Professional Documents
Culture Documents
Informação e Sociedade
Informação e Sociedade
artigo de revisão
REPRESENTAÇÃO E DOCUMENTO:
um estudo a partir das fotografias de objetos
da sala de visitas do escritor Jorge Amado
P
ara compreender a imagem fotográfica produzidos nos sujeitos e no mundo não podem
como imagen técnica, representação e ser tratados de forma teórica ou abstrata. É
documento é preciso que se reflita sobre preciso que sejamos auxiliados por um contexto
os fatores socioculturais, ideológicos e históricos empírico no qual se possam observar as escolhas,
que vêm determinando os seus conceitos porque, as percepções, seu impacto. Foi preciso, portanto,
numa homologia com a história, as imagens neste estudo, que elegêssemos um universo,
fotográficas estão diretamente relacionadas ao um contexto empírico e que buscássemos
universo das ideias e das mentalidades que compreender a ascensão da fotografia como
permeiam sua produção e trajetória. documento social e instrumento da pesquisa
Por vir do latim imago, a palavra imagem científica, a sua apropriação e uso pelas Ciências
remete à representação de algo que se pode Sociais e em especial pela Ciência da Informação.
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 91
Alzira Tude de Sá
Foi por meio do estudo e análise dos objetos da sala de visitas do escritor Jorge Ama-
registros fotográficos dos objetos da casa do do, representadas no livroRua Alagoinhas 33, Rio
escritor Jorge Amado, que compõem o livro Vermelho (RUA..., 1999), seguimos um percurso
Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho (RUA..., 1999), cujo procedimento inicial constituiu-se da pes-
em especial, aqueles encontrados em sua sala quisa bibliográfica e documental. Caracterizada
de visitas, que realizamos esse intento, que se quanto à tipología como uma pesquisa explora-
reveste do desejo de identificar, nesses registros, tória, ela foi guiada pelo método heurístico, cuja
as marcas das relações socioculturais que foram escolha foi inspirada na leitura e decifração da
tecidas pelo escritor, ao longo do tempo. Prancha 79, de Aby Warburg, realizada pelo an-
Essas imagens se constituem em uma tropólogo Samain (2012). Nas etapas de desmon-
representação dos espaços e objetos da casa do tagem e remontagem das imagens fotográficas,
escritor, uma realidade ausente, que nos é dada apelamos para a intuição e a percepção, princi-
“por delegação”, capturada pelo olhar de um pios recomendados pelo método, agregando à
sujeito que sobre essa realidade se posiciona leitura novos valores e significados, construindo
e a enquadra, o fotógrafo.Uma realidade versões e narrativas que nos fizeram atingir o
representada e mediada, arbitrariamente, que pretendíamos, ou seja, demonstrar, através
cuja leitura não se exaure nas interpretações e da leitura e decifração do discurso visual, a pos-
reinterpretações possíveis, por estarem à mercê sibilidade de constuir-se um discurso verbal que
da produção de sentido de quem as olha ou as deixasse à mostra as relações socioculturais cons-
lê. Estamos, portanto, diante de um realismo que, truídas pelo escritor Jorge Amado.
segundoAumont (1993, p. 105), é resultante “[...]
de um conjunto de regras sociais com vistas a
gerir a relação entre a representação e o real de 2 A REPRESENTAÇÃO DO REAL
modo satisfatório para a sociedade que formula
essas regras.” A representação implica uma coisa no
Partindo da premissa de que toda imagem lugar da outra, como Gil (2000, p. 12) a considera
é uma cena recriada ou reproduzida, uma na Enciclopédia Einaudi.
aparência ou conjunto de aparências destacada
Em todas as formas de representação
do lugar e do tempo em que fez sua primeira uma coisa se encontra no lugar de
aparição, ela incorpora uma forma de ver, feita outra, representar significa ser o outro
a princípio para evocar as aparências de algo dum outro que a representação, num
ausente. No entanto, aos poucos foi se tornando mesmo movimento, convoca e revoca.
“[...] evidente que uma imagem pode ultrapasar, Reteremos essa significação como uma
determinação mínima. O representante
em duração, aquilo que representa ao mostrar é um duplo do representado. (GIL,
como uma coisa ou alguém havia antes se 2000, p. 12).
parecido, e assim por implicação, como o assunto
fora antes visto por ou adquirido anteriormente Não nos limitando à etimologia ou ao
por outras pessoas.” (BERGER, 1999, p. 12) conceito para um melhor entendimento sobre
Por meio de filtros do presente, as imagens imagem e representação, recorremos a teóricos
são lidas e, a posteriori, a elas são agregados no- como Aumont (1993), pensador dedicado
vos valores e significados que vão construindo e aos problemas que envolvem o conhecimento
reconstruindo versões em temporalidades distin- contemporâneo sobre o assunto; a Pesavento
tas, acabando por alterar, muitas vezes, o curso (2005) e Bachelard (2008), por se reportarem à
da história. Como diz Gombrich (1986, p. 135), imaginação como um caminho para se entender
“[...] a significação de uma imagem permanece a realidade; a VilémFlusser (2011) por nos fazer
grandemente tributária da experiência e do saber entender que a imaginação é a capacidade
da pessoa que a contempla”, ou seja, cada sujeito de fazer e decifrar imagens, bem como por
imprime à imagem formas de representação e lei- considerar as imagens técnicas, e dentre elas
tura, resultantes da cultura no qual está inserido a fotografias, tão simbólicas quanto todas as
e de acordo com a sua visão pessoal de mundo. imagens.
Para a leitura a posteriori, análise, descrição Na área da Ciência da Informação, as
e decifração visual das imagens fotográficas dos pesquisadoras Alvarenga (2003), Andrade (2006),
92 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
Manini (2011), Curras (2010) e HildeniseNovo traduzem a visão de mundo que cada um
(2013) abordam questões que envolvem a de nós possui em determinado momento
imagem e a representação da informação e sócio-cultural e histórico e que está
também presente nas linguagens
do conhecimento no contexto da ciência e da utilizadas e nos suportes disponíveis. [...]
pesquisa. Quanto à posição do leitor/espectador, o registro do conhecimento por meio
uma das razões essências da fabricação de de representações revela a relação das
imagens, Aumont (1993, p. 78) considera que ideias e das ideologias com as técnicas.
a representação “[...] provém da vinculação da (ANDRADE, 2006, p.47)
imagem em geral com o domínio do simbólico,
o que faz com que ela esteja em situação de Esse processo, no âmbito da Ciência da
mediação entre espectador e a realidade.” Informação, visa materializar a informação
Como um dos valores da imagem em contida em documentos, nos seus mais variados
sua relação com o real, a representação é um suportes, convertendo-a numa linguagem
processo pelo qual se institui um representante que deve estar voltada para o entendimento
que, em certo contexto limitado, tomará o lugar humano, para a difusão e disseminação da
do que representa, apesar de toda arbitrariedade informação. Como preconiza Currás (2010, p. 18),
do processo de instituição de um substituto. O a organização do conhecimento representado é a
caráter de evidência, nesse sentido, é colocado em causa, a origem e a consequência das atividades
xeque, especialmente aquele atribuído à imagem cognitivas humanas, desde quando a busca pela
fotográfica que, como uma representação, é representação e organização da informação se
assentada em convenções socioculturais. dá utilizando-se das linguagens disponíveis
Não se pode esquecer que, desde sempre, no contexto da produção e comunicação do
o homem criou e desenvolveu formas de se conhecimento; e por ser algo eminentemente
comunicar buscando estabelecer, com o outro, social, a linguagem é e tem sido organizada
relações sociais e, sobretudo, dar visibilidade em sistemas aceitos e reconhecidos pelas
ao pensar e sentir por meio de representações, comunidades que dela se utilizam, sendo ela
cujo propósito era repassar o conhecimento que uma representação do real.
ia adquirindo sobre si e sobre a realidade que o Partindo-se do princípio de que toda
cercava. Vale ressaltar que a impossibilidade do representação do conhecimento é social e
homem de abarcar e entender o mundo, a própria simbólica e que representar significa o ato de
produção de conhecimento, o tem levado à busca colocar algo no lugar de, é que ela consiste na
de formas de interpretação e representação desse assimilação dos bens, das coisas, dos entes,
mundo, uma ânsia ontológica pela permanência num processo cognitivo que, na perspectiva
do ser e das coisas, pelo seu entendimento, que de Alvarenga (2003), inclui as etapas de
vem de tempos imemoriais. Desde as cavernas, percepção, identificação, interpretação, reflexão
desde Aristóteles que, diante da existência e codificação. Ao viver essas etapas é que o
de todos os tipos de entidades abstratas ou sujeito cognitivo vai se apercebendo de um novo
concretas, bens, coisas, ente, constituintes da ser, de uma nova coisa, vai se aprofundando
existência do mundo, ele criou categorias que no conhecimento do já conhecido por meio
buscavam classificá-las, levando em conta as dos sentidos, da racionalidade, emoção e da
diferentes propriedades das espécies do mesmo linguagem em um processo de conhecimento,
gênero. na assimilação das coisas por meio de suas
Quando Andrade (2006, p.47) analisa as representações.
representações no universo do conhecimento, No mesmo diapasão que os autores
referenda as premissas que apresentamos citados, Novo (2013, p. 116) esclarece que: “A
anteriormente. A autora assim se expressa: representação é um processo mental pelo qual
o indivíduo busca o significado, descrevendo
No processo de transmitir informações, o que deve ser representado e designado, onde
o homem foi criando meios de
registrar conhecimentos e elaborou
a relação sujeito x objeto se estreita para que
o processo de registro e construção se possa alcançar a interpretação do mundo
do conhecimento por meio de a ser representado.” Não foge, portanto, à
representações. Estas traduziam e conceituação de que, ao representar a realidade,
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 93
Alzira Tude de Sá
estamos colocando algo em lugar de outro, com No mesmo diapasão, Francastel (1982,
o objetivo de materializar a imagem que foi, em p. 3), quando analisa o universo pictórico e da
sua gênese, produzida pela mente do homem, ou escrita, possibilitado ao homem e à História e
mesmo de algo já existente, em sua fisicalidade. como únicos meios representativos do mundo,
alerta para a importância das imagens como
fonte de informação e para o fato de que “[...]
2.1 Representar o real: como isto sucede
seria infantil pensar que os únicos valores criados
com a imagem fotográfica? pela História sejam os que a escrita consignou.”
Advoga no seu livro A realidade figurativa, que
Vejamos! Quando surge a fotografia, a função da arte é ir além do domínio das
antigas formas de representação do mundo satisfações fáceis e imaginárias e que ela propicia
foram ameaçadas. Registrar e produzir imagens que atividades fundamentais dessa sociedade
do mundo, da natureza e dos homens tal como sejam reveladas através das “[...] condutas –
se apresentam, desestabilizou antigas formas de gestos – senso - motores e representações.”
representação. A pintura foi uma delas. A “[...] Atentando para a possibilidade de as imagens
sua objetividade confere, de forma unânime, um serem, simplesmente reduzidas ao signo, o que
papel determinante como documento desde o seu nada significariam, aponta para o fato de que
advento,” como afirmam Bucceroni e Pinheiro
(2009, p. 2). [...] por seus elementos, a imagem é
Contestada por alguns quanto ao valor de exatamente o reflexo da experiência
representação, a fotografía foi ao encontro a um pessoal na medida em que é comum
a um certo número de indivíduos,
meio artístico que não era acostumado a uma ela é por essência, ao contrário,
forma de reprodução tão mimética e objetiva, que elaboraçãocriação de um mundo
não se apropriava da técnica para a reprodução não, é claro, como se costuma dizer,
do real. Na pintura, entre a realidade do mundo absoluto, mas irreal e deformável a todo
e a sua representação, a mão do homem. momento, suficientemente imaginário
[...]. (FRANCASTEL, 1982, p. 3)
Nenhum aparelho. A fotografia se interpôs
nesse espaço, introduzindo a técnica. Samain
Novas formas de ver o mundo e o
(1998, p. 13) quando procura situar o fotográfico
fotográfico coincidem com o momento em que se
na perspectiva de uma visualidade originária,
instaura, segundo Pesavento (2005, p. 9), “[...] uma
constitutiva do homem, considera que a imagem
crise de paradigmas explicativos da realidade,
fotográfica “[...] teve de atravessar, ao longo
[que ocasionou] rupturas epistemológicas
de milênios, outros meios de comunicação que
profundas que puseram em xeque marcos
foram e são ainda a oralidade e a escrita antes
conceituais dominantes na História.” Modelos
de poder constituir-se como fotografia.” Para o
e regimes de verdade entraram em colapso e
autor, que não receia afirmar,
a realidade, sua representação e mimetismo,
[...] o fotográfico representa nossa vi- escaparam aos “marcos racionais e da logicidade.”
sualidade primeira que, quase que sub- Marcos que também são realçados por Dubois
mersa, durante séculos, nas águas da (2012), quando narra os modelos correntes
oralidade e da escrita, remontou, muito de análise sobre a fotografia, apontando para
recentemente á superfície dando-nos a o marxismo e a corrente dos Annales como
ver o mundo através de uma mediação
técnica suplementar: o próprio disposi- defensores de matrizes interpretativas da
tivo fotográfico e o signo visual que ele realidade.
proporciona. (SAMAIN, 1998, p. 13) Esse é um tempo em que a veracidade dos
fatos históricos é também colocada em xeque,
E, ademais, ao situar o fotográfico nessa assim como a verossimilhança e a veracidade
perspectiva temporal e como visualidade dos discursos. Tempo que, na perspectiva de
primeira, antes da fotografia, Samain (1998) Pesavento (2005, p. 9), desloca-se a “[...] atenção
reconhece que o mundo primeiro é visto pelo dos objetos para os métodos de estudo,” e
homem; só depois ele é nomeado e dele se fala. contexto no qual Ricouer (1994-1997) lança
Anos foram precisos para que o homem viesse a a obra Tempo e narrativa, considerando que
escrever sobre ele. Representá-lo. toda narrativa histórica representa um tempo
94 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
passado, na qual o leitor busca encontrar o estabelecer uma relação com o mundo e as
real. Na perspectiva do autor, toda narrativa se coisas que podem ser atestadas através dos
estrutura no sentido de representar e reconstruir modos: simbólico, epistêmico e estético. Para
esse tempo passado e como uma representação, o autor, a realidade é sempre construída por
busca colocar-se no lugar do acontecido, afirmar regras determinadas e a imagem, como uma
que “isso foi,” estava lá, e dar-lhe um significado, representação, é interpretada de acordo com
tanto quanto as representações fotográficas. valores implícitos nos padrões culturais do olhar
Vale ressaltar que todo acontecido representa- social.
do nas imagens fotográficas é fruto de escolhas, nas No entanto, por não estabelecer uma
quais as técnicas interferem, bem como as infinitas relação determinista com o signo, a imagem,
possibilidades de enquadramento do real por parte segundo Francastel (1982, p. 107), “[...] é tão
do sujeito. A maneira de se estar no mundo, o ângu- variável quanto o número de espectadores [e]
lo como se olha e se pensa o mundo, a possibilidade não é mais estável do que as interpretações”, daí
de se dizer “isso foi,” em cada época e lugar, levam elas não se situarem no objeto representado, mas
os homens a construir representações, formas de no espírito dos seus usuários que, em distintas
expressão e tradução da realidade que buscam dar temporalidades,emprestam a elasdistintas versões.
sentido ao real, às coisas, às ações, aos sujeitos. Tais Essas premissas também nos levam a reconhecer
formas, carregadas de sentido, se apresentam mui- que, por meio de imagens representativas de
tas vezes de maneira cifrada, cheias de significados determinada cultura, podemos perceber a noção
e valores, o que leva uma corrente de pensadores, e de mundo, bem como os mecanismos sociais que
dentre eles Pesavento (2005), a considerarem que o acabam por determinar os padrões de percepção.
imaginário se tornou um conceito central para a re- A determinação desses padrões é refletida
presentação e análise da realidade. por Flusser (2011) quando analisa, criticamente, a
Para a autora, o imaginário passa a relação que se estabelece entre as imagens e seu
traduzir a experiência do vivido e do não vivido, receptor.
das coisas vistas e imaginadas, do suposto, do
desconhecido ou desejado, havendo um lado que O homem ao invés de se servir das
imagens em função do mundo, passa
se reporta à vida e outro que se reporta ao sonho.
a viver em função de imagens. Não
Em cada época e lugar, os homens constroem mais decifra as cenas da imagem como
representações imagéticas que buscam dar significados do mundo, mas o próprio
sentido ao real, daí o imaginário que se constrói mundo vai sendo vivenciado como
ser datado, histórico, comportando valores, mitos conjunto de cenas. (FLUSSER, 2011, p.
23)
e ideologias. Partindo desses pressupostos, a
imagem é tida como a representação de uma
Fica evidente que não podemos
realidade cultural, através da qual o indivíduo ou
abordar questões sobre a imagem técnica, na
o grupo que a elabora revela e traduz o espaço
contemporaneidade, sem levar em conta a sua
cultural e ideológico no qual está inserido,
singularidade, sem transpor a fronteira entre a
podendo a sua representação ser considerada
percepção visual e a percepção cognitiva, sem
“sintoma” de uma época e das ideias de homens
dela nos aproximarmos através de mecanismos
de outros tempos. A reconstituição das idéias e
de compreensão de sua produção de sentido.
dos sentidos conferidos ao mundo manifestam-
Fica configurado que uma imagem fotográfica
se em palavras, discursos, imagens, coisas e
não é jamais a re-produção de uma representação
práticas,
anterior, que ela é sempre a proposta de uma
Como representações codificadas da
representação futura, uma imagem precária
realidade, as imagens fotográficas são criadas
como a considera Schaeffer (1996, p. 57).
com um determinado fim e uso, seja individual
ou coletivo. Como mediadoras entre o homem e
o mundo, as imagens se propõem a representar 2.2 Como documento não foge à regra
esse mundo, desde quando, de início, este não
lhe é acessível. Essa questão nos leva de volta
ao discurso de Aumont (1993, p. 80) para quem, A verdade dos fatos das coisas não
na fabricação da imagem, subjaz o desejo de coincide com a verossimilhança dos
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 95
Alzira Tude de Sá
discursos e das imagens. Apesar de seu Esta propunha validar a fotografia não só como
contato com as coisas, a fotografia - documento, mas como um documento-subsídio
documento não foge à regra: ela própria para os estudos historiográficos, utilizado nas
obedece à lógica da verossimilhança,
não a da verdade, a passagem da pesquisas sobre a sociedade e suas práticas.
verossimilhança para o real e para o Segundo Le Goff (2003), estudioso dos
verdadeiro é, também com ela sempre Annales, a investigação histórica deveria ampliar
sinuosa e improvável. (ROUILLÉ, 2009, o leque documental para além dos registros
p. 76) escritos e orais, contexto no qual a fotografia
O trajeto feito pela fotografia, que a fez passa a ser compreendida como documento
passar de uma invenção do século XIX, caracte- e registro válido para o estudo da disciplina
rizada pelos traços puramente documentais de História. Tais alterações passaram a considerar
representação da realidade, para a sua utiliza- a fotografia como detentora de uma sintaxe
ção como uma ferramenta eficaz de análise da própria ao estabelecerem-se novos conceitos de
sociedade e da cultura, andou em paralelo com realidade, outras modalidades metodológicas,
a mudança no conceito de documento que rever- matrizes teóricas menos rígidas, novas formas de
berou sobre o valor epistemológico negado e ora pensar o fazer histórico, referenciais de análise
agregado à imagem fotográfica como documento mais atuais, novas formas de olhar o social e suas
na pesquisa e produção científica. Desde o seu representações. A repercussão na renovação dos
advento, a fotografia foi considerada uma ferra- conceitos atribuídos ao documento, em diferentes
menta utilitária, capaz de captar a realidade, o áreas do conhecimento, se deu de forma visível.
que viabilizava o seu uso prático e a sua inserção Consciente de que as fotografias são porta-
na dinâmica da sociedade industrial. doras de pensamento e como tal nos fazem pensar
No século XIX, a sociedade buscava uma que são registros da cultura material, do compor-
forma de representação do mundo que atendes- tamento, hábitos e costumes, Samain (2012) alerta
se aos seus anseios, à organização social, políti- para o fato de sermos conduzidos, no mundo oci-
ca, ao nível do crescimento e avanço tecnológico dental, por uma ordem epistemológica que privi-
atingido. Foi a fotografia a melhor resposta a esse legia o verbal escrito em detrimento da imagem.
anseio e necessidade, cuja legitimidade se ancora Somos guiados por uma ordem em que a percep-
nas suas funções documentais, pensamento co- ção mágica que dá início a qualquer construção
mungado por Bucceroni e Pinheiro (2009, p. 2), cultural foi confrontada pela lógica da escrita li-
quando afirmam que a “[...] sua objetividade con- near, que acabou por impor uma postura mais ra-
fere, de forma unânime, um papel determinante cional, determinante na relação do homem com o
como documento desde o seu advento.” mundo e consigo próprio, no processo de acumu-
A mecanização da produção da lação de conhecimentos e de trocas sociais na qual
imagem fotográfica, nesse período, trouxe a a supremacia da escrita prevaleceu.
reboque a racionalização e a aceleração do seu Não só na História, mas em outras Ciên-
processo de produção, no entanto, não trouxe cias Sociais e Humanas, o conceito de documento
consigo nenhuma modificação no que tange à sofreu mudanças significativas das quais desta-
representação do homem e do mundo, muito camos aquelas advindas do pensamento de Briet
menos o seu acolhimento como uma fonte de (1951) e Otlet (1996), referências sempre presen-
informação. Foram as mudanças advindas das tes, quando o assunto tratado é a Documentação.
transformações ocorridas no final do século XIX Para Otlet (1996, p. 43) a noção de documento
e início do século XX, a respeito do conceito de “[...] cubre a la vez todos los tipos: volúmenes [li-
documento e sua ampliação, agora visto como vro], folletos, revista, artículos, cartas, diagramas,
instrumento de promoção e circulação social fotografías, estampas, certificados, estadísticas,
do conhecimento, que determinaram um novo incluso discos fotográficos e películas cinemato-
pensar sobre a fotografia e seu valor documental. gráficas.” Os esforços voltados para uma concei-
O debate em relação ao uso da fotografia como tuação funcionalista do documento encontraram
elemento para análise da pesquisa histórica foi em Otlet, em 1934, um precursor. Ele propunha
estabelecido em consonância com alterações que documento como um termo genérico abar-
ocorridas no âmbito da própria História, da casse não só os documentos escritos, mas aqueles
corrente historiográfica da Escola dos Annales. caracterizados como iconográficos e audiovisuais.
96 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
(OTLET, 1996). Na esfera da Documentação, ele tiva é viabilizada pela técnica. Como observou
antecipa e amplia a noção ao afirmar que os obje- Buckland (1997), a materialidade do documento
tos podem ser vistos como documentos, por consi- para Briet (1951), a intencionalidade do sujeito e a
derar que livro e documento se constituem como forma como é processado são os critérios que de-
“[...] un suporte de una ciertamateria y dimensión, vem ser usados para defini-lo. Tendo partido em
[...] enel que se inclyem signos representativos de defesa de pressupostos que consideram a infor-
ciertos dados intelectuales”. (OTLET, 1996, p. 43) mação como coisa, a informação como processo e a in-
Quando Bucceroni e Pinheiro (2009, p. formação como conhecimento, Buckland (1991) prio-
10) discorrem sobre o Zoom de Otlet na fotografia, riza a materialidade como um fator fundamental
no artigo sobre a A imagem fotográfica como para o fazer documentário, tal qual Briet, e na sua
documento: desideratos de Otlet, afirmam que “[...] perspectiva a informação como processo e a in-
a fotografia é para Otlet, o tipo de documento formação como conhecimento são intangíveis e a
gráfico que melhor exprime o conhecimento informação como coisa se reporta à materialidade
humano, por ser o mais realista.” A visível da informação.
crença na objetividade que grassava nesse Vamos encontrar em Manini (2012), par-
período, o estigma do mimetismo atribuído à tindo das proposições de Buckland, (1991) uma
fotografia, consubstanciaram a crença de Otlet abordagem semelhante aplicada ao documento
(1996, p. 200) na fotografia como mímese do fotográfico, quando ela faz uma leitura da tríplice
real, levando-o a afirmar que “La fotografia es el concepção do autor: a fotografia como informa-
medio de representación más realista, aquel cuya ção como coisa, que remete a objetos fotográficos
objetividad mecânica alcanzala más preciada (negativos de vidro e flexíveis, positivos em pa-
aproximación cuando se trata de obtner de La pel, diapositivos); a fotografia como informação
naturaleza um imagenen dos dimensiones.” como processo, que remete à pesquisa histórica
Um pouco mais a frente, na França, Briet contextualizadora da imagem e sua correlação
(1951, p. 7), no artigo Qu’est-ce que ladocumentation?, com outros documentos fotográficos ou textuais
retoma a discussão sobre a noção de documento ou outros quaisquer na construção e/ou amplifi-
e documentação, propondo uma releitura dos cação de sentido da imagem; e a fotografia como
conceitos de Otlet e da L’ Union Françaisedes informação como conhecimento, que remete a re-
Organismes de Documentation. Constata que o sultados de investigações e pesquisas de caráter
documento é “[...] toda base de conhecimento fixo comparativo entre fotografias e textos históricos.
materialmente e susceptível de ser utilizado para Outras formas de entendimento e uso
consulta, estudo ou pesquisa.”1 A autora propõe da fotografia como documento e como um
outra definição que julga mais atual e abstrata, ou meio de observar e fixar o efêmero, pelo qual
seja. que o documento é “[...] todo signo indicial podemos acompanhar as transformações
concreto ou simbólico, preservado ou registrado sociais, comportamentos e a desaparição do
para fins de representação, de reconstituição ou mundo, estão associadas a disciplinas nas quais
de prova de um fenômeno físico ou intelectual.”2 a fotografia tem sido utilizada largamente,
(BRIET, 1951, p. 7, tradução nossa) conforme declaração da pesquisadora Tardy
A noção de documento como signo, uma (2015, p. 251):
proposta de Briet (1951) para quem o documen-
to se configura como uma evidência física, leva-nos Esta capacidade de tornar visível uma
extensão espacial através da ferramenta
a crer que todo documento é um signo indicial e
fotográfica nas ciências humanas
que arroladas estarão as fotografias na sua con- concerne mais amplamente às ciências da
ceituação de documento. Para a autora, a fotogra- astronomia, da biologia, da medicina, da
fia como documento passa a ser um signo por ser arqueologia, que têm uma longa tradição
o resultado de uma apreensão do real que leva à na forma de equipar o olho para fazer
emergir o invisível ou o não perceptível.3
comprovação de um fato ocorrido, cuja perspec-
(tradução nossa)
1 “[...] toute base de connaissancefixéematériellementetsusceptible 3 Cette capacité à donner à voir une étenduespatiale par
d’êtreutiliséepourconsultation, êtude ou preuve.” l’outilphotographiquedans les scienceshumainesrejoint plus largement les
2 “[...] touteindiceconcret ou symboliqueconservé ou enregistré, aux sciencies de l’astronomie, de la biologie, de la medicine, de l’archéologie,
fins de représenter, de reconstituer ou de prouver unphénomène ou quiont une longuetraditiondans la maniéred’equiperl’oeilpour faire
physique ou intellectuel.” remonterl’invisibleou le non-perceptible.
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 97
Alzira Tude de Sá
98 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 99
Alzira Tude de Sá
2.2
2.1
2.3
2.4
Os registros fotográficos de número 2.1, 2.2, de Carybé, para a Paisagem com moça na
2.2, 2.3 e 2.4 compõem um conjunto temático de janela 2.3, pintada por Di Cavalcanti, e para os
figuras/objetos que representam elementos da Sobrados, 2.4, de Willys, obras que representam
cultura baiana e brasileira, presentes nas obras tipos e cenários que povoam o imaginário de
de Carybé, Di Cavalcanti e Willys. É como se os artistas e escritores, que encenam pessoas,
olhares desses artistas se voltassem para a mesma moradas e as ladeiras não só da Bahia, mas
direção do olhar do escritor Jorge Amado. Para de dezenas, centenas de cidades desse país.
a Baiana, figura/objeto 2.1, e os Cangaceiros, Mulheres, homens e cenários que compõem as
100 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
páginas dos inumeráveis romances de Jorge Canto de Ossanha, de Vinícius de Moraes e Baden
Amado, cujas visões imaginárias, construídas por Powell, tempos do cinema Novo, do Pagador de
brasileiros e estrangeiros, sobre a Bahia e o Brasil, promessas, da literatura de Jorge Amado, das artes
são alimentadas pela vida e obra do escritor. de Carybé, de Mário Cravo e tantos outros. Na
Executadas na década de 1960, entre perspectiva de Prandi (2009), esses são anos de
os anos de 1960 (2.3), 1962 (2.2) e 1968 (2.4), produção de uma nova forma de cantar, em que
, essas obras estão inseridas num tempo de elementos do candomblé vão se firmando, em
ebulição e dinamismo cultural em que “[...] que as mães de santo vão sendo reverenciadas
o país vive um processo de modernização por artistas e intelectuais, tais como Olga de
técnica e de renovação cultual manifestada pelo Alaketo e Mãe Menininha do Gantois. Vale
surgimento de diversos movimentos artísticos ressaltar que foi no início dos anos de 1960 que
que atingiram profundamente a sociedade Jorge Amado e Carybé foram agraciados com o
brasileira”. (CARVALHO, 1992, p. 47). Anos mais alto título do candomblé, o de Obá Orolu,
efervescentes no plano da cultura, anos da pelo Axé Opô Afonjá, de Mãe Stela de Oxossi, o
contracultura, da recuperação do exótico, do que veio a reforçar a presença das mitologias do
diferente, da valorização do outro, de povos candomblé na produção de suas obras.
distantes, orientais, da cultura negra e indígena. Nesse contexto, propício à criação de afi-
É o tempo do Brasil de Juscelino Kubitscheck, da nidades e aproximações, Jorge Amado transitava
chegada da televisão, da Bossa Nova, do Teatro e mantinha com pintores/artistas e artesãos uma
de Arena, do Instituto Superior de Estudos relação que ultrapassava o plano da amizade, a
Brasileiros (ISEB), que inspiram um clima de qual era ungida por afetos, identidades, espe-
euforia desenvolvimentista no Brasil e amplas cialmente com Carybé, por uma religiosidade
transformações sociais. professada nos terreiros de candomblé. Muitas
A Bahia de Magalhães (1959-63), também páginas por ele foram escritas louvando a relação
respirava os ares de modernização, movida que mantinha com artistas e artesãos das artes da
pelos ecos do discurso modernizador do governo Bahia. Não se furtava o escritor a tecer elogios, a
Kubitschek. Na Universidade, os reflexos se cobrir as paredes da casa com suas obras, muitas
fazem sentir nas transformações vividas sob a vezes inspiradas nos personagens de seus roman-
égide do Reitor Edgar Santos que a insere nesse ces, obras que se alojavam, muitas delas, na sua
processo, por meio da implementação de ações sala de visitas. Tanto é que um painel de Cala-
renovadoras que favorecem uma ambientação sans Neto, formado pelas talhas originais que
propicia à geração de artistas e intelectuais. compunham as ilustrações do romance Tereza Ba-
Muitos deles, Jorge Amado, Carybé, tista Cansada de Guerra, cobre uma das paredes do
Mário Cravo, Willys, Calasans Neto e tantos quarto de hóspedes.
outros, ao verem sua terra buscando a afirmação Confessa Gattai (2004, p. 44) que muito “Te-
da identidade, imprimem às manifestações ria o que falar dos quadros que embelezam nossa
culturais fortes características de “baianidade”. casa, iluminando suas paredes, trazendo ao nosso
(SÁ, 2010) A busca pelas raízes, pela origem, convívio artistas ainda vivos e outros que já se fo-
pela identidade, aflora na classe média e na ram. Lá estão Caribé, Di Cavalcanti, [...] Calasans
intelectualidade, cujo anseio era o de representar Neto, Willis, Djanira, Lev Smarcevisky [...]”, su-
a cultura de sua terra e de seu povo através do jeitos que, privando da intimidade da casa, par-
exotismo e da exuberância, da sua diferença. ticiparam como artífices, colaborando com a sua
Por meio das expressões culturais que lhes eram construção. Gattai (2004, p. 19) volta a reconhecer
próprias. Um projeto nacional de recuperação os préstimos dos amigos ao declarar que:
das origens que remetem à Bahia, desde
quando “Os artistas plásticos afro-baianos ou Entusiasmados com a vinda de Jorge para
seus simpatizantes arregimentaram-se para Salvador, amigos, artistas e não artistas,
dar visibilidade aos impulsos criadores [...]” alguns deles residentes no próprio Rio
conforme declaração do pesquisador Veiga (2006, Vermelho, ofereceram seus préstimos.
Colaboraram para transformar o que era
p. 112).
feio em bonito, num recanto aprazível
São desses anos as músicas cantadas por que prenderia o amigo para sempre na
Elis Regina – Arrastão, de Ruy Guerra e Edu Lobo, terra.
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 101
Alzira Tude de Sá
E o próprio Jorge Amado (1992, p. 68) ao executados pelo artista.5Amizade declarada nas
referir-se à participação e entrega dos amigos na palavras do escritor, cuja força e a crença na vida
construção e embelezamento da casa, afirma, no e obra do artista são projetadas para um futuro
livro Navegação de cabotagem, que precisaria “[...] apocalíptico, para o qual ele é alçado a redentor.
vender à empresa ianque os direitos autorais Assim acredita Amado:
de cinema de outro livro se devesse pagar as
doações, as dádivas.” E, como diz Amado, foi Quando nada mais restar de
autêntico, quando tudo se fizer
para prender o amigo para sempre que Carybé
apenas representação, mercadoria e
tomou de instrumentos, a goiva, o formão, o transformar-se em dinheiro na sociedade
macete; dos materiais mais nobres, a madeira, de consumo, a memória perdurará pura,
o cimento, o barro; e, armado com a força dos pois o filho de Oxóssi e de Oxum, o obá
orixás, fixou para sempre a face verdadeira da de Xangô, guardou a verdade íntegra
na criação de uma obra sem igual pela
Bahia em tantas pranchas e telas, superfícies e,
autenticidade, pela beleza, feita com as
dentre elas, na casa do Rio de Vermelho, 33, que mãos, o talento e o coração.” (AMADO,
dessa terra representava uma porção. Foi aquele 2012, p.177)
que, descrito por Gattai (1999), depois de ter
nascido na Argentina, aportou aqui na Bahia, Marcado pela presença de Carybé, pelas
com malas e bagagens, para comprovar que tudo figuras/objetos 2.1 Baiana e 2.2 Cangaceiros, o
o que Jorge Amado tinha escrito em Jubiabá era grupo temático Figuras da cultura baiana e brasileira
pura verdade. longe está de representar a intensa relação que
Pintor, desenhista, escultor, muralista, unia o escritor ao artista. Cantada em prosa e
escritor e jornalista, integrou-se à Bahia, à sua verso, a sua presença ultrapassa a geografia da
cultura e tradição, professou o candomblé, sala de visita e pode ser medida, ao alojar-se além
dançou capoeira, tocou berimbau, misturou- dos seus muros e paredes. Aloja-se com vigor e
se à terra e ao povo, miscigenou-se. Para Jorge exuberância em outros espaços da casa da Rua
Amado, Carybé foi o mais baiano de todos os Alagoinhas, 33, e comparece em todos os seus
baianos, aquele que ambientes, desde a porta de entrada aos lugares
mais íntimos.
[...] plantou raízes fundas na terra baiana Peças de sua autoria estão pela casa
como nenhum cidadão aqui nascido
e amamentado. Bebeu avidamente
espalhadas, tais como azulejos que recobrem
essa verdade e esse mistério, fez da escadas, orixás, frutas, bichos, peixes, portas,
Bahia carne de sua carne, sangue figuras do candomblé, janelas, vigas que, em
de seu sangue, porque a recriou a forma de pássaro, sustentam os telhados da
cada dia com maior conhecimento e casa. Suas obras estão presentes nas varandas,
amor incomparável. (AMADO, apud
BARRETO; FREITAS, 2009, p. 13)
na piscina, nos quartos, na entrada da casa, no
bar, nos fundos. Em bronze, terracota, cimento,
A amizade que os unia era estreitada tinta, madeira, como lembra Gattai (2004, p. 49-
pelos laços do candomblé. Eram filhos de 50) quando descreve sobre os elementos que
Oxossi e Oxum, Obás de Xangô. Uma amizade comporiam a entrada da casa. “[...] Caribé não
reverenciada em eventos, palestras, exposições perdeu tempo, desenhou um portão de ferro,
dedicadas a aclamar a relação fraterna que largo, que em seguida foi feito e colocado: uma
entre eles existia4,expressa também em livros beleza! [...] O pórtico de entrada foi, então,
produzidos pelo escritor, onde encontramos revestido de azulejos com desenhos de Caribé.”
nas suas páginas e capas, ilustrações e desenhos
5 ABC de Castro Alves - Capa, O amor do soldado – Capa, Bahia de Todos
os Santos – Capa, Capitães da Areia; Capa, O compadre de Ogum - Capa
4 A exposição “100×100 Carybé Ilustra Jorge Amado” foi uma realização e ilustrações, Dona Flor e seus dois maridos – Capa, Gabriela, cravo e
do Instituto Carybé com a apoio da Fundação Casa de Jorge Amado canela – Capa, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá - Capa e ilustrações
através da Lei Rouanet. Os objetivos da exposição, nascida em meio à (todas as edições), Jubiabá- Capa e ilustrações (Edições: 23, 28, 52,
comemoração do centenário de ambos os artistas, são os de promover 53,54/ sendo que as demais edições que possuímos no acervo, Carybé
uma reflexão sobre a importância da relação entre Carybé e Jorge é autor apenas das ilustrações), Mar morto – Capa. Os pastores da noite -
Amado, e tornar este legado mais acessível à população. A exposição Capa, São Jorge dos Ilhéus – Capa, Seara vermelha – Capa, Os subterrâneos
teve a curadoria de Solange Bernabó, filha de Carybé, que no dia 27 de da liberdade - Capa, O sumiço da santa - Capa e ilustrações, Tenda dos
junho, às 17h, na Academia de Letras de Ilhéus fará uma palestra sobre Milagres – Capa, Terras do sem fim – Capa, Os velhos marinheiros – Capa.
“Carybé e Jorge, uma amizadecentenária. Fonte: Casa Fundação Jorge Amado
102 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
Na sala de visitas fica a figura/objeto 2.1, Partido Comunista Brasileiro, primavam por
Baiana, em cerâmica que, em relevo, realça as temas inspirados na cultura popular (RUBIM
vestes, os adereços e os instrumentos de trabalho 1995, p. 221). Em sintonia, a sensualidade da
- o tabuleiro -, características identitárias da mulher mulata é enfatizada nos matizes das cores
mulher negra da Bahia, herdadas dos ancestrais, tropicais que colorem as telas do pintor e no
um símbolo da cultura baiana. Nesta sala também desejo de Amado (1992) de representá-la, como o
fica a figura/objeto 2.2, os Cangaceiros, pintura a fez, ao criar suas mulheres mulatas, personagens.
guache que representa sujeitos participantes de Privando da intimidade do escritor, Di
um fenômeno social do Nordeste, no qual a Bahia Cavalcanti visita, muitas vezes, a Casa do Rio
está incluída - o cangaço. Esse tema tem ocupado Vermelho, cultivando uma amizade iniciada nos
e alimentado o imaginário de escritores, artistas e tempos em que o escritor morava em São Paulo.
poetas, ao qual não se furtou Carybé, que chegou Foi nesse tempo que o quadro Paisagem com
a ser, nos anos de 1950, diretor artístico do filme moça na janela, figura/objeto 2.3 chega às mãos
O cangaceiro, de LimaBarreto. do escritor, cuja trajetória é narrada por Gattai
Com um traçado leve, característico do (2004) no livro Memorial do amor. Diz-nos a autora
artista, os quatro cangaceiros são representados que, no tempo em que Jorge Amado morava em
vestidos a caráter, com chapéu e indumentária São Paulo, um dos quadros de Di Cavalcanti
de couro, empunhando armas, as espingardas, o impressionava pela beleza e do qual muito
cartucheiras cruzadas no peito e míticos chapéus gostava – Mulata deitada no divã.
que remontam à saga de Lampião. Amado (1999,
p.24) os tem em boa conta. Quando se refere Diante do entusiasmo do amigo pelo
a esse quadro do artista, ressalta que“[...] pela quadro, generoso, Di Cavalcanti lhe
porta de madeira vazada que entramos na sala, disse: ‘É teu.’ Jorge adotara uma teoria,
repetida sempre por um jornalista seu
os Cangaceiros de Caribé montam guarda [...].” amigo: ‘Ao te oferecerem uma obra de
Como prova da doação, há uma dedicatória: arte, não faça cerimônia, aceite sem
“Para Jorge e Zélia e para João e Paloma”, uma discutir’. Foi o que ele fez. A Mulata
inscrição singela que longe está de representar a deitada no divã embelezava a sala do
visceral relação que o unia à família Amado. apartamento em São Paulo, quando
certo dia, Di todo afobado: Vim buscar o
Paisagem com moça na janela, figura/ quadro. Apareceu um cliente querendo
objeto 2.3, representa uma mulata, tendo ao um trabalho meu e eu não tenho
fundo, sobrados e igrejas que sobem ladeiras de nenhum pra remédio. Levo este e pinto
uma cidade imaginária. Salvador ou São Paulo? outro pra você. (GATTAI, 2004, p.47)
Mulatas e não negras povoam as telas de Di
Cavalcanti, tais quais as mulatas nas páginas dos Cumprida a promessa, esse outro,
romances amadianos. Nos anos de 1950 e 60, a Paisagem com moça na janela, figura/objeto
busca por uma identidade baiana e brasileira 2.3, passou a fazer parte da coleção amadiana
vai confluindo para a imagem de uma mulher no qual, uma dedicatória amorosa, demonstra o
híbrida, não uma mulher negra, para um modelo, afeto que os unia: “Jorge Amado, Zélia Amada,
um tipo ideal de mulher, símbolo de identidade um do outro e os dois meus, o Rio de Jorge,
nacional. Vai deslizando para a imagem de uma Bahia de Zélia Amada, que também são terras
mestiça, para Gabriela, por exemplo, com cor minhas, graças aos dois, graças a Deus, Di
de cravo e sabor de canela, cuja reincidência se Cavalcanti.” Essa tela se junta a outras obras do
configura, posteriormente, tanto em personagens pintor que embelezam as paredes da casa, tais
de romances amadianos, como Dona Flor, Tereza como Gabriela, um guache sobre papel, que foi
Batista, Tieta do Agreste, quanto nas telas do o primeiro estudo para capa da primeira edição
artista. brasileira do romance (1959), e outra Gabriela,
Como Amado, os temas que Di Cavalcanti óleo sobre tela, com assinatura do artista e datada
aborda são tipicamente brasileiros e em suas do ano de 1972. Telas que ficam no Bar e no
telas os temas sociais, como festas populares, Quarto do Casal.
figuras do povo, movimentos sociais são Os sobrados e as ladeiras são elementos
representados, refletindo a posição política reincidentes na pintura de Willys, na figura/
que ambos assumiam. Por serem membros do objeto 2.4, Sobrados. A força das cores que
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 103
Alzira Tude de Sá
104 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
ABSTRACT This study concentrates the question of image as representation and document, its genesis, manu-
facture, supports and uses, as a construction of man to give meaning to the real. It elects as object,
photographic images of the house of the writer Jorge Amado, basically of its living room, as representa-
tions that can point to the social and cultural relations built by the writer. The notion of document as
a theoretical contribution relates to the concept of Briet (1951), to the thinking of Buckland (1991),
Otlet (1996), Manini (2011) as historical references to a new thinking about its materiality. It reflects
on the image as representation, its modes of production, uses and reception. It seeks to identify the path
that made photography from a nineteenth-century invention, with purely aesthetic features of reality
representation, to an instrument of promotion and social circulation of knowledge, a useful and effective
tool for academic research. The research is characterized as exploratory, appropriates the heuristic
method, intuitive and experimental, uses a questionnaire as a research instrument and adopts the direct
observation of the object. As a result, through reading, classifying description and analysis and a process
of disassembly and reassembly, points to the potentiality of the photographic image as a documentary
source representative of the sociocultural relations established by the lecturer.
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 105
Alzira Tude de Sá
106 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018
A imagem fotográfica como representação e documento
Bernardo Leitão; Suzana Ferreira Borges. 5. ed. RICOUER, Paul.Tempo e narrativa. Campinas,
Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2003. SP: Papirus, 1994-1997. 3 v.
MANINI, Miriam Paula. Análise RUA Alagoinhas 33, Rio Vermelho: a casa de
documentária de fotografias: um referencial Zélia e Jorge Amado. Textos de Jorge Amado,
de leitura de imagens fotográficas para fins Gilberbert Chaves e Paloma Jorge Amado.
documentários. 2002. Tese (Doutorado em Fotos de Adenor Gondim. Arte de Pedro Costa.
Ciências da Comunicação) - Departamento de Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1999.
Biblioteconomia e Documentação, Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2002. RUBIM, Albino Canelas. Partido comunista,
cultura e literatura brasileira. In: DUARTE,
Eduardo de Assis (Org.). Graciliano revisitado:
MANINI, Miriam Paula. Imagem, memória coletânea e ensaio. Natal: Editora Universitária,
e informação: um tripé para o documento 1995. v. 1, p. 203-227
fotográfico. Domínios da Imagem, Londrina, PR,
ano IV, n. 8, p. 77-88, maio 2012.
SÁ, Alzira Tude de. A Bahia de Jorge Amado,
a Bahia de tantos outros: visões imaginárias
NOVO, Hildenise Ferreira. Representação do de uma terra prometida. In: SERAFIM, José
conhecimento ou representação conceitual? Uma Francisco; TOUTAIN, Lídia Brandão;
investigação epistemológica no âmbito da Ciência
da informação e da Filosofia nas considerações
de Deleuze e Guatarri. PontodeAcesso, Salvador, GEOFFROY, Yannick (Org.). Perspectivas
v. 7, n. 3, p. 114-129, dez. 2013. em informação visual: cultura, percepção e
representação. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 187-
205.
OTLET, Paul. El tratado de documentación: el
libro sobre el libro: teoría y práctica. Traducción
Maria Dolores Ayuso García. [Murcia: SAMAIN, Etienne (Org.). Como pensam as
Universidad de Murcia], 1996. imagens. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2012.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & historia SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. 2. ed.
cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. São Paulo: Hucitec, 1998.
(Reflexões, 5)
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018 107
Alzira Tude de Sá
TARDY, Cécile. Garder trace de VEIGA, Benedito. Dona Flor e as artes da Bahia.
l’exposition: lesusa gesmé moriel sdudis In: VEIGA, Benedito. Dona Flor da cidade da
positif photographhique. In: JOURNÉES Bahia: ensaios sobre a memória da vida cultural
SCIENTIFIQUES INTERNACIONALES DU baiana. Rio de Janeiro: 7Letras; Salvador: Casa de
RÉSEAU MUSSI, 3., 2016, Toulouse. Annales... Palavras: Fapesb, 2006.
Toulouse: ENFA, 2016. p. 247-262
108 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.28, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2018