transicao, a maioria dos estudiosos tem apenas a segunda e a terceira fase em mente, e o fendmeno é abordado mais frequentemente (implicitamente) centrando-se apenas nas transi¢Ges para a democracia.* No ultimo quarto do século vinte, como muitos comentadores notaram, algo como uma “grande onda de novas democracias” ou uma “onda impetuosa de liberalizagao” ocorreram em paises que emergiam de passados violentos e autoritrios.* A “onda” aparentemente comegou no sul da Europa com as transi¢gGes na Grécia e na Espanha; logo dirigiu- se para a América Latina, onde paises como Argentina, Bolivia, Chile, Brasil e Uruguai, saiam de ditaduras militares; logo depois a “onda” atingiu a Europa Oriental, onde Polénia, Alemanha Oriental e Hungria rompiam politicamente com seus regimes comunistas; € mais recentemente esse fendmeno tomou uma dimensao quase global com a queda do Apartheid na Africa do Sul, com os processos de paz 23 Teitel, Transitional Justice Genealogy, p. 70. 24 Para uma critica a essa suposigao que equipara qualquer transicdo de ditadura como um movimento em diregao democracia, ver: Carothers T., The End of the Transition Paradigm. In; Journal of Democracy, 13 (2002), 1, pp. 5-21. 25 Expressoes de: Méndez J, E., In Defense of Transitional Justice. In: McAdams A. J., Transitional Justice and the Rule of Law in New Democracies. Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1997, pp. 1-26, 1s Teitel R. G., Transitional Justice. Oxford, Oxford University Press, 2000, p. vii. 37 Histéria, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justiga em outras partes da Africa, e as coisas comecaram a se mover, também nesse sentido, em paises asidticos como Camboja, Timor Leste, ¢ Coréia do Sul.” 4 ico da justiga, em comparagéo com outras fo mais “comuns” de justica criminal e de justi¢a social, isso se em primeiro lugar, porque o contexto de transi¢ao politica e cria um conjunto especifico de restrigdes nos quais fazer 0 uso d nao seguem um claro corte entre um regime militar e uma democratica mas, ao contrario, resulta de uma revolucao ne; ou de acordos baseados em antigas e novas for¢as. Em tais si com equilibrios precarios de poder, em que a velha elite man grande influéncia politica ou econémica e em que as for¢as milita ou de seguranca seguem ameagando a paz e a estabilidade politic torna-se dificil a organizacao de julgamentos ou a recorréncia a uma aplicagao direta da lei criminal.” As vezes, juizes ou procura recebem ameacas de morte, frequentemente as testemunhas aind estao_m medrontada iportar os enormes custos de julgamentos coletivos com antia virtual de inimeros obstaculos juridicos, incluindo a falt idéncias suficientes se os perpetrador, 4 enormes dificuldades na busca por justica em situagées n F quando se tenta fazer isso em paises em fase de tra problemas se intensificam. 26 Para um trabalho central sobre justica de transigao, ver os trés Transitional Justice, How Emerging Democracies Reckon with Former by Neil J. Kritz for the United States Institute of Peace (We também os websites do Instituto da Paz dos Estados Unidos (http://www. do Centro Internacional de Justica Transicional (http://www. ietj.org 27 Zalaquett J., Balancing Ethical Imperatives and Political Dilemma of New Democracies Confronting Past Human Rights | Hastings Law Journal, 43 (1992), pp, 1425-1438, 4 38 Berber Bevernage __ imperativos: em primeiro lugar, ha a necessidade de retornar a0 — _ Estado de direito e processar os perpetradores: por outro lado, ha a) Como estes dois imperativos parecem muitas vezes opostos, comentaristas tem falado sobre uma “escolha diabédlica”” ou um “dilema da justiga de transicao”:” reparar a injustica histérica e, assim, abrir 0 risco de contestagdo social, desestabilizagdo e retrono da violéncia; ou objetivar um presente e um futuro democratico e pacifico em prejuizo das vitimas de um passado sombrio? O ativista de direitos humanos Juan Méndez refere-se ao dilema como “uma das escolhas mais dificeis que qualquer democracia tem que fazer”, contrariamente acrescenta que o desejo de reconcilia¢ao e construgao nacional levou muitas vezes a uma politica do “esquecer e perdoar”.** Da mesma forma outro comentador coloca a questao retoricamente do seguinte modo; ~ que corre o risco de trazer a guerra de volta a vida?” - ss cae ie aie . Previsivelmente, a maioria dos perpetradores de injusticas escolheria a primeira op¢ao, que frequentemente advogam em nome do futuro e da reconciliag4o nacional. Augusto Pinochet, por exemplo, tentou evitar a exposi¢ao publica do passado violento no qual ele era 28 Boraine A, Transitional Justice. In: Villa-Vicencio C. & Doxtader E. (eds), Pieces of the Puzzle. Keywords on Reconciliation and Transitional Justice. Cape Town, Institute for Justice and Reconciliation, 2004, pp. 67-72, 72. 29 Expressdes de: Huyse L., Young Democracies and the Choice Between Amnesty, Truth Commissions and Prosecutions. Leuven, Instituut Recht en Samenleving, 1998 pp. 11-12. 30 Ver, por exemplo: Zalaquett, Balancing Ethical Imperatives and Politica Constraints. Ver também: Kritz N. J., The Dilemmas of Transitional Justice, In; Krit N. J. (ed,), Transitional Justice. How Emerging Democracies Reckon with Forme Regimes. Volume I: General Considerations. Washington, United States Institute o Peace Press, 1995, pp. xix-xxx. 31 Méndez, In Defense of Transitional Justice, p. 1. 32 Biggar N., Making Peace or Doing Justice. Must We Choose? In: Biggs N. (ed.), Burying the Past. Making Peace and Doing Justice after Civil Conflic Washington D. C., Georgetown University Press, 2001, pp. 6-22, 10. 3 Hicrtria Memtria ¢ Violtncia de Extado Tempo ¢ justion rewponsivel adotando o discurso voluntarista cinico que subli importincia do progresso ¢ da construcio nacional. “Ambos og deve eaquecer”, afirmou ele devernos continaar a trabalhar para o Chile, repédlica, mio devemos olhar para tris. Nilo permitir que esse pais se torne uma nacio de classe, mas uma de segunda ou de primeira, se f Mas para isso é necessdrio ser inteligente, ser capaz, habilidade de esquecer.” De modo similar, F. W. De Klerk na Africa do Sul pés- afirmou que: “A melhor maneira de reconciliar seria dizer: y fechar © livro do passado, vamos esquecer realmente e comes olhar para o futuro”.* © esquecimento consciente e a subordinagio da retrospectiva a uma politica orientada pelo presente e pelo também tem sido defendida com mais sinceridade em x democracia ¢ da emancipagio por pessoas com trajetérias me questionaveis. A filésofa politica americana, Jean Bethke E ‘por exemplo, defende o recurso a um “esquecimento t situagdes nas quais nagdes ou grupos sio mantidos r passado oneroso ¢ se encontram em grande necessidade « do perdiio”. “As pessoas”, ela escreve, “gostam mu # afirmagio de Santayana que aqueles que nao conhecer estho condenados a repeti-la”, mas talvez o in eseepe ee seston poe da ver: O-cruzal o entre a historia odo paico ta0 . De fato, em todo o campo da justiga de transicao, as fronteiras antigamente bem guardadas que separavam historia ¢ justica se tornam vagas e permeaveis. Juristas tem comecado @ ponderar a possibilidade e conveniéncia dos tribunais de gu omo aulas de histéria que poderiam ensinar aos cidadaos valo 56 Para uma discussio detalhada, ver: De Baets A., Responsible History. York, Berghahn Books, 2009, Pp. 157-163. Ver também: Méndez J. E., The Righ Truth. In: Joyner C. C. (ed.), Reining in Impunity for International Crimes and Serious Violations of Fundamental Human Rights. Proceedings of the Siracusa Conference 17- 21 September 1998, Ramonville St-Agne, Editions Eres, 1998, 4 57 ‘Question of the impunity of Perpetrators of human rights violations (ci il and political)’, (Relatério final Preparado por Mr. Louis Joinet por conseguinte 4 decision 1996/19 da Sub-Comissao) {26 de Junho de 1997}. Em: http://wwis phchrch docd idoca.n 628Symbol%29 N D 22 EntOpendocument (acessado em 22 de julho de 2007), 46 i Berber Bevernage democraticos ou competéncias civicas,* e alguns historiadores aram a mobilizar sua disciplina em apoio a gestao de conflitos e de reconciliagao.* Ruti Teitel fala a respeito da emergéncia da “justiga de transi¢éo histérica” como uma pratica autonoma que pode ser colocada ao lado da justi¢a criminal, da justi¢a reparadora, da justiga administrativa e da justi¢a constitucional.” ou justiga, é preciso se perguntar o que faz (ou 0 qué spera qu Por que, exatamente, tantos paises em transicdo recentemente voltaram-se 4 verdade histérica a fim de alcangar a unidade nacional e a reconciliagao, ironicamente atribuindo propriedades benevolentes a ela que tanto se parecem com aquelas associadas ao esquecimento -coletivo? Por que, de fato, a “opcio da nao-agio” antigamente dominante, perdeu quase que completamente seu crédito como forma vidvel de lidar com passados onerosos, e por que quase ninguém acredita na op¢ao do esquecimento? 3 A fim de responder a tais perguntas, proponho analisar a —— 58 Ver, por exemplo: Osiel M., Mass Atrocity Collective Memory and the Law. London, Transaction Publishers, 2000. 59 Ver, por exemplo: Barkan E., History on the Line. Engaging History. Managing Conflict and Reconciliation. In: History Workshop Journal, (2005), 59, pp. 229-236. 60 Teitel, Transitional justice. Ver também: Teitel R. G., Transitional Historical Justice. In: Meyer L. H. (ed.), Justice in Time. Responding to Historical Injustice. Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 2004, pp- 209-222. 61 Roht-Arriaza, The new landscape of transitional justice, p. 8. Deve-se notar que 0 recente consenso sobre os beneficios da verdade e da lembranga nunca foi completado, Em 1990, durante a democratizacio da Polénia, 0 primeiro-ministro, Tadeusz Mazowiecki, defendeu uma amnésia politica, quando afirmou que nds tragamos uma grossa linha entre nds mesmos € 0 passado.” Citado em: Amstutz M. R, The Healing of Nations. The Promise and Limits of Political Forgiveness. Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, 2005, p. 19. No rescaldo da sangrenta - civil em Mogambique de 1976 a 1992, também o governo exortou as vitimas a perdoar e juecer. Grail L,, Pardon, Punishment, and Amnesia, Three African Post-Conflict Methods. In: Third World Quarterly, 25 (2004), 6, pp. 1117-1130. 47 a aaa Ulm ee cee 2. Meméria ¢ Violéncia de Estado: Tempo ¢ Justiga funcao da histéria, ou de um particular discurso histérico no « da justica de transigo a partir da perspectiva de uma politica tempo ~ “uma politica que leva as estruturas temporais da vide pratica como objetos especificos de sua intengio transformadora ( preservadora)”.” Argumento que 0 giro das comissdes da verds para a historia ¢ a recente preocupagio internacional em reparar . desculpar pelas injusticas histéricas ~ que observadores tém d como 0 surgimento de uma “moralidade neo-iluminista”,” uma “fe de expiacao fin de millénaire”,“ ou uma “politica do arrependi global® - deve ser visto primeiramente como uma reagio @ mudanca de regime de historicidade, para usar 0 conceito pelo historiador francés Francois Hartog.“* Enquanto se permanecer preso na dicotomia moder um passado “vivo” e um passado inferior ontologicamente, ou distante, a unica maneira razodvel para escapar do di justiga de transigao - dada a dificuldade de cair de volta no legal tradicional da justica criminal e dado o medo de uma ler divisionista - parece estar em uma combinagao de anistia e A énfase no tempo histérico irreversivel promove indiretamen atitude de deixar o passado para tras sempre que as vitimas parentes nio possam alcangar a justica imediatamente apés os serem cometidos. No entanto, vou reivindicar que uma apar “falha” da consciéncia moderna do tempo resultou em uma rela 62 Definigho de Peter Osborne, in: Osborne P,, The Politics and Avant-Garde, New York, Verso, 1995, p. xi, % —_ 63 Barkan E., Restitution and Amending Historical Injustices in Int Morality. In: Torey . (ed), Politics andthe Past. On Repairing Hi he ach ae auc mene au pp. 91-102, 1 Barkan Nations. Restituting and Negotiating Hi Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2000, pp. 329-332, 4 Soyinka W., The Burden of Memory, the Muse of Forgiveness. _ University Press, 1999, p. 90. 05 Olich J. K. & B., The Politics of Berber Revernage profundamente alterada com 0 Passado. A mudang¢a politica substancial relativa a crimes do passado durante as ultimas décadas poderia ser descrita como relacionada a uma perda de confianca no funcionamento do tempo ou como um “decadéncia temporal”, um pacificador automatico que traz 4 tona novas formas de “simile-perdao” a longo prazo.” Durante os tempos aureos da modernidade, o tempo no Ocidente foi experimentado geralmente como algo que estava tanto progredindocomo seapagando. Essa nocao foi notadamente expressada por Vladimir Jankélévitch quando afirmou que “a inovacao atualiza a novidade ao drenar a superabundancia de memorias, ao favorecer a deflacao da meméria”.* No contexto dessa consciéncia do tempo, a opgio da amnésia - como produto de um esquecimento passivo, da anistia ou de uma rigorosa destruigao dos registros ~ poderia ser defendida como uma forma de naturalismo, apenas confirmando 0 que o tempo faria por si s6 de qualquer maneira. Enquanto um transbordamento das recordagées poderia desacelerar ligeiramente o impeto do progresso, a maioria estava convencida que a direcdo do tempo nao poderia ser a € que ninguém poderia mover o tempo contra a corrente. A pessoa — meee ou rancorosa, portanto, foi muitas vezes considerada nao mais do que um “retardatario, arriscando ser varrido por sua propria época”, man enacensiannn sino. qe Dio: tw, Sane ea se se recusasse a ser contemporaneo seus contemporaneos, que se concentram no futuro.” A partir desta perspectiva, a injustica hist6rica ¢ suas vitimas dificilmente representavam um , politico a longo prazo. Escrevendo em 1967, Jankélévitch Por exemplo, ainda expressar com confianga a ideia de que: . G7 owas expressbes sto utlizadas por: Jankilévitch V., Forgiveness University of Chicago Press, 2005, 68 Ibid, p.14 9 Ibid. p.18. a ——__¥ Histéria, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justiga Cedo ou tarde, a pessoa rancorosa vai ceder A Onipoténcig — do tempo e ao peso dos anos acumulados, pois 9 tem Z € quase tio onipotente como a morte, e o tempo é mais tenaz do que a mais tenaz das vontades, pois é irresistfyel! {...] Nenhum ressentimento, nao importa o quao obstinado ele seja, pode conter essa massa de indiferenca 4 e desinteresse. Tudo aconselha esquecer! [...] A longo prazo 0 esquecimento oceanico vai submergir todo rancor debaixo de seu cinza nivelador, assim como as areias do _ deserto acabam por enterrar cidades mortas e civilizagoes defuntas, e assim como a acumulagao de séculos e milénios vai, ao final, envolver os crimes imperdoaveis e glérias imortais na imensidao do nada.” A figura do anacronismo vivo ainda é um metéfora popular para descrever o ressentimento de vitimas ou perpetradores, mas og legado de passados atrozes tornou-se um grande problema politico _ internacional. Muitas vezes somos confrontados com narrativas de antigas injusti¢as que reclamam reparacées ou alimentam conflitos contemporaneos até o ponto em que ninguém mais segue confiante de que o fardo da historia vai desaparecer por si sé. A relativamente recente perda de confian¢a no tempo como uma for¢a que cura to as feridas se torna clara quando nos contrastamos as anteriores citacées Ignatieff ilustra sua hipdtese descrevendo o modo como jornalistas q atuavam nas guerras dos Balcis eram muitas vezes confrontados co! historias de atrocidades que relacionavam o conflito contempo! _ com eventos pertencentes a 1941, 1841, ouaté mesmo 1441. Ele co! 70 Jankélévitch V., Forgiveness, pp. 16-17. Jankélévitch também tem alg diividas sobre a capacidade do tempo para curar todas as feridas: 0 tempo em § ‘escreve, nao é uma garantia permanente contra velhos ressentimentos, e 0 nem sempre desaparece sem protesto, 72 Ibid., p. 121. 50 Berber Bevernage que lugares como a antiga lugoslavia, Ruanda e Africa do Sul “nao vive em uma ordem serial do tempo, mas em um tempo simultaneo, no qual passado e presente sao contiguos, massas aglutinadas de fantasias, distor¢des, mitos e mentiras”, 4 No periodo entre as observacées de Jankélévitch e as de Ignatieff, algo realmente mudou no regime de historicidade que regula a articulagéo moderna entre passado, presente e futuro. Ignatieff expressa uma ideia que, em uma forma menos explicita, se tornou difundida: a de que o passado, em situacées de pés-conflito, fica de alguma forma preso no presente e se recusa a passar. Passado e presente ja nao parecem se separar em suas préprias forcas. “Aproximadamente desde o fim da Guerra Fria”, John Torpey comenta, “a distancia que normalmente nos separa do passado foi fortemente desafiada em favor de uma insisténcia de que o passado esta constante e urgentemente presente como parte de nossa experiéncia cotidiana.””* A disseminacao de um idioma que refere 4 natureza fantasmagorica ou espectral do passado - falar de “passados que assombram”’? “espectros da histéria”,’° ou de “fantasmas na mesa da democracia”” apenas para dar alguns exemplos - parecem sublinhar o sentimento generalizado de uma desconfortavel “presenca”. Os defensores de politicas de reparacio também enfatizam muitas vezes a persisténcia obstinada das injusticas passadas. O prémio Nobel nigeriano Wole Soyinka, por exemplo, corrobora suas conhecidas reivindica¢6es de reparacao para o trafico transatlantico de escravos através de uma leitura do passado africano como uma “continuidade diabélica” em que as antigas feitorias escrayocratas parecem nunca desaparecer.” Ignatieff chama assim 73 Ignatieff M., Articles of Faith, p. 121. 74 Torpey J., Making Whole What Has Been Smashed. On Reparations Politics. Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 2006, p. 19. 75 Rousso, The Haunting Past. 76 Fritzsche P., Specters of History. On Nostalgia, Exile, and Modernity. In: The American Historical Review, 106 (2001), 5, pp. 1587-1618. 77 Christie K. & Cribb R. (eds), Historical Injustice and Democratic Transition in Eastern Asia and Northern Europe. Ghosts at the Table of Democracy. London, Routledge, 2002, 78 Soyinka, The burden of memory, p. 20. 51 te e ,ssado doloroso nos assomibbry ameaca a atual onsciéneg , mudanga se deu podemos tomar reversivel” e “irrevogavel” do préprig rsivel quanto o irrevogavel sejam, . - experienciais que estéo presentes em todas as ie eciéncia historica, sua relagao mutavel pode nos ajudar s regimes de historicidade. O deelinio da a" to de uma “consciéncia de uma catastrofe tende a criar uma consciéncia histérica A “memoria da ofensa”, para tomar emprestado © de Primo Levi, tem aumentado continuamente desde o 4olocausto e agora desafia profundamente a moderna consciéneia 7% tempo." A crescente influéncia de grupos de vitimas organizados unde visibilidade, e dos “empreendedores da memoria”, em contestado o passado evaporavel irreversivel e dado lugar a uma : experiéncia que acentua de forma predominante 0 irrevogavel. ; © De forma similar, Lawrence Langer afirma qué @ memoria da atrocidade tende a desenvolver um “tempo duracional” que perturba a cronologia.” A oposi¢ao na orientagao temporal 79 Torpey, Making Whole What Has Been Smashed, p. 32. 80 Segundo Andreas Huyssen, por exemplo, a “obsessdo atual pela memoria” esti dinetamente relacionada 2 crise da estrutura da temporalidade que sustenta & crenca no progress ¢ na utopia. Huyssen A., Twilight Memories, Marking Time in@ Culture of Amnesia. New York, Routledge, 1995, p. 9. 8) Levi P.. The Drowned and the Saved, New York, Vintage Books, 198% £2 Spiegel G., Memory and History. Liturgical time and historical times Ine History and Theory, 41(2002), 2, pp. 149-162 63 Langer L. L., Admitting the Holocaust, Collected Essays, New York, Oxiord 52 ; Berber Bevernage entre “histéria” ¢ “meméria” nao foi observada apenas no contexto de memé6rias traumaticas. Um dos Primeiros a elaborar sobre essa ruptura foi Maurice Halbwachs, que contrastou o empreendimento histrico com © que ele chamou de.meméria coletiva.” Yosef Hayim Yerushalmi, no inicio dos anos 80, ela rou mais profundamente as diferengas entre historiografia € memoria (coletiva) ao afirmar que @ memoria, em contraste com a histéria, ndo busca a historicidade do passado, mas sua “eterna contemporaneidade”.® Uma postura semelhante pode ser encontrada no trabalho de Pierre Nora, que afirma que meméria e histéria sao fundamentalmente opostas uma a outra: “Com o aparecimento do rastro, da mediagao, da distancia, nao estamos no reino da verdadeira memoria, mas no da histéria [...] A memoria é um fendmeno perpetuamente real, um vinculo que nos liga ao presente eterno; a historia é uma representacio do passado.”* O que esta em jogo com a persisténcia ou com a “presenga sem agéncia”™” do passado irrevogavel é a clara divisio entre passado e presente que se encontra na raiz da consciéncia moderna do tempo e da historiografia moderna, como demonstraram Reinhart Koselleck e Michel de Certeau.™ O tempo em contextos pés-conflito muitas vezes nao ¢ mais conceitualizado como “um meio necessdrio de mudanga”; University Press, 1995. O historiador americano Peter Novick também se referiu as caracteristicas noldgicas da meméria para explicar a “cronologia incomum” da cmassete SSIS seams Unidos Novick P., The Holocaust in American life. New York, Mariner Books, 2000, p. 4. 84 Halbwachs M., On Collective Memory. Chicago, University of Chicago Press, 1992. © Yerwdhelon YA, Zator. Jevish Hitor d/)yrime Somes aa University of Washington Press, 2002, p. 86 Nora P., Between Memory and History. Les Lieux de Mémoire. In: Representations, 26 (1989), pp- 7-24, 8. A tendéncia da memoria em desafiar 0 raciocinio é descrita com mais ousadia por Richard Terdiman: ele afirma que “a meméria ¢ 0 passado presente”. Terdiman R., Present Past. Modernity and the Memory Crisis. Ithaca, Cornell University Press, 1993, p. 8, 87 Jelin E., State Repression and the Labors of Memory. Minneapolis, University of Minnesota Press, 2003, p. 5. ‘Columbia University Press, 2004. Ver também: De Certeau M., The | Hoenay, Mow Yorks Colaniha Universsy Pres 1988 Histéria, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justica sua passagem ja nao parece produzir uma distancia entre pasgad § presente." Para a modernidade que, como defende Jiirgen Haberm ., define a si mesma por sua orientagdo para 0 novo e necessita g, rupturas continuamente renovadas com o passado para disting si mesma como 0 periodo mais recente de cada época anterior, isso, bastante ameacador.” Como Hans Blumenberg ressalta, a pr da modernidade de ser capaz de realizar essa ruptura esta longe d ser auto-evidente, pois entra em conflito com a realidade da hi onde raramente pode-se comegar a partir de um ponto zero,”! Argumento que é precisamente neste contexto ambiguo. 1, uma fragil modernidade e de uma crenga vacilante na possibilidad de uma demarca¢ao rigorosa de passado e presente que precis situar esta peculiar virada para a histéria nas comiss6es da verd Essa virada a historia, afirmo, deve invocar primeiramente a nogio irreversibilidade e restaurar ou reforcar a creng¢a caracteristicamen moderna em uma ruptura entre passado e presente que se ameacada por uma memoria que se recusa a deixar 0 passado elas primeiramente se voltam a “hist6ria” para pacificar a incé forca da “meméria”. c a. A politica de transicéo é muitas vezes interpretada co a busca de um equilfbrio adequado entre muita meméria e n esquecimento,”* mas minha tese éa de que o campo atual da justige transi¢ao é uma arena para dois modos conflitantes de recordac: 89 Gumbrecht H. U., Presence Achieved in Language. In: History and TI (2006) 3, pp. 317-327, 323, 90 Habermas J., Modernity’s Consciousness of Time and Its Need Reassurance, In: The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge (Mass.), } Press, 1987, pp. 1-22, 5-6, 91 Hans Blumenberg, citado em: Habermas, Modernity’s p.7. 92 Ver, por exemplo: Minow M,, Between Vengeance and Forg after Genocide and Mass Violence, Boston, Beacon Press, 1998, Utilizarei o termo lembranga como um conceito “neutro” que se ria” quanto a “histéria” como diferentes maneiras de lidar com Berber Bevernage interpreto tal mudanga da experiéncia do passado como patologia fantasmagorismo ou distor¢ao de um tempo histérico “real” pela acao de uma memoria “militante”. Em vez disso, posiciono memoria e historia no contexto de um tempo modernista que nao é um dado natural, mas um artefato politico e cultural; um artefato que, como Habermas observa, esta em constante necessidade de autoafirmacao.™ (de buscar averdadeedegerar sentido. Em relacdo a uma modernidade ameacada pelo irrevogavel, a histéria é util para uma propriedade que, como assinala Mark Phillips, muitas vezes é negligenciada: a regulacao da “distancia” (temporal).%* Nossa relacao com o passado se baseia em produzir e manipular distancia, por mais reduzida ou estendida que for. Essa distancia entre passado e presente, observa Philips, nao é simplesmente dada, mas ativamente construida em uma ampla gama de “construgées de distancia” que envolvem implicag6es ideolégicas e afetivas, suposic6es cognitivas e tragos formais. Esse entendimento — de que o distanciamento entre passado e presente nao resulta simplesmente da passagem do tempo, mas € algo que deve ser ativamente perseguido — sustenta uma das proposi¢6es centrais deste trabalho. Argumentarei que, em vez de um quadro analitico neutro, a historia pode ser performativa: uso “constatativo” da linguagem), (o chamado uso “performativo” da linguagem).”° Para compreender por que esse “distanciamento” 94 Habermas, Modernity’ Consciousness of Time. 95 Phillips M. S., Distance and Historical Representation. In: History Workshop Journal, 57 (2004), pp. 123-141. Phillips observa que 0 conceito de distancia é tao central na pratica da historia que dificilmente se distingue da idéia de historia por si mesma. 96 A distingéo entre enunciagoes constativas e enunciagdes performativas foi introduzida por J. L. Austin. Austin J, L., How to do Things with Words, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1962. 55 Histéria, Meméria e Violéncia de Estado: Tempo e Justi¢a performativo é importante para os paises que atravessam 1 preciso dar uma olhada na estreita relacao entre politica do tempo « projeto de construgao nacional. Benedict Anderson argumenta “génese obscura” das nacdes modernas nao pode ser entendida plenamente em conta 0 desenvolvimento de um conceito especifj de “simultaneidade”. Tal “simultaneidade cruzada” que é medid relégio ¢ pelo calendério vem sendo construfda j4 ha muito de acordo com Anderson, se encontra em contraste com a conce medieval crista de uma “simultaneidade ao longo do tempo”, em q passado e futuro se fundiram em um presente instantaneo por me do pressagio divino e de sua realizacao.” A ideia da nagao modern como uma comunidade sdlida movendo-se através da histéria é j andlogo preciso da ideia de um “organismo sociolégico que se m segundo o calendario através de um tempo homogéneo e Como expressa Anderson: Um americano nunca conhecerd, nem saberd os nom de mais de um punhado de um de seus 240,00 [sic] concidadaos americanos. Ele nao tem ideia eles estao fazendo em nenhum momento. Mas ele cor plenamente em suas atividades constantes, andnims simultaneas.* A construcao nacional poderia entao ser interpretada c sustentada na complexa criagdo de uma ideia de simultanei temporal, £, no entanto, exatamente esse projeto de simulta que é ameagado pelas memérias abundantes de passados Nessa perspectiva, a maior ameaca que essas memérias repr nao provém da evocacao de passados que geram divisées, senao, vimos, do fato de que tendem a experimentar esse passado dit como irrevogivel, e que resistem a deix4-lo passar. As sociedades _ devem lidar com passados irrevogaveis que provocam divi _ tentam criar simultaneidade nacional se voltam, entao, para com a finalidade de produzir um senso de irreve i de restabelecer ou impor a disjuncio modernista entre —— 7 een B, mes ¥ Communit. Reflections on the Origin 98 Ibid., p, 26. 56 Berber Bevernage presente. Embora a lembranca de um passado divisivo nunca conduza a criagao de uma experiéncia nacional de simultaneidade, esse passado pode ser util se for coletivamente lembrado como algo “distante” ow separado do presente. No entanto, a contribuigéo da historia para 0 projeto de simultaneidade tem efeitos colaterais: muitas vezes, a construgao da simultaneidade nacional se da a custa da exclusao de pessoas que nao podem ou nao querem deixar o passado “para tras”. Tomando emprestado um termo do antropélogo Johannes Fabian, argumentarei que 0 discurso sobre o tempo irreversivel da histéria 4s vezes tende a se tornar uma pratica “alocrénica”: uma pratica que localiza (simbolicamente) em outro tempo ou trata como nao-simultaneo todo aquele que se recusa a participar do processo de constru¢ao nacional ou de reconciliagao.” Organizagao do livro Este livro consiste em duas partes, cada uma subdividida capitulos diferentes. Na primeira parte fixei-me em um duplo objetivo. Primeiro, tento demonstrar que a no¢ao de irrevogabilidade pode estar relacionada de forma relevante com as experiéncias populares de historicidade e que essa nogao tem grande relevancia ética. Em segundo lugar, exponho minhas afirmagées sobre as implicag6es éticas dos discursos sobre a histéria eo t historico (que eu formulei em termos mais abstratos acima) analisando sua performatividade. Embora essa performatividade possa ser benigna e muitas vezes seja experimentada como uma necessidade, ela nunca ¢ no contexto mplo iransicional. Primeiramente me concentro na situagio de justica transicional na Argentina; em seguida, analiso o caso da Arica do Sul Ho Fabian J. Time and the Other. How Anthropology Makes its Object. Ne cam ven. 1983.

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