Aleksandr Dugin

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ALEKSANDR DUGIN

Pensamentos
ÍNDICE

Capitulo 1: A Doutrina Tradicional dos Elementos

Lição I: A Restauração dos Fundamentos Filosóficos da Ciência


Lição II: Continuidade e Descontinuidade dos Elementos
Lição III: Os Elementos no Mito da Caverna de Platão. Símbolos da Hierarquia Ontológica e dos Estados
do Ser
Lição IV: A Metafísica da Luz

Capitulo 2: Introdução à Noomaquia

Lição I: Noologia
Lição II: Geosofia
Lição III: O Logos da Civilização Indo-Europeia
Lição IV: O Logos de Cibele
Lição V: O Logos de Dioniso
Lição VI: A Civilização Europeia

Capitulo 1: A Doutrina Tradicional dos Elementos

Lição I: A Restauração dos Fundamentos Filosóficos da Ciência

A ideia geral do Clube dos Elementos era de retornar a um momento em que os erros mais graves foram
cometidos no desenvolvimento da ciência moderna ocidental. A aplicação dos princípios do
tradicionalismo, identificados e desenvolvidos por Guénon e Evola. Mas ir além. Continuar seu trabalho,
não concentrando apenas na crítica evidente da modernidade, mas tentar retornar à situação intelectual,
filosófica e científica que correspondia a uma normalidade intelectual e cultural. Não apenas criticar o
que há hoje, mas tentar fazer algo de mais concreto. Quando se fala na ciência sagrada, que existia antes
da ciência moderna há a impressão geral de que se trata de fantasia, de ocultismo, de misticismo, mas é
importante individuar onde estava a verdade filosófica e científica que existia antes do cometimento
desses erros. Em que consistiam esses erros? Como explicar em linguagem atual quais eram esses
erros, graves e centrais, que perverteram o desenvolvimento do mundo moderno? Quando surgiu a ideia
do Clube dos Elementos, a vontade era voltar o estudo para uma cosmologia, não tanto sobre a
metafísica ou a antropologia ou a política, mas se concentrar na física sagrada, que precedeu a física
profana. A física verdadeira, não a metafísica, mas a física fundamental e sagrada que precedeu o
aparecimento da física incorreta, falsa, pseudologia. Física aletológica x física pseudológica. Pseudo =
Falso. Falsidade em relação à própria ontologia. Por isso é possível pensar e compreender algo que é
falso, mas que existe. Diálogo do Sofista de Platão, onde se falava na ontologia das coisas que não
existem na verdade, mas que existem. 
Essa existência do inexistente é a falsidade propriamente dita. Ou, falando cientificamente, é
pseudologia.  A ciência moderna é uma ciência pseudológica. Corresponde a algo da realidade, mas a
um aspecto falso da realidade. Existe também a ciência aletológica, onde a relação com a verdade está
conservada. Essa definição é importante porque permite compreender esse limite (limes) entre a verdade
tradicional, sagrada e a falsidade moderna, profana. A visão desenvolvida por Evola e Guénon, mas não
vamos aqui repetir o que os camaradas já conhecem. Por isso devemos ir além, estudando temas que
não receberam atenção, por isso necessário aplicar os princípios da ciência tradicional à cosmologia. 

Conceitos: Pseudologia e Aletologia

Aletologia corresponde a uma visão da internalidade. Internalidade = Eternidade dentro do Ser. Há um


eixo dentro do Ser, e este centro é eternidade, verdade, é ontologia. Essa é a coisa comum à filosofia de
Platão, Parmênides, Aristóteles. Comum a todo o pensamento clássico da Antiguidade, mas há também
um aspecto fundamental para compreender o que é a religião: cristã, islâmica, pagã, hindu, etc. Todas as
religiões e todas as filosofias coincidem com este ponto fundamental de que há uma Eternidade. E que o
Ser gira ao redor deste ponto imóvel, o centro que é o centro eterno. E este centro eterno dentro de nós,
dentro das coisas e não fora. A Eternidade é interna. Está no centro da internalidade. Isso não
é uma filosofia, a própria aletologia que está presente nas filosofias verdadeiras. Fundamento de todas as
escolas de pensamento filosófico ou religioso. A partir deste princípio começa todo discurso sobre a alma,
o espírito, a consciência. Sem esse discurso tudo é irreal.
O princípio primordial é essa identificação entre Eternidade e internalidade radical. Este é o motor
imóvel de Aristóteles, a Ideia de Platão, é Deus, a essência natural das coisas, a enteléquia de
Aristóteles, o centro absoluto. Tudo termina com o retorno a este centro. Precisamente isto dá uma
realidade ao mundo, ao homem, ao cosmos, a sacralidade, a tudo. Tudo gira ao redor deste eixo ou
centro eterno do Ser. E este centro está dentro de nós, no centro de nossa própria alma. Não é possível
dizer que está dentro de vocês, mas sim sempre dentro de MIM. Está no EU. É imanente em mim.  Essa é
uma pressuposição da ontologia tradicional. Este centro é eterno, neste ponto Ser coincide com
pensamento. É o νοῦς, é o logos, o centro do pensamento e do Ser. 

O cosmos e a ontologia das coisas exteriores

Quando aceitamos essa internalidade estamos no contexto da aletologia, mas o que é o cosmos e as
coisas do cosmos, que temos ao nosso redor?  Qual é a ontologia, qual é o Ser das coisas exteriores,
neste contexto da internalidade? Qual é o estatuto, o papel da exterioridade, das coisas exteriores nesse
contexto? Isso é central para compreender como se pode fazer o retorno à ciência verdadeira e sair da
ciência falsa. Compreender qual é a ontologia das coisas exteriores. É importante que para a
internalidade no contexto tradicional as coisas que estão radicalmente fora de nós não existem. Todas as
coisas que existem, que fazem parte do Ser não estão fora de nós. Estão no limiar do nosso Ser
intelectual. Ponto central: As coisas não existem sem essa relação com a internalidade e com o
centro da internalidade. As coisas não existem se não possuírem relação com a Eternidade, sem a
conexão com o centro radical da internalidade. Nada existe sem isso. 
As coisas se formam no limiar da consciência geral, entre a estrutura do Ser (Nous, Noesis). É importante
para compreender o erro da ciência moderna que fora do círculo da consciência há apenas uma
coisa: NADA. Há um núcleo que está privado de tudo que é Ser. A exterioridade é o limiar com o
NADA. E para além da internalidade não há NADA. Não existe NADA externo. Existem apenas as
coisas exteriores. Exterior = No limiar entre a consciência e o NADA. Existirem coisas externas
significaria existirem coisas sem nós, totalmente independentes de nossa consciência, da alma, do
Espírito, da Eternidade, da internalidade.Isso não é e não é possível. Todo que existe exteriormente se
acha precisamente na fronteira, no limiar, que se separa pseudologia e aletologia, ciência falsa e ciência
verdadeira. Porque toda falsidade começa com a aceitação de que fora do círculo da consciência existem
coisas. A ciência sagrada afirma que existe NADA fora de nós. Fora de nós não há NADA.  Tudo que é o
próprio Cosmos está no limiar, na fronteira, o Cosmos não é interno, mas não é externo, é  exterior. O
Cosmos é a realidade limítrofe, circundante, é uma linha que separa internalidade e NADA. Para além
dessa linha não há NADA. 

Ontologia da exterioridade

Uma ideia estranha, extravagante para os modernos. Mas era o fundamento da sacralidade.  Ontologia
da exterioridade é uma ontologia do limiar entre Ser e Nada.  É precisamente quando entendemos
isso que se torna mais fácil ler a fenomenologia ou Heidegger com sua concepção de existencial. Para
Heidegger o mundo não está fora. In-der-Welt-Sein, é um existencial, Ser-no-Mundo = Não existe mundo
sem Ser no mundo, não há mundo sem nós. Do lado de fora de nós = NADA. Essa é a atitude tradicional
e sagrada em relação ao Ser. Por isso encontramos o mundo no limiar com o NADA, não do lado de fora.
Por isso externalidade não existe. Por isso pretender que existe mundo, cosmos, matéria, física, coisas,
corpos fora deste círculo de internalidade é já cometer um grave erro ontológico. Aceitar a existência
das externalidades, totalmente independentes das coisas internas já corresponde a uma falsidade
absoluta, pseudologia. 

In-existência do átomo

A ciência contemporânea começa precisamente com isso, com essa afirmação nominalista, de que
existem coisas externas. Quando começamos a estudar como é possível chegar a isso de que existem
coisas externas fora de nós, sem relação com o Nous (νοῦς), com a Eternidade, com o Pensamento, com
o Espírito. Para chegar a essa visão é necessário introduzir um objeto especial, um objeto que existe
fora de nós de uma maneira metafisicamente. Demócrito introduziu este conceito, o do átomo.
Átomo é uma essência da falsidade. O átomo, o vazio que corresponde ao átomo, é uma falsidade física
e metafísica absoluta pelo fato de que no contexto da filosofia sagrada quanto mais nos aproximamos ao
NADA, no limite da exterioridade, mais se manifesta a continuidade. Tudo que está na periferia é
uma continuidade: de movimentos, mudanças, etc. A descontinuidade, o meio para mensurar as coisas
está dentro, é uma forma que corresponde a uma transcendência imanente da consciência. O meio, o
meio de mensurar o movimento ou mudança, não está no movimento, mas dentro do movimento. O meio
é uma relação do fenômeno com a eternidade.
Por isso, Aristóteles dizia que existem duas coisas: corpos, que são contínuos, e a maneira de mensurar
movimentos e mudanças, que é uma capacidade espiritual que existe dentro no centro, e que
corresponde a uma relação com a Eternidade. Essa descontinuidade não é característica da natureza,
mas do Espírito na natureza. É o Espírito que separa, distingue e diferencia.
E essa diferenciação não existe fora do Espírito, do Logos e do Pensamento. Por isso o átomo não pode
existir segundo a internalidade, segundo a aletologia, pois no nada não há um Logos para dividi-lo.
Quando se diz que há o átomo e que há vazio há uma pressuposição de que há um Logos que impõe
uma diferenciação vinda da internalidade, ou seja, um Logos exterior, exteriorizando. O átomismo é
revolução negativa, colapso de toda física ou metafísica. Quando afirmamos que há o átomo e vazio é o
mesmo que introduzir diferenciação, descontinuidade na continuidade, sem a presença do portador do
Espírito, da mente. Com isso começa a falsidade e com esse atomismo teórico, com a pressuposição da
existência do átomo (partículas subatômicas são absurdos filosóficos, se o átomo é divisível não é
átomo). 
O átomo não existe, não pode existir. Não é possível construir nada verdadeiro com a confissão da
existência do átomo. Todas as pesquisas sobre o atômico chegarão sempre na inexistência, porque não é
possível nunca chegar ao fim da divisibilidade, porque a divisibilidade não pertence à externalidade,
porque ela pertence à internalidade. Encontrar a qualidade atômica fora de nós é impossível. Erro
metafísico. Toda a construção do mundo fora de nós, matéria, substância, elementos, átomo, partículas,
partes é a projeção perversa de uma intelectualidade colapsada, Logos tomado de uma maneira
antinatural, totalmente pervertido porque aplica a coisas que não existem o fator da existência. Toda a
ciência moderna começa por essa passagem, este passo da exterioridade à externalidade.
Esse atomismo é muito pior do que a ciência moderna prática que chegou à conclusão de que não é
possível encontrar o átomo, mas este é um princípio da ciência moderna, de todas as ciências modernas.
Todas as ciências modernas possuem o atomismo em suas raízes. O atomismo nunca provado, nunca
confirmado, absolutamente impossível. O atomismo é conservado para salvar essa concepção de
externalidade. Como retornar à normalidade? Como restaurar a sacralidade e verdade da ciência, do
conhecimento, de tudo? É necessário retornar ao momento onde, na história do Ocidente e da cultura
ocidental se fez essa passagem da visão pré atomística à visão atomística.
Não era magia, abstração, teurgia, alquimia, era simplesmente Aristóteles, a física aristotélica,
corretamente explicada e compreendida. Não é possível entender Aristóteles corretamente sem retornar a
essa internalidade. Mas nós, hoje, graças a esse atomismo, interpretamos o aristotelismo, a Filosofia
Antiga, através deste atomismo. É tomado como garantido que os povos antigos e medievais acreditavam
na existência das coisas externas. Podemos ler textos só baseado em pressuposições desse tipo. É
evidente para os modernos que todos acreditam na existência de coisas externas, mas isso  não é
evidente. A explicação metafísica sob essa suposta evidência é a metafísica invertida. Não há nada de
natural no atomismo, no vazio. É uma antimetafísica, e é também algo contranatural. É uma forma de
hipnose, de sugestão, de ataque psíquico. 
Toda a ciência moderna é propaganda de coisas evidentemente falsas, construídas. Toda a nossa ciência
imposta em nossa educação possui essa maneira de ver. Essa maneira de ver não permite ler
normalmente nenhum autor pré-moderno. Só conseguimos ler através de olhos modernos, com os
pressupostos do atomismo, da externalidade, com essa pseudologia. Necessário restaurar a qualidade
natural do cosmos. Fazer um passo de retorno da externalidade atomística a
uma exterioridade existencial, a exterioridade situada no limiar. Recolocar o cosmos de fora da
consciência nas bordas entre consciência e nada, que é seu lugar normal. Com isso podemos restaurar
os meios para compreender as coisas de uma maneira muito mais correta do que hoje. É uma releitura do
aristotelismo e do platonismo e da ciência pré-moderna. 

Não é possível construir uma metafísica verdadeira sobre uma física incorreta

Para esse retorno é possível utilizar até algumas ferramentas modernas. Fenomenologia, linguística,
psicologia, romantismo/idealismo alemão. Agora temos o critério central. O que aceitar e o que rejeitar?
Atomismo é anátema, a existência das coisas externas. Se refutamos as externalidades, as ideias de que
as coisas existem de maneira independente de nós, fora do Espírito, fora da Eternidade, podemos aceitar
os autores e filósofos ou cientistas pré-modernos e também modernos, e podemos reconstruir
esse edifício da ciência aletológica. P.Ex.: Com Aristóteles vemos que o cosmos é composto de
elementos, mas estes elementos se formam no limiar da consciência, não do lado de fora da
consciência. Por isso não é possível encontrar o éter. Porque o éter não existe na externalidade. O éter
é um elemento que compõe o próprio limiar. Todos os outros 4 elementos são elementos exteriores que
só possuem sua realidade em relação com a internalidade. Não são subjetivos, psíquicos ou mágicos,
são elementos físicos que existem em um lugar diferente do que é compreendido pela modernidade.  Esta
é  a leitura correta dos elementos; isso não é mística - essa é a FÍSICA, a física evidente, a física das
coisas de geração, que mudam, etc. Não é possível construir uma metafísica verdadeira sobre uma
física incorreta. Não é possível construir algo mais elevado com bases falsas. Não é possível salvar as
religiões com uma cosmologia incorreta. A física falsa levou o Cristianismo à perdição. Não há metafísica
correta sem o sustentáculo da física tradicional. Com uma física incorreta não há ponto de apoio. 

A forma

Forma: A forma é o aspecto do objeto mais próximo à internalidade. Na forma se manifesta


exatamente o aspecto espiritual da coisa.
As leis dos objetos estão vinculadas às leis da forma. Por isso a geometria tinha tanto prestígio na
Antiguidade porque se trata das relações entre formas. Matemática, lógica e geometria pertencem à
ordem do Sujeito Radical, ao Intelecto Ativo que está situado no centro. Quando saímos do Logos em
direção ao limiar, a lógica, a geometria ou matemática começa a se transformar, deixando de ser linear,
rigoroso. Lógica vira retórica. A física não pode ser estudada com a lógica matemática ou com a
geometria. Nenhuma lei pode ser verificada no mundo do devir. A forma do corpo não pertence
inteiramente à exterioridade do corpo, ela possui uma relação com a Eternidade da internalidade, e por
isso a forma é capaz de afetar todos os processos. A forma é precisamente a relação do corpo com a
Ideia. A forma é sempre uma metáfora de algo interno. O corpo é poético. A essência é retórica e
poética, é física. A matemática deve ser teológica, trata das coisas eternas, não verificáveis, não físicas.
Se algo existe exteriormente não é matemática. A = A apenas em Deus. Os experimentos físicos,
portanto, só podem ser retórico-poéticos. 

Os elementos

Elementos: Os elementos não são coisas, mas relações com a internalidade. Sem a presença
do Sujeito o elemento não existe. Os elementos podem virar uns aos outros precisamente por serem
meras relações entre si. Todos os elementos estão em relação com o éter e o éter é a relação do
Sujeito com a exterioridade. O limiar pode ser visto na distância, a partir do centro. 

Objetividade e soberania intelectual

Internalidade não é subjetividade, mas objetividade intelectual. Há Intelectualidade ativa (νοῦς


ποιητικός) e há Intelectualidade passiva (νοῦς παθητικός). Intelecto passivo meramente reflete o
que supostamente está fora. O intelecto ativo (equivalente ao Sujeito Radical) constrói o mundo, é o
νοῦς ποιητικός. Com seu aspecto ativo, a internalidade adquire um caráter soberano. 
No mundo do devir, algo só pode ser verdadeiro e/ou falso fenomenologicamente, por isso no mundo do
devir a aparência pode ser uma imagem de uma determinada verdade. Mas só uma imagem, não a
verdade mesma.

Lição II: A relação entre continuidade e descontinuidade

O problema central da filosofia da ciência é a relação entre continuidade e descontinuidade. É possível


solucionar esse problema da relação justa entre continuidade e descontinuidade se conseguirmos situar
ambas em suas posições corretas do ponto de vista da aletologia. Com isso, poderíamos resolver muitos
problemas filosóficos, linguísticos e científicos. Não devemos nos afastar desse ponto. Quando falamos
em continuidade e descontinuidade há uma presunção geral de que se sabe do que estamos falando, por
isso vamos nos concentrar nessa questão.Na física tradicional ou sagrada, o mundo (physis) é contínuo.
Ao mesmo tempo, o Logos, o Intelecto é descontínuo.
Essa é a relação fundamental, a realidade última e ontológica. Quando falamos no cosmos, podemos
falar no cosmos em seu aspecto lógico (intelectivo), e nesse caso estamos lidando com um cosmos
descontínuo. Mas quando falamos no cosmos por si mesmo, o mundo ou natureza tal como é, falamos
em continuidade. O mundo é contínuo e descontínuo. Ele é descontínuo graças à ação do Logos e
contínuo por si mesmo. Essa consideração é central para situarmos as coisas em seus devidos lugares.

Peras e Apeiron

Isso nos remete a uma questão essencial para a filosofia grega: 

1) Peras (πέρας);
2) Apeiron (ἄπειρον).

Peras significa limite ou fim, enquanto apeiron é o ilimitado, indefinido ou infinito. Apeiron é aquilo que não
possui limite. Podemos retraduzir peras e apeiron como descontinuidade e continuidade,
respectivamente. A continuidade do apeiron não possui fim, e o seu oposto é peras. Qual é a raiz da
palavra grega peras (πέρας)? É o verbo grego peiro (πείρω), que significa furar, perfurar ou cortar. Peras
é o recorte da continuidade, é a limitação da continuidade. No pensamento grego, esse fim ou limite
corresponde ao Intelecto, ele é noético. É essa operação que impõe forma. O Logos (a descontinuidade)
dá forma à continuidade por meio de sua limitação.
A forma sempre pressupõe o limite, o confim. O apeiron, por sua vez, ilimitado, não possui forma, já que
só possui forma aquilo que foi limitado por peras. Apeiron é, precisamente, o nome para a matéria bruta, a
continuidade absoluta. Com isso, temos um panorama geral que serve para nos ajudar a compreender
todos os filósofos gregos, onde essas relações eram fundamentais. Trata-se aqui de um mapa noético,
noológico da física sagrada, que considerava o mundo como resultado do ato do Intelecto descontínuo
que impõe limite à continuidade do apeiron, da matéria. Peras impõe limite ao apeiron e, com isso, cria o
mundo. O mundo é uma descontinuidade espiritual/intelectual, no ética, imposta sobre a matéria
elementar. É por isso que, segundo Aristóteles, todas as coisas consistem, segundo Aristóteles, de forma
(peras) e matéria (apeiron). O Intelecto perfura (πείρει) a matéria, a divide, dá forma a ela, impondo limites
a ela. É por isso que as coisas são contínuas e descontínuas ao mesmo tempo. Das Seiende, as coisas
existentes, veem com isso uma superposição de duas formas de realidade: continuidade material e
descontinuidade formal. 

O interior e o exterior

Com isso, retornamos à visão circular da realidade que desenvolvemos precedentemente. Se


considerarmos a realidade total, podemos contornar duas regiões mais gerais: o interior e o exterior.  O
polo mais interior manifesta a descontinuidade pura, enquanto o polo mais exterior manifesta a
continuidade pura. Esses polos absolutos não podem ser considerados como estando na realidade. A
realidade é construída quando esses polos se põem em contato e se misturam, pela interação entre forma
e matéria. Em si mesmos, não é possível dizer que esses polos existem, mas são eles que tornam
possível o existente.
O Espírito perfura essa continuidade a partir de dentro, e a sua descontinuidade se sobrepõe à
continuidade exterior da matéria em si. A matéria é continuidade pura e o Intelecto é descontinuidade
pura. Trata-se de dois princípios apofáticos, dois silêncios. A matéria não fala por si mesma, ela é muda.
Matéria e o Espírito são dois nadas em estado de tensão, são duas pré-realidades, dois princípios pré-
ontológicos. Quando os dois entram em contato, surge o mundo, a realidade, tudo. E a totalidade possui
sempre uma relação dupla com continuidade material e descontinuidade formal.

O ato de mensurar é uma atividade intelectual que equivale ao ato de criar forma. A medida não existe na
continuidade, a continuidade não pode mensurar a si mesma. A continuidade só pode ser mensurada na
descontinuidade. Por isso, quanto menos as formas são percebidas, menos elas são distintas. O verbo
distinguir, aqui, é bastante sugestivo. A natureza (physis), a zona da física propriamente dita, é a região
mista. Em si mesma, a natureza é continuidade, materialidade, nada. Mas com o Espírito que impõe a
medida a partir de dentro da realidade, a natureza adquire seu conteúdo, as formas. Mas as formas dos
corpos não são descontínuas por si mesmas, mas apenas graças à ação de algo que não pertence à
natureza, graças ao Logos. O Logos divide e une em si mesmo. O Logos é a unidade do tudo (panta),
mas o Logos cria, também, a multiplicidade. O Logos é a pré-condição da multiplicidade. A unidade é
a conditio sine qua non da multiplicidade. Sem unidade não pode haver multiplicidade, tal como explicado
no Parmênides de Platão. 

Conceito do ponto

O ponto é a representação gráfica da pura descontinuidade. O ponto só pode existir no Intelecto, no


centro absoluto da interioridade. O ponto existe logicamente, metafisicamente. Ele não é físico. O ponto
físico ou natural ou material não existe. O ponto é uma contradição em si mesma. É linha sem longitude,
espaço sem conteúdo, esfera sem volume. Ele não existe e tampouco pode existir, mas ainda assim ele
existe e cria sua própria alternativa. Não podendo existir, o ponto dá existência a todo o resto. O ponto é
princípio ativo. O ponto, sendo inexistente, é ao mesmo tempo o que há de mais ativo na realidade.
É o silêncio que cria todas as palavras. O ponto é antinatural, protonatural, contranatural, pós-natural,
supranatural. Ele cria a realidade ali onde ele não pode existir. Ele é o Deus imanente, porque o ponto
está por toda parte, em todo espaço e todo tempo. E sua posição mais natural é a interioridade
absoluta. Mas quando queremos situar o ponto fora da internalidade, para além de sua posição normal e
central no círculo da realidade, esse espaço onde situamos o ponto gera, a partir desse esforço de situar
o ponto onde ele é impossível, uma aberração da realidade, uma antirrealidade. Trata-se aqui do não
ponto. O não ponto material, exterior, que existe por si mesmo, é o primeiro passo para dar início à
externalidade, situada fora da realidade. 

O átomo não pode e não deve existir

Este ponto indiviso, descontínuo, que existe fora da realidade contínua provoca precisamente o
colapso da metafísica e da física tradicional. É daí que vem a visão externalista da ciência moderna que
parte da afirmação da existência do átomo. O átomo não só não existe, como ele não pode e
não deve existir. Essa afirmação da existência do átomo é pior do que o próprio átomo enquanto
partícula. O átomo não pode ser encontrado, então ele não representa problema por si mesmo. O
problema é o conceito satânico do átomo, que inverte e corrompe a concepção tradicional da física que
torna impossível compreender a natureza. É por isso que, com a modernidade, entramos na antifísica,
essa ciência contemporânea não é física, mas antifísica. Ela está fora da natureza e da física tradicional,
não passa de subfísica. Se formos chamar um corpo material exterior de “ponto”, devemos fazê-lo de
forma retórica, tal como os gregos ou escolásticos o faziam. A retórica e as figuras da retórica nos dão a
possibilidade de nos desviarmos do uso estrito da palavra. Assim, podemos nos referir a um “ponto
material” como uma antífrase retórica, ao chamarmos de “ponto” algo que, obviamente, não
é realmente um ponto.

A retórica

A retórica opera com um silogismo incompleto, o entinema. Se o silogismo está situado no Logos, o
entinema está situado no thymos (θυμός). O thymos é a parte irascível da alma que representa a sua
qualidade guerreira. Os sacerdotes são a cabeça, os guerreiros são movidos pela glória, thymos. Essa
relação entre sacerdote e guerreiro corresponde também a uma dualidade entre lógica e retórica. As leis
da retórica são as mesmas que as da lógica, mas menos rígidas. O entinema é o silogismo menos estrito.
A retórica pode operar com figuras retóricas que chamam luz de sombra, alto de baixo, etc., isso é
possível por causa da antífrase. É por isso que a retórica pode chamar “o ponto” de não ponto e vice-
versa. Esse modo retórico corresponde bem à física, que possui sempre algo de lógico e não lógico. A
física é poesia, é uma forma retórica, é um discurso onde as leis rígidas da lógica não podem ser
estritamente aplicadas. É aí que podemos apontar um não ponto no mundo material, chamar algo
contínuo de descontínuo, mas nada disso é estritamente verdadeiro. E, com isso, entendemos onde e
como as coisas se situam em suas devidas posições. O ponto não existe, mas algo mais ou menos
correspondente a ele pode existir no mundo.Não em um sentido estrito, porém. Retoricamente, podemos
dizer que algo é quase descontínuo. Na física, existe a quase descontinuidade, mas essa é sempre uma
forma retórica de projetar o Logos para fora de si mesmo. É uma maneira de aplicar o Intelecto. É só
assim que poderíamos salvar a ideia de átomo, como mera brincadeira, como piada ou absurdo. Como
jogo sofístico. Afirmar, a sério, a existência do átomo é algo que deve colocar em descrédito a capacidade
intelectual de quem o afirme. 

Meontologia

Retornando, o mundo é a relação da continuidade da matéria com a descontinuidade da forma.  O cosmos


é construído pela relação entre apeiron e peras. Por isso, ao não compreender essa relação, a ciência
moderna é menos que nada, ela inverte a realidade lidando com uma contrarrealidade. A ciência moderna
é um ataque do nada ao mundo do Espírito, do Logos, da consciência. O fundo do erro absoluto na
ciência moderna é o conceito de átomo. Ele significa a afirmação da descontinuidade na externalidade,
onde normalmente pode existir apenas o nada (nihil). A ontologia da ciência moderna é meontologia, é o
estudo do não ser. A ciência moderna estuda apenas coisas inexistentes, coisas que não existem e que
não podem existir. A diferença entre exterioridade e externalidade. A continuidade do tempo e do espaço
pertencem ao limite da realidade, por isso, de certo modo, tempo e espaço existem como duas
continuidades, mas no limite com a medida com que o Logos pode mensurá-los.  Por si mesmos, tempo e
espaço não podem existir. Eles passam à existência graças ao Logos. A medida não apenas mensura a
continuidade, ela cria a continuidade. A continuidade é o confim exterior da verdadeira ontologia. Na física
tradicional, espaço e tempo existem no polo oposto ao ponto central, ao ponto descontínuo do Intelecto.
Mas esse é um polo oposto que está, porém, em harmonia com o Logos.

Anti-Logos

O átomo da ciência moderna é uma aberração. A fé no átomo constrói a antirrealidade e a externalidade.


Esse atomismo é o pecado radical daqueles que pretendem encontrar o Logos não dentro, mas fora do
Ser. Esse atomismo quer situar a lógica, a medida, a descontinuidade fora da realidade natural ou
sagrada. O projeto de tentar situar o Logos não mais dentro, mas fora do Ser, dá origem ao  anti-Logos. É
por isso que, segundo nosso entendimento, a ciência moderna é anticristã. Ela é parte de uma
operação contra-iniciática muito mais perigosa do que o satanismo ou as seitas ocultistas apontadas por
Guénon. O satanismo verdadeiro e mais profundo é o da ciência moderna, porque ela consiste na
preparação do advento do Anticristo, que é o anti-Logos. O atomismo é e sempre foi essa preparação da
chegada do Anticristo. Essa falsa ciência representa a inversão das leis ontológicas. O que inexistente é
tomado por existente, e o existente é tomado por inexistente. Com isso, o Logos deixa de ser. Ao
substituir o ponto verdadeiro, que inexiste materialmente, pelo antiponto material a ciência se torna
anticiência. O átomo não existe e não pode existir. Ele é um jogo, um truque. A ciência que se funda na
aceitação do átomo deve ser considerada pseudo-ciência.

Os elementos cósmicos: quatro tipos de continuidade

Os elementos cósmicos são contínuos e isso define a sua existência sagrada. Eles não existem por si
mesmos. Por isso, Platão afirma no Timeu que os elementos são khora (χώρα), que é a mesma
substância dos quatro elementos, do fogo, do ar, da água e da terra. Khora queima e isso é o fogo. Khora
sopra e isso é o ar. Khora flui e isso é a água. Khora se consolida e isso é terra. 
Todos os elementos são um só elemento. Eles todos representam os modos dessa materialidade sagrada
e contínua, que se apresenta sob quatro estados diversos. É por isso que a convergência dos elementos
e a transformação dos elementos em outros são possíveis, já que todos são, substancialmente, a mesma
materialidade.
Essa materialidade é o limite exterior da realidade, mas no aspecto aceito ontologicamente na zona do
Logos. A matéria aceita pelo Logos se torna a multiplicidade de coisas, de entes. A matéria situada fora
do Logos não existe, está no nada. Mas o que é esta materialidade sagrada? Trata-se precisamente do
éter, o quinto elemento. O quinto elemento é necessário para que possamos compreender
verdadeiramente a natureza da continuidade. Graças ao éter é que todos os elementos existem e são
contínuos entre si e em si mesmos.
É por isso, naturalmente, que não é possível encontrar o éter sublunarmente. Porque o éter, sob a Lua, já
está dividido e diferenciado para gerar essas quatro formas de si mesmo. Ele só pode ser encontrado na
água, na terra, no fogo e no, nunca como algo puro. Os limites entre esses elementos são posto pela
medida dada pela interioridade e no centro de todos os elementos encontramos o éter. Em seu estado
puro, o éter só pode ser encontrado para além da Lua. Aqui temos a visão da cosmologia sagrada. O éter
não pode ser encontrado na exterioridade, porque ele é a própria exterioridade, é a matéria e a
continuidade em seu estado puro. 

A matéria não é quantidade

Aqui, devemos acrescentar em diferença ao pensamento guenoniano, que a matéria não é quantidade em
si. A matéria só se torna quantidade perante o Intelecto. Por si mesma, a matéria não é quantidade. Ela
só se torna quantidade ao ser comparada pelo Intelecto ao Um. Sem o Intelecto, a matéria é puro apeiron,
ilimitada, e por isso não pode ser numerada. Em seu estado puro, a matéria não é nada e não é
quantificável. Os elementos são, então, quatro tipos de continuidade, mais densas, brutas e pesadas, mas
em graus variados. Eles são atraídos por dois polos: por um lado pelo Intelecto (pelo ponto descontínuo),
por outro lado pelo nada (pela continuidade pura e pesada).
A leveza é espiritual, a gravidade é material. Aqui é fundamental pontuar, novamente em diferença à
ciência moderna, que não há apenas uma força de atração, a da gravidade. Há duas forças de atração, a
intelectual e a material. O fogo e o ar, que são os elementos mais leves nessa ordem, são os elementos
mais intelectivos e menos niilistas. São elementos “pensantes”. Não por acaso, os anjos e espíritos vivem
no fogo e no ar e Platão dizia que a alma do homem tinha asas, como um ser alado.

A Luz

Por sobre o fogo está a Luz, que não é mais matéria orbital, mas matéria sagrada em si mesma. A Luz é
o limite interior da natureza. Ela é o que está mais próximo do centro, não sendo mais um ponto. A Luz é
um semiponto, ou seja, um raio, ponto-linha e não mais ponto puro e idêntico a si mesmo, senão um
ponto que sai de si mesmo. O raio é a forma da criação do mundo, é a origem da alma, do fogo e da vida.
Essa Luz atrai para si o fogo, tal como a escuridão atrai para si a terra, e assim se dividem os elementos
em partes, com uma hierarquia instituída entre eles, fogo e ar mais atraídos pela Luz e mais próximos do
Intelecto, água e terra mais atraídos pela escuridão e mais próximos da matéria pura. É por isso que a
figura que Platão indica para o fogo no Timeu é a pirâmide. A pirâmide possui um ponto alto único, que é
o ponto que aponta para o intelecto, ponto transcendental e imanente, verdadeiro. Os elementos são
quatro estados da realidade e se distinguem por sua relação com o Espírito.

O mundo subterrâneo e a necrociência

A ontologia e a religião tradicionais conhecem, também, o mundo subterrâneo. E é por isso que é
fundamental compreender a hierarquia e escala dos elementos. Fogo, Ar, Água e Terra, nessa ordem. A
terra é o confim da realidade, seu limite exterior. Para além da terra, sob a terra, na externalidade está o
mundo subterrâneo. É onde estão os fragmentos mortos dos entes, dos eventos e dos corpos. É o reino
dos sonhos do passado. Este é o inferno ontológico, onde está situado o átomo e a partir de onde opera a
ciência moderna, que cria o inferno na terra. A ciência moderna é necrociência, porque afirma como única
realidade precisamente a realidade subterrânea. Os cientistas modernos são, então, satanistas que
querem fazer o inferno emergir ao mundo e essa é sua missão destrutiva. O átomo é o fragmento do
sonho que imagina o ponto eterno e vivo e essa é a falsa base de toda a ciência moderna.  Infelizmente,
os cientistas que começam a questionar essa inversão são excluídos, cancelados e perseguidos. Mas os
que quiserem retornar à física tradicional são bem-vindos, e é assim que as portas da Luz se abrem para
o cientista, de modo que eles passam a compreender a profundidade da escolha entre Tradição e
Modernidade, que não é uma escolha meramente política, mas ontológica, metafísica, que está além de
qualquer posicionamento contingente ou convencional.

Como salvar a ciência?

Para salvar a ciência (e o mundo), basta retornarmos ao ponto em que o erro foi cometido, à situação pré-
moderna, ou seja, pré-atomística. Devemos voltar a estudar, resgatar, a ciência aristotélica, a ciência
platônica, a ciência tomista, para reconstruir a ciência. Devemos retornar a nossa tradição, que não é
apenas mística, psicológica, espiritual, mas também oferece uma física sadia, correta, uma visão justa
dos corpos, da matéria, das coisas concretas, corpóreas. Os próprios cientistas, assim, precisam ser
salvos dessa ciência infernal que destrói e inverte todas as relações racionais e naturais. Porque essa
ciência moderna é uma ciência que perdeu sua racionalidade, que esqueceu o que é verdadeiramente
racional e o que é, de fato, pensar. Eis a importância da doutrina dos elementos. Só ela pode explicar
corretamente a verdadeira natureza da exterioridade sem cair na externalidade.

Diástema
Como adendo, acrescentamos a ideia do diástema como sendo a diferenciação espacial que separa e
divide. Com isso, compreendemos melhor o que é a medida do tempo e o que é a medida do espaço.
O diástema é a perfuração, a introdução do peras no apeiron. O diástema separa e une, onde separação
e unificação são dois aspectos do mesmo ato. É graças à separação que a unificação é possível e vice-
versa. Toda a realidade pode ser reduzida a uma operação de diástema, uma distensão entre coisas que
são, foram e serão, entre princípio e manifestação. Sempre há, portanto, uma distância, que implica
separação e não separação. 
(Lição III): Os Elementos no Mito da Caverna de Platão. Símbolos da Hierarquia Ontológica e dos
Estados do Ser

Os Elementos como símbolos dos estados múltiplos do Ser

Podemos utilizar os elementos como formas materiais, segundo autores antigos, para uma metáfora
ontológica. É possível utilizar os elementos como representação dos estados do Ser (citando René
Guénon). E isso se dá porque os elementos não são apenas tipos de matéria, de corporeidade, eles são
coisas que possuem em si mesmas uma dimensão mais do que material, supramaterial, uma dimensão
espiritual, metafísica. Quando dividimos entre elemento material e elemento espiritual ou metafórico
dificultamos as coisas.
Acredito que para compreender o que são os elementos, na concepção autêntica e pré-moderna,
precisamos deixar de lado esse conhecimento que corresponde a ontologia dualista, porque essa divisão
do mundo em dois partes(material e espiritual) é moderna, cartesiana. Para os gregos não existiam
elementos meramente materiais ou meramente espirituais. Também para os filósofos latinos se passava o
mesmo. Para podermos compreender a essência dos elementos como estados do Ser não
devemos separar muito radicalmente entre materialidade e espiritualidade. Para os gregos, o mundo não
estava separado de seu princípio.
Ele não era radicalmente imanente o radicalmente transcendente, e os princípios do ser não eram apenas
puramente transcendentes. Havia uma transcendência imanente (ou imanência transcendente) que
explica melhor a própria natureza de muitas coisas. Isso é muito importante para compreender a natureza
dos elementos. Os elementos não eram apenas materiais ou espirituais, eles eram algo  unificado, eram
os sintemas (synthema) dos neoplatônicos.
Quando falamos da Terra estamos simultaneamente falando de uma forma de corporeidade ou gravidade,
mas também de uma forma ontológica, de um estado do Ser.
Para compreender melhor os princípios da física sagrada, da ontologia pré-moderna, precisamos fazer
esse comentário muito incomum ou inabitual para os modernos, no sentido unir e integrar dois polos
opostos, separados pela modernidade. Quando falamos anteriormente sobre o que é internalidade, ficou
claro que tudo para os gregos está posto na internalidade. Nessa internalidade podem estar coisas mais
exteriores ou interiores, mas tudo faz parte da grande internalidade do Logos. O material, o corpóreo não
está fora da internalidade, mas no limite da internalidade. O exterior é a continuação da internalidade, por
isso, sempre é possível uma troca entre corpo e metáfora. Segundo Aristóteles, na coisa há
um eidos (forma), além de matéria.
A forma pode existir, em certo sentido, anteriormente, ontologicamente em relação à matéria. Mas não há
separação entre elas segundo Aristóteles. Quando não há matéria não há forma, quando não há forma
não há matéria. A matéria não existe fora da internalidade. O eidos (ou forma) procede do Logos, da
centralidade absoluta, do Sujeito Radical. É importante que sejamos capazes de aplicar os elementos aos
estados múltiplos do Ser, mas também às formas da pedagogia.
A pedagogia antiga era uma forma de iniciação. Uma forma de iniciação cuja finalidade era tornar um
homem em potencial em um homem enquanto tal (ontologicamente enraizado). A pedagogia é sempre
iniciática. Analogicamente, ela procede e conduz dos elementos mais pesados aos mais elevados, como
via de saída da Caverna da ignorância. 

Os Elementos no Mito da Caverna de Platão

Platão, no Livro V da República, nos apresenta uma linha de divisão, onde há duas formas de percepção
sensorial (ὁρωμένον γένος) e duas formas de percepção intelectual (νοουμένον γένος). Elas são
simétricas e essa simetria deve ser estudada profundamente. Podemos tirar muitas conclusões
importantes estudando essa linha de divisão platônica que serve como introdução à história da Caverna,
à imagem da Caverna. Através da linha de divisão podemos traçar correspondências com os elementos
metafísicos, com os estados do Ser. 

Podemos fazer essa conexão de duas formas. Podemos dizer que:


 
1. fantasia - φάντασία /sombra é Terra, 
2. eikasia- εἰκασία/percepção é Água, 
3. dianoia - διάνοια/ratio é Ar, 
4. intelecto puro/noesis - νόησις é Fogo. 

Ou então que há duas séries de elementos, elementos cósmicos e elementos noéticos. Neste caso, 

1. fantasia é Terra e Água, 
2. eikasia é Ar e Fogo, 
e tudo se repete nessa ordem noética - 

1. dianoia é Terra e Água e 
2. noesis é Ar e Fogo.
Aqui é fundamental distinguir entre eikasia e fantasia. Eikasia é percepção das coisas mesmas. Fantasia
é percepção das imagens das coisas. Platão faz diferença entre imagem (οu eidolon, εἰδωλον)
e sombra, skiá, σκιά. Já a dianoia está separada da noesis. Trata-se de duas formas de intelectualidade.
Na dianoia há também dois polos, um mais próximo ao mundo exterior, um mais próximo ao mundo
interior. 
Ao explicar a linha de divisão, Platão diz que há: 

1. uma hipótese que é uma projeção racional para o exterior, e


2. uma anipótese que seria um movimento mental que carrega uma hipótese em uma direção mais alta,
onde está localizada a ideia. A anipótese corresponde a fazer um esforço para recuperar as origens ou
fontes do pensamento. Uma hipótese significa um movimento da razão em direção para baixo. Uma
anipótese significa por em direção para o alto, e mais próximo ao intelecto. Nós esquecemos esse termo,
mas trata-se de uma forma de verdadeira intelectualidade. No que concerne a modernidade, conhecemos
apenas a dianoia, porque perdemos a anipótese e, por isso, não conhecemos a noesis. Eis o problema da
Verdade como correspondência com a exterioridade. É possível fazer uma correspondência entre a
Caverna e o Ovo do Mundo. Mais uma vez encontramos aqui os elementos. 

O Fogo está próximo à saída da Caverna, por isso é importante perceber que o Fogo está dentro da
Caverna, mas a Luz está do lado de fora. Fora da Caverna há uma racionalidade e intelectualidade que
partem do mundo noético. A Caverna é o cosmos, duas outras partes da linha de divisão. No cosmos há
eikasia (percepção) e fantasia (imaginação). O Fogo não é Luz Intelectual, apenas Luz Cósmica. Por isso,
tudo dentro da Caverna se ilumina com o Fogo, mas não com a Luz. O Fogo da Caverna é Luz
Imanente. A Terra está na própria concepção da Caverna e os prisioneiros estão no fundo da Caverna, na
parte mais baixa, precisamente no elemento Terra. Poucos veem ou notam que a Água também é
mencionada na narrativa platônica. Há aí uma ideia interessante, a Água aparece no mito quando o
filósofo quer ver melhor o que está no caminho superior, e antes de seguir na estrada superior, menciona-
se a Água. Pode-se ver imagens na Água, não sombras. As sombras se projetam no muro da Caverna.
Na Água não vemos sombras, mas imagens. Entra em jogo uma diferença contextual dos elementos mais
grosseiros e inferiores. A Terra gnosiológica, metafísica, não é o território das coisas mesmas; as coisas
materiais, corpóreas, aparecem no elemento Ar e não no Terra. A corporeidade aparece não como algo
meramente material, o corpo não era corpóreo simplesmente, ele era algo também espiritual, perceptível
apenas no Ar.
Por isso, é importante que haja uma separação relativa à estrada superior na narrativa da Caverna,
separando Ar e Fogo acima, da Terra e Água abaixo. Platão diz sobre a estrada superior que ali há
objetos, objetos mesmos, apartados da projeção religiosa. Ao mesmo tempo, podemos dizer que
há daemones que estão no Ar, no elemento Ar, essa corporeidade verdadeira é muito diferente das
sombras e das imagens. Podemos chegar às coisas, não no fundo onde estão sombras e não coisas. Os
prisioneiros são prisioneiros gnosiológicos, eles não podem tocar e conhecer as coisas. É uma situação
como a descrita na Sociedade do Espetáculo de Guy Debord. É interessante que a Terra é também o
território em que vivem os mortos. Sombras e mortos. Os prisioneiros estão no Inferno.
Eles não participam na Vida. No estado de Vida e corporeidade estão os que estão na estrada superior,
que operam com objetos, com instrumentos e com imagens sagradas, Imagens dos Deuses. Nessa
procissão religiosa descrita por Platão, há dois objetos, os objetos-instrumentos e os objetos-imagens dos
Deuses. O mundo real está acima da condição do prisioneiro. O prisioneiro é o homem moderno, preso
na virtualidade, prisioneiro da TV, esse é o Inferno. As coisas reais estão acima dos idiotas que são
prisioneiros absolutos das sombras. As sombras não são realidade, não são as coisas. O elemento Terra
não tem corporeidade, mas uma infracorporeidade.
O Inferno está cheio de sombras. Os prisioneiros só veem sombras. Há outra diferença importante entre
sombra e imagem. O primeiro elemento do despertar iniciático é passar da Terra à Água. Isso é
importante para passar das sombras (skiá) às imagens, por conta de sua diferença. As sombras
expressam uma negatividade pura, com algumas correspondências com o corpo. Mas essa
correspondência é negativa. É ausência de Luz. Os prisioneiros que veem sombras estão mergulhados
na ignorância absoluta. A primeira fase da liberação é passar à Água, para a visão de imagens. As
imagens não são coisas, mas estão mais próximas às coisas.
Na Água pelo menos podemos ver como em um espelho, não podemos realmente tocar e perceber as
coisas, mas nossa visão está mais límpida. A diferença entre sombra terrestre e imagem aquática é
importante para a teoria da imaginação. A imaginação aquática é uma forma de abordagem poética da
realidade. Quando as pessoas não estão satisfeitas com as sombras entra a missão liberadora da Água,
propiciando a passagem das sombras às imagens. Este é o caminho para se chegar às coisas mesmas.
Para o prisioneiro gnosiológico, elas aparecem como algo transcendente. Apenas libertando o homem
das sombras e das imagens que ele pode alcançar essa transcendência.
Quando o filósofo sai da Caverna onde ele está? Que mundo é aquele? Trata-se de um mundo
intelectual, mas ele está no Mundo. 
Ele sai do Inferno para o Mundo. Quando o filósofo sai da Caverna ele está na realidade intelectual, onde
também há Terra, Água, Ar e Fogo/Luz/Sol. Mas trata-se aqui da Realidade Absoluta, arquétipos que são
a origem do cosmos. Eles possuem, também, sua ontologia, seu Ser. Para Platão, naturalmente, as Ideias
são Ser, não são projetos do Ser, mas o próprio Ser, o verdadeiro Ser. Por isso, quando o filósofo sai do
cosmos, se manifesta o cosmos real, não se manifesta o Nada, nem uma fantasia, ele entra na Realidade,
a Realidade que é, a Realidade ontológica. O filósofo penetra no Ser, que não é algo privado de
multiplicidade. Para Platão, o Ser é sempre Um - Múltiplo. Por isso, essa realidade que se abre por cima
da Caverna não é a pobreza da multiplicidade, é uma realidade total e supracósmica, e tudo (πᾶν) por
isso para Platão era importante para a República, a sociedade ideal, fazer do homem um filósofo através
de uma educação porque nenhum Ser normal quereria abandonar o mundo real se ele chega lá
espontaneamente por seus próprios esforços.  Assim, a pedagogia serve para Platão como único
instrumento que força o filósofo a retornar ao Inferno, à Caverna. Para o filósofo, a humanidade são
sombras no Inferno. Por que retornar? A modernidade é precisamente a forma mais ampla e direta disso
onde todas as imagens são ilustradas de uma forma direta na virtualidade, na sociedade informacional.
Essa descida/decadência chega ao limite, ao ponto mais baixo da Caverna. É a partir daqui que deve
começar o retorno, a ascensão, a saída, para todos. Esse é o esforço dos filósofos para salvar os idiotas
que querem cair sempre cada vez mais baixo. Com algum sucesso, esse sistema pedagógico, filosófico,
religioso, estético, tudo isso se tornou a base das conquistas europeias por séculos.
Nós éramos capazes de enobrecer a humanidade, gerando filósofos, visionários, santos. Por muitos anos,
contra toda essa inércia de cair ainda mais baixo, os filósofos foram capazes de salvar homens, mas os
filósofos perderam sua posição com a chegada da Modernidade. Ainda assim, sempre existem filósofos.
Por isso, não devemos ser pessimistas. Temos grandes histórias de sucesso e pequenas histórias de
derrota, de triunfo das sombras sobre as Ideias, sobre as verdades ontológicas. É importante enfatizar
essa presença explícita e implícita no contexto das figuras de Platão na Caverna. A Doutrina Tradicional
dos Elementos possui uma operatividade que pode ser utilizada para perceber, compreender, entender,
de modo a recriar essa dimensão que nossa cultura e nossa ciência e nossa civilização perderam. Na
ciência tradicional há sempre uma dimensão iniciática.
Tudo possuía esse elemento iniciático cuja função era transformar um homem virtual em um homem real.
Quando o homem nasce ele é virtual, e é apenas com a pedagogia, com a ciência tradicional, que o
homem vira homem. A pedagogia deve voltar a ser exatamente sacral e iniciática em todas as culturas, tal
como era no passado.

Lição IV: A Metafísica da Luz

Para começar, gostaria de dizer que no platonismo há uma particularidade na semântica dos termos mais
centrais. Nos termos que formam uma estrutura essencial da filosofia platônica. O momento central é
precisamente a separação ou divisão entre mundo intelectual ou contemplativo e o mundo sensível ou
perceptível, que podemos tocar ou perceber fenomenologicamente.
É interessante que há dois polos: 
• o intelectual,
• o sensível. 
Em certo sentido, porém, um se manifesta e o  outro permanece oculto. Mas quando começarmos a
observar um pouco mais de perto esses termos usados para descrever, no platonismo, o mundo
fenomenológico e o mundo contemplativo/intelectual, de maneira paradoxal, não encontramos termos
opostos. Por exemplo, o mundo fenomenológico/sensível, o mundo dado a nossos sentidos, se define
com o termo phainesthai, phaino, phos, deixar perceber na luz. 
O mundo sensível é o mundo visível. Podemos vê-lo. Essa visibilidade é característica essencial do
mundo estético (aisthesis), do mundo fenomenologicamente dado. Podemos dizer que este é o mundo da
luz, onde as coisas existem de maneira clara, manifesta. Mas isso só é possível graças a certa
luminosidade. Podemos ver e isso significa que podemos sentir. A visão é síntese de todos os outros
sentidos. Quando vemos algo, é certo que esse algo é, que ele existe, que está aí. Ver é quase o mesmo
que existir de maneira imediata e direta, intuitiva. É por isso que a visão é a característica do mundo
imanente, sensível, estético, que necessita da luz. A luz é o fundamento da sensibilidade. A luz obtém
aqui características do onticamente imediato. A luz é um denominador para isso. 
Nesse sentido, seria lógico que o mundo intelectual seria posto na escuridão, na névoa, na nuvem
(lat. Cālīginis). Mas quando Platão introduz a característica mais importante e central da “entidade” do
mundo intelectual e contemplativo ele fala das Ideias, das coisas vistas. Ideia (na etimologia grega) é
o ente que pode ser visto. Por isso, Platão introduz com ideia/eidos, a ideia da visão e da luz. Nesse
sentido, é interessante que a oposição platônica entre mundo transcendente e imanente é uma oposição
entre luz e luz. Isso é importante porque as ideias são coisas que podemos ver, são coisas vistas.
Mas a mesma coisa é também característica das manifestações físicas, naturais, do mundo
imanente. Aqui se contrapõem duas visibilidades, duas luzes, duas luminosidades. Uma luz contemplativa
e uma luz sensível, mas as duas são luzes. Uma visibilidade contra outra visibilidade. Uma visibilidade faz
da outra visibilidade escuridão.
Por isso, o mundo sensível obscurece o mundo intelectual, o oculta. E o mesmo faz o mundo
intelectual/contemplativo, o mundo dos arquétipos, obscurecendo o mundo sensível. Quando pensamos
não percebemos/sentimos as coisas imanentes. Quando percebemos as coisas imanentes não podemos
pensar de forma pura. Por isso são duas formas de luz e de visão, visão imanente e visão
transcendente que se contradizem, se contrapõem, mas são duas possibilidades de visibilidade e
manifestação: uma manifestação visível intelectualmente ou uma sensivelmente, fisicamente,
esteticamente. É interessante pensar na união metafísica. Podemos falar de uma única luz, da unidade
das duas luzes, porque são luzes, são visibilidade, duas expressões da visibilidade, que na mesma
situação se opõem. Expressam uma união dos opostos, uma unidade dos polos que se contradizem entre
si. Nós podemos, racionalmente, desenvolver essas considerações, essa cadeia de ideias, para dizer que
existem duas luzes. Essa seria a resposta lógica e racional. Uma luz física e uma luz metafísica.
Podemos aceitar isso e essa seria uma maneira habitual de pensar e conceber. Por exemplo, no
hesicasmo existe a ideia da Luz Incriada, vista pelos Apóstolos no Monte Tabor, na transfiguração de
Cristo, e uma Luz Criada, que é outra luz, uma é Eterna, a outra é temporal, uma é física e a outra é
metafísica. Mas aqui pode ser mais interessante tentar pensar uma natureza única,  uma natureza que
une as duas luzes, porque possuem o mesmo nome. O nome na Tradição é bastante importante. Se duas
coisas possuem o mesmo nome são a mesma coisa. Por isso é importante ver, intelectualmente e com os
sentidos, uma visão integral, física-metafísica, que é unitária mas simultaneamente dual. Porque quando
há uma percepção da luz metafísica, a luz física se escurece.
E o mesmo se dá no sentido oposto. Quando estamos na manifestação visual e perceptível com os
sentidos, a luz metafísica se apaga. Qual é a natureza desse véu que oculta a luz metafísica? Esse véu
que, estando no centro ente dois luzes, separa entre luz metafísica e luz física. Há uma  intervenção de
uma realidade particular que entrando na luz integral, na luz unificadora, cria uma clivagem, uma
separação entre luzes, a luz que está aqui e a que está além. É a natureza do véu, muro ou firmamento
que separa duas Águas ou Luzes, a luz superior e a luz inferior. Quando apresentamos essa visão
afirmando as duas naturezas da Luz Incriada e da Luz Criada, metafísica/intelectual x física/sensível, vem
à tona o problema do limite, do limiar, do véu. O problema não é tão grande. Esse limiar é precisamente o
ato da ausência da medida comum entre Deus e o Mundo.
Essa é uma ação criacionista, gera distância ontológica entre Deus e a natureza, que é o mais importante
da religião, da teologia. Esse véu, essa distância é a essência da religião. Aqui estamos falando de algo
que pode parecer “banal” ou “óbvio” para nós.
Mas ainda é interessante para compreender a natureza da luz considerar esse véu, esse limiar que
separa duas luzes na física-metafísica da própria luz. Porque a luz se separa em duas partes pela luz.
Então aqui aparece uma terceira luz, a luz intermediária, que está no meio entre Luz metafísica e Luz
física. O Véu é um véu luminoso. O véu também é uma forma de visão, que une e separa a Luz. Por isso
podemos encontrar a ideia de Três Sóis nos textos do imperador romano Juliano, que falou em 3 Luzes, 3
Sóis, Luz Transcendente, Luz Física e Luz Intermediária, a luz que está no meio, o Terceiro Sol, que se
põe entre os Dois Sóis, o Sol Metafísico e o Sol Físico.Muito importante essa integralidade da Luz que
está cindida pela luz, transformando a dualidade da Luz em uma trindade da Luz, porque entre Luz
Transcendente e Luz Imanente há uma Luz Transcendente-Imanente, que separa e une, há
uma osmose entre as Luzes, uma semipenetrabilidade. A Luz Intermediária deixa a Luz Metafísica entrar
na Luz Física, permite a Luz Física entrar na Luz Metafísica, mas conservando ambas distintas, sem
confusão, sem permitir o caos, a dissolução das diferenças entre elas. Por isso, essa Luz não só deixa
passar, mas também proíbe de passar a luz metafísica e física. Ela deixa passar e interdita. Por isso é um
Véu.
Guénon, em sua obra O Rei do Mundo, disse que a semântica da palavra latina Céu, caelum, celare,
significa esconder . Daqui caligo e occultus. Mas o mesmo Guénon no outro lugar diz que a palavra
latina re-velare significa em mesmo tempo mostrar e esconder. Aquilo que deixa ver também oculta da
mesma forma. Esse Véu é o Véu dos Céus, é um Véu celestial, como o Firmamento que está sobre a
Terra, o Firmamento que separa as Águas.
Com essa Terceira Luz podemos chegar a uma Física ou Ciência natural correta, que não nega a
dimensão metafísica, mas que ao mesmo tempo não faz confusão entre transcendência e imanência, e
conserva essa diferença porque as leis da física imanentes não são as leis da metafísica transcendente.
A diferença é necessária, mas não apenas a diferença, mas também a comunidade e unidade dos dois
domínios. Com isso podemos precisar a origem da luz física. A luz física não é a luz radicalmente
autossuficiente que se cria por si mesma. A luz física é um modo de existência da Luz intermediária. A
Luz que está no meio é precisamente a origem da luz física. Daí todos os paradoxos da luz física, que é
precisamente a única coisa que si move naturalmente com velocidade infinita.
Essa é a diferença da velocidade muito maior que todos os outros elementos. Todos os outros elementos
estão sob a luz. A luz é o elemento mais elevado e, por isso, podemos identificá-la com o éter. Em Hegel
e Aristóteles éter e luz são coisas muito próximas ou idênticas. O éter é luz. Por isso é importante que a
luz ou éter está para além de outros elementos, mas é a raiz comum de todos os elementos mais
grosseiros. Por isso é necessário recordar que a luz física possui origem não física. A luz física não
é meramente física.
É física em certo sentido, no aspecto da separação com o véu luminoso, mas ao mesmo tempo a luz
física está em relação com a luz metafísica, com a luz escura, com a luz negra. A luz negra é
precisamente a luz das ideias, é a luz que está na origem da luz física. São duas luzes diferentes,
separadas pelo véu luminoso, mas separadas em osmose, não são duas zonas ontológicas totalmente,
irreversivelmente separadas e autossuficientes. São partes, modalidades da mesma realidade, de uma
realidade universal que pode ser e existir apenas graças a essa Luz intermediária, porque com essa
separação podemos distinguir entre Ser e Existir, entre transcendência e imanência, mas esses mundos
não são autossuficientes. Ambos estão ligados ao véu.  Então, devemos começar a nos distanciar dessa
ideia incorreta da autossuficiência das duas zonas. Elas não são autossuficientes, estão ligadas de forma
paradoxal através da Terceira Luz. Desenvolvendo essa ideia devemos abandonar ou esquecer essa
ideia da autossuficiência ontológica do mundo sensível/material e do mundo metafísico/imaterial.
Os dois não são autônomos, estão vinculados entre si. Não há transcendência sem imanência. É evidente
que não há imanência sem transcendência, mas o oposto também é verdadeiro. Não há Deus sem a
Criação. Porque sem a Criação não há testemunho de que Deus é. 
A escuridão é necessária para luz. Sem escuridão não há luz. A luz obtém sentido comparada e
contrastada com a escuridão. Só com essa comparação a luz é luz. É importante introduzir esse terceiro
elemento com a visão da Luz, porque com este elemento podemos unificar e desenvolver  a dialética entre
a física e a metafísica através da luz. A luz é o caminho que une transcendência e imanência, por não ser
um fenômeno que não é meramente física. Uma luz exclusivamente física inexiste. Toda a luz física
possui em si mesma algo de metafísico. Por isso ela não nasce aqui, desce do alto. A luz não nasce do
fogo. O fogo nasce da luz. Por isso Fulcanelli dizia que o Sol é uma pedra fria e negra. O Sol não é fogo,
é luz, o fogo nasce da luz. Essa compreensão da luz que une física e metafísica, com ela percebemos
que a luz física miraculosamente não é física. Não podemos compreender a luz a partir do fogo, mas ao
contrário, compreender o fogo a partir da luz. O ar a partir do fogo, a água a partir do ar, e a terra a partir
da água.
O fenômeno da luz é um fenômeno seminatural.
Em parte, ele é natural, em parte ele é supranatural. A luz que vemos possui em si mesma uma parte
supranatural, milagrosa. Para concluir, quero dizer que contra todos os nossos esforços de superar o
dualismo ontológico da imanência e transcendência, matéria e espírito, sempre reconhecemos a
natureza posterior desse véu luminoso, dessa terceira luz.
Para nós, essa luz, quando reconhecemos sua realidade, é algo que segue, um resultado teórico,
racional, da necessidade do limiar que separa duas zonas. Mas outra visão é possível. É possível afirmar
que essa luz intermediária é a luz única, a única luz, que oferece duas consequências, a luz que vai de si
mesma à periferia, ou de si mesma ao seu centro.
A luz em si mesma pode ser compreendida nos dois modos de direcionalidade: Direção para si mesma,
para a zona metafísica, o mundo das Ideias, o Uno, que está no centro, o Um apofático, o Um negro, o
Um pré-ontológico. Direção para a exterioridade, a luz física, que é a manifestação da mesma luz
intermediária, na direção da periferia. A Luz que está no centro pode ir para si mesma ou para fora. E por
isso dois mundos são criados a partir da mesma luz. A luz central não é resultado racional de uma
combinação de duas zonas ontológicas separadas.
Ela é a realidade fundamental e primordial que pode ser a verdadeira origem de duas zonas ontológicas
que seguem dessa luz, que são a posteriori dessa luz, comparando com essa luz intermediária. Nesse
caso, a Luz Intermediária não é a terceira, é a primeira, ela é fundamental porque une e separa a si
mesma consigo mesma. Eis a importância do Terceiro Sol de Juliano que está entre o Sol Físico e o Sol
Metafísico. Isso completa nossa compreensão da ciência e também da religião. Porque o limiar que
separa Deus e Criação é mais importante que a dualidade entre Deus e Criação. Essa linha, esse istmo,
que une e separa. Essa linha que separa a essência e a presença de Deus é precisamente toda a
metafísica em si mesma. Essa linha, esse limiar, esse véu, essa Terceira luz que apareceu em nossa
exposição da Luz primeira, é precisamente a ideia que permite compreender corretamente a ciência, que
se ocupa da imanência, e a teologia, que se ocupa da transcendência. Por isso, as ideias de Hildegard
von Bingen, as ideias de Dioniso Areopagita, até mesmo a física quântica, podem ser incluídas aqui em
uma visão geral a ser desenvolvida. 

Capitulo 2: Introdução à Noomaquia

Noologia como Ciência da Multiplicidade do Pensamento Humano

O termo Noologia designa a uma nova disciplina filosófica. Noologia é um neologismo derivado de dois
termos gregos: νοῦς (“nous”) e λόγος (“logos”). Logos indica palavra, discurso ou investigação. Assim, a
Noologia é a disciplina que estuda o Nous. Mas o que é o Nous? Você pode traduzi-lo como mente ou
intelecto, ou mesmo consciência. Em alemão, estaríamos falando do "Bewusstsein". Trata-se de algo que
está profundamente dentro da mente humana. A questão então surge: o que se entende por humano?
O homem é um ser que difere de todos os outros do mundo em uma coisa: pensamento. Ele é o ser
pensante. Toda outra qualidade é compartilhada com outros seres vivos, mas o pensamento constitui
uma exclusividade do ser humano, que logo pode então ser definido como uma criatura pensante ou um
ser pensante.
Como resultado, o pensamento é, por definição, humano. Pensar é ser humano. Todos os seres vivos têm
um corpo e várias instâncias relacionadas a ele (todos experimentamos dor física, prazer físico e assim
por diante), mas nenhuma criatura, exceto nós, no mundo dos vivos, tem um intelecto e é capaz de
pensar. O pensamento ou Nous, então, constitui a essência do homem. Todos os outros aspectos da vida
são comuns ao homem e a outras criaturas, mas o pensamento, o intelecto é um aspecto único do
homem e é o que nos torna humanos. Ser humano significa ser uma criatura pensante. Assim, o Nous é a
raiz mais profunda do ser humano, da humanidade. Somos humanos porque o Nous está em nós. Sem o
Nous, o humano não existe. 
Portanto, pensar o Nous, ou seja, explorar a Noologia, significa explorar não um tipo de objeto alienado,
mas a nós mesmos. Refletir sobre o Nous significa refletir sobre nós mesmos, em nossa natureza mais
profunda. Não se trata de algo abstrato, mas de uma espécie de introspecção destinada a conhecer as
profundezas mais remotas do nosso ser, a humanidade dos seres humanos. Isto é o Nous. Podemos
apresentar o ser humano sob diferentes pontos de vista.
A Noologia apresenta o homem do ponto de vista de sua essência. É, em última análise, o estudo do
pensamento enquanto tal. A Noologia também constitui a base filosófica do multipolarismo, uma vez que
a idéia subjacente à Noologia é que não existe um único tipo de intelecto comum a toda a humanidade,
um pensamento universal, mas vários.Quando tentamos estudar cuidadosamente o Nous, o intelecto, o
pensamento, descobrimos como o processo de pensamento depende da cultura.
Se alguém se move no contexto de uma cultura específica, pensa de uma maneira. Se pertence a outra
cultura, a outro grupo étnico, a outra religião, a outra geração, pensa-se de uma maneira completamente
diferente, ao mesmo tempo que se continua a ser um ser humano (sérvio, russo, francês, inglês, chinês,
africano e assim por diante). Logo pertencer a diferentes culturas, diferentes espaços e épocas diferentes,
nos faz pensar de maneira diferente. Portanto, se queremos estudar o Nous, devemos levar em
consideração essas diferenças. Sem levar isso em consideração, nunca alcançaremos a essência do
pensamento. Se, por exemplo, nós, russos, presumirmos que nossa maneira de pensar é comum a todos
e que basta estudar nossos pensamentos para alcançar a essência de Nous, estaríamos errados: assim
saberíamos apenas uma parte do todo, já que os croatas, albaneses, ingleses, franceses, chineses,
africanos, muçulmanos e outros, pensam de maneira diferente, não apenas em aspectos secundários
mas em relação à própria natureza do homem, sobre a vida, morte, família, sexo, história, tempo, espaço,
Deus, matéria, mundo, tudo.
A Noologia, portanto, é uma espécie de fenomenologia do intelecto. Em outras palavras, não
prescrevemos como ou o que os Nous devem ser; pelo contrário, tentamos explorar e ver como ele é,
como o pensamento opera e se apresenta em diferentes contextos. Esse reconhecimento de diferenças
sem qualquer prescrição regulatória sobre como os humanos devem pensar normalmente constitui a
peculiaridade da Noologia. Nossa abordagem não implica uma homogeneização, uma imposição de algo
como universal, mas consiste em entender as diferenças o mais completamente possível.
Precisamente por esse motivo, a Noologia é dedicada ao estudo de culturas concretas: a maioria dos
meus livros que constituem o projeto NOOMAQUIA é, portanto, dedicada às diferentes formas culturais,
da cultura europeia, passando pelo logos francês, o logos inglês, o logos europeu oriental, até o logos
russo, o logos americano, o logos chinês, o logos iraniano, e assim por diante.
Somente estudando as diferentes culturas, obtendo a sua quintessência, ou seja, deduzindo como elas
pensam, podemos chegar a uma visão do pensamento humano completa, e não parcial. Não estamos
dizendo, por exemplo, que o ser humano deve se conformar ao modelo do homem moderno, europeu,
branco, materialista e liberal. Esta última é a expressão tangível da civilização anglo-saxônica européia.
Mas essa é uma realidade limitada no espaço e no tempo; ela não é universal, representa apenas a
maneira anglo-saxã de desenvolver a própria história europeia, inglesa, americana.
Se nos mudarmos para a Europa Oriental, para o mundo eslavo, russo, chinês ou islâmico, descobrimos
que os homens não seguem o mesmo caminho. Cada um segue o seu.A essência da Noologia é o
reconhecimento da pluralidade de culturas. Pluralidade significa que não há apenas um caminho de
desenvolvimento universal e normativo do pensamento. Há mentes e não uma Mente. Ou, existem
diferentes manifestações de Nous, tão diferentes e tão particulares que é necessário estudar
cuidadosamente cada caso específico – sérvio, russo, alemão, francês, etc. – não se deve criar uma
hierarquia entre casos supostamente mais ou menos desenvolvidos, mas chegar a um entendimento
profundo de como cada um pensa em diferentes contextos, entendimento destinado a alcançar um
conhecimento total dos Nous. Isso é a Noologia.

Noologia como Análise Multinível

A Noologia, o estudo de Nous, é baseado em uma análise multinível. Na Noologia, usamos conceitos
relacionados a:

 Filosofia, que representa o espelho do pensamento, por isso um conhecimento filosófico básico se faz
necessário. Na filosofia, tudo está em contato, tudo está presente simultaneamente e lendo a história da
filosofia, lemos a história da humanidade, pois pensar significa ser humano e filósofos dedicam toda a sua
vida ao pensamento, que é a essência do homem, como seu objetivo principal. O filósofo, então, é o mais
humano dos seres humanos, porque ele se concentra na humanidade do homem. Todo homem é um
filósofo, mas o filósofo é o homem realizado. É por isso que a filosofia é tão central para a Noologia;
 História das Religiões, que também muito importante para a Noologia, uma vez que a religião se funda
nas premissas do pensamento.
 Sem conhecer as diferentes religiões, não poderíamos entender a Noologia porque a religião também é o
espelho do pensamento: nela projetamos nosso pensar sobre os deuses, sobre as relações entre a razão
do ser e a fonte do ser, sobre a criação, sobre deus, sobre o tempo, sobre muitas outras coisas que
refletem a própria estrutura do Nous;
 Geopolítica, que representa a concretização das civilizações, uma espécie de generalização delas. Se
ignorarmos a posição geopolítica de um filósofo, não poderíamos realmente entender o que ele quer
dizer, porque somos definidos não apenas pelas tradições filosóficas e religiosas, mas também pela
nossa posição no mundo.
 Nosso próprio modo de pensar (nossa noologia cultural) depende de nossa posição geopolítica: aqueles
que pertencem a uma civilização talássica pensam diferentemente daqueles que pertencem a uma
civilização telúrica; a posição no mapa geopolítico do mundo é, portanto, fundamental para realmente
interpretar o pensamento e isso torna indispensável o estudo dessa disciplina;
 História do Mundo: o conhecimento da história de todos os povos e culturas do planeta é um tema central
da noologia;
 Sociologia, a disciplina que mostra como a maneira pela qual nosso ser se apresenta é definida pela
sociedade. A sociedade é uma forma de autorreflexão. À medida que tomamos consciência de quanto a
sociedade e seus princípios estão presentes em nós, descobriremos que nossa individualidade, nossa
originalidade é próxima de zero, é quase inexistente. Praticamente tudo em nós vem da sociedade, todas
as nossas idéias: quando dizemos “estou pensando nisso”, na realidade não somos nós que pensamos,
mas a sociedade através de nós;
 Antropologia, em particular a escola de antropologia moderna fundada por Franz Boas e Claude Lévi-
Strauss.
 A antropologia moderna mostra como as tradições étnicas, as condições de vida, a natureza e a cultura,
bem como a relação e o equilíbrio entre elas, definem os valores da sociedade e as diferenças entre as
diferentes sociedades. Essa é uma conquista importante da antropologia moderna. Todas as velhas
escolas de antropologia do século XIX estão baseadas na teoria da evolução, e isso implica uma
classificação entre sociedades desenvolvidas e não desenvolvidas.
 Pelo contrário, a escola de antropologia moderna mostra que essa concepção evolutiva da sociedade não
tem fundamento: certamente existem diferenças, mas, estudando sociedades arcaicas, podemos
descobrir que algumas são mais complexas que a nossa; portanto, elas não podem, de forma alguma, ser
definidas como subdesenvolvidas, pois não representam um estágio infantil da nossa cultura, mas talvez
um estágio maduro, infantil ou envelhecido de uma cultura completamente distinta que precisamos
estudar cuidadosamente sem projetar nossas próprias ideias nelas. Esta é uma conquista muito
importante da antropologia moderna e constitui um dos princípios fundamentais da Noologia e do projeto
NOOMAQUIA;
 Etnossociologia, que reúne etnologia e sociologia, e que já foi tema de curso nosso;
 Teoria da Imaginação. Eu recomendo fortemente a leitura dos livros de Carl Gustav Jung, de Gaston
Bachelard, mas acima de tudo os livros de Gilbert Durand sobre a sociologia da imaginação, que, ao
longo deste curso, tentarei explicar brevemente em que consiste (obtive um doutorado sobre isso). Isso é
extremamente importante; seus métodos e ensinamentos serão usados em nosso curso como uma
espécie de base metodológica;
 Fenomenologia, cuja lei fundamental, desenvolvida por Edmund Husserl, Martin Heidegger e outros
filósofos pertencentes à mesma linha de pensamento, afirma que os objetos nos quais pensamos, bem
como todas as qualidades dos objetos, existem em nossa mente.
 O que o objeto é para além da nossa mente é algo que só podemos supor, mas do qual não há
evidências; além disso, a existência ou não de um objeto ou de algumas de suas qualidades fora de
nossa percepção não altera nada em nosso relacionamento com o objeto. As coisas são predefinidas em
nossa mente e em nosso processo de pensamento: nisso podemos resumir a principal lei da
fenomenologia;
 Estruturalismo, de pensadores como Ferdinand de Saussure, Lévi-Strauss e Paul Ricoeur, é importante
por ser um método filosófico que explica o todo existente em termos de estruturas. A estrutura é algo
invisível, mas que define o significado. Assim, a linguagem é muito mais importante do que o discurso ou
as coisas que são ditas na linguagem. Em outras palavras, a linguagem predefine o que vamos dizer. O
que falamos são repetições de citações ou palavras do dicionário. É assim com o discurso do qual temos
orgulho por sua originalidade.
 Falamos coisas como "vamos ao cinema", por exemplo, como se fosse o "fiat lux" de Deus, como se
fosse um discurso a partir do nada, mas trata-se de mera repetição do que homens e mulheres dizem uns
aos outros. "Vamos ao cinema" é uma citação, definida pela estrutura da linguagem. Não há qualqeur
originalidade em nada do que falamos.
 E com todos os nossos juízos, palavras e discursos se passa o mesmo, repetimos as coisas que foram
ditas milhões de vezes antes de nós. Não somos os autores do que pronunciamos, mas é a linguagem
que fala por si mesma, através da repetição da estrutura lingüística. Este é um conceito fundamental de
estruturalismo, um aspecto metodológico muito importante para o projeto NOOMAQUIA.
Como referências importantes para a Noologia, deve-se ler Martin Heidegger, nos termos da Quarta
Teoria Política. Deve-se também estudar os conceitos dos filósofos tradicionalistas pertencentes à escola
de René Guénon e Julius Evola. Estudar Bachofen sobre gênero e matriarcado também é muito
importante, porque o estudo do matriarcado é parte essencial do projeto NOOMAQUIA.
A obra “Mutterrecht” ("Direito Materno"), uma obra fundamental de Bachofen, descreve o matriarcado pré-
indo-europeu do Mediterrâneo, um assunto muito importante, pois o estudo do matriarcado constitui uma
parte essencial da Noologia, além de essa ser uma obra clássica. Devemos mencionar também do
estruturalismo de Georges Dumézil e Claude Lévi-Strauss, como eu já disse no que concerne a
antropologia estrutural moderna e a etnologia.Esses são, de modo geral, os campos, métodos ou escolas
que usamos na Noologia.

O Nous é Triplo

Existem outros estudos disciplinares desse tipo, não há nada de novo no que eu disse até agora. O que é
que torna o projeto NOOMAQUIA tão original? Todas as disciplinas e campos de estudo mencionados
têm um papel auxiliar, são ferramentas que nos ajudam a estudar e a entender. O que torna
NOOMAQUIA original é o conceito parcialmente novo por trás deste projeto: a existência dos três Logoi. É
minha convicção que o Nous, o intelecto, o pensamento se manifesta em três formas distintas. Em três,
nem mais, nem menos. Trata-se aqui de uma abordagem metodológica, uma leitura. Se aceitamos essa
leitura, tudo se enquadra no contexto dessa abordagem metodológica.
Assim há uma mente e três formas principais, com inúmeras subdivisões incorporadas nessas três formas
gerais do processo de pensamento que eu chamo de Logoi. Portanto há um Nous e três Logoi. Agora,
não estamos interessados em entender como cada um dos três Logoi se relaciona com o Nous; essa é
uma questão excessivamente metafísica e não é importante para nossos propósitos agora. O ponto
fundamental é que o Nous não pode se manifestar sem passar por esses três Logoi.
Não há pensamento fora dos três Logoi. E os três podem ser encontrados em todas as culturas. Não há
hierarquia entre esses três Logoi, e descobriremos que os três se fazem necessários em todo tipo de
cultura. Este é o resultado que cheguei em meu trabalho de pesquisa. No começo, era obviamente
apenas uma hipótese, da qual, portanto, eu não podia ter certeza, mas o estudo de todas as culturas do
mundo, incluindo as mais arcaicas. na Oceania, África, Índia, América do Sul, América do Norte e assim
por diante – confirmaram esta hipótese.
Assim, em todas as culturas – sejam arcaicas, modernas ou pós-modernas, européias e não européias –
em todas as épocas, em todas as formas de sociedade, podemos traçar esses três Logoi.
Em diferentes proporções, em diferentes combinações – eles podem ser combinadas de milhões de
maneiras diferentes – mas estão presentes em todos os lugares. Nenhum cultura, povo, religião ou região
do globo pode reivindicar possuir apenas um ou dois desses três Logoi. Todas as culturas têm todos os
três Logoi. Uma hierarquia entre culturas ou povos não existe, e não pode existir, uma vez que os três
Logos se combinam entre si de maneiras completamente específicas e peculiares, e a maneira como elas
o fazem é adequada a cada cultura. Nossa história, nossa identidade, a identidade profunda de um povo
pertencente a uma cultura ou religião corresponde precisamente a essa combinação, a um equilíbrio
particular desses três Logoi.
E como existe um número praticamente infinito de combinações, de mudanças nas proporções entre as
formas dos três Logoi, o número de possíveis sociedades humanas é praticamente ilimitado. Daqui resulta
que é impossível criar qualquer tipo de hierarquia. As sociedades arcaicas verão o domínio de um dos
três Logoi, as modernas de outro, e vice-versa, mas, em qualquer caso, não há regra geral ou universal.
Este é um ponto de considerável importância, pois mostra que, em nossa ciência, em nossa política, em
nossa cultura, estamos lidando com um tipo de abordagem racista e colonialista. Nós tendemos a projetar
nosso Logos, considerá-lo como algo universal. Mas o estudo aprofundado das culturas nos mostra a
ilegitimidade desse modo de proceder. O racismo nada mais é do que a idéia básica de que seu próprio
Logos, sua cultura específica, é universal e deve ser usado como modelo para todos os outros. Que, se
eles não forem semelhantes a nós, eles são considerados menos desenvolvidos. Este é precisamente o
caso da civilização européia moderna. E é também o nosso caso, na medida em que pertencemos a ele.
Se aceitamos essa abordagem, estamos ingressando em uma atitude racista em relação à história, ao
passado e até a nós mesmos, declarando que um caso específico deve constituir a norma universal, o
único modo de desenvolvimento e que todos devem estar em conformidade com ele e seguir seu caminho
de desenvolvimento.
“Existe apenas uma cultura, apenas um Logos, o nosso, que é universal e medida de todas as coisas”.
Esse tipo de hipertrofia de nós mesmos constitui uma abordagem completamente errada e ilegítima.
Estaríamos errados ao pensar que isso diz respeito apenas ao racismo biológico explícito; até o
liberalismo moderno, o comunismo e o globalismo são absolutamente racistas porque se baseiam no
universalismo de experiências históricas que dizem respeito apenas a uma parte da humanidade,
projetadas como objetivo para a humanidade inteira. Aos olhos dos globalistas, por exemplo, o homem
africano é apenas um homem prestes a se tornar “branco”, moderno, capitalista, liberal, europeu,
eurocêntrico.
Ele não é um representante de sua própria cultura africana em um caminho específico de
desenvolvimento civilizacional, mas um europeu ainda não plenamente desenvolvido, e que, portanto,
deve ser “tolerado”: a idéia moderna de “tolerância” deriva precisamente da consideração que temos por,
de considerá-lo imperfeito, como alguém que está a meio do caminho de ser como nós, mas que ainda
não é. Em última análise, um “deficiente”. Ao fazê-lo, não reconhecemos o Outro como ser humano
completo e perfeito, embora diferente de nós, mas como um ser inferior que deve seguir nosso caminho
de desenvolvimento, e que está forçado a fazê-lo porque não há outro caminho possível, e isso isso nos
faz ter piedade deles. Isso é profundamente racista. Há um filme muito bonito de Werner Herzog, "Onde
as formigas verdes sonham", que mostra não apenas que os povos nativos da Austrália não podem seguir
o modelo ocidental, mas que eles não o desejam. Eles seguem seu próprio caminho, certamente diferente
do ocidental, e essa é uma decisão deles, ditada por sua própria cultura.
Nesse caso específico, estamos lidando com um conflito entre a visão racista anglo-saxã da história e a
visão aborígine australiana de sua identidade. Atrevo-me a dizer que esse é o aspecto ético da Noologia.
A Noologia representa uma luta pela dignidade humana de todas as sociedades, sem hierarquias ou
projeções universalistas. Deste ponto de vista, a Noologia constitui a base de uma metafísica anticolonial.
Muitas doutrinas que historicamente afirmam ser anticolonialistas, incluindo o marxismo e o liberalismo,
na verdade estavam baseadas na visão universalista da história.
Por exemplo, para o marxismo, a sociedade africana deve se desenvolver para se tornar socialista, mas
isso implica a destruição de seu modo de ser, já que, agora, eles seriam "subdesenvolvidos". O mesmo se
aplica ao liberalismo.
O liberalismo e o comunismo são tão racistas quanto o hitlerismo. Este é um ponto fundamental da Quarta
Teoria Política, que indica a necessidade de seguir um quarto caminho, superando as três principais
teorias políticas da modernidade. A Noologia constitui a base metafísica de tudo isso. Ao tratar outros
povos como se fossem “inferiores”, nada fazemos além de projetar nossa abordagem racista
estabelecendo uma igualdade entre nós e a norma universal, igualdade que é ilegítima e, acima de tudo,
falsa, ocultando a pura luta colonialista pelo poder, e não o entendimento, o conhecimento, a sabedoria
ou a verdade. É por isso que a Noologia é tão importante. Constitui a base filosófica e metafísica do
mundo multipolar. E os três Logoi e suas múltiplas combinações mostram as diferenças que existem em
diferentes culturas.

Os Três Logoi

Agora chegou a hora de entender o que são os três Logoi. Aqui, é útil lembrar os conceitos nietzscheanos
de Apolo e Dioniso. Dois deuses gregos que Nietzsche interpreta não como objetos de culto ou adoração,
mas como metáforas, como se fossem símbolos ou figuras: não é necessário adorar Apolo para ser
apolíneo, nem é necessário adorar Dioniso e participar de orgias em sua homenagem para ser chamado
dionisíaco. Apolínio e dionisíaco, para Nietzsche, têm um significado completamente diferente. Ser
apolíneo significa ser hierárquico, ter uma maneira lógica de entender o mundo que representa a maneira
de pensar diurna. Ser dionisíaco significa, em vez disso, ser irracional, ter uma compreensão intuitiva do
mundo, que representa o modo de pensar noturno, crepuscular.
Nietzsche divide as culturas em apolíneas e dionisíacas. Essa visão foi emprestada e desenvolvida por
muitos outros autores, tanto que hoje em dia é uma herança comum nos estudos culturais. Também
aceito esta divisão, e acho que podemos dizer que existe um Logos de Apolo e um Logos de Dioniso e
que o Nous, portanto, se expressa através do Logos Apolíneo ou do Logos Dionisíaco. Isso soa bastante
nietzscheano, e isso se dá porque fui de fato influenciado por Nietzsche nesse sentido. Na tentativa de
descobrir mais sobre o Logos de Dionísio, escrevi uma espécie de prequela para a NOOMAQUIA - que
poderia ser considerado o “volume zero” – intitulado “Em Busca do Logos Negro”. Minha idéia era
considerar a história da filosofia não do ponto de vista apolíneo, que é predominante, mas do ponto de
vista do segundo Logos. Criar, em outras palavras, um tipo de contra-história da filosofia baseada em
uma leitura dionisíaca. Sabemos perfeitamente bem em que consiste a leitura apolínea da história da
filosofia. É precisamente a história da filosofia que todos estudamos. Minha idéia era entender como
Dioniso teria considerado os mesmos problemas, as mesmas categorias, as mesmas posições e relações.
Trata-se aqui de uma abordagem, de uma espécie de convite feito por Nietzsche, e em certo sentido
também por Heidegger.
Muitos pensadores pós-modernos tentaram fazer o mesmo, aplicar essa abordagem dionisíaca para
decifrar a história da filosofia. Não se trata, até aqui, de algo único, mas eu quis fazer por conta própria.
Trabalhando nessa busca pelo Logos negro - chamei-o assim já que o Logos branco e luminoso é o
apolíneo: Apolo é luz, Dioniso é noite ou sombra – e tentando ler com os olhos do Logos negro Hegel,
Heidegger, Kant, Platão, Aristóteles e trabalhando nesse campo de pesquisa metafísica, imaginando uma
história alternativa dos filósofos com base na abordagem dionisíaca, descobri alguns fenômenos básicos
e muito importantes para a NOOMAQUIA., pertencentes à cultura, religião, filosofia, história da filosofia,
ciência, arte, psicologia humana, que não podem de forma alguma ser vinculados ao campo do Logos
dionisíaco. Alguns elementos estão incluídos, mas há um novo campo que permanece do lado de fora;
esses são elementos que não podem ser claramente incluídos no Logos apolíneo, mas que não podem
ser atribuídos nem mesmo ao dionisíaco.
Podemos falar aqui em uma descoberta empírica no campo da metafísica; existem campos conceituais –
por exemplo, a filosofia de Heráclito ou Demócrito, a teoria atomística ou as teorias da ciência moderna –
que não são de forma alguma apolíneas e nem sequer podem ser chamadas de dionisíacas. Na busca
pelo Logos negro, cheguei à conclusão de que há algo além desses dois Logoi, que existe um terceiro.
Para além do Logos de Dioniso, algo mais está oculto.
Na sombra de Apolo há Dionísio, mas na sombra de Dionísio há um outro. Eu o chamei de Logos de
Cibele.Cibele é o nome de um deusa anatólia muito antiga (análoga à grega Réia), a Deusa-Mãe da
Anatólia antiga. A Grande Mãe dos hatitas, um povo pré-indo-europeu muito especial que viveu na antiga
Anatólia antes dos hititas, que mais tarde adotaram essa divindade, integrando-a em seu panteão
religioso. Depois deles, o culto a Cibele também foi desenvolvido pela população indo-européia dos
frígios, cuja deusa principal era precisamente a “Grande Mãe”.
O culto da Grande Mãe estava baseado na castração ritual do homem. Os sacerdotes de Cibele eram
castrados tornando-se eunucos e isso fazia parte da grande visão do matriarcado, do reinado da Grande
Mãe, onde o papel do homem é completamente diferente daquilo que conhecemos. Uma posição
completamente diferente da posição dionisíaca, já que Dioniso em seu culto era o centro de interação das
bacantes, das mulheres, mas também dos homens, e, nesse caso, é o homem no centro da existência
humana.
O dionisíaco não é transcendente, é imanente, mas centrado no homem, é a imanência de um deus-
homem, de Deus enquanto homem, especificamente homem, não meramente humano. E essa presença
pode ser definida como uma forma de presença imanente de transcendência. Portanto, não se trata de
escuridão total: Dioniso não é o Logos negro. Dionísio é a presença de luz na escuridão. Uma espécie de
“sol noturno”. O homem no centro da existência imanente, ctônica, feminina. O ponto masculino na
realidade feminina. Uma espécie de raio de sol que atravessa a escuridão e atinge o centro da escuridão
para criar um novo amanhecer. Isso é Dioniso.
E isso não pode ser confundido com a escuridão ou com o caos. As orgias, cultos, cerimônias, todos os
aspectos relacionados ao dionisíaco não devem ser interpretados como uma inversão da ordem
apolíniea.
O dionisíaco não é uma reversão do apolíneo, mas é o apolíneo emergindo não de dia, mas de noite. É
luz na escuridão. A luz dentro da escuridão É o sol que se põe à noite e nasce novamente na manhã
seguinte: mas quando ele passa, quando chega o instante da meia-noite, o sol é invisível, está oculto, não
está presente no meio da noite, mas ele existe, está lá, em algum lugar; se ele estivesse absolutamente
ausente, não haveria nem amanhecer nem manhã. Da mesma forma, Dioniso não é o sol durante o dia
(Apolo-Helios), nem a noite, mas o sol durante a noite.
Onde está o sol quando não há sol? Onde está o céu quando não há vestígios do paraíso, onde está o
elemento viril quando não há homem, apenas a escuridão, a terra, a imanência, a matéria e o princípio
feminino? Ele está, mas existe.
Este é o Logos de Dioniso. Ele cria um novo tipo de visão, uma visão dinâmica, uma espécie de equilíbrio
entre os gêneros, entre imanência e transcendência, entre céu e terra. Dioniso é o céu na terra, a terra
celestial, o paraíso na terra. O Logos dionisíaco é uma combinação dialética de opostos. Mas, para
entendê-lo corretamente, é necessário introduzir um terceiro Logos, e isso é algo que muda
completamente todos os conceitos e teorias existentes até agora. O terceiro Logos, do qual consiste
minha descoberta, é o elemento verdadeiramente inovador que representa a característica essencial da
Noologia. É o Logos negro, o Logos de Cibele.
Por que o Logos de Cibele foi descoberto tão tarde? Por que ninguém nunca falou de três Logoi antes?
Quando comecei a tentar entender e resolver esse problema metafísico, descobri uma coisa muito
interessante: para o Logos dominante de Apolo, esse terceiro Logos não pode existir, pois, olhando a
situação de um ponto de vista puramente apolíneo, não pode haver outro Logoi. além do próprio Logos de
Apolo. Isso ocorre porque o conceito apolíneo é exclusivo, puramente masculino e baseado em um tipo
de equivalência entre o homem enquanto masculino é um homem e o homem é humano, ser homem e
ser humano é a mesma coisa, e tudo o que não se enquadra nessa definição não tem o direito de
reivindicar ser Logos. O único Logos é Apolo, homem e humano. Tudo o que não é masculino não é
lógico, não pertence ao Logos, não pertence ao humano e, portanto, pode ser apenas uma espécie de
animal ou objeto, não um sujeito; o sujeito só pode ser apolíneo.A idéia nietzscheana de ampliar o status
do Logos conferindo o status de Logos a Dioniso já era revolucionária, pois mostrava a possibilidade de
uma abordagem diferente do Logos. Com Dioniso, descobrimos que não existe apenas a abordagem
apolínea, mas que pode haver outra. No entanto, juntas a abordagem apolínea e a abordagem dionisíaca
não podem permitir a existência de um terceiro Logos, porque ambos são metafisicamente masculinos.
Aberto (Apolo) ou oculto (Dioniso), exclusivo (Apolo) ou inclusivo (Dioniso), mas ambos Logoi masculinos.
O Logos de Cibele não é masculino. E do ponto de vista masculino, que é predominante, não poderia ser
um Logos. Assim ele passa quase despercebido, como uma espécie de ruído e não um discurso. Do
ponto de vista do homem metafísico, o que a mulher metafísica diz é um ruído, não um discurso. É algo
como o som da natureza, por exemplo. Pode ser mais ou menos bonito, depende. Do ponto de vista
apolíneo, por exemplo, platônico – o platonismo é pura filosofia apolínea: há idéias acima de tudo e
imagens abaixo. Há verticalidade.
Há o Pai que é o paradigma ou o exemplo eterno, e há o sol que é uma espécie de imitação
fenomenológica do pai e para além disso há o nada, khôra, matéria privada de qualidade – não há nada
fora do Logos, essa é a definição mais relevante da expressão apolínea do Logos; além do Pai, há o sol e
depois a matéria sem qualidade, o que representa, portanto, nada, não-ser, escuridão, pois sem
qualidade não há Logos. Assim, existe o Logos do Pai, que é apolíneo, o Logos solar, imanente, que é
dionisíaco e nada mais, pois a tradição patriarcal não permite que a outra parte da realidade tenha um
Logos.
É por isso que o terceiro Logos até agora permaneceu tão oculto. Somente começando a aplicar um tipo
de abordagem dionisíaca à história da filosofia, descobrimos que há algo oculto sob ambos os Logos,
porque a abordagem dionisíaca não corresponde à castração, ao tipo de dissolução da Grande Mãe. A
idéia dionisíaca é descer às profundezas do inferno para ressuscitar, descer para subir, cair para retornar
ao Céu.
Ele é sacrifício e é morte, mas também resurreição. É algo completamente diferente do apolíneo. É ir de
cima para baixo e retornar. Podemos considerar o Logos dionisíaco a versão extrema do Logos apolíneo,
certamente completamente diferente deste, gerando estruturas completamente diferentes, representando
outra inclinação do mesmo Nous. No entanto, começando a trabalhar seriamente com o Logos dionisíaco,
descobri, como em uma espécie de iluminação metafísica ou revelação, que há algo mais e cheguei à
conclusão de que podemos reconhecê-lo como uma terceira forma do Nous ou do terceiro Logos, a
saber, o Logos de Cibele.
Após essa operação conceitual, finalmente teremos uma explicação realmente completa de todas as
versões possíveis de culturas, filosofias, religiões e as relações entre elas.
Podemos imaginar que o Nous é dividido em três Logoi e que cada um deles cria um ou mais mundos;
assim, podemos viver em diferentes mundos apolíneos, em múltiplos mundos dionisíacos ou em muitos
outros mundos cibelinos, uma vez que não existe um mundo único, mas há uma multidão, uma
multiplicidade, uma pluralidade de mundos apolíneos, dionisíacos e cibelinos incrustados uns nos outros,
fundidos uns nos outros, representando conteúdo tão rico em cultura, pensamento, arte, história que você
pode descobrir de imediato o tesouro espiritual da mente humana. Mas não se trata de caos. Poderíamos
descrever formas puras desses três Logoi, apesar das relações entre eles.
O Logos de Apolo

Qual é o universo de Apolo? Ele corresponde à ideia de que tudo é criado de cima para baixo, que tudo
vem de um processo descendente. A filosofia platônica é a maneira mais perfeita de expressar esse logos
apolíneo. Toda cultura, quer entre em contato com o platonismo ou não, irá gerar o mesmo tipo de visão
apolínea. Eu descobri estudando, por exemplo, na tradição arcaica das populações nilo-saarianas sem
nenhuma conexão com os gregos, o Logos de Apolo. O Logos de Apolo em todos os lugares representa a
mesma idéia: existe o Deus-Pai que criou tudo, o povo é filho do Deus-Pai, e nós caímos do céu e
estamos destinados a retornar; não há dimensão terrena, ou melhor, a terra é a linha mais baixa dessa
descida que precede a subida.
O Logos Apolíneo representa uma atitude puramente patriarcal. Tudo é baseado em honra, na guerra, na
luta contra a morte e contra a escuridão. Todo homem é feito de luz. Existe um tipo de hierarquia na
sociedade baseada em uma linha vertical. Esta é a visão da sociedade platônica, européia, feudal e
tradicional. Entre os shilluk, entre os nuer, entre os dinka, tribos da África Nilo-Saariana ou, por exemplo,
em outras populações da África Ocidental, entre os povos iorubá, encontramos a mesma visão puramente
platônica: os exemplos estão nas estrelas e tudo isso com com o qual estamos lidando é um reflexo, um
espelho fenomenológico do que acontece entre as estrelas. O platonismo não pode ser encontrado,
portanto, apenas nas obras e nos diálogos de Platão; ele é uma forma do Logos apolíneo, que se
apresenta em múltiplas culturas que não tiveram contato direto com Platão. A tradição faraônica egípcia,
por exemplo, está igualmente baseada no sol que vem de cima, que desce para o fundo e cria esse tipo
de versão piramidal do mundo, uma construção puramente apolínea cuja base é quadrada e o cume é
unitário. É por isso que o fogo, em grego πῦρ (pŷr), é apresentado em Platão como piramidal, uma
espécie de fogo que sobe. O fogo é, portanto, sagrado, a luz é sagrada, somos filhos da luz; e daí se
segue o patriarcado, a dominação absoluta do princípio masculino e a submissão do princípio feminino, e
todos os outros elementos apolíneos. Em outras palavras, o Logos de Apolo não deriva de pessoas que
leem Platão e aplicam seus escritos à sua sociedade; em parte é assim, mas não podemos explicar todas
as sociedades apolíneas através da leitura de Platão. O Logos apolíneo é platônico, mas Platão é um
reflexo desse Logos, ele constitui uma excelente forma, a mais completa em que esse Logos se expressa,
ou seja, representa a melhor introdução ao Logos apolíneo, que, no entanto, não é uma criação de Platão
, é uma criação do Nous. O platonismo é uma das maneiras pelas quais o Logos apolíneo opera no Nous,
pelas quais ele se revela, pelas quais se manifesta. O Logos apolíneo, dissemos, não é uma criação
artificial de uma única mente humana, mas dos Nous. Nossa mente humana pode seguir a linha apolínea,
pode ser platônica, o platonismo pode ser algo que desde o momento do nascimento está presente em
nós, se esse Logos dominar em nós, em nossa cultura, em nossa religião, em nosso sistema de valores,
se ele define o nosso mundo. Na verdade, domina nosso mundo tradicional: prestamos mais atenção ao
céu do que à terra, somos feitos de luz, adoramos criaturas aladas (anjos ou pássaros), nossos deuses
vivem no céu ou nas nuvens. Nossa tradição cristã indo-europeia é apolínea. Platão faz parte dessa
cultura. Praticamente toda a cultura grega, antes de Platão e depois de Platão, a cultura romana, a
iraniana, a indiana e a eslava, todas essas tradições são apolíneas e para nós é absolutamente claro que
o mundo é assim, que nenhum outro mundo é possível, porque nós vivemos no mundo apolíneo, nossas
tradições são baseadas na visão apolínea.

O Logos de Dioniso

A descoberta do Logos de Dioniso, portanto, constitui uma revolução espiritual e metafísica, pois
apresenta a possibilidade de um mundo diferente, com uma simetria e organização diferentes, não
baseada no culto à transcendente. No mundo dionisíaco, vemos essa sacralidade no imanente. É um
mundo, o dionisíaco, organizado de forma diferente, em que as mesmas palavras, as mesmas figuras, os
mesmos deuses têm significados diferentes.
O aspecto dionisíaco na tradição cristã é a figura de Jesus Cristo, que é Deus e homem, tanto
transcendente quanto imanente, tanto eterno (no mundo apolíneo tudo é eterno) quanto histórico (ele
entrou no tempo). Aqui não se trata de opor o cristianismo apolíneo ao paganismo dionisíaco; na mesma
tradição cristã, por exemplo, podemos traçar ambas as figuras: a transcendência da Trindade (elemento
apolíneo) e a imanência de Jesus Cristo (elemento dionisíaco). 
O mesmo acontece em outras tradições; a figura de Dioniso está presente em diferentes tradições,
claramente não com o mesmo nome, mas com as mesmas funções, com a mesma libertação extática (o
nome de Dioniso na cultura romana era Liber, ou seja, liberação, liberdade), libertação em relação às
restrições da matéria, em relação ao aspecto ctônico da existência humana. E essa é uma espécie de
salto na liberdade de Deus, um choque antropológico e metafísico do humano para o divino, da
temporalidade para a eternidade (em nossa tradição cristã, a Eucaristia). Esta é precisamente a essência
do culto dionisíaco.
Em certo sentido, é quase uma heresia em nossa tradição cristã. Estamos no tempo, temos corpos.
Entramos em contato com o eterno que é Deus. É um salto metafísico, antropológico e ontológico. Essa é
a essência da tradição dionisíaca. E não é por acaso que a Eucaristia da nossa Igreja é feita com vinho,
que é o sangue de Deus, e com o grão, o pão, que é o corpo de Deus, já que pão e vinho também eram
dois símbolos dos Mistérios de Elêusis, onde Dioniso e Deméter estavam no centro. Continuação de uma
tradição simbólica especial fundada em Dioniso e Apolo.
Quando observamos o mundo através do Logos de Dioniso, registramos um mundo; quando o vemos
através do Logos de Apolo, estamos lidando com outro mundo.
Existem simetrias diferentes, diferentes metafísicas. Dioniso é o círculo ao redor do ponto da eternidade,
enquanto Apolo é a própria eternidade, é a lei eterna, tradição, algo invariável, a eternidade da ética, da
adoração, o ato de crer na eternidade que afirma ser ela mesma eterna, algo eterno que está fora do
processo temporal. Assim, na visão apolínea, procedemos da eternidade para retornar a ela.
O tempo não tem importância para a concepção apolínea; o único momento importante para a visão
apolínea é o retorno à eternidade, porque o tempo em si, seguindo Platão, é um reflexo da eternidade.
Como diz Platão, ele é o espelho da eternidade.  A ética do Logos apolíneo, portanto, é o retorno da
reflexão ao objeto refletido. A idéia, o arquétipo, o paradigma, o eterno.
O mundo definido pelo Logos de Apolo é baseado em idéias correspondentes a palavras que usamos em
nossos discursos como se sua essência fosse eterna.
Não chamamos coisas diferentes, mas similares, com novos nomes sempre; para indicar dois ou mais
livros semelhantes, sempre usamos a palavra “livro” porque o livro existe como um conceito e é um
conceito eterno – em nossa religião há uma espécie de projeção disso, há a Bíblia como um livro eterno,
criado e escrito na eternidade: tudo o que está escrito naquele livro é eterno, o próprio livro é eterno;
assim, todo nome que mencionamos é eterno em si. Já existia desde os tempos de Adão. Este é o mundo
apolíneo, e é um mundo muito familiar para nós, já que pensamos que o mundo é apolíneo em nossa
educação tradicional, fomos educados na cultura apolínica, assumimos a lógica de Aristóteles, baseada
justamente nas leis da eternidade (os três princípios da lógica clássica: o princípio da identidade, da não-
contradição e do terceiro excluído). No entanto, no mundo ao nosso redor isso não existe, tudo é duplo,
coisas existem e não existem ao mesmo tempo, coisas morrem e nascem. Na física não existe lógica
clássica, a lógica que é absolutamente natural para nós, transcendente, que é a essência do Logos
apolíneo que opera em nossas mentes humanas, pois opera em nossa cultura, formando nosso
paradigma semântico, mas que não existe.
A lógica é uma revelação. A é A, Deus é Deus, a lógica que descreve o mundo apolíneo, o mundo com o
qual tomamos como certo que temos que fazer, mas que, na realidade, não existe. Não há nenhum ponto
no universo onde, de fato, A é A.
Assim, o que é o Logos de Dioniso? Permanecendo dentro de Aristóteles, quando chegamos a outros
ramos de sua descrição das ciências, descobrimos que, por exemplo, relacionado à física, Aristóteles diz
que toda coisa (ele usou a palavra ὄν, ente) é duplo. Possui forma e matéria e essa é uma concepção
anti-lógica, uma vez que tudo o que existe é único e ao mesmo tempo dual, tendo matéria e forma (duas
coisas em uma coisa). E se você separa matéria e forma, não haveria nada. Essa é a física aristotélica,
corresponde à abordagem dionisíaca do mundo e não pode ser descrita pela lógica, mas pela retórica,
porque é algo único, mas não no sentido lógico do termo, é algo uno e duplo ao mesmo tempo.
O Logos dionisíaco se manifesta na capacidade de pensar dialeticamente, de conceber uma coisa como
duas coisas ao mesmo tempo.Considere o andrógino, algo que não corresponde à soma do homem e da
mulher, mas que no Logos dionisíaco preexiste à existência de homem e mulher; o andrógino não é o
resultado de uma combinação de gêneros, mas a fonte dos gêneros e não corresponde ao modo de
pensar apolíneo, mas dionisíaco.
O andrógino é a figura de Dioniso, contém dois gêneros antes que eles existam separadamente. Está
localizado no centro entre os dois pólos, antes que eles existam individualmente. No mundo apolíneo, os
dois pólos existem separadamente e o que está entre eles é secundário e é definido pelos dois pólos. No
mundo dionisíaco, pelo contrário, existe o que está no meio e as suas projeções criam os dois pólos.
Certamente podemos viver no mundo, na cultura, na religião da abordagem dialética dos dionisíaco –
duas naturezas em Cristo, Deus e homem. Trata-se de algo irracional. Como é possível que o mesmo ao
mesmo tempo não seja o mesmo, como na Santíssima Trindade, por exemplo. Então essa uma
abordagem dialética que cria simetrias completamente novas na religião, na arte e na filosofia. Esse
Logos dionisíaco é obviamente possível, mas se apresenta mais na mitologia, na poesia, na literatura, no
sagrado, na arte e na linguagem do que na filosofia; é uma linguagem humanística, retórica, não lógica ou
matemática (que é apolínea), porque as figuras retóricas envolvem precisamente uma violação das leis da
lógica. Em outras palavras, o campo privilegiado do Logos dionisíaco é mais a mitologia, a arte, a poesia,
a literatura do que a filosofia. Um ponto fundamental é que o Logos dionisíaco não é um Logos inferior.
Para Platão, todos os poetas deviam ser excluídos do Estado ideal. Isso faz parte da concepção que os
apolíneos têm do dionisíaco; com efeito, Apolo concebe Dionísio como sub-Apolo, como algo incompleto
por baixo. Isso poderia ser definido como um racismo ou etnocentrismo apolíneo: Apolo se considera a
totalidade, o todo, e todo o resto como parte dele ou representando uma espécie de imagem
frequentemente distorcida e perversa. Assim, para Platão, a poesia e a mitologia devem ser postas para
fora do Estado apolíneo puramente filosófico, porque elas pertencem ao mundo de Dioniso e são
consideradas impuras porque são retóricas. Não têm lugar na república de Platão, que coincide com a
república de Apolo, pois não tratam de linhas retas, mas curvas, de combinações de elementos
estruturados de maneira fantástica, com o espírito criativo da arte que é dionisíaco. É claro que, mesmo
na arte, podemos traçar a linha apolínea, mas a maior parte da arte e da poesia é puramente dionisíaca.
Uma filosofia de estilo dionisíaco também pode existir; na filosofia moderna, a fenomenologia é
puramente dionisíaca.
O próprio Heidegger, eu descobri estudando-o por muitos anos, tentou criar uma filosofia dionisíaca, e ele
realmente conseguiu; seu conceito de Dasein (“Ser-aí” em português) é precisamente dionisíaco,
localizado no centro (aí) entre Apolo (lá) e algo puramente imanente (aqui). O Dasein não está nem lá,
nem aqui, ele está no meio, entre os dois, porque lá e aqui são lugares que poderíamos definir de forma
estrita, mas esse "entre" é precisamente o ponto em que Dioniso existe. Portanto, o Dasein não deve ser
considerado, do ponto de vista apolíneo, como uma mera projeção do Ser. O Ser é apolíneo, ser-aí é
dionisíaco. Essa possibilidade dionisíaca da filosofia não vem de cima ou de baixo, mas do meio, não de
um dos dois pólos, mas do centro.

O Logos de Cibele

Agora chegamos ao terceiro Logos, o mais fascinante. Com os dois primeiros Logos, duas versões da
história da filosofia podem ser criadas, é possível consultar tanto a biblioteca apolínea, como a biblioteca
dionisíaca, reorganizando nosso espaço intelectual, remodelando nossa compreensão da história da
filosofia e, consequentemente, a história de nossa sociedade e humanidade. 
Um ponto importante da Noologia é que podemos rastrear o Logos apolíneo e o Logos dionisíaco em
todas as culturas humanas. Mas eles não estão em relações “cordiais” entre eles, porque Apolo pensa de
uma maneira e Dioniso de outra.
A primeira cria esse mundo caracterizado pela verticalidade, por essa simetria patriarcal e, por exemplo,
exala poesia dionisíaca; existe, portanto, uma espécie de luta entre os dois Logoi. Um Nous, dois Logoi
lutando entre si. Aqui está o porquê da “NOOMAQUIA”. NOOMAQUIA é a luta dentro dos Nous. Mas o
clímax do drama é alcançado quando chegamos ao terceiro Logos, o Logos de Cibele.
Um terceiro, novo Logos, correspondendo a um terceiro, novo mundo. Criado não de cima para baixo,
nem a partir do centro, mas de baixo para cima. Uma nova simetria. É um Logos perdido, negado pelos
Logoi de Apolo e Dioniso. O Logos de Cibele é a Grande Mãe que cria tudo sozinha, a partir de si mesma.
É a ausência de todo princípio masculino fora da Grande Mãe.
Não existe deus exceto a Grande Mãe, não há ninguém além da Grande Mãe, existe apenas a Grande
Mãe, a Terra, que cria tudo de si mesma e mata tudo, porque ela é ao mesmo tempo o berço e a tumba.
Não há dois pontos na linha da vida, nascimento e morte, há apenas um ponto de nascimento e morte;
não há exemplo de deus da morte e deus da vida; existe apenas um deus, uma mãe que cria e mata, dá e
tira vida. Cria a criança, o princípio masculino, por si mesma e sem o Pai; ela o usa como amante, depois
o castra e mata. Este é o mito de Cibele. Esse mito é explicado de várias formas, em muitos cultos, em
muitos credos, mas há um tipo de filosofia por trás dele que é muito profunda e interessante. Não há
transcendência nisso, não há lugar para o céu. O céu é uma espécie de reflexo da terra. Toda forma de
paraíso é um reflexo da matéria. Aqui estamos lidando com uma imanência absolutamente materialista,
diferente da imanência de Dioniso que, pelo contrário, é espiritualista, pois Dioniso é o centro entre
espírito e matéria, não dado pela soma desses dois pólos, mas pré-existindo a eles.
O Logos de Cibele é a idéia de que a Grande Mãe cria e mata tudo. Não é a eternidade (Apolo) ou o ciclo
(Dioniso), mas algo que age à sua maneira, com poder cego e absoluto. Uma forma de progresso:
crescimento de baixo para cima. Na ótica apolínea, Cibele lidera a batalha titânica das forças ctônicas
contra o céu e o reino do Logos masculino de Apolo.
O Logos cibelino é a criação de um novo mundo que é titânico, ctônico e, em certo sentido, feminista, não
porque haja igualdade entre homem e mulher – uma idéia muito mais dionisíaca – mas porque existe o
domínio absoluto da Mãe sobre todo o resto. Indo para a conclusão desta primeira lição, gostaria de
destacar um ponto importante. Os três Logoi que ilustrei estão em conflito absoluto. Eles criam mundos,
sistemas, sociedades, culturas, religiões, cultos, relacionamentos, valores, sistemas políticos baseados
em abordagens completamente diferentes que conflitam entre si. Aqui está a Noomaquia. Já existe uma
forma de contradição entre Apolo e Dioniso. Mas entre Cibele e Apolo, as contradições atingem o ponto
mais alto, pois existe uma grave Titanomaquia ou Gigantomaquia entre duas visões opostas. Dois Logoi
lutando. Os Titãs, filhos ctônicos de Cibele tentam sitiar o céu enquanto os deuses apolíneos tentam
defendê-lo.
Do ponto de vista filosófico, os caminhos de Demócrito e Epicuro são puramente cibelinos; nossa ciência
europeia moderna também é puramente cibelina. E essa é uma espécie de vingança do Logos de Cibele
após os milhares de anos de domínio de Apolo e Dioniso.
Estamos vivendo em uma escatologia cibelina. Se deixarmos de lado por um momento nossa tradição
espiritual, cultural, religiosa, ética e considerarmos nossa visão científica, notamos que ela é uma visão
puramente atomística, materialista e progressista, baseada em uma simetria de baixo para cima.Cibele
não pertence a tempos arcaicos, o Logos de Cibele é algo com que lidamos todos os dias. Atualmente,
vivemos em uma situação cada vez mais esquizofrênica, onde nossa cultura e tradição são apolíneas e
dionisíacas, enquanto nossa ciência, nossa política, nossa tecnologia é cibelina. Estamos enfrentando o
ataque final de Cibele, da Grande Mãe Ressuscitada, com feminismo, inteligência artificial, globalização,
democracia, liberalismo e assim por diante. Este é o ataque definitivo dos Titãs da sociedade cibelina, a
fim de purificar a modernidade dos restos da tradição, da cultura indo-européia e, finalmente, do Logos
apolíneo, estabelecendo o “governo mundial” dos Titãs que representam a Grande Mãe. Naturalmente,
nós podemos traçar essa visão do mundo cibelino nos tempos antigos, tanto em nossa civilização quanto
em outras civilizações. No entanto, preste atenção ao fato de que não há “civilização cibelina”, já que em
todas as civilizações podemos rastrear os três Logoi, em todos os lugares lutando entre si. Vivemos
dentro desta Noomaquia, que não é algo puramente teórico, mas se manifesta em nossa política, em
nossa cultura, em nossa ciência, em nossa identidade.

Conclusão

Em conclusão, na Noologia, não observamos o mundo através de um desses três Logoi. Se observamos
o mundo através de Apolo, deveríamos deduzir que existe apenas um Logos e que todo o resto é
perversão; na Noologia, por outro lado, não apoiamos um determinado Logos, apenas estudamos a
situação, entendemos os três Logoi – reconhecendo o direito de todos de existir – e seu conflito no Nous.
Através desse processo noológico, seremos capazes de interpretar tudo o que acontece no mundo, na
cultura, na política e assim por diante. O principal princípio da Noomaquia é o seguinte: três Logoi estão
em um conflito insolúvel. Eles lutam entre si pela forma do Nous que deve dominar a cultura. A luta dos
três Logoi é a chave para entender a estrutura interna da cultura, civilização e identidade da sociedade. E
nos dá a explicação das relações inter-étnicas e interculturais. A NOOMAQUIA explica tudo o que é
humano e explica como o homem explica o que não é humano. Esses que descrevemos até agora
constituem os princípios fundamentais de NOOMAQUIA como base metafísica do mundo multipolar.
Lição II: Geosofia

Geosofia como Multinaturalismo

Esta segunda lição é dedicada à geosofia, um termo derivado de duas palavras gregas: γεω (“geo”, a
terra) e σοφία (“sophia”, sabedoria ou conhecimento). A geosofia consiste na aplicação dos princípios da
Noologia ao estudo de culturas e sociedades específicas. Esta é uma análise civilizacional conduzida com
a ajuda dos conceitos dos três Logoi. Na primeira lição [1] dedicada à Noologia, discutimos os três
mundos ou universos conectados aos três Logoi. Podemos posicionar os três Logoi em um eixo vertical,
sendo capazes de rastreá-los em todas as culturas e, assim, explicar cada cultura através deles. Bem, a
geosofia consiste na interrelação desse eixo vertical com os aspectos do eixo horizontal correspondente
às diferentes culturas.
A ideia da geosofia está ligada ao que na filosofia e antropologia é chamado perspectivismo, uma
abordagem desenvolvida pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. O homem moderno
ocidental acredita que existe apenas um mundo, o mundo físico e uma única cultura que pode entendê-lo
corretamente, a cultura europeia ocidental moderna.
Este é um tipo de “verdade” que implica genocídio, para todos os efeitos, de outras culturas, uma vez que
aqueles que não reconhecem essa verdade e não seguem essa cultura específica são considerados
subdesenvolvidos e, portanto, sujeitos à colonização e obrigados a obedecer ao modelo de homem
branco. Uma visão puramente colonial, oposta por multiculturalistas ou pós-modernistas, que afirmam que
existe apenas um mundo, mas várias maneiras de interpretá-lo.
Comparada à visão puramente colonial, essa abordagem permite que outros pensem de maneira
diferente, mas alguns antropólogos descobriram que a base ontológica desse mundo único, que para os
multiculturalistas admite diferentes interpretações, ainda é a projeção do pensamento ocidental moderno
sobre a natureza, isto é, a concepção científica da natureza européia que se supõe ser a realidade
objetiva, então interpretada de forma subjetiva e diferente. É nisso que consiste o multiculturalismo.
Com base nessa observação, novos antropólogos começaram a criar um tipo de metafísica chamada
“metafísica canibal”, através da qual esse conceito do mundo único diversamente interpretado é destruído
e substituído por mundos diferentes: nesse caso, o que os povos pertencentes a culturas diferentes
afirmam sobre o mundo não representa mais sua interpretação subjetiva do único mundo objetivo, como
para os multiculturalistas, mas constitui a descrição correta do que eles vêem e percebem de seu mundo
específico em que vivem.
É uma abordagem completamente nova e a Noologia e a geosofia representam os exemplos mais
radicais desse reconhecimento da multiplicidade dos mundos. A geosofia se baseia no princípio de que
toda cultura cria seu próprio mundo. Assim, não se pode dar como certo que o mundo seja fisicamente
constituído por um geóide em rotação em torno de seu próprio eixo, pois pode haver outras idéias do
mundo – para algumas culturas a Terra pode ser plana, para outras talvez côncava – e se aqueles que
pertencem a uma cultura em particular realmente pensam que vivem em um mundo assim, devemos
aceitar isso e não julgá-lo desde o início como uma interpretação incorreta da realidade que supomos
conhecer melhor que eles.
Este princípio geosófico pode ser chamado de “multinaturalismo”. Enquanto a antiga abordagem racista e
colonialista sempre esteve presente no multiculturalismo, apenas um pouco mais adocicada – “nosso
conhecimento é superior ao seu, mas permitimos que você viva com suas ilusões” -, o multinaturalismo
representa uma abordagem antropológica completamente nova com base na dignidade de todas as
culturas – “você está vivendo em um mundo que para você é absolutamente real e correto; portanto, não
podemos de forma alguma projetar nossa visão diferente sobre você; em outras palavras, aquele em que
você vive é seu mundo específico, não sua interpretação do mundo que conhecemos melhor que você e,
para entender sua cultura, é necessário aceitar sua verdade sem reduzi-la ao grau de 'ilusão' , colocando-
nos em seu lugar e assumindo totalmente sua perspectiva".
A geosofia se baseia nessa ideia de que não há um único espaço e uma única linha do tempo; ela rejeita
a abordagem multicultural pela qual pessoas de diferentes culturas podem interpretar seu território e sua
história de maneiras diferentes, assumindo, porém, que nós temos uma melhor compreensão delas.
Segundo a geosofia, na passagem de nossa civilização, de nosso povo, de nossa cultura para outros
povos, é necessário, antes de tudo, investigar como estes concebem o mundo, tomando o cuidado de não
pretender explicar a eles como o mundo “na realidade” seria constituído.
A geosofia não coincide com a nossa concepção da terra – “geo” -, mas é a ideia de que em todo ponto
do espaço existem mundos diferentes coexistindo no mesmo contexto. Deleuze e Guattari tentaram
aplicar essa idéia falando sobre “geofilosofia”, mas o fizeram do ponto de vista liberal pós-modernista,
centrado no Ocidente. Para apontar a diferença entre a sua abordagem excessivamente dogmática e a
abordagem aberta da Noologia, introduzi, portanto, o termo geosofia.
A idéia da geosofia é que, para estudar outras culturas, é necessário assumir plenamente sua concepção
de mundo. Em outras palavras, não se deve de forma alguma projetar a sua própria visão dos aspectos
subjetivos e objetivos da realidade sobre eles, mas tentar entender o que para essas culturas (sejam
arcaicas ou modernas, norte-americanas ou australianas e assim por diante) é o mundo objetivamente e
subjetivamente – admitindo que possuem essa distinção, que não pode ser tomada como certa, pois pode
haver culturas sem os conceitos de sujeito ou objeto. Por exemplo, em meu trabalho de pesquisa,
descobri algumas culturas muito particulares caracterizadas pela ausência do conceito de sujeito, como
as pessoas arcaicas que vivem no extremo norte de Chukotka e Kamchatka ou algumas tribos norte-
americanas. Isso é algo incrível para nós, assim como para os africanos, já que a maioria das culturas
africanas é fundada no sujeito, embora de um tipo totalmente diferente do nosso. Por fim, há uma grande
variedade de culturas, muitas das quais muito além de nossa capacidade de imaginação; no entanto, é
necessário aceitá-las enquanto tais, da maneira como eles se concebem, sem julgá-los ou hierarquizá-los
como faz a antropologia evolucionista.
Essa abordagem nos leva a uma nova visão da Terra e da humanidade, não mais constituída por
civilizações que estão tentando obter poder e recursos da mesma maneira, e de povos que lutam entre si
de maneira compatível com nossos modelos, mas de povos totalmente diferentes, alguns dos quais
propensos à guerra, ao contrário de outros que serão pacíficos, onde, por exemplo, alguns usam dardos e
seus derivados em combate, enquanto outros se recusam a usá-los por considerações morais ditadas por
sua cultura específica – pense nos aborígines australianos, para os quais é imoral tudo o que viola a
reciprocidade de matar/ser morto, simbolizado pelo bumerangue; pensar que um objeto tão banal quanto
um dardo pode ser banido com base em considerações morais é indicativo do fato de que somos
confrontados com Logoi completamente diferentes e, portanto, com pessoas que vivem em mundos
diferentes.
Portanto, existem muitos povos que pensam de maneiras completamente diferentes e vivem em mundos
tão diferentes que seu estudo – um estudo cujo objetivo não é julgá-los, diferenciando-os de um modo
mais ou menos desenvolvido, mas entender sua maneira de conceber o mundo – nos deixa espantados.
O objetivo da geosofia é apreender as diferentes formas de pensamento que constituem a humanidade,
que não representam apenas interpretações diferentes da mesma realidade – como os multiculturalistas
gostariam – mas constituem realidades diferentes, mundos diferentes que coexistem de maneiras
diferentes, estabelecendo às vezes relacionamentos dramaticamente conflituosos, às vezes
pacificamente.

Momento da Noomaquia como Identidade Cultural Dinâmica

A geosofia representa uma metodologia para descrever as civilizações. A idéia central é que é necessário
reconhecer as civilizações como culturas e como mundos definidos pelos respectivos povos que as
habitam. No segundo volume do projeto Noomaquia dedicado à geosofia [2], compilei uma revisão das
principais escolas de estudo das civilizações, de Danilevsky a Spengler, de Toynbee a Huntington e
muitas outras. O volume da geosofia constitui uma espécie de introdução aos outros volumes do projeto
Noomaquia, em que mundos e civilizações específicos são estudados.O que é uma civilização? Por
civilização, entendemos uma comunidade coletiva que compartilha a mesma visão do mundo e vive no
mesmo mundo: um povo, uma entidade geosófica ou uma comunidade orgânica que compartilha os
principais aspectos de uma cultura e vive aproximadamente no mesmo mundo e cujas fronteiras estão
ligadas à linguagem, religião, valores, uma visão comum do mundo e assim por diante. Às vezes é um
mundo realmente pequeno, como uma tribo, outras é um mundo composto por milhões de homens.No
estudo de cada uma dessas entidades geosóficas, para elaborar uma espécie de resenha, vemos em
toda parte o “momento da Noomaquia”.
O que é o momento da Noomaquia? Este é o ponto de equilíbrio no conflito entre os três Logoi. Eles
estão em luta, e o momento tangível dessa luta corresponde precisamente à identidade real da cultura ou
civilização específica. Por exemplo, a cultura grega se baseia na dominação e vitória do Logos apolíneo
sobre o Logos de Cibele. À tradição pré-helênica pelásgica da Mãe de Todos os Deuses – a Mãe grega
representada na cultura micênica e minóica – se segue a invasão helênica com valores apolíneos
completamente diferentes. A identidade da cultura grega, o momento da Noomaquia, é precisamente o
Logos de Apolo na semelhança de Zeus que derrota Crono, o oráculo da Grande Mãe.
O momento em que o Logos apolíneo prevalece sobre o Logos da Grande Mãe representa uma vitória na
Titanomaquia e a civilização grega se baseia precisamente nesse momento vitorioso. Os titãs, filhos da
Grande Mãe, atacam os deuses; estes reagem e prevalecem, mas nem sempre é esse o caso. No caso
da civilização grega, os deuses olímpicos vencem, Apolo vence Cibele.
Esta é também uma guerra do pensamento – Noomaquìa -, um conflito no qual, neste caso, o patriarcado
vence o matriarcado. A civilização grega não é a única baseada neste momento da Noomaquìa. Também
a civilização iraniana, por exemplo, é baseada em uma idéia muito semelhante à grega, porque há a
vitória de Ohrmazd, o deus da luz, sobre Ahriman, o deus das trevas. Dois nomes diferentes, mas a
mesma simetria, a mesma Titanomaquia e a mesma vitória. Dois tipos de civilizações diferentes baseadas
em momentos semelhantes da Noomaquìa. O mesmo pode ser dito sobre outras culturas.
Para definir o Logos no eixo horizontal das civilizações concretas, devemos definir o momento da
Noomaquìa em que nos encontramos. Por exemplo, a maioria das sociedades indo-européias –
germânicas, celtas, romanas, gregas, iranianas e indianas – baseiam-se no mesmo momento da
Noomaquìa: a vitória do Logos de Apolo sobre Logos de Cibele.
Temos a ideia de que toda civilização se baseia no mesmo momento, mas não é assim. Um exemplo
muito significativo é representado pela civilização chinesa, que é muito diferente dos casos mencionados
até agora, porque representa uma civilização puramente dionisíaca, na qual existe um equilíbrio entre Yin
e Yang, entre masculino e feminino, entre céu e terra, e não dominação do céu sobre a terra; em outras
palavras, a norma é o equilíbrio, não a vitória dos deuses sobre os titãs. Essa é uma lógica
completamente diferente. Não há logos apolíneo, mas dionisíaco. Tudo o que sabemos sobre a civilização
chinesa, desde o primeiro imperador até a era contemporânea, de Qin Shi Huang a Hu Jintao, representa
um momento dionisíaco da Noomaquia, e toda mudança de equilíbrio ocorre nesse momento dionisíaco.
Assim, os chineses vivem em um mundo dionisíaco. Mas este não é o “destino” dos chineses; em outras
palavras, é errado dizer que esse momento durará para sempre. Esta não é uma receita ou a “verdade
final”, a nossa é uma pesquisa do momento da Noomaquia. Para estudar as diferentes civilizações, o
primeiro passo é, portanto, definir o momento atual da Noomaquia. Na próxima fase, devemos assumir
que a Noomaquia pode mudar, pois o momento da Noomaquìa não é estático, mas dinâmico.
Por exemplo, para garantir o equilíbrio dionisíaco, a cultura chinesa envidou todos os esforços possíveis
por milhares de anos. Deixar as coisas seguirem o seu caminho, sem intervir ativamente, teria derrubado
esse equilíbrio. Portanto, não se pode dar como certo que os chineses sempre se encontrarão em um
momento dionisíaco na Noomaquia; se por hipótese eles fossem colonizados, ou se sua sociedade fosse
destruída por dentro, faltariam os esforços existenciais de milhões de pessoas para manter o equilíbrio
dionisíaco entre Yin e Yang, que entraria em colapso.
O mesmo é verdade na Europa. Se os europeus parassem de lutar por Apolo, Cibele apareceria
imediatamente porque ela está sempre à espreita e atacaria imediatamente quando parássemos de impor
a vontade apolínea. Este é um ponto muito importante.
O momento da Noomaquia não deve ser entendido como a identidade eterna – dada como certa de uma
vez por todas – de uma cultura ou civilização. Nisto, o significado da história se manifesta como a luta dos
Logoi. Todo povo tem sua própria versão dessa luta, e cada cultura se encontra em diferentes momentos
desta Noomaquia, momentos definidos pela proporção em que um Logos domina sobre os outros:
existem povos em que Cibele domina, como os afro-asiáticos, os semitas, os egípcios, os berberes, povos
naturalmente inclinados à prevalência do Logos cibelino, mas esse não é um destino já escrito, já que
esse equilíbrio pode ser revertido e, de tempos em tempos, isso acontece. A identidade dos povos é um
processo, é algo que muda, é dinâmica. O momento da Noomaquia pode permanecer idêntico a si
mesmo ou pode mudar.
As proporções em que os três Logoi aparecem podem variar de povo para povo, de sociedade para
sociedade, e até de uma época para outra na história dos mesmos povos, sem que haja mudanças
étnicas ou sociais. Obtemos, assim, uma estrutura da geosofia verdadeiramente dinâmica e multinível.
Podemos detectar “diferenças horizontais” entre sociedades que vivem em diferentes espaços
geográficos, que podem ter momentos semelhantes ou diferentes da Noomaquia, e mesmo que existam
sociedades que compartilhem o mesmo momento da Noomaquia, elas podem se expressar de formas e,
portanto, identidades, diferentes. Além disso, o fato de compartilharmos o mesmo momento da
Noomaquia não significa que haverá automaticamente um acordo perfeito e uma combinação perfeita; por
exemplo, as relações dos gregos, cujo momento de Noomaquia é apolíneo, com os iranianos, que
compartilham o mesmo momento de Noomaquia, foram conflitantes, embora fossem duas expressões do
Logos apolíneo.
Ao mesmo tempo, em todas as culturas, em todas as entidades geosóficas que consideramos, pode
haver mudanças históricas na prevalência dos elementos da Noomaquia – passando da dominação do
Logos de Apolo para o Logos de Cibele até a predominância do Logos de Cibele sobre o Logos de
Dionisio ou mesmo do Logos de Dioniso sobre os outros e assim por diante – e a história, a direção
dessas mudanças não é universal, pois é o produto de um processo dinâmico interno ao povo.
Portanto, temos muitas civilizações que vivem em seus respectivos mundos, com muitos momentos
diferentes da Noomaquia que tomam direções diferentes: portanto, não avançamos todos em direção a
Cibele ou Apolo, mas todos seguem seu próprio caminho.
A geosofia implica o reconhecimento da multiplicidade de culturas em todos os sentidos, no espaço e no
tempo: todas são diferentes e procedem em direções diferentes, em espaços diferentes e com um final
aberto. Agora compare essa abordagem com a concepção predominante da história, na qual existe
apenas um espaço, um só tempo, um só objetivo, apenas uma verdade e uma maneira de alcançá-la,
constituindo a norma universal.
Em contraste com essa concepção da história humana puramente racista e etnocêntrica, a geosofia
propõe descobrir os muitos mundos que vivem aqui mesmo na Terra: novos mundos, outros mundos
vivem próximos a nós, mundos que, no entanto, não iremos perceber enquanto persistirmos em projetar
nossa restrita e específica visão sobre eles. A esse respeito, o autor eurasianista Trubetskoy observou
certa vez, considerando a estrutura de um livro jurídico escrito no Ocidente, que mil páginas são
dedicadas ao direito romano e seu desenvolvimento, enquanto apenas duas páginas são reservadas ao
direito chinês; assim, o direito romano é considerado universal, enquanto outros sistemas jurídicos nem
sequer são mencionados, ou se isso for feito, é uma referência superficial, além disso caracterizada por
uma interpretação realizada do ponto de vista do direito romano.
Uma situação análoga ocorre no contexto da globalização liberal moderna, que envolve a afirmação de
uma única civilização – a civilização ocidental, que afirma ser universal porque se baseia na mistura – em
detrimento de todas as outras, estendendo-se sobre toda a humanidade a mesma cultura ocidental
moderna e pós-moderna (o conceito totalitário de direitos humanos, puramente racista, pois se baseia na
concepção ocidental do que é humano, que subiu ao nível da norma universal, do sistema liberal-
democrático etc.). Isso é tudo menos uma visão baseada no pluralismo e na tolerância.
É um verdadeiro racismo colonial fundado nos preconceitos mais brutais, ao qual a geosofia, por outro
lado, opõe um convite à rigorosa aceitação da riqueza inerente à multiplicidade dos povos, das
sociedades e das civilizações.
A geosofia assume, assim, a tarefa revolucionária de destruir a abordagem predominante até então, a fim
de redescobrir o mundo, descolonizar toda civilização e conferir ao outro o direito de ser outro sem a
necessidade de pedir permissão aos globalistas, a Soros, aos americanos etc., e afirmar a própria
identidade autêntica independentemente do que a caracterize – seja ela radical, extremista, arcaica, etc.

O Horizonte Existencial

A geosofia se opõe à abordagem etnocêntrica e colonialista dominante, não do ponto de vista ético, mas
metodológico, uma vez que o perspectivismo se baseia no estudo cuidadoso das civilizações sem
qualquer preconceito. Por exemplo, nós, que somos russos e ortodoxos, descrevemos as sociedades
canibais negativamente, pois a prática do canibalismo para nós é satânica, demoníaca e um indício de
subdesenvolvimento; no entanto, ao fazer isso, não os estamos examinando em primeira pessoa,
interpelando seus membros, mas os estamos modificando através de nossa concepção particular. Essa é
a mesma prática que usamos com as pessoas ao nosso redor. E esta é uma fonte de desentendimentos,
de equívocos. Essa abordagem deve, portanto, ser alterada. A idéia da geosofia é estudar as sociedades,
aceitando o que seus membros pensam ser a realidade, os valores, a natureza, o sujeito e o objeto da
história. Aqui, no entanto, encontramos um grande problema metodológico: como podemos estudar
diferentes sociedades usando os mesmos critérios, uma vez que existe um número muito limitado de
critérios comuns que podemos aplicar às diferentes sociedades para observar se existe alguma
correspondência aberta? Para fornecer uma solução para esse problema, tentei aplicar a tricotomia dos
Logoi explicada na primeira lição a todas as civilizações e, em todos os lugares, em todas as culturas que
analisei, encontrei traços claros de todos eles. Existe aí, portanto, algo verdadeiramente universal, mas ao
mesmo tempo presente em várias combinações e em um conflito perene com um final aberto. Os três
Logoi estão presentes em todos os lugares e em todos os lugares, dando lugar à Noomaquìa: se há algo
universal são precisamente os três Logos.Tentei traçar outros critérios úteis no estudo das civilizações e,
seguindo Heidegger e a fenomenologia, introduzi o conceito de horizonte existencial ou espaço
existencial.
O espaço existencial é o Da do Da-sein. Não é um espaço entendido em termos científicos, mas o espaço
em que reside o Ser; é o espaço em que o ser humano vivo e pensante é encontrado e que não existe
sem ele. Portanto, não é um espaço geográfico que podemos traçar no mapa.
Onde existe um homem que pensa e vive em comunidade, com uma língua, uma cultura, raízes, um
certo sistema simbólico, há um espaço existencial, um horizonte existencial e onde temos a mesma
estrutura do horizonte existencial, temos o mesmo Dasein e, portanto, o mesmo povo ou cultura.
O limite deste espaço indica o começo do outro por si mesmo. Isso é muito importante para identificar,
separar e criar uma nomenclatura dos povos, das culturas e das civilizações. Se aplicarmos outros
critérios, mais sofisticados e mais elaborados, teremos que lidar com resultados secundários relacionados
a construções acima desse espaço existencial.
O conceito de espaço existencial é muito importante e está ligado ao conceito de multiplicidade dos
Dasein. Eu discuti esse conceito com um aluno de Heidegger, o professor Von Herrmann, em Freiburg,
Alemanha. Ele me disse que Heidegger considerava o Dasein universal, que havia apenas um Dasein,
porque na verdade ele era racista e achava que o Dasein alemão, europeu, greco-romano era o único e o
sozinho, portanto ele colocava de lado os outros Dasein reduzindo-os a outra coisa; para ele o Dasein era
apenas um, como a filosofia era apenas uma, o Logos era apenas um, e era precisamente o Logos da
Europa Ocidental. Um etnocentrismo absolutamente legítimo, nós o reconhecemos.
Mas para Von Herrmann, a singularidade do Dasein decorreria do fato de que o Dasein é caracterizado
por ser-para-a-morte e, portanto, é definido por Heidegger em relação à morte, que é a mesma para todo
ser humano. A esse argumento, que não compartilho, respondi que toda cultura, todo Dasein tem sua
relação específica com a morte, e é precisamente nas diferenças existentes nessa relação com a morte –
que eu concordo em considerar a característica mais importante do Dasein – que a particularidade e
originalidade do Dasein e, finalmente, sua multiplicidade são manifestadas.
Isso fica evidente no meu segundo livro sobre Heidegger (escrevi quatro) intitulado “Martin Heidegger: A
Possibilidade de uma Filosofia Russa” [3], onde apliquei os critérios existenciais de Heidegger ao Dasein
russo, descobrindo que a maioria deles não funciona no contexto russo. Temos relações diferentes com o
núcleo das realidades existenciais, com a morte, com Deus e assim por diante.
O Dasein é, portanto, “multipolar” e o horizonte existencial define seus limites naturais. Estes últimos
correspondem em parte a limites geográficos, o que é óbvio porque as pessoas vivem em um espaço
físico específico. Nesse sentido, podemos considerar o espaço existencial como uma espécie de espaço
vital, o conceito geopolítico de lebensraum. Mas, ao mesmo tempo, o espaço existencial não pode existir
sem um povo, uma língua, tradições; em outras palavras, se colocarmos uma população mista em algum
espaço, isso não representará um espaço existencial.O Dasein não corresponde apenas ao espaço ou
apenas ao povo, é a relação existencial do Sein, o Ser, com o espaço, que atravessa o povo, a cultura, o
pensamento humano. É um conceito muito especial, muito importante para a geosofia, pois esta disciplina
trata de estudar exatamente os horizontes existenciais e, portanto, a relação do Ser com o espaço que
passa pela cultura, linguagem, tradições, identidade. No campo da geosofia, o estudo de um povo não se
traduz em um estudo etnológico baseado em alguns aspectos estatísticos ou formais, mas no estudo do
Dasein. Como exemplo, se estudarmos o povo sérvio em termos geosóficos, devemos primeiro fazer a
seguinte pergunta: o que significa ser sérvio? Não é fácil dar uma resposta.
Qualquer resposta formal se revela insuficiente. Poesia, filosofia, imaginação, aspirações políticas: nesta
questão tudo está incluído. Não podemos fornecer uma resposta limitando-nos a aspectos abstratos. Para
responder a essa pergunta, é necessário compreender a história, as vitórias, as sucessivas formas de
Estado, as derrotas e os erros históricos, uma vez que o horizonte existencial está ligado ao espaço e ao
povo não de maneira imaterial. Para obter resultados válidos da pesquisa geosófica, devemos começar a
estudar o que é o Dasein, colocando a questão nesses termos.
Heidegger considerava o Dasein único; no sentido contrário, nós concordamos que existe uma
multiplicidade de Dasein e é precisamente a partir desse conceito de multiplicidade que podemos nos
perguntar o que significa ser sérvio em termos geosóficos, uma questão que tem a ver com algo pelo qual
as pessoas pagaram com sangue ao longo da história de toda a sua existência e da qual a identidade
futura também depende. De fato, a resposta a essa pergunta não diz apenas respeito a aspectos do
passado ou do presente; podemos dizer que é uma questão “eterna”, relativa a uma identidade
determinada por ser inscrita em um horizonte existencial por cultura, linguagem, valores, tradições, bem
como por estar fisicamente situada, corporal nela.

O Tempo Existencial

Até agora, discutimos o horizonte existencial, uma noção-chave sem a qual não é possível investigar a
identidade profunda das entidades geosóficas objeto de nosso estudo. O segundo conceito-chave da
geosofia que vamos introduzir agora é o do tempo existencial, também de origem heideggeriana. Em Ser
e Tempo, Heidegger faz uma distinção entre dois termos: Geschichtliche e Historische, que podem ser
traduzidos os dois por “histórico”.
Às vezes, Heidegger usa o termo Seynsgeschichtliche, a onto-história, para indicar a história do Ser.
Geschichtliche ou Seynsgeschichtliche são termos usados para representar o tempo ligado ao Ser.
Se Da é o espaço vinculado ao Ser, Geschichtliche indica o tempo vinculado ao Ser, o tempo do Ser ou o
tempo existencial. Henry Corbin, grande filósofo francês e um dos principais especialistas na tradição
esotérica islâmica, ao traduzir Geschichtliche e Historische para o francês, a fim de explicar a diferença
entre os dois conceitos, usou os termos “historique” (histórico) para Historische e “historial” (historial) para
Geschichtliche. Por historial, entendemos o gênero da história do Ser, a história não como uma sucessão
de fatos, mas como uma sucessão de significados, de sentidos. O historial (Geschichtliche) representa
uma forma de leitura existencial do histórico (Historische).
O histórico é o fato que está documentado, o historial é a explicação do fato, seu aspecto ontológico. Na
história, realizamos ações, obras que podem ser históricas ou historiais. Para que elas se tornem
historiais, eles devem se relacionar com o Dasein, com nossa identidade e com nossas raízes profundas.
Assim, o tempo existencial é adicionado ao espaço existencial. O tempo existencial representa nossa
interpretação de nossa história; enfatizo: nossa. Os fatos contidos nessa interpretação da história nos
dizem tudo sobre nossa alma, nosso sangue, nosso espírito, enquanto para outros poderiam representar
eventos sem qualquer significado.
Por exemplo, a guerra no Kosovo para os sérvios não pertence simplesmente à esfera do histórico, mas é
um evento que constitui uma parte crucial da história sérvia, um momento chave para entender o que
significa ser sérvio antes e depois dos eventos do Kosovo; a guerra no Kosovo representa o fim de algo, o
começo de algo mais e ao mesmo tempo um conflito eterno, e a eternidade desse evento tem a ver
precisamente com o aspecto existencial do Dasein sérvio. Para nós, russos, é o mesmo com a Segunda
Guerra Mundial, que para nós é a Grande Guerra Patriótica, demonstrando o fato de que um evento pode
ter múltiplos significados.
O significado de um determinado evento pertence ao povo, ao Dasein, e a realidade do que era, do que é
e do que será depende diretamente dessa relação existencial com o tempo. Husserl identificava o tempo
com uma melodia, que é uma sequência de notas musicais que subtende uma lógica, uma tonalidade
para a qual uma nota é de alguma forma predefinida pelas notas anteriores e a presença de uma nota
desafinada perturba o ouvinte; do mesmo modo, a história, ou melhor, a esfera do historial, não
representa uma mera sequência temporal de fatos desconectados, mas uma sucessão de eventos que
tem sua própria lógica. A história é música, mas apenas o povo ou Dasein relativo podem entender
completamente essa música historial. Em outras palavras, ela não é universal; o historial de cada pessoa
opera com uma frequência sonora específica, de modo que ninguém mais é capaz de ouvir e entender
perfeitamente sua melodia.
Não sendo capaz de ouvir perfeitamente uma melodia de fora, é particularmente difícil expressar
avaliações sobre a condição de um povo específico, se ele está passando por uma fase positiva ou
negativa, se está em desenvolvimento ou está em declínio, etc. Não há critérios universais no campo da
história, porque a relação com o tempo é uma propriedade existencial do Dasein.
O horizonte existencial (espaço existencial) e o tempo existencial (historial) são definidos pela
Noomaquia, pois a qualquer momento não se pode expressar sua própria melodia na história ou sua
identidade enquanto povo situado no espaço existencial sem apelar aos três Logoi e ao conflito do qual
são partícipes. Existe um tipo de equilíbrio dinâmico dos Logoi de cada povo, de modo que somente
através deles é possível explicar o historial e o horizonte existencial de um povo. Podemos imaginar os
três Logoi como três tipos de grãos de trigo semeados no campo existencial; brotarão e crescerão, alguns
provavelmente prevalecerão enquanto outros permanecerão na sombra; todo terreno existencial fará com
que as diferentes sementes cresçam de maneira diferente, mas os três tipos de sementes estarão todos
presentes no horizonte existencial.
O modo como crescem, se combinam e conflitam entre si, varia de povo para povo; cada povo com seu
historial relativo apresenta uma modalidade específica de crescimento dinâmico dos três tipos de
sementes. Pelo que foi dito até agora, segue-se que a história de um povo é algo especial que não pode
ser explicado ou entendido de fora.

A Medida
Aqui nos encontramos diante de uma contradição muito interessante. Estamos lidando com muitos
mundos, culturas, identidades, que se desenvolvem em várias direções, de maneiras diferentes e com
resultados diferentes. Mas como podemos realmente entender todas essas realidades, se somos
totalmente definidos por nosso Dasein específico, se pertencemos ao nosso horizonte existencial, se
vivemos em um momento de nossa melodia, do nosso historial? Em outras palavras, como posso avaliar
o que está acontecendo fora da Rússia, possuindo apenas uma visão russa das coisas, sendo eu definido
pelo Dasein russo? Trata-se de um aspecto etnocêntrico inevitavelmente incorporado na mente humana.
Como podemos, nesse contexto, resolver o problema de ser definido pelo nosso Dasein ao mesmo tempo
e lidar com o Dasein de outros?
Essa é uma questão metodológica muito interessante e ao mesmo tempo muito complexa, sem a qual
toda a arquitetura da geosofia perderia seu significado. Aqui a idéia de medida é crucial. Se insistimos na
pura universalidade e tentamos superar todo etnocentrismo, não chegamos a lugar algum, nossa posição
se torna inconsistente, pois não há espaço existencial e melodia que possam abraçar a terra, toda a
humanidade e a história universal. Se pretendermos criar um sistema universal, desprovido de qualquer
forma de etnocentrismo, o único resultado será que ele manifestará uma versão perversa e titânica de
nosso próprio etnocentrismo.
Em outras palavras, não podemos existir sem etnocentrismo, e se tentarmos negá-lo totalmente,
obteremos apenas um etnocentrismo titânico ainda mais pronunciado – não é por acaso que o globalismo
e o liberalismo, em seu universalismo e anti-racismo, se revelam muito mais etnocêntricos e racistas do
que era o nacional-socialismo, porque eles concebem apenas um fado, um destino para o mundo inteiro,
algo que nem os alemães fizeram, tendo tentado impor sua visão germânica, certamente racista e
execrável, em uma escala muito mais limitada; em última análise, os globalistas, sob o pretexto de serem
antifascistas, tornam-se hiper-fascistas. Portanto, não podemos nos chamar universalistas, mas, por outro
lado, não podemos sequer assumir uma perspectiva totalmente etnocêntrica; caso contrário, a
investigação da Noomaquìa seria reduzida à história de nosso Dasein específico.
Como resolver esse dilema? A solução passa pelo reconhecimento dos limites naturais do espaço
existencial e pela aprovação do Dasein dos outros, o que não significa estar disposto a trocar o próprio
Dasein pelo de outros, mas reconhecer aos outros o direito de serem completamente diferentes sem
estabelecer nenhuma hierarquia. Não devemos eliminar a diversidade movendo-nos na direção
universalista, mas também não devemos impor nossa identidade aos outros em uma perspectiva
totalmente etnocêntrica. O conceito de fronteira aqui é de importância crucial.
Aliás, o que estou falando não é de uma fronteira estabelecido uma vez para sempre; nesse contexto, as
fronteiras podem mudar na medida em que os povos podem se desenvolver, sua identidade pode mudar
e o momento da Noomaquia em que eles se encontram pode mudar, sendo entidades dinâmicas no
processo historial. Trata-se, portanto, de rejeitar posições universalistas e chauvinistas, reconhecendo o
direito de ser etnocêntrico, um direito que, no entanto, não pode ir além das fronteiras do espaço
existencial. Isso significa estar vinculado à própria identidade, defendê-la quando as possibilidades o
permitirem e as circunstâncias o exigirem, mas ao mesmo tempo reconhecer o direito inato à diversidade.
Dessa maneira, não superamos o etnocentrismo, nem o glorificamos excessivamente. Falo aqui de uma
metodologia estritamente apolínea.
A essência do titanismo ou do Logos cibelino, como descrito por Friedrich Georg Jünger em seu famoso
livro sobre os deuses e os titãs, é que ele não conhece a medida. Tanto o etnocentrismo puro quanto o
universalismo fluem para o imperialismo e o colonialismo, isto é, para uma abordagem desmesurada na
qual a essência do titanismo se manifesta. Ao contrário, a metodologia apolínea prevê que ela permaneça
dentro de seus próprios limites, não exercendo nenhuma supremacia fora deles, sem cair no
etnocentrismo desmedido, por um lado, ou no universalismo, por outro, sem pretender ser o centro do
mundo, ou melhor, o único centro do mundo: nós somos o centro do nosso mundo – se não fossemos,
não estaríamos centrados no Dasein, em nossa identidade, em nosso território sagrado, em nossas
tradições, em nossos símbolos e assim por diante, em última análise, não seríamos um povo – mas, ao
mesmo tempo, devemos reconhecer a outros, o direito de ser igualmente o centro do mundo, aos seus
olhos, de seus mundos, em suas fronteiras existenciais.
Podemos chamar isso de etnocentrismo auto-reflexivo ou comedido: somos o centro do mundo, mas
reconhecemos o direito dos outros de pensar ser a mesma coisa dentro de seus limites existenciais.
Fronteiras que não devem ser entendidas em um sentido titânico, ou seja, como barreiras absolutamente
fechadas e intransponíveis, uma vez que são fronteiras entre espaços existenciais vivos: como a pele de
um ser humano não é impermeável, mas transpirante, da mesma maneira a fronteira existencial é aberta.
Devemos lutar por nossas fronteiras, mas ao mesmo tempo devemos permitir que algo entre e saia delas.
No entanto, elas devem existir e devem ser explicitamente reconhecidas em um sentido não apenas
físico, mas também e, acima de tudo, metafísico, como fronteiras entre horizontes existenciais.
Esta é a única maneira de construir uma geosofia equilibrada e um mundo baseado na multipolaridade.
Caso contrário, chegamos a uma espécie de humanismo desprovido de essência, de conteúdo puramente
formal, que constitui a outra face do puro racismo, dado que, para o humanismo liberal, aqueles que não
compartilham seus valores não são considerados humanos e merecem ser destruídos.O que estamos
discutindo agora não é algo abstrato. Por exemplo, ao escrever e publicar o volume da Noomaquia
dedicado ao Logos norte-americano, segui precisamente o caminho do etnocentrismo comedido.
Você pode imaginar qual é o meu relacionamento com a cultura norte-americana: eu simplesmente a
odeio. Lidar com isso foi um verdadeiro desafio para mim. Se eu tivesse escrito uma crítica ao
imperialismo americano do ponto de vista russo, o resultado teria sido caricatural, teria escapado da
esfera da Noomaquia e não teria alcançado uma descrição do Logos norte-americano. Em vez disso,
cavando nas profundezas do Logos norte-americano, descobri coisas completamente diferentes,
totalmente estranhas para mim, e comecei a entender. Eu não o aprovo, mas agora eu o entendo, e eu
entendo de onde vem a mentalidade e o comportamento daquele povo: em seu titanismo, em sua criação
de uma civilização artificial pós-tradicional, na sua tentativa de construir uma espécie de sociedade
americana em escala global, essas são consequências do seu Logos, que se baseia no universalismo
desde o início. Repito, não aprovo tudo isso, mas isso é perfeitamente lógico. Existe um mundo
americano, e há um Logos do mundo americano que identifiquei na filosofia pragmática – uma filosofia
muito particular, muito diferente da filosofia européia, baseada na inexistência do objeto e do sujeito, uma
filosofia muito interessante – a partir do qual logicamente tudo se segue. Outro exemplo: após este
volume, investiguei os Logoi croata e polonesês e, para minha surpresa, descobri que não foram os
russos, mas os croatas que iniciaram as tradicionais tendências eslavófilas. Os croatas foram os primeiros
eslavófilos. Muito estranho…
Em resumo, há muitas coisas que podemos descobrir superando nosso etnocentrismo. Ao mesmo tempo,
devemos ter o cuidado de rejeitar completamente o universalismo imposto pelos globalistas, o que, no
entanto, não implica reabilitar o revanchismo, o nacionalismo, o retorno dos Estados-nação e assim por
diante. O que estamos falando é de uma nova corrente, uma nova maneira de pensar. E acredito que, se
aprendermos a usá-lo metodologicamente, poderemos resolver muitas questões concretas nas áreas
política, cultural, científica e em várias outras áreas.
Nas próximas lições, nos dedicaremos à aplicação dos princípios noológicos e geosóficos discutidos até
agora a casos específicos.

(Lição III) - O Logos da Civilização Indo-Europeia

Vamos agora aplicar os princípios metodológicos apresentados nas duas primeiras lições a uma realidade
concreta. Nós discutimos anteriormente a teoria dos três Logoi [1] e os conceitos de horizonte existencial
e historialidade [2]. Agora, vamos aplicar isso à civilização indo-européia [3].
Antes de tudo, vamos lidar com o horizonte existencial indo-europeu. Nesse sentido, é necessário
especificar que o conceito de horizonte ou espaço existencial pode ser aplicado em diferentes escalas,
tanto para pequenas comunidades quanto para médias ou grandes comunidades, unidas, por exemplo,
pelas mesmas origens linguísticas. O que, então, significa um horizonte existencial indo-europeu? Trata-
se de um vasto tipo de união, coincidindo com o espaço em que vivem os povos que falam línguas indo-
européias.
A família de línguas indo-européias inclui as línguas latinas e românicas, o grego, as línguas germânicas,
as línguas celtas, as línguas eslavas, o persa, o sânscrito e outras línguas prácritas, o hitita da antiga
Anatólia, o frígio, a língua ilíricas, as línguas bálticas, etc. É interessante notar que a língua romani
também pertence a essa comunidade linguística indo-europeia; os ciganos têm origens incertas, mas
também falam um idioma indo-europeu.
O mesmo pode ser dito da língua iídiche: ela também pertence a essa família, sendo uma língua
essencialmente germânica. Portanto, o ecumenismo indo-europeu, o horizonte existencial indo-europeu, é
mais ou menos coincidente com o espaço habitado pelos povos que falam essas línguas. É um espaço
imenso, que cobre um número enorme de populações, e de histórias, muito contraditórias e conflituosas,
mas que equivale ao espaço existencial dos povos que falam línguas indo-europeias. Na segunda lição,
vimos que podemos definir povos e culturas, por meio de seu horizonte existencial, pelo espaço, e
também através de sua historicididade. Portanto, é correto falar da história indo-européia, ou melhor, da
sequência de eventos históricos indo-europeus. Veremos mais adiante em que consiste essa sequência
geral de eventos e quais versões ela admite. Agora, em vez disso, focaremos nas principais
características do horizonte existencial indo-europeu, a fim de definir o Dasein indo-europeu. O que é o
Dasein indo-europeu?

Turan e a Hipótese Kurgan

Primeiro, devemos prestar atenção a um conceito muito importante, o conceito de Turan. Normalmente, o
termo Turan é usado para indicar o espaço em que o povo turco vive, mas, na realidade, esse termo é de
origem puramente iraniana, muito mais antigo que o aparecimento das primeiras tribos turcas na Ásia
Central ou nas estepes eurasiáticas. Turan é um termo indo-europeu pertencente à antiga religião
zoroastriana e foi usado na tradição iraniana muito antes da manifestação ou criação das primeiras tribos
turcas. Qual é o seu significado então? Sabemos que Firdūsī, um poeta persa da Idade Média, autor de
um poema épico sobre a sequência de eventos históricos iranianos chamado Shāhnāmeh.
O Shāhnāmeh baseia-se no conflito entre Irã e Turan, um dualismo emprestado do Avesta, das antigas
fontes pré-islâmicas. O Irã aqui indica as populações sedentárias de ascendência iraniana, tal como as
conhecemos, vivendo na Pérsia, na Média ao norte da Pérsia, no Cáucaso.
O traço essencial do Irã era o sedentarismo de seu povo. E Turan era o espaço em que os povos
nômades viviam. O significado original dessa palavra indo-européia é “tribo” ou “povo” (como no caso de
“deutschen” ou do “tautos” lituano). Turan, portanto, indica o povo das estepes; representa o espaço
habitado pelas tribos nômades, que na época do Avesta eram indo-européias. Estamos, portanto, lidando
com um dualismo cultural e civilizador muito interessante (ao qual retornaremos no final desta lição): O Irã
e Turan representam, em seu significado original, dois tipos ou versões de sociedades indo-européias,
respectivamente sedentárias e nômades. Esse dualismo é muito importante porque tem a ver com a
origem dos povos indo-europeus. No entanto, quando começamos a investigar que tipo de sociedade,
entre Irã e Turan, é mais antiga, chegamos à conclusão de que as tribos indo-europeias turanianas foram
as primeiras a aparecer e que, portanto, as populações iranianas na origem da cultura iraniana sedentária
eram tribos outrora nomádicas que se tornaram tribos sedentárias.
Todas essas tribos vieram do mesmo espaço turânico. Todos concordam que a origem da cultura indo-
européia está em Turan. No entanto, existem muitos debates sobre sua localização exata: para alguns, o
centro dessa cultura deve ser procurado muito mais a leste, para outros ao sul dos Urais, para outros
ainda na área do Mar Cáspio ou ao norte do Mar Negro. Mas, de qualquer forma, a pátria original, a
chamada Urheimat dos povos indo-europeus, deve estar localizada em algum lugar da vasta área que vai
do Danúbio ao sul da Sibéria. Então essa é a Urheimat, algo que não é exatamente pátria, mas pré-pátria.
Essa identificação é o princípio mais importante das origens da civilização europeia.
Um segundo ponto fundamental a ter em mente, se encontramos a localização original é que as primeiras
culturas indo-européias eram nomádicas, portanto, intimamente relacionadas ao pastoralismo. As
primeiras tribos indo-europeia turanianas eram essencialmente constituídas por pastores nômades. A
esse respeito, recomendo a leitura das obras de Marija Gimbutas, arqueóloga e lingüista lituana, que
ilustrou brilhantemente a expansão indo-européia. Segundo Marija Gimbutas, assim como muitos
cientistas e arqueólogos russos, a origem das tribos indo-européias deve estar localizada em algum lugar
ao sul dos Urais, perto da cidade de Chelyabinsk, onde recentemente foi descoberto um assentamento
turaniano muito antigo pertencente às tribos nomádicas indo-européias chamado Arkaim.
Sabemos que é sabedoria comum e posição científica consensual que as pessoas de onde se origina a
literatura indiana védica também vieram do norte, daquele mesmo espaço turaniano do qual os ancestrais
dos povos iraniano, helênico, romano, latino, germânico, celta, eslavo, báltico e hitita (uma  das tribos
mais antigas). Todos esses povos vieram do mesmo espaço turaniano, da mesma terra natal original, do
mesmo Urheimat. E todos eles eram portadores da mesma cultura pastoral nômade. De acordo com
Marjia Gimbutas, essas tribos indo-européias se espalharam por várias ondas migratórias, cada uma das
quais trouxe novas línguas, novas formas de falar, novas combinações de diferentes dialetos indo-
europeus que se constituíram na origem das línguas indo-européias modernas – eles eram portadores do
que foi chamado de cultura Kurgan.
Em nossa discussão, a cultura kurgan assume um papel de destaque. Podemos reconstruir, seguindo
essa teoria, toda a sequência histórica das fases de criação das sociedades indo-européias. O primeiro
ponto aqui é que existia uma Urheimat, a pátria indo-européia ancestral, localizada em algum lugar
possivelmente ao sul dos Urais. Eu não vou insistir no problema da localização concreta, mas há uma
maioria razoável de historiadores sérios que concordam com essa localização.
O segundo ponto é que os proto-indo-europeus eram todos eles povos nômades e pastorais; não se
tratava, portanto, de agricultores sedentários. Eles eram uma estirpe de guerreiros, foram os primeiros na
história a domesticar cavalos (a domesticação do cavalo surge exatamente do espaço turaniano) e
atravessaram as estepes para conquistar novos espaços: saindo da Urheimat, conquistaram tudo que
havia pela Eurásia entre a Índia e as Ilhas Britânicas. Portanto, na hipótese de Kurgan, os ancestrais de
todas as tribos e povos indo-europeus eram nômades e pastores, vivendo no espaço turaniano, todos
falando a mesma língua proto-indo-européia da qual todas as línguas indo-européias se originam e
elaboraram uma cultura que está na origem de toda sociedade e civilização indo-européia: uma cultura e
civilização proto-indo-européia que podemos identificar com o modelo de vida nômade, com a ética
guerreira e heróica, com a domesticação de cavalos e – muito importante! – com o círculo solar como seu
símbolo principal.
O etnólogo alemão Leo Frobenius, que consideramos bastante interessante, descreveu o ciclo histórico
de uma cultura dividindo-o em três etapas:
• o primeiro estágio é o Ergriffenheit, a "fascinação", você é fascinado por alguma coisa, possuído pelo
espírito, pela beleza, por um Deus, por um sentimento interior, etc;
• o segundo estágio é o Ausdruck, a “expressão” desta possessão, você se liberta dessa possessão
tentando expressar em imagens, em formas externas aquilo que te possui e te fascina;
• o terceiro estágio é o Anwendung, o “uso”, a aplicação do resultado dessa expressão ao campo técnico.
Podemos ver como, na fase turaniana indo-européia arcaica, todas as três etapas estão relacionadas ao
conceito de círculo. Antes de tudo, existe o sol, o sol como divindade, o sol como dia, o sol pretendido
como um signo apolíneo. O primeiro estágio é o fascínio com o sol, o ser possuído pelo sol, a adoração
do fogo, da luz, do céu, do próprio sol como o centro de seu fascínio. O segundo estágio é a criação de
seu símbolo, o símbolo do círculo, que é adorado por seus adoradores como algo que os possui, como
uma espécie de concentração interior do sol.
O terceiro estágio é a aplicação técnica deste símbolo: daí a roda aparece e, com ela, o carro de guerra.
É geralmente aceito que os primeiros aurigas foram indo-europeus. E com a ajuda do carro de guerra,
eles conquistaram todas as áreas da Eurásia, da Índia às Ilhas Britânicas, passando pela Pérsia, pela
península helênica e pelos Bálcãs. Todos os espaços europeus foram conquistados por meio de um carro
puxado a cavalo, baseado na roda, ou seja, na aplicação do círculo solar à área técnica. Em resumo: eles
eram fascinados pelo sol, adoravam o sol, usavam o símbolo do sol do ponto de vista técnico para criar o
carro de guerra e, através dele, expandiram os raios de sua cultura solar por todo o continente eurasiático
a partir da Urheimat turaniana. Esta é aproximadamente a sequência histórica indo-européia dos tempos
pré-históricos. É uma espécie de destino: ser como o sol, portanto brilhar e expandir a luz da própria
cultura solar a partir do ponto inicial, da terra natal original. Este é um ponto muito importante para
entender o que é o Dasein indo-europeu, que se reflete em todas as línguas e culturas indo-europeias.
Todos os povos indo-europeus são herdeiros desse Dasein indo-europeu porque falamos, pensamos,
somos definidos, somos pré-figurados e somos pré-definidos por esse Dasein solar indo-europeu da
cultura turaniana, pertencente às tribos nômades e guerreiras das estepes.
Essa foi a origem comum de todos os tipos sociais e culturais Kurgan, segundo Marija Gimbutas e muitos
outros. Kurgan é um lugar.
E o símbolo é o monte sobre a tumba. Kurgan é uma espécie de monte artificial sobre um túmulo. Isso é
muito importante porque se trata de uma verticalidade, de construção simbólica de uma sociedade
vertical. E o segundo símbolo é a presença de armas no túmulo, porque em outras culturas isso não era
visto. E o cavalo. Cavalo, arma e monte são os três símbolos desse tipo kurganiano de cultura. Eis o
Dasein indo-europeu. Do coração de Turan –  que podemos presumir estar em algum lugar ao sul dos
Urais, nos arredores das estepes cazaque-russas, onde aliás foram encontradas as primeiras rodas e os
primeiros vestígios de domesticação de cavalos – hoube, portanto, uma espécie de expansão, que não foi
apenas física (a fim de procurar novas terras para alimentar os cavalos e o gado) mas também cultural,
como imitação do sol: a partir da “pátria sagrada” da tradição indo-européia, do pólo solar localizado no
coração de Turan, uma expansão em várias ondas dos raios solares da cultura Kurgan começou em
todas as direções possíveis.
Os principais portadores dessa cultura, as tribos nômades indo-européias, colonizaram quase todo o
continente eurasiático, do extremo ocidente à Índia e atravessando a Índia até o Oceano Índico,
expandindo o budismo, como produto da cultura indiana e continuação da influência indo-europeia, até a
cultura chinesa, que era completamente diferente. 
A conclusão mais importante que podemos tirar é que o protótipo da cultura indo-européia objeto de
nosso estudo, o tipo mais puro dessa cultura, se encontra nas tribos nômades indo-européias, como as
atuais tribos afegãs (pashtun), os ossetas (descendentes diretos dos sármatas) ou iranianos-
paquistaneses (balúchis) que preservaram e renovaram esse tipo de cultura turaniana e algumas delas se
tornaram sedentárias apenas recentemente. Essa ideia também estava presente em Oswald Spengler.
Há um escrito póstumo e incompleto de Splengler, publicado recentemente, intitulado A Epopeia do
Homem, em que o autor de O Declínio do Ocidente propõe a existência de três protocivilizações: Atlântida
(com sua cultura megalítica), Kush (que cobre a área afro-asiática entre o norte da África e o Oriente
Próximo), e Turan (que abrange a área da Europa Central à China).
Essa teoria se encaixa perfeitamente na hipótese Kurgan de Marija Gimbutas e nos estudos lingüísticos
proto-indo-europeus, uma vez que a origem comum das línguas indo-européias é identificada na mesma
área indicada por Spengler, que por sua vez coincide com a Urheimat proto-indo-europeia a partir do qual,
de acordo com a teoria kurgan, os ancestrais dos povos indo-europeus se originam. Spengler, Gimbutas,
arqueólogos, linguistas: todos indicam a mesma área, o Turan.

A Estrutura do Logos Indo-Europeu

Agora, o que podemos dizer sobre a estrutura noológica da sociedade turaniana proto-indo-européia?
Aqui, um autor muito importante, Georges Dumézil, vem em nosso auxílio, e eu recomendo a leitura de
suas obras. Dumézil foi um historiador francês que dedicou toda a sua vida a uma brilhante investigação
da cultura indo-européia, realizando um exame comparativo escrupuloso de todos os tipos de mitologias,
religiões, lendas, canções, simbolismos etc., pertencentes às tradições escritas e orais dos povos indo-
europeus.
Entre os numerosos livros que ele escreveu, recomendo a leitura de um texto muito importante intitulado
A Ideologia Tripartida dos Indo-Europeus [4], que é uma espécie de sinopse de seus estudos sobre esse
tópico.O principal resultado de sua pesquisa sobre a estrutura da sociedade indo-européia é a teoria
trifuncional. Dumézil chegou à conclusão de que todos os tipos de culturas indo-européias, antigas ou
modernas, eram baseadas em uma divisão funcional tripartida. Em essência, isto é, toda sociedade indo-
européia consiste em três castas:
• a primeira casta, correspondente à função da soberania religiosa, é a dos reis-sacerdotes; eles não
eram considerados homens, mas seres divinos ou sagrados: reis sagrados ou sacerdotes sagrados. Os
reis-sacerdotes tinham sua própria ética, uma metafísica própria, a ideia de que eles possuíam um tipo
especial de espírito feito de luz, e seu papel estava baseado na própria idéia do sol; em outras palavras,
eles representavam o “Sol na Terra”. Eles eram fogo, eles eram luz, e representavam a luz como sol
divino. Essa casta pode ser comparada à casta brâmane indiana;
• a segunda casta, correspondente à função da força, do poder bélico, é a casta dos guerreiros. No
sistema iraniano, os guerreiros eram aurigas, na medida em que o carro de guerra constituía o principal
símbolo da expansão no espaço turaniano das tribos indo-européias. No sistema indiano, a casta
guerreira corresponde à dos xátria;
• finalmente, temos a terceira casta, a dos simples pastores que criam animais (gado, cavalos, etc.).
Toda a sociedade representava uma espécie de exército, um exército que se movia no espaço para lutar
e morrer, porque não havia realmente morte em nossa compreensão. Havia um tipo de “elevação”. Cada
alma era considerada como uma faísca celestial que descia à terra para retornar ao céu.
Consequentemente, o objetivo máximo de um guerreiro não era sobreviver, mas morrer jovem em batalha
e matar seus inimigos.
Da mesma maneira, a tarefa do sacerdote não era viver muito, mas tornar-se sábio, puro, purificar a si e
aos outros, enquanto o objetivo do pastor era ser leal e corajoso, e possuir muitos rebanhos, ovelhas e
cavalos. Esta sociedade era caracterizada por uma hierarquia vertical rigorosa, com sacerdotes no topo,
os guerreiros no meio e os pastores na base. Os pastores estavam na base porque lidavam com os
aspectos mais materiais da vida, por isso eram considerados menos “puros” e menos perfeitos, mas ainda
assim eles aspiravam a ser sábios como os reis esacerdotes e bravos como os guerreiros.
O sistema de valores, portanto, não se apoiavam nos simples pastores e seus objetivos, mas no centro
havia sacerdotes e guerreiros, que definiam os valores éticos da terceira casta. Nesta condição de
verticalidade absoluta, podemos identificar a variante mais pura do Logos de Apolo, sua mais expressivo,
brilhante e clara manifestação noológica.
Todos os vivos eram considerados como descidos da luz solar, uma luz que desce aos sacerdotes
sagrados, aos guerreiros por meio dos quais a expansão indo-européia ocorre e, finalmente, nos
pastores; uma luz celeste que desce para voltar ao céu novamente. É interessante notar o quão dura era
a terra nas estepes turanianas, de uma qualidade que a tornava inadequada para semear e plantar; era,
portanto, um tipo de espaço que predispunha o retorno ao céu daquilo que descia sobre ele, já que não
havia dimensão subterrânea.
As criaturas simbolicamente mais demoníacas, mais negativas, eram de fato o rato ou cobra que viviam
abaixo da superfície das estepes. Essa sociedade não tinha raízes, ou melhor, as suas verdadeiras raízes
estavam no céu. Em uma tradição do tipo, a sociedade, a realidade humana, não representava algo que
crescia da terra, mas que crescia do céu, expandindo seus galhos na direção da terra – precisamente na
forma das tribos indo-européias – e mais tarde retornando às raízes que a geraram, o que significa
retornar ao céu, aos Deuses, ao fogo. Daí a prática da cremação, para que os mortos possam retornar à
origem solar, ao fogo celestial.
Este é um conceito diametralmente oposto ao que estamos acostumados hoje. Essa tradição indo-
européia puramente nômade correspondia a um Logos puramente apolíneo. Podemos dizer que ser indo-
europeu significa ser apolíneo. E todo tipo de sociedade indo-européia que conhecemos – dos celtas aos
alemães, passando pelos latinos, ilírios, trácios, helenos, gregos, hititas, iranianos, indianos, sármatas,
eslavos, bálticos, etc. – estava originalmente fundado neste logos apolíneo.
O nome “Apolo” é derivado da Grécia, mas podemos facilmente identificar o mesmo conceito nos Vedas,
no Avesta, nos mitos germânicos de Odin, nas lendas e mitos celtas. Dumézil reuniu todas essas
mitologias para compará-las e, lendo suas obras, as obras da escola fundada por ele e executada por
Émile Benveniste – uma das mais importantes autoridades linguísticas do século XX, criador de uma
espécie de dicionário de termos indo-europeus que demonstra a validade da hipótese duméziliana -, tudo
parece muito claro. O segundo ponto da teoria de Dumézil sobre o qual eu gostaria de me concentrar é o
que ele chama de “ideologia indo-européia” [5]. A ideologia indo-européia é uma estrutura imutável e
imensurável, representada na língua, na cultura, nos símbolos e na mentalidade dos povos indo-europeus
que é exatamente a mesma da época do Urheimat.
Em outras palavras, existem princípios constantes que influenciam nossa concepção do cosmos, da
sociedade política, da história. Consideramos a sociedade como a imaginamos: no topo, colocamos uma
intelligentsia ou classe de filósofos, eles são seguidos pelas forças armadas, depois o resto da população.
É uma visão vertical e hierárquica, com o presidente ou líder no topo como uma espécie de rei sagrado
antigo, seguido pela classe administrativa ou militar correspondente à casta dos guerreiros e, finalmente,
ao restante da população representando a terceira casta.
Essa visão é inerente a nós de uma maneira inconsciente, mas se analisarmos toda sociedade indo-
européia – tanto a moderna quanto a antiga, seja cristã ou pagã, oriental (indiana, turânica) ou ocidental
(celta, germânica, eslava, francesa, latina etc.) – descobriremos que ela é construída precisamente em
torno desse eixo trifuncional. Segundo Dumézil, essa é uma ideologia inalterada pela qual podemos
interpretar a história fundamental de qualquer Estado indo-europeu: sempre havia um mensageiro de
Deus, algum rei sagrado vindo de fora, porque a fundação do reino é sempre de fora para dentro, de
Turan vem os nômades para fundar a cidade capital, que constituía uma espécie de fortaleza militar
guarnecida para defender sua posição, e que não era a continuação da aldeia. Trata-se de algo criado de
fora para dentro.
Esse constituía o cenário principal, em cuja base havia, portanto, uma lógica militar de conquista por
heróis sagrados vindos de fora. Posteriormente, uma sociedade trifuncional era estabelecida, dentro da
qual as relações entre sacerdotes e guerreiros, por um lado, e a massa da população, por outro, eram por
vezes conflitantes; no entanto, nos vários mitos crônicas, histórias, histórias religiosas, canções antigas do
folclore e assim por diante, encontramos descritas de muitas maneiras diferentes as mesmas três
funções, que constituem o principal conteúdo da tradição indo-européia, através da qual se estabelece a
verticalidade que caracteriza esse tipo de sociedade.

Aniliginia

Agora chegamos à relação entre os sexos nessa sociedade turaniana. Quando estudamos as relações
entre os sexos na sociedade indo-europeia nomádica nos deparamos com algo bem interessante.
Gimbutas, em certa ocasião, designou para a organização social que teria existido na Europa antes do
patriarcado, antes da expansão indo-européia, caracterizada pela equivalência entre os sexos em uma
sociedade matriarcal, o neologismo gilania. A gilania corresponderia não a uma dominação da mulher
sobre o homem, mas a uma amizade no contexto de uma dominação do matriarcado. Em outras palavras,
a gilania é a igualdade entre homens e mulheres, mas vista do ponto de vista feminino.
Para estudar a relação entre os sexos na sociedade nômade indo-européia, eu proponho um neologismo
oposto: aniliginia, que também indica uma parceria substancial entre homem e mulher, mas do ponto de
vista masculino, indo-europeu, turânico. Estamos, portanto, lidando com dois neologismos: gilania, do
grego antigo γυνή (gynē, a mulher), e aniliginia, do grego ἀνδρός (andròs, o homem).
Ambos indicam paridade sexual, mas Gimbutas coloca a mulher em primeiro lugar, enquanto na
sociedade turaniana patriarcal, é o macho que é selecionado como elemento estruturante. Não havia
submissão da mulher pelo homem, mas uma parceria fundada na primazia do guerreiro solar e celestial.
Homem e mulher eram equivalentes, mas em uma equivalência pautada no domínio enraizado na
natureza solar do homem. 
Na sociedade turaniana, os homens estavam sempre em guerra, enquanto as mulheres normalmente
ficavam com os filhos.
Elas ficavam na fortaleza ou no acampamento. Mas a vida não era pacífica, pois em todos os lugares
havia o mesmo tipo de sociedade com características muito agressivas e expansionistas. Como resultado,
as mulheres eram forçadas a defender as cidades, e por isso elas também tinham que ser igualmente
heróicas, guerreiras. Caso contrário, elas estariam sujeitas a conquista.
À sua maneira, elas também eram guerreiras e cultivavam os mesmos valores que os homens. Isso se
refletia em muitas das tradições nômades turanianas. Por exemplo  antes do casamento, havia uma
espécie de luta entre rapaz e moça e, se o homem não pudesse vencer a mulher, o casamento não
poderia ocorrer. Era uma luta em que o homem tinha que testemunhar sua força, o seu poder sobre o
poder dela. Isso se reflete no Complexo de Brunhilda, na psicanálise. No leito nupcial havia uma
continuação da luta entre homem e mulher, e caso ele fosse superado, a mulher poderia até mesmo
matá-lo, se ela quisesse. Não estamos falando de uma sociedade na qual a mulher está sujeita ao
homem, mas de uma amizade militar entre homem e mulher, que é uma característica da aniliginia,
baseada no reconhecimento do valor normativo do patriarcado. 
Um caso extremo é o tipo da sociedade amazônica. Essa sociedade não era “feminista” como se pode
imaginar, pois estamos lidando com uma projeção de um tipo de valores e cultura masculinos – coragem,
força, poder, etc. – em uma sociedade feminina.
Portanto, não é exatamente uma forma de matriarcado, mas uma forma limitadora de patriarcado, uma
vez que as amazonas haviam aceitado todos os tipos de comportamento masculino. Isso também é uma
expressão de aniliginia. O tipo de sociedade turânica indo-europeia é, portanto, caracterizado pela
aniliginia, com mulheres poderosas, muito fortes e independentes, capazes de se defender de possíveis
agressões. Isso é puro patriarcado.
Não havia muitas Deusas nas mitologias indo-européias, e quando estavam presentes muitas vezes elas
tinham características masculinas. Consideremos a divindade grega Atena, por exemplo. Ela era virgem,
era sábia como os sacerdotes e corajosa como os guerreiros. Não é um tipo de mulher “maternal”, mas
uma mulher turânica. Atena reflete os valores masculinos: a sabedoria, característica mais importante da
primeira casta, da primeira função na teoria duméziliana, e a coragem, o espírito heróico, principal atributo
dos guerreiros pertencentes à segunda casta.
Não há espaço nessas imagens para a maternidade, para o destino puramente terreno das mulheres.
Este aniliginia está na origem do caráter apolíneo do Logos indo-europeu.

A Ideologia Indo-Européia em Platão


Aqui podemos nos referir a Platão. Platão é um pensador puramente indo-europeu e, como já foi dito na
primeira lição, ele é o maior representante do Logos de Apolo. Também foi considerada a encarnação do
mesmo deus Apolo por seus seguidores. Examinando três de seus diálogos, podemos ver a
representação clara do universo trifuncional, do cosmos tripartido que caracteriza a cultura turânica indo-
européia. No Timeu, podemos ver como a cosmologia platônica é baseada em três tipos, três γένος
(genos). Primeiro, exemplo ou paradigma (o Pai), segundo, imagem ou ícone (o Filho), e finalmente temos
o conceito não muito claramente definido de matéria ou espaço, khōra.
Este último não corresponde à matéria como a entendemos, à “substância”, mas ao espaço. Assim, na
origem existe o paradigma, o Pai; então vem o Filho com  reflexo do Pai, e então, uma espécie de
espaço, que não corresponde tanto à figura da mãe quanto à mulher que nutre, que fornece o espaço
onde esse ato de reflexão ocorre. Assim, existem três níveis de realidade em Platão e o último, khōra, é
apenas espaço e nada mais; esse espaço não representa a mãe dando à luz, mas algo que acolhe a
influência que vem do topo da hierarquia, do paradigma, e a envia de volta.
Esta é uma versão da cosmologia puramente indo-européia; podemos considerá-la uma tipologia
cosmológica puramente apolínea, aceita enquanto tal no Cristianismo, no Medievo, na cultura romana,
etc. Em outras palavras, a cosmologia contida no Timeu platônico é normativa para todas as linhagens
indo-européias. Por exemplo, podemos identificar um modelo semelhante nos Vedas, bem como na
tradição iraniana. Temos substancialmente três mundos: o mais alto, o do meio e o terceiro, que constitui
a superfície da terra a partir da qual o “retorno” começa.
Na tradição neoplatônica temos a ideia da providência e retorno. Tudo vem do céu, desce do Pai Celestial
e depois volta à origem, e isso é a epistrophe (ἐπιστροφή). Trata-se de um ciclo vertical. A vida é o evento
do retorno e a morte não é o final, é um momento do retorno. Assim quando estamos imanifestos na
Terra, existimos em uma condição superior. Em outras palavras, a terra constitui o ponto mais baixo da
descida de nossa posição paradigmática interior, de nosso próprio espírito (Atman no hinduísmo): nossa
alma imortal desce para subir, para retornar à origem, ao topo, ao que há de mais elevado.
Da mesma forma que foi dito para o Timeu, na República de Platão, temos o Estado ideal dividido em três
classes: filósofos, guerreiros e produtores. Os filósofos, equivalentes aos sacerdotes da teoria de
duméziliana ou, por exemplo, os brâmanes na sociedade hindu tradicional, são chamados a governar em
virtude do fato de serem devotados à contemplação dos mais altos princípios, da origem da luz celestial,
do fogo divino, uma vez que eles deixam a caverna platônica para observar a unidade, o sol e as estrelas.
Seu direito de governar os outros deriva do seu vínculo com o céu.
Os guerreiros, no Estado ideal, devem seguir os filósofos, enquanto todos os outros, ocupados em
assuntos materiais, devem obedecer a ambos.
Assim, no Estado ideal de Platão, encontramos o conceito de trifuncionalidade. O mesmo Platão, no
diálogo do Fedro, faz uma descrição tripartida da alma usando o mito da “carruagem alada”.
Na teoria platônica, a alma é composta de três elementos: há um cavalo preto representando a επιθυμία
(epitimia), a concupiscência, a tendência para os aspectos inferiores e materiais do mundo corporal
(relações sexuais, nutrição e assim por diante); então há um cavalo branco que coincide com o θυμός
(thumos), isto é, o desejo de glória, de reconhecimento, um valor próprio dos guerreiros e conectado não
a aspectos materiais, mas espirituais; finalmente, temos o cocheiro, que representa o νοῦς (nous), essa é
a razão, a parte intelectual central da alma, e cuja tarefa é dominar e guiar os dois corcéis, o branco em
direção ao mundo das idéias e o preto em direção ao mundo sensível, para alcançar o hiperurânio.
É interessante notar como nessa metáfora do Fedro vemos presentes mais uma vez o cocheiro, a
carruagem e os cavalos, que são os elementos dessa cultura proto-indo-européia sobre a qual falamos
inicialmente. Assim, da mesma forma que a divisão tripartite funcional da sociedade, também a alma é
composta de três partes dispostas verticalmente, onde o cocheiro corresponde ao sacerdote (o brâmane
na tradição indiana), o cavalo branco corresponde ao guerreiro glorioso (o xátria) enquanto a inclinação
material do cavalo preto, representando os piores aspectos segundo Platão, corresponde à terceira e
última casta. Alma, sistema político e cosmos, o mundo ao nosso redor, psicologia, politologia e
cosmologia, tudo isso se baseia no mesmo esquema tripartido indo-europeu. Não é por acaso que o
filósofo britânico Whitehead afirmou que a filosofia européia é apenas “uma série de notas de rodapé
sobre Platão”. Platão é o filósofo por excelência.
Ele é o filósofo absoluto. Críticas a Platão, desenvolvimentos da obra de Platão, debates com Platão
(como no caso de Aristóteles): tudo gira em torno dele. Se considerarmos o que é a estrutura indo-
européia, podemos chamá-la corretamente de platonismo.
O platonismo está fundado no conceito de eternidade, portanto, nunca pode ser “passado”, já que a
eternidade não é o passado, mas coincide igualmente com o passado, o presente e o futuro. Assim,
houve um platonismo do passado, mas também pode e deve haver um platonismo do presente, assim
como um platonismo do futuro. Do mesmo modo, pode-se afirmar que, na base do platonismo, existe o
Dasein indo-europeu e que ele não pertence apenas ao passado, mas é também o nosso Dasein atual;
portanto, se somos indo-europeus, podemos dizer que somos platonistas, e somos indo-europeus,
falamos línguas indo-européias, sendo platonistas. Este ponto é muito importante, porque nesta versão
indo-européia do Logos não existe uma concepção moderna de tempo: no platonismo, o tempo é vertical
– o tempo é “a imagem móvel da eternidade”, seu reflexo, diz Platão – então descemos, chegamos aqui
na terra, a fim de subir, voltar à origem. Não nos realizamos na terra, pelo contrário, aqui somos apenas
as “testemunhas da glória de Deus”. Tudo isso está presente em nossa tradição cristã. Isto é platonismo
puro, em todos os sentidos.

Conclusão

Para concluir, gostaria de fazer algumas considerações. Primeiramente, na cultura indo-européia, o Logos
vertical apolíneo não aparece de uma única forma. O Logos de Apolo pode se manifestar de diferentes
maneiras; por exemplo, podemos comparar duas de suas principais formas: a forma platônica e a forma
védica. No platonismo, há um domínio absoluto da luz. Ela desce saindo da fonte, atinge o ponto mais
baixo e mais escuro, o ponto mais distante, a terra, e depois retorna placidamente e feliz à sua origem.
Não há nada que possa se opôr à luz. Em outras palavras, nada pode se envolver seriamente na batalha
contra o céu, contra Deus, contra o Sol. Existem algumas forças de baixo, da terra, que tentam nos
manter aqui,  impedindo nossa morte, impedindo o “retorno”, mas na concepção platônica elas adquirem
uma importância secundária e podem ser facilmente conquistadas recorrendo à tradição ascética,
seguindo a disciplina, as ordens, integrando-se na sociedade heroica, abraçando a παιδεία (paidéia), o
caminho educacional da Grécia antiga que nos ensina como “retornar”. O sistema educacional na
sociedade platônica não consiste apenas na obediência formal, mas na aceitação interna da ordem e no
seguimento da tradição, tornar-se homens e mulheres indo-europeus em todos os aspectos, para poder
percorrer o caminho vertical do “retorno”. Nesta concepção, não há lugar para o conceito de mal.
Como afirmam os platonistas, o mal corresponde a uma condição de diminuição do bem; não existe mal
em si mesmo. Se o bem é a origem, o sol, o céu, Deus, o mal é a distância em relação ao bem e
corresponde a uma espécie de teste para a alma, uma experiência que tenta colocar obstáculos em
nosso caminho para o “retorno” a nós mesmos. Este ponto é desenvolvido de uma maneira diferente pela
metafísica védica do Advaita Vedanta, em que se faz presente o conceito de que saímos da realidade e
da verdade ingressando no mundo da ilusão para superar a ilusão e retornarmos a nós mesmos, porque a
nossa essência é Deus. Segundo os índianos, nossa essência é divina, nós somos Deuses, só que
esquecemos isso.
Mesmo nesta concepção, não há problema: o Advaita Vedânta é uma versão não-dualista do Logos de
Apolo, para o qual tudo o que não é divino é, na verdade, igualmente divino, apenas ainda não está
consciente disso. Não há trevas nesta versão.
Escuridão é simplesmente a ausência de luz. A escuridão absoluta, portanto, não pode existir. Existe
apenas uma relativa obscuridade, que é uma espécie de escurecimento da luz; um apagão que, como
podemos observar pela natureza, é apenas a fase que precede o amanhecer. É possível chamar tudo
isso de platonismo advaita. Não há dvaita, não há dualidade.
Em resumo, as formas platônica e védica são formas não dualistas do Logos de Apolo. No entanto, ao
lado deles, há outra formulação do Logos de Apolo, que encontramos na tradição iraniana, por exemplo,
que é problemática. Também a tradição iraniana, como a grega e a indiana, tem suas raízes na cultura
proto-indo-européia, vindo de Turan, e constitui uma forma na qual o Dasein indo-europeu se manifesta.
No entanto, a tradição iraniana considera as forças opostas de maneira diferente.
No que podemos chamar de platonismo dvaita (dual), a escuridão não é simplesmente a ausência ou
escurecimento da luz, mas algo mais; em outras palavras, o mal existe por si mesmo. Isso dá origem a
uma espécie de titanomaquìa muito intensa, uma luta entre luz e escuridão, de proporções seríssimas.
Se na perspectiva platônica advaita (não-dual) não há oposição real, mas uma questão de superar uma
ilusão, na concepção platônica dvaita (dual), pelo contrário, temos que enfrentar e superar um verdadeiro
“inimigo” porque o mal existe por si mesmo, não sendo apenas uma ilusão, um escurecimento. No fim do
dia, trata-se de uma ilusão, mas essa ilusão é real quando estamos inseridos na realidade.
Estamos, portanto, lidando com uma guerra real, um conflito muito sério porque as forças das trevas, ou
do que se opõe ao Logos de Apolo, desta vez são relevantes e combativas. 
Na tradição indo-europeia platônica advaita, não há oposição ou a oposição não passa de um jogo, uma
brincadeira. Plotino disse uma vez que "o jogo é levada a sério apenas pelas marionetes. Os que brincam
entendem que tudo isso não passa de um jogo e não é sério". Mas no caso abordagem dualista, do
platonismo dvaita, não é apenas um jogo. Há um conflito. Há uma guerra. E essa guerra é séria porque o
poder das trevas, daquilo que se opõe ao Logos de Apolo, dessa vez é imenso e é comparável ao poder
da luz. O Logos apolíneo puro, tal como se encontra presente no platonismo ou hinduísmo não-dualista
não conhece o Logos de Cibele, ele não o considera importante. Ele não é considerado digno de atenção,
pois ele é visto apenas como a superfície da terra à qual descemos para subir e não temos acesso à
dimensão subterrânea do “buraco de rato (ou das serpentes)” localizado abaixo da superfície.
Ninguém nessa perspectiva conseguiria conceber um destino na terra, dentro da terra, no buraco, tendo
algo em comum com a cobra ou com o rato. Então em muitas representações arcaicas Apolo pisa a
serpente, o rato ou a topeira. Para continuar esta investigação sobre o Dasein indo-europeu e o horizonte
existencial indo-europeu, devemos, portanto, estudar esta versão dualista da estrutura indo-européia, e
para fazer isso, devemos examinar o que acontece quando as tribos nômades turanicas se tornam
sedentárias. Nem todas as tribos indo-européias durante a história se estabeleceram; por exemplo, povos
e grupos étnicos como os kalashas, os nuristanis, os pashtuns, continuaram a tradição nômade até hoje,
descendentes dos citas, dos sármatas, dos alanos, dos iaziges e dos ossetas. Mas o que acontece
quando, os indo-europeus se depararam com uma sociedade sedentária e a subjugaram, se tornando
eles próprios sedentários? Este será o assunto da próxima lição.

(Lição IV) - O Logos de Cibel

Para entender como a cultura indo-européia passou do estágio nômade para o estágio sedentário e o que
aconteceu durante essa transição, durante essa mudança na estrutura do momento de Noomaquia,
devemos considerar qual era o horizonte existencial que existia em Turan. As tribos indo-européia
turanianas turânicas chegaram ao leste da Europa, na Anatólia, nos Bálcãs, no território de Elam na
Pérsia, no espaço Indiano, mas todos esses territórios não estavam vazios. Havia alguma outra
civilização, havia outros horizontes existenciais, com seu próprio momento de Noomaquia diferente
daquele que caracteriza as tribos nômades das estepes. Estamos falando de civilizações pré-indo-
europeias que estavam localizadas na Europa, nos Bálcãs, na Anatólia, na Pérsia e na Índia.

Velha Europa

Seguindo a teoria de Marija Gimbutas que mencionamos na lição anterior, existia na Europa, antes da
chegada dos indo-europeus, a civilização da “Grande Deusa“, uma civilização muito antiga cujos primeiros
pólos estavam localizados nos Bálcãs e na Anatólia. Lepenski Vir e Vinca na Sérvia, Çatalhöyük na
Turquia e outros sítios arqueológicos nos contam de uma civilização da Grande Mãe nascida cerca de 7-8
mil anos antes de Cristo. As primeiras ondas migratórias das populações turânicas, por outro lado,
aconteceram por volta de 3000 a.C. Portanto, essa civilização existiu antes do aparecimento dos indo-
europeus. No caso da Europa, aplica-se o conceito usado por Marija Gimbutas de uma "Velha Europa" ou
"Paleo-Europa".
Essa civilização paleo-europeia teve seu centro em sítios arqueológicos localizados na Sérvia, Bulgária e
outros territórios dos Bálcãs: Karanovo, Starcevo, Tisza, Körös, Panônia, etc. A civilização da “Velha
Europa” era uma civilização matriarcal e era caracterizada pela predominância total de figuras femininas,
ausente quaisquer figuras masculinas; além de túmulos sem armas. Essas eram sociedades sedentárias
agrícolas que possuíam uma estrutura completamente diferente daquela das tribos indo-europeias de
Turan.
A esse respeito, recomendo a leitura de "Muterrecht" (O Direito Materno) [1], uma obra clássica de
Bachofen, autor já citado na primeira lição. Nesta obra fundamental do século XIX, são examinados os
aspectos matriarcais pertencentes às tradições das sociedades ginecocráticas gregas e anatólias, como
os lídios, os lícios, os cários, os frígios, os hatitas, etc. Existem vários debates sobre quem eram esses
paleo-europeus e quais povos modernos são seus descendentes. Algumas das hipóteses mais plausíveis
envolvem povos pré-indo-europeus como os pelasgos, os etruscos e os hatitas (pré-hititas), assim como
populações mais modernas do Cáucaso como os georgianos, os daguestanis, os avaros, os chechenos e
os abecázios como continuadores dessas populações paleo-européias. 
No entanto, o que importa é que se nos referirmos às obras de Bachofen, se seguimos a teoria de Marija
Gimbutas ou outros autores, todos concordam que, antes das ondas migratórias que carregam a cultura
Kurgan, havia uma civilização diferente com um Logos diferente, e estudando esse Logos não apenas a
partir de símbolos, mas também de mitos e contos incorporados nas tradições indo-européias (por
exemplo, hitita, helênica ou latina), podemos reconstruir suas características fundamentais. Em primeiro
lugar, a civilização paleo-européia era uma civilização ctônica e mundana: não havia idéia de “Pai
Celestial” ou de Luz que desce dos Céus. Pelo contrário, havia a ideia do “nascimento” a partir da Grande
Mãe representando a terra e a água, que dá vida a tudo o que existe.
Esta é uma lógica que é substancialmente o oposto da apolínea: existe um tipo de substância primordial
que dá tudo à luz. Para sublinhar esse conceito, as figuras mais antigas da Mãe têm a parte inferior do
corpo descrita de maneira realista, mas não há cabeça, não há rosto nem mãos: a parte superior do corpo
é deixada de fora porque não é o centro da atenção.
O pivô em torno do qual tudo gira é a barriga de grávida da mãe, que corresponde à origem e ao mesmo
tempo ao fim de tudo, ao berço e ao túmulo de tudo. Este era o centro dessa civilização e o centro de sua
sacralidade. Esta civilização foi caracterizada também pelo desenvolvimento de algumas grandes
cidades, com locais sagrados no centro, mas sem muralhas. Estes eram assentamentos muito diferentes
dos indo-europeus, que pelo contrário estavam todos equipados com muralhas, para indicar sua natureza
como construções militares.
O assentamento indo-europeu típico não foi desenvolvido a partir de uma ou mais aldeias assentadas,
mas constituía uma construção artificial estabelecida para conquistar o território em que iria surgir.
Portanto, podemos individualizar dois tipos de cidades: as muradas (indo-européias, turanianas) e as sem
muros (pacíficas, sedentárias, agrícolas), que constituíam pura manifestação do Logos de Cibele.
A cultura agrícola foi desenvolvida pelas mulheres. Os primeiros cultivadores eram mulheres que
trabalhavam na terra como se fossem parteiras ou doulas. A enxada é o instrumento para preparar o
campo para a semente, e essa era uma ferramenta feminina.
A terra era trabalhada pelas mulheres. Não é por acaso que a principal ferramenta para arar a terra e
prepará-la para semear era a enxada, já que ela era uma ferramenta leve e fácil de manusear – uma
ferramenta que poderíamos dizer “feminina” – e não um arado. Portanto, havia pequenas parcelas de
terra trabalhadas por mulheres sem o uso de animais (cavalos, bois, etc.). Esse é um tipo de civilização
com uma estrutura completamente diferente, sedentária em vez de nomádica, matriarcal em vez de
patriarcal, ctônica em vez de urânica. A mãe é ctônica, o pai é celestial. Não existe Pai Celeste no tipo
puramente cibelino de civilização. Há apenas a mãe que cria, que nutre, que destrói e que dá a vida de
novo. Então tudo brota da mãe e retorna à mãe. E isso fornece uma imagem inteiramente diferente do
cosmos, onde o espaço interior da terra é o centro. Trata-se de algo oculto. Não é o espaço aberto do
céu. Não é o fogo, é a água. Não é o dia, é a noite. Não é o aberto, é o fechado. Não é o homem, é a
mulher. É algo que emerge do interior, tal como a mulher dá a vida de dentro para fora. E o ventro da
mulher é a própria imagem do cosmos, do mundo. Este é um mundo compreendido de uma maneira
completamente diferente. O centro não está acima, mas abaixo. A terra não é uma superfície dura na qual
nos detemos para retornar ao empíreo. As árvores não nascem de cima ara baixo, as suas raízes não
estão no céu, mas nas profundezas.
Tudo se baseia na emergência a partir do subterrâneo. O homem não é cremado, como entre os indo-
europeus, o que significava devolver o homem ao fogo divino, à luz, mas enterrado em tumbas.
Este é o Reino das Mães e não o Reino dos Pais. Mas não se trata aqui de mera oposição direta, e sim
de uma perspectiva inteiramente outra. Não poderíamos compreender o conceito de Matriarcado se
simplesmente invertermos o sentido do Patriarcado. É uma outra coisa. O Patriarcado, ou civilização indo-
europeia, se funda na linha ou no raio solar. Mas aqui tudo se baseia na curva ou na espiral. 
Mesmo a maneira de matar é diferente. Aqui você não mata diretamente, não corta a garganta, você
aprisiona por artimanhas e sufoca de maneira gentil e confortável. O matriarcado não corresponde à
versão feminina da dominação masculina (indo-européia), mas é um tipo particular de sociedade baseado
no eufemismo: a morte é vida, as trevas são luz, o sofrimento é a alegria, o passivo é ativo. Morte e vida
são entendidas de maneira completamente diferentes.
Não existe espírito imortal que desce dos céus. Há apenas nascimento e morte de uma mesma
substância, recombinada de diferentes maneiras. A sociedade é matrilineal, com o pertencimento À
família definido pela Mãe e o Pai é desconhecido ou pouco importante, porque não é ele quem dá vida. É
apenas a mãe que gera. E em casos radicais não há pai, porque a ideia de que o pai está envolvido na
concepção da criança é patriarcal.
No matriarcado é a mulher que gera a criança, tendo intercurso com criaturas aladas ou serpentes ou
espíritos invisíveis ou incubi que emergem através da noite nos sonhos. 
Nesta cultura, as figuras masculinas estão totalmente ausentes: em suas representações, a Grande Mãe
estava cercada em ambos os lados por feras, principalmente duas, que gradualmente obtiveram
características humanas até se tornarem primeiro meio fera e meio homem, e finalmente o homem em
todos os aspectos. O homem era, portanto, uma espécie de derivado, o desenvolvimento humano de uma
fera, por sua vez, nascido da Grande Mãe, desde que a criação se origina da substância primordial que
dá vida. Isso se traduz em um simbolismo que difere totalmente do que vimos no estudo da cultura
turânica indo-europeu. Aqui a única figura masculina presente é a da cobra (ou alternativamente do
peixe), algo que vive dentro da Grande Mãe, em uma dimensão subterrânea, pronto para emergir na
superfície e depois desaparecer nas profundezas novamente. A figura da cobra representava uma
espécie de “macho ausente” e era uma figura absolutamente positiva. Na visão de mundo puramente
matriarcal representada no mito da deusa Cibele – a “mãe frígia” – o conceito da mulher andrógina,
Agdistis, é central.
E sendo um ser andrógino, Agdistis não precisava se acasalar para a concepção, portanto, ela deu à luz
sozinha ao herói anatólico Átis, pelo qual ela se apaixonou – estamos, portanto, lidando com a relação
incestuosa entre mãe e filho, uma característica fundamental deste ciclo matriarcal.
No entanto, quando Átis cresceu, ele queria se casar com uma mulher humana normal, e isso gerou
grande ciúme na Grande Mãe, que fez Átis entrar num transe delirante e, em sua loucura, ele castrou a si
mesmo e morreu. Mas nesse ponto, Cibele ficou tão arrasada com a perda de Átis que ela o ressuscitou,
tomando-o para seu serviço e ele se tornou seu sacerdote. A partir daqui segue outro traço característico
dessa cultura, ou seja, o dos eunucos sacerdotes da deusa Cibele, os chamados “galli”. Essa é a origem
das orgias em homenagem à Grande Mãe Cibele. Esta era uma sociedade sedentária pacífica, com a
prática de sacrifícios sangrentos, pois o sangue dos sacerdotes masculinos representava uma espécie de
alimento para a terra e favorecia a colheita. Mas esse mito também nos diz qual era o destino geral do
homem no mundo  cibelino.

Sedentarismo dos Indo-Europeus

O horizonte existencial da “Velha Europa” delineado pelos pólos civilizacionais representados por suas
grandes cidades, de cerâmica e muitos outros objetos encontrados em sítios arqueológicos, do culto da
Grande Mãe, dos templos em sua homenagem, etc., indica uma civilização matriarcal altamente
desenvolvida com uma estrutura estável e constante.
No sul podemos ver resquícios disso na pedra, mas podemos imaginar como era essa civilização quando
todas as construções eram de madeira. É possível que houve enormes centros nos Bálcãs e outros
lugares. É interessante que em Lepenski Vir os camponeses da região ainda constroem o mesmo tipo de
piso que há 8 mil anos. É interessante a estabilidade dessas estruturas culturais.
Ao mesmo tempo, podemos ver quantos níveis da mitologia da Grande Mãe foram incorporados à
sociedade patriarcal, na mitologia grega conhecida por nós. A ideia da castração de Urano por Cronos, e
de Cronos por Zeus, é parte desse ciclo matriarcal de usurpação da figura paterna. Assim como as figuras
dos titãs eram imagens matriarcais pertencentes a uma tradição anterior.
Todos esses elementos provaram ser constantes ao longo do tempo e continuaram presentes nos contos
mitológicos e folclóricos até os dias atuais; em outras palavras, eles sobreviveram a milhares de anos de
domínio da cultura indo-européia patriarcal. A esse respeito, recomendo a leitura da obra "Sobre o
Matriarcado Eslavo" [2] do autor italiano Evel Gasparini, no qual, neste trabalho em três volumes, ele
investigou os muitos aspectos matriarcais das tradições eslavas (sérvia, búlgara, russa, tcheca etc.).
Devemos, portanto, reconhecer a presença na sociedade europeia de “dois níveis”, dois horizontes
existenciais. Quando as tribos indo-europeias conservavam a sua tradição nomádica, atravessando as
estepes turânicas, elas careciam desse segundo nível. Elas possuíam apenas o horizonte da civilização
patriarcal. Quando as tribos patriarcais indo-europeias da Turânia chegaram às margens do rio Dniepre,
elas encontraram a cultura matriarcal Cucuteni-Tripiliana do outro lado do rio. O encontro produziu uma
mistura de dois horizontes existenciais. Este foi um momento noomáquico, de encontro entre o Logos de
Apolo, representado pela sociedade indo-europeia, trifuncional e patriarcal, com o Logos de Cibele,
representado pela sociedade paleo-europeia. E é interessante que este rio, que há milhares de anos tem
sido, como afirma Marija Gimbutas, uma fronteira real entre duas civilizações, a civilização turânica ao
leste e o reino da Grande Mãe ao oeste, foi palco de um encontro que produziu uma mudança na
estrutura do momento de Noomaquia, coincidindo com a sedentarização dos povos indo-europeus.
Mesmo na Anatólia e na Ásia Menor, se passou mais ou menos o mesmo, com possivelmente o mesmo
tipo de população paleo-europeia, mas para o leste havia uma população dravidiana de um tipo diferente.
Essa população dravidiana do Irã antigo, pré-indo-europeu, e da Índia antiga também era de tipo
matriarcal. Não há certeza se seu fenótipo era parecido ao dos paleo-europeus, o mesmo se eles podem
ser categorizados como paleo-europeus. Aparentemente, os paleo-indianos tinham pele escura, mas
talvez fossem paleo-europeus de um tom mais escuro, ou não.
O que é relevante e interessante, porém, é que do ponto de vista da Noologia eles pertencem ao mesmo
tipo de Logos de cibele que descobrimos no subterrâneo da civilização indo-europeia, especialmente na
Índia. Na Índia é bastante claro que há o nível da civilização védica e há o nível pré-védico, que é
matrarcal, ctônico, com a centralidade de Titãs e Deusas. 
Mas também no Ocidente, na Itália, Espanha e Ilhas Britânicas podemos encontrar resquícios dessa
civilização matriarcal. Na Península Ibérica, por exemplo, temos os bascos, herdeiros de uma civilização
paleo-europeia de tipo matriarcal. Todo tipo de sociedade indo-européia sedentária conhecida por nós é o
resultado da combinação de dois tipos noológicos: o Logos de Apolo patriarcal, ligado ao nível indo-
europeu nômade, e o horizonte existencial pré-indo-europeu, muito mais profundo e oculto, do tipo
matriarcal, pertencente à civilização paleo-europeia (ou paleo-indiana) que passou a constituir uma
espécie de substrato para essas sociedades. Esse é um dos resultados mais importantes, se não o mais
relevante, da análise noológica da cultura indo-européia.
E devemos pontuar aqui que não estamos lidando apenas com o passado, mas com o presente. O
horizonte existencial não é algo que pertence a uma dimensão puramente material, ele é algo vivente,
atual.Toda sociedade indo-européia é, portanto, baseada na superposição de dois horizontes existenciais.
Cada cultura indo-européia existente seja celta, francesa, italiana, espanhola, germânica, eslava, grega,
iraniana ou indiana – tem dois níveis existenciais e se apoia na Titanomaquia, a Noomaquia ou conflito
entre o Logos de Apolo, que é manifesto, e o Logos de Cibele, que em vez disso está oculto e secreto.
Friedrich Jünger ele afirmou não por acaso que a ordem dos deuses olímpicos é construída sobre os
ombros dos titãs derrotados.
Em outras palavras, na base da sociedade heroica indo-européia vive um horizonte existencial cibelino
que podemos identificar igualmente na tradição européia (contos populares, mitos, religiões, escritos etc.).
Nossa tradição é essencialmente dupla: formalmente somos indo-europeus a parte “diurna” de nossa
sociedade é caracterizada por uma estrutura vertical e patriarcal – mas secretamente, na parte “noturna”
vive o horizonte existencial da Grande Mãe, do matriarcado, que se manifesta na sociedade pacifista e
democrática. Nossa identidade como povos indo-europeus deve ser considerada essencialmente dupla.
Sem o reconhecimento desse segundo nível pré-indo-europeu, não poderíamos explicar nada sobre a
sequência histórica de nossa civilização, uma vez que a história européia, como a indiana e a iraniana, se
baseia na luta contínua entre esses dois Logoi. Este é precisamente o nosso momento de Noomaquia: o
Logos de Apolo veio de Turan e dominou o Logos de Cibele; isso constitui o evento central da nossa
história. Quando as tribos nômades turânicas conquistaram as sociedades sedentárias, eles criaram algo
novo, um novo tipo de sociedade formalmente indo-européia, no qual, no entanto, havia algo diferente no
subterrâneo.
Esta é a diferença entre Irã e Turan em Firdūsī, do qual falamos na lição anterior: o Irã possuía esse
horizonte matriarcal, enquanto em Turan ele estava ausente. Então, o conflito entre Turan e Irã em Firdūsī
ou no Avesta, em um sentido noológico, é algo diferente do que aparece. A natureza sedentária das
sociedades indo-européias indica que um encontro com esse segundo horizonte pré-indo-europeu
existencial ocorreu inevitavelmente. que ele foi capturado, sob controle, domesticado e assimilados.
O sedentarismo dos indo-europeus coincidiu com, poderíamos dizer, a “domesticação de Cibele”, a
conquista do poder feminino, que foi submetido ao poder masculino, assimilado pelo Dasein indo-
europeu.
Mas a natureza patriarcal das sociedades indo-européias sedentárias é o resultado de um conflito muito
violento que ainda está em andamento, pois o Logos matriarcal de Cibele não pertence exclusivamente
ao passado, ele continua a viver em nossa cultura hoje. Vivemos em uma sociedade baseada em dois
níveis, onde a titanomaquia, a guerra entre deuses e titãs nunca terminou. O resultado mais importante
dessa nossa análise noológica é, portanto, que ela tem, ou tem a ver com uma sociedade e cultura
européia fundamentalmente dupla, que, diferentemente da sociedade das estepes, está baseada em dois
níveis.

Assimilação de Cibele

No entanto, o sedentarismo teve uma influência diferente nas três castas que compõem a estrutura
vertical trifuncional das tribos turanianas. Os sacerdotes e guerreiros dessas tribos tornaram-se, por assim
dizer, a “classe dominante” das sociedades indo-europeias sedentárias, mas até hoje nossas forças
armadas e nossa classe sacerdotal, mesmo cristã, permanecem fundamentalmente “turânicas”. A
sedentarização não alterou sua moral. Eles continuaram a criar fortalezas, a renovar a adoração ao Deus
solar, o Pai, e a defender a estrutura hierárquica que caracteriza nossos sistemas políticos e que é a
continuação da mesma estrutura indo-européia vertical. Metafisicamente, eles foram tocados de maneira
muito limitada pela sedentarização.
De fato, eles impuseram sua própria ideologia indo-européia (Dumézil), além de sua própria língua, aos
povos conquistados, hoje todos nós falamos línguas indo-europeias. Por milênios, vivemos sob a
ideologia indo-européia e com uma classe dominante composta pelos continuadores daquela civilização à
qual os conquistadores turanianos pertenciam. Em outras palavras, após a subjugação dos povos paleo-
europeus e a consequente sedentarização das tribos turanianas, os povos da Europa viveram em uma
sociedade formalmente apolínea em tudo: na cultura, na educação, na filosofia, na ética, na estética e
assim por diante. Um argumento diferente deve ser apresentado para a “terceira função”, isto é, para a
casta dos produtores que na sociedade indo-européia trifuncional estava ligada aos aspectos
econômicos, referente à produção material.
Na sociedade turânica, na qual o Logos apolíneo se manifesta em sua forma mais pura, a terceira função
duméziliana era realizada por nômades pastoralistas. Estes eram homens que lidavam com animais
grandes (bois, gado, cavalos), que, portanto, precisavam de vastos espaços turânicos para alimentar o
gado e tinham que manifestar uma força física considerável para domesticá-los e controlá-los, e, portanto,
tinha que ser bastante robustos.
Eles eram o responsáveis por toda a alimentação dos chefes, dos líderes, dos guerreiros e dos
sacerdotes, eram a casta encarregada de todos os aspectos econômicos e materiais da sociedade.
No entanto, quando as tribos turanianas conquistaram as sociedades sedentárias e se estabeleceram, a
terceira casta, diferentemente das duas primeiras, sofreu uma influência considerável da sociedade
sedentária, internalizando muitos de seus aspectos. Ocorre que toda a sociedade sedentária conquistada
foi absorvida e introduzida na terceira casta. A estrutura socioeconômica paleo-européia foi assimilada à
terceira função da sociedade turânica. Isso envolveu antes de tudo o âmbito produtivo, onde vemos uma
clara mudança tanto nos métodos de trabalho quanto na composição da própria produção.
O cultivo de cereais, ervas e vegetais tornou-se predominante, substituindo a criação nomádica de
rebanhos e outros animais.
De mãos dadas, a figura masculina ingressou na agricultura: a mulher agricultora que caracterizava a
sociedade matriarcal pré-indo-européia foi substituída pelo camponês indo-europeu, que usava o arado
em vez da enxada. Então a terra agora era trabalhada por animais – bois ou cavalos domesticados – com
o arado duro e pesado, com uma ponta de ferro, impossível para uma mulher manobrar. O doce
relacionamento com a terra deu lugar a um relacionamento violento.
A tradição da Grande Mãe, de origem balcânica e anatólia, continuou assim a viver na cultura agrícola
das sociedades indo-europeias sedentárias. Primeiro houve uma expansão da civilização matriarcal pré-
indo-europeia por toda a Europa. Depois houve a onda das invasões indo-europeias, que criaram
sociedades europeias mistas e sedentárias, sob hegemonia indo-europeia. E a realidade é que essa
camada campesina pré-indo-europeia matriarcal sempre constituiu parte considerável da população da
Europa. Isso explica por que em nossos contos populares, em nossos mitos, em nossas tradições,
existem tantos elementos e figuras matriarcais, mais ou menos ocultos.
No nível da casta dos trabalhadores, na terceira função das sociedades indo-europeias, muitas histórias
foram integradas ao longo do tempo sobre cobras, rainhas, deusas, espíritos, demônios e outras criaturas
mitológicas femininas de vários tipos – por exemplo, pense na Rusalka eslava. Isso aconteceu porque,
quando as tribos indo-europeias se estabeleceram, assimilaram esse horizonte existencial em sua
estrutura.
É como um “pacto histórico” entre vencedores e perdedores. Oficialmente, a civilização da Grande Mãe
perdeu essa batalha titânica contra os deuses olímpicos, e essa vitória fundou todo o nosso sistema ético
e toda a sequência da história européia, que é a história de como os turanianos conquistaram a “Velha
Europa”, a civilização paleo-europeia. No entanto, o horizonte existencial conquistado viveu e ainda vive
em nossa sociedade, na terceira função. Poderíamos até escrever uma história da casta européia de
cultivo completamente paralela à “história oficial”, isso é a história das obras e empreendimentos das duas
primeiras castas (reis, heróis, santos, aristocratas, etc.), como se estivéssemos lidando com uma
civilização específica incorporada na “civilização oficial”. Não sabemos quase nada sobre esse mundo, já
que sempre celebramos apenas os feitos das castas superiores. Foi apenas nos séculos XVIII e XIX que,
se passou a compilar o folclore desse mundo campesino, em um renascimento da tradição nacional que
reagia contra o Medievo e o feudalismo.
E aí descobrimos que havia uma impensa quantidade de narrativas e elementos sobreviventes da
tradição europeia arcaica, temas que no Medievo estava totalmente fora da esfera de interesses das
castas eruditas. Na Europa Oriental, até o século XIX, a colheira era atividade fundamentalmente
feminina. Não com grandes ferramentas, mas com ferramentas pequenas como as foices. Os homens
cortavam apenas os vegetais destinados à alimentação do gado. Me recordo também que na Sérvia havia
ritos especiais para quando não havia chuva.
As mulheres se reuniam fora das aldeias e punham em prática certos ritos especiais para que houvesse
chuva. Há ainda muitas outras tradições vinculadas a esse aspecto matriarcal. Podemos definir o universo
agrícola e camponês como o ponto de encontro de dois horizontes existenciais, dois Dasein, ambos
pertencentes à nossa civilização européia: o horizonte do Logos de Apolo, representado pela ideologia
trifuncional oficial, e o horizonte do Logos de Cibele, uma ideologia paralela, que conota a tradição de
matriarcal e está presente na parte escura, no subconsciente da sociedade agrícola e sedentária.
Nossa sociedade é baseada neste momento de Noomaquia Mas a Noomaquia é um conflito contínuo; em
outras palavras, ele continua hoje. O Logos de Cibele continua existindo dentro de nossa civilização. Não
podemos acreditar na vitória de um Logos de uma vez por todas. Se o Logos de Apolo enfraquece,
significa que outro Logos está se tornando mais forte. Assim, se o patriarcado começar a se dissolver – é
o caso da modernidade ocidental e, em particular, da pós-modernidade – outra tendência contrária
começará a aparecer, a tornar-se cada vez mais explícita.
Portanto, não devemos dar como garantida a vitória dos deuses sobre os titãs. Há mais de um exemplo
no passado que nos mostra como em uma sociedade indo-européia os titãs podem prevalecer. É o caso
do frígios, um povo indo-europeu anatólio que continuou e renovou o culto à Grande Mãe pré-indo-
europeia. Para os frígios, que eram indo-europeus, Cibele era a maior das divindades. Isso é importante
porque mostra que mesmo em um contexto indo-europeu, o poder da Grande Mãe pode ser tão forte a
ponto de transformar e reinterpretar a ideologia indo-europeia de maneira radicalmente diferente.
Os titãs podem vencer nesse contexto das sociedades indo-europeias mistas. O que foi dito dos frígios
vale também para os lícios, povos continuadores da tradição hitita. Os lícios e os lídios, povos anatólios,
também eram matriarcais, praticando o mesmo culto à Grande Mãe que os frígios. Então conhecemos
casos nos quais a Grande Mãe vence.
Mesmo na Grécia, temos casos em que a Grande Mãe vence. Bachofen relata muitos exemplos desse
tipo. Os gregos jônios e eólios também foram, até certo ponto, sobrepujados por essa tradição pré-
helênica. Quando os dórios, a última das quatro tribos helênicas que invadiram a Grécia, chegou ao
Peloponeso, eles eram integralmente androcráticos e turanianos, mas as tribos helênicas anteriores foram
mais ou menos assimilados nas civilizações minoica e micênica, onde vemos muros ao redor da cidade,
característica turânica, mas com templos à Grande Mãe no centro, como nas antigas cidades micênicas.
Houve, portanto, uma mistura dos dois horizontes na qual a Grande Mãe obteve finalmente uma espécie
de “vingança”, que durou substancialmente até a descida dos dórios, tribo portadora de uma série de
elementos decisivos que caracterizavam o patriarcado e inclinados a não negociar com o Logos de
Cibele. A invasão dória vinda dos Bálcãs para o Sul se deu 1200 anos antes de Cristo, mas as primeiras
ondas de invasores helênicos são muito anteriores.
A Noomaquia contínua que caracteriza nossa civilização constitui de fato um conflito semântico, que,
portanto, não se manifesta simplesmente na substituição de uma divindade masculina por uma feminina
ou de uma divindade celeste por uma terrena. A questão é muito mais complexa. É uma “guerra de
interpretação” relacionada às mesmas figuras, aos mesmos símbolos, aos mesmos nomes. Por exemplo,
ao lado do poderoso Zeus, grande Deus, puramente patriarcal, há o Zeus cretense que é completamente
matriarcal.
É o mesmo deus, mas reinterpretado de uma maneira diferente, em um sentido matriarcal. Outro
exemplo, de sentido oposto, é fornecido pela deusa Atena, uma divindade com características femininas,
mas de tipo viril, sendo interpretada no sentido turânico, a partir de uma espécie de aniliginia: uma deusa
virgem, pura, belicosa, corajosa e sábia, sem vínculos com a maternidade e o poder da Terra, sem
relações ctônicas ou com a serpente. Assim, um elemento do horizonte de Cibele pode ser reinterpretado
no signo do Logos de Apolo, mas o oposto também pode acontecer, como no caso do Zeus de Creta.
Esses exemplos são retirados da mitologia, mas esse discurso pode ser estendido a qualquer outra área.
Há uma guerra de interpretação que é inerente a todas as sociedades europeias sedentárias, um
processo conflitual contínuo devido à presença em nossa cultura do Logos de Cibele, da qual as tribos
turânicas que viviam no espaço nômade da Eurásia eram livres. Com a sedentarização, uma nova
concepção de mulher também faz sua entrada.
Ao lado da mulher turânica presente no contexto da aniliginia – a mulher como amiga e guerreira,
substancialmente equivalente ao homem -, acompanha a figura de uma mulher completamente diferente:
uma mulher terrestre, não masculina, mas puramente feminina, uma espécie de berço, considerada como
um tipo de posse, a ser apropriada, a ser conquistada, subjugada e controlada; em outras palavras, uma
forma de propriedade ética e legalmente reconhecida. A transição do estilo de vida nômade para o
sedentário marca, portanto, a bifurcação na imagem da mulher.
Uma divisão que se reflete em muitas instituições da sociedade, incluindo o reino dos deuses: nas
deidades sedentárias da sociedade indo-européia, de fato, podemos reter características turânicas,
pensemos em Atena, Diana ou Ártemis – ou ver traços cibelinos, como no caso de Deméter, Rea e, acima
de tudo, Gaia, cujo nome designa um tipo de mulher matriarcal. De modo geral, no que concerne essa
dualidade, as divindades ctônicas foram integradas na terceira função nessa fase sedentária da cultura
indo-europeia.

Conclusão

A análise noológica do sedentarismo dos indo-europeus, dos quais nesta lição abordamos os pontos mais
importantes, fornece-nos os elementos para entender a estrutura existencial de todas as sociedades indo-
europeias. Agora sabemos que existem dois horizontes existenciais sobrepostos um ao outro, e é apenas
a partir deste resultado que é possível aprofundar o estudo aprofundado de cada sociedade indo-européia
específica – europeia ocidental, europeia oriental, iraniana ou indiana. Tenho dedicado a cada uma
dessas sociedades – ao Logos francês, germânico, latim, grego, inglês, iraniano, indiano – diferentes
volumes do projeto Noomaquia, aplicando o conceito de “dois horizontes” para testar como essa
hermenêutica opera, essa interpretação nos casos específicos representados por cada uma dessas
culturas e como essa superposição de dois níveis afeta o conteúdo e a semântica de cada um desses
povos. Posso afirmar com absoluta certeza que em todos os lugares podemos identificar os dois
horizontes existenciais, suas interações e aspectos em que prevalece um horizonte mais do que o outro
em uma variedade de contextos – na mitologia, na religião, na ciência, na visão do mundo em si – já que
o Logos envolve e influencia tudo.
No final desta lição, gostaria de mencionar brevemente qual será o assunto de nossa discussão na
próxima lição. Podemos presumir, se nos lembrarmos do que dissemos na primeira lição, que o Logos
dionisíaco se manifesta na mistura dos dois Logos apolíneo e cibelino. De fato, o momento em que Apolo
e Cibele se encontram e conflitam, constitui o momento de Noomaquia em que Dioniso aparece, que
representa precisamente a interseção de dois horizontes, o Logos vertical de Apolo em sua versão pura
com todos seu conteúdo turânico e o Logos ctônico de Cibele. A próxima lição será, portanto, dedicada ao
Logos de Dioniso e às culturas baseadas nele.

(Lição V) - O Logos de Dioniso

Na lição anterior [1] identificamos e analisamos um momento muito importante na história da Europa [2],
que define a estrutura principal do modelo de Noomaquia europeu. A estrutura do momento de
Noomaquia é a chave para entender nosso ser histórico, para entender quem somos. Vimos como a
chave para interpretar a história européia em sua dimensão ontológica e existencial consiste em seguir e
observar como o processo de interação conflituosa de dois horizontes existenciais opostos se desenvolve
em períodos diferentes. Também observamos que esse conflito se baseia na reinterpretação mútua das
mesmas estruturas simbólicas, mitológicas e religiosas de duas perspectivas opostas – nisto se manifesta
precisamente a Noomaquia no seu sentido mais autêntico, que é como um conflito semântico. O Logos de
Cibele procura reinterpretar as mesmas figuras ou impor suas próprias no contexto da mistura cultural
resultante da sobreposição dos dois Logoi apolíneo e cibelino.

O Reino de Dioniso

O “campo de batalha” dos dois espaços existenciais – paleo-europeu e turânico – cria um novo tipo de
estrutura, um ponto de encontro, uma terceira estrutura para sermos precisos. No sentido mais autêntico,
o Logos de Apolo é representado pela sociedade nômade turaniana; Da mesma forma, o Logos de
Cibele, na sua forma mais pura, é representado pela sociedade agrícola, sedentária e matriarcal da
“Velha Europa”. Mas, a partir do encontro desses dois espaços existenciais, cria-se uma nova dimensão,
que constitui precisamente o campo de Dioniso, onde o conceito patriarcal do homem desce às
profundezas da matéria. O que pertence ao céu desce à terra e alcança o centro da terra. Dioniso torna-
se assim senhor do Inferno como Zagreus. Temos aqui, então, uma diferenciação em relação à estrutura
apolínea. A estrutura puramente apolínea não tem contato com a matéria que caracteriza o Logos de
Cibele. Ela é completamente virgem, intocada. Pertence ao céu, ao dia, à luz. A ordem de Apolo é a
ordem do Pai, da beleza, da lógica, do rigor metafísico.
É a lei do Paraíso, das idéias platônicas, das estrelas. Mas quando o Sol celeste desce à terra, uma nova
dimensão se abre, o que corresponde exatamente ao nível de Dioniso. Estamos, portanto, lidando com
um campo completamente novo da realidade, no qual um novo Logos se manifesta. Este último pode ser
considerado o produto do encontro entre o horizonte turânico e o pré-indo-europeu, mas também pode se
manifestar de forma completamente independente, como um terceiro Logos por si só, que não deriva da
reunião de outros dois Logoi. É o caso de algumas culturas não europeias, por exemplo, a chinesa ou a
pigmeia. Pigmeus e chineses têm uma sociedade puramente dionisíaca, caracterizado por uma estrutura
noológica original e autônoma que não é dada pela superposição de dois horizontes existenciais
anteriores. Assim, enquanto na sociedade indo-européia Dioniso brota no campo de batalha (Dioniso é o
próprio campo de batalha) e representa o teatro de confronto de dois Logoi opostos, é possível que em
algumas sociedades não indo-europeias existam estruturas baseadas no domínio total e absoluto do
Logos dionisíaco, que surge completamente independente dos outros.
É por isso que falamos de três Logoi, e não de dois [4]. Em um sentido etnossociológico, o Logos de
Dioniso se traduz no processo fundamental que se desenvolveu no campo da terceira função indo-
européia, onde ocorreu uma síntese entre a terceira função pastoral das tribos turânicas e a sociedade
sedentária, agrícola e matriarcal. Esse segmento da sociedade, a casta camponesa européia, representa
o espaço social de Dioniso.
O reino de Dioniso consiste no mundo agrícola. Ele é o deus da agricultura, do vinho, assim como dos
sacrifícios de gado. E nos mistérios, especialmente eleusinos, ele é sempre acompanhado por Deméter,
que desempenha um papel central neles. Dioniso e Deméter são deuses e figuras do mundo agrícola e
constituem uma importante dualidade. Os mistérios eleusinos de fato giram em torno do pão e do vinho, o
vinho representado por Dioniso e a espiga de milho representada por Deméter. Este casal consiste na
Mãe e no Filho celestial – que representa a semente patriarcal não criada por ela, mas colocada nela, no
centro da Terra, a fim de ressuscitar e retornar à origem celestial – representa uma nova maneira de
interpretar a agricultura, uma concepção patriarcal da própria agricultura.
Deméter não coincide com Cibele, mas é fruto de uma concepção completamente diferente do que é a
Mãe Terra. Especificamente, Deméter representa a interpretação patriarcal da Mãe Terra; uma Mãe Terra
vista de uma dimensão superior e não interna a ela. É uma divindade epictônica – vista de cima da
superfície da Terra – e não hipoctônica. Ela é a mãe dos campos de trigo cultivados, com espigas
voltadas para cima. Está, portanto, aberta às influências do Céu: representa uma figura da Grande Mãe
“domesticada”, que reconhece a dimensão transcendente, os princípios transcendentes do Céu e do Pai,
e se submete a eles.
Em resumo, Deméter é a Mãe em um sentido patriarcal, incorporada à sociedade patriarcal e aceita sob
essas condições exatamente como a agricultura foi na sociedade indo-européia sedentária. A transição
da figura de Cibele para a de Deméter corresponde à passagem da Mãe selvagem, que cria o mundo de
forma autônoma, para a Mãe domesticada, que ajuda a semente paterna a florescer. Essas são
concepções diferentes do princípio feminino.
Dioniso, por sua vez, é duplo. Ele é filho e amante/marido. Mas ele é também pai de Deméter. Nos
mistérios eleusinos de origem trácia, observamos, portanto, uma transição do espaço puramente cibelino
para o espaço demetérico patriarcal da sociedade agrícola indo-européia. E é aqui que Dioniso aparece,
uma figura completamente nova que representa a transcendência imanente – não é Apolo, nem é o Átis
do ciclo cibelano - mas algo que vem do céu e alcança o centro da Terra para “salvá-la” de seus aspectos
caóticos e onerosos, cibelinos, purificando-a com vinho, cujo mistério se refere ao mistério do sangue de
Deus que desceu à Terra para a salvação do mundo, da própria matéria. Assim, o vinho representa
Dioniso como libertador da Grande Mãe.
A libertação da Grande Mãe e o consequente “retorno” – ascensão à origem celestial – agora é possível,
e é encarnado precisamente por Dioniso. Podemos morrer, mas com Dionísio ascendemos. É uma
dimensão transcendente muito importante, que faz sua instaurada por sobre o contexto ou horizonte
existencial da sociedade matriarcal sedentária agrícola. Há outro aspecto interessante no ciclo mitológico
de Dioniso. Há um momento em que as bacantes, grupos de mulheres seguidoras de Dioniso, recebem a
seu chamado.
Em um certo ponto, elas ouvem um assobio, uma voz silenciosa que somente as mulheres iniciadas em
seu culto podem perceber. Se trata de um convite para ir às montanhas e as florestas. E as bacantes,
ouvindo o chamado de Dioniso, ficavam ensandecidas e possuídas, e saiam pelos campos em um frenesi
em êxtase, dançando e vagando, e esquartejando os animais (sparagmós) e comendo a carne crua, até
chegarem à caverna de Dioniso, a fim de entrar em comunhão com o deus.
Esse estado mental possuído é muito semelhante ao que caracteriza as orgias matriarcais, mas com uma
diferença fundamental: nesse caso, uma figura masculina transcendente aparece e a profunda sensação
da existência e chegada do Salvador é sentida. Este não é uma criação autônoma como o andrógino
feminino Agdistis, como acontece no ciclo de Cibele com Átis, mas representa o aparecimento de uma
semente transcendente que, portanto, não faz parte da Grande Mãe. Assim, a fúria feminina encontra a
figura masculina puramente transcendente, e na medida em que essas práticas diferem completamente
da tradição orgiástica anterior. É precisamente o encontro com esse aspecto transcendente e vertical que
constrói a própria essência do chamado de Dioniso.

O Conflito de Interpretações

Um ponto fundamental diz respeito à interpretação semântica de Dioniso. Na tradição indo-européia,


nunca encontramos a pura manifestação de Dioniso. Se trata sempre Dioniso como irmão de Apolo, como
portador da luz. Nós indo-europeus interpretamos a figura e o Logos de Dioniso apenas em uma
perspectiva apolínea, não temos outro Dioniso. Existe apenas um Dioniso em nossa tradição, e é o
Dioniso do horizonte existencial indo-europeu.
No entanto, sempre há a possibilidade de reinterpretar essa figura na perspectiva cibelina. De fato, Cibele
tenta continuamente reconsiderar a chegada dessa figura masculina transcendente e patriarcal em sua
antiga perspectiva matriarcal, substituindo Dioniso por Átis ou Adônis, também uma figura masculina do
ciclo matriarcal. E essa ligeira mudança de significado inverte tudo.
É por isso que Dioniso representa o campo de batalha entre dois Logoi opostos no contexto europeu: a
interpretação de Dioniso pelos indo-europeus é apolínea, mas eles operam em um espaço muito
perigoso, onde o poder da Grande Mãe e de sua hermenêutica é muito forte, e daí surge um conflito
semântico que está na base da Noomaquia europeia.
Isso se deve não apenas ao fato de o substrato cibelino ter sido incorporado à sedentarização dos indo-
europeus, mas também na origem do próprio culto dionisíaco, que deve ser rastreado precisamente a
uma tradição matriarcal pré-indo-européia. Essa é uma das razões pelas quais não há texto ou mito
específico dedicado exclusivamente a Dioniso. A maioria das práticas, mitos e figuras do culto dionisíaco
foram emprestadas de práticas e cultos específicos da Grande Mãe.
Isso é descrito extensivamente em dois livros que recomendo a leitura: "Dioniso: Imagem Arquetípica da
Vida Indestrutível" [5], de Karl Kerényi e "Dioniso e Os Cultos Pré-Dionisíacos" [6], de Vjačeslav Ivanov.
Quando Karl Kerényi, autor húngaro e amigo de Mircea Eliade, tenta revelar as fontes do culto de Dioniso,
ele chega à conclusão de que, antes dessa figura, havia algo muito semelhante, com quase as mesmas
marchas de bacantes invasivas, os mesmos ritos, as mesmas orgias, e assim por diante, mas o todo
inserido em um contexto completamente diferente, dentro de um culto puramente matriarcal.
Atenção especial deve ser dada a esse ponto.
No campo dos rituais, lendas e mitos de Dioniso, inicialmente, existia uma tradição matriarcal,
posteriormente transformada pela chegada do novo horizonte existencial indo-europeu. Isso implica que o
culto a Dioniso e o Logos de Dioniso no contexto indo-europeu, nasce da metamorfose pela qual a
estrutura e o culto da Grande Mãe sofrem como resultado da descida do princípio patriarcal
transcendente. As práticas e símbolos dionisíacos pertencem originalmente a uma tradição matriarcal pre-
dionisíaca. Não é de surpreender, às vezes Dioniso aparece nas feições de uma cobra, ou cercado pelas
figuras de sátiros, meio homem e metade animal, normalmente associados à Grande Mãe; do mesmo
modo, até as procissões dionisíacas representavam a continuação das procissões ligadas à Grande Mãe,
com os mesmos rituais e símbolos.
Isso implica que os indo-europeus turânicos não apenas conquistaram um espaço físico – aldeias,
assentamentos, populações etc. – mas também o território do mito, com a transformação semântica da
figura de Cibele – junto com todos os símbolos e práticas de adoração que a cercam – nas figuras de
Deméter e Dioniso. Em outras palavras, os conquistadores indo-europeus se apropriaram de um espaço
mitológico pré-indo-europeu originalmente estranho a eles, impondo sua própria interpretação. Foi um
ataque e uma vitória da civilização indo-europeia no campo mítico.
Em um sentido metafísico, a tradição neoplatônica apresenta Dioniso como o intelecto, ou seja como o
elemento divino-dionisíaco que o homem carrega dentro de si. O principal mito dionisíaco é aquele em
que o pequeno Dioniso, um jovem filho de Zeus, é capturado enquanto brincava no Olimpo pelos titãs
cruéis, que o desmembram e o devoram. Então Zeus intervém incinerando os Titãs e fazendo com que
eles caiam no Tártaro, e a partir de seus vapores, de acordo com uma versão tardia do mito, é gerado o
homem, que carrega dentro de si dois elementos, um titânico e um divino, representado precisamente por
Dioniso.
Na interpretação neoplatônica de Dioniso, ele é, portanto, a alma ou o princípio espiritual presente em
todo homem, uma espécie de centelha de consciência, uma vez que, na interpretação órfica, a natureza
humana é dupla: por um lado, é titânica, em relação ao corpo e aos aspectos materiais, enquanto, por
outro, é dionisíaca, em relação ao intelecto.
O pensamento humano é dionisíaco. Dioniso é despedaçado enquanto princípio intelectual presente nos
muitos, mas unificado em sua essência. Por isso podemos dizer que Dioniso é o conceito de intelecto
imanente. Não é igual ao paradigma do intelecto no pai, mas o filho de Deus presente na natureza
humana, que se opõe ao outro lado da natureza humana, que é titânico.Esse é precisamente o problema
da metafísica de Dioniso e, em última análise, da metafísica da cultura indo-européia: ela é dupla, pois
contém dois horizontes, um titânico e outro olímpico. E Dioniso não passa de outro nome para indicar que
o ser humano é entendido como um ser cultural no contexto da sobreposição desses dois horizontes
existenciais, um deles sendo o horizonte titânico, que não é o corpo propriamente, tampouco a matéria
em si, mas a leitura cibelina do corpo e da matéria. Isso é Noomaquia. Dioniso é o campo de batalha
entre o patriarcado e o matriarcado integrado em nossa cultura.
O problema de Dioniso é o problema da cultura indo-européia e é a chave para entender a Noomaquia de
todas as sociedades indo-europeias, tanto da Europa Ocidental quanto das asiáticas, já que no Irã e na
Índia há exatamente a mesma estrutura cultural problemática (certamente, não temos uma figura como
Dioniso na cultura indiana, mas temos Shiva, outra figura paradoxal; não há equivalência direta, mas
sempre encontramos o mesmo campo de interação conflituosa entre dois Logoi).
Na sociedade indo-européia, o Logos de Dioniso é caracterizado por uma instabilidade inerente. Em
outras culturas, como os chineses ou os pigmeus, e até certo ponto também azteca com a figura da
serpente alada Quetzalcóatl, a figura de Dioniso é estável.
Na sociedade indo-européia, por outro lado, o campo dionisíaco é instável por ser conflituoso, há uma luta
entre mente e corpo que não surge de sua natureza objetiva, mas de sua interpretação: a mente ou o
intelecto, considerado como algo pertencente ao Logos de Apolo e cuja representação imanente é
Dioniso, entra em conflito com o corpo, que é visto como algo material, oneroso, um corpo que mais uma
vez não corresponde à matéria em si – tudo com o que lidamos não pertence à natureza objetiva das
coisas, mas é a projeção de um paradigma – mas à interpretação cibelina do que é o corpo.
Esta não é a única interpretação possível. Outras culturas têm uma concepção completamente diferente
do corpo, um corpo sem materialidade.
O problema indo-europeu é representado precisamente pelo peso ou materialidade do corpo, um traço
claro do Logos de Cibele. Assim, o horizonte existencial de Cibele dita a qualidade do nosso corpo,
caracterizando-o como algo oneroso que limita a alma, mas isso – repito – não é uma qualidade natural,
mas uma construção cultural. A figura de Dioniso na sociedade indo-européia é, portanto, instável: o
centro do Logos de Dioniso em nossa cultura é normalmente movido em direção ao Logos apolíneo.
Então nós, indo-europeus, não conhecemos Dioniso como tal, mas, como já dissemos, o conhecemos em
uma perspectiva exclusivamente apolínea, como irmão de Apolo. Para entender a natureza problemática
de Dioniso, podemos dizer que, em termos figurados, o centro da concepção dionisíaca do mundo é
normalmente traduzido para cima, pertence ao universo apolíneo que domina a cultura indo-européia, e
isso faz do Logos de Dioniso uma espécie de continuação ou “imanentização” de Apolo, a dimensão
imanente do Logos apolíneo. Essa não é uma regra ou lei universal, mas uma característica que se
relaciona exclusivamente com a civilização indo-européia.
Em nossa cultura, Dioniso é movido para o topo. Portanto, não é o puro Logos de Dioniso, mas seria mais
correto chamá-lo de Logos apolíneo-dionisíaco. O que acabamos de descrever é um caso “clássico” na
cultura indo-européia. Para tentar alcançar uma melhor compreensão do que é Cibele não faria sentido
compará-la a algo material, ou a ondas ou frequências. Estamos lidando com um Logos, e não com
matéria em diferente densidade ou em uma diferente frequência. São entendimentos completamente
diferentes em relação a tudo, verdadeiras cosmovisões. Cibele é uma visão de mundo. Tanto o Logos de
Apolo, como o Logos de Dioniso e o Logos de Cibele se fazem presentes nas profundezas de toda forma
de pensamento, não são entes externos, mas paradigmas que se movem por trás de nossas mentes,
definindo sua estrutura. 
Representando, porém, Dioniso no campo de batalha e no espaço intermediário entre dois Logoi, há
sempre a possibilidade de uma leitura oposta. Nos meus volumes do projeto Noomaquia, identifiquei isso
como provavelmente o principal problema metafísico de toda a cultura e história indo-europeias. Sempre
existe a tentativa de algo presente em nossa própria cultura de colocar o centro do Logos de Dioniso em
outra direção, abaixo da linha que separa o Logos de Apolo do Logos de Cibele. Eu chamei essa hipótese
de “duplo negro” de Dioniso.
Este não é o Dioniso que normalmente conhecemos em nossa tradição indo-européia, mas o produto da
reinterpretação ou reapropriação cibelina de Dioniso, correspondendo às figuras de Adônis ou Átis, de
Lúcifer ou do titã Prometeu, ou de qualquer figura muito próxima de Dioniso.
A figura do duplo negro não corresponde ao caso clássico, à norma, é totalmente oposta à cosmovisão
indo-européia, mas está sempre presente, como uma sombra metafísica de Dioniso, e talvez seja ainda
mais antiga que o próprio Dioniso, pertencente ao universo da Grande Mãe.
Para entender melhor o problema metafísico de Dioniso e o conflito que ocorre em seu campo, podemos
analisá-lo sob outra perspectiva.
Como Dioniso é algo dinâmico – não é a luz eterna que brilha em perpetuidade, mas a luz que se torna
escuridão, que é atenuada e desaparece e depois brilha novamente; é o mistério da semente que morre e
sobe como um broto de trigo – podemos considerá-lo em termos de um “ciclo”. O ciclo de algo que
pertence a um nível superior, desce até o meio da noite, na escuridão da terra, então sobe e ascende ao
seu lugar original no topo da criação. Ele é o ciclo solar, a roda do ano.
No entanto, sempre existe a possibilidade de considerar um ciclo substancialmente idêntico que começa
do ponto oposto. Portanto, haverá algo que pertence ao nível inferior, que nasce da Grande Mãe,
ascende assaltando o céu, depõe os deuses e os substitui. É precisamente o tipo de ascensão do
elemento prometeano titânico que chamamos de “duplo negro”. Mas o destino dos Titãs é finalmente o de
cair como Prometeu. Eles podem vencer momentaneamente os deuses, mas estão destinados a cair:
Tifão, por exemplo, sobrepuja Zeus na mitologia grega, mas depois de um sucesso inicial é precipitado e
aprisionado sob a Sicília. Generalizando, estamos lidando com algo que emerge, atingindo o ponto mais
alto, após o qual cai.
Em suas principais características, é essencialmente o mesmo cenário do ciclo de Dioniso, da mesma
história, mas que procede da perspectiva oposta. A primeira história começa no Céu, continua com uma
descida à Terra e termina com um retorno ao Céu, enquanto a segunda começa na Terra e continua com
a conquista do Céu, seguida de uma queda (a queda dos anjos, de Prometeu, do Titãs, etc.). Os Titãs
reivindicam o Olimpo, é onde eles despedaçam Dioniso, mas depois são fulminados por Zeus e caem no
Tártaro.
No coração desta história está uma Noomaquia que podemos ler dos dois lados: o Logos de Apolo e o
Logos de Cibele concordam com a estrutura principal desta Titanomaquia, mas interpretam esse processo
de dois pontos de vista opostos, de duas perspectivas especulares.
A mesma história, duas interpretações. Isso dá ao problema do "duplo negro" de Dionísio toda a sua
medida metafísica. Trabalhando com a lógica do ciclo, somos confrontados com duas possibilidades de
leitura, com duas estruturas semânticas diferentes. Juntamente com o surgimento de Dioniso na
sociedade como resultado da sobreposição dos dois horizontes existenciais, surge o problema aberto de
sua natureza. A natureza de Dioniso em nossa tradição é absolutamente instável, ela é dinâmica,
contraditória e dialética. E não há apenas uma maneira de interpretá-lo; pelo contrário, ele admite duas
versões interpretativas.
Dioniso pode ser ao mesmo tempo o simulacro de Dioniso; ele pode ser ao mesmo tempo adonisíaco e
dionisíaco; ele pode ser pre-dionisíaco e dionisíaco ao mesmo tempo.
Assim, o problema da civilização européia é o problema de Dioniso. Esta é uma questão em aberto – não
há nada que possamos dar como garantido, nem podemos resolver essa questão de maneira abstrata,
pois nós, como indo-europeus, estamos imersos nesse processo. Como disseram os neoplatonistas,
Dioniso é nosso próprio intelecto. O qual, em nossa análise noológica, possui seu “duplo negro” dentro de
si. Nossa mente, nossa alma, tem uma natureza dupla, sendo dionisíaca. Está dividida.
Ela lida sempre com algo oposto a si, mas que está presente dentro de si: o problema do simulacro está
integrado à mente indo-européia, porque a mente indo-européia é dupla e se funda na sobreposição de
dois horizontes existenciais. Isso significa que não podemos ter certeza de onde somos titânicos e onde
somos dionisíacos, não podemos dizer com certeza se estamos lidando com Dioniso ou Adônis, com o
verdadeiro intelecto ou com seu simulacro.
Explico. A mente é dionisíaca, o corpo é titânico. Esta é essencialmente a descrição órfica. No entanto, há
também a possibilidade de um corpo dionisíaco e de uma mente titânica, uma vez que corpo e mente não
estão tão claramente separados, eles estão em um estado de mistura – misturando-se devido ao fato de
que mente e corpo são a projeção do Logos (no mundo humano nada pode existir sem o Logos, tudo com
o que estamos lidando é o produto da projeção de um paradigma).
Existe o corpo material e a mente espiritual, mas também temos o corpo espiritual, representado, por
exemplo, pelo corpo da ressurreição na doutrina cristã, e há a mente material, a mente titânica,
representada pela racionalidade mecanicista e calculadora. Existem dois corpos e duas mentes em nós.
Isso constitui o problema no centro da dialética de nossa cultura, um problema que é interno a esta, uma
vez que o duplo de Dioniso não existe fora dela.Este é o ponto mais importante sobre o Logos de Dioniso.
Estudar o problema do “logos sombrio” dionisíaco significa ir às raízes da problemática da história
européia e decifrar a chave do problema do homem europeu ou, eu diria, do homem indo-europeu.
É por isso que a redescoberta da figura de Dioniso por Nietzsche foi tão importante, bem como pelos
filósofos que seguiram Nietzsche. E é a introdução do “Logos Negros” de Cibele que nos permite fazê-lo.
A descoberta do terceiro Logos é uma revolução metafísica, graças à qual tudo adquire significado. Na
verdade, é graças à entrada do Logos cibelino, que descobrimos a possibilidade da existência do “duplo
negro” titânico de Dioniso, e isso nos permite ver como antes, antes do desenvolvimento da Noologia e da
introdução do terceiro Logos, houve uma deturpação, uma interpretação fundamentalmente incorreta de
Dioniso em sua identificação com um titã, uma perversão sombria, um aspecto puramente negativo, a
reversão da luz ou do “Logos branco” de Apolo. Apresentando o Logos de Cibele, cada peça do quebra-
cabeça entra em seu lugar e, mais importante, tocamos a instabilidade de Dioniso.Por fim, estamos
lidando com dois espaços hermenêuticos integrados à figura de Dioniso e o “conflito de interpretações”
(para usar a terminologia de Paul Ricœur) é aberto, pois sempre há a possibilidade de uma substituição,
de uma perversão específica ou desvio metafísico da estrutura semântica.
Logos e Regimes do Imaginário

Antes de concluir, gostaria de dar um exemplo do que se entende por abordagem dionisíaca para que
possamos compreender melhor e de maneira mais profunda o que é o Logos de Dioniso. Para fazer isso,
vou relembrar brevemente a pesquisa sobre o imaginário de Gilbert Durand [7]. Essa é uma teoria muito
complexa, mas tentarei explicá-la da maneira mais simples possível. Gilbert Durand foi um autor francês
muito importante, fundador de uma sociologia real da imaginação, um seguidor de Carl Gustav Jung,
Henry Corbin e Gaston Bachelard, tendo desenvolvido uma versão verdadeiramente original da estrutura
da imaginação. Em termos sintéticos, segundo Durand, o homem é imaginação. Tudo com que lidamos é
composto de estruturas imaginárias.
Durand estudou as raízes da imaginação e como a imaginação funciona em nós, uma vez que ela não é o
reflexo de objetos existentes, mas o contrário – objetos são o produto da nossa imaginação. Primeiro
imaginamos algo, depois lidamos com o que acabamos de imaginar. Quase o mesmo se passa na
fenomenologia. Isso nos leva a Husserl e seu conceito de intencionalidade. Segundo Husserl, o ato
intencional é o ato direcionado a algo que existe fora da nossa mente, mas não tem qualidade em si,
porque toda qualidade com que lidamos existe dentro de nossa mente. Husserl chama isso de “noema”.
O processo do ato intencional é “noesis”, enquanto “noema” é aquilo que é pensado. Assim, as
qualidades dos objetos com os quais estamos lidando são intrínsecas ao nosso processo de pensamento
e não externas a ele. Durand aborda essa abordagem fenomenológica de maneira diferente. Ele fala de
regimes do imaginário afirmando que nossa imaginação trabalha com três regimes, e isso é muito
semelhante ao conceito dos três Logoi. Agora vamos ver o porquê.

O Diurno

Um regime do imaginário é um tipo de estado intrínseco da estrutura mental que cria diferentes
sequências de imagens, símbolos e estruturas básicas. O primeiro regime é o regime diurno. Este é o
regime do dia, da luz, baseado no conceito de uma dualidade rigorosa e nos arquétipos da “distinção”: há
uma diferenciação estrita e absoluta, uma vez que o regime diurno separa, não une. Tudo é tão claro
quanto a luz do dia. A verticalidade está intimamente ligada a esse regime, ligada de acordo com Durand
ao reflexo postural da criança.
O ato da criança de ficar em pé na posição vertical é considerado pela imaginação como um voo, uma
espécie de ascensão heroica, razão pela qual esse é o sistema de orientação vertical.
O regime diurno também é o regime guerreiro do patriarcado. O que dissemos sobre o Logos de Apolo
pode ser facilmente aplicado a esse regime do imaginário. De fato, segundo Durand, ele representa a luta
contra a noite, a morte e as trevas; uma espécie de guerra apolínea perpétua. No campo das doenças
mentais, esse regime corresponde ao estado paranoico. A paranoia é a absolutização do diurno, em que
tudo é separado até o nível atômico, com uma destruição contínua do objeto paralela à consolidação do
sujeito.
Assim trabalha o guerreiro, lutando sem cessar e destruindo tudo o que encontra com sua espada; a
espada é o diurno, aquilo que separa, não mata, mas divide, destruindo o objeto e consolidando o sujeito.
Portanto, o regime diurno é, em certo sentido, bastante apolíneo e indo-europeu. Segundo Durand, o
Logos nasce desse regime. Nosso pensamento é baseado no desenvolvimento desse tipo de imagem.
Nesse regime, nossa razão opera, cujo principal exercício é o de diferenciação.
A negação também é diurna, porque negar significa separar: o que é do que não é, o que existe do que
não existe, etc. Nosso processo de pensamento está em síntese baseada na dualidade, em pares, em
separações. Imaginamos as coisas distinguindo-as, quebramos o objeto e consolidamos nosso sujeito.
Todos são adversos, mas somos nós que triunfamos sobre os outros. Isso leva à criação da hierarquia, da
verticalidade, com o sujeito mais paranoico no topo da sociedade – o czar, o rei, que destrói tudo e se
consolida. Podemos dizer que a paranoia é a doença dos reis: todos planejam derrubá-lo – e isso às
vezes acontece – mas ele continua em seu caminho, rumo à batalha final com a morte e as trevas, pois o
rei está cercado de sombras e seu destino é combatê-las, matar os inimigos, consolidar tudo o que está
dentro do seu domínio e destruir tudo o que está fora dele. Essa é a atitude normal do guerreiro.

O Nocturno Místico

Mas, segundo Durand, existem outros dois regimes do imaginário, ambos aferentes ao regime noturno. O
primeiro é o noturno dramático e o segundo é o noturno místico. Vamos tentar entender o que é isso.
No regime noturno, nossa mente funciona de maneira completamente diferente. Este regime não se
baseia nos arquétipos da distinção, mas nos da “união”.
Nossa mente não separa o que está fora, consolidando o que está dentro de nós, como no caso do
diurno, mas basicamente faz o oposto: une tudo o que está ao nosso redor e se fragmenta. Levada ao
extremo, essa abordagem resulta na esfera da doenças mentais na esquizofrenia. De fato, a atitude
esquizofrênica consiste em separar o interior – há vozes, egos diferentes, etc. – e unir o exterior,
considerando o mundo como um todo, sempre correto e mais forte que o sujeito, que pelo contrário é
problemático e fraco. É nisso que consiste o regime noturno. Ele não se baseia na lógica, mas na retórica
e no eufemismo. Por exemplo, quando algo nos atinge, dizemos que estamos felizes e satisfeitos.
Quando algo está faltando, consideramos um tipo de presente.
Esse processo, chamado eufemização, consiste em chamar coisas com nomes completamente diferentes
e com significados opostos, a fim de evitar o horror que nos causa o choque com uma realidade da qual
estamos aterrorizados. Tendo medo de tudo, inclusive de nós mesmos – nem temos certeza de nossa
existência -, usamos o expediente de nomear tudo com nomes com significado oposto. Chamamos as
trevas, que tememos, de luz.
Tratamos o que nos ameaça como algo muito amigável – “não se preocupe, temos algo em comum, você
não é tão horrível, vamos tentar encontrar um denominador comum”. Não estamos lidando com uma
atitude de guerreiro, mas, ao contrário, com uma consciência pacifista. No caso mais extremo, essa
atitude resulta na síndrome de Estocolmo: você é feito refém, mas passa para o lado dos terroristas,
compartilhando suas motivações, descobrindo subitamente que suas reivindicações estão corretas; como
é muito difícil sustentar essa posição de dominação absoluta pelo outro, o refém diz a si mesmo: “Eles
não são um outro.
Os terroristas fundamentalistas são bonzinhos, vamos ajudá-los. Fiquemos ao lado do mal, porque ele
não é tão mal assim. Fiquemos ao lado da morte, porque ela não é tão morte, é um novo começo. A
perda é um tipo de presente”. Mas no campo do noturno existem duas formas. A primeira forma é a
radical, chamada de noturno místico por Durand, e representa a troca completa entre objeto e sujeito,
entre eu e o outro. Poderia ser chamado de uma traição completa de si mesmo.
Tudo está do lado de fora. Não há nada dentro, exceto o reflexo do que está do lado de fora. É noite
absoluta A luz é noite, o alto é baixo, o masculino é feminino, morrer é viver e vice-versa. Retórica pura.
Chama-se algo com um nome completamente diferente e contraditório, e fica-se feliz com isso.O noturno
místico corresponde ao Logos de Cibele. Ele representa o domínio absoluto de algo criado pela traição de
si mesmo. O sujeito não está consolidado, mas completamente dissipado na imaginação e é o processo
de dissipação da mente que cria a matéria ou o mundo exterior.
O sujeito é fraco, a matéria é forte. Mas a matéria não existe independentemente, ela é a projeção dessa
fraqueza. Começa a existir como se fosse autônoma e independente, mas, na realidade, sua existência
deriva do enfraquecimento do sujeito pela imaginação, que pode imaginar um sujeito não apenas forte,
mas também fraco. Tudo vem de um movimento interior. É por isso que o conceito de regime do
imaginário é tão próximo do conceito de Logos, e eu o uso na interpretação de diferentes culturas,
religiões e fenômenos históricos.

O Noturno Dramático

A segunda forma do regime noturno é o noturno dramático. Este último não envolve uma eufemização
radical, mas substancialmente equilibrada. Neste regime, não chamamos noite de dia; antes, chamamos
de pôr-do-sol ou amanhecer: nem luz nem escuridão, mas um jogo entre os dois, algo intermediário, que
ocorre nas sombras. Este regime corresponde ao Logos dionisíaco. E aqui encontramos a problemática
de Dioniso, da qual já falei, porque esse regime pode ser interpretado como uma escuridão radical que
finge ser luz ou como uma luz que, por exemplo, não é clara o suficiente.
Se o regime diurno é paranoico e o regime noturno místico é esquizofrênico, qual é a enfermidade mental
que corresponde ao noturno dramático? É a normalidade! Ou seja, não há doença mental, porque em
situações normais nos movemos no noturno dramático, ou seja, usamos uma abordagem dionisíaca da
realidade. Às vezes usamos a eufemização, aproximando-nos do noturno místico, mas permanecendo no
noturno dramático; outras vezes, usamos a separação e a diferenciação radicais, aproximando-nos do
outro pólo, o pólo luminoso. Ou seja, usamos as duas estratégias ao mesmo tempo.
A doença mental começa quando somos atraídos demais por um dos dois pólos, de modo que tudo em
nossa imaginação se torna muito escuro ou muito claro. Por fim, do ponto de vista psicológico, o problema
de Dioniso é o das estruturas antropológicas de nossa imaginação. Imginamos o mundo precisamente
dessa maneira, transitando entre o noturno místico e o diurno, mas sem sair do noturno dramático. Da
mesma maneira, a estrutura social pode ser apolínea, ou diurna, que é quando temos hierarquia,
racionalidade, lei e norma. Mas há também o lado noturno da sociedade, onde essas leis são dissolvidas,
onde reina o crime, a corrupção e a dominação de tudo que é iníquo.
Mas geralmente, na sociedade, vemos os dois regimes sobrepostos. Podemos terminar esta análise
histórica e existencial articulada do Logos de Dioniso, afirmando que ele representa o centro entre dois
pólos, correspondente ao Dasein. O ser é apolíneo, o Ser-aí (“being t/here” em inglês) é dionisíaco, pois
está localizado no centro entre Apolo (Ser)  e algo puramente imanente (aí) – e que tem muitas afinidades
com o que Gilbert Durand chamou de forma dramática do regime noturno.

(Lição VI) - A Civilização Europeia

Vamos agora deixar de lado as outras sociedades indo-europeias, para nos concentrarmos na análise da
história e cultura europeias. Agora está claro que a civilização européia se baseia na superposição de
dois horizontes existenciais e na existência de um centro com o problema de Dioniso e sua interpretação.
A história européia é caracterizada por uma Titanomaquia contínua ou Noomaquia, e a condição básica
dessa Titanomaquia é a descida da cultura indo-europeia turânica no campo da civilização da Grande
Mãe. Na lição anterior [1], também identificamos Dioniso como o principal problema desta civilização,
representando o próprio terreno do confronto em que essa titanomaquia se desenvolve.

O Urheimat dos Bálcãs

Para iniciar a análise noológica da civilização européia, é aconselhável partir de um de seus principais
pólos, constituindo o verdadeiro Urheimat das tradições agrícolas europeias, que é o Leste Europeu,
erroneamente considerado periférico.O primeiro povo indo-europeu a emergir historicamente foi o trácio.
Os trácios desceram aos Bálcãs antes dos eslavos, por volta de 1200 a.C, estabelecendo uma espécie de
império tribal, inicialmente nos Bálcãs do norte, para então ocupar aproximadamente a grande área da
Europa Oriental. O que é importante notar é que os territórios nos quais a civilização trácia se expandiu
eram os centros ou pólos da civilização da Grande Mãe – Lepenski Vir,  a cultura de Vinča, a cultura
Karanavo-Gumelnita e a cultura de Cucuteni-Tripiliana, etc. – que passaram a constituir o substrato do
horizonte existencial trácio. Aliás, não podemos dizer com certeza que os trácios foram os primeiros
povos indo-europeus a aparecer nesses territórios, mas eles são os mais antigos dos quais temos
conhecimento. A cultura trácia indo-européia representou, portanto, o campo em que ocorreu o encontro
entre o horizonte apolíneo e o horizonte cibelino.
As tribos eslavas que chegaram muito mais tarde nos Bálcãs assimilaram esses elementos trácios,
incluindo-os em sua estrutura. Dioniso também era considerado pelos gregos um deus trácio. E, se ele
era realmente trácio, ou se era pré-trácio – repito, não podemos ter certeza – Dioniso chegou à Grécia
pelo norte, assim como Orfeu e a deusa Bendis, uma deusa trácia que se tornou extremamente popular
em Atenas, basicamente outro nome para nomear a Grande Mãe. O festival a Bendis, chamado
Bendideia, chega a ser mencionado por Platão na "República".
É possível que as tribos da Trácia sejam mais antigas do que imaginamos e talvez tenham sido as
primeiras tribos indo-europeias a aparecer. O que podemos dizer com certeza é que eles constituíam uma
sociedade indo-européia muito antiga, com traços nômades altamente desenvolvidos, e quanto mais para
o norte, mais nomádica, porque da Transilvânia em diante já estávamos nas estepes eurasiáticas e no
espaço turânico. Os trácios chegaram ao Danúbio e aos Bálcãs antes dos citas e dos sármatas, e muito
antes dos eslavos, tendo assimilado a tradição paleo-europeia –  direta ou indiretamente através de
alguma outra sociedade indo-européia.
No entanto, o fato marcante é que, no espaço da Europa Oriental, antes que o horizonte eslavo se
tornasse predominante após as invasões dos séculos V e VI d.C, existia uma civilização trácia indo-
européia na qual o encontro entre os Logos de Apolo e Cibele ocorreu pela primeira vez. Se assim foi,
isso significa que o mundo agrícola sedentário europeu teve suas origens e se expandiu do espaço dos
Bálcãs, que, portanto, constituiria a pátria original – a Urheimat – não apenas dos camponeses da Europa
Oriental, mas de todo o mundo rural europeu, porque a tradição agrícola se desenvolveu antes de tudo
nos férteis territórios balcânicos, habitada por uma sociedade matriarcal muito antes da chegada da
cultura turânica. Portanto, a Europa Oriental, comumente considerada periférica e marginal para a
civilização greco-romana e depois para a ocidental, deve ser considerada um polo central da civilização
européia.
De fato, é na Europa Oriental que o principal evento da história ontológica e semântica da Europa – o
encontro entre os dois horizontes existenciais paleo-europeu e indo-europeu – teve lugar.
Deve ser dada mais atenção ao Dasein da Europa Oriental, isto é, para o complexo (com muitas tribos,
muitos povos e muitos níveis culturais) horizonte existencial da Europa Oriental, pois nessa perspectiva
ele adquire uma nova dimensão que se torna crucial. Isso é ainda mais verdadeiro se considerarmos que
tal como Orfeu, Dioniso, que vimos ser a figura-chave para decifrar a ontologia da história européia, é de
origem trácia.
Precisamos, portanto, estudar melhor a natureza desse polo balcânico, não só para cultivarmos o orgulho
de sermos eslavos balcânicos vivendo aqui após os trácios, mas porque ele está diretamente vinculado
ao problema de Dioniso. Podemos deduzir que a Europa Oriental (o espaço trácio, eslavo, balcânico) é
alguma espécie de continuação da Europa Ocidental e da Eurásia. Mas nele se dá um evento
fundamentalmente novo na história ontológica e semântica da Europa.
A Europa Oriental é a pátria de Dioniso. Levemos em consideração, por exemplo, para além da língua e
cultura trácias, a figura de Zalmoxis, o único deus  trácio plenamente conhecido. Há muitos paralelos
entre Zalmoxis e Dioniso. Mircea Eliade e a tradição romena deram grande atenção à figura de Zalmoxis e
seu papel no horizonte trácio.
Portanto, a cultura matriarcal paleo-européia não desapareceu após a chegada dos trácios. Ela formou o
substrato campesino e se espalhou junto com a cultura trácia no mundo rural da Europa Oriental e, a
partir daí, expandiu-se com a classe campesina por toda a Europa. Podemos, portanto, falar do Dasein
rural, um tipo particular da terceira função duméziliana que preservou traços culturais da tradição pré-
indo-européia.
E uma das primeiras sociedades indo-europeias que integraram esses elementos foi a Trácia, que foi
seguida por todos os outros. Outro povo para prestar atenção especial é o dos ilírios, que habitavam os
Bálcãs ocidentais junto com os trácios, e cujo espaço, segundo alguns historiadores, chegava ao mar
Báltico, é por isso que se pode acreditar que eles viviam em terras muito mais ao norte antes das
invasões eslavas.
Sabemos muito pouco sobre esses povos, mas podemos deduzir alguns aspectos interpretando
corretamente as tradições eslavas do sul, estas estando em continuidade cultural com esses povos, uma
vez que todas as tradições agrícolas conhecidas por nós resultantes de milhares de anos de indo-
europeização eram originalmente balcânicas – em outras palavras, o Dasein agrário europeu tem suas
raízes nos Bálcãs.Tendo dito isso sobre o Urheimat dos Bálcãs, pátria original do Dasein europeu rural,
podemos analisar os horizontes ou subespaços existenciais inferiores que constituem o Großraum
europeu.
Como já dissemos na terceira lição, existe o enorme espaço turânico indo-europeu que inclui
substancialmente toda a Eurásia, das Ilhas Britânicas à Índia, que constitui o imenso horizonte existencial
indo-europeu. A oeste deste horizonte se estende o grande espaço europeu, mas, descendo a um nível
noológico e geosófico inferior, encontramos vários subespaços dentro dele.
Estas são as sociedades indo-europeias individuais, cujas culturas específicas derivam de como cada
uma delas resolveu o problema de Dioniso. Na tentativa de entender hermeneuticamente uma ou outra
cultura européia, identificamos precisamente o equilíbrio noológico e o momento de Noomaquia que
caracteriza cada sociedade.

A Tradição Helênica

Começaremos essa discussão a partir da tradição helênica. A tradição grega é baseada na vitória
completa do Logos de Apolo. No entanto, essa vitória, como mencionei na quarta lição, não foi imediata.
As tribos helênicas dos jônios e dos eólios passaram em ondas migratórias pelos Bálcãs e pelo
Peloponeso, dominando a civilização matriarcal existente. Mas, enquanto alguns territórios gregos
mantiveram a estrutura indo-européia trifuncional puramente patriarcal, outros a perderam total ou
parcialmente. Nas culturas minoica e micênica, portanto, houve uma mistura de elementos patriarcais e
matriarcais.
Foi apenas com a última onda migratória das tribos helênicas dos dórios – provenientes do Norte, dos
territórios macedônios e portadores de elementos apolíneos e pastorais essenciais – que a cultura
micênica foi destruída e um estilo puramente turânico foi introduzido. Tudo isso se reflete no dualismo da
cultura grega entre a Esparta dória e a Atenas jônia, um dualismo que reflete o equilíbrio de Noomaquia
dentro do espaço existencial helênico, uma vez que o Logos apolíneo se manifesta em Esparta de forma
clara e marcante, ao contrário de Atenas e nas colônias da Anatólia grega, onde, em vez disso, ele é
menos preponderante. E esse dualismo entre Esparta e Atenas também desempenha um papel
fundamental na geopolítica, na geosofia e na noologia.
Dioniso é um deus grego com origens trácias, mas devemos vê-lo como puramente grego porque ao seu
redor se chocam a perspectiva apolínea com o espaço cibelino. E na cultura, na religiosidade, na filosofia
dos helenos nós vemos esse elemento dionisíaco muito claramente. 
O Logos apolíneo se manifesta não apenas na mitologia e na religião, mas também na filosofia. Isso se
reflete de maneira absolutamente perfeita na filosofia platônica, bem como na lógica de Aristóteles,
discípulo de Platão. Há outros aspectos apolíneos na filosofia de Aristóteles, mas já na física e na retórica
– nas quais tudo o que existe é único e ao mesmo tempo duplo, possuindo forma e matéria (duas coisas
em uma, puro Dioniso, e totalmente distinto de Apolo, onde um é um, uma coisa é uma coisa e não outra
coisa) – bem como na filosofia de Heráclito – com base no ciclo, na guerra, na dialética entre o que é
eterno e o que é corruptível – vemos muito claramente o aspecto dionisíaco, que não é materialista, mas
expressão do noturno dramático.
Veja-se, por tanto, que os vários campos do aristotelismo não podem ser julgados da mesma forma, não
podemos, portanto, interpretar a lógica aristotélica da mesma maneira que interpretamos a física
aristotélica. Quando fazemos isso, estamos projetando um objeto matemático físico, mas isso é
impossível. Existe o objeto matemático que é puramente apolíneo e o objeto físico que é puramente
dionisíaco. Disso se segue uma observação importante.
Para podermos estudar o mundo físico precisamos aplicar ao mundo a retórica, e não a lógica. A retórica
operará como a ciência precisa da física. Precisamos usar o conceito heraclítico de dialética e a retórica
aristotélica. A retórica é uma espécie de violação das leis da lógica. Na retórica afirmamos coisas que não
correspondem precisamente ao que queremos dizer. Encontramos nela a ironia, uma das figuras mais
importantes da retórica. Na ironia afirmamos uma coisa querendo dizer outra. Para nós, eslavos, isso é
muito evidente, nossa linguagem é retórica e irônica. Vivemos uma cultura irônica. Nós dizemos o que
queremos dizer. Afirmamos uma coisa, queremos dizer outra, chegamos a uma terceira e o resultado
acaba sendo uma quarta.
Por exemplo, também, a metonímifa, que é a figura que usamos ao falarmos em "cabeças de gado",
querendo dizer vacas ou bois ou ovelhas, e não literalmente as suas "cabeças". Usamos a parte como
todo como retórica. Uma violação da lógica. A sinédoque e a antífrase e todas as outras figuras da
retórica cobrem a realidade física de maneira mais precisa que a lógica. O objeto físico não pertence às
categorias matemáticas. Não existe uma matemática física. Com a lógica podemos estudar objetos
matemáticos e geométricos, mas para objetos físicos precisamos de outros métodos. Sobre isso eu sugiro
estudar os primeiros textos de Heidegger sobre Aristóteles, bem como os estudos aristotélicos de Husserl
e Brentano, porque a tradição fenomenológica sempre enfatizou aspectos do aristotelismo que foram
ignorados pelas tradições anteriores. 
Mas no espaço existencial grego há também o terceiro Logos, o Logos de Cibele, representado
filosoficamente por Demócrito, Epicuro e Lucrécio, expoentes típicos de uma antiga tradição materialista e
imanenentista, uma vez que compartilham uma concepção atomística segundo a qual tudo é composto de
átomos, e professam a ideia titânica de progresso e evolução segundo a qual tudo cresce de baixo para
cima, de negativo para positivo, do pior para o melhor. O conceito de progresso é puramente titânico, é a
visão titânica do cosmo.
Na filosofia grega, portanto, encontramos os três Logoi presentes. Mas é importante enfatizar que o Logos
normativo é o de Apolo – o platonismo como um todo, mas em parte também Aristóteles e Heráclito
(embora este último reflita principalmente o “Logos escuro” de Dioniso). Demócrito e, em escala menor,
Epicuro, eram rechaçados.
Não é por acaso que Platão sugeriu queimar os livros de Demócrito, considerando-os uma expressão de
uma perigosa heresia. Em tudo isso, vemos claramente a continuação da titanomaquia ou noomaquia
indo-européia. O momento grego da Noomaquia é, em última análise, baseado na vitória do Logos de
Apolo, em amizade e aliança com o Logos de Dioniso, ou com “Dioniso apolíneo”, sobre o Logos
materialista de Cibele.

O Dasein Helenístico

Esta é essencialmente a leitura noológica da tradição helênica. Mas as coisas mudam na era helenística.
Sob Alexandre o Grande, os gregos expandem seu domínio sobre um espaço e horizonte existencial
completamente novo. O horizonte existencial iraniano é incorporado à cultura mediterrânea grega e isso
cria o fenômeno do helenismo.
A diferença fundamental entre a cultura helênica e a helenística reside precisamente nisso: enquanto a
cultura helênica consiste na tradição grega que discutimos até agora, a cultura helenística nasce da fusão
das culturas grega e iraniana. Essa passagem deve ser enfatizada: o que foi incorporado não foi qualquer
cultura oriental, asiática, semítica, como geralmente se acredita, mas precisamente a cultura iraniana.
Esta, no entanto, não correspondia apenas à cultura do Irã, mas à do Império Aquemênida, que também
absorveu as tradições egípcia, babilônica e semítica, metabolizando todas essas culturas antigas em seu
Logos iraniano, que eu abordo no volume "O Logos do Irã" [3]. É por isso que, ao distinguirmos o
helenístico do helênico, neste caso, sugiro usar o termo iranístico em vez de iraniano.
Dessa maneira, o Império Aquemênida não deve ser considerado puramente iraniano, mas sim iranístico.
uma vez que incluía outras tradições, semanticamente transformadas, iranizadas, no contexto do Logos
iraniano; em outras palavras, ele assimilou todas as culturas anteriores, transformando-as no contexto de
sua própria concepção dominante zoroastriana-mazdeísta. Assim, a cultura grega entrou em contato com
os mundos egípcio, semítico e babilônico, mas em sua versão “iranizada” – não foi um contato direto, mas
mediado pela cultura iraniana.
Na era helenística, o Império Macedônio de Alexandre recebeu a herança cultural iraniana, sendo a
absorção do Império Aquemênida pela Grécia. A especificidade dessa herança é quase sempre ignorada.
Diz-se que o Império de Alexandre recebeu uma herança "oriental", porque consideramos as conquistas
de Alexandre o Grande a partir de olhos helênicos.
Neste sentido, nós europeus somos gregos, porque para nós a história grega é nossa história, e a
história iraniana é a história do outro. Nunca consideramos a história iraniana como parte de nossa
história. Enquanto quando falamos desses eventos falamos como se tratasse de uma conquista nossa
sobre eles. Mas a partir da perspectiva iraniana as coisas são diferentes. Havia um  Logos Iraniano, cuja
essência deveríamos incluir no que entendemos por civilização européia, e que está baseada no princípio
fundamental da “guerra da luz”.
É, como vimos no final da terceira lição, uma forma de platonismo dualista radical, em que o Logos de
Apolo entra em conflito com o Logos de Cibele, mas reconhecendo seu poder, substância e natureza
autônoma. Enquanto no platonismo advaita (não dualista) a escuridão é a ausência de luz, na concepção
iraniana ela é algo vivo, poderoso e também vitorioso. Para Platão, a vitória do mal sobre o bem é
absurda, absolutamente impossível, pois no mundo puramente apolíneo há sempre apenas a eterna
vitória da luz sobre as trevas, que não existem por conta própria; pelo contrário, na versão dualista
iraniana existe a escuridão, poderíamos defini-la como uma poderosa divindade do signo oposto.
A noite é poderosa e ela pode vencer.
Então, pela primeira vez, a guerra entre luz e escuridão se torna algo sério e dramático, se comparado à
versão não-dualista do platonismo, pois se baseia no reconhecimento por Apolo da substância, realidade
e poder do Logos de Cibele. De fato, a essência iraniana é fundamentalmente apolínea porque ser
iraniano significa ser portador da luz, filhos da luz enviados ao campo das trevas para combatê-las.
A autoconsciência e a identidade iraniana zoroastriana se baseiam precisamente no conceito de que
apenas os iranianos são pessoas puras e luminosas, enquanto todos os outros são pessoas das trevas –
uma espécie de racismo metafísico que, entre outras coisas, cria a base para legitimar o casamento entre
parentes de sangue e o incesto, como formas de salvaguardar a pureza do sangue e do espírito dos filhos
da luz.
Esta é a tradição iraniana; uma tradição que, no entanto, na evolução iraniana se torna menos exclusiva
porque a inclusão dos povos semitas, egípcios, babilônios, etc., marca a transição da qualidade de ser
filho da luz para um nível menos material e mais simbólico ou metafórico, de modo que o conceito de
“guerra da luz” seja aceito em um sentido mais amplo. Ou seja, o iranismo deixou de ser exclusivamente
iraniano. Outro conceito-chave da tradição iraniana, desconhecido pelos gregos, é a ideia iraniana de
tempo e de história. Na visão platônica não existe história e não existe tempo com oalgo importante. Há
apenas sempre o mesmo, o ciclo de nascimento e morte, o eterno retorno das coisas. Não há
desenvolvimento, progresso ou retresso.
É uma concepção completamente diferente de tempo. Você emerge da origem e retorna à origem, e isso
é tudo. E o que ocorre nesses ciclos sublunares não possui substância, conhecimento, sentido, direção,
tempo ou história. Há apenas a eternidade.
A história platônica é a história da eternidade e o tempo é reflexo da eternidade, de modo que ele não
existe no sentido comumente entendido por nós. Ao contrário, na tradição iraniana, o tempo adquire um
significado, uma vez que essa tradição afirma que no começo a luz dominava as trevas; mais tarde na
história iraniana, a escuridão invade o campo da luz, o reino solar, e começa a destruí-lo e pervertê-lo; em
um terceiro momento, as trevas dominam a luz; mas no fim do domínio das trevas haverá a grande
restauração, a ressurreição e o aparecimento do escolhido, que se tornará o Rei e Salvador da
humanidade, o Saoshyant zoroastriano.
Assim, enquanto em Platão o tempo não tem importância, uma vez que não tem significado, aqui ele
assume um papel importante. E é aqui que a idéia de história, de tempo escatológico e de messianismo
faz sua entrada.
A figura do Messias aparece, do último rei do mundo chamado a restaurar o reino da luz como resultado
final da “guerra da luz”, e é introduzido o conceito de ressurreição, de restauração da perfeição perdida,
própria da criação da luz. Isso é o iranismo, e na verdade trata-se de algo muito próximo de nós. Mas tudo
isso – a história, o sentido do tempo, a ressurreição, a escatologia – constituía uma perspectiva
totalmente nova e até então alheia aos gregos. Só o retorno à origem tinha sentido. Tempo e história não
eram nada. Havia apenas o exemplo dos heróis para que possamos repeti-los. Os heróis são paradigmas,
idéias. Foi somente após as conquistas de Alexandre, o Grande, que essa herança espiritual, filosófica e
metafísica fez a sua entrada na cultura mediterrânea grega. O que era externo tornou-se interno.
Aliás, acredita-se amplamente que as idéias de tempo, história, messianismo etc., foram trazidos pelos
semitas, pela Bíblia. Mas conhecemos a Bíblia somente após o fim do cativeiro babilônico, que acabou
sob o Império Aquemênida que, portanto, espalhou esse Logos iraniano mesmo entre os judeus. O
judaísmo tardio, aquele conhecido por nós e que está ligado aos conceitos de Messias, Fim dos Tempos,
Ressurreição etc., é, portanto, uma espécie de redação iraniana do judaísmo original. Na realidade, os
conceitos de tempo, história e escatologia, bem como a “guerra de luz” constituíam o coração da cultura
iraniana. Que, depois de Alexandre, o Grande, se fundiu com a tradição helênica, gerando o fenômeno do
helenismo.
O mundo helenístico em síntese assenta, portanto, em dois pilares, helênico e iraniano, e ele é de
importância crucial para todas as culturas europeias, pois representa o horizonte existencial que deu
origem ao Dasein helenístico, que a partir daquele momento constituiu o fundamento da civilização
européia subsequente.

O Logos Latino

Com a passagem do domínio grego para o domínio romano, o Dasein helenístico se espalhou pelo resto
da Europa. A Roma antiga era originalmente puramente apolínea. No entanto, conquistando a Grécia e a
região do Mediterrâneo, conquistou o mundo helenístico, abrindo suas influências culturais, e isso
provocou uma mudança em sua própria estrutura, uma mudança iniciada no final da República e que foi
consolidada com o advento da forma imperial – o mitraísmo, juntamente com muitos outros aspectos do
Império Romano, foram emprestados dessas fontes helenísticas.
A Roma puramente apolínea deu lugar à Roma helenística, e é a essa cultura que de fato nos referimos
quando discutimos a tradição romana. Posteriormente, o fenômeno helenístico em sua versão romana –
poderíamos chamá-lo de helenismo greco-irânico-romano – se expandiu de mãos dadas com a expansão
do Império Romano.
Todas as conquistas romanas – nos Bálcãs, no noroeste da Europa, etc. – em sua dimensão cultural,
representavam conquistas helenísticas. As legiões romanas levaram o helenismo para onde quer que
fossem. Poderíamos dizer que o Império Romano era culturalmente um império helenístico. Do ponto de
vista noológico, esse helenismo era caracterizado pelo Logos de Apolo refletido na tradição grega
platônica, pelo Logos de Dioniso refletido na tradição misteriosófica e filosófica e heraclítica grega, pelo
Logos de Apolo em sua versão iraniana dualista – nos conceitos de tempo, escatologia e “guerra da luz” –
e, finalmente, nenhum Logos de Cibele, que estava presente nas profundezas desse espaço existencial,
mas não claramente representado. Podemos rastrear este último, talvez em alguma profecia ligada à
pedra negra de Pérgamo, pertencente a Cibele, e sua transferência da Frígia para Roma, no contexto das
guerras púnicas [4], mas esses são aspectos marginais.
Havia um tipo de culto matriarcal no império romano helenístico, mas ele não era dominante. Dominavam
as culturas greco-apolínea, irânico-apolínea e greco-dionisíaca.
Esse espaço existencial helenístico romano passou posteriormente por um processo de cristianização. O
cristianismo foi erguido nessa cultura e representou sua continuação lógica. E os aspectos iranianos
tiveram um papel crucial nisso. Esse ponto é muito importante, mas o discutiremos mais detidamente na
próxima lição, que será para a nota dedicada ao Logos Cristão.
Esta forma de helenismo romano, com o domínio do Logos de Apolo combinado com alguns traços
culturais dionisíacos, representa precisamente o Logos latino [5], e ele se preservou substancialmente
intacta até a modernidade.
O Logos Latino, ou o Logos do Império Romano, é romano em seu nível mais profundo, ao qual é
adicionada uma sobreposição helenística com alguns aspectos dualísticos relacionados ao iranismo e ao
maniqueísmo – Agostinho de Hipona era maniqueu, e o maniqueísmo é uma forma de iranismo, de
natureza dualista, como vimos –, o último presente em Roma de uma maneira mais marcante que em
Bizâncio, onde em vez disso havia uma forma de platonismo não dual – na Ortodoxia, identificamos um
equilíbrio mais dionisíaco ou uma forma não-dualista de platonismo, diferentemente do catolicismo
romano, que representa uma forma dualista.
De qualquer forma, o Império Católico Romano estava baseado no Logos de Apolo, com aspectos mais
dualistas e talvez até menos dionisíacos que Bizâncio, mas, no entanto, puramente indo-europeu. E esse
foi o destino da Itália. Até a era contemporânea, ele manteve esse Logos, preservando esse momento
específico da Noomaquia italiana. A Itália foi o lugar onde Roma se originou, foi o centro do Império
Romano, foi invadida por tribos indo-europeias germânicas, criou novos estados, mas permaneceu fiel a
esta versão cristianizada do helenismo até o fim.
A última forma deste Logos, em uma versão bastante modernizada e um tanto deturpada, foi a do
fascismo. Ali havia uma continuação dessa atitude apolínea, uma hierarquia vertical modernizada.
O fascismo italiano foi a última nota dessa melodia.
Antes vimos o Concíclio de Trento, onde o Catolicismo se recusou a seguir o caminho protestante. A
defesa dessa identidade romana apolínea e católica representava, portanto, o destino do horizonte
existencial italiano. Isso não foi meramente caricatural no fascismo. É claro que havia um aspecto
caricatural da tradição romano no fascismo, já que tudo na modernidade é uma caricatura, mas ao
mesmo tempo havia algo lógico, autêntico, nessa continuação da tradição romana.

O Logos Celta

A partir da Idade Média, os principais pólos da construção dialética da civilização européia passam a ser a
França e a Alemanha. Foram esses dois pólos que de fato determinaram a semântica histórica, política e
cultural dos processos mais importantes da história da Europa Ocidental no último meio milênio. O
próximo horizonte existencial europeu que examinaremos é, portanto, o francês ou mais geralmente a
tradição celta. A particularidade do horizonte celta é o poder que possui o princípio feminino, o poder da
mãe. A tradição celta tem suas raízes no matriarcado, está sujeita a uma forte atração por um poderoso
pólo cibelino. Assim, o cristianismo celta é caracterizado por uma maior proximidade aos aspectos
femininos. Também encontramos na tradição celta muitos mitos e lendas sobre a ilha das mães. A própria
morte era considerada uma mulher.
Em parte, mesmo a concepção de amor cortês entre os cavaleiros-poetas medievais se baseia nesse tipo
de tradição celta. A esse respeito, refiro-me à leitura do autor francês Denis de Rougemont, que em sua
obra "O Amor e o Ocidente" [6] estudou as fontes e raízes da tradição da glorificação do amor na cultura
cavalheiresca medieval. Em essência, estamos lidando com influências celtas caracterizadas por uma
presença muito forte da Grande Mãe. O livro da Noomaquia dedicado à cultura francesa, intitulei O Logos
Francês: Orfeu e Melusina [7]. Estudando as estruturas do Logos francês, cheguei à conclusão de que
seus componentes principais são as duas figuras fundamentais (Gestalt) de Orfeu e de Melusina, a fada
que assume a forma de um dragão na mitologia celta.
Além disso, a figura de Orfeu, de origem trácica, é muito importante na cultura francesa, pois a ideia de
descer ao meio do submundo para encontrar o princípio feminino que aí reside. – uma espécie de
“jornada ao centro da Terra” para rastrear a feminilidade, a Mãe – constitui o destino da cultura francesa,
tanto em seus melhores aspectos quanto em seus aspectos decadentes. Também a figura de Melusina
assume uma importância notável, uma vez que o paradigma da modernidade, em suas raízes mitológicas
e culturais, remonta à sua Gestalt.

O Logos Germânico

Diferentemente do Logos celta, o Logos germânico [8] é do tipo apolíneo, mas constitui uma versão
heróica e guerreira dele. Aqui encontramos a luta contra as forças ctônicas que também caracterizam a
tradição iraniana. Ser germânico significa estar engajado em uma eterna luta: a guerra dos heróis
germânicos contra os gigantes, as serpentes, os dragões e todas as outras forças ctônicas.
É uma cultura paranoica no sentido que demos a esse termo, discutindo na lição anterior sobre os
regimes do imaginário em Gilbert Durand, com traços fortemente patriarcais e caracterizada por uma
aniliginia acentuada – as mulheres germânicas possuem características culturais mais próximas às dos
homens do que em outras culturas (pense nas Valquírias, em Brunilda).
As mulheres são guerreiras. Estamos, portanto, lidando com uma sociedade heroica destinada a
combater os Titãs. No entanto, os alemães, quando seguem seu destino, lutam com tanto entusiasmo e
sinceridade que não conseguem perceber o momento em que sua própria luta se torna titânica. Eles são
tão dedicados à sua causa que vão além dos limites naturais – começam a destruir todos ao seu redor e,
finalmente, a si mesmos – e isso é algo titânico.
Esse aspecto titânico do espírito germânico é evidente em Hitler: se criar a Grande Alemanha pode ser
uma boa ideia em si mesma, não se pode dizer o mesmo da tentativa de destruir tudo ao seu redor e,
eventualmente, culminando na própria destruição Alemanha. Existe uma palavra grega para esse tipo de
atitude: ὕβϱις (húbris), que significa substancialmente excesso, ausência de medida. Por exemplo, o
guerreiro que mata seus inimigos em batalha tem um ethos heróico, mas se ele mata seus filhos depois
de matá-los e viola suas mulheres, em um esforço para continuar esta guerra e humilhar inimigos
derrotados, ele se torna vítima de húbris. Tudo isso é sempre um componente da guerra, mas não se
trata mais de algo heroico, trata-se de húbris.
No caso germânico, portanto, observamos um espírito guerreiro puramente apolíneo que, no entanto, às
vezes excede seus limites, de modo que os inimigos dos próprios Titãs se tornam titânicos. Apesar de
serem os combatentes do Céu contra a Terra, eles começam a combatê-la de maneira ctônica. Este é o
destino e o Logos germânico. Na tradição iraniana, existe a ideia de que o exército da luz é mais fraco
que o exército das trevas. E que a derrota do exército da luz é um elemento necessário para a
ressurreição e a vitória final. Assim, para vencer, deve-se suportar uma derrota. Em outras palavras, se a
luz morrer, é preferível morrer com a luz que vencer com as trevas.
Ou seja, a última palavra não é dada pela força, mas pela verdade da luz. Segue-se que, se
atravessarmos as fronteiras, ultrapassarmos os limites, ultrapassarmos a medida lutando de maneira
titânica, seremos finalmente condenados à derrota e acabaremos destruindo tudo, inclusive a nós
mesmos. Outro exemplo desse aspecto titânico do Logos germânico pode ser encontrado no
protestantismo. A ideia original do protestantismo é que Cristo não representa apenas exterior,
pertencente à adoração, mas é antes de tudo algo interior ao homem, que vem de dentro.
No coração, em suas raízes, essa ideia original remete ao platonismo, bem como ao misticismo alemão
de Meister Eckhart. Mas cultivada sem medida, levada à húbris, essa ideia se traduz em algo
completamente diferente: individualismo, racionalismo, ausência de mistério, falta de humildade diante de
Deus. É como o arianismo herético, como um retorno ao arianismo.
Esse foi o protestantismo alemão, em seus melhores e piores aspectos. O protestantismo é a versão
titânica do Cristianismo, enquanto o Catolicismo e a Ortodoxia seriam as versões apolíneas do
Cristianismo. O protestantismo moderno (especialmente o calvinismo) e as versões ainda mais radicais de
protestantismo não são cristãos, mas paródias titânicas.

A Esquizofrenia Albiônica

Chegamos à Inglaterra e ao horizonte britânico [9]. Depois de estudar a história britânica, cheguei à
conclusão de que não poderia ter chamado o livro da série Noomaquia dedicado a esse espaço “O Logos
Inglês”, pois não encontrei o Logos Inglês. Pelo contrário, descobri uma dualidade profunda e instável na
cultura inglesa. Existem substancialmente dois pólos nele. O primeiro é o polo celta representado pelas
nações do País de Gales, Irlanda, Escócia, nações celtas e, portanto, parte do horizonte existencial celta,
caracterizado pelo mesmo fascínio pelo princípio feminino, pela mesma ideia de descer ao inferno, pelo
mesmo romantismo negro e assim por diante.
Mas os elementos celtas não são rastreáveis apenas na Irlanda, no País de Gales e na Escócia, eles
também fazem parte da sociedade inglesa e da identidade inglesa – por exemplo, a dinastia Stuart era
celta – já que, de fato, a maioria da população das Ilhas Britânicas é composta de celtas germanizados ao
longo do tempo. O segundo pólo é, portanto, o germânico. No entanto, a mistura de elementos celtas e
germânicos não deu origem a uma síntese. Portanto, um novo Logos ou horizonte existencial não foi
gerado; o que surgiu foi o que poderíamos chamar de esquizofrenia ou bipolarismo inglês.
Estamos lidando com uma mistura desequilibrada e doentia, uma confusão de elementos contraditórios
que não geraram uma identidade unitária, mas uma sociedade bipolar, muito problemática em seu
interior. Um exemplo diferente da relação entre identidade celta e germânica é dado pela Suíça, pela
Bélgica, e por toda a herança de Lotário, terceiro herdeiro de Carlos Magno. Na Suíça, há um equilíbrio
sutil entre essas duas identidades. Mais do que uma síntese, é correto falar de harmonização. Em vez
disso, o que vemos na Inglaterra é uma absoluta desarmonia. Há um lado germânico bastante agressivo
ao lado de uma parte celta extremamente deprimida.
Eles não formam um ὅλος (hólos), uma estrutura holística, mas uma entidade bipolar com um profundo
conflito interno que não pode se curar internamente e, portanto, se expande para o exterior. Isso deu
origem ao império britânico, cuja expansão é semelhante à explosão de uma mistura instável composta
por dois elementos contraditórios. Se o Logos celta, essencialmente francês, tem mais traços dionisíacos,
mas também apresenta muitos aspectos do "duplo negro" de Dioniso, se o Logos germânico é apolíneo,
mas sempre existe a possibilidade de uma tradução para o campo do titânico, a cultura inglesa reúne de
maneira extremamente conflitante o duplo negro de Dioniso e os aspectos titânicos do Logos germânico,
e os expande mundialmente.
O resultado é a expansão do império britânico – capitalismo, imperialismo, liberalismo, etc. -, ou seja, o
contágio em escala global de uma doença que não foi e não pode de forma alguma ser tratada
internamente. Essa relação instável e contraditória subjacente à esquizofrenia inglesa se manifesta no
principal mito inglês: a luta entre o dragão vermelho e o dragão branco. Os dois dragões representam
respectivamente as identidades celta e germânica, e ainda estão em batalha desde que o fim do império
britânico não produziu nenhuma mudança na mente inglesa, não a curou. Ela permanece doente, bipolar
e hoje, como ontem, se encontra imersa nesse conflito.

O Novo Mundo

Perto do século XVI, os europeus descobriram e começaram a colonizar o continente americano,


renomeando-os de “Novo Mundo” [10]. Portanto, embora a América do Norte e a América do Sul
apresentem dois Logos diferentes, nos dois casos estamos lidando com Logoi que, em sua origem, são
coloniais, pois representam projeções transatlânticas da Europa que transformaram os traços originais
das culturas locais. Especificamente, na América do Sul, encontramos hoje uma continuação e
ramificação do Logos Latino, já que seus territórios foram conquistados principalmente pela Espanha e
Portugal, os portadores juntamente com a Itália precisamente do Logos latino. De fato, o Logos ibero-
americano apresenta uma estrutura apolíniea, que, no entanto, incorporou as populações pré-europeias
não sem problemas, mas ainda gerando uma síntese harmônica.
O mesmo não pode ser dito da América do Norte. Aqui os anglo-saxões trouxeram sua doença com eles.
Como conseqüência, em vez de integrar os povos indígenas em sua sociedade, eles começaram a
destruir os indígenas e deram à luz uma sociedade norte-americana doente, em muitos aspectos afetados
pelos mesmos problemas anglo-saxões. No entanto, ao contrário da Grã-Bretanha, aqui podemos
identificar um Logos.
O Logos norte-americano pode ser identificado na filosofia pragmática, que constitui a principal corrente
filosófica da América do Norte. Na base dessa filosofia está a ideia de que não há conhecimento
normativo sobre o sujeito e o objeto, mas que apenas a interação deles existe na prática. Querendo
simplificar, não há prescrição do que o sujeito ou o objeto deve ser – do que deve ser a matéria, a
natureza, o cosmos ou a alma do homem. Teoricamente, você pode fingir ser o que você quiser, talvez
Elvis Presley ou um marciano. Só existe o que funciona. Se funcionar, ótimo; se não funcionar, pior para
você, mais sorte na próxima vez.
Os filósofos pragmáticos americanos acreditam apenas no que constitui interação prática. Daí vem a
liberdade pragmática de considerar o mundo da maneira que desejarmos. É por isso que quando filósofos
americanos tentaram adaptar Heidegger ao pragmatismo não se trata mais de Heidegger, mas de uma
leitura american de Heidegger, precisamente porque eles compreenderam apenas aquilo que dizia
respeito a relação, a interação, a algum elemento prático.
Se, por exemplo, queremos construir uma máquina do tempo, somos livres para fazê-lo, porque algo
acontecerá na construção dela; talvez não viajemos no tempo, mas provavelmente faremos algumas
descobertas científicas ou adquiriremos um conhecimento que será útil no campo comercial talvez
encontremos um novo elemento para construir uma nova lata de Coca Cola! Você é totalmente livre para
tentar o que desejar, porque não há limitações de qualquer tipo sobre o sujeito ou objeto, ou melhor, não
há sujeito e objeto, apenas existe interação entre eles, e a interação é prática e pragmática. Este é o
Logos norte-americano.
No entanto, hoje, na era da globalização, estamos testemunhando seu desaparecimento. De fato, a
globalização da qual a América é promotora representa uma forma de colonização, mas o colonialismo
tem em si um propósito, um objetivo final, uma prescrição, e isso distorce a própria América porque o
Logos americano pragmático não pode tolerar nenhum fim ou prescrição. Na perspectiva pragmática,
você pode tentar de tudo, algo vai acontecer ou não,, mas nada pode ser prescrito para ninguém.
O politicamente correto, por exemplo, com seus ditames do que pode e não pode ser dito, é
antipragmático e, portanto, antiamericano, uma vez que, do ponto de vista pragmático, é preciso ser livre
para dizer qualquer coisa e agir da maneira que preferir, construir qualquer monumento ou não ter
monumento nenhum, já que nada existe interna ou externamente – como eu já disse, não existem
concepções normativas sobre sujeito e objeto, mas apenas sua interação prática. Este é o puro Logos
norte-americano, algo certamente diferente da América globalista de hoje. 

O Logos Eslavo

Ao final dessa análise noológica, em termos resumidos, dos diferentes horizontes existenciais que
constituem a civilização européia, ainda precisamos lidar com o espaço eslavo. Em primeiro lugar, os
eslavos constituem, sem dúvida, uma sociedade indo-européia; no século passado, os povos eslavos
sofreram uma grande influência por parte do Ocidente, portanto, em parte, compartilham alguns
problemas metafísicos com alemães, franceses, britânicos, gregos, latinos, mas possuem características
peculiares. Nós dedicaremos à identidade sérvia uma aula específica, mas o que podemos dizer sobre o
Logos eslavo em geral? Ele é claramente parte do espaço cultural helenístico, assim como todos os
outros Logoi que descrevemos, que nascem do cristianismo helenístico, do qual representam diferentes
combinações; no entanto, é ao mesmo tempo evidente que o Logos eslavo, ao contrário de outros Logoi,
não constitui algo completo ou dado.
Em outras palavras, é um Logos aberto, e isso constitui um desafio para nós eslavos. Em relação ao
Logos russo, ou melhor, à sua possibilidade, o último livro da série Noomaquia (até o momento ainda não
foram todos publicados) é dedicado a ele [11], mas também estudei em outros livros fora do projeto
Noomaquia a possibilidade de uma filosofia russa, baseada em Heidegger [12]. No que diz respeito ao
Logos eslavo da Europa Oriental [13], é certamente possível e em alguns momentos históricos os eslavos
se aproximaram dele – por exemplo, sob o imperador sérvio Estêvão Ducham, o Poderoso, no Primeiro e
Segundo Império Búlgaro, em alguns momentos na Confederação Polaco-Lituana, como na Grande
Morávia, em algumas tendências filosóficas particulares – mas nós, eslavos, até agora nunca
conseguimos chegar à versão final deste Logos eslavo, nem na Europa Oriental nem na Rússia.
O horizonte existencial eslavo não está completo, não recebeu sua formalização definitiva e talvez este
seja o desafio histórico que enfrentamos.
Os filósofos eslavófilos observaram que nós eslavos entramos em nossa história mais tarde do que outros
povos, de modo que, enquanto os enormes edifícios da filosofia alemã, francesa, romana, grega etc., já
estavam erguidos juntamente com histórias políticas relacionadas, nossa filosofia ainda é relativamente
verde.
Não é que chegamos tarde à história, chegamos tarde a um entendimento da história e da nossa filosofia.
Vimos uma grande explosão de riqueza intelectual por parte de alguns pensadores de alto valor, tal como
Pedro II Petrovic-Njegos, o russo Dostoiévski, mas tudo isso representou mais o pré-anúncio do Logos do
que o próprio Logos. Vivemos na antecipação do Logos eslavos. Nós fazemos isso perfeitamente quando
estudamos nosso passado; ele está cheio de feitos heroicos, mas nenhum deles mostra o Logos eslavo
em sua forma final.
Personagens como São Sava, um precursor da missão histórica da Sérvia, ou Ivan, o Terrível na Rússia,
foram uma espécie de antecipação do Logos Eslavo. Isso torna mais difícil para nós, eslavos, descrever
nosso Logos do que estudar os Logoi de outras culturas, uma vez que essa atividade requer uma análise
introspectiva de nossa cultura muito mais profunda e exigente.
No entanto, se quisermos delinear uma descrição resumida dos Logoi eslavos possíveis, mas ainda
inacabados, podemos dizer que os eslavos têm características marcadamente dionisíacas e cibelinas,
devido à proximidade do pólo do matriarcado nos Bálcãs, apesar dos diversos elementos apolíneos. O
camponês europeu é de fato de origem balcânica, como vimos no início desta lição, e esse aspecto deve
ser levado em consideração.
Também é necessário reconhecer que por alguns séculos nós eslavos sofremos a influência de outros
horizontes existenciais, que definiram muitos aspectos de nossa consciência atual. Incidentalmente, isso
faz o estudo aprofundado dos horizontes existenciais que nos cercam uma condição necessária para que
nós, eslavos, possamos entender onde estamos, com quem nos relacionamos – quem deve ser
considerado um amigo e quem é um inimigo, quem para nós é um salvador e quem é um opressor – e , a
coisa mais importante, quem somos, de modo que sem conhecer os outros, não podemos conhecer a nós
mesmos. No entanto, apesar das influências externas, preservamos nossa identidade, mantivemos o
coração de nosso horizonte existencial essencialmente eslavo, e essa é uma verdade científica.
Talvez ele esteja enterrado nas profundezas, mas ele existe e esse coração ainda bate. E a tenaz
resistência sérvia à globalização foi um exemplo. Sim, terminou em derrota. Assim como a batalha pelo
Kosovo foi perdida. Mas é sobre essas derrotas que a vitória final será construída; é na capacidade de
resistir que a futura ressurreição será fundada.
A morte heróica é também a promessa de ressurreição. Na sinceridade, sou muito pessimista em relação
ao estado da sociedade eslava moderna, mas, ao mesmo tempo, tenho muito otimismo quanto à
possibilidade desse Logos eslavo. Ele ainda está inacabado, mas isso constitui o principal desafio para
uma nova geração da elite intelectual eslava, que é chamada a dar o passo final, completando toda a
experiência histórica de nossa presença ontológica no mundo.

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