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1
LISTA DE FIGURAS
Figura 3 ± Autorretrato de orelha ligada (1889) de Vincent van Gogh ............................................. 59
2
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 5
2.1.5 Individuação...................................................................................................... 22
3 SONHOS ................................................................................................................. 36
³62/&20&+89$´᪥↷ࡾ㞵) ....................................................................... 37
3.³2320$5'263(66(*8(,526´᱈⏿)....................................................... 45
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 79
3
1 INTRODUÇÃO
É íntima a ligação entre sonhos e arte. O pintor Salvador Dalí, figura máxima do
movimento surrealista, foi inspirado por A interpretação dos sonhos (1900), o tomo
apoteótico do pai da psicanálise, Sigmund Freud. Dois clássicos de suspense do século
XIX ± Frankenstein (1818) de Mary Shelley e O médico e o monstro (1886) de Robert
Louis Stevenson ± foram escritos depois de seus autores terem acordado de um
pesadelo e feito deles a espinha dorsal de seus livros. O poeta britânico William Blake
dava bastante valor aos seus sonhos, e seu estado de vigília e noturno eram fortemente
entrelaçados (VAN DE CASTLE, 1994).
A associação entre sonhos e cinema vem de longa data. Grandes diretores como
Buñuel, Bergman e Fellini foram inspirados por suas experiências oníricas, muitas
vezes tentaram reproduzi-las através de técnicas da 7º arte (VAN DE CASTLE, 1994).
O espanhol Luis Buñuel (1900-1983), pioneiro do movimento surrealista, inspirava-se
nos seus sonhos para traduzir sua imaginação delirante para as telas do cinema. O seu
primeiro filme, Um Cão Andaluz (1928), cujas possíveis interpretações confundem os
críticos até hoje, é vivo exemplo disso (EBERT, 2004). Ingmar Bergman (1918-2007),
QXPDHQWUHYLVWDGHFODURXWHUGHVFREHUWRTXHWRGRVRVVHXVILOPHV³HUDPVRQKRV´$
obra-prima do diretor italiano Federico Fellini, 8½ (1964), foi grandemente inspirado
por seus sonhos (VAN DE CASTLE, 1994).
É partindo dessa longa tradição que se chega a Sonhos (1990), o foco desse
trabalho. Esse é um dos últimos filmes do diretor japonês Akira Kurosawa (1918-
1993). Depois de finalizar a sua obra-prima Ran (1985), Kurosawa passou cinco anos
procurando financiamento para seu próximo projeto, até que finalmente conseguiu o
apoio de diretores consagrados como Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford
Coppola (RICHIE, 1996). Sonhos foi rodado durante o boom final de criatividade do
diretor, que concluiu produções filmes em quatro anos (NOVIELLI, 2007; PRINCE,
1999). Sonhos inaugura a fase final de Kurosawa, onde o diretor parte para um modo
5
narrativo novo e experimental, mais contemplativo e autobiográfico. O roteiro do filme
foi construído a partir de oito sonhos de Kurosawa. Os temas do filme de Kurosawa
são múltiplos; temos desde fatores ecológicos até libelos antiguerra, como nos
episódios O Túnel e O Demônio Choroso (PRINCE, 1999; RICHIE, 1996).
Os sonhos têm um papel fundamental na teoria e práxis da psicologia analítica,
fundada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Jung procurou durante
toda a sua carreira entrar em contato com a cultura, os mitos e as religiões de outros
povos e nações, assim enriquecendo e expandindo a sua abordagem psicológica (BAIR,
2006a, 2006b). Essa abordagem pluriculturalista é de suma importância nesse trabalho,
onde se explorará sonhos que nascem de uma psicologia diferente da ocidental. Visa-
se utilizar as ferramentas conceituais da psicologia Junguiana para analisar um artefato
cultXUDOPDLVSUHFLVDPHQWHXPILOPH'L]0HW]STXHRFLQHPD³pKiELO
em designar coisas sem nomeá-ODV´± ou seja, algo prenhe de um simbolismo que por
natureza ultrapassa os estreitos confins da racionalidade. Novielli (2007, p. 19) aponta
que o FLQHPD IRL WLGR LQLFLDOPHQWH FRPR ³XP LQWHUPHGLiULR LGHDO FRP R PXQGR
RFLGHQWDO´SDUDRVMDSRQHVHV3HUFRUUH-se o caminho contrário neste trabalho: Sonhos
será uma porta de entrada para a psique japonesa, algo pouco explorado por analistas
Junguianos ocidentais.
No entanto, o próprio Jung (1986) alertava para as dificuldades dessa aventura
intelectual, pontuando as diferenças fundamentais entre o pensamento oriental e
ocidental. Para exemplificar as dificuldades dessa tarefa transcultural, o analista
Junguiano japonês Kawai (2007) aponta que os contos de fada manifestam
características da cultura das quais são oriundos, possuindo seus próprios significados;
assim sendo, a interpretação dos contos japoneses por pesquisadores ocidentais é, por
hábito, uma tarefa confusa e difícil. Até teorias ocidentais aplicadas por pesquisadores
japoneses no folclore do seu próprio país sofrem do mesmo problema.
No entanto, Kawai (2007) atina para o fato de que os contos de fada possuem
uma natureza universal. Isso se encontra dentro dos conformes da pesquisa analítica
que, ao se debruçar sobre os mitos e símbolos de vários povos, procura os temas
6
universais em todas as culturas que nos definem e unem e como seres humanos. Franz
SGHIHQGHDSRVLomRGHTXHRV³FRQWRs de fadas são a expressão mais pura e
PDLVVLPSOHVGRVSURFHVVRVSVtTXLFRVGRLQFRQVFLHQWHFROHWLYR´1LVVRVmRGLIHUHQWHV
dos mitos, que para ele já têm uma elaboração cultural e refletem o caráter nacional
dos seus países de origem.
De acordo com Lakatos e Marconi (2010), a pesquisa desenvolvida nesse
trabalho é de cunho bibliográfico. Ou seja: é feito um levantamento baseado na análise
de material previamente publicado (artigos, filmes e livros) sobre o tema, para o
pesquisador poder apropriar-se dele. Apesar de ter por base fontes secundárias, a
pesquisa bibliográfica não é mera repetição do passado; ela pode revelar novos insights
e conclusões a respeito do tema pesquisado.
O objetivo deste trabalho foi interpretar, pela ótica da psicologia analítica, o
roteiro de Sonhos. Esse trabalho de interpretação considerou não só a biografia do
diretor como também como as especificidades religiosas, econômicas e folclóricas do
Japão. Esse aprofundamento na cultura nipônica é necessário, pois o risco de uma
interpretação unilateral, privilegiando um repertório simbólico judaico-cristão
ocidental, é real.
7
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS
9
³DUTXpWLSRV´FXMDGHVFULomRVHUiIHLWDQXPDVHomRSRVWHULRUGHVWHFDStWXOR2XWURWUDoR
herdado da filosofia kantiana por Jung é a desconfiança do filósofo alemão a respeito
da metafísica. Mesmo depois dos longos anos de trabalho dedicados à compreensão
das crenças envolvendo a teologia cristã, gnosticismo, astrologia e alquimia, o Jung
maduro foi categórico em evitar que especulações místicas e transcendentais fizessem
parte do seu sistema de psicologia (CLARKE, 1993).
Depois de terminar o ginásio, era hora de decidir-se por uma profissão. Dividido
entre as ciências naturais e as ciências do espírito, Jung (2005) optou pela medicina.
Apesar da sua rotina atarefada com os atendimentos clínicos, ele teve tempo para ler a
obra de Friedrich Nietzsche (1840-1900). Assim Falou Zaratustra (1883-1885) teve
uma profunda impressão nele. Esse livro, mais o Fausto de Goethe, foram os pontos
de partida de sua obra, segundo o próprio. Ao concluir sua graduação especializou-se
em psiquiatria, pois nesta sua disciplina poderia estudar de perto seus temas favoritos:
o espiritualismo e a teoria religiosa (BAIR, 2006a).
Em dezembro de 1900, Carl Jung mudou-se da Basiléia para aceitar um cargo
de médico assistente no Hospital e Clínica Universitária Psiquiátrica Cantonal de
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prestigiados da Europa. Na direção do hospital estava Eugene Bleuler (1857-1939),
famoso por seus métodos pouco convencionais e trato humanitário com os seus
pacientes esquizofrênicos. Com o apoio do diretor do Burghölzli, escreveu a sua
dissertação médica sobre o espiritualismo, baseadas nas experiências mediúnicas de
Helly Preiswerk (BAIR, 2006a).
10
suas ideias com as do polêmico neurologista. A Interpretação dos Sonhos é considerada
a obra-prima de Sigmund Freud; é onde o médico vienense fundamenta a sua teoria do
LQFRQVFLHQWHHGHIHQGHTXHD³YLDUpJLD´SDUDR seu acesso, o sonho, satisfaz desejos
reprimidos. Na gênese desse fenômeno está o conhecido complexo de Édipo, onde a
criança manifesta erotismo e amor em relação a um dos seus genitores e ciúme e
hostilidade para com o outro (JONES, 1979). Na opinião de Jung (1989), os problemas
levantados pelo autor de A Interpretação dos Sonhos eram de suma importância para a
psiquiatria e a neurologia.
No entanto, as ideias de Freud na época eram tidas como sem mérito, entre o
escandaloso e o pseudo-científico (KERR, 1997). Quando Freud expôs A Etiologia da
Histeria (1896) perante a Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, a recepção
IRLJpOLGD)UHXGDILUPDYDQDVXDFKDPDGD³WHRULDGDVHGXomR´TXHDKLVWHULDHPVXDV
pacientes adultas tinha a sua origem em traumas sexuais da infância, causados pelos
abusos de pais perversos. Um exemplo do ceticismo que se seguiu foi a reação do
psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, autor do seminal Psychopathia Sexualis (1886).
Krafft-Ebing estava presente na exposição de Freud (era presidente da sessão) e
GHFODURXTXHRVUHVXOWDGRVREWLGRVSHORVHXFROHJDVRDYDPFRPRXP³FRQWRGHIDGDV
FLHQWtILFR´-21(6S$LQVLVWrQFLDGRQHXURORJLVWDYLHQHQVHQDHWLRORJLD
sexual da histeria já tinha provocado indignação moral (JUNG, 1989). A afronta de
suas ideias à moralidade vitoriana pode ter sido um fator de resistência; porém, deve-
se também admitir que as bases empíricas de sua hipótese eram frágeis. De fato, o
próprio Freud admitiu na sua correspondência com o médico alemão Wilhem Fliess
(1958-1928), seu amigo íntimo naquele período, a dificuldade de angariar provas
FRQFUHWDVSDUDHVVHVFDVRVGH³VHGXomR´&RQFOXLXTXHRVUHODWRVFROKLGRVSRUHOHHUDP
na verdade fantasias inconscientes de suas pacientes. A sua marginalização acadêmica,
suspeitava Freud, devia-se à sua origem judaica. Por isso, supostamente, a nomeação
para o cargo de Professor-Adjunto na Universidade de Viena ± garantia de melhoria na
sua atividade clínica e de poder fazer conferências sobre a psicanálise, no seu estado
embrionário ± sofreu inúmeros revezes (JONES, 1979). Fora as suas opiniões
desconcertantes a respeito da sexualidade e o antissemitismo austríaco, Freud tinha de
11
conviver com uma mancha na sua carreira: na década de 1880 ele foi o principal
divulgador da cocaína na Europa, alegando que a aplicação dessa novidade
farmacológica tratava a fadiga, a impotência sexual e a neurose (KERR, 1997).
No início da carreira universitária de Jung (2005), quando ele se tornou professor
de psiquiatria da Universidade de Zurique e médico-chefe do Burghölzli, a psicanálise
só era discutida nos corredores dos congressos de medicina e nunca na pauta principal.
A essa altura da história, C. G. Jung e Franz Riklin (1878-1938), um colega do
Burghölzli, já tinham se tornados peritos no teste de associação de palavras. Foi Sir
Francis Galton1 (1822-1911) o inventor da experiência onde um paciente era
incentivado a anunciar a primeira coisa que associasse à lista de cem palavras-estímulo
ditas pelo aplicador do teste. Ao repassar novamente a lista de palavras, Galton
descobriu três coisas: (i) algumas associações provocavam emoções específicas; (ii)
algumas associações remontavam à eventos da infância; (iii) algumas associações se
repetiam. Riklin tomou conhecimento desse teste no período em que trabalhou na
clínica do eminente psiquiatra Emil Kraepelin (1856-1926), com a diferença que um
cronômetro era usado para medir o tempo das respostas. Jung aplicou uma versão mais
sofisticada deste teste, utilizando um galvanômetro para medir a resistência elétrica
cutânea para as respostas verbais. Jung e Riklin teorizaram sobre os conflitos
psicológicos por trás da amnésia, da demora ou da repetição constante de certas
UHVSRVWDV SRU WUiV GHOHV KDYLD RV ³FRPSOH[RV´ DJUXSDPHQWRV GH VHQWLPentos
suprimidos ligados à repressão sexual. Jung se alicerçou na psicanálise ± considerada
por ele como uma das maiores conquistas da psicologia moderna ± para explicar a
psicopatologia subjacente a estes complexos. O experimento da associação de palavras
deu a Jung fama internacional. Apesar de Freud ter uma postura crítica em relação às
experiências de associação feitas por Jung e a equipe de Zurique, os testes efetuados
pelos suíços tiveram peso para o status científico da psicanálise como método de
investigação (KERR, 1997).
1
Inventor da psicometria e primo de Charles Darwin (1809-1882), o pai da teoria da evolução (SCHUTZ;
SCHULTZ, 1992).
12
Na primavera de 1906, Jung escreveu a sua primeira carta endereçada à Freud,
estabelecendo assim a correspondência entre eles (BAIR, 2006a). Jung (2005) por fim
visitou Viena a convite de Freud, em fevereiro de 1907. A conversa entre os dois
homens durou 13 horas. Jung ficou impressionado, achando-R³H[WUDRUGLQDULDPHQWH
LQWHOLJHQWH´ )LFRX WDPEpP LPSUHVVLRQDGR SHOD VXD ³WHRULD VH[XDO´ )UHXG VHJXQGR
Jones (1979), ficara por sua vez impressionado pela energia do seu jovem colega. A
inclusão de Jung no círculo psicanalítico foi inteiramente bem-vinda por Freud. Ao
DOoDURFROHJDVXtoRDRSRVWRGH³ILOKR´HKHUGHLURFLHQWtILFR)UHXGDOLYLRXRVWHPRUHV
GH TXH D SVLFDQiOLVH ILFDVVH FRQILQDGD D XP JXHWR MXGHX -XQJ ³FULVWmR H ILOKR GH
paVWRU´ H SVLTXLDWUD GH UHQRPH LQWHUQDFLRQDO WHULD XP SDSHO FUXFLDO QRV SODQRV GH
expansão da psicologia fundada pelo médico vienense (BAIR, 2006a).
Além da contribuição teórica para a concepção de mente formulada pelo seu
mentor, Jung demonstrou o seu empenho à psicologia freudiana quando organizou o I
Congresso Internacional de Psicanálise, realizado no dia 27 de abril de 1908 em
Salisburgo, Áustria. No ano seguinte foi escolhido para o cargo de editor do Jahrbuch2
do qual Freud e Bleuler eram co-diretores. O psiquiatra suíço engrossou o contingente
de psicanalistas convidados para palestrar no congresso promovido pela Clark
University, no outono de 1909. Foi o primeiro reconhecimento oficial da ciência de
Freud nos Estados Unidos da América. Na foto da próxima página, tirada em frente à
Clark University, tem-se na primeira fileira Sigmund Freud, Granville Stanley Hall (o
reitor da universidade) e Carl Jung. Na fileira de trás, estão Abraham Arden Brill,
Ernest Jones e Sándor Ferenczi. Jones e Ferenczi, depois das defecções de alguns
SVLFDQDOLVWDVGHUHQRPHIRUPDULDPQXPIXWXURQmRWmRGLVWDQWHXP³JUXSRGHHOLWH´±
R³&RPLWr´VHFUHWR± para manter a primazia do ponto de vista de Freud na evolução
da psicanálise. Por fim, Jung foi o primeiro presidente da Associação Psicanalítica
Internacional, fundada no Congresso de Nuremberg, Alemanha, realizado entre 30 e
31 de março de 1910. Este congresso foi novamente organizado por Jung, desta vez em
parceria com Freud (KERR, 1997).
2
Abreviação de Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (tradução: O
anuário de psicologia e pesquisas psicanalíticas e psicopatológicas). A sua edição inaugural foi lançada
em fevereiro de 1909. Foi o primeiro periódico voltado exclusivamente para a psicanálise (KERR, 1997).
13
2.1.2 A ruptura com Freud
Desde o início de sua carreira, Jung tinha reservas ao trabalho de Freud. No seu
primeiro artigo científico defendendo a psicanálise ± Resposta à crítica de
Aschaffenburg, de 1906 ± Jung (1989, p. 1) disse, textualmente, que não subscrevia
³LQFRQGLFLRQDOPHQWH´D³WRGRVRVWHRUHPDVGH)UHXG´1RHQWDQWRHQTXDQWRSUDWLFRX
a psicanálise ± entre 1907 e 1912 ± Jung (1989) defendeu a doutrina de Freud contra
DFXVDo}HVGHVXJHVWmRHLQWHUSUHWDo}HVDUELWUiULDV)DODYDGR³HPSLULVPRSUiWLFR´HGRV
³LQGLVFXWtYHLVUHVXOWDGRV´TXHVXVWHQWDYDPDVEDVHVWHyULFDVGDSVLFDQiOLVHHFRPEDWLD
RV³DGYHUViULRVLQFRQGLFLRQDLV´GHOD'HLQtFLRFRQFRUGRXTXHRVFRQIOLWRVGHQDWXUH]D
psicossexual estavam na origem da maioria das neuroses.
Figura 1 ± Pioneiros da psicanálise na Clark University (1909)
Fonte: (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hall_Freud_Jung_in_front_of_Clark_1909.jpg?
uselang=pt-br)
14
GH -XQJ GL]LDP TXH HOH TXHULD ID]HU XPD YHUVmR FULVWLDQL]DGD SRU ³PHQRVSUH]DU´ D
sexualidade (KERR, 1997). Carl Gustav tinha a sua própria versão dos fatos. Logo no
primeiro encontro com Freud em Viena, Jung (2005, p. 136) ficou impressionado com
R ³DSHJRH[WUDRUGLQiULR´ TXH )UHXGWLQKDj VXD ³WHRULDVH[XDO´)UHXGFRQWHQWHHP
divulgar o seu ateísmo aos quatro ventos, fundou um novo dogma: a sexualidade. E
HVVD HUD SURILVVmR GH Ip D VHU GHIHQGLGD D TXDOTXHU FXVWR $SHVDU GH QmR QHJDU ³D
LPSRUWkQFLD GD VH[XDOLGDGH QD YLGD SVtTXLFD´ -81* S -XQJ
TXHVWLRQRXR³IDQDWLVPR´GRVpartidários de Freud na defesa do caráter exclusivamente
sexual do inconsciente. A título de exemplo, uma objeção feita por Jung (1989) era a
da utilização de um termo da psicopatologia ± ³SHUYHUVLGDGH´ ± para descrever as
manifestações normais da sexualidade infantil. Para ele, isso era projetar as formas
anômalas da sexualidade adulta na mente de crianças.
A publicação de Transformações e símbolos da libido (1911) foi decisiva para a
ruptura entre Freud e Jung. Nesse ensaio ± publicado depois em formato de livro ± veio
a público as discordâncias de Jung com Freud. Entre elas, as de que os sonhos não eram
satisfações de desejos e sim comunicações simbólicas do inconsciente. Ou a
divergência quanto à tendência do grupo vienense de ver as neuroses em geral como o
resultado de uma privação sexual. A mais polêmica, indubitavelmente, foi Jung tornar
o complexo de Édipo ± para Freud, o complexo essencial ± em algo simbólico e não
literal (KERR, 1997).
De príncipe herdeiro, Jung passou a ser persona non grata. Ele deu fim à sua
associação com o movimento psicanalítico em 1914. Exonerou-se das funções
editoriais do Jahrbuch, resignou ao do cargo de presidente da Associação Psicanalítica
Internacional e se desligou como membro da organização (JONES, 1979).
O fim da amizade com Freud deixou Carl Jung devastado. Ele temia pela sua
sanidade: a dor da perda e o sentimento de desorientação eram tamanhos que Jung
estava à beira de um surto. O seu futuro profissional também estava em jogo. Sem o
apoio de Freud, quais seriam os seus próximos passos? Sofreu também um revés na
área acadêmica. Renunciou a cátedra da Universidade de Zurique; não conseguia fazer
15
trabalhos científicos desde a publicação de Símbolos e transformações da libido. Os
ataques públicos orquestrados por Jones e Freud, mais os boatos e calúnias espalhadas
pelos personagens menores do séquito psicanalítico não contribuíram para a sua paz de
espírito (BAIR, 2006a).
No entanto, esse período de crise foi crucial para o seu crescimento pessoal e
profissional. Após o afastamento de Carl Jung do universo psicanalítico, a maioria
esmagadora do grupo de Zurique finalizou a sua participação na Associação
Internacional da Psicanálise. Logo, constituíram uma entidade independente, a
Associação de Psicologia Analítica, batizada com o nome do novo sistema psicológico
desenvolvido por Jung. Neste momento a sua atividade na clínica particular já lhe
garantia uma renda considerável. Foi durante essa fase de retomada que conheceu Toni
Wolff (1888-1953), a sua assistente e confidente para o resto da vida. Wolff ajudou na
feitura do livro Tipos Psicológicos (1921), onde Jung apresentou para o mundo
conceitos como anima e animus (BAIR, 2006a).
Jung lutou para expandir os limites da psicologia profunda até o seu falecimento,
no dia 6 de junho de 1961. Durante a sua crise pós-psicanálise ele redigiu Septem
Sermones ad Mortuos (Sete Sermões aos Mortos, 1916), um trabalho intensamente
pessoal que só veio à tona para o público no apêndice de sua autobiografia, Sonhos
Memórias Reflexões (1961). Esse texto está atrelado à criação da técnica da
³LPDJLQDomRDWLYD´± a interação no estado de vigília com uma imagem que brota do
inconsciente, sem intelectualizá-la ± e do seu interesse no gnosticismo. Depois veio a
cabala, mas foi a alquimia o foco do seu interesse nos últimos anos 20 anos de vida.
Jung sempre manteve em alta estima as religiões e filosofias do Oriente, e a amizade
com o sinólogo alemão Richard Wilhelm (1873-1930), notório pelas traduções do I
Ching: O Livro das Mutações (1923) e do texto taoista O Segredo da Flor do Ouro
(1929), influenciou o seu pensamento. Os estudos de Jung, porém, não se limitavam
ao livresco ou ao clínico. Fez pesquisas de campo na África, Índia e Hopi Pueblo no
Sudoeste americano; quis analisar e vivenciar in loco culturas distantes das suas raízes
16
europeias. Jung deixou para a posteridade uma obra extensa, coletada em 20 volumes
(BAIR, 2000a, 2006b).
17
tomando, por assim dizer, as rédeas da psique que ressurgem para a consciência quando
DVLWXDomRWUDXPiWLFDUHDSDUHFH-XQJDFKDPRXHVVHSURFHVVRGH³FRQVWHODomR´
dos complexos.
O inconsciente coletivo, o não-(X SVtTXLFR ³VH PDQLIHVWD QDV IDQWDVLDV QRV
VRQKRVHDOXFLQDo}HVEHPFRPRFHUWRVHVWDGRVGHr[WDVHUHOLJLRVR´-81*S
155). Essas disposições herdadas da mente primitiva geralmente são de difícil
compreensão, mas podem ser explicadas à luz de lendas, mitos e contos de fadas. A
sua intromissão na consciência individual produz fortes impressões, podendo inclusive
causar perturbações mentais graves. O inconsciente coletivo não está isolado de
condições sociais e políticas, e pode ser afetado por elas (JUNG, 2000a).
2SULPHLURVLQDOGDH[LVWrQFLDGHXPLQFRQVFLHQWH³LPSHVVRDO´YHLRSDUD-XQJ
(2005) durante a viagem transatlântica que fez com Freud aos Estados Unidos, em
1909. A bordo do George Washington, Jung (2005) contou ao companheiro de viagem
o seguinte sonho:
>@HXHVWDYDQXPDFDVDGHVFRQKHFLGDGHGRLVDQGDUHV(UDDµPLQKD¶FDVD
Estava no segundo andar onde havia uma espécie de sala de estar, com belos
móveis de estilo rococó. As paredes eram ornadas de quadros valiosos.
6XUSUHVRGHTXHHVVDFDVDIRVVHPLQKDSHQVDYD³1DGDPDX´'H UHSHQWH
lembrei-me de que ainda não sabia qual era o aspecto do andar inferior. Desci
a escada e cheguei ao andar térreo. Ali, tudo era mais antigo. Essa parte da
casa datava do século XV ou XVI. A instalação era medieval e o ladrilho
vermelho. Tudo estava mergulhando na penumbra. Eu passeava pelos
TXDUWRV GL]HQGR ³4XHUR H[SORUDU D FDVD LQWHLUD´ &KHJXHL GLDQWH GH XPD
porta pesada e a abri. Deparei com uma escada de pedra que conduzia à adega.
Descendo-a, cheguei a uma sala muito antiga, cujo teto era uma abóboda.
Examinando as paredes descobri que entre as pedras comuns de que eram
feitas, havia camadas de tijolos e pedaços de tijolo na argamassa. Reconheci
que essas paredes datavam da época romana. Meu interesse chegara ao
máximo. Examinei também o piso recoberto de lajes. Numa delas, descobri
uma argola. Puxei-a. A laje deslocou-se e sob ela vi outra escada de degraus
estreitos de pedra, que desci, chegando enfim a uma gruta baixa e rochosa.
Na poeira espessa que recobria o solo havia ossadas, restos de vasos, vestígios
de uma civilização primitiva. Descobri dois crânios humanos, provavelmente
muito velhos, já meio desintegrados (JUNG, 2005, p. 143).
Jung voltou para a Europa no último dia de setembro com esse sonho na cabeça.
Por muitos anos retornaria à sua análise. Eventualmente descobriu ser este o sonho
mais importante de sua vida, devido ao fundamento que este lhe deu a teoria de um
18
inconsciente coletivo (BAIR, 2006a). Para chegar a esta conclusão, Jung (2005)
interpretou cada andar da sua casa onírica como se fossem as camadas da psique: no
segundo piso era estava o consciente e já no térreo começava o inconsciente. A cada
lance de escadas descido ele se aproximava das raízes pré-históricas da mente.
Os delírios de Emile Schwyser (1862-1932), paciente do Burghölzli, forneceram
outra pista para a concretude de uma estrutura psíquica não-individual. Esquizofrênico,
Schwyser enxergava um gigantesco falo no topo do Sol. Ao fitá-lo de olhos semicerrados
e bDODQoDUDVXDFDEHoDHOHFRQVHJXLDPH[HUHVVH³IDORVRODU´GHXPODGRSDUDRRXWUR
Esse movimento causava uma ventania furiosa e, por conseguinte, tempestades. Vindo
de uma família pobre, sem instrução e sem acesso a livros nas suas hospitalizações
prévias, o psicótico Schwyzer fixou-se numa imagem oriunda do Mitraísmo, uma
religião indo-iraniana extinta há milênios. Na liturgia mitráica, falava-se de um tubo
conectado ao disco solar, um tubo com o poder de produzir ventos. Jung citou o caso de
Schwyzer no polêmico Transformações e símbolos da libido (BAIR, 2006a).
O psiquiatra suíço não foi o único a perceber a existência de uma psique
suprapessoal ± apoiado na sua experiência pessoal e clínica em onirologia. Jung (1977)
lembra-se de Freud (1996c, p. 201) comentar a respeito do modo de expressão distinto
GHFHUWRVVRQKRVRQGHHUDPHODERUDGDV³FRQH[}HVVLPEyOLFDVTXHRLQGLYtGXRMDPDLV
DGTXLULX SRU DSUHQGL]DGR´ (VVHV SURFHVVRV PHQWDLV IRUDP EDWL]DGRV SRU 6LJPXQG
)UHXG GH ³UHVtGXRV DUFDLFRV´ (OHV HUDP XPD regressão a um estágio anterior da
evolução intelectual humana, uma herança filogenética de nossa espécie. Para Jung
(1977), WDLV³UHVtGXRVDUFDLFRV´UHPHWHPDRVPLWRVHULWXDLVGRVSRYRVSULPLWLYRV
Vital para o entendimento do inconsciente coletivo são RV³DUTXpWLSRV´FRQWLGRV
nele. Os arquétipos são padrões da vida mental e comportamental inatos derivados do
mundo instintivo. Estes padrões, repetidos e reencenados ad infinitum, são
identificáveis independente da cultura ou do momento histórico. Não fazem parte de
XPD ³DOPD FyVPLFD´ RX VHPHOKDQWHV PLVWLFLVPRV FRPR DFUHGLWDYDP RV FUtWLFRV GD
teoria Junguiana. Aceitar a teoria dos arquétipos implica em aceitar que os seres
19
humanos não nascem como tabulas rasas,3 folhas em branco onde qualquer coisa pode
ser escrita (CLARKE, 1993).
A lista de arquétipos é infinita. Jung (2000b) centrou-se em alguns no livro Os
arquétipos e o inconsciente coletivo: o herói, o animus, a anima, o Velho Sábio, a
criança, a sombra e o Si-Mesmo. Os cinco últimos têm uma presença preponderante em
alguns episódios de Sonhos e, por esta razão, faz-se a seguir, uma breve descrição deles:
¾ Anima: existem tanto traços masculinos na personalidade da mulher (o animus)
como o equivalente feminino na psique do homem: a anima. Essas
características do sexo oposto na estrutura psíquica, assim como qualquer
arquétipo, são bipolares, ou seja: têm um aspecto positivo e negativo. No caso
do último, ele se manifesta em rompantes de animosidade e emotividade
excessiva (JUNG, 2000b).
¾ Criança: RWHPDPHQRUGRTXHSHTXHQR´H³PDLRUGRTXHJUDQGHUHVXPHEHP
esse arquétipo: ele representa um ser humano frágil, mas capaz de realizar coisas
incríveis. A criança também representa a chegada do novo, a emergência do
desconhecido (JUNG, 2000b).
¾ Velho Sábio: R DUTXpWLSR GR PHVWUH HVSLULWXDO HVVH SVLFRSRPSR ³JXLD GDV
DOPDV´ LOXPLQD RV FDPLQKRV HVFRQGLGRV GHQWUR GR FDRV GR GLD D GLD -XQJ
(2000b) detalhou as diferentes manifestações do velho sábio, sempre ligadas a
figuras de autoridade: professor, médico, mago ou sacerdote, sendo que os dois
últimos remontam à figura do xamã nas sociedades primitivas.
¾ Sombra: a sombra é a parte da personalidade oculta sob a fachada do
convencional. Apesar de ser tradicionalmente vista como algo negativo, essa
parte inferior da personalidade deve ser integrada à consciência, apesar do perigo
GR³HX´VXFXPELUDRVHXSRGHUGDVRPEUD-81*
¾ Si-Mesmo: é o arquétipo central, a totalidade resultante da união entre a
consciência e o inconsciente. O círculo e a quaternidade são símbolos típicos do
3
'RODWLP³OHQoROEUDQFR´H[SUHVVmRXVDGDSHORILOyVRIRLQJOrV-RKQ/Rcke (1632-1704) para sintetizar a
sua crítica ao conceito de que existiam ideias pré-formadas (SCHUTZ; SCHULTZ, 1992).
20
Si-Mesmo, imagens primordiais que expressam noções de atemporalidade e
imortalidade, suscetíveis a inúmeras mutações (JUNG, 1999).
21
2.1.5 Individuação
Entre 1918 e 1919, quando o tempo de dúvidas e incertezas passou, Jung (2005)
concluiu que a meta do desenvolvimento psicológico é a realização do Si-Mesmo. A
HVVH SURFHVVRGH WUDQVIRUPDomRLQWHUQD-XQJGHXRQRPH GH ³LQGLYLGXDomR´
Para Jung (2000b), a meta de uma psicoterapia é integrar o inconsciente na consciência.
Tal síntese é o caminho para a individuação. Esse processo de harmonizar essas duas
metades não é fácil, pois não existe uma fórmula certa para resolvê-la. O inconsciente
age de modo caótico, assistemático, irracional, e a consciência se desvia da sua base
instintiva a toda oportunidade. Portanto, o manuseio dos símbolos é de suma
importância para a maturação da personalidade.
22
(FRÉDÉRIC, 2008). De acordo com o censo divulgado pelo Foreign Press Center
Japan (2007), são duas as principais religiões do Japão: o xintó e o budismo. Juntos,
os seus fiéis correspondem a aproximadamente 94% da população nipônica, sobrando
3% para o cristianismo e o restante para as outras denominações religiosas.
O xintó, religião xamanística com fortes traços animistas, cultua divindades da
QDWXUH]DeFRQVLGHUDGDDUHOLJLmR³QDWLYD´GR-DSmRDSHVDUGHKLVWRULFDPHQWHWHUVLGR
importada pelos cavaleiros-guerreiros mongóis no fim do século III. Com a
Restauração Meiji (1868), tornou-se a religião oficial do Estado japonês por um curto
período de tempo. Quanto a isso, em 1875, o governo Meiji suprimiu o Daikyô-in
³(VFULWyULRGDV5HOLJL}HV´GHYLGRjVXDDWLWXGHLQWROHUDQWHSDUD com outros credos
que não o xintó (FRÉDÉRIC, 2008).
O xintó tem por base o culto aos kamis HVStULWRV ³GLYLQRV´ superiores aos
espíritos dos humanos comuns. Os xintoístas separam os kamis em dois tipos: os
celestiais (amatsu-kami) e os terrestres (kunitsu-kami). Os celestiais não se interessam
pelo mundo humano, diferente dos terrestres. O segundo tipo habita nas montanhas,
rochas, rios e os protegem. Os kami podem também ocupar e vigiar construções
humanas, a exemplo de santuários e estradas. Seres humanos de caráter excepcional
podem se tornar kamis caso sejam divinizados depois da morte (FRÉDÉRIC, 2008).
O xintó tem um repertório rico de práticas mágicas. A adivinhação (bokusen) é
uma delas, e é um passatempo favorito dos japoneses. Os métodos são os mais variados,
desde o exame das entranhas de pássaros para atribuir-lhes significado, até o conhecido
cara ou coroa. As sacerdotisas-xamãs do xintó têm poderes mediúnicos: no seu transe
elas canalizam os espíritos de familiares falecidos, ou atuam como o canal de
comunicação entre os mortais e os kamis (FRÉDÉRIC, 2008).
Apesar da óbvia importância do xintó ± todo japonês, independente de ser cristão
ou budista, é sempre xintoísta ± no entanto, o foco deste WUDEDOKRYDLVHUD³RXWUD´4
religião ± o budismo e, em particular, a seita zen. A atitude zen habita praticamente
4
A importação do budismo pelo Japão do século VI levou os seguidores do xintó a organizarem suas crenças
num todo coerente. Por isso a doutrina do Buda levou o nome de Bukkyo ± a religião que vem de fora
(FRÈDÈRIC, 2008).
23
todos os recantos da vida japonesa: da cerimônia do Chá às esculturas, e aos jardins
assimétricos dos mosteiros. Até os budô ± as artes marciais nipônicas ± são imbuídos
pelo espírito zen (FRÉDÉRIC, 2008).
A gênese do budismo está na história de vida do príncipe Siddharta Gautama,
posteriormente conhecido FRPRR%XGD³2'HVSHUWR´RX³2,OXPLQDGR´$RQDVFHU
o pai de Siddharta consultou os videntes do seu reino: todos concordaram que o seu
herdeiro teria um destino extraordinário. No entanto, esse destino era divido em
caminhos diametralmente opostos. Por um lado, ele seria um grande rei, unificando a
Índia. Por outro, caso renunciasse ao mundo material, tornar-se-ia um grande líder
espiritual. O rei escolheu para o seu filho a primeira opção, e tratou de providenciar
XPDYLGDGHOX[RSDUDHOHXPD³EROKD´ na qual Siddharta viveria em eterna ignorância,
longe da tristeza e das mazelas do mundo real (SMITH; NOVAK, 2007).
Aos 20 e poucos anos, a inquietude invadiu a alma de Siddharta. Ele quis conhecer
R ³PXQGR Oi IRUD´ DOpP GDV PXUDOKDV GR VHX IDEXORVR castelo. Preocupado, o rei
organizou esses passeios de modo a evitar que Siddharta tivesse contato com as mazelas
do mundo em seus passeios. Apesar dos esforços hercúleos do rei, o plano fracassou. Foi
nos passeios que Siddharta conheceu a doença, a velhice e a morte. Depois de avistar um
monge, no quarto e último passeio, Siddharta começou um desencanto com a sua
existência mundana, percebendo com clareza a transitoriedade do mundo físico. Aos
vinte e nove anos, saiu a cavalo numa jornada espiritual. Abandonou o seu reino,
deixando para trás a sua mulher e filho (SMITH; NOVAK, 2007).
No começo de sua peregrinação, Siddharta procurou grandes mestres espirituais,
absorvendo deles a filosofia hindu e as técnicas da ioga. O passo seguinte foi viver
entre os ascetas para aprender a dominar o seu corpo. Ao final desse período, não viu
proveito nas privações do ascetismo e concatenou uma das verdades fundamentais de
VXDIXWXUDGRXWULQDR³&DPLQKRGR0HLR´3RUILPDRVDQRV GHLGDGHRIXWXUR
Buda sentou debaixo de uma figueira e jurou não levantar de lá até que tivesse
alcançado o bodhi ³LOXPLQDomR´). Semelhante à história da ida de Jesus ao deserto,
Siddharta passou por várias provações, superando todas. Conseguiu enxergar todas as
24
suas encarnações prévias, percebendo claramente as ações e consequências regidas
pela lei do karma (SMITH; NOVAK, 2007). Libertou-VH DVVLP GD ³5RGD GR
5HQDVFLPHQWR´ R VDPVƗUD, atingindo o nirvana (KHUDDAKANIKAYA;
SUTTAPITAKA; TIPITAKA, 2000).
'HSRLV GR ³*UDQGH 'HVSHUWDU´ R %XGD HVSalhou sua mensagem pela Índia.
Eventualmente, a pregação do Buda provocou uma cisão no hinduísmo. Paralelo ao
cisma que o Protestantismo provocou no cristianismo, o Buda mostrou como o
hinduísmo tinha se tornado uma religião corrupta. Smith e Novak (2007) citam seis
pontos em que a nova religião difere da sua antecessora:
Autoridade: nos tempos do Buda, os brâmanes abusavam de sua autoridade
UHOLJLRVDFREUDQGRVRPDVDVWURQ{PLFDVFRPDYHQGDGH³LQGXOJrQFLDV´SDUDRV
fiéis. O Buda questionou a necessidade GHWHU³PHVWUHV´H[RUWDQGRDVPDVVDVD
iniciarem a sua própria busca pela verdade. Inclusive o Buda, em vida, rejeitou
categoricamente a sua divinização pelos seus acólitos.
Ritual: uma expressão coletiva que engloba tanto a celebração ou alívio do
sofrimento, os rituais são intrínsecos a qualquer religião. O Buda questionava
abertamente a necessidade deles, enxergando-os não só como uma prática
supersticiosa, mas também como fórmulas mecanizadas e ineficientes de
conseguir resultados miraculosos.
Especulação: o Buda evitava especulações metafísicas. Ele fundou uma religião
baseada, antes de tudo, na experiência direta da realidade.
Tradição: a tradição preserva o modo de vida das gerações passadas, passando
esse legado adiante. O problema é quando a tradição se torna um peso morto. O
Buda ignorou a tradição ao pregar na língua do povo em vez de sânscrito,
semelhante ao que Martinho Lutero (1483-1546) fez quando traduziu as
Sagradas Escrituras para o alemão, um dos eventos históricos que iniciaram a
Reforma Protestante.
25
*UDoDR%XGDDFUHGLWDYDTXHD³6DOYDomR´HUDXPHVIRUoRSXUDPHQWHSHVVRDO
Nessa caminhada não se podia contar com a ajuda de deuses, brâmanes ou até
do próprio Buda.
Mistério: o budismo é destituído de crenças sobrenaturais. A mente humana é
assombrada pela natureza infinita do universo; no entanto, o Buda recusava
preencher essa lacuna com mistificação. Condenava as práticas de adivinhação
e o comércio em torno dela, por exemplo.
5
/LWHUDOPHQWH³EDOVDV´RX³EDUFRV´3RGHVHUWDPEpPWUDGX]LGDFRPR³YHtFXOR(SMITH; NOVAK, 2007).
26
atravessou a China e a Coréia até chegar ao Japão (KHUDDAKANIKAYA;
S877$3,7$.$7,3,7$.$1RVpFXOR;9,,REXGLVPRILQDOPHQWH³LQYDGLX´
o Ocidente e hoje a Inglaterra, França, Alemanha e Suíça abrigam cerca de um milhão
de europeus convertidos ao budismo. A introdução oficial do budismo na América do
Norte começou no final do século XIX. Atualmente nos EUA moram três milhões de
budistas praticantes (SMITH; NOVAK, 2007).
2EXGLVPRDSRUWRXQD³7HUUDGR6RO1DVFHQWH´HQWUHRVDQRVHG&2
budismo chegou como uma religião da aristocracia, na correspondência entre o rei
Kudara da Coréia e o soberano da antiga província de Yamato, atualmente a prefeitura
de Nara. O respaldo oficial fez a nova religião se propagar. Alguns clãs locais aderiram,
enquanto outros ± adeptos do que logo se tornaria conhecido como xintó ± resistiram.
As duas facções entraram em conflito e os partidários do budismo venceram.
Largamente ignorado pelo povo, o budismo se tornou a religião da corte. Com o passar
do tempo, o budismo japonês tomou formas muito particulares, devido ao contato com
o folclore nativo e o sincretismo com o xintó (FRÉDÉRIC, 2008).
Séculos mais tarde, uma nova seita budista foi importada da China: era o Chan,
ou o zen no Japão. O seu fundador foi o misterioso monge indiano Bodhidharma, o
Bodai-Daruma dos japoneses (FRÉDÉRIC, 2008). Segundo o artigo de Frosi e Mazo
(2011), a Bodhidharma (ou Ta Mo Lao Tse na China) é atribuída também a criação das
artes marciais, introduzida a partir do ano 520 da era cristã, num mosteiro Shaolin.
Venerado no Japão, Daruma é tipicamente representado como um personagem sem
pernas, com olhos globulosos e sobrancelhas espessas (FRÉDÉRIC, 2008).
Depois da morte de Bodhidharma o budismo ensinado por ele sofreu uma série
de alterações ao se deparar com o taoismo. Essa tradição religiosa e filosófica teve
FRPRSLODUHVRVHVFULWRVGHGRLVViELRVFKLQHVHV/DR7]XH&KXDQJ7]X2³7DR´WHP
VLGR DOWHUQDGDPHQWH WUDGX]LGR FRPR ³FDPLQKR´ ³OHL´ ³QDWXUH]D´ ³GHXV´ RX
³UHDOLGDGH´PDVXPGRVVHXVSUySULRVIXQGDGRUHV/DR7]XGLVVHTXHpPHOKRUGHL[i-
lo intraduzível. Qualquer tentativa de definir o Tao em palavras e conceitos é
27
efetivamente matá-lo. Na essência dos seus ensinamentos está o conceito da eterna
mobilidade do universo, sinônimo de crescimento e mudança (WATTS, 2009).
A atitude mental zen, transmitida de geração em geração, de mestre para
GLVFtSXORWUDWDGH³OLPSDU´DPHQWHPHUJXOKDGDQXPHVWDGRGHFRQIXVmRHLJQRUkQFLD
ao desconstruir velhos hábitos e moralismos convencionais. Ela ultrapassa o
intelectualismo, pois percebe ineficácia da razão para resolver os problemas da vida. A
atitude zen ID]WURoDGDVROHQLGDGHHVHULHGDGHGRV³ViELRV´HDSURFXUDGHOHVSRUXPD
³VDQWDYHUGDGH´(PFRQWUDSRVLomRDHVVDLGHLDRVPHVWUHVzen consideram até as coisas
mais mundanas e monótonas do cotidiano como sagradas (WATTS, 2009).
Um conceito-chave para o budismo PDKƗ\ƗQD, igualmente presente no zen, é a
noção de shunyata RXR³YD]LR´2%XGDGHVFUHYHXHVVHHVWDGRRQGHDUDLYDa ganância
HDVLOXV}HVJHUDGDVSHORHJRVmRFRPSOHWDPHQWHFRQVXPLGDVFRPR³LQFRPpreensível,
LQFRQFHEtYHO LPSURQXQFLiYHO´ 60,7+ 129$. S 2 HJRtVPR FDXVD
sofrimento porque, na busca da satisfação de desejos pessoais, os seres humanos
prejudicam uns aos outros, criando uma barreira artificial entre o sujeito e a unicidade
IXQGDPHQWDO GD UHDOLGDGH $ GRXWULQD GR ³YD]LR´ QHJD D H[LVWrQFLD GH XP ³HX´ SDUD
libertar-se das ilusões causadas pelo mundo dos sentidos (SMITH; NOVAK, 2007).
Dois tipos particulares de prática budista, oferecidas pelo zen, são as técnicas do
za-zen e os koans. A primeira é uma evolução da ioga hindu, uma técnica de meditação
que consiste em sentar-se em postura correta e respirar da forma adequada. O za-zen
relaxa o corpo e foca a mente, o que reduz as distrações. Já os koans são problemas
propostos pelos mestres zen em forma de frases, impasses que não admitem soluções
lógicas e intelectuais. Tanto o za-zen quanto os koans auxiliam o discípulo zen a atingir
o satori, uma compreensão súbita da natureza última da realidade, uma ³LOXPLQDomR´
apartada de palavras ou ideias (WATTS, 2009).
O zen recebeu apoio dos samurais, a classe guerreira japonesa, quando ele
chegou ao país no final do século XII. O zen se desenvolveu no coração do EXVKLGǀ (
Ṋኈ㐨), o código de honra samurai. A influência zen nas artes do combate está
presente na esgrima (kendô), o jiu-jitsu e o judô (WATTS, 2009).
28
A importância do zen nas artes marciais nipônicas é tal que Musashi Miyamoto
(1584-1645), o mais famoso dos samurais do Japão, disse no seu Gorin No Sho (㍯
, ³2/LYURGRV&LQFR$QpLV´TXH, HQTXDQWRXPJXHUUHLUR³QmRVHJXLURVSULQFtSLRVGR
EXGLVPR´, ele não compreenderá a verdade do Caminho (MIYAMOTO, 2010, p. 162).
2 ³&DPLQKR´ GR TXDO 0XVDVKL VH UHIHUH p R %XVKLGǀ OLWHUDOPHQWH ³FDPLQKR GR
JXHUUHLUR´SRsto a claro no livro Hagakure ³(VFRQGLGRSHODV)ROKDV´UHGLJLGRSHOR
monge e ex-samurai Yamamoto Tsunetomo (1659-1719). Esse samurai aposentado
reproduz as palavras do sacerdote Tannen, ao reparar as semelhanças e o intercâmbio
entre as atitudes do samurai e do monge zen:
Um monge só consegue seguir o caminho do budismo se tiver compaixão e
interiorizar, na base da persistência, a coragem. Da mesma forma, se um
guerreiro não for corajoso e não tiver em seu coração compaixão suficiente
para arrebentar seu peito, não pode se tornar um vassalo. Portanto, o modelo
de coragem para o monge é o guerreiro, e o modelo de compaixão para o
guerreiro é o monge (TSUNETOMO, 2004, p. 126).
29
2.3 AKIRA KUROSAWA
30
profissão; viver como pintor e artista-gráfico freelancer o deixava insatisfeito,
economica H DUWLVWLFDPHQWH $LQGD DVVLP D VXD FDEHoD ³HVWDYD UHSOHWD GH
FRQKHFLPHQWRVVREUHDUWHOLWHUDWXUDWHDWURP~VLFDHFLQHPD´HDLQGDSURFXUDYD³XPD
IRUPD GH ID]HU XVR GHOHV´ KUROSAWA, 1993, p. 118). Após três anos à deriva,
Kurosawa ingressa na companhia cinematográfica Toho, em abril de 1936, como
diretor-assistente. Sobre o processo que o levou a trabalhar detrás das câmeras,
Kurosawa (1993) diz:
O caminho para os estúdios da PCL6 e para o cinema, surgiram por acaso, embora
eu estivesse me preparando, sem saber, para o inevitável. Não havia percebido que
os filmes poderiam requerer tudo o que eu aprendera. Penso no destino que me
encaminhou tão bem para esse caminho. Tudo o que posso dizer é que, de minha
parte, essa preparação foi totalmente inconsciente (KUROSAWA, 1993, p. 141).
6
PCL ± acrônimo de Photo Chemical Laboratory ± é o antigo nome da Toho (NOGAMI, 2010).
31
mesmos. Eles mentem para si e para os outros, no esforço de parecerem melhor do que
realmente são. É uma necessidade que os acompanharia além do túmulo, como
cruelmente mostra Rashǀmon (KUROSAWA, 1983).
Rashǀmon ganhou em 1951 um Leão de Ouro no Festival de Veneza, seguido
por prêmios em Cannes, Berlim e, por fim, R2VFDUGH³0HOKRU)LOPH(VWUDQJHLUR´$
vitória do filme foi uma vitória para o cinema japonês como um todo, o que ocasionou
D³GHVFREHUWD´SRUFLQpILORVRFLGHQWDLVGDSURGXomRFLQHPDWRJUiILFDGRSDtV$OpPGH
Kurosawa, outros diretores nipônicos foram beneficiados: Teinosuke Kinugasa com o
seu A Porta do Inferno (1953), Hiroshi Inagaki e a trilogia Samurai (1954-1956), a
cinebiografia do lendário Musashi Miyamoto (NOVIELLI, 2007).
Rashǀmon, assim como A Porta do Inferno e Samurai, pertence ao subgênero
dentro do cinema oriental conhecido como jidaigeki. É um estilo de filme ambientado
num passado relativamente remoto, de preferência durante a era Tokugawa
(NOVIELLI, 2007). Esse período histórico tem início em 1603 e termina em 1868,
com o fim dos xogunatos e a instalação da Restauração Meiji (FRÉDÉRIC, 2008). Os
jidaigekis têm por características, as lutas de espadas realistas e uma tendência de
celebrar tanto os guerreiros fiéis ao bushidô quanto os samurais sem mestre, os rônins,
que nos jidaigekis habitualmente defendiam os fracos e oprimidos (NOVIELLI, 2007).
Kurosawa fez outros grandes filmes nesse estilo: Os Sete Samurais (1954), Trono
Manchado de Sangue (1957), Yojimbo (1961) e A Sombra de um Samurai (1980). O
último filme dentro desse subgênero, Ran (1985), baseado na peça Rei Lear de William
Shakespeare (1564-1616), é considerado uma das obras-primas do mestre (NOVIELLI,
2007). Ran encerra um período da carreira de Kurosawa focado no lado vil e traiçoeiro
das relações humanas (PRINCE, 1999).
A última década de vida de Akira Kurosawa assistiu à reinvenção do seu cinema.
Grandes diretores com Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e John Ford fizeram filmes na
terceira idade, mas nenhum com o grau de revitalização de sua obra e nem com a
disposição octagenária de Kurosawa (PRINCE, 1999). O longa-metragem que
inaugurou essa fase foi Sonhos (Yume, 1990).
32
Quando Kurosawa começou a trabalhar no roteiro de Sonhos, em janeiro de
1989, ele estava rumo ao término de uma década particularmente generosa com o seu
legado cinematográfico. A Sombra de um Samurai recebeu a Palma de Ouro em Cannes
e Ran IRLEHPDFROKLGRLQGLFDGRDTXDWUR2VFDUVYHQFHGRUGH³0HOKRU)LJXULQR´
seis BAFTAs7 JDQKRXRVGH³0HOKRU)LOPH(VWUDQJHLUR´H³0HOKRU0DTXLDJHP´H
um Globo de Ouro. Aos 74 anos de idade Kurosawa recebeu a /pJLRQG¶+RQQHXU, a
condecoração honorífica máxima do Governo da França. Dois anos depois foi a vez da
sua terra natal homenageá-lo, concedendo-lhe a Medalha Cultural (KUROSAWA,
1993). Em março de 1990 recebe um Oscar Especial pelo conjunto de obra pelas mãos
de dois grandes admiradores seus: George Lucas e Steven Spielberg (PRINCE, 1999).
Sonhos consiste em oito episódios que, somados, nos apresentam a vida do
diretor em revista. Kurosawa está presente em todos através do seu ego onírico
(PRINCE, 1999). Três diretores americanos poderosos ± Steven Spielberg, George
Lucas e Francis Ford Coppola ± intercederam a favor de Kurosawa, assegurando o
financiamento do projeto. A Warner Bros lançou o filme (RICHIE, 1996). Sonhos foi
o primeiro dos filmes de Kurosawa a usar efeitos especiais modernos, com a ajuda da
Industrial Light & Magic, companhia de George Lucas (PRINCE, 1999).
7
British Academy of Film and Television Arts ± HTXLYDOHQWHjXP³2VFDU´EULWkQLFR
33
VRQKR´pUHDO-81*S-XQJSDFRQVHOKDFDXWHODSRLVDRGHSDUDU-
se FRPXPWH[WRGHVFRQKHFLGR³WRGDLQWHUSUHWDomRpXPDPHUDKLSyWHVH´(VWDQmRVyp
uma tentativa de compreender a relação direta da psique do auter ± Akira Kurosawa ±
com os oito episódios do filme, mas também como fatores específicos de contexto
religioso, político e cultural influíram no que acaba sendo representado na tela.
É sempre um motivo para celebrar, diz Bulkeley (1990), quando um artista da
envergadura de Akira Kurosawa resolve fazer um filme baseado em sonhos (e nos seus
sonhos, ainda por cima). $V GLYHUVDV DERUGDJHQV GLVSRQtYHLV ³QR PHUFDGR´ ±
Freudianas, Junguianas, existencialistas, etc. ± certamente encontrarão respaldo ao
interpretar o filme de acordo com as suas técnicas e preceitos teóricos. E quanto aos
rituais, crenças e costumes idiossincraticamente japoneses? Estes certamente passarão
em branco na maioria dos casos, sem causar grandes impressões para o cinéfilo
ocidental. O próprio Kurosawa (1993) disse que não gosta de falar dos seus filmes, o
que dificulta o trabalho de interpretação.
No seu livro A psique japonesa, o psicólogo Junguiano Hayao Kawai
exemplifica quando a falta de proximidade cultural gera confusões, através da análise
simbólica dos conteúdos coletivos do inconsciente. Kawai (2007) observa o contraste
entre os contos de IDGDVHXURSHXVHRVMDSRQHVHVQHVWHV~OWLPRV³QDGD´DFRQWHFHQR
ILQDO2VFRQWRVMDSRQHVHVUDUDPHQWHDGHUHPjIyUPXODGR³ILQDOIHOL]´DH[HPSORGR
casamento entre os protagonistas ou a punição pela quebra de tabus dos contos dos
irmãos Grimm. Caso fosse adotado o ponto de vista de Franz (1990), seria dito que tais
histórias, sem uma conclusão feliz ou final catastrófico, são características de povos
primitivos. Em A interpretação dos contos de fada (1981), Franz (1990) usa um conto
VLEHULDQR ³$ PXOKHU TXH VH FDVD FRP D OXD H FRP R .HOH´ FRPR H[HPSOR GHVWDV
KLVWyULDV³SULPLWLYDV´FRPILQDLVVHPFOtPD[.DZDLQRHQWDQWRGHVFRQVWUyL
HVVDLGHLD9LYHQFLDUR³1DGD´ID]SDUWHGDFRUUHQWHSULQFLSDOGDFXOWXUDMDSRQHVD(OD
é uma experiência além de palavras, ou de valores positivos e negativos. Herança do
budismo zen, elas têm uma relação direta com o Si-Mesmo.
34
Para evitar uma leitura default da rica simbologia de Sonhos, deve-se seguir o
conselho de Jung (1999). Segundo ele, o perigo de uma interpretação baseada num
simbolismo padronizado é transformar as imagens vivas do inconsciente em figuras
abstratas, ou signos. C. G. Jung tinha provavelmente Freud (1996c) em mente, quando
este afirmou nas suas Conferências introdutórias sobre psicanálise (1915-1917, p.
TXH D PDLRULD GRV VtPERORV RQtULFRV ³VmR VtPERORV VH[XDLV´. Objetos retos e
alongados tipo bengalas, guarda-chuvas, postes, árvores, canetas, facas e lanças
representam os genitais masculinos. Para simbolizar o órgão sexual feminino, objetos
ocos que servem para guardar coisas: vasos, estojos, malas, cofres, bolsas, porta-joias
e assim por diante. Partindo desse a priori, a interpretação vira um jogo intelectual,
academicista (JUNG, 1999).
Por fim, a investigação do autor esbarra numa séria limitação: não se possui um
³GLiULRGHERUGR´GDSURGXomRGHYume. Não se tem acesso ao cotidiano e à vida íntima
de Akira Kurosawa durante as filmagens de Sonhos³1mRVHSRGHinterpretar um sonho
isolando-RGRFRWLGLDQRHGRFDUiWHUGRVRQKDGRU´GLVVH-XQJS$SHVDU
desse déficit informacional, espera-se que as considerações sobre o contexto cultural e
religioso, acoplados com os dados biográficos do diretor, forneçam pistas a respeito
GRVFRQWH~GRVVLPEyOLFRVGRILOPH$LQWHUSUHWDomRGLVVH)UDQ]S³pXPD
DUWH RX RItFLR TXH Vy SRGH VHU DSUHQGLGD SHOD SUiWLFD H H[SHULrQFLD´ 2V GHVDILRV
envolvidos em decifrar Sonhos certamente valerão como um bom treino.
35
3 SONHOS
36
3.1 ³62/&20&+89$´᪥↷ࡾ㞵)
8
Conhecidas em japonês como nengôDV³HUDV´VmRQRPHDGDVGHDFRUGRFRPRVVREHUDQRVTXHDVFHQGHPDR
poder. Nesse caso, o nome foi o do centésimo vigésimo terceiro imperador, Taishô Tennô, durando de 1912
até a sua morte, em dezembro de 1926 (FRÈDÈRIC, 2008).
9
Algumas dessas raposas míticas podem viver até 1,000 anos, e adquirem rabos extras com o passar do
tempo (ROSEN, 2009).
37
tomavam a forma de uma raposa à noite e saíam para cometer inúmeras maldades
(FRANZ, 1990).
Do lado positivo, a raposa é estreitamente associada à Inari, o kami do comércio
e dos cereais em geral e, especificamente, do arroz, o alimento básico dos japoneses
(FRÉDÉRIC, 2008). A sua manifestação física é uma raposa branca (ROSEN, 2009).
Além de ser a mensageira tradicional de Inari, essa raposa é a guardiã dos santuários
desse kami (FRÉDÉRIC, 2008).
Cheio de curiosidade, o menino vai passear no bosque. Os bosques e florestas
são sempre o cenário de mitos, fábulas e contos de fadas. São lugares escuros,
perigosos, cheio de animais selvagens, longe do conforto do lar (LURKER, 2003). Lá
se encontrando, ele vê surgir uma misteriosa bruma e se esconde atrás de uma árvore.
Desta névoa sai uma procissão de raposas desconfiadas. Elas andam a passos lentos,
sempre olhando para ver se flagram algum incauto curioso. O menino é descoberto e
corre para casa. Quando está chegando a mãe o recebe com um olhar severo. Ela diz:
³9RFrVDLXHYLXDOJRTXHQmRGHYHULDWHUYLVWR$JRUDQmRSRVVRGHL[DUYRFrHQWUDU
Uma rapRVD]DQJDGDDSDUHFHXSURFXUDQGRYRFr´$SHGLGRGHVVDkitsune ela entrega
uma adaga ao filho; este terá de pagar a vida pela sua transgressão. Ou isso, ou
Kurosawa deve pedir perdão para elas, diretamente. Enquanto isso não for realizado, a
mãe não permitirá que o filho retorne para ao lar.
O protagonista neste tipo de conto quer descobrir, num misto de pavor e fascínio,
um terrível segredo do qual foi avisado SDUD QmR LQYHVWLJDU e R WHPD GR ³F{PRGR
SURLELGR´WtSLFRGRVFRQWRVGHIDGD1XPDSHUVSHFWLYDSVLFRGLQkPLFDSRGH-se supor
um contato da consciência com um conteúdo inconsciente reprimido. A reação, nesse
contexto, é normalmente intensa; a consciência é tomada de assalto pela energia
represada do conteúdo sombrio (FRANZ, 1990).
Lendas, mitos e contos de fada têm uma base universal, e variações desse tema
GR³F{PRGRSURLELGR´SRGHPVHUHQFRQWUDGDVHPFXOWXUDVSUy[LPDVDDIULFDQDSRU
exemplo). No candomblé há a história de Iansã e a sua pele de búfalo. Conta-se que
um dia Ogum, orixá guerreiro e ferreiro, estava na floresta a caçar. Avistou um búfalo
e, quando estava prestes a abater o animal, o búfalo se transformou numa linda mulher.
38
Era Iansã, tirando a sua pele para banhar-se às margens do rio. Ogum a seguiu até o
mercado da cidade e depois voltou para a floresta, para esconder a pele de búfalo
(PRANDI, 2001; ZACARIAS, 1998).
Quando foi novamente no mercado, Ogum cortejou Iansã, insistentemente. Iansã
resistiu. Paralelo a isso descobriu que a sua pele de búfalo tinha sumido. (Ogum tinha
escondido a pele de búfalo num cômodo de sua casa). Eventualmente Iansã cedeu aos
avanços de Ogum, concordando em casar com ele; no entanto, em nenhum momento
deveria se discutir o lado animal no seu futuro lar, o qual dividiria com as outras
esposas do orixá. Ogum concordou com a exigência de Iansã, e a partir daí constituíram
uma família, tendo nove filhos ao total (PRANDI, 2001).
As outras mulheres ficaram invejosas da bela e encantadora Iansã e
concatenaram um plano. Embriagaram a nova esposa de Ogum para revelar o seu
segredo, que era justamente o seu lado animalesco. As outras esposas passaram a
espalhar boatos sobre a origem de Iansã e dizer coisas que sugeriam onde estaria
escondida a pele de búfalo. Um dia, sozinha em casa, achou num dos quartos da casa
a sua tão procurada pele. Vestiu-a, e quando as mulheres anteriores de Ogum chegaram,
ela partiu para cima delas, destroçando-as à base de chifradas. Somente os seus nove
filhos com Ogum foram poupados do seu frenesi sanguinário (PRANDI, 2001).
Traço a seguinte hipótese: a fonte do poder de sedução de Iansã é o seu lado
animal, instintivo, inconsciente. Franz (1990) escreve sobre as mulheres que se
recusam a serem mais conscientes, pois têm medo de perder a habilidade de
³HQIHLWLoDU´RVKRPHQVTXDQGRWRPDGDVSHODIRUoDGRLQFRQVFLHQWH&RHUHQWHFRPHVVD
conjectura, quando a parte animal de Iansã é exposta à luz, ao conhecimento de todos,
ela revela-se violenta e sombria (PRANDI, 2001). Existem paralelos intrigantes entre
Iansã e a kitsune. As duas são figuras sedutoras e ardilosas. Ambas têm poderes
metamórficos. E tanto a Iansã mitológica como a kitsune de Kurosawa fazem pagar com
sangue aqueles que descobrem o seu segredo. Existe, no entanto, algum mérito
explicativo nesta amplificação Iansã-kitsune? Segundo Kawai (2007, p. 148), as
³HVSLDGHODV´GRVFRQWRVMDSRQHVes são a IRUPDPDLVFRPXPGH³GHVFREULUDYHUGDGHLUD
QDWXUH]D GD PXOKHU´ $OJR IRL UHYHODGR SHOD FXULRVLGDGH LQWURPHWLGD GR PHQLQR
39
Kurosawa, em termos de psicologia profunda... Mas o quê, exatamente? Uma resposta
possível para essa indagação pode estar relacionada FRPRWHPDGR³TXDUWRSURLELGR´
Bruno Bettelheim, autor de A psicanálise dos contos de fada (1980), faz uma análise da
KLVWyULDGH³&DFKLQKRVGH2XURHRV7UrV8UVRV´DTXDOSRGHVHU~WLOSDUDa análise atual.
³(UDXPDYH]´FRPRFRPHoDPRVFOiVVLFRVFRQWos de fadas, uma família de ursos
que moravam numa casa no meio da floresta. Eram três, e cada um tinha um tamanho
diferente (Pequeno, Médio, Grande). Cada membro dessa trinca tinha uma cadeira para
sentar, uma tigela de mingau e uma cama para dormir, adequados ao seu respectivo
tamanho. Um dia os três saem para passear na mata, enquanto esperavam o mingau do
café da manhã esfriar. Ao saírem de casa uma menina loira ± Cachinhos Dourados ± se
aproxima do lar dos ursos. Antes de entrar na casa, Cachinhos Dourados dá uma espiada
pela janela e olha pelo buraco da fechadura. Não vendo ninguém gira a maçaneta da
porta da casa, a qual está destrancada, pois estes eram bons ursos, não faziam mal a
ninguém e não desconfiavam que alguém lhes quisesse prejudicar (MACHADO, 2010).
%HWWHOKHLP YLX WRQV ³HGtSLFRV´ QHVWD FHQD ³Qual a criança que não sente
curiosidade quanto ao que os adultos fazem de portas fechadas e que não gostaria de
descobri-lo? Que criança deixaria de gozar de uma ausência temporária dos pais, que lhe
SHUPLWHHVSLRQDURVVHXVVHJUHGRV"´%(77(/+(,0S
Cachinhos Dourados entrou na casa e ficou feliz em ver as três tigelas de mingau
servidas na mesa. Ela prova a do Urso Grande (muito quente), a do Urso Médio (muito
fria) e a que lhe satisfaz é a do Urso Miúdo, que está no ponto certo. Ela faz o mesmo
percurso quando experimenta as cadeiras dos ursos: achou a do Grande muito dura, a do
Médio muito macia e a do Pequeno lhe pareceu a mais confortável. No entanto, ao sentar
nessa última cadeira, ela eventualmente quebra e Cachinhos Dourados cai no chão.
Dando vazão a sua contínua curiosidade, a garota sobe para o segundo andar da casa
onde ficam os quartos dos ursos. Ela experimenta a cama do Grande Urso. A cabeceira
era alta demais para ela. Logo em seguida experimenta a cama do Urso Médio. Achou o
seu pé muito alto. Mais uma vez, a cama do Urso Pequeno lhe pareceu a solução ideal.
Cobriu-se com o lençol da cama e pôs-se a dormir (MACHADO, 2010).
40
Logo quando a família Urso chegou, notou a bagunça em que a casa se
encontrava. Trataram de investigar quem foi esse invasor e em pouco tempo
descobriram Cachinhos Dourados deitada na cama do Urso Pequeno. Esta acordou num
sobressalto ao ouvir a voz estridente do Pequeno Urso e pula pela janela. A família
Urso nunca mais a viu (MACHADO, 2010).
Antes de apontar as semelhanças entre as narrativas de Iansã, da kitsune injuriada
de Kurosawa e de Cachinhos Dourados, apontemos logo uma grande diferença da última
para as anteriores: o aviso prévio de que o contato com o conteúdo reprimido pode ser
danoso. No primeiro episódio de Sonhos, a mãe de Kurosawa deixa claro para o filho, o
perigo de espiar a procissão das kitsunes. No caso de Iansã, a condição desse orixá para
casar era: nunca a sua natureza animal deveria ser revelada ou discutida. Os três ursos
do conto de Cachinhos Dourados, no entanto, deixam a porta de casa destrancada. Ou
seja: não há uma advertência explícita sobre o perigo de entrar, sem convite, na morada
deles. Há um trecho do conto que deixa clara a disposição benigna dos ursos:
Se fosse uma menina ajuizada, teria esperado até os ursos voltarem para casa, e
então, talvez, eles teriam convidado ela pra tomar o café da manhã, porque eram
ursos bons ± um bocadinho estabanados, como é o jeito dos ursos, mas apesar disso
muito afáveis e hospitaleiros (MACHADO, 2010, p. 274).
42
e intrometida, um espelho do comportamento de Kurosawa nesse episódio. O aviso da
mãe e a kitsune LQGLJQDGDVLJQLILFDPWDPEpP³FXLGDGRFRPDVXDFXULRVLGDGHPHQLQR´
De acordo com Bettelheim (1980) a criança numa determinada fase quer ir além
do seu círculo, quer ter mais contato maior com o mundo exterior. Ela precisa sair de
sua zona de conflito, apesar de que, para isso, ela vai ser obrigada a enfrentar um
caminho cheio de conflitos, frustrações e desespero. Sendo assim, a invasão da casa
dos ursos fez parte da viagem de autodescoberta de Cachinhos Dourados. Pode-se dizer
o mesmo do protagonista: ao embarcar na sua pequena aventura, ele teve de encarar a
rejeição da mãe e agora vai encarar a fúria das kitsunes. Será que algo positivo surgirá
dessas provações? Provavelmente.
Ou não?
O arquétipo da criança. O novo está ligado ao desconhecido; logo, ao que é
arriscado e perigoso. É essa situação de conflito, o que oferece a oportunidade para a
criança se desenvolver psicologicamente. Indefesa diante de tantos inimigos, ela
mesmo assim revela uma força extraordinária e vence todos os obstáculos (JUNG,
2000). Ser criança nesse contexto, VLJQLILFDLUUXPRjDXWRQRPLDD³VDLUGHEDL[RGD
VDLD´GDPmHLGHLDSDUHFLGDFRPDGH%HWWHOKHLPGRSDUiJUDIRDQWHULRUeSRU
isso que a desobediência de Akira é fundamental ± a criança, segundo Jung (2000),
precisa libertar-se da proteção materna para se aventurar no mundo.
Voltando para a cena onde a mãe de Kurosawa entrega a adaga para o filho.
³'HYROYD R SXQKDO H GLJD TXH ODPHQWD PXLWR (ODV QmR perdoam facilmente. Você
SUHFLVD HVWDU SURQWR SDUD PRUUHU´ .XURVDZD XP OHJtWLPR GHVFHQGHQWH GD
extinta classe samurai, certamente foi educado sobre o valor do autossacrifício. A
importância do autossacrifício é tal que pode desembocar no suicídio, tema de grande
predileção por parte dos japoneses (BENEDICT, 2002).
2 VXLFtGLR QR -DSmR IHXGDO HUD KRQURVR (OH ³OLPSDYD R QRPH´ GR JXHUUHLUR
conservando a sua boa reputação e confirmando o seu estoicismo perante a dor
(BENEDICT, 2002). Era o seppuku (ษ⭡), vulgarmente conhecido como harakiri (⭡ษ
ࡾ) ³DEULU D EDUULJD´ (VVH HVYHQWUDPHQWR ULWXDO WLQKD R VHJXLQWH SURWRFROR R VXLFLGD
43
cortava o seu abdome com um punhal da esquerda para a direita e depois subia em direção
ao fígado ou fazia uma dupla incisão em cruz. Terminado esse passo, ele se inclinava para
frente para aguardar o golpe de sabre que o decapitaria (FRÉDÉRIC, 2008).
De acordo com os preceitos do EXVKLGǀ, as sanções sociais da recusa ao seppuku
eram terríveis:
Se um deles sentisse que tal falha era imperdoável, o mínimo que poderia
fazer seria abrir seu estômago, em vez de viver em desonra, com uma
queimadura em seu peito e a sensação de não ter para onde ir. Além disso,
uma vez que sua carreira como guerreiro está arruinada, ele não possui
nenhuma utilidade e seu nome está manchado para sempre. Mas se ele
recusasse esse destino e decidisse que deveria viver, porque não vê sentido
em uma morte como essa, então, pelos próximos cinco, dez ou vinte anos de
vida, ele seria recriminado pelas costas e estaria marcado pela vergonha. Após
a morte, seu cadáver seria coberto de desgraça, seus descendentes inocentes
receberiam sua desonra por ter nascido em sua linhagem, o nome de seus
ancestrais seria ultrajado e todos os seus familiares seriam malvistos. Essas
consequências seriam lastimáveis (YAMAMOTO, 2004, p. 97).
Essa visão valorosa do suicídio não era só uma relíquia do tempo dos xoguns. Caso
o discurso do Imperador do Japão no final da guerra tivesse sido diferente, conta Kurosawa
(1993), o mundo assistiria o maior suicídio em massa da história. Se a mensagem do
,PSHUDGRU QmR WLYHVVH VLGR D GH ³DEDL[DU VXDV HVSDGDV´ H VLP FRQFODPDU RV Veus
FRPSDWULRWDVDSDUWLFLSDUDPGD³+RQRUiYHO0RUWHGRV&HP0LOK}HV´RHIHLWRWHULDVLGR
tão devastador quanto as bombas de Hiroshima ou Nagasaki. No comando do Imperador,
.XURVDZDSDGPLWHTXH³WHULDDJLGRGDPHVPDIRUPD´VHPTXHVWLRQDU
A transgressão do menino Kurosawa é triplamente ofensiva. Primeiro, pela
TXHVWmRGR³F{PRGRSURLELGR´6HJXQGRHOHGHVREHGHFHXDRVHXGHYHUILOLDOKHUDQoD
de uma ética confuciana importada da China a partir do século VII (YAMASHIRO,
1986). Terceiro, ele fere a fé inabalável da sociedade japonesa na hierarquia. No Japão,
³DVVXPLUDGHYLGDSRVLomR´pXPDTXHVWmRGHIXQGDPHQWDOLPSRUWkQFLD(VVHSURFHVVR
é dominado por regras meticulosas, feitas para a pessoa aprender a ter o devido respeito
por aqueles aos quais servem. Citando Benedict (2002):
A esposa inclina-se diante do marido; a criança, diante do pai; os irmãos mais
jovens diante dos mais velhos e a irmã, diante de todos os irmãos, qualquer
que seja a sua idade (BENEDICT, 2002, p. 48).
44
A mando da mãe, o pequeno Kurosawa parte para o fim do arco-íris, onde as
kitsunes moram. A imagem é belíssima: no meio dum campo florido, Akira olha uma
cadeia de montanhas ao longe, seus picos cobertos por nuvens e sopés escondidos por
uma neblina espessa. É óbvio o contrDVWHHQWUH³OX]´H³VRPEUD´QHVWDFHQD2DUFR-
íris ao redor das montanhas parece ser um portal para o mundo mágico das raposas. A
WULOKD GH 6KLQ¶LFKLUǀ ,NHEH QHVWD FHQD ULFD HP DPELJXLGDGH HPRFLRQDO p VHJXQGR
5LFKLHXPDDGDSWDomRGH³29HOKR&DVWHOR´SDUWHGDVXtWHQuadros de uma
Exposição (1874) do compositor Modest Mussorgsky. Ela induz o ouvinte a sentir um
PLVWRGHWHQVmRHGHVOXPEUDPHQWRDWUDGXomR³SVLFRVVRQRUD´GDH[SHFWDWLYDURQGDQGR
um encontro que pode ser tanto desastroso quanto fabuloso.
2HSLVyGLRWHUPLQDDQWHVGH.XURVDZDHQFRQWUDUDVUDSRVDVVHPR³ILQDOIHOL]´
Esse tema foi debatido no capítulo anterior, quando foram comparadas as visões de
Franz (1990) e Kawai (2007) a respeito dos finais incompletos dos contos orientais.
Foi vLVWDWDPEpPDLPSRUWkQFLDGDQRomRGR³YD]LR´1RHQWDQWRKiRXWUDSRVVtYHO
H[SOLFDomR PDLV SURVDLFD SDUD R SRUTXr GH WDQWRV HSLVyGLRV ³LQWHUURPSLGRV´ HOHV
simplesmente estão imitando a estrutura narrativa dos sonhos, que raramente chegam
a uma conclusão satisfatória.
No segundo episódio Akira está em casa; ele parece que cresceu mais. A
arquitetura da residência dos Kurosawa, segundo informações de Frédéric (2008), é
tipicamente japonesa: assoalho de madeira, ambiente interno espaçoso, poucas paredes
³IL[DV´HSDUWHVPyYHLVWLSRSDLQpLVLQWHLULoRVTXHVHUYHPFRPRSRUWDVHQWUHF{PRGRV
Ele abre um desses painéis e lá estão cinco meninas sentadas ao lado de um altar com
uma fileira de bonecos. É o Hina Matsuri, o ³)HVWLYDOGRV%RQHFRV´FHOHEUDGRWRGR
três de março.
Kurosawa traz seis bolinhos de arroz. Intrigado, diz que trouxe para seis pessoas
HLQVLVWHTXHHVWiIDOWDQGRXPDSHVVRD$LUPmPDLVYHOKDGL]TXHQmR³9RFrHVWiFRP
45
IHEUH"´- ela pergunta zombeteira. Ele abre a porta do cômodo e se depara com uma
menina de quimono rosa. Kurosawa quer mostrar ela para a irmã, mas a menina some.
Há na decoração desse cômodo um pessegueiro rosa. Essa é uma dica sutil deixada
pelo diretor para o que vai acontecer no final do episódio.
O Kurosawa mirim avista novamente a menina de rosa, agora na porta de sua
FDVDHVDLGHVEDUDWDGRDWUiVGHOD$LUPmJULWD³$RQGHHVWiLQGR"1mRSRGHVDLU´$
advertência cai em ouvidos surdos. O ego-onírico do diretor se embrenha no bosque,
seguindo a garota pelo som do seu sininho.
Os dois saem do bosque e o espectador vê então um morro terraceado. A garota
sobe o morro, mas quando é a vez do menino subir ele é barrado por vários kamis. No
topo da colina o líder kami, em trajes imperiais, dirige a palavra a Akira. Ele encabeça
uma reprimenda coletiva severa contra a família Kurosawa:
Você aí! Menino! Precisamos contar uma coisa! Ouça com atenção. Nunca mais
voltaremos à sua casa. A sua família cortou todos os pessegueiros deste pomar! Mas
o Festival das Bonecas também é chamado de Festival do Pêssego. Ele homenageia
os pêssegos. Nós bonecas personificamos os pêssegos. Somos os espíritos das
árvores, a vida dos brotos! Como se pode comemorar com estas árvores cortadas?
As árvores desaparecidas choram de sofrimento! (SONHOS, c1990).
Akira desata a chorar, mas o Imperador kami o reprime; diz que não adianta
chorar. Ele é interrompido pela Imperatriz, que pede para parar de culpá-lo, pois o
menino chorou quando a sua família cortou as árvores, inclusive tentando impedi-los.
O chefe do grupo zomba dele. Os outros kamis riem. Kurosawa grita, indignado: ³Não!
Pêssegos podem ser comprados, mas onde comprar todo um pomar em flor? Eu amava
este pomar e os pessegueiros aqui floresciam. Mas eles não estão mais aqui. Por isso
choro´. (SONHOS, c1990).
Enquanto Kurosawa volta a chorar, os kamis se calam e se voltam ao líder. Ele dá
RVHXYHUHGLWR³Muito bem. Nós entendemos. Ele é um bom menino. Devemos permitir
que ele veja mais uma vez florido nosso pomar de pessegueiros?´ (SONHOS, c1990).
Os kamis então fazem o bugaku, um conjunto de danças tradicionais da corte
imperial. Essas danças elegantes e aristocráticas têm como acompanhamento musical
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o gagaku, um misto de música sacra xintó e formas musicais importadas da China e da
Coréia (FRÉDÉRIC, 2008).
Pode-se especular que a vestimenta imperial dos kamis e o tom repressor do seu
líder seja uma manifestação da rigidez nipônica ± dessa vez com o desrespeito pelos
kamis terrestres. A manifestação raivosa desses espíritos da natureza pode também ser
associada ao sentimento de culpa de Akira por sua família ter podado os pessegueiros.
O tema da culpa será tratado no quarto episódio com mais detalhes.
Ao final do bugaku vê-se uma chuva de pétalas rosas e o pomar de pessegueiros
é restaurado miraculosamente. A menina do quimono reaparece, correndo entre as
pequenas árvores. No entanto, a felicidade do pequeno Akira dura pouco. A garota
some e os pessegueiros voltam a aparecer todos podados, com a exceção de um. Ao
olhar para aquele pessegueiro solitário Akira ouve pela última vez o sino de garota de
rosa. Richie (1996) afirma que a garota do quimono rosa é na verdade o espírito daquele
pessegueiro solitário. Pode-se dizer que a missão da kami sobrevivente era avisar
Kurosawa como sofriam os espíritos das árvores.
Richie (1996) chama atenção para uma discrepância neste episódio. O Hina
Matsuri é normalmente associado às cerejeiras japonesas (Prunus cerrulata) e não a
pessegueiros. A chave para este mistério pode estar numa tragédia familiar: o
falecimento da querida irmã de Kurosawa (1993), Chi-ne-chan.
Uma das lembranças mais fortes que Kurosawa (1993) tinha da irmã era como
ele brincou com Chi-ne-chan no Hina Matsuri. A família do diretor herdou uma
coleção de bonecos que incluía representações do Imperador, da Imperatriz e um
conjunto de músicos e damas da corte. Chi-ne-chan o convidava para sentar em frente
dos bonecos da família e servia para o irmão uma porção de saquê branco doce.
Na sua autobiografia, Kurosawa (1993) lembra-se da fascinação ambígua que
tinha por esses bonecos:
Com as luzes apagadas, a iluminação fraca de um lampião incidia nos bonecos
dispostos em cinco filas no suporte coberto com feltro escarlate. Na penumbra, os
personagens pareciam vivos, como se pudessem falar a qualquer instante. Esta beleza
era um pouco assustadora para mim (KUROSAWA, 1993, p. 47).
47
No artigo Totem e Tabu (1913), Freud (1996e) fala sobre as projeções
antropomórficas que os homens primitivos faziam sobre a natureza, dotando vegetais,
DQLPDLV H REMHWRV LQDQLPDGRV FRP TXDOLGDGHV HVSLULWXDLV (VVH ³VLVWHPD GH
pensDPHQWR´ VHJXQGR HOH p FKDPDGR GH ³DQLPLVPR´ 1XP DUWLJR SRVWHULRU O
µ(VWUDQKR¶ (1919), Freud (1996d) retoma o tema quando escreve sobre a estranha
impressão causada nas mentes infantis de como bonecos ou figuras de cera parecem
estar vivos. Partindo-se desta exegese psicanalítica e lembrando a forte influência que
o xintó (uma religião animista por excelência) tem na sociedade japonesa, fica claro
porque os bonecos-kamis tem um ar tão pavoroso para o pequeno Kurosawa.
Aos seis anos de idade, a bondosa e gentil Chi-ne-cham subitamente adoeceu.
³1XQFD PH HVTXHoR GR VRUULVR GHVDPSDUDGR HP VHX URVWR TXDQGR D YLVLWDPRV QR
KRVSLWDO-XQWHQGR´UHYHORX.XURVDZDS$RIDOHFHUDGTXLULXRVHJXLQWH
nome budista: To Rin Tei Ko Shin Nyo. Na tradução do próprio Kurosawa, significa
³0XOKHU GD 6LQFHULGDGH GR5DLRGH 6ROTXH EULOKD VREUH R3RPDU GH 3HVVHJXHLURV´
(KUROSAWA, 1993, p. 51). Fazendo as devidas conexões, nota-se que este episódio
é, ao mesmo tempo, um tributo à sua querida Chi-ne-cham e ao Hina Matsuri.
Ao levar em consideração essa homenagem subentendida à sua irmã, o segundo
³VRQKR´GH$NLUD.XURVDZDDGTXLUHXPDUHVVRQkQFLDDUTXHWtSLFD1R-DSmRKiXPD
FROHomRGHFRQWRVVREUH³DPXOKHUUHVLVWHQWH´TXHVmRDVVRFLDGRVFRPXPVHQWLPHQWR
de tristeza conhecido como awaré(VVD³PXOKHUUHVLVWHQWH´SRGHVHUDLUPmILHODTXHOD
que põe a felicidade ou até a própria vida de lado pelo irmão. Ou da enteada cuja
madrasta decepa suas mãos ± XPD PHWiIRUD GH ³FRUWDU UHODo}HV´ SDUD R MDSRQrV $
madrasta a expulsa dHFDVDIRUoDQGRDPHQLQDDVXSRUWDUXPD³FUXHOVROLGmR´VHSDUDGD
do pai. Há uma terceira variação, a de esposas não-humanas num casamento desastroso
onde os seus respectivos cônjuges quebram um tabu imposto por elas, efetivamente
dissolvendo o matrimônio (KAWAI, 2007). Nota-se um retorno do tema do
autossacrifício levantado por Kurosawa (1993), mas agora voltado para a resiliência da
anima nipônica no enfrentamento de situações adversas. Apesar da morte de Chi-ne-
chan não ter sido um sacrifício literal, ela desaparece da vida de Akira deixando um
48
rastro de tristeza, de awaré. O trágico destino do feminino, representado pela mulher
que some no fim das lendas, mitos e contos de fada do país é construído em cima dessa
fundação psíquica arcaica (KAWAI, 2007). Sente-se o reflexo desse paradigma
cultural nesse episódio.
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Odisseia, a história do retorno de Ulisses para casa, após o fim da Guerra de Tróia, ± o
rei de Ítaca e seus companheiros passam pela Ilha das Sereias. As sereias da Grécia
antiga eram ninfas marinhas, dotadas de um canto tão belo que faziam qualquer homem
atirar-se ao mar. Afogavam-se, literalmente, de amor. Ulisses ordenou a tripulação do
barco a colocarem cera nos ouvidos, e pediu-lhes também para o amarrarem no mastro.
Queria ouvir o lindo canto das sereias sem correr risco de vida (BULFINCH, 2002).
Como não poderia deixar de ser, um arquétipo tem manifestações mil. Além das
sereias de Homero, há DV³UXVVDOFDV´GDPLWRORJLDHVODYDTXHFDUUHJDPDVVXDVYtWLPDV
até o fundo do rio, ou a Lorelei alemã, cujo canto induz os pescadores do Reno ao
naufrágio. No folclore brasileiro há uma figura parecida: a Iara, ou Mãe-'¶iJXD(ODp
descrita como uma mulher loira, alva, meio peixe meio humana, apaixonando os índios
com a sua voz para que eles encontrem a morte no fundo das águas. Cascudo (2012)
vê isso como uma importação europeia dos poetas românticos brasileiros, a exemplo
de Gonçalves Dias (1823-1864). A verdadeira Mãe-'¶iJXD VHJXQGR HOH HUD XPD
cobra aquática monstruosa e assassina.
Entre a Yuki Onna, as sereias gregas e a Iara, há um fator em comum: o elemento
água. As sereias estão no oceano,10 a Iara no rio, e a Yuki Onna na neve (H20 sólido,
congelado). Aos olhos da psicologia analítica a água é associada ao inconsciente e o
PDUHVSHFLILFDPHQWHDRLQFRQVFLHQWHFROHWLYRSRLV³VREDVXDVXSHUItFLHHVSHOKDQWH
VH RFXOWDP SURIXQGLGDGHV LQVRQGiYHLV´ -81* S 1D SVLFRORJLD GR
inconsciente, a anima, a personificação da natureza feminina no homem, é também
associada ao elemento água. As sereias gregas e a Iara, cada uma à sua maneira, atraem
os homens com o mesmo objetivo: afundá-los no mar do inconsciente, o seu lar e
domínio. A Yuki Onna ID]SDUHFLGRHOD³DIRJD´RVKRPHQVQDQHYH
Segundo Richie (1996), o ego-onírico do diretor neste episódio está na fase da
adolescência. Caso a Yuki Onna seja encarada como uma representação folclórica da
anima adolescente de Akira Kurosawa, ela age como aquelas femme fatales do cinema
hollywoodiano: bonita e sedutora, ela é uma expert em fazer os homens perderem a
10
Curiosamente, as sereias da Odisseia são aladas. Elas não têm cauda de peixe, o que contradiz a versão
clássica desses seres mitológicos (CASCUDO, 2012).
51
cabeça. As sereias, a Iara, Lorelei, a Yuki Onna: esse é o denominador delas. Jung
(1990) disse que a anima pode ter um efeito positivamente diabólico na psique
PDVFXOLQD (P RXWUR HVFULWR -XQJ E GHVFUHYH XP FDVR GH ³SRVVHVVmR´ SHOD
animaHFRPRVXFXPELUj³LQIOXrQFLDIDVFLQDQWHGRVDUTXpWLSRV´SRGHFDXVDUGRHQoDV
mentais, inclusive a psicose (JUNG, 2000b). O perigo é tanto, que pode acabar em
morte ± simbólica ou até literal. Cascudo (2012) menciona como as sereias na
Antiguidade Greco-Romana eram divindades funerárias, ligadas aos cultos da morte.
7DLVFXOWRVSHQVD-XQJDSVmR³DQWHVGHWXGRXPDSURWHomRFRQWUa a má
YRQWDGHGRVPRUWRV´$WpRW~PXORGRJUDQGHGUDPDWXUJRJUHJR6yIRFOHV±405
a.C.), autor de Édipo Rei, tinha sereias esculpidas nele (CASCUDO, 2012).
Kurosawa consegue vencer o sono e espantar a Yuki Onna, que some sem deixar
vestígios. O sol reaparece. O episódio chega ao fim quando o quarteto descobre o
acampamento a poucos metros atrás deles. Esse final feliz, como Kawai (2007) frisara,
é raro nas histórias japonesas. Quanto ao elemento psicodinâmico, o ego onírico de
Akira Kurosawa aparentemente se livrou do complexo feminino travestido de Yuki
Onna, uma junção negativa de anima com aparição, duas manifestações do
inconsciente coletivo.
Kurosawa caminha solitário pela estrada, roupa surrada e barba por fazer. Em
pouco ele se depara com um túnel. Da escuridão do túnel ouve-se um ganido e depois
um uivo. Um cão antitanque, com duas sacolas de granadas de mão presas ao lombo,
corre para perto dele e rosna. A iluminação vermelha que incide sobre o cachorro, mais
o seu latido sobrenatural, dão a ele um ar assustador. O pastor-alemão deixa Kurosawa
acuado e força-o a entrar no túnel. O túnel torna-se cada vez mais frio e escuro, e
Kurosawa segue o risco central do túnel para não se perder(OHHYHQWXDOPHQWH³YrD
OX]QRILQDOGRW~QHO´PDVpXPDOX]GHDQRLWHFHUIULDD]XO-escura, e um poste com
uma luz vermelha ± a mesma do cachorro ± ilumina a saída do túnel.
52
Ele é surpreendido por (literalmente) um fantasma do passado: o soldado Noguchi,
que morreu em seus braços quando Kurosawa era o comandante do Terceiro Pelotão do
exército japonês. O seu trabalho é convencer a Noguchi que ele realmente está morto. O
soldado continua apegado à vida terrena, num perpétuo estado de autonegação.
Quando ele finalmente convence Noguchi a voltar para o túnel, o oficial
Kurosawa tem outra surpresa desagradável. O Terceiro Pelotão inteiro marcha para
IRUDGRW~QHO2VDUJHQWRGDXQLGDGHDQXQFLD³7HUFHLUR3HORWmRYROWDQGRSDUDDEDVH
VHQKRU1HQKXPDEDL[D´.
$ DSDULomR ³HP PDVVD´ GRV IDQWDVPDV GR 7HUFHLUR 3HORWmR SRGH VHU XPD
variação Kurosawiana de uma crença comum no Extremo Oriente. Os japoneses
acreditam que os espíritos de pessoas mortas por afogamento, naufrágios e outras
tragédias marítimas voltam a bordo dos funa \njUHL (⯪ᗃ㟋 OLWHUDOPHQWH ³QDYLRV-
IDQWDVPD´7DLVDSDULo}HVVHFRQILUPDPDWpRVGLDVGHKRMHSULQFLSDOPHQWHGXUDQWHR
O-Bon, o festival dos mortos (IWASAKA; TOELKEN, 1994). No curso da Segunda
Guerra Mundial, pode-se supor que os oficiais da mDULQKDMDSRQHVDWHQKDP³DYLVWDGR´
versões modernas dos funa \njUHL. Na história de O Túnel, Kurosawa pode ter trocado
a marinha pela infantaria.
Visivelmente emocionado, Kurosawa se dirige aos seus companheiros de
EDWDOKD³(VFXWHP6HLFRPRGHYHPHVWDUVHsentindo. No entanto, o Terceiro Pelotão
IRLDQLTXLODGR7RGRVYRFrVPRUUHUDPHPFRPEDWH´2SHORWmRFRQWLQXDLPyYHOXP
silêncio constrangedor é a resposta deles para a declaração do comandante. Kurosawa
tenta novamente ter uma reação deles:
Sinto muito. Eu não morri. Sobrevivi. Mal consigo encarar vocês! Mandei vocês para
a morte. Eu sou o culpado! Eu poderia colocar toda a responsabilidade na estupidez
da guerra, mas não sou capaz de fazer isso. Não consigo negar minha falta de
cuidado, minha má conduta. Ainda assim [...] Fui capturado. Sofri tanto no campo
de prisioneiros que senti o sabor da morte! E agora, olhando para vocês, sinto
novamente a mesma dor. Sei que o sofrimento e a tortura de vocês foram muito
maiores. Mas [...] Honestamente [...] Eu preferiria ter morrido com vocês.
(SONHOS, c1990).
53
SHODSiWULDPDVYRFrVPRUUHUDPFRPRFmHV´6HJXQGR%HQHGLct (2002), a expressão
³PRUWHGHFmR´VLJQLILFDYDSDUDRVPLOLWDUHVMDSRQHVHVPRUUHUVHPKRQUD1DHUDGRV
samurais, acreditava-VH TXH XPD ³PRUWH GH FmR´ HUD XPD PRUWH VHP REMHWLYR
(TSUNETOMO, 2004).
Poderíamos ver com bons olhos esse mea culpa catártico do comandante, mas
do ponto de vista japonês essa demonstração explícita de emoções é considerada um
comportamento vulgar e grosseiro. Segundo Nakagawa (2008), a polidez sempre
prevalece nas relações interpessoais, mesmo ela contradizendo as intenções reais. É só
quando o Comandante Kurosawa assume o seu lugar na hierarquia e berra ordens ao
pelotão fDQWDVPD³7HUFHLUR3HORWmR0HLD9ROWD9ROYHU$YDQWHHP0DUFKD´p
o que os seus subordinados voltam para o túnel, para a escuridão de onde vieram.
O terrível sentimento de culpa do comandante e os fantasmas que voltam para
assombrar os vivos podem estar interligados. Voltando a Totem e Tabu, Freud (1996e)
examina a possível causa da aversão fóbica dos povos primitivos aos mortos. Na visão
GDSVLFDQiOLVHDWUDQVIRUPDomRGHSHVVRDVDPDGDVHP ³GHP{QLRV´ DSyVPRUWHSHOD
mente primitiva é explicada pela hostilidade inconsciente dos parentes sobreviventes
ao finado. Essa atitude emocional ambivalente, carregada de culpa, projeta-se e assume
a forma de espíritos ressentidos com os vivos. Eis uma razão por trás da necessidade
de nossos antepassados apelarem para a feitiçaria, a magia e os seus rituais para
apaziguarem os mortos (FREUD, 1996e). Tais práticas são antigas no Japão: no
período Jômon (800 a.C.±300/200 a.C.), os mortos eram enterrados sem caixão, com
os braços e pernas dobrados e com enormes pedras sobre o peito. A finalidade disso
era a de impedir que a alma do morto voltasse (YAMASHIRO, 1986).
Quanto ao sentimento de culpa, ela pode ser uma contraparte sombria para a
conhecida polidez nipônica. Para Nakagawa (2008), a sociedade japonesa encara a
cortesia e a gentileza como obrigações sociais. A fachada permanecerá inviolável,
independente do que acontece nos bastidores, inclusive ± ou melhor, principalmente ±
GHQWURGHXPDIDPtOLD³0HVPRXPPDULGRGRPLQDGRSHODPXOKHURXXPLUPmRPDLV
velho por XP PDLV PRoR DPERV QmR GHL[DP GH UHFHEHU D GHIHUrQFLD IRUPDO´ GL]
54
Benedict (2002, p. 53). Tamanha repressão, tamanha raiva frustrada em nome das boas
maneiras há de ter uma válvula de escape, nem que seja pela via animista. Talvez a
crença em kamis vingativos, yûreis e outras assombrações seja o jeito xintó de dar
vazão a essa hostilidade reprimida.
Depois de despachar o Terceiro Pelotão para o além, Kurosawa é novamente
confrontado pelo cão sentinela. Dessa vez, o Comandante encara o cão raivoso não
com PHGR PDV FRP ILUPH]D ³6H YRFr IHFKD RV ROKRV SDUD R WHUURU DFDED
DWHUURUL]DGR6HYRFrROKDWXGRGLUHWDPHQWHQmRWHPSRUTXHWHPHU´GL].XURVDZD
(1993, p. 92) na sua autobiografia. Num trecho posterior do livro, Kurosawa (1993)
desenvolve melhor essa ideia:
Sempre, em determinado ponto, ao escrever meus roteiros, sinto vontade de desistir
de tudo. Com minhas várias experiências, no entanto, aprendi uma coisa: se encaro
com firmeza esse vazio e desespero, adotando a tática de Bodhidharma, o fundador
da seita zen, que olhou fixamente o muro que se punha em seu caminho até que suas
pernas se tornassem inúteis ±, um caminho se abrirá (KUROSAWA, 1993, p. 230).
Resta ainda uma dúvida. Foi oferecida uma explicação para a aparição dos
fantasmas: o túnel que o ex-comandante atravessou foi para a terra dos mortos.
Poderíamos a aplicar a mesma analogia do primeiro episódio ± o bosque como o lugar
do perigoso, do desconhecido ± com o túnel. Mas e quanto ao Pastor Alemão raivoso?
Se o túnel era passagem para o além, seria ele o seu cão de guarda?
Pode-se então fazer amplificação e associar este cachorro raivoso com Cérbero
(fig. 3), o monstruoso cão de três cabeças que fica do outro lado das margens do rio
que leva ao Hades, o mundo dos mortos e inferno dos antigos gregos (BULFINCH,
2002). A função de Cérbero era impedir que os mortos fugissem e os vivos entrassem
no Hades. Essa ligação entre cães e morte ± os dois fiéis companheiros do homem ± é
praticamente universal. Vemos essa mesma associação nas mitologias egípcias,
indianas e siberianas. Da mitologia percebe-se o papel de psicopompo dos cães,
abrindo, com os seus sentidos aguçados, o caminho entre a luz e a escuridão, a vida e
a morte. Ele ora protege, ora persegue, mas sempre desempenha a sua função de guia
(ROCKENER, 1997; THE ARCHIVE, 2012). Essa amplificação caiu como uma luva
para entender a função do cão-artilharia no episódio. É ele quem força Kurosawa a
55
atravessar o limiar entre o mundo dos vivos e dos mortos para encarar ± e enterrar ± os
fantasmas do passado. Daí deduz-se que o cachorro precisava ser assustador para o
Comandante, para fazer ele sair do seu perpétuo estado de negação.
Nesse quarto episódio o espectro da rigidez hierárquica tão cara à sociedade
nipônica volta a aparecer, desta vez associada ao militarismo. O Japão tinha uma visão
bem particular das causas que os levaram a participar da Segunda Guerra Mundial:
VHJXQGR %HQHGLFW S ³HQTXDQWR FDGD QDomR WLYHVVH VREHUDQLD DEVROXWD
KDYHULDDQDUTXLDQRPXQGR´&RPRD³~QLFD´QDomROHJitimamente hierárquica, cabia
aos japoneses ordenar a confusão reinante, fazendo os outros países se submeterem a
eles. Os líderes militares do Japão tinham a convicção que teriam de ir até as últimas
consequências para estabelecer a sua nova ordem mundial (BENEDICT, 2002).
Figura 2 ± Cérbero (1824-1827) de William Blake
Fonte: (http://www.tate.org.uk/art/artworks/blake-cerberus-n03354)
56
DLQGDWLQKDGH³UHSULPLUDLUD´DRHVFUHYHUVREUHRVFHQVRUHVSRLVVHQWLDR³PHXFRUSR
LQWHLUR´HVWUHPHFHU³GHyGLR´DROHPEUDU-se deles (KUROSAWA, 1993, p. 180). Caso
D³0RUWHGH+RQUDGRV&HP0LOK}HV´WLYHVVHFKHJDGRjVYLDVGHIDWRRFRPELQDGRIRL
Akira Kurosawa e os seus colegas matarem todos os censores antes de darem cabo de
suas próprias vidas.
O germe dos problemas do diretor com o exército e hierarquia em geral começou
bem antes, no seio da família. Benedict (2002) comenta como o hábito por hierarquia
é instalado desde cedo no núcleo familiar japonês, para ser aplicado nas relações entre
diferentes castas sociais, na vida econômica e nos setores públicos. Apesar de lembrar-
se do pai, Isamu, como um bom homem, Kurosawa (1993) diz ter sofrido com a
severidade da etiqueta samurai imposta por ele.
A rebeldia juvenil de Kurosawa (1993) tomou corpo no seu terceiro ano de
ginásio, quando o treinamento militar tornou-se parte do currículo obrigatório. Um
capitão do Exército, formado pela Academia Imperial Toyama, foi mandado para ensinar
na escola Keika. As eras Taishô e uma parte da Shôwa11 foram marcadas pelo fanatismo
e esse professor, com seus métodos espartanos, encarnava a cegueira doutrinária desse
período. Akira desenvolveu uma relação abertamente hostil com o capitão. Ao se formar,
foi o único da classe a ser reprovado na matéria. Consequentemente, não recebeu o
certificado de oficial autorizado (KUROSAWA, 1993).
3.5 ³&25926´㬏)
Este sonho é um sonho do Kurosawa pintor; nele, o diretor explora o seu fascínio
pela obra do pintor neerlandês Vincent van Gogh (1853-1890). Quando Kurosawa
S SDVVDYD RVROKRVSRU XPD WHODGH 9DQ*RJK³WRGDVDVFDVDVUXDVH
árvores pareciam-VHFRPXPDSLQWXUDUHDOL]DGDSRUHOH´2VTXDGURVGHVVHPHVWUHSyV-
LPSUHVVLRQLVWD³WUDQVIRUPDYDPRPRGRSHORTXDOHXFRQWHPSODYDWRGRVRVGLDV´1HVWH
11
Este nengô durou de 1926 a 1989; no entanto, deve se estar referindo até 1945, o fim da Segunda Guerra
Mundial (FRÉDÉRIC, 2008).
57
episódio, o ego-onírico de Kurosawa está inclusive vestido como um estudante de belas
artes, com um estojo de pincéis e duas telas à mão.
O tour na galeria começa com o último autorretrato que van Gogh fez e nesse
percurso vê-se algumas das pinturas mais famosas do artista (WALTHER, 2006):
I. Auto-retrato
(Setembro de 1889, Óleo sobre tela, 57 x 43,5 cm).
II. A noite estrelada
(Junho de 1889, Óleo sobre tela, 73 x 92 cm).
III. Doze girassóis numa jarra
(Agosto de 1888, Óleo sobre tela, 91 x 72 cm).
IV. Campo de trigo com corvos
(Julho de 1890, Óleo sobre tela, 50,5 x 100,5 cm).
V. A cadeira de van Gogh em Arles com cachimbo
(Dezembro de 1888, Óleo sobre tela, 90,5 x 72 cm).
VI. A ponte de Langlois, perto de Arles, com lavadeiras
(Março de 1888, Óleo sobre tela, 54 x 65 cm).
VII. O quarto de van Gogh em Arles
(Setembro de 1889, óleo sobre tela, 73 x 92 cm).
60
necrofágicos do corvo consolidaram essa associação no imaginário popular, já que ele
era uma presença constante nos campos de batalha (ROCKENER, 1997). Segundo
Erickson (1998) van Gogh via os campos de trigo como um símbolo de esperança, e
os corvos sobrevoando-os como um presságio de que algo ruim aconteceria.
Considerando que Corvos foi uma das últimas obras do artista, essa interpretação faz
sentido (DANTO, 1997). Para além desta conotação negativa, o corvo é considerado
um psicopompo, um intermediário entre esse e o outro mundo. Os pássaros sempre
tiveram o papel de mensageiros divinos devido à sua capacidade de voar; no caso do
corvo, ele é tido como o guia das almas na sua última viagem (ROCKENER, 1997).
Depressivo, com a sensação de que tinha falhado em todos os aspectos de sua
vida, Vincent van Gogh foi na tarde de 27 de julho, para o campo, e deu um tiro no
próprio peito. Morreu dois dias depois na pensão, nos braços do irmão Theo
(WALTHER, 2006). Na cena de encerramento do quinto episódio de Sonhos,
Kurosawa mostra o respeito que tem pelo talento do perturbado gênio ao fazer o seu
HXRQtULFROLWHUDOPHQWH³WLUDURFKDSpX´SDUDRTXDGUR
O brevíssimo retrospecto dos últimos dias de van Gogh em Corvos faz referência
a outro tema de considerável impacto para o diretor: o suicídio. Além da sua função
cultural num Japão pré-Meiji, o suicídio tem um significado profundamente pessoal
para Akira Kurosawa: os efeitos devastadores do suicídio do irmão e a sua tentativa de
tirar a própria vida, no início da década de 1970.
Heigo Kurosawa tornou-se um homem bem-sucedido por causa de um movimento
distintamente japonês: o dos dubladores de filmes mudos, os katsuben12 Heigo era
narrador-chefe de um cinema importante em Tóquio quando surgiram os filmes falados.
Encerrava-se então a era dos narradores, e a vida de Heigo foi seriamente prejudicada
com essa virada de eventos. A demissão em massa da categoria gerou greves, e Heigo
foi escolhido para ser um dos líderes grevistas (KUROSAWA, 1993).
12
Segundo Futemma e Mattos (1996), a presença dos katsuben nas sessões de cinema era essencial, porque
eram eles que faziam a ponte entre os filmes e as plateias mais tradicionais, acostumadas com o kabuki e o
teatro com bonecos bunraku. Os dubladores populares eram tratados como estrelas de cinema e faziam
turnês pelo país, a sua performance muitas vezes eclipsando o próprio filme.
61
Em 10 de julho de 1933, quando Akira tinha 23 anos, o irmão Heigo se suicida.
$V FDXVDV VmR P~OWLSODV D FRPHoDU SHOR VHX ³IUDFDVVR´ FRPR OtGHU JUHYLVWD H DV
dificuldades financeiras que enfrentava. No entanto, ao examinar de perto a vida de
Heigo Kurosawa, ela se revela a crônica de uma morte anunciada. Um grande admirador
da literatura russa, ele tinha A Última Linha (1912) de Mikhail Artsybashev (1878-1927)
FRPROLYURGHFDEHFHLUD'L]LDVHPSUHTXHLDPRUUHUDQWHVGRVLQVSLUDGRSHOD³PRUWH
HVWUDQKD´ de Naumoy, o protagonista de A Última Linha. Heigo tinha o hábito de
SURFODPDULVVRDSRLDGRQRVHJXLQWHDUJXPHQWR³$VSHVVRDVTXHSDVVDPGHVVDLGDGHVy
VHWRUQDPPDLVIHLDVHPHVTXLQKDV´.8526$:$S
A morte repentina do irmão fez Kurosawa (1S³URGDUFRPRXPSLmR´
disse. Akira se espelhava em Heigo, e agora que ele estava morto o futuro cineasta
passou a ser o homem da família. Após três anos sem rumo, muda de profissão:
abandona a pintura e ingressa na indústria cinematográfica. Passou a se sentir
responsável pelos pais, cuja renda diminuiu consideravelmente com o passar dos anos
(KUROSAWA, 1993).
Apesar de todo o seu sucesso artístico e comercial, o diretor passou por um
período difícil entre as décadas de sessenta e setenta. Os anos de 1967 e 1968 foram
tomados pela briga homérica (e bastante pública) com a 20th Century Fox, o estúdio
que produziu Tora! Tora! Tora!, o primeiro e único filme americano a ser dirigido por
Kurosawa (RICHIE, 1996). O fracasso comercial do seu filme seguinte, 'RGHV¶.D-
Den ± O Caminho da Vida (1970) e a evolução de uma doença o fizeram atentar contra
a própria vida (KUROSAWA, 1983). A tentativa de suicídio de Kurosawa veio em
1971. De acordo com Richie (1996), o diretor tinha perdido a paixão por fazer filmes.
Esse episódio já começa com uma confusão ± uma multidão correndo, e o ego-
RQtULFR³QDGDQGR´RXPHOKRUFRUUHQGR³FRQWUDDFRUUHQWH´/RJRHOHGHVFREUHRPRWLYR
62
desse caos: de uma cerca ele avista enormes explosões atrás GR0RQWH)XML³2)XMLHQWURX
HPHUXSomR"7HUUtYHO´$QHYHDQFHVWUDOHPYROWDGHVHXSLFRFRPHoDDGHUUHWHU
O Kurosawa (1993) real vivenciou uma experiência aterrorizante, semelhante a
esta: o Grande Terremoto Kantô, que sacudiu o Japão no dia 1 de setembro de 1923.13
O futuro cineasta descobriu que esses desastres naturais podiam despertar o pior nas
pessoas, a exemplo da turba que massacrou os imigrantes coreanos de Tóquio,
incensados por demagogos que procuravam bodes expiatórios para aquele cataclismo.
³4XDQGR R DQLPDO KXPDQR HQWUD HP SkQLFR HOH VH WRUQD XP LPEHFLO´ FRQFOXL
Kurosawa (1993, p. 202).
8PDPXOKHUDRODGRGH.XURVDZDFRPGXDVFULDQoDVQRFRORH[FODPD³%HP
SLRUTXHLVVR1mRHVWiVDEHQGR" $XVLQDQXFOHDUH[SORGLX´8PKRPHPGH yFXORV
eQJUDYDWDGR VH LQWURPHWH QD FRQYHUVD H H[SOLFD ³2V VHLV UHDWRUHV DW{PLFRV HVWmR
H[SORGLQGR XP D XP´ 2 PHVPR KRPHP WUDWD ORJR GH HVPDJDU D TXDOTXHU SRQWD GH
HVSHUDQoD³2-DSmRpWmRSHTXHQRTXHQmRKiFRPRHVFDSDU´$PXOKHUFRPSOHPHQWD
³1yV VDEHPRV 1ão há saída... Mas precisamos tentar assim mesmo! Não tem outro
MHLWR´ 2 )XML ILFD FDGD YH] PDLV YHUPHOKR H FRPHoD D UXLU 3ULQFH DSRQWD D
VHPHOKDQoDGHVVHHSLVyGLRFRPRV³ILOPHVGHPRQVWUR´GH,VKLU{+ǀnda (1911-1993),
diretor de clássicos como Godzilla (1954), Rodan (1956) e Mothra (1961).
O Monte Fuji (Fuji-san), é preciso esclarecer, é de suma importância na vida dos
japoneses. Sagrado para os xintoístas, ele é o vulcão mais alto do país, medindo 3.776m
de altura. O Fuji-san está conectado a três vulcões subsidiários: Komitake, Ko-Fuji e Shin-
Fuji. A sua beleza natural foi desde sempre tema de poesias, quadros, estampas e
fotografias. Na página seguinte (fig. 5) está a famosa xilogravura de Katsuhika Hokusai
(1760-1849) com o Fuji ao fundo (KERRIGAN, 2009). Ao sul do vulcão está uma cidade
portuária homônima, Fuji, localizada em frente à baia de Suruga (FRÉDÉRIC, 2008).
Quanto à questão das usinas atômicas, este é um tópico delicado no Japão. O
GLWR³3DtVGR6RO1DVFHQWH´ VRIUe de uma notória escassez de recursos naturais. As
13
Pelo fato de se situar cerca de uma grande falha geológica, as quase sete mil ilhas que constituem o Japão estão
sujeitas a constantes abalos sísmicos: superam cinco mil por ano. Um dos epicentros dessa atividade é a planície
costeira de Kantô, a maior do Japão, que cobre com uma superfície de 15 mil km2 (FRÈDÈRIC, 2008).
63
matérias-primas que alimentam a sua poderosa indústria de tecnologia (veículos,
telecomunicações, biotecnologia, eletrônica) são todas importadas. As suas
necessidades de energia elétrica são supridas por hidroelétricas, petróleo (importado,
pois o carvão japonês é de má qualidade) e outras fontes. Resultado: 10,3% da energia
do país depende de usinas nucleares (FRÉDÉRIC, 2008).
A adoção da energia atômica é um mal necessário, para o horror dos
ambientalistas de plantão, e o acidente na usina nuclear de Kushima materializou os
seus piores pesadelos. No dia 11 de março de 2011, um terremoto de nível 9 na escala
Richter atingiu a costa leste do Japão. Um tsunami de 14m de altura foi criado logo em
seguida. Além dos 26 mil mortos pela onda gigantesca, o tsunami causou um prejuízo
avaliado em bilhões de dólares. Dois dos seis reatores da planta nuclear foram
avariados (SEHGAL, 2012).
Voltando ao sonho de Kurosawa: depois do Fuji em erupção, um silêncio
ensurdecedor. Milhares de bicicletas, malas e mochilas abandonadas, largadas no chão.
&RPH[FHomRGH.XURVDZDDPmHHRH[HFXWLYRQmRKiXPDDOPDYLYDQROXJDU³0DV
RTXHDFRQWHFHX"2QGHIRLSDUDUWRGDDTXHODJHQWH"3DUDRQGHIXJLUDP"´± pergunta
Kurosawa.
³3DUDRIXQGRGRPDU´UHVSRQGHRH[HFXWLYR&RPDSRSXODomRDWXDOGH)XML
estimada em 210 mil habitantes (FRÉDÉRIC, 2008), imagina-se a visão dantesca de
centenas de milhares de corpos boiando nas águas de Suruga. Não vemos a cena, mas
imaginamos o seu horror pela expressão do ego-RQtULFRGRGLUHWRU³$TXLpRILPGD
OLQKD´GL]DPXOKHUeRTXHSDUHFH
64
Figura 4 ± A grande onda em Kanagawa (1826) de Katsuhika Hokusai
³eRFDUWmRGHYLVLWDGDPRUWH´WHUPLQDOXJXEUHPHQWHDH[SRVLomRGRH[HFXWLYR
O homem se despede e se dirige ao penhasco. Kurosawa tenta impedi-lo, argumentando
TXH³DUDGLDomRQmRPDWDGHXPDYH]´2H[HFXWLYRVHH[DVSHUD³(GDt"$PRUWHlenta
é pior. Recuso-PHDPRUUHUOHQWDPHQWH´621+26F
eDYH]GDPXOKHUIDODU³$PRUWHpXPDFRLVDSDUDRVDGXOWRVTXHMiYLYHUDP
EDVWDQWH0DVDVFULDQoDVQHPYLYHUDPDLQGD1mRpMXVWR´(FRQWLQXDRVHXODPHQWR
65
Disseram que as usinas eram seguras, que o mau uso era o perigo, não a usina nuclear
em si. Sem acidentes. Não haveria perigo! Foi o que nos disseram. Mentirosos! Se
não forem enforcados por isso, eu mesma vou matá-los! (SONHOS, c1990).
67
3.7 ³2'(0Ð1,2&+25262´㨣ူ)
Apesar de não ter uma ligação direta entre os dois, esse episódio é uma
continuação temática do anterior. Via um mundo pós-apocalíptico, Kurosawa conecta
o ancestral com o moderno, o folclórico com o científico: o mítico Oni e as mutações
JHQpWLFDVSURGX]LGDVSHODUDGLDomRQXFOHDU.XURVDZD³UHPLWRORJL]DRVHFXODU´QHVVH
episódio, diz Heinzekehr (2012, p. 3).
No começo do episódio o ego onírico de Kurosawa vaga por paisagem cinzenta
sem vida. Não há animais ou plantas à vista. Atrás dele se vê, à distância, uma cidade
em ruínas. Esse panorama desértico resgata uma segunda lembrança do Terremoto
Kantô. Quando o tremor passou, Heigo forçou Akira a acompanhá-lo num passeio
pelos escombros do subúrbio de Tóquio, para verem de perto o estrago causado pelo
abalo sísmico. Além dos cadáveres carbonizados, empilhados nas margens dos rios, os
incêndios tinham reduzido a SDLVDJHP D XPD WRQDOLGDGH ³PDUURP-avermelhada até
RQGHPHXVROKRVSRGLDPYHU´.8526$:$S$WpDTXHOHPRPHQWRQmR
SHUFHEHUDR³TXmRSUHFLRVDDYHJHWDomRp´ ± ele não viu um traço de verde naquela
vista desoladora (KUROSAWA, 1993, p. 92).
Kurosawa está caminhando pelo pico do morro quando é encoberto por uma
neblina. Ele começa a suspeitar que alguém o segue. Dentro da neblina ele avista um
vulto. A silhueta lentamente revela ser um homem com um aspecto assustador: roupas
rasgadas, cabelo desgreQKDGRFRUFXQGD2KRPHPSHUJXQWD³9RFrpKXPDQRQmR"´
O homem repentinamente urra de dor e segura a cabeça. Quando o personagem
principal se aproxima dele para perguntar se o homem está bem o Kurosawa onírico
toma um susto, porque percebe o chifre na caEHoD GRKRPHP ³9RFr p XPRJUR"´
SHUJXQWDDVVXVWDGR$FULDWXUDULHUHVSRQGH³e$FKRTXHVRX0DVMiIXLKXPDQR´
'HSRLVUHVPXQJD³4XHPXQGR4XDQWDHVWXSLGH]´
Caso a audiência preste atenção apenas nas legendas, perderá o verdadeiro
sentido da pergunta que o protagonista fez. O que o ego-onírico de Kurosawa
SHUJXQWRXIRL³9RFrpXPOni"´8PDILJXUDJURWHVFDHWHUULYHOPHQWHIRUWHR2QLp
68
um ser de outro mundo que tem uma enorme predileção por carne humana (KAWAI,
2007). Nos teatros Nô e Kabuki ele é representado por um demônio de rosto vermelho,
olhos globulosos e chifres (FRÉDÉRIC, 2008). Apesar de suas tendências
antropofágicas, o Oni não é visto de forma maniqueísta na cultura japonesa; ele pode
ser ambíguo e possuir qualidades humanas (KAWAI, 2007).
1DLQWHUDomRGR³2JUR´FRPRSURWDJRQLVWDRHVSHFWDGRUYDLUHSDUDUTXHR2QL
ri nervosamente com frequência. Esse riso é característico dos contos de fadas
japoneses envolvendo o Oni. A risada grosseira e agressiva do Oni é feita para apavorar
as suas futuras vítimas: o Oni ri enquanto tortura os seres humanos, antes de devorá-
los. O seu riso é um signo de dominação (KAWAI, 2007).
22QLPRVWUDSDUD.XURVDZDDV³IORUHVHVWUDQKDV´TXHFUHVFHPQDTXHODWHUUD
inóspita: Dentes-de-/HmR³PRQVWUXRVRV´GHPGHDOWXUD35,1&(³+iPXLWR
tempo este lugar era um lindo campo florido. Aí as bombas nucleares e os mísseis o
WUDQVIRUPDUDPQHVWHGHVHUWR´2PRQyORJRSURVVHJXH³7XGRLVWR HVWiSROXtGRSHOD
radiação. Ela causa essas mutações. As flores estão deformadas. E não são só as flores.
2VVHUHVKXPDQRVWDPEpP2OKHSDUDPLP´22QLDSDOSDRVHXFKLIUHHFRQWLQXDD
resmungar:
A estúpida humanidade fez isto. Tornou nosso planeta um lixão para detritos
venenosos. A natureza sumiu da Terra, a natureza que apreciávamos. Perdemos os
pássaros, os animais, os peixes. Há algum tempo, vi uma lebre com dois focinhos,
um pássaro de um olho só e um peixe peludo (SONHOS, c1990).
69
como um segundo sol. A sua potência equivalia a 20 mil toneladas de TNT. Só um
bunker reforçado com 125m de concreto poderia proteger seres humanos do impacto
direto da explosão. Foram estimados em 100 mil o número de mortos e mais 100 mil
de feridos. Quem teve o azar de olhar diretamente para a explosão teve os seus olhos
carbonizados (HERSEY, 2002).
Os afetados pela radiação desenvolveram o que ficou conhecido como
³VtQGURPH GD %RPED $´ 3RXFRV GLDV DSyV R ERPEDUGHLR DV SHVVRDV DSUHVHQWDUDP
náusea, diarreia, queda de cabelo, febre e diminuição dos glóbulos brancos no sangue.
Outro efeito nocivo da radiação foi gerar esterilidade nos homens e abortos
espontâneos nas mulheres. Além do cansaço e da dor de cabeça habituais que duraram
o resto da vida, as vítimas da bomba apresentaram outros sintomas mais problemáticos:
a catarata e as temidas petéquias, manchas hemorrágicas na pele e na membrana
mucosa (HERSEY, 2002).
Apesar de sua filmografia relativamente parca e limitada, surgiu um gênero no
cinema pós-guerra japonês dedicado exclusivamente a tratar ± em forma de ficção ou
documentarista ± das vítimas da radiação atômica: o Hibakusha Eiga. Num primeiro
momento eles foram pesadamente fiscalizados pelos censores da Ocupação americana,
que só autorizavam roteiros que responsabilizassem os japoneses pelo seu próprio
infortúnio e perdoassem os invasores. No fim da ocupação militar americana do Japão,
no entanto, os filmes ficaram mais agressivos em suas denúncias (NOVIELLI, 2007).
Dois dos filmes de Kurosawa, Anatomia do Medo (1955) e Rapsódia em Agosto (1991),
se aproximam dos Hibakusha Eiga DR WUDWDUHP GR -DSmR ³SyV-QXFOHDU´
(HEINZEKEHR, 2012).
O protagonista aproxima-VHQRYDPHQWHGR2QLHSHUJXQWD³2TXHYRFrVFRPHP
HQWmR"´± O Oni ralha com ele:
Não há comida! Comemos uns aos outros. Os fracos são comidos primeiro. Está
chegando a minha vez. Até mesmo aqui existe uma hierarquia. Ogros com um só
chifre, como eu, são sempre comidos por aqueles que têm dois ou três chifres.
Antigamente, eles eram poderosos e pretensiosos, e agora ainda se impõem como
ogros (SONHOS, c1990).
70
Curiosamente, o tema da hierarquia asiática do primeiro e quarto episódios
voltam à tona numa versão bem grotesca. Heinzeker (2012) argumenta que a
hierarquização feita entre os Onis pelo número de chifres é arbitrária, uma caricatura
das estruturas de poder da sociedade nipônica. Essa avaliação peca ao ignorar o chifre
como um símbolo antiquíssimo de poder e potência viril (CHEVALIER, 2012). Sendo
DVVLPHVVD³GLYLVmRGHFDVWDV´EDOL]DGDSHODQXPHUDomRGRVFKLIUHVHVWiORQJHGHVHU
arbitrária. Ela expõe os impulsos territoriais e agressivos que levaram ao conflito
nuclear do episódio, impulsos que perduram nesse mundo pós-humano.
2 2QL OHYDQWD H FRPHoD D ULU PDQLDFDPHQWH ³&RPR TXLVHUHP HQWmR´ (
continua:
Que fiquem como todos os seus chifres. Que vivam torturados pela sua aparência. É
um inferno. Pior do que a morte. Eles não podem morrer, mesmo querendo. É o
castigo deles. A imortalidade. Torturados pelos seus pecados (eles) precisam sofrer
para sempre (SONHOS, c1990).
2V³SRGHURVRVHSUHWHQVLRVRV´GRVTXDLVR2QLVH UHIHUHSURYDYHOPHQWHHUDP
políticos, capitães de indústria e outros homens cuja fome insaciável por poder
provocaram o fim daquele mundo, um mundo no qual o nosso pode ser transformar,
seguindo a linha de pensamento de Kurosawa. Rockener (1997) comenta como a
DSDUrQFLDPRQVWUXRVDGDTXHOHV³RJURV´2QLSRGHVHUXPD expressão exterior da sua
perversidade e desequilíbrio mental.
Ainda segundo Rockener (1997), o monstruoso e o animal no imaginário
humano são indissociáveis. O processo evolutivo do homo sapiens o separou do resto
do reino animal, abrindo o caminho para o despertar da consciência. Uma identificação
do homem com a sua natureza animal, então, é geralmente vista como uma regressão.
A aparência dos monstros (nesse caso, os Onis hibakusha) é um símbolo de sua alma
animalesca (RONECKER, 1997).
Recorda-se nesse PRPHQWRRDUTXpWLSRGD³VRPEUD´PHQFLRQDGRQRVHJXQGR
capítulo. $VRPEUDUHVXPLGDPHQWHpDTXLORTXHRKRPHPQmRTXHUVHU³RLQLPLJRQR
SUySULR SHLWR´ -81* S $ VRPEUD DFXPXOD R TXH R KRPHP
conscientemente rejeita por estar incompatível com o estilo de vida que escolheu.
71
Existe um perigo duplo ao lidar com a sombra: pela sua proximidade com a vida
instintual, ignorá-la ou identificar-se exageradamente com ela produz dissociações
perigosas (JUNG, 2005).
Contudo, Jung (1987) adverte para não HTXLSDUDU³DVWHQGrQFLDVUHSULPLGDVGD
VRPEUD´DRPDODEVROXWR³$VRPEUDpVLPSOHVPHQWHYXOJDUSULPLWLYDLQDGHTXDGDH
LQF{PRGD´GL]-XQJSPDVHODGHWpPTXDOLGDGHVTXHHPEHOH]DPDH[LVWrQFLD
humana. O Oni que interage como protagonista lamenta o estado daquele mundo pós-
DSRFDOtSWLFRHDVVXPHSDUWHGDUHVSRQVDELOLGDGHQLVVR³(XHUDID]HQGHLURTXDQGRHUD
homem. Joguei galões de leite no rio para manter os preços elevados. Enterrei batatas e
UHSROKRV FRP XPD HVFDYDGHLUD 4XDQWD HVWXSLGH]´ (VVas são reflexões e atitudes
tipicamente humanas, para além do puramente instintivo. Esse Oni talvez represente uma
conscientização tardia da apatia social gerada pelo egoísmo e consumismo.
Os outros Onis, no entanto, parecem representar algo menos restrito do que uma
sombra puramente pessoal. Para Jung (2005) a sombra, quando ligada ao inconsciente
coletivo, torna-se o arquétipo do eterno antagonista. Essa figura é bem conhecida na
cultura judaico-FULVWmR'LDER2³ILOKRWHQHEURVR´GH'HXVpXPDSHUYHUVmR do ideal
prometeico: ele induz o homem a ser independente atiçando o seu lado animalesco.
Isso provoca a ira do Todo Poderoso, que mediante intervenções divinas reforça a
fidelidade que exige do povo de Israel. No Apocalipse14 de João ele encarnará no
mundo como o falso profeta, o Anticristo, que enfeitiça a humanidade com a sua
doutrina enganosa e lançará o poder descomunal das trevas sobre a Terra (JUNG,
2001). Com as devidas restrições, acha-se essa personificação do mal em outras
culturas. Na mitologia egípcia ela é Seth, deus da agressividade e assassino de Osíris,
deus da morte, ressurreição e dos ciclos da natureza. No panteão nórdico ela é o filho
dos Gigantes do Gelo, Loki, infiltrado em Asgård, a morada dos deuses. Na tradição
budista há Mara, o grande tentador (LURKER, 2003).
Portanto, aqueles Onis gemendo entre poças de sangue e os restos devorados de
gente são a maldade em estado pleno. Viverão para atormentar o próximo, talvez a
14
Do grego apokálipsis, ³UHYHODomR´2~OWLPROLYURGR1RYR7HVWDPHQWRFRQWpPDGHVFULomRGRGLWR³-Xt]R
Final´/85.(5
72
única coisa a ser feita além de aturar o próprio sofrimento, interminável. É a definição
de estar no inferno. A fonte da dor são os chifres, também fonte do seu poder; é o
castigo deles por tê-lo conduzido mal. O Demônio Choroso termina com Kurosawa
SHUVHJXLGRPRQWDQKDDEDL[RSHORVHXQRYR³DPLJR´$HVVDDOWXUDR2QLHOLPLQRXR
resto daquela ambivalência humana descrita por Kawai (2007). O episódio acaba num
fade-out semelhante ao Fuji Vermelho.
73
Tentamos viver de modo como o homem vivia antigamente. É o modo natural de
viver. Hoje em dia, as pessoas esquecem de que elas são só uma parte da natureza.
Destroem a natureza da qual nossa vida depende. Acham que sempre podem criar
algo melhor. Sobretudo os estudiosos. Eles podem ser inteligentes, mas a maioria
não entende o coração da natureza. Eles só criam coisas que acabam tornando as
pessoas infelizes. Mesmo assim, orgulham-se tanto de suas invenções. E, o que é o
pior, a maioria das pessoas também se orgulha. Elas as veem como milagres.
Idolatram-nas (SONHOS, c1990).
74
conselhos para a pessoa superar os obstáculos da vida (JUNG, 2000b). Para Middelkoop
HVVH³HVStULWR-JXLD´HVWiOLJado ao Si-Mesmo. É uma figura que inspira respeito
e confiança, que enfrenta de forma clara e direta os problemas do sonhador. Esse
³SHUVRQDJHP DUFDLFR GD DOPD FROHWLYD´ HPDQD GR ³FHQWUR LQYLVtYHO GH FRPDQGR´ GR
inconsciente, o Si-Mesmo, o cerne da psique (MIDDELKOOP, 1996, p. 7).
De novo ao filme. O ancião interrompe a conversa com Kurosawa; ele pede
licença para se juntar a uma procissão funerária. Ele entra numa casa e sai com uma
toga laranja. Kurosawa pergunta a idade dele e fica boquiaberto quando resSRQGH³&HP
PDLVWUrV´TXHp³XPDERDLGDGHSDUDSDUDUGHYLYHU´621+26F
E porque a toga laranja? Podia-se especular sobre as propriedades simbólicas
dessa cor, um meio termo entre o vermelho e o amarelo, uma tonalidade que sugere
energia, calor e a volatilidade do fogo... Mas, caso parasse aí, perder-se-ia o significado
do laranja dentro do contexto do filme. Conta-se que nos tempos do Buda, os
SULVLRQHLURVXVDYDPURXSDVGHFRUDoDIUmR2³,OXPLQDGR´FRPHoDHQWmRDYHVWLUURXSDV
dessa cor para mostrar a sua compaixão pelos criminosos e necessitados (THE
ARCHIVE, 2012). Usando como referência o livro de Smith e Novak (2007), é
possível enxergar essa toga cor laranja como símbolo da mistura da piedade e
desprendimento que o budismo prega. No caso, a gratidão que o ancião sente por estar
vivo e a leveza com que trata a traição do primeiro amor de sua vida, a mulher cuja
procissão vai se juntar em breve.
Terminada a procissão, o foco da câmera da última cena do filme é no
movimento lânguido das ervas subaquáticas do rio da aldeia. Richie (1996) identifica
a música de fundo como a Caucasian Sketches, Suite No. 1 (1894) do compositor russo
Mikhail Ippolitov-Ivanov. Baseado nas lembranças de Kurosawa (1993) pode-se supor
que esta seja outra crítica feita à modernidade:
A terra natal de meu pai, no interior de Akita, foi modificada de forma cruel. No
riacho que corta o vilarejo, flutuavam, outrora, belas folhas e flores aquáticas. Agora,
há ali tigelas, pratos, cacos de garrafa de cerveja, latas vazias, sapatos de borracha e
até galochas. A natureza cuida bem de sua aparência. O que deixa a natureza feia é
o comportamento dos seres humanos (KUROSAWA, 1993, p. 101-102).
75
Mas o que é que Kurosawa realmente quis mostrar com essa imagem enigmática? O
filósofo grego Heráclito de Éfeso (535-476 a.C.) afirma não ser possível atravessar o
mesmo rio duas vezes. Tudo é movimento, perpétua mutação (FIORILLO, 2008). Uma
ideia análoga é encontrada no modo de ser budista: nada é permanente, e tentar manter
DVFRLVDVVHPSUHLJXDLVLQFOXVLYHRQRVVR³HX´FDXVDVRIULPHQWR&RPRIRLDILUPDGD
em outra ocasião, a influência dessas ideias budistas (WATTS, 2009). Exemplo disso é
o código samurai: o abandono do egoísmo, o desapego a uma vida de riqueza e glória e
a reflexão constante sobre a morte (TSUNETOMO, 2004). Talvez o movimento gentil
GHVVDV ³EHODV IORUHV DTXiWLFDV´ D DFHLWDomR GR LQHYLWiYHO SRU SDUWH GR GLUHWRU FRP D
serenidade e sapiência acumulada com a experiência de uma vida bem vivida.
76
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
78
REFERÊNCIAS
79
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VAN DE CASTLE, R. L. Our dreaming mind. New York: Ballantine Books, 1994.
83
ÍNDICE
85
Darwin, Charles, 12, Estudos Sobre a Histeria (livro), 10
Diabo, 72
Dias, Gonçalves, 51 Fausto (peça), 9, 10
'RGHV¶.D-Den ± O Caminho da Vida (filme), Fellini, Federico, 5
62 Ferenczi, Sándor, 13
Fliess, Wilhem, 11
Édipo Rei (peça), 52 Frankenstein (livro), 5
ego (ver também Eu), 17, 20, 28, 33, 46, 52, Franz, Marie-Louise von, 7, 26, 34-36, 38-39,
56, 58, 62, 64, 76 45.
egoísmo, 28, 72, 76 Freud, Sigmund, 5, 10-16, 18-21, 35, 36, 48,
espírito, 10, 16, 22-24, 45, 47, 50, 52, 53, 75 54
Yuki Onna, 49, 50, 51, 52, 77 Ford, John, 32
\njUHL
Fuji, Monte, 63, 64, 67, 73 Hitchcock, Alfred, 32
Galton, Francis, 11n1, 12 Hokusai, Katsuhika, 63, 65
Globo de Ouro, 33
gnosticismo, 10, 16 I Ching: O Livro das Mutações (livro), 16
A grande onda em Kanagawa (xilogravura), 65 Iansã (orixá), 38-39, 41
O Grito (filme), 50 imaginação ativa, 16, 74
Godzilla (filme), 63 imago dei (imagem de Deus), 26
Goethe, Johann Wolfgang von, 9, 10 inconsciente, 7, 9, 11, 15-22, 29, 31, 34, 35, 38,
Gogh, Vincent van, 57-61, 77 39, 42, 50-52, 54, 66, 72, 75
Gorin No Sho (O Livro dos Cinco Anéis), 29 coletivo, 7, 17-20, 34, 50-52, 72
Grande Terremoto Kantô, 63, 64, 68 pessoal, 16-17, 19, 26, 50, 61, 72
individuação, 22
Hagakure (livro), 29 A Interpretação dos Sonhos (livro), 5, 10, 36,
Hall, Granville Stanley, 13
Heráclito de Éfeso, 76 Jahrbuch für psychoanalytische und
Hersey, John, 69 psychopathologische Forschungen (O anuário
Hina Matsuri (Festival dos Bonecos), 45, 47- de psicologia e pesquisas psicanalíticas e
48 psicopatológicas), 13, 15
hinduísmo, 25 Japão, 7, 22-23, 27, 29-31, 36, 42-44, 48, 54,
Hiroshima (cidade), 44, 69 56, 61, 63, 64, 70
Hiroshima (livro), 81 Jesus de Nazaré (Cristo), 26
histeria, 10, 11, 37 Jones, Ernest, 11, 13, 15-16
86
judô, 22, 28, 31 Nô, 32, 69
Jung, Carl Gustav, 6, 9-22, 33-37, 43, 50-52,
66-67, 71, 72, 74, 75 Odisseia (poema épico), 52
Jung, Paul Achilles (pai de Carl Gustav Jung), Ogum (orixá), 39
9 Oni, 68-73
Ogro, 68-71
kabuki, 61, 69 Oscar, 32, 33
kami, 23, 38, 46-48, 55 Osíris, 72
Kant, Immanuel, 9
harakiri, 43 A Porta do Inferno (filme), 32
karma, 25 Preiswerk, Emilie (mãe de Carl Gustav Jung),
kendô, 28, 30 9
kitsune (ver também raposa), 37-39, 41-43, 45, Preiswerk, Hélène (prima de Carl Gustav
77 Jung), 9
koan(s), 28 Prelúdio em Ré Bemol, 58
Kraepelin, Emil, 12 psicanálise, 5, 10-14, 16, 21, 35, 40, 54
Krafft-Ebing, Richard von, 11 A psicanálise dos contos de fada (livro), 40
Kurosawa, Akira, 1, 5-6, 29-66, 68-73, 75-77 psicologia analítica (ver também psicologia
Kurosawa, Heigo (irmão), 30, 61-62, 68, 77 Junguiana), 6-8, 16, 21, 36, 51
Kurosawa, Isamu (pai), 30, 57 psicopompo, 20, 55, 61
Kurosawa, Shima (mãe), 30 psique, 6, 17-21, 34-35, 52, 75
Psychopathia Sexualis (livro), 11
Loki, 72 Pulse (filme), 50
Lucas, George, 5, 33
Lutero, Martinho, 25 Quadros de uma Exposição (suíte), 45
87
Restauração Meiji, 23, 32
taoismo, 16, 27
Salles, Walter, 50 Taxi Driver ± Motorista de Táxi (filme), 58,
samurai, 28, 29, 32, 33, 43, 54, 57, 76 teste de associação de palavras, 12
Samurai (trilogia cinematográfica), 31 Tipos Psicológicos (livro), 16
satori, 28 Tóquio, 30, 61, 63, 68
Schiller, Friedrich, 9 Tora! Tora! Tora! (filme), 62
Schwyser, Emile, 19 Totem e tabu (livro), 48, 54
Scorsese, Martin, 58 Touro Indomável (filme), 58
O Segredo da Flor do Ouro (livro), 16 Transformações e símbolos da libido (ensaio),
símbolo (ver também simbologia), 26, 31, 35, 15, 19
36, 42, 60, 61, 71, 75, Trono Manchado de Sangue (filme), 32
seppuku, 43, 44 Tsunetomo, Yamamoto, 29, 54, 76
Os Sete Samurais (filme), 32 Tzu, Chuang, 27
Seth,72, Tzu, Lao, 27
Shelley, Mary, 5
Sófocles, 52 Wilhelm, Richard, 16
A Sombra de um Samurai (filme), 32, 33 Wolff, Toni, 16
sonho(s), 5-11, 15-21, 32-36, 41, 42, 45, 46,
54, 57, 58, 64-66, 69, 74, 78 Yojimbo (filme), 32
função compensatória dos, 21
função prospectiva dos, 66 Vazio (ver também shunyata), 28, 45, 55
proféticos, 36, 66
Sonhos (filme), 5-6,7, 9,10,11, 15,16,18,19,20, xintó, 23, 27, 36, 37, 47, 48, 55, 67
35, 37-39, 46, 48, 53, 57, 58, 59, 61, 65, 67,
69-71, 74, 75, 77 za-zen, 28
Sonhos Memórias Reflexões (livro), 16
Spielberg, Steven, 5, 33
Sugata Sanshiro (filme), 31
suicídio, 30, 43, 44, 61, 62, 77
de Heigo Kurosawa, 61, 62
de Vincent van Gogh, 57, 76
tentativa de Akira Kursawa, 56, 62
Stevenson, Robert Louis, 5
surrealismo, 5
88