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A presente obra suntos da atual conceitos no ambito Humanos, do D Adolescente, do Direito Ci as Deficientes, dentre tro Autista. Enfrenta-se, ainda, outras propostas: a Teoria Queer ea denomi leologia de Género”, Mantém-se, ainda, normalidade de certas ocorréncias. As pesquisas apresentadas séo substanciais e revelam novas pro- cussbes da atualidade, Seguem, ainda, contribu de reconhecidos tedricos: Professores Doutores Juan Cianci Zambrano (Universidade de Navarra, Es 40 interpretativa da chamada “ordem mundi quanto aos precedentes culturais dos direi Desembargador Rogét Assim, temos alargados horizontes argument: tanciam mapeamentos compreensao do Direito. indo olhares & EDO Se Cy CUD Uti Se TT Laiky ee et etd TradutoradasColaboraces Centificas dos ProfssoresDoutores da Universidade de Navar ‘Autor das tematicas desenvoidas nos capi VULNERABILIDADES Uae Peed sR Sy CC d SCL akc a | ee) ae) Cen ey luce Aparecida Souza e Silva Professor Msc. a aL eee 340 Amini Haddad Campos 4 ‘Acesso @ internet o televisio e posse de em: , Acesso em: 29 nov. 2016. NACHADO, Jorge Alberto S. Alviso em rede e conexdes identtrias: novas perspetvas para rrovimentos soci, Sociologas, Poo Agr, v.18, n. 9, p. 248-285, juldez, 2007. Quadhmes. Capitulo IX PERSPECTIVA DE GENERO EM ANALISE: A CULTURA DO ESTUPRO E A REALIDADE DO ESTUPRO COMO EXERCiCIO REGULAR DE UM DIREITO %,NA CULTURA JUR{DICA DO BRASIL Redagdo Final: Amini Haddad Campos isadora: Amanda dos Santos Rodrigues Helena, Impressées do corpo feminina: reficagdo e representacéo da mulher na “CONGRESSO GE CIENCIAS DA COMUNICAGAO NA REGIAO SUL, 3m. Santa Cruz do Sut: Intercom, 2013 O presente trabalho tem por escopo analisar a histérica pos: idade juridica de o cénjuge figurar como agente ativo di contra a prépria esposa na relagdo conjugal. A partir de 'gréfica realizada por método de abordagem indutivo, obje- rspectiva de género, examinar aspectos das divergénci is is envolvendo o crime de estupro no ambito do matrim6nio, partindo do pressuposto de que apés alterag6es ao art. 213 do Cédigo Penal advindas da Lei 12.015/2009 0 estupro passou a ser crime comum. Para isso, inicialmente apresenta-se breve elucidagdo do tema partindo da doutrina cléssica, encabecada por Nelson Hungria, para em -8e escorco histérico do delito e estudo dos institutos de lentes ao tema, como o casamento e o débito conjugal. No segundo capitulo, por seu turmo, serio vistos os debates presentes na dou. trina patria, bem como jurisprudéncias eivadas de reprodugao da discrimi- © ago e dos esteredtipos socialmente construidos pela sociedade patriarcal as do delito. Sera sucit fe da obra Estup: identidade feminina nos anincios publctaios, 7 de apontamento de Tania Hof. Contemporé- 175, 2009, Disponivel em: . Acesso em: 28 se 0 espeticulo di Tinea, Rio de Janeio, v. 5, 46-57, jan.jl. 2007, Serestral. ‘Acesso em: 26 nov, 2016, WOLF, Naomi, © mito da beleza, Rio de Janeiro: Rocco, 1992. YIN, Robert. K. Estudo de caso: Planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001 rime ou Cortesia, para fins de ilustrago da presenga arraigada de esterestipos nos julgamentos nacionais do delito de estupro. O terceiro capitulo, por fim, examinaré a préxis juridi- cia contra a mulher e a evolu- 40 legislativa da protegdo a mulher na sociedade conjugal. waz ‘Amini Haddad Campos PALAVRAS-CHAVE Estupro. Estupro Marital. Violéncia Sexual contra @ Mulhe Violéncia de Género. ABSTRACT historical legal ‘The present work bas the scope to analyze the historical ‘bility of the husband to appear as active agent of the crime of rape eA, guainst the wie in the conjugal relationship. From a bibliographic reearch cried out by an inductive approach, is simed, fom # gend examine aspect Sees invotving the crime of rape within the context of mari tssuming het, after changes to art 213 ofthe Penal Code arising from Law no. 12.015/2009, rape became a common crime. In a do ae fi prsent a brief elucidation ofthe theme, stating withthe classical doctrine, headed by Nelson Hungria, following by historical fore ening of he crime and study of the institutes of Civil Law related tothe theme, such a= Tariage and marital deb. J the second chapter, int tum, the preset in homeland doctrine wil ly ae of reproduction of the discrimination and of the serotypes cecal constructed by the paarcal society onthe women ict of he ¢ contents of the work Rape: Courte Tuan conoidered, forthe purpose of ilustrating the ingrained presence of stereotypes in the national trials of rape. The third chapter ceil txamine the specific legal praxis of rape commited against the wife, Sapecially the instuional violence practiced by the penal system. Last, ‘ll be seen international guidelines to combat violence against wor 1 a ¥f women in the conjugal society. the legislative evolution of the protection of KEYWORDS Rape. Marital Rape. Violence Against Women. Gender Violence. 1. Introdugdo; 2. A Quem é Dado o Direito de Estuprar? 2.1. As Vo licionais de Nelson Hungria e a Naturalizagdo da Violénei Be Trae ihers Legiimegdo do Estupro? 22. Caracerizagdo do 2.2.1. Na antiguidade; 2.2.2. 2.2.3, No Brasil Contempor 1009; 2.3. Exercicio Regular de Ur Sumério: Vulnerabilidades & Direito 38 Direito ou Abuso? 2.3.1. Casamento: Conceito; 2.3.2. Direitos e De- veres Entre os Cénjuges; 2.3.3. Débito Conjugal: Dever Legal? 3. 0 Estupro no Mapeamento da Doutrina Nacional; 3.1. Os Debates entre as Doutrinas e a Legitimagdo do Estupro Marital; 3.2. A Jurisprudén- cia que Fomenta o Siléncio das Mulheres; 3.3. Crime ou Cortesia? A Obra que Fixou Novos Olhares; 4. Diélogos Piiblicos ¢ a Mudanga de Paradigma; 4.1. Histérico da Jurisprudéncia sobre o Estupro na Rela- $40 Marital; 4.2. Diretrizes Internacionais de Combate & Violéncia contra as Mulheres; 4.3. A Evolucdo Legislativa & Protegio das Mulhe- ‘res na Sociedade Conjugal; 5. Consideracdes Finais; 6. Referéncias. 1 INTRODUCAO. A temitica do presente trabalho cientifico de pesquisa alcangou destaque em monografia de conclusio de curso, sob a mesma orientagao profissional. Destarte, partes distintas esto inseridas no presente, contudo, sob a mesma ética e pardmetro de andlise, qual seja: a possibilidade juri. da configurago do crime de estupro na constincia de relagdes con- is. Questiona-se: Poderia 0 homem figurar como agente ativo do ito de violéncia sexual quando a ofendida é a propria esposa? A pergunta nfo esta destituida de conteddo. A realidade histéri- ca precisa ser exposta & abordagem critica. Afinal, isso seria casamento? ; Logicamente, nao se pode legitimar a violéncia, exceto em con- digdes excepcionais, conforme parimetro do eddigo penal, quanto as excludentes de ilicitude (legitima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento de dever legal). Contudo, mesmo totalmente destoante da diretriz que funda- menta a exclusio da antijuridicidade no ambito penal, veremos que, his- toricamente, firmou-se “entendimento da impossibilidade do marido res- ponder por violéncia sexual de sua prépria mulh Essa realidade est4 envolta em outra estatistica bastante cons- ‘trangedora: o estigma da violéncia contra a mulher como fenémeno mul- tifacetario, de elevada complexidade. A variedade cultural de sua permissio no deixa divida, sa Amini Haddad Campos mae Aint added Campos iversas sdo as formas pelas quais a violagdo pode ocorrer fren ioléncia fisica, psicol6gica, sexual, patrimonial e moral das mais diversas, sejam mediatas ou imediatas. A violéncia doméstica e familiar, por sua vez, assume um pap. de destaque, notadamente pelo contexto em que esta inserida: 0 nti das relagdes conjugais. A p do matriménio tomou-se, a: como também socialmente int: Ainda, no que tange ao sistema judicial penal e ao Estado, em raziio da existéncia de um viés tendencialmente contaminado e direciona do a garantir a supremacia masculina, observar-se-4 a incapacidade para reconhecer a existéncia de tais delitos, bem como de examinar a conduta ¢, finalmente, estabelecer a respectiva punigdo ao cOnjuge agressor. ‘Neste diapasio, esta pesquisa foi estruturada em trés capitulos. Preliminarmente, no primeiro capitulo seré investigada a pro mitica da polémica doutrinéria tradicional, encabegada por Nelson Hungria, cujo referencial tedrico serviu para 0 posterior posicionamento de grandes juristas. Uma vez que fundado no Direito Canénic © casamento era “ordenado A procriagdo da prole” Apés, realizar-se-4 exame pormenorizado da evolugo do cor ceito de estupro no ordenamento juridico patrio, especialmente apés as significativas transformagdes trazidas pelo advento da Lei 12.015/2009, a sempre norteado pelos principios penais e constitucionais aplicaveis — especialmente o principio da dignidade da pessoa humana e seu desdo- bramento em dignidade sexual. Feitas tais consideragdes, serdo expostos e investigados os insti- tutos atinentes ao entendimento dado ao estupro quando da sua ocorrén- cia no seio do matriménio. Entrando na seara do Direito de Familia, bus car-se-A a origem da concepeao de que o homem esta a exercer um direito quando exige de sua parceira, mediante violéncia, a relag&o sexual. Serio estudados, no momento, 0 casamento, os direitos e deveres entre os c6n- Juges e 0 chamado débito conjugal. CODIGO DE DIREITO CANONICO. Promulgado por Jotio Paulo Il. Citado de acordo com a tradugdo portuguesa no site oficial do Vaticano: . Acesso em: 26 jul. 2017. Q Vulnerabilidades & Direito 345 ———_aiinerabilidades @Direito 385. No segundo capitulo far-se-A andlise do tema exposto até ent&o em conjunto com estudo de excertos de jurisprudéncias nacionais sobre o estupro com o intuito de indicar, sob a perspectiva de género, suas ten- déncias interpretativas e fundamentos predominantes. Ainda, na oportunidade, seré apreciado o tratamento juridico conferido ao estupro marital por demais doutrinadores, visando a exposi- go dos debates que, por sua divergéncia, originaram a polémica doutri- néria atinente ao tema. Outrossim, para fins de elucidagao histérica, sera estudada a obra “Estupro: Crime ou Cortesia?”, resultado de pesquisa que, através de uma abordagem sociojuridica de género, analisou 50 processos judiciais arquivados © 101 acérdios publicados de estupro nas cinco regides do Brasil, de 1985 a 1994. A praxis juridica caracteristica do julgamento dos crimes de estupro restard, assim, evidenciada ao leitor. Por derradeiro, o capitulo trés ser o cerne do Presente trabalho, pois nele sero expostas © questionadas embleméticas jurisprudéncias nacionais de tribunais estaduais sobre 0 estupro na relacao marital, para, em sequéncia, permitir a0 leitor o confronto de tais realidades com as diretrizes internacionais de combate a violéncia contra a mulher, proveni- entes de tratados ratificados pelo Brasil, bem como com a evolucao legis- iva ~ civil ¢ penal ~ nacional da protego as mulheres na esfera das relagdes conjugais. Para a consecugio dos objetivos deste trabalho, optou-se pela pesquisa bibliogréfica, consubstanciada no auxilio de livros, diplomas normativos, artigos cientificos, dissertages e teses. Ainda, em busca de eficaz captagao do entendimento atual do Po- der Judicidrio nacional, serd realizada a pesquisa através de andlise de casos. concretos que foram objeto de julzamento pelos Tribunais Superiores. Assim, chegar-se-é a uma pormenorizada investigaco, sobretu- do doutrindria e jurisprudencial, acerca do tema da violéncia sexual con- tra a mulher nas relagdes conjugais. 2 A QUEM E DADO O DIREITO DE ESTUPRAR? Este capitulo apresentaré a evolugdo da doutrina patria e das obrigagées presentes na normatizagdo juridica, referentes as questdes conjugais entre 0 casal, sobretudo, as TelacSes sexuais forgadas pelos maridos contra suas esposas, se isto configura o delito de estupro, presen- no art, 213 do Cédigo Penal. sapiens arramnne 36 ‘Amini Haddad Campos ery 2.1 As Vozes Tradicionais de Nelson Hungria e a Naturalizagao entendimento foi defendido pela doutrina nacional tradicional ¢, invaria- da Violéncia Contra a Mulher: Legitimagao do Estupro? velmente, originava polémicas entre os juristas. Dentre 05 doutrinadores tradicionais adeptos dessa corrente, destaca-se Nelson Hungria, também conhecido pelo epiteto de “Principe dos Penalistas Brasileiros”, um dos maiores estudiosos do direito penal patrio. A violéncia contra a mulher é um fendmeno universal, multi mensional ¢ democraticamente distribuido que se arrasta silenciosament no tempo, presente em todas as civilizagdes. De acordo com a Declarag sobre a eliminagdo da violéncia contra as mulheres: Além de participar da comissdo revisora do anteprojeto do Cé- digo Penal brasileiro em vigéncia atualmente, sua expressiva contribuigao como jurista deu-se nfo apenas através de caracteristicos votos enfiticos ¢ precisos, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, no periodo de 1951 a 1961, os quais so, até 0 momento, utilizados como referéncia por profissionais do Direito, mas, sobretudo, por meio de sua vasta produgao doutrindria, dentre as quais se sobressai a sua obra-prima “Comenténios a0 Cédigo Penal”, publicada em 19545 Assim como nos demais capitulos da obra, o capitulo destinado aos Crimes Contra a Liberdade Sexual foi produzido com ampla investi- gasdo do Direito Comparado, bem como apoio de bibliografias de di penal de diversos paises. Dessa forma, Hungria comentou cada delito com inquestionavel propriedade e dominio. Ao comentar 0 delito de estupro, cuja redagdo & época consistia no fato de o agente “constranger mulher a conjungdo carnal, mediante violéncia ou grave ameaga™, o autor trazia a baila a questao da divida existente na doutrina corrente acerca da possibilidade de o marido figurar como agente ativo do delito. Para 0 estudioso, era questionavel a possibilidade de o marido Sef, Ou ndo, considerado réu de estupro, quando, mediante violéncia, constrange a esposa 4 prestago sexual. Discorreu, entio, que a solusao Justa era no sentido negativo, pois o estupro pressupunha cépula ilicita (fora do casamento)’. Ainda, justificou que a cépula intra matrimonium era reeiproco dever dos cénjuges. O marido violentador, salvo excesso inescusdvel, ficaria isento até mesmo da pena correspondente a violéncia fisica em si * FUCK, Luciano Felicio. Meméria jurisprudencial: ministro Nelson Hungria. Brasi- lia: Supremo Tribunal Federal, 2012. Disponivel em: , ‘Acesso em: 07 jan, 2018. BRASIL. Cédigo Penal. Decreto-Lei 2.848, de 07 vel em: . Acesso em: Se 10. Rio de Janeiro. Dispont- /Del2848.him>. Acesso em: , René Ariel. Comentérios ao Cédigo Penal. 7. ed, Rio 2. Adages cause as Amini Haddad Campos mesma, porquanto era licita a violéncia necesséria para 0 exercicio regu- lar de um direito®. entendimento sustentado por Hungria serviu de base aos d mais doutrinadores, que a adaptavam adicionando ou subtraindo requis tos ou justificativas para a excludente de exercicio regular de direito. Destarte, para o autor, a ilicitude da violéncia era afastada por ser a cépula realizada sob o manto do lago conjugal e ser 0 lago conjugal a origem de um dever (conhecido como “débito conjugal”) inafastvel de prestagdo sexual, ou seja, a relagdo sexual era um dever inerente ¢ inarre- davel do contrato que origina o casamento, restando a mulher nada sendo reconhecé-lo e presté-lo. ‘Hungria influenciou fortemente a doutrina brasileira com a pre- gacdo dessa ideia, como, por exemplo, Bento de Faria, que na obra Cédi- go penal brasileiro comentado: parte especial, de 1959, afirmava que, fem sede de oSpula natural, o marido nio seria responsabilizado por con- duzir a mulher & conjuncdo carnal forgada’. Entretanto, fez a ressalva que essa imunidade penal no alcan- aria extremos, legitimando .cias que resultassem em ofensas pro- positais contra a integridade fisica ou a satide da mulher"*, ‘Ainda elencou que igualmente deveria incidir nas penas do es- tupro o marido que, nitidamente, realizasse atos de “libertinagem, de depravagio e de sodomia” com o fito de aleangar a cépula sem autoriza- go da mulher"'. Todavia, ao final do século XX este entendimento comegou a ser questionado com mais afinco pela doutrina e tese contréria foi apre- sentada. Luiza Nagib Eluf defendeu ser inadmissivel a violéncia praticada pelo marido para obter qualquer relacionamento sexual no ambito do casamento!”, Para a autora, nao se exige que a recusa da mulher esteja vineu- Jada a um motivo relevante. A mera auséncia de vontade é perfeitamente suficiente para que o marido tenha o dever de respeitar essa abstenga a Esta visio doutrinaria, mais atual, ser4 profundamente esmiugada adiante, © HUNGRIA, Nélson; DOTTI, René Ariel. Comentarios ao Cédigo Penal. 7. e4. Rio de Janeiro: Gz, 2016. v. 1, 1.2 % FARIA, Bento de. Cédigo penal brasileiro comentado: parte especial. Rio de Jani 1: Distibuidora Record, 1959. v. 6 "dem. 4 Tem. 1” ELUF, Luiza Nagib. Crime contra os costumes ¢ assédio sexual: doutrina e juris prudertia, Sto Paulo: Juridica Brasileira Ltda, 1998. 2 Idem. Vulnerabilidades & Direito 349 porém € notavel a alteragdo de paradigma, na qual, antes se admitia o uso la forga pelo marido para obter satisfacdo sexual e hoje sendo um enter dimento inaceitavel e obviamente nocivo, ™ 2.2 Caracterizagao do Estupro: Consideragdes Hist6ricas Primeiramente, impende fazer ili Lo a a uma breve anélise da evolu histérica do conceito de estupro na legislagao nacional, para ea ento apresentar o conceito desta fi i i cntlo gpresentar 0 conceito desta figura tipi como dispostaatualmente 2.2.1 Naantiguidade Na Antiguidade, o estupro j y Na . JA era objeto de penas austeras. punigdo aplicada ao estuprador pela maioria das civilizagdes antigas Sas sanvlo corpora, sendo a pena de morte aqulaapicada po excelencia mos pelo Direito Germanico, o qual condici 0 suragdo do delito a virgindade da ofendida's,* ronan s con No Direito Mesopotamico, mediante Cédi 0 . igo de Hamurabi, or- denamentojuridico com duras penas aos infratores da lei da soviedade ae o réu pelo crime de estupro com a morte, como pode ser observado pelo teor do seu art. 130: “Se alguém viola a 7 . 130: viola que ainda nao conkeceu homem ¢ vive na casa patcrna ¢ ton comnen com ela e é surpreendido, este homem deverd ser morto, a rr irs » ; jorto, @ mulher iré 0 Direito Hebraico, por sua ve influénci Ol ico, por sua vez, recebeu influéncias do Direi Mesopotimico e estabeleciareprimenda pecuniaria seguida da brigagdo © estuprador casar-se com a ofendida'®. Durante o Império Romano, segundo Karl-Wilhelm Weeber, o estupro era usado como uma relevant maneira de atuago no periodo de guerras: Além disso, cabe lembrar disso, brar que 0 estupro era uma relevante forma seuaco rate o periods de guerat E beastanslembrik foe oe 2.C., quando Roma foi conquistada pelos gauleses e varias mu. “ FALCON Y TELLA, Maria José; a CON ¥ TELLA, Feman Finalidade da Sangio: Existe um to de casti I re Caauraanie SDI Avena. Sio Paulo: Revista dos’ nals, 2008. Taiueto de Cuda de Mic HINET. Cédigo de Hamurabi. Disponivel em: . Acesso em: 08 jan. 2018, p. |. Comentérios 20 Cédigo Penal. 7. ed. Rio 6.ed. Sto ™ LACERDA, Marina Basso. Vulnerabilidades & Direito 351 Por ser colénia de Portu; i . igal, o Brasil era regi mages (Afonsinat, Manuelinas ¢ Filipinas) em Sale aad Cons. s Diocesianas, ilipi : tuisaes As Ordenagées Filipinas foram as de maior Periodos coloniais so sabi sua cara - io sabidamente reconhecidos a 7 or teristica opressio. Além disso, a sociedade colonial era estruturalmente escravocrata e extremamente patriarcal. a Para Leticia Ferreira da Sil i lva e Maria Au rlasto ia mulheres, “a mentalidade seguiu os pare ae a inferior idade, pose de pecados ¢ causa da perdigéo”™, Dare’ Y Ribei 5 pe 10, aponta que a mulher pertencia ao “sexo imbecil”™ Essa questo nos remete & tradigto ibé a 4 e & tradicao ibérica, ransposia de Por fon ee at ee, pn ee te pai, durante quase 800 anos, consideravam a mar um sr hfe sexo fominino fasia parte do imbeclitus sexus, ou sexo indo. cil. Uma eaiegoria & ta cil Une eaiegoria @ qual perienciam mulheres, eriangas e docntes Convém destacar, também, arin da, estacar, , consoante Maris ave 0 etd Covonizador sobre a mulher era pautado cnt interest rot 1ento da coléniz et, 2, : ~ tados ao povoam mento da coldia (a mscigenago € consequncia disso) ¢ A mulher a terra eram metéforas do sé oragto sno Sel nts tbl coe eos Se aoe ‘eproduo, como propredades, tendo as mulheres sua Shula sae ido nose Pla lesa anh oe li 2 4s indias, mas também em relagd ds mestigas ds braneas.O controle, os estimulos Cos meron dene ds Imulheres foram relacionados ao seu papel de reprodutora de bragose de rmissora de valores em funcdo do interesse de colonizagdo™™ ® SILVA, Leticia Ferreira SILVA, La da; CASTILHO, Maria Augusta de, Brasil Colonial: As essex. Cords Biers na hist, uo P12 ed 2194216125 Aces eo O8 an 2018 OT RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: : Creme 0 Peve Bras: A fomaclo& o sido do Bras. Si Pao privado. patriarcalismo, pat nna formag$o do Brasil, 201 Universidade Catéiica 332 Amini Haddad Campos i Destarte, para Thomas Bonnici, na pritica a mulher foi dupla- ituacae “[...] subjugagao da mulher Jonizada, situag3o representada pela “/...] subjugagdo da mi ra colinias, objeto do poder imperial em geral e da opressdo patriarcal colonial e doméstica ; creme“ Quanto a0 delito de estupro, assim estava previsto no Titulo XVIII, do Livro V, das Ordenagées Filipinas (também conhecido como Cédigo Filipino): Do que dorme per forga com qualquer mulher, ou trava della, ow a le- "er suai vontade. Todo homem, de qualquer estado e condigdo que 1g joresamente dormir com quaguer mater posto qu sae dinheiro por seu corpo, ou seja escrava, morra por ello. [. ‘he 1. posto que o forgador depois do maleficio feito case com a mulher Jorcada e ainda que o casamento seja feito per vontade della, ndo se 74 relevado da dita pena, mas morrerd, assim como se com ella nao houvesse casado*, i idade das ‘A punigao ao estuprador, em consondncia com a seve demais punigdes dispostas nas Ordenagdes, era a pena de more, Essa definigdo perdurou até 1830, j4 no periodo imperial, enquanto as Ordena- g6es Filipinas vigeram. Brasil, sendo ele 0 responsivel pela primeira classficagio do delito de estupro na legislago nacional, que veio disposta no capitulo II ~ Dos crimes contra a seguranga da honra, em sua sego I, art. 222. Art. 222. Ter copula carnal por meio de violéncia, ou ameagas, com rualquer mulher honesta. Penas ~ de prisdo por trés a daze anos, e de dotar a ofendida Se a violentada for prostituta 7 Penas ~ de prisdo por um més a dois ano: it iy é havia distin- Da leitura da figura tipica é possivel observar que 0 do sueito passivo: “mulher honesta” e “prostituta", com lapsos tem ais das penas bem distintos. Além disso, nfo estava presente a indica- Po de quals eram os requisitos que levariam & qualificagiio ou desqualif- cago de honestidade. BS pORNIGL Taoway, Toows © rica Merivia fesinsta: cones ¢ tendncas pow Soret “ > URNS InERiCa, Clg Pup, Ds 05061525. Mad, Die em: Sn ee selsoptguasiplighinyAcrem Oper 18 roy Conte La e2 1850, Ro de lates, Dope em BRAS ya plchakto gov be Gch OSes /LIM/LIM-16-12-1830htm>. Acesso asa ‘Nesse mesmo ano foi criado 0 Cédigo Criminal do Império do Vulnerabilidades & Direito 333 Po Vulnerailidades Dito 388 Finalmente, no Cédigo Penal Republicano, de 1890, o estupro estava contido nos arts. 268 e 269. Manteve-se a distingdio do sujeito pas- p sivo (“mulher honesta” e “prostituta ou publica”), substituindo-se a pena de morte por pena de reclusao: Art. 268. Estuprar mulher virgem ou ndo, mas honesta: Pena ~ de prisdo celular por um a seis anos. § 1° Sia estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena ~ de prisdo celular por seis meses a dois anos. § 2° Sio crime for praticado com 0 concurso de duas ou mais pessoas, 4 pena seré aumentada da quarta parte. Art 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com vio~ léncia de uma mulher, seja virgem ou néo. Por violencia entende-se no s6 0 emprego da fora physica, como o de metas gue privaren a male de sas facades pacha, assim da sibiidade de resistir e defender-se, como sejam 0 hypnotismo, o Caines Scher Con geass 0 , Mary Del Priore arremata constatando que na Colonia, no Impé- rio ¢ até nos primérdios da Republica, a fungo juridica da mulher era somente ser subserviente ao marido. Do mesmo modo que era dono da fazenda e dos escravos, 0 homem era dono da mulher. Se ela no 0 obe- decia, softia as sangdes™, Finalmente, 0 terceiro ¢ ultimo Cédigo Penal brasileiro (CP) foi sancionado em 07.12.1940, sendo o Decreto-Lei 2.848, entrando em vigor no dia 01.01.1942, durante o periodo denominado como Estado Novo. Segundo Iveite Senise Ferreira, o CP de 1940 caracterizou-se por sua perspectiva ecléti ] 0 legislador procurou combinar os principios da Escola Cl com 0 que péde aproveitar de melhor da Escola Positiva, principalmente as medidas de seguranca para os casos de periculesidade do agent A seguinte previstio era dada ao delito de estupro, elencado no art, 213, do Capitulo I (“Crimes contra a liberdade sexual”), do Titulo VI (Crimes contra os costumes”): “Constranger mulher & conjungdo carnal, * BRASIL. Cédigo Penal. Decreto 847, de 11.10.1890. Rio de Janeiro. Disponivel em: . Acesso em: 09 Jan. 2018, DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condigio feminina, matemidades e mentalida- des no Brasil colénia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora ¢ Brasilia: Ednub, 1993, FERREIRA, Ivete Senise. A atualidade do pensamento de Carrara no Direito Penal. Revista USP, 54-66p, So Paulo, Disponivel em: , Acesso em: 09 jan. 2018, p. 35. 8 Amini Haddad Campos mediante violéncia ou grave ameaca: Pena ~ recluséo, de trés q va anos’ Da exegese supracitada, observa-se que 0 bem juridico, quantal 4 denominagao “Crimes contra os costumes”, pontual a observagao de Carla Beatriz Silva e Femanda de Matos Lima Madrid de que, “/..) 5 Cédigo de 1940 ainda prezava pela protegaéo moral da vitima peranie ¢ sociedade, e néo pelo direito do ser humano de manter relagdes sexu, & consentidas”™™. Dessa forma, o bem j gridade sexual) ainda estava ico tutelado (nesta conjuntura, a is ivelmente conectado a valores de bon, costumes, ou seja, A moral, a ética e A honra (na maioria dos casos, da | vitima). da nec ga legislativa (produgao em massa de leis) Portanto, é imperioso salientar que 0 Direito nao pode ser esti. 4 tico, justamente em razio das continuas transformagées sociais, o que leva o legislador a sempre buscar adequar a norma penal a realidade vi- gente € considerando os valores atuais, para que emanem decisées mais justas e condizentes. 2.2.3 No Brasil contemporaneo: sob o prisma da Lei 12.015/2009 A anilise do estupro deve receber atenco especial a sua amplia- gto trazida pela Lei 12.015, de 07.08.2009, responsivel pela alterago do Titulo VI, do CP, anteriormente denominado “Crimes contra os costumes”, pera “Crimes contra a dignidade sexual”, Consequentemente, alterou-se e ampliou-se 0 bem juridico re- ceptor da tutela estatal, que a direcionou para a protegao da dignidade humana. Em nota didética, Guilherme de Souza Nucci leciona que: Ora, em matéria de dignidade sexual, embora exista o fator honra em Jog0, néo pode ser considerado o primeiro elemento ow o bem juridico 3 BRASIL. Op. Cit, 1940, online. SILVA, Carla Beatriz; MADRID, Fernanda de Matos Lima. Breve hist6rico do art. rages no Cédigo Penal brasileiro. Publicado em: 10 mar. 2017. Dis- tip: /intertemas.toledoprudente.edu.be/revista/index php/ETICIarticle/ download/6336/6036>. Acesso em: 09 jan. 2018, p. 7. Neste passo, com 0 transcorrer do tempo o legislador vé-se diante idade de adaptagao da protecao juridica dada pelo delito as no. vas realidades, pois a desatualizaco pode, por exemplo, incidir em infla. | Vulnerabilidades & Direito mais importante. A coercdo sexual violenta fere a dignidade sexual, em especial, a liberdade do individuo de se manter incélume, segundo sua vontade, a qualquer ato libidinoso. Portanto, 0 que esté em foco, no crime de estupro [...] é a tutela estatal & dignidade humana e ndo ssingelamente uma protecao ao pudor®. Na pritica, a evolugdo do Direito é determinada pela evolugio “da sociedade. De acordo com Greco, no que tange aos crimes sexuais, a F tutela penal da liberdade sexual passou a ter, finalmente, por bem juridico protegido a dignidade sexual, uma espécie do género dignidade da pessoa & humana™. Em relagfo a este ultimo instituto juridico, Ingo Wolfgang & Sarlet assim o define: A qualidade intrinseca e distintiva de cada ser humano que o faz me- recedor do mesmo respeito e consideragdo por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e de- veres findamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qual- quer ato de cunho degradante e desumano, como venham a Ihe garan- tir as condigdes existenciais minimas para uma vida saudével, além de propiciar e promover sua participagao ativa e co-responsével nos destinos da prépria existéncia e da vida em comunhao com os demais seres humanos*, Assim, abandonou-se o conservadorismo e extinguiram-se os pretextos precipitados e infundados causados por padrdes de comportamen- ‘os impostos pela sociedade a época da criacao do Cédigo Penal, em 1940. 23 Exercicio Regular de um Direito ou Abuso? Apés sucinta clucidaco da evolugao do delito de estupro e es- tudo de sua atual disposi¢do na legislagao penal patria, parte-se para a investigagdo dos institutos atinentes aos entendimentos que Ihes eram dados quando da sua ocorréncia no seio do matriménio. Nesse sentido, buscar-se-4 a origem da concepcaio de que o homem esté a exercer um direito quando exige de sua parceira, mediante violencia, a relagdo sexual, bem como, a razdo por que essa concepedo existe e as consequéncias de sua existéncia, tanto para a ofendida quanto para a sociedade em geral. ® NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Pé 361 do Cédigo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. 4 GRECO, Rogério. Crime contra 2 dignidade sexual. rogeriogreco.com.br’?p=1031>. Acesso em: 09 jan. 2018, % SARLET, Ingo Wolfgang. In: GRECO, Rogério. Crime contra a dignidade sexual. Disponivel em: . Acesso em: 09 jan. 2018. arte especial. Arts, 213 a 40, 386 Amini Haddad Campos Isto posto, adentra-se, para tal feito, na seara do Direito de Fa- milia, um dos ramos com maior dinamicidade no direito, caracterist que tem se evidenciado, por exemplo, com o surgimento de novos arr {jos familiares no mundo pés-modemo. Hoje o que se entende por entida- dde familiar pode ser bastante diverso do que se enxergava na familia tra- dicional de outras épocas. Nos moldes do Cédigo Civil de 1916 — CC/2016 (Cédigo de Clévis de Bevilaqua), como ere de se esperar de um codex elaborado em meio a uma sociedade que ainda possuia uma mentalidade escravocrata e colonial, a familia era sobretudo patriarcal, ocupando a mulher posig&io de submissao e subjugacdo perante o homem, no s6 no ambito privado, mas sobretudo no piiblico, perdendo a sua capacidade civil apés 0 casamento que, destaque-se, em regra, era indissoliivel. Assim dispunha 0 inciso Il, do art. 6°: Art. 6°. Sao incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ow 4& maneira de os exercer: 1— Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156). I~ As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal IL - Os prédigos. IV— Os silvicolas*. Posteriormente, entrou em vigor a Lei 4.121, em 27.08.1962, fi- cando conhecido como Estatuto da Mulher Casada, na tentativa de igualar 0s direitos entre os cdnjuges. Porém, o legislador ainda trouxe o rango presente no i do século XX e continuou subjugando implicitamente a mulher a0 homem. Eis a redago do art. 233, do CC/1916, que deixa essa consta- tagdo expressa: Art, 233. O marido é 0 chefe da sociedade conjugal, fungéo que exer- ¢e com a colaboracdo da mulher, no interésse comum do casal e dos Ailhos (arts. 240, 247 e 251). (Redago dada pela Lei 4.121, de 1962). ‘Compete-the: I-A representagao legal da familia; (Redagio dada pela Lei 4.121, de 1962). I~ A administragao dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incumbir administrar, em virtude do regime matrimo- nial adotado, ou de pacto, antenupcial (arts. 178, § 9°, n° I, c, 274, 289, n° Ie 311); (RedacSo dada pela Lei 4.121, de 1962). 3 BRASIL. Cédigo Civil. Lei 3.071, de 01 <. Acesso em: 09 jan. 2018. Vulnerabilidades & Direito 357 Ill— O direito de fixar 0 domicilio da familia ressalvada a possibili- dade de recorrer a mulher ao Juiz, no caso de deliberagdo que a pre~ Judique; (Redacao dada pela Lei de 1962). IV ~ Prover a manutencdo da familia, guardadas as disposigdes dos ars, 275.6277, (Redapto dada pela Lei 121, de 19627" Reforgando, pela leitura desse dis ‘0, encaminha-se a ine- quivoca compreensio do papel de subalternidade da esposa imposto pelo Cédigo novecentista: meta colaboradora na sociedade conjugal, toman- do-se, inclusive, relativamente incapaz apés contrair matriménio. Sua capacidade civil plena somente foi devolvida mais de 40 anos depois, com 0 advento do Estatuto da Mulher Casada, em 1962, Nesta senda, daf jé se vé que a origem da ideia da exigéncia da relagdo sexual como exercicio regular de direito advinha, também, da propria posigio que a mulher desempenhava na relagao conjugal. 2.3.1 Casamento: conceito De acordo com Maria Helena Diniz, 0 casamento é uma das mais importantes instituigdes do direito privado, representando a base da familia. E, sem dividas, considerado um eixo central dentro da socieda- de, que transmite ao passar do tempo de gerago para geracdo, os valores morais principios, mantendo as culturas existentes. Ainda, 0 que se Procura nesta unio ¢ a convivéncia, com a prestago de auxilio muituo e Fespeito para a construgo de um micleo familiar”, Para Eduardo de Oliveira Leite, 0 casamento é 0 vinculo juridico entre as pessoas que se unem materialmente para constituirem uma familia, Estes so os elementos basicos, fundamentais e lapidares desta uniio°”. Paulo Nader conceitua o casamento como “negdcio juridico bi- lateral que oficializa, solenemente, a unido exclusiva e por tempo inde- terminado de duas pessoas [...], para uma plena comunhdo de interesses ede vida. . Estatuto da Mulher Casada. L 7 By 121, de 27.08.1962, Brasilia, Disponi- titer presencia gov. buceivil_OSleis/1950-1969/L4121.htm>. Aces- jan. 2018. * DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Diseito de Familia. 31. ed. Sio Paulo: Saraiva, 2017. v. 5 * LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado: Direito de Familia. 2. ed. Sto Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 5 “ NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Direito de Familia. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. §. p.37, 358 Amini Haddad Campos Vulnerabilidacies & Direito 359 nites Dirito 359. res no ordenamento brasileiro ja presentes na sociedade“’. Nas palavras do autor: Esse instituto possui previsio Constitucional no art. 226, que trata a familia como a base da sociedade, devendo o Estado protegé-la, De outra forma, néo se consegue explicar a protecio constitucional 4s entidades familiares ndo fundadas no casamento (art. 226, § 3°) 48 familias monoparentais (art. 226, $ 49); a igualdade de direitos en tre homem e mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5°); a garantia da possibilidade de dissoluedo da sociedade conjugal, independente de culpa (art. 226, § 69, 0 planejamento familiar, voliado para os Principios da dignidade da pessoa humana e da paternidade respon. sdvel (art. 226, § 79) ¢ a previsdo de ostensiva intervencao estatal no miicleo familiar no sentido de proteger seus integrantes ¢ coibir a vio. lencia doméstica (art. 226, § 8), devendo a lei facilitar a conversio em casamento*!, 2.3.2 Direitos e deveres entre os cOnjuges Como jé apresentado, 0 ordenamento juridico brasileiro manti nha a mulher subjugada ao homem, sendo relativamente incapaz, depen- dendo de autorizagaio do marido para exercer alguma profissio e podendo sofrer sangOes fisicas quando 0 esposo achasse necessério, situagao ali- cergada até mesmo pela melhor doutrina, como exemplo, posicao de Nel- son Hungria, De acordo com Amoldo Wald e Priscila M. P. Corréa da Fonse- ca, apenas com o Estatuto da Mulher Casada a mulher péde se emancipai adquirindo direitos iguais aos do homem, reassumindo inclusive 0 poder no liame familiar”. A grande alteragdo veio com a promulgagao da Constituicao de 1988, que finalmente igualou os direitos e deveres durante a sociedade conjugal, como pode ser no § 5°, do art. 226, da Lei Maior: “Os direitos e deveres referentes & sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”, Cristiano Chaves de Farias assevera que na CRFB/1988 0 legis- lador constituinte normatizou o matriménio como uma celebrag%o, uma convengao social, adaptando, desse modo, o Direito aos anseios e neces- sidades da sociedade vigente. Além disso, nela previu a protegio da fami lia constitufda pelo casamento, como também a derivada de unio estavel , ainda, a monoparental“*. Para Gustavo Tepedino, a Constituigdo de 1988, distante daqui- Jo que ainda previa a legistagao especial e da perda da centralidade do Cédigo Civil de 1916, consagrou, definitivamente, um novo rol de valo- No que se refere a familia, José Sebastiao Oliveira analisou que a Carta Maior de 1988 reconheceu uma evolugéo que ja estava latente na sociedade brasileira. Asseverou que, no fo lela (CRFB/1988) que toda a mudanga da familia adveio. Con: alizaram valores que estavam impregnados e disseminados no seio social. Por iiltimo, a reda~ go constitucional contemplou e abrigou uma evolugao fitica anterior de familia e do Direito de Familia que estava represado na doutrina e na jurisprudéncia”, 2.3.3 Débito conjugal: dever legal? 0 Débito conjugal, segundo Anténio Chaves, é representado pe- lo direito-dever do marido e de sua mulher de praticarem entre si o ato sexual“. O fundamento para essa obrigatoriedade encontrava-se disposto nos denominados “Deveres Matrimoniais Reciprocos” no art. 231, do CC/1916, recepcionado pelo atual art. 1.566, do CC/2002, O inc. Il do art. 1.566 do vigente Cédigo Civil traz o emunciado: ‘vida em comum, no domicilio conjugal”? como sendo uma das obriga- ges na qual os cénjuges se submetem para constituirem, diante do Esta- do, a famigerada “familia casamentéria”. “| BRASIL. Constituigio da Repiiblica Federativa do Brasil. De 05.10.1988, Brasilia. Disponivel em: . Acesso em: 09 jan. 2018, WALD, Amoldo; FONSECA, Priscila M. P. Corréa da. Direito Civil: Direito de Familia, 19. ed. $30 Paulo: Saraiva, 2005, BRASIL. Op. cit, 1988, on-line. “ FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Familia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, & TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, * TEPEDINO, Gustavo. Idem, 2004, p. 397. “ OLIVEIRA, José Sebastito. Fundamentos Constituci Siio Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. “* CHAVES, Anténio. Tratado de Direito Civil. J: DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Familia. 31. ed. So Paulo: Saraiva, 2017. v. 5. BRASIL. Op. Cit, 2002, online. is do Direito de Familia, 360 Amini Haddad Campos : Vulnerabilidades & Direito 361 3@__ Amini Haddad Campos _ _—__—__—_witnerbildades & Direito 361 A partir disso surgiu na doutrina 0 “dever de coabitagao Bs O ESTUPRO NO MAPEAMENTO DA DOUTRINA consistia em suposto mandamento estatal sobre as relagdes intimes casal. Essa afirmasao é notavel pelos dizeres de Orlando Gomes: “A ¢ bitacdo representa mais que a simples convivéncia sob 0 mesmo tehg [J]. Nao 36 convivéncia, mas unido carnal. ..J. Importa-se assim coabitagdo a permanente satisfagdo desse débito” Além disso, vé-se que se trata de um entendimento bem recen te, presente ainda no inicio dos anos 2000. Todavia, anos posterioress Maria Berenice Dias expe os motivos que podem ter consubstanciadgs tal tese: NACIONAL, ‘3. Os Debates entre as Doutrinas e a Legitimaso do Estupro Marital estudo do tratamento juridico conferido ao estupro marital pela F doutrina é essencial para a compreensio da problemética de sua legitima- ‘glo, mormente devido a sua utilizago como elemento integrante da fun- E damentagdo” das decisoes judiciais, bem como sua influéncia sobre elas. . Na ligdo de Paulo Nader, a doutrina ¢ 0 assentamento de princi- E pios e conceitos que “compde-se de estudas e teorias, desenvolvidos pelos f juristas, com o objetivo de interpretar e sistematizar as normas vigentes e de conceber novos institutos juridicos, reclamados pelo momento histiri- co™, Silvio de Salvo Venosa complementa didaticamente: “a dow ‘tua diretamente sobre as mentes dos operadores juridicos por construgbes teéricas que atuam sobre a legislagdo e a jurisprudénc Desta feita, embora a doutrina nao seja detentora de forga juridi- a, estd intimamente atrelada a efetivardo de uma garantia’ constitucional indispensvel ao devido processo legal. Nessa ordem critica, ndo se pode deixar de perceber ser 0 mesmo campo tedrico que evidencia a expresso de um dado cultural, ou seja, manifesta-se em argumentos temporais ¢, f assim, justifica posicionamentos. Exatamente por isso, tem-se que é base dialogal do juridico, seu contexto histérico. Por outro lado, cumpre destacar que o referido posto aleangado pela doutrina ao implica, de forma alguma, em obrigagio direta de ob- | servncia ao seu contexto, por parte dos juristas, principalmente quando = estiver obsoleta, Por vezes, 0 correto pode ser exatamente 0 contririo. A Igreja Catélica consagrou a unio entre um homem e uma ‘como sacramento indissolivel: até que a morte os separe. As rrelagdes afetivas aceitas sdo as decorrentes do casamento ent homem e uma mulher, em face do te corigem do débito conjugal c de. A maxima cresceiemultpl produtiva com o fim de difundir a sua fe ‘para ser vedado, de modo irresponsavel, o'uso de contraceptives. O casamento religiaso pode ser anulado se alguns dos cOnjuges for e533 1téril ow impotente, ; Dias ¢ uma critica contumaz do débito conjugal, pois, para ela, a ponto de gerar no par 0 direito de exigir o seu adimplemento. Final aduzindo que, na pratica, é possivel afirmar que o Estado acaba na cama com 0 casal”, Assim, é inegével que este entendimento (débito conjugal) foi um dos fornentadores para que a doutrina tradicional defendesse que 0 marido era legitimo “credor” do corpo da esposa para atividades sexuais, mesmo que estas ndo fossem consentidas. Nesse sentido, se o art. 213, do CP ndo excluiu 0 marido como 7 ppossivel sujeito ativo de estupro contra a prépria esposa, nao ha que se invocar 0 “débito conjugal” previsto no Cédigo Civil para obrigar a mesma a cépula camal indesejada. Portanto, hodiernamente é inaceitavel + a ideia doutrindria de que a mulher no pode se recusar, eventualmente, | a0 sexo com o seu marido pelo simples fato de ter com ele se casado, i * O dever de findamentapio das decisdes esté presente no art. 93, da Constituigzo de 1988, e no art. 489, do Novo Cédigo de Processo Civil (Lei 13.105/2015), Estudo do Direito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, Salvo. Introdusao ao estudo do direito: primeiras lnhas. 4 ed ‘iio Paulo! Atlas, 2014. p. 131 © dever de fundamentar as decisdes judiciais, ao mesmo tempo em que é um con- sectirio de um Estado Democritico de Direito, € também uma garantia, Quando 0 Jurisdicionado suspeitar que o magistrado decidiu contra a lei, desrespeitando dire {os fundamentais ou extrapolando suas funges insttucionais, deverd buscar ua fundamentagio da decisio subsidios para afer a qualidade da atividade jurisdicio- nal prestada. & a inseredo dessa garantia no texto da Constituigdo ¢ da maior rele- vncia. NOJIRL, Sérgio. O dever de fundamentar as decisbes judicais. fn ZAVA. RIZE, Rogério Bellentani. A fundamentagio das Decisdes Judiciais. Campinas; Millennium, 2004, p, 46-47, [© GOMES, Orlando, Direito de Familia, 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 134-35, DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Familias. 4 ed. em e-book bascada | ta 1. ed. Impressa. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 234. 2 Hem, 3a, Amini Haddad Campos lids, a perspectiva da evolugdo da sociedade & exatamente o combustivel para novas orientagdes. Exatamente por isso, a cultura nao é estatica. Consequentemente, 0 Direito também niio o &. Neste sentido, per. tinente a critica presente em elaborado artigo de Mar in tino a respeito do uso inadequado e excessivo de citagdes d “Com o apoio dos mais variados pensadores, juristas ¢ ndo juristas, mui- tas vezes, os ministros performaticamente pretendem legitimar seus pré- prios votos as custas de uma inatingivel superioridade tebrica ou de wma quase inatacdvel supererudigao””, cuidado com a erudigdo & pertinente. Afinal, os julgados es- to atrelados a fatos sociais de efetiva necessidade de controle, pelos ‘meios de alcance piblico. Portanto, esta requer entendimento de todos os enfoques detalhados. Partindo desse pressuposto, passa-se, entio, & exposigao dos de- bates que, por sua divergéncia, originaram a polémica doutrindria atinente ao tema. Convém iniciar 0 estudo pela doutrina que abrange o periodo anterior & Lei 12.015/2009, pois, como jé dito alhures, a alteragao por ela trazida acarretou signific Isto posto, como explanado no Capitulo 1 desta pesquisa, foi ‘Nelson Hungria o precursor da corrente que descartava a imagem do ma- ido como possivel ocupante da posigdo de sujeito ativo no crime de es- tupro, quando a vitima vinha a ser a prépria esposa. Recapitule-se 0 en- tendimento do autor em sua obra inaugural em coautoria com Romo Cortes de Lacerda: Questiona-se sdbre se 0 marido pode ser, ou ndo, considerado réu de esiupro, quando, mediante violéncia, constrange a espésa & prestagao ‘solugdo justa é no sentido negativo. O estupro pressupoe trimonium é re- ta (fora do casamento). A cépula intra ‘“Matrimonii finis prima- sundarium mutuum ad- 'O mario violentador, salvo jutorium et remedium concupisce ‘excesso inescusavel, ficard isento & violéncia fisica em si mesma (excluido 0 crime de exercicio ar! rio das préprias razées, porque a prestacao corpérea nao é exis judicialmente), pois é licita a vioiéncia necessdria para o exer ‘regular de um direito (art. 19, n Il). E bem de ver que solueao diver- CCONTINENTINO, Marcelo Casseb, O problema das excessivas eitasdes doutring- rias no STF. Publicado em: 15 set. 2012. Disponivel em: . Aces- so ec: 15 jan. 2018. Vulnerabilidades & Direito 363 sa tem de ser dada no caso em ‘achar-se 0 marido afetado de m més de pretender exercer um dir ito penal (art. 130 do Cédigo Penal) que a mulher se recuse & cépula por ia venérea. Jé aqui, o marido, ao std incidindo na érbita do il. Depreende-se que, na lig&o de Hungria, a tinica hipétese que su- ia. marido violentador a pena seria se houvesse excesso inescusi- ‘orém, além de no definir o que seria caracterizado como “exces lenca apenas uma circunstincia em que a recusa da mulher esata Vulnerabilidade extrema ¢ vazio de contetido simbolizam, de just regra, injustiga. Exatamente nesse aspecto, necessirio se faz que haja seguranga juridica a objetividade do aspecto concernente integri g integridad fisica da mulher. Afinal, a quem seria atrbuido o contexto de quantificar 0 excesso inescusdvel as custas do sofrimento da mulher? Restou, portanto, limitada a liberdade de escolh i , a € 0 exercicio de negativa por parte da esposa, enquanto, em contrapartida, vaga e inde. terminada a autorizagio do exercicio de violéncia por parte do esposo, permitinde reo ices fizesse uso de elementos extemos (maxime a ioral e os bons costumes), para determinar se a conduta ii previsto no art, 130, do CP de 1940. Se subsumiriage Esta concepgio— - idamente machista, mas natural e previsi a época ~ de Nelson Hungria, era compartihada com Magalhaes Nor + tha, com ressalva muito bem delimitada: As relagdes coniugais sto perinentes d vida , inenes & vida conugel, consti direto ¢ dever reciproco dos que casaram. O mario tom direte posse sexual da mulher, ao qual ela ndo se pode opor. Casando- erin sob o mesmo tet, cto a vida coma a miler nose Pode furtar ao cngresso sea, exo fn mas ere ay Saas ao da espécte, A violéncia por parte do marido ndo constiuke E, assim, finaliza 0 ilustre doutrinador: La] mulher que se opde ds relagées sexuais cor ido at zxuais com o marido atacado de ia venérea, se for obrigada por meio de violéncias ou ameagas, serd vitima de estupro. Sua resistencia legitima torna a eépula ilicita HUNORIA, Néion CAGERDA, Romo Ces de. Coment : . Konia Cones de. Comentiro 9 Cidigo Arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: For 1954. v. VIII, p. 115-116, Céaigo Pen ‘NORONHA, Edgard Magalies. Direto Penal. 26 ed. Sio Paulo: Sasiva, 2002 . 70, 364 Amini Haddad Campos ——___Amini Haddad Campos [J A nosso ver, portanto, a relacdo sexual violenta entre cénjuges, ‘quando a mulher se apsia em razdes inequivocamente morais e justas pode constituir 0 delito em apreco® Nota-se, que ambos entendiam a relagfio sexual como dever ori- undo do matriménio e que a reivindicagdo deste dever por parte do com. panheiro era licita desde que nao aleangasse a violéncia entendida como excessiva. Mas questiona-se, em ratificagdo A necesséria critica: 0 que seria 0 excesso neste caso? Excessiva para quem? Ademais, o ilicito somente se configuraria quando constatado iva a relago sexual no tivesse fundamento em mero capricho Como se daria a medigao de mero capricho? Como se i negativa? ‘Nessa conjuntura, 0 nao poderia nao ser somente no?! O que significaria, nesse aspecto, considerar a auséncia de condigdes emocio- nais, fisicas ou de libido para 0 ato? Dessa forma, além de ter a liberdade de escolha em relago ao exercicio da sexualidade cerceada e entregue aos caprichos de seu mari- do, a mulher dependia de uma justificativa que ndo se encaixasse em uma das duas categorias vagas e diibias criadas por ele. Paulo José da Costa Kinior também foi adepto da posigiio de que a relagdo sexual é um débito cuja prestagdo prescinde de consenso, como se observa no seguinte excerto: Discute-se sobre se 0 marido possa ser sujeito ativo de estupro. Quer- nos parecer que néo, pois o estupro pressupde a cépula prestacdo sexual é dever reciproco das cénjuges. Estard, rido exercitando um seu direito, desde que 0 faca regularmente. Isto significa que poderd responder pela violéncia fisica excessiva que ve- nha a empregar para compelir a esposa & cépula carnat™. Neste caso, em especial, interpreta-se que havia para o autor uma espécie de violéncia entendida como “regular”. E mais uma vez, tem-se presente 0 raciocinio do excesso sustentado por Hungria e Maga Ihaes Noronha. ® NORONHA, Edgard Magalhies. Direito Penal, 26. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p.70,¥.3. Vale inserir que os principais movimentos atuais para controle da sexual € exatamente considerar a vontade da vitima, Nesse sentido, tem-se 0 movimento: “Nao significa NAOI”. INIOR, Paulo José da. Direito penal comentado. 8. ed. rev. ¢ atual. S30 Paulo: DPJ, 2005. p. 732, cometido contra sua a propria esposa, Vulnerabilidades & Direito 365 ————__Mitnemtbilidedes & Dirwito 365. Diversos autores seguiram tais posicionamentos, ou seja, enten- dendo que o marido nao poderia ser sujeito ative do crime de estupro como: Paulo José da Costa jinior, Galdino Siqueira, Fragoso, Chrysolito de Gusmao, Chaveau, Hé- . lie, dentre outros, conforme bem frisado pelos atuais criticos®. ‘Também vieram como questionadores desta corrente de autores como Damasio Evangelista de Jesus, Jiilio Fabbrini Mirabete, Joao Mes- tieri, Nilo Batista, Rogério Greco, Celso Delmanto, Roberto Delmanto, etc. Mestieri leciona, resolutivamente: Distinguimos existéncia do direito de exercicio de direito, entendendo, orém, que ambas as realidades devem entrar na composicdo da cau. sa de justificagao ou, se preferirmos, na apreciagéo da licitude ow ili- citude do comportamento, No estupro por marido temos exercicio cito de direito e, portanto, ato ilicito penal, porque tipico™. Constata-se que, para 0 autor acima, o direito (débito conjugal) existia, de fato. No entanto, ao cometer o estupro 0 marido o fazia tamente. No mesmo sentido, Luis Regis Prado: £..] incabivel amparar 0 estupro praticado pelo marido contra sua esposa sob 0 manto da causa de justificagdo do exercicio regular de direito, posto que se a mulher descumpre injustificadamente 0 débi conjugal, poderdo recair sobre ela as sangées previstas no Direito Civil, mas nada autorica 0 marido a se utilizar da violéncia ter 0 almejado ato sexual. Nao haverd, evidentemente, 0 exert gular de um direito neste comportamento, pois, ainda que admitido 0 direito, ndo se poderd conceber, em tal hipdtese, o exercicio regular. Allis, é inadmissivel que a esposa ndo tenha o direito de se recusar a manter relagdo sexual com 0 marido pelo simples fato de estarem ambos ligados pelo matriménio. Admitir a excludente, em tal caso, significa um retorno & sociedade primitiva. O mesmo entendimento deve ser admitido em se tratando de estupro praticado pelo compa- nheiro contra a companheira na constdncia de unido estével, por for~ ga do art. 1724 do Cédigo Civil, Portanto, para alguns autores que defendiam a tipicidade da conduta, ela estava ligada nao a inexisténcia de direito, mas CURY, Marcelo. O estupro cometido pelo marido. Publicado em: 2011. Disponivel ‘em: . Acesso em: 17 jan. 2018. © MESTIERI, Joio. Do delito de estupro. Sdo Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 7-58. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial: aris. 121 a 249. 7. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v. 2,p. 379, 366 ini Haddad Campos seu exercicio. Em sequéncia, veja-se o seguinte excerto da tese por Da- misio de Jesus esposada: Embora com 0 casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito ndo autoriza 0 marido a forcar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela violéncia fisica ou moral que carac- terica 0 delito de estupro. Nao fica a Jeita aos caprichos do marido em mat ndo se revista de cardter mesquinho. Assim, xr nao consentir na conjungéo carnal e 0 marido delito & auséneia de caréter mesquinho da negativa dada pela mulher; logo, ainda nao era integralmente contrério a tese de Hungria, predomi- nando a presungo de legalidade. bora se tenha negado essa possibilidade, quando ndo a recusa da mulher, entendemos que hd crime na cor justificativa da recusa. Por outro lado, seu entendimento jé era um dife- Tencial por ineditamente ja vislumbrar a separagdo judicial como correta saida a ser buscada, Insta salientar, ainda, 0 pensamento de Vicente Greco Filho, de que nao s6 a sociedade era conivente com a violencia sexual perpetrada no Ambito conjugal; também o era a doutrina. Seja por razées ligadas a exis- téncia do pacto matrimonial, seja por razées ligadas as concepcdes religio- ‘Sto Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 96. interpretado. Sio Paulo: Atlas, 1999. Vuluerabilidades & Direito 367 clusto de que a relago sexual no consentida nfo poderia ser questionada, internalizando-se tal posicionamento na condigdo matrimonial. Neste diapasio, no que diz respeito a manutengdo deste triste cend- , destaque seja dado ao ideal de preservagao da familia, elencado por He- ieth Saffioti como uma das causas da ambiguidade feminina (que levava & retirada da queixa pouco tempo depois de apresentada): “importa menos 0 que se passa em seu seio do que sua preservaciio como instituigao”®, Deveras, também a auséncia de equiparacdo entre o: homem e da mulher, no Cédigo Ci de 1916, bem como de especifica para o delito em questo, no Cédigo Penal de para a defesa da impossibilidade juridica em se reconhecer igual dignidade 0s sexos. Outrossim, sob 0 enfoque do bem juridico tutelado naquele momento (a instituigo da indissolubilidade matrimonial ou a integridade fisica da mulher), era maculada a visualizagio da relagdo sexual forgada pelo cOnjuge, desvirtuando-se assim 0 seu correto enquadramento juridico. Felizmente, com as mudangas vividas pela sociedade nos anos seguintes, especialmente a consolidagao das lutas feministas” ¢ o surgi- mento da Constituigao de 1988, que trouxeram, além do re: da capacidade civil da mulher, a equiparagao dos direitos”, mudanga de posicionamento de diversos autores, perdendo a doutrina clissica boa parte de'seus adeptos. Oportuno consignar, também, a importincia do inicio do ques- ionamento acerca da existéncia do chamado débito conjugal, como feito primorosamente por Maria Berenice Dias, que classificou como terroris- mo a exigéncia de relagdo sexual como um dever do casamento: “GRECO FILHO, Vicente. Uma int retagtio de duvidosa dignidade. (sobre a nova lei Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Tere- >. Disponivel em: . Género, patriarcado, violéncia. 2. ed. Sio Paulo: Fundagio Perseu Abramo, 2015. p. 93. (© feminismo ¢ um movimento de luta pela igualdade de direitos e deveres entre homens ¢ mulheres que surgiu ha séculos ¢ que ganhou forga na metade do século XX. Por set lum movimento antigo, a militincia feminista ganhou diversas vertentes 20 longo dos ‘anos para conseguir abracar as demandas e lutas de todas as mulheres e de todas as mi norias. MELERO, Maria Beatriz. Feminismo: diferentes visdes na uta pela jgualdade de direitos. Disponivel em: . Acesso em: 20 jan. 2018, 1 BRASIL. Cédigo Civil Let 10.406, de 10.01.2002 Basia. Disponivel em: tp ov bucsvil O¥eis002/. 10406 a>. Aceso em 20 jan 2018, 4 BRASIL. Idem, 2002, on-line Vulnerabilidades & Direito 369 Desta feita, ainda ndo é uniforme na doutrina o entendimento de que o trecho relativo a evitar a imposigdo de pena criminal teria se torna- do letra-morta apés a revogagao dos incisos do Cédigo Penal, entdo su- pracitados™. Alguns autores ainda mencionam o art. 9°, da Lei Comple- mentar 95, de 1998, para defender que no houve revogaga0™, 32 A Jurisprudéncia que Fomenta o Siléncio das Mulheres Neste item analisar-se-é, através da exposigdo de jurisprudén- cia, como os tribunais brasileiros vém atuando e se posicionando, comu- mente, diante de casos d¢ léncia sexual contra a mulher. O intuito da realizagao desta anilise, antes de avancar ao item dedicado a jurisprudéncia sobre 0 estupro marital propriamente dito é 0 de demonstrar, efetivamente, que os julgamentos do delito de estupro, por si $6, ainda esto eivados de distorgdes e incompatibilidades que, por si, desviam-se da analise do delito (tipo penal). s olhares delineados pelos julgadores, em dado cultural, redi- recionam o julgamento do processo para os atributos da vitima da violén- ia: sua vestimenta, sua profissio, seu comportamento, a ingestio de be- bida alcdolica, a pertinéncia do hordrio e local em que ocorridos o crime, etc. Dessa maneira, quem estaria, afinal, em julgamento? Esse nocivo habito imy iona decisdes equivocadas, pois, na maioria das vezes, pautadas em discriminagao e estereétipos, tomando 0 sistema penal ineficaz na protecdo das mulheres contra a violéncia, con- forme habilmente observado por Vera Regina Pereira de Andrade: [..] 0 sistema penal duplica a vitimagao feminina, porque além de vi- timadas pela violéneia sexual, as mulheres o sio pela violéncia titucional, que reproduz a violencia estrutural das relagdes sociais Patriarcais e de opressdo sexista, sendo submetidas a julgamento e ™ CERQUEIRA, Thales Técito Pontes Luz de Pidua. A Lei 11.106 de 2008 e Polémi- gas. Publicado em: 25 nov. 2014. Disponivel em: . Acesso. emi. 20 jan. 2018, Por fim, parte da doutrina entende que o art. 1.520 do CC estaria revogado, tacitamen- {c, mas outra corrente doutrindria entende que o dispositivo nio estariarevogado por interpretaedo do art. * da Lei Complementar 95, de 1998, que trouxe resea fidade legislativa, determinando que toda revogagio legal deva set ex osivio encontra-se prevista em seu art. §°, onde se lé: “Arr. 9° A cla. sula de revogaedo deverd enumerar expressamente as les ou disposicdes legais revo gadas”. BOTELHO, Jeferson. Extingo da punibilidade: uma abordagem sinéptica Publicado em: 22 nov. 2017. Disponivel em: . Acesso em: 20 jan. 2018. Amini Haddad Campos 370 divididas. A passagem da vitima mulher, ao longo do controle social formal, acionado pelo sistema penal implica, nesta perspectiva venciar toda uma cultura da discriminagdo, da humithacdo e da es. tereotipia, pois, e este aspecto 6 fundamental, néo hd uma ruptura entre relacdes familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe) e relacdes sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicacdo social), que violentam e dis. criminam a mulher e o sistema penal que a protege contra este do. minio e opressio, mas um continuum e uma interacao entre o con. trole social informal exercido pelos primeiros e 0 controle formal exercido pelo segundo. Num sentido forte, pois, o sistema penal ex- pressa e reproduc, do ponto de vista da moral sexual, a grande linka diviséria e discriminatéria entre as mulheres tidas por honestas (ct dadas de primeira categoria), que merecem respeito e protecdo so cial e juridica e as outras (cidadas de segunda categoria), que a so ndona na medida em que se afastam dos padroes de comportamentos estritos que 0 patriarcalismo impoe & mulher. De modo que sé as primeiras poderdo obter do sistema penal o reco- nhecimento de sua capacidade de vitimagao”. Desta feita, embora tenha havido a alteragdo da legislago penal original do Cédigo de 1940, com mudanga do titulo e a insergao deste crime no rol de crimes hediondos, a superioridade desse enfoque, centra do no macho, com evidente beneficio ao interesse de dominio, em virtude de uma imagem costumeiramente distorcida do masculino, focalizada a partir da sociedade patriarcal, ainda esta incutida nas relagGes sociais — sobretudo nas estruturas iares. Vale ressaltar, ainda, dado proveniente de levantamento do IPEA, através de dados do ano de 2011 do Sistema de Informagdes de Agravo de Notificagaio do Ministério da Satide (SINAN), que indicou que 70% dos estupros no Brasil so por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vitima”’. Isso é mais uma elementar que esboga 0 quao atrelado ao domi- nio, ao poder ¢ ao controle se encontra essa manifestagao de violéncia. Esta realidade cultural também traz outro resultado maléfico em decorréncia da andlise social do crime de estupro: a internalizago da 2 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violéncia sexual e sistema penal: proteydo ou , Acesso em: 19 Jan. 2018, p. 10: CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Satide (versio preliminar). Publicado em: mar. 2014. Disponivel em: . Acesso em: 19 jan. 2018. Vulnerabitidades & Direito 371 ——___—______Vulnerbilidades & Direito 371. violéncia por parte da vitima”, o que inibe, consideravelmente, a aborda- gem da problemética de maneira eficiente, inclusive pelo Judiciério. Para demonstrar 0 sustentado até entio, far-se-4 uso de estudo realizado pela tese defendida por Any Avila Assungio ao Programa de Pés- Graduagdo: Doutorado, do Instituto de Ciéncias Sociais da Univer- sidade de Bras Sob 0 titulo “A tutela judicial da violéncia de géner: do fato so- cial negado ao ato juridico visualizad. i como a influéncia da cultura androcéntrica e sexista resulta em violéncia institucional relativa as condigdes de género e, consequentemente, esta presente na resposta dada pelo sistema judicial as mulheres em situagao de violéncia, em especial no que diz respeito aos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Reflexes orientadas pelas nogdes do ‘sistema patriarcal’ po: itaram a compreensdo das desigualdades juridicas no acesso 20 Judiciério pelos homens e pelas mulheres, as quais alicergam a violéncia estrutural caracteristica da atual conjuntura nacional de tratamento dispensado condigao da mulher cuja dignidade sexual foi aviltada, Os excertos a seguir possibilitam contemplagio perturbadora- mente nitida do susteritado: L] Poder-se-ia concluir que, em razéo de terem cometido alguns atos libidinosos contra a vitima, tais como ordenar que ela se despis- se, deitar-se sobre ela ou apalpar-the as partes intimas, em ver de cen racterizar atos preparatorios do crime de estupro, em verdade tais atos caracterizariam a pratica de crime consumado de atentado vio- Jento ao pudor. Todavia, nenhum delito contra a liberdade sexual, se- Jana forma tentada ou consumada restou comprovado [..] no hé prova da materialidade do delito, pois o exame de corpo de delito a que fora submetida a vitima nada constatou em relacdo & recorréncia do crime sexual [..] Diante do quadro fitico que se apre- ‘Senta, forna-se praticamente impossivel imputar aos acusados 0 CO- ‘metimento de crime de estupro contra a vitima, pois, se é verdade que 4s palavras da vitima sdo extremamente relevantes para afericao da ecorréncia de qualquer delito de natureza sexual, ndo menos verda- deira é a afirmagao de que toda e qualquer manifestacdo da vitima em relacao a tais delitos deve vir respaldada por outros elementos de prova. L..) ainda que se conseguisse provar que os acusados praticaram al- Suns atos libidinosos contra a vitima, atos estes consisientes em orde- Nesse sentido, ver: PERROT, Michelle. Os excluidos da histéria: operirios, mulhe- res e prisioneiros, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 167-213, 37 Amini Haddad Campos nar que ela se despisse ¢ apalpagdo de suas partes intimas, somente um exacerbado (e maléfico) apego as normas penais faria qualquer pessoa cogitar da ocorréncia de crime de tentativa de éstupro (Trecho extraido de uma das sentencas de primeiro grau — grifo nosso — FIA). 133 [..] as declaragBes da vitima sdo coerentes com 0 conjunto proba- trio, com excesdo da declara¢’o acerca da pritica de sexo oral por parte do réu. [..] 0 crime de atentado violento ao pudor nao possut qualquer outra prova para sua comprovaedo a ndo ser a palavra da Vitima, que isoladamente reputa-se insuficiente para lastrear a con- denacdo (Trecho extraido de um acérdéo de um acérdao dos tribu- rnais de justica analisados ~ grifo nosso - E16/1). [ou] £ certo que a palavra da vitima, nos crimes contra os costumes, ‘possui enorme relevancia, vez que tais crimes normalmente sao prati- ds sem a presenga de testemunhas, restando ao julga- dos casos, a dificil tarefa de escolher entre a versdo é para merecer acolhida como supedéneo versdo da vitima deve ser firme, coe- rente, sem contradicoes que afetem sua credibilidade. No caso dos au- tos, tenho para mim que a palavra da vitima ndo se reveste da firmeza necesséria, que se exige para a formagao de um Juizo condenatério (Trecho extraido de um acérdao dos tribunais de justi¢a analisados ~ cr0/) a ep O mais incrivel em sua versdo, porém, é que no trajeto os dois ae caminhando lado a lado pelo posto de gasolina da OE 23, ‘onde pelo menos os frentistas deviam estar presentes, ¢ também por ium qiiosque que fica junto ao posto, onde 0 acusado chegou a cum- Primentar 0 proprietirio ¢ onde, segundo as préprias palavras da vitima, estavam reunidas cerca de dez a quinze pessoas, frequentado- res do estabelecimento. E a vitima simplesmente diz que ndo fugiu do rl no o delzou nesse moment, dante de todas equelos pessoas, fe estava em panico e sem reacdes. Alega também que ficou com REL e De ene eae Ta 0 dono do quiosque poderia até ser amigo do réu, 0 que no seria mi tivo para ser seu cimplice, Eo que diver de todas as outras pessoas que ali estavam? Iriam todos concordar com o estupro? Certamente que ndo. Bastaria a vitima dar qualquer alarde, gritar, juntar-se és pessoas que ali estavam, seguir na companhia do réu, para que a si- tuagio se revolvesse[~] Sua versdo, de que estava em pinico ¢ sem reacces, é verdadeiramente insustentével. Mesmo porque a vitima ndo me parecen ser wma moga que se amedronta com faclidade A prépria atitude de deixar os colegas na festa, na Eniréquadra 15/17 do Guaré Il, e voltar para a casa da tia, na OF 00 do Guaré 1, cami- nhando sozinha pelas ruas équela hora da noite jé revela seu caréter de garota destemida. [..] O réu, por sua vez, ndo tinha qualquer arma ou instrumento com que pudesse amedrontar a vitima. Néo tinha ar- ma de fogo, nem faca, nem um misero canivete. Ou sequer um pedaco Vuinerablidades & Direito 3B —————_____Wulnenbilidades @Direito 373. de pau As ameacas teriam sido apenas verbais, @ mesmo assim a vitima ndo foi muito firme ao deserevé-las. Relata em Juizo que as ‘ameacas por ela referidas —consistiram nas palavras do acusado pa. ra que a informante o acompanhasse, pois sendo seria pior, dizendo 0 acusado que a matarial. (..] Ora, numa situagdo dessas, de estupro iminente, é duvidoso que qualquer vitima venha a intimidar-se apenas € 1do-somente com palavras, com “promessas” de morte. [...] A grave ameaga, no caso, se dé quando o réu dispde de meios idsneos para concretizd-la de imediato, no préprio momento, caso a vitima ndo ce- da aos seus instintos (exemplo cldssico: quando o réu estd armado). [J] Simples ameaga verbal, promessa vaga de vir a causar algum mal @ vitima, em futuro remoto, ndo serve para tipificar o crime de es. tupro [..J. Diante do exposto, nego provimento ao recurso para mantr integra a douta sentenca de primeiro grau, pelos préprios fundamen. tos. E 0 voto (Trecho extraido de um acérdéo dos tribunais de justipa analisados — grifo nosso - F2/l) [..] Por outro lado, embora o réu apresente péssimos antecedentes criminals, pelos quais jé foi condenado por crimes da mesma nature- 2a, entendo que tal fato por si s6 néo é suficiente para Ihe imputar a autoria do crime em tela. Ademais, a vitima somente registrou ocor- réncia dois dias apds o crime e, quando encaminhada ao IML para coleta de material genético para futuros confrontos, ndo foi possivel produzir a referida prova, conforme se vé do Laudo dé Conjuncio Carnal no xx (fl. 40). Igualmente, a pesquisa de espermatozoides rea- lizada no edredon utilizado pelo apelado teve resultado negative (fis.xx). Dessa forma, inexistindo outras provas no sentido de reputar ao réu a autoria do crime em comento e, de outro lado, a a de Seguranga e convicedo quanto ao reconhecimento feito pela vitima, invidvel se mostra a condenaedo do ora apelado (Trecho extraido de um acérddo dos tribunais de justica analisados ~grifo nosso ~ F2/2), Percebe-se, ndo sem espanto, que recortes das jurisprudéncias iras exibem e atestam que, com frequéncia, o sexismo das priticas sociais caracteristicos da perspectiva de género culmina na incorporagao de esteredtipos e discriminagdes nas sentengas, O tratamento direcionado a mulher vitima de estupro permanece contraditério e ambiguo, e a con- sequéncia inevitivel deste tratamento é a subnotificago ou, nos casos em que ha dentincia, a vitimizagao secundaria, 33 Crime ou Cortesia? A Obra que Fixou Novos Olhares A expresso in dubio pro stereotypo foi a premissa da obra: “Estupro: crime ou cortesia? Abordagem sociojuridica de género”. O intuito foi demonstrar que 0 discurso dos operadores do Direito do pais estava dominado por esteredtipos langados sobre as vitimas dos crimes de 374 Amini Haddad Campos natureza sexual. O esteredtipo havia, entio, alcangado o status de prince pio da normativa social. Trata-se de pesquisa sécio juridica realizada no periodo abrange 0s anos de 1985 a 1995, pelas professoras e pesquisadoras Pimentel, Ana Lticia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian. Sua publicagao foi no ano de 1998, data memoravel pela comemoracao do ano do Cinquentendrio da Declaracao Universal dos Direitos Humanos. ineditismo ¢ consequente destaque foram alcangados porque iricamente, os dados das cinco regides do pais, laridades pertinentes a alguns espagos territo- is da federaco, a exemplo da narrada “falta de preparo e estrutura”™, categoria em que se incluiu 0 Estado de Mato Grosso. Assim, examinou meticulosamente 50 processos judiciais (sen- do, pois, 10 por regio) € 101 acérdaos de estupro. A andlise se verteu A perspectiva de género, em perspectiva inovadora, visto que este enfoque ainda se consolidava em presenga tedrica no Brasil. Aiinda, as regides Centro-Oeste e Sudeste alcangaram resultados de relevincia pot conterem significativa riqueza de informagdes © de detalhes sobre 0 crime cometido e seu respectivo julgamento (vinculando, pois, maior e mais qualificado contetido a perspectiva de género almejada elas pesquisadoras), razio pela qual tiveram mais um caso, cada uma, selecionado para anélise; totalizando, portanto, um total 12 casos relata- dos dentre os 50 processos judiciais examinados. A vista disso, pode-se assegurar que o Centro-Oeste € 0 estado de Mato Grosso figuraram com distingao nos indicativos alcangados pela pesquisa. Isto, contudo, nio significa um resultado positivo. Apés instrutivas e essenciais consideragdes preliminares — compostas pela exposigdo das reflexdes e dos marcos tedricos utilizados, pois, como diretivas da obra —, as autoras apresentam um rico panorama dos 50 casos, com informagées sobre: a) o per i perfil das vitimas; c) o relacionamento entre dos fatos; d) 0 histético dos acontecimentos, segundo investigagdes poli- ciais e depoimentos prestados por réus, vitimas e testemunhas; e) teste- munhas; f) e, por fim, aspectos da fase judicial e das sentengas. Este pa- norama se revelou de extrema valia, pois: [..] a leitura e andlise dos dados quantitativos, especialmente aos re- Ferentes a perfis sécio-econdmicos de réus e vitimas e ao tipo de rela- ® PANDJIARITAN, Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pasto- re, Estupro: crime ou “cortesia™? Abordagem sociojuridica de género. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. p. 6. Vulnerabilidades & Direito 375 ——_________Vilnerabilidades @ Direito 05, ionanento entre eles existente & época do delto, revelaram resulta- dos que se aprosimam dos alcancados em outros estudos latino-ame- ricanos, bem como europeus e norte-americanos sobre estupro, Dat 0 cartier indicative dos resultados quantitative gue ora epresent remos, pois se, por um lado, eles nao permitem Seguras goncraliza. s0es sobre 0 Brasil e suas regides, por outro, eles enconiram eco em ‘Pesquisas internacionais*, Isto significa que esta obra alcangou éxito no apenas em ambi- to nacional, mas notadamente em ambito intemacional, colocando consequentemente, em consonincia com indicativos globais sobre a vio. leacia contra a mulher. : Por outro Jado, sob uma perspectiva mais delimitada ao nosso interesse, os casos da Regidio Centro-Oeste (casos 5, 6 e 7) revelaram caréter paradigmético em seu deslinde, pelas razdes a seguir expostas. _____No caso 5, de estuprada por seu pai a “assassina” de sua filha- foi um exemplo de tréigica aplicago do in dubio pro stereotypo. R. M. S., de 13 anos, negra, foi estuprada por seu pai, S. R.S., negro, 36 anos, em sua prépria casa, no municipio de Cuiabé com a presenga de ameagas de morte e de espancamento por meio de fio elétrico Apés imputar 0 acontecido ao fato de que a menina vivia saindo sua do banho, estereotipando, dessa forma, o comportamento da adoles. cente, © réu admitiu, em fase pol l, @ penetracdo; negando, no entanto, a ejaculagdo. Jé em fase judicial, alegou ter sido vitima de tortura na fase al e negoua autoria. O estupro resultou em gravidez. ____R.M.S. dew luz, no banheiro da casa, a uma menina. Quando entio sua mile e sua tia as’ encontra ima, sem saida a no ser romper com a “conspiracao do siléncio™, informou que o pai da etianga era S. R. S. A crianga, encontrada com papel higiénico na boca, veio a falecer dias mais tarde. , Constatou-se neste processo, com nitidez, a desqualificagio da tima, pelo réu e pelo defensor piiblico, almejando, pois, a inversao dos fatos, com consequente julgamento da menor R. M.S. “[..] a mde, filha desonrada e mais duas cunhadas, auxiliadas Por um delegado de policia € um escrivdo idealizaram a trama nefasta”™. * PANDIIARIIAN, Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHR! 'ZME" 1a Liicia re, Idem, 1998, p. 67-68. s aries Pastor Sobre a vonsprsto de sitaco, cf PANDIIARMAN, Val NTEL, Siva SCHRITZMEYER, Ana Liicia Pastore, Op. p.93. cee ee BANDILARIAN, Vlérts PIMENTEL, Siva, SCHRIT2MEYER, Ara Livia Paste, 3m ‘Amini Haddad Campos natureza sexual. O esteredtipo havia, entio, alcangado o status de princi. pio da normativa social. Trata-se de pesquisa sécio juridica realizada no periodo que abrange os anos de 1985 a 1995, pelas professoras e pesquisadoras Silvia Pimentel, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian. Sua publicagao foi no ano de 1998, data memoravel pela comemoragio do ano do Cinquentenstio da Declaragdo Universal dos Direitos Humanos. ineditismo e consequente destaque foram aleangados porque © estudo garimpou, empiricamente, os dados das cinco regides do pai inclusive destacando particularidades pertinentes a alguns espacos t. riais da federagao, a exemplo da narrada “falta de preparo e estrutura™, categoria em que se incluiu 0 Estado de Mato Grosso. Assim, examinou meticulosamente 50 processos judiciais (sen- do, pois, 10 por regido) € 101 acérdaos de estupro. A andlise se verteu a perspectiva de género, em perspectiva inovadora, visto que este enfoque ainda se consolidava em presenga tedrica no Brasil Ainda, as regides Centro-Oeste e Sudeste alcangaram resultados de relevancia por conterem significativa riqueza de informagées e de detalhes sobre 0 crime cometido e seu respectivo julgamento (vinculando, pois, maior e mais qualificado contetido a perspectiva de género almejada pelas pesquisadoras), razo pela qual tiveram mais um caso, cada uma, selecionado para anélise; totalizando, portanto, um total 12 casos relata- dos dentre 0s 50 processos judiciais examinados. A vista disso, pode-se assegurar que 0 Centro-Oeste e 0 estado de Mato Grosso figuraram com distingaio nos indicativos alcangados pela pesquisa. Isto, contudo, ndo significa um resultado positivo. Apés instrutivas essenciais consideragées preliminares — compostas pela exposigio das reflexdes e dos marcos tedricos utilizados, pois, como diretivas da obra -, as autoras apresentam um rico panorama dos 50 casos, com informagdes sobre: a) o perfil dos indiciados; b) 0 perfil das vitimas; c) o relacionamento entre indiciado e vitima época dos fatos; d) 0 histérico dos acontecimentos, segundo investigagées poli- ciais e depoimentos prestados por réus, vitimas e testemunhas; e) teste- munhas; f) e, por fim, aspectos da fase judicial e das sentengas. Este pa- norama se revelou de extrema valia, pois: [..] a leitura ¢ andlise dos dados quantitativos, especialmente aos re~ Jerentes a perfis sécio-econdmicos de réus e vitimas e ao tipo de rela- "© PANDSIARIIAN, Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lécia Pasto- re, Estupro: crime ou “cortesia"? Abordagem sociojuridiea de género. Porto Alegre: ‘Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 6. Vulnerabilidedes & Direito 375, —_——_—____—ntinembilidades & Direito 35, cionamento entre eles existente & época do delito, revelaram resulta- dos que se aproximam dos alcangados em outros estudos latino-ame- ricanos, bem como europeus e norte-ame i ‘cardter indicativo’ dos resultados quantitativos que ora apresenta- remos, pois se, por uni lado, eles nao permitem seguras generaliza- {G0es sobre o Brasil e suas regides, por outro, eles encontram eco em Pesquisas internacionais" Isto significa que esta obra alcangou éxito ndo apenas em ambi- to nacional, mas notadamente em Ambito internacional, colocando-se, consequentemente, em consonéncia com indicativos globais sobre a vio- Iéncia contra a mulher. Por outro lado, sob uma perspectiva mais delimitada ao nosso interesse, os casos da Regido Centro-Oeste (casos 5, 6 7) revelaram carter paradigmitico em seu deslinde, pelas razdes a seguir expostas, No caso 5, de estuprada por seu pai 4 “assassina” de sua filha- ~irma, foi um exemplo de tragica aplicago do in dubio pro stereotypo. R. M. S., de 13 anos, negra, foi estuprada por seu pai, S. R. S., negro, 36 anos, em sua prépria casa, no municipio de Cuiabé, com a presenga de ameagas de morte e de espancamento por meio de fio elétrico. Apés imputar 0 acontecido ao fato de que a menina vivia saindo nua do banho, estereotipando, dessa forma, o comportamento da adoles- cente, o réu admitiu, em fase policial, a penetragéo; negando, no entanto, a ejaculagdo. J4 em fase judicial, alegou ter sido vitima de tortura na fase Policial e negou a autoria. O estupro resultou em gravidez. R.M. S, dew a luz, no banheiro da casa, a uma menina. Quando ento sua mae ¢ sua tia as encontraram, a vitima, sem saida a ndo ser romper com a “conspiragdo do siléncio”™, informou que o pai da crianga era S. R. S. A crianga, encontrada com papel higiénico na boca, veio a falecer dias mais tarde. Constatou-se neste processo, com nitidez, a desqualificagio da vitima, pelo réu e pelo defensor puiblico, almejando, pois, a inversio dos fatos, com consequente julgamento da menor R. M. a me, filha desonrada e mais duas cunhadas, auxiliadas por um delegado de policia e um escrivao idealizaram a trama nefasta”™, PANDIIARJIAN, Valéria; PIMENTEL, Silvis; SCHRITZMEYER, Ana Liicia Pasto- re. Idem, 1998, p. 67-68, cf. PANDJLARJIAN, Valéria; PIMENTEL, Silvia; astore, Op. cit, p. 95. = PANDJIARTIAN, Vals; PIMENTEL, Siva; SCHRITZMEVER, Ana Lica Pastor, 1 316 Amini Haddad Campos Dessa maneira, a estuprada foi qualificada como “filha deson- rada” e de forma aterrorizante teve seu papel de vitima substituido irre- versivelmente pelo papel de assassina. Qual seria a denincia, afinal? Qual era o caso julgado? Essas perguntas so necessérias, visto que sem dentincia por infanticidio como isso poderia existir em processo estranho em que se apurava o crime de estupro? O resultado foi a absolvicao do estuprador. Isso leva a perceber 0 quo diverso se mostra 0 universo do jul- gamento nesses processos, bem como da drastica mudanga de posicao ocupada pela vitima. Afinal, como nao ha julgamento em relasao a esta, visto que inexiste demincia, com todos os aspectos formais de sua exi- géncia, tudo se faz possivel 4 modificagao do universo da conduta crimi- rosa posta na pega acusatéria, Em outras palavras, ocorre a recorrente inversdo dos atores e dos fatos no processo. De vitima, a ofendida passa a ser ré, Mas questio- na-se: qual a deniincia formalmente atribuida? Ademais, por ser vitima, como poderia defender-se? Resta claro que © rompimento do siléncio por parte da vitima resultou nao sé na manutengdo da violagaio de sua dignidade, como tam- bém trouxe a ela o estigma de conviver com o rétulo de assassina. Por fim, no que concerne ao abuso sexual incestuoso, sublinhe-se a observa- do de Saffioti: (..] 0 abuso sexual, sobretudo incestuoso, deixa feridas na alma, que Sangram, no inicio sem cessar, e posteriormente, sempre que uma si- taco ou um fato lembre 0 abuso softido. A magnitude do trauma ndo guarda proporcionalidade com rela¢do ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas com éxito num grande niimero de casos. Feridas da alma podem, igualmente, ser traiadas. Todavia, as proba- bilidades de sucesso, em termos de cura, sdo muito reduzidas e, em grande parte dos casos, ndo se obtém nenhum éxito™. Na sequéncia, no tocante ao caso 6, intitulado “Mt crimes, vitimas”, apurou-se que ha perceptivel diferenga processos de estupro quando em concurso com outro(s) delito(s) O caso, ocorrido no municipio de Chapada dos Guimaraes — MT, consistia em estupro, praticado por 2 réus contra uma jovem de 20 anos, seguido de roubo de veiculo. Ainda, semanas apés, mais um roubo, desta vez contra uma jovem de 15 anos. Trata-se, desta maneira, de réus de indole inquestionavelmente criminosa, bem como longa ficha crimi- SAFFIOTI, Heleieth. Género, patriarcado, violencia. 2. ed. So Paulo: Fundagio Perseu Abramo, 2015. p. 19. Vulnerabilidades & Direito 377 nal. Houve condenagao, sem maiores discussdes. Em sintese, a conclusdéo ‘a que chegaram as autoras foi assim exposta, em seus dizeres: L.] neste tipo de processo néo hi, em funeéo da prevaléncia dada — ‘mais consciente ow inconscientemente — aos bens juridicos vida e pro Priedade, praticamente nenhuma ambivaléneia por parte do Esiado ¢ da sociedade. O estupro, por esta raziio é tratado, neste caso, mais ob- Jetivamente, no sentido de menos preconceituosa e estereotipadamente™, ia no estupro de B. L. C., 60 anos, por B. L. D., 22 anos, cujo histérico de frequente embriaguez e perseguicao de mulheres foi apontado pelas testemunhas em juizo. Neste aso, observou-se que o perfil da vitima foi levantado de maneira visi- velmente discriminatéria: “[..] a vitima, “preta”, vitiva, de 60 anos, foi caracterizada como velha, prostituta, bébada e aliciadora de menores, “porque gostava de estar com rapazes jovens para manter relacdes se xuais”. Explicitamente as autoridades disseram que a palavra de uma pessoa como esta nada pode valer”®” Desta feita, como bem pontuado, despertou a atengdo das auto- tas ndo s6 a absolvig&o, mas particularmente a conotagdo das palavras escolhidas pelo juiz em sua decisdo. Neste diapasdo, convém destacar a ligdo de Daniella Georges Coulouris em sua tese de doutorado: Os discursos juridicos sobre o estupro deslocam sua atencdo na inten- $Ao/desejo da mulher que foi estuprada. Investigam seu vestido, com. Portamento e historia sexial. Assim, discursivamente se consiréi wma dade da “verdadeira vitima” de estupro. Se ela se comportou entao niio é verdadeiramente wma vitima de estupro. Indepen- dente de parecer estar falando a verdade. Um exemplo ¢ a diferenga que fezem entre as prosinitas e as mulheres “inocentes” que foram Vio~ lentadas de forma semelharte. [..]. Assim, o modo como 0 crime de es- tupro é definido pela midia e pela lei baseia-se, na prética, em uma construgdo especifica de sexualidade masculina e feminina De acordo com os discursos miditicos e juridicas, o estupro sé aconteceu real- ‘mente quando a vitima e o acusado encarnam determinada sexualidade masculina e determinada sexualidade feminina, respectivamente™, = ao Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Licia Pastore, * BaNDIARIAN ‘alii; PIMENTEL, Siva; SCHRITZMEVER, Ana Lia Pastor, Lal eee Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Licia Pastore, COULGURIS, Dasists Georges. A Desconflang em relagto&Palavea da Vitima 0 Sentida da Pusigle con Erocctone Teale tc eae aes da Vitima 378 Amini Haddad Campos ‘Também ocorreu mais uma vez (como jé observado no caso 1) a tentativa de desqualificagdo das declaragdes constantes do interrogats- rio sob 0 argumento de obtendo mediante espancamento na delegacia de policia. Desta maneira, pronunciaram-se as autoras: “Este relato é muito Si ivo e merece reflexéo. Mais ainda porque alegagdes de espan- camento na policia séo muito frequentes e servem, quase sempre que invocadas, para desqualificar o primeiro interrogatério do indiciado™®. Por todos 0s aspectos mencionados neste item, nao restam dit- vidas, portanto, de que esta obra merece destaque na bibliografia nacional sobre o estupro e suas nuances. A ampla abordagem do delito e de suas miiltiplas facetas sob a perspectiva de género demonstrou que o estupro um crime cuja pratica sistematizada deve ser necessariamente combatida, Portanto, existiu durante um longo periodo no Brasil diversas justificativas para a pratica do estupro, em muitos casos, havendo inver- so de papéis, em que as vitimas se tormaram “autoras” da violéncia que softeram. Logicamente, isso se estendeu fortemente ao ambito conjugal, estabelecendo o entendimento de que a mulher deveria “pagar” frequen- temente 0 seu marido, como se fosse uma eterna devedora sexual, mesmo contra a sua vontade. Podendo o seu “senhor” forgar 0 coito quando bem entendesse, nao configurando isso, em regra, um crime. 4 DIALOGOS PUBLICOS E A MUDANCA DE PARADIGMA 4d Histérico da Jurisprudéncia Sobre o Estupro na Relacio Marital © objetivo desta pesquisa seré, em sua esséncia, alcangado no presente item a partir da andlise de decisdes embleméticas que foram encontradas por meio de pesquisas de jurisprudéncias. Para que seja pos léncias sobre estu- pro na relagdo marital, conv. io de alguns dados estatisticos acerca do tema, além de conceitos culturais que podem ser levados em conta pelos magistrados e que venham a influenciar nas suas decisdes. torado em Sociologia) — Universidade de Sto Paulo, S40 Paulo. Disponivel em: -. Acesso em: 21 jan. 2018, p. 96-97. © PANDJIARJIAN, Valéria; PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Liicia Pastore, Op. cit, p. 137. Vulnerabilidades & Direito 379 __, Em 2002, documento publicado pelo Ministério da Satide que trata da Violéncia Intrafamiliar” revelou que, a cada quatro casais, é observada a ccorréncia de violéncia entre os cénjuges em pelo menos um. No Brasil, naquele ano, foram registradas mais de 205 mil agressdes nas Delegacias da Mulher em todo o pais, niimero relevante quando observados também os dados coletados em 1993, data em que foram registrados 11 mil estupros em 12 capitais, bem como de 01 agressiio a cada 4 minutos no pais. Pesquisa realizada pela FIBGE (Fundagdo Instituto Brasil Geografia e Estatistica), em 1989, demonstra que 63% das violéncia no espago doméstico sao mulheres e que, destas, 43,6% tém entre 18 € 29 anos; e outros 38,4%, entre 30 e 49 anos. Em 70% dos casos, 08 agressores sio os préprios maridos ou companheiros*, Esses dados, mesmo considerando o afastado periodo a atuali- dade, demonstram que a realidade da violéncia contra a mulher dentro de uma relacdo marital no € algo recente, mas o resultado de costumes atemporalmente arraigados, nos quais a mulher era muitas vezes forcada ‘a manter relagdes sexuais com o marido, mesmo sem vontade, ___, Essa situagdo era, muitas vezes, observada como uma das obri- ‘gagdes da espose. Por isso, vergonha e medo se misturavam ao cotidiano da violéncia. Tal fato pode ser destacado dos préprios textos jurispruden- is tal como ocorrido recentemente no Tribunal de Justiga de Rondé- €m julgamento de 03.07.2014, que teve como relatora ‘a Desembar- gadora Ivanira Feitosa Borges: “A mulher pode ser vitima de crime de estupro praticada pelo préprio marido, pois embora a pritica sexual constitua uma dos deveres do casamento, a mulher tem a livre disponibi- lidade do préprio corpo que nao é propriedade do homem”. ,____Necessério avultar que essa compreensio de dever no resguarda pardmetro de alicerce constitucional ¢ legal. Compartilhamento e respeito é © baldrame da vida em comum, concemente 20 matriménio. Vejamos: CC~ Lei 10,406 de 10.01.2002 Insttui o Cédigo Civil, ‘Subtinulo I Do Casamento Art 1.566. Sao deveres de ambos os cénjuges I fidelidade reciproca; I~ vida em comum, no domicilio conjugal; tério da Satide, Secretaria de Saiide, Violéncia intrafamiliae: orienta- a em servigo. Brasilia, Ministério da Saiide, 2001. 380 Amini Haddad Campos HL ~ mittua assisténcia; JV ~sustento, guarda e educagdo dos filhos; Serd apresentada neste primeiro momento a ementa da ago jul gada no Tribunal de Justia de Mato Grosso do Sul, em que o marido fc absolvido da acusagdo de estupro contra a esposa, com quem vivia ha mais de 26 anos, destacando 0 voto e os comentarios do Desembargador Jodo Batista da Costa Marques. Tribunal de Justica de Mato Grosso do Sul TJ MS ~ Apelacéo Cri- ‘minal: ACR 1432 MS 2010.001432-3 Proceso: ACR 1432 MS 2010.001432-3 Orgao Juigador: 1° Turma Criminal Partes: Apelante: Walter Rosa Dias, Apelante: Ministério Piiblico Esta- dual, Apelado: Walter Rosa Dias, Apelante: Ministério Piiblico Estadual Publicagéo: 22.04.2010 Sulgamento: 15.04.2010 Rel.: Des. Jodo Batista da Costa Marques Ementa: APELACAO CRIMINAL. LESOES CORPORAIS, ES- TUPRO_E_AMEAGA. CONDENACAO EM _APENAS DOIS CRIMES. INCORFORMISMO DO MP. PRETENSAO DE QUE A CONDENACAO SE ESTENTA AO CRIME DE ESTUPRO. MARIDO E MULHER. PROVAS DUVIDOSAS SOBRE A JUS- TA CAUSA DA NEGATIVA AO ATO SEXUAL. CIRCUNS- TANCIAS PUNIDAS PELOS OUTROS DELITOS. EVENTUA- LIDADE DA CONSUMACAO. RECURSO IMPROVIDA. ‘Nesta ago, em especial, o marido foi absolvido do crime de es- tupro, mesmo tendo a deniincia, entdo promovida pelo Ministério Pablico no referido processo, mencionado que a mulher era “submetida, damente, & pratica de relagé. as com arma de fogo”, com todos os incluindo laudo procedido em pericia oficial. Além disso, 0 Desembargador Joao Batista da Costa Marques, observa que 0 laudo descreve, com preciséo, as agressdes sofridas pela vitima, inclusive sobre a conjung&o carnal, 0 que corrobora com 0 relato da narrativa consignada na dentincia, onde restou ressaltado: “narrou que ¢as [..] a agride antes, durante e depois das relagées sexuais, 0 que se repetiu na data dos fatos”. Vale \embrar neste momento os ensinamentos de Damasio de Jesus. Entendemos que 0 marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a prépria esposa. Embora com 0 casamento surja 0 direito de Vulnerabitidades & Direito 381 ————__Witnembilidades & Direito 38. ‘manter relacionamento sexual, tal direito néo autoriza 0 marido a Jorgar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violéncia fis: ‘ca ou moral que caracteriza 0 estupro. Nao fica a mulher, com Samento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obriga. da a manter relagoes sexuais quando e onde este quiser. Nao perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual [..]. Assim, sempre que a mulher ndo consentir na conjungdo carnal ¢ 0 marido a obrigar ao ato, com violéncia ou grave ameaca, em principio caracterizar-se-d 0 crime de estupro, desde que ela fe. ‘nha jusia causa para a negativa”, Outro dado que merece destaque & que em seu voto, apesar de 0 Desembargador Jodo Batista da Costa Marques afirmar que a vitima tinha as lesdes e que fez relatos das violéncias sexuais, este “justifica” a absol- gd por estupro, em razio de que a utilizagaio de ia, no momento do ato sexual, era considerada como uma reagdo normal do acusado, co- mo observado no trecho da redagdo do seu voto, destacado abaixo: [.] 0 réu era um agressor contumaz e que nao escolhia um momento Proprio para agredir, pois facia costumeiramente, em qualquer hora, ou em qualquer lugar. [..] Melhor dizendo, o que um casal normal vi- vencia por simples didilogos ou até discussdes insignificantes, em face da negativa de um dos eénjuges se negar & pratica do ato sexual, 6 réu Walter Rosa Dias resolvia com truculéncia ¢ através de agressdes. Da leitura do teor do processo, observa-se que em seu voto o Desembargador Joao Batista da Costa Marques também justifica a absol- vigdo devido ao fato de que a vitima nfo mencionou a violéncia sexual quando ouvida em juizo, mas somente no momento do Boletim de Ocor- réncia, quando faz varios relatos a Assistente Social ¢ ao Pol . Desconsidera-se as demais provas dos autos, inclusive o laudo. De igual forma, néo se percebe o constrangimento da vitima em revelar, repetidas vezes, a violéncia sofrida — que jé havia sido relatada e que constava nos autes. O tinico detathe que chama atengao neste propedéutico é a falta de referéncia és relagdes sexuais ndo consentidas. Nao se sabe o por- qué da vitima sé expressar essa questo em juizo, depois que o pro- cesso jé tinha enveredado por muitos detalhes comprobatérios.[...] ora, como a vitima tinha tomado coragem de denunciar o acusado dos maus tratos, ndo se entende a razéo de calar-se ante uma condi. so que deveria ter sido exposia desde 0 nascimento das pecas in- vestigatérias. ® JESUS, Damasio E de. Direito penal. 23. ed. S40 Paulo: Saraiva, 2000. p. 96. 382 Amini Haddad Campos Coneluindo seu voto, 0 Desembargador Jodo Batista da Costa Marques trata a violéncia sexual como um elemento circunstancial, Creio que também acertada a conclusdo de que ndo howve 0 crime de estupro, por se constituir num elemento circunstancial que surgiu no decorrer dos atos abusivos, nao devendo ser analisado na sua parti. cularidade, até porque a andlise dos fatos, por ocorrerem num ambi. ente familiar e dentro das particularidades que envolvem 0 relate. namento do casal, nao se pode a julgar causa nem de um nem de ou. tro, (destacamos) Outro exemplo que demonstra como a mulher se vé constrangida em denunciar ¢ observado-na ag4o movida no Tribunal de Justica do Distri- to Federal e Tertit6rios em 2011. Nesta aco, os Desembargadores Geor Lopes Leite, Sandra de Santis e Maria Berenice Dias observam em varios momentos que 2 vitima fez varios boletins de ocorréncia, onde denunciava 0 agressor, seu marido, por maus-tratos fisicos, apesar de nfo ter ofertado dentincia, em face das relagdes sexuais as quais foi obrigada a praticar, mesmo presente a violéncia, com evidéncia documentada nos autos. Tribunal de Justica do Distrito Federal e Territérios TJ-DF ~ APR: Proceso: APR 176453520068070009 DF 0017645-35.2006.807.0009 Orgdo Sulgador: 1? Turma Criminal Publicagao: 06.04 2011, Dive Pdg. 243. Julgamento: 23.03.2011 Rel.: George Lopes Leite APELACA IMINAL — ESTUPRO CONTRA A COMPA. 0 CRIMINAL — - NHEIRA” DOLO NAO COMPROVADO © DESCLASSIFICA- CAO - LESOES CORPORAIS. I. INDENE DE DUVIDAS QUANTO A POSSIBILIDADE DE 0 MARIDO/COMPANHEIRO SER SUJEITO ATIVO DO CRI- ME DE ESTUPRO. DEVE-SE, NO ENTANTO, AVALIAR AS CIRCUNSTANCIAS FATICAS DO CASO. Il. A DESCLASSIFICACAO PARA LESOES CORPORAIS E MEDIDA QUE SE IMPOE QUANDO NAO HA EVIDENCIA DO DOLO EXIGIDO PELO ART. 213 DO CP. NA HIPOTESE, MANIFESTO TAQ-SO 0 DESEJO DE PRODUZIR DANO ‘ORPORAL A ViTIMA. Til, APELO PARCIALMENTE PROVIDO PARA DESCLAS- SIFICAR A CONDUTA DO ART. 213 C/C ART. 226, INC. IL DO CP PARA A DE LESOES CORPORAIS NO AMBITO FAMILIAR. Acordao Vulnerabilidades & Direito 383 DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DA REVISORA, QUE REDIGIRA 0 ACORDAO. O RELATOR NEGAVA PROVIMENTO NA TOTALIDADE. Em seu voto, a Desembargadora Sandra de Santis lembra que a companheira relatou que as relagdes sexuais eram mantidas com resistén- cia, contudo optou por permanecer com o acusado, sem denuncia-lo. Além disso, a Desembargadora evoca os ensinamentos de Joao Mestieri, que afirma que “‘se houver concordéncia, em alguma fase pos- terior ao inicio, mas antes do final, permitindo concluir que a relagao terminou de maneira consentida, desfaz-se a figura do estupro”?, Isso nos mostra o peso da cultura para o imprescindivel registro critico, no concemente a efetividade dos Direitos Humanos das Mulheres. Apés a exposigao desta jurisprudéncia, oportuno trazer a lume trecho do relatério anual Condiciones de Salud en Las Americas: Um fator significativo da vitimizagao pode ser o fato de que a mulher foi socializada para ser mais desvalorizada, passiva, resignada e sub- ‘missa que 0 homem. Sem diivida, a explicagéo da origem deste fenbme- no, e sua magnitude, hé que buscd-la nos fatores culturais ¢ psicossociais que predispoem o agressor a cometer esta violencia e nas formas em que a sociedade tolera, ¢ inclusive estimula, este comportamento. A maior parte desta violéncia se tolera em siléncio, se legitima em leis ¢ costumes e se justifica como ‘radi¢do' cultural. Sua forma mais endé. ‘mica sido os maus-tratos é esposa, 0 qual ocorre de forma universal em todos os grupos raciais, culturais e socioecondmicos. A prevaléncia re- al de maus-tratos a mulheres niéo se conhece, dado que os casos de abuso seguem sendo pouco notificados. Por um lado, porque a mulher se envergonha do fato, 0 aceita, teme represélias do companheiro, ou da familia, ou porque ndo encontra apoio no sistema juridico™. ‘Na mesma ordem indagativa, vale destacar a ementa apresenta- da abaixo, advinda do Tribunal de Justiga do Rio Grande do Sul, datada de 1995, anos antes da promulgacao da Lei Maria da Penha. O magistra- do aponta que no estupro 0 marido pode ser agente do crime, ou seja, que mesmo dentro de uma relagio marital, quando o ato ndo é consentido, considerado como estupro. Isso, pois, deve ser a orientagio que destaca 0 compromisso de verdadeiro respeito a égide constitucional da garantia de dignidade a todos os humanos, independentemente de sua condigao. Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul TJ-RS ~ Apelagéo Crime: ACR 695018143 RS % Cédigo Penal Comentado. 2009, p. 878-879, * BRASIL, 2001, p. 16.

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