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Comparacées e comparatistas Flavio M. Heinz* Ana Paula Korndérfer** As paginas que compéem este livro traduzem o esforgo de especia- listas de Historia do Brasil, da Argentina, da Franca ¢ da Espanha em somar suas experiéncias de pesquisa e trabalho de reflexo para o avan- go da empresa comparativa. Estao aqui reunidos alguns dos textos apre- sentados em um coldquio cientifico destinado a aproximar especialistas interessados neste avango, o II Encontro da Rede Internacional Mare Bloch de Estudos Comparados em Histéria — Europa/Ameérica Latina, realizado em Porto Alegre em outubro de 2008.' Estes textos expéem, em sua diversidade tematica e complexidade metodolégica, as dificul- dades inerentes a realizagao da histéria comparada, mas também suge- rem pistas e solugées para supera-las. Como séi acontecer em coletaneas do género, ha um amplo gra- diente de variagao entre os textos no que diz respeito a sua maior ou menor proximidade com a metodologia ou perspectiva comparatista. Com efeito, a ideia orientadora do coléquio nao era a de, ingenuamente, fundar uma pratica comparatista, mas antes de colocar, lado alado, pes- quisadores experientes que tivessem a comparagao como um elemento possivel e desejado de seu trabalho, permitindo que a reflexao e a prati- ca de pesquisa de uns e outros se deixassem contaminar pelas experién- Programa de Pés-Graduagio em Histéria da PUCRS, coordenador do Laboratério de Histéria Comparada do Cone Sul (CNPq/PUCRS). ** Doutoranda em Historia, CNPq/PUCRS, 1 Nem todos os textos apresentados no II Encontro da Rede Marc Bloch estéo incluidos neste volume. Alguns textos apresentados no Encontro, notadamente aqueles de autoria de pesquisadores do Projeto de cooperagao académica existente entre UNCPBA (Tandil, Argentina) e Unisinos (Brasil), serao objeto de publicagdo especifica. Agradecemos @ coordenadora brasileira deste projeto, Marluza Harres, da Unisinos, pelo apoio e colabo- ragdo para a viabilizacao da atual publicacao. Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer cias dos colegas. Assim, ha textos onde a reflexdo sobre a comparagio histérica tem grande destaque ¢ outros em que a experiéncia singular de pesquisa deste ou daquele tema prevalece sobre os tragos compara- tistas. Em todos 0s casos, contudo, um mesmo perfil de pesquisa se des- cortina: rigor ¢ qualidade no trabalho investigativo, riqueza das fontes utilizadas ¢ clareza metodoldgica, alguns dos requisitos basicos do su- cesso nao apenas da empresa comparatista, mas de toda boa historio- grafia. A comparacio em Histéria Duas frases da historiadora norte-americana Deborah Cohen, no ensaio preparatério do workshop “Europe in comparative and cross- national perspective”, provocativamente intitulado Comparative History. buyer beware, parecem bem sinalizar as dificuldades suscitadas pelo bi- némio histéria comparada: “Comparative history has few detractors. For- mally, at least, it may have even fewer practitioners’?. Com efeito, a historia comparada — nas palavras de Cohen, “ao lado da historia quantitativa, uma das ‘queridinhas’ dos pesquisadores nos anos 1970” —, segue, ape- sar de suas dificuldades, conquistando coragées. E isso se deve, nos pare- ce, mais pela suposigao de sua eficacia do que pelos resultados aleanga- dos pelos historiadores ‘comuns’ que a ela se dedicaram ao longo das iiltimas décadas. Assim, o método comparativo atrairia simpatias de um piiblico que, em sua esmagadora maioria, nao faz histéria comparada. Mas 0 que explica o charme desta disciplina/especialidade, su- bentendendo-se que seu fascinio é amplamente superior a sua capaci- dade de mobilizar pesquisadores? Nao ha uma, mas varias respostas possiveis para esta pergunta. Uma primeira resposta € aquela que apon- ta para a auséncia de um rol claro de procedimentos a serem seguidos, 0 que, apesar dos atrativos, dificulta sua difusao. Assim, se éverdade que todos ja escutaram falar de método comparativo, a maioria nao sabe exatamente como fazer, como aplicé-lo. Mais grave, quando alguém se langa a buseé-lo, via de regra, nao encontra respostas objetivas quanto as suas etapas e consecugio. ? COHEN, Deborah, “Comparative History: buyer beware”, GHI Bulletin, n. 29 (Fall 2001), p23 10 Experiéncias nacionais, temas transversais: subsidios para uma historia comparada da América Latina Dir-se-ia que a melhor maneira para se apropriar de uma determi- nada metodologia ou teoria ¢ partir para suas leituras canénicas, 0 que nao € totalmente falso, mas que representa uma certa simplificagao da realidade. No caso da Histéria comparada, o canone dos canones € Bloch, ¢ de Bloch, dois artigos: Por uma histéria comparada das sociedades européias ¢ Comparagao, respectivamente, de 1928 ¢ 1930. Ora, Bloch nos oferece linhas gerais para pensar a comparagio, nao um manual de procedi- mentos. A popularizagao dos dois artigos como porta de entrada da his- téria comparada também pode nao ter ajudado muito, uma vez que a perspectiva de analise, logo 0 modus operandi do historiador, poderia ser melhor percebida na leitura do conjunto de sua obra do que nos textos de divulgagio sobre as virtudes do método. Uma segunda resposta pode ser encontrada na dificuldade e com- plexidade da empresa comparatista. Maturidade intelectual e erudigao sto caracteristicas exigidas aos que se aventuram na comparagio histé- rica, condigées necessarias, mas nao suficientes, é certo, para o seu su- cesso. O comparatista se destaca como quem realiza um feito extraordi nario: para além do necessario dominio de sua histéria nacional, aven- tura-se também no conhecimento de outras histérias nacionais. Se con- siderarmos a crescente especializagiio da profissao ¢ 0 crescimento ex- ponencial dos conhecimentos — produzidos em diferentes espagos disci- plinares — passiveis de serem incorporados numa historia nacional, a tarefa parece simplesmente gigantesea. Por definigao, 0 comparatismo nao seria tarefa de iniciantes. Colocado assim, parece claro que os fatores de desestimulo ao aparecimento de novos postulantes @ condigao de historiador compara- tista sio mais importantes do que os estimulos. Jiirgen Kocka chama a atengio para a crescente dependéncia que um amplo estudo de compara- edo historica tera de literatura secundaria ¢ seu distanciamento em rela- go a fontes ¢ idiomas préprios de alguns dos casos em anilise.? De toda forma, o conjunto de dificuldades para a aplicagao do método revela uma das estratégias de sucesso do comparatismo entre historiadores: 0 traba- Iho de equipe ¢ a divisto de tarefas entre especialistas nacionais. >KOCKA, Jurgen. “Comparison and Beyond”, History and Theory. V. 42, n. 1, February 2003, p. 41 ll Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer Por fim, uma terceira resposta para 0 descompasso entre o grande prestigio do método € o pequeno mimero de seus efetivos utilizadores diz respeito a natureza das sensibilidades politicas ¢ intelectuais no pe- riodo de sua disseminagao. Nagao ¢ nacionalismo sao duas dimensées evidentes do éxito do Estado e da sociedade burguesa da segunda me- tade do século XIX — momento no qual € preciso localizar a consolida- gao da disciplina histérica —, mas também sao expressdes centrais da perigosa precipitagao das radicalizagées politicas e intelectuais dos anos 1920/30. Assim, superar o quadro nacional ¢ mergulhar no ambito eu- ropeu ou, ao menos, cotejar outras histérias nacionais, poderia ter signi- ficado um olhar sobre 0 outro que, para além dos ébvios contornos psi- canaliticos, sinalizava um certo posicionamento politico. Este posicio- namento, uma espécie de linha de frente contra a sedugao de uma hist6- ria nacional instrumentalizada e submetida ao chauvinismo intelectual ambiente, provavelmente atraiu muitos historiadores para 0 compara- tismo. E possivel sugerir que, ainda hoje, longe da conjuntura europeia que a militancia intelectual de Bloch conheceu, a comparagao de histérias nacionais conserva um certo atrativo cosmopolita e internacionalista, em contraponto ao particularismo de certas histérias regionais e mesmo nacionais. Mas, retomando o primeiro ponto, a pergunta que nos afeta mais diretamente aqui é: ha efetivamente um método da histéria compara- da? Para um certo mimero de estudiosos contemporaneos, a historia comparada, no sentido de um conjunto claro ¢ ordenado de procedi- mentos que, aplicados a determinada situagao, permitem auferir resul- tados concretos, nao existe. Como delineamento geral do método, Bloch indicava a necessidade de escolha de fenémenos nos quais houvesse certas semelhangas entre os fatos observados ¢ dessemelhangas em rela- go ao meio, 0 acompanhamento de sua evolugao no tempo, a percep- gao das continuidades, a busca de influéncias entre uma sociedade ¢ outra, e a busca das causas ou o sentido das causalidades. O editor de Comparative Studies in Society and History, Raymond Grew, citado por Maria Ligia Coelho Prado, entende que o historiador francés propunha menos um método e mais uma forma de pensar. Para Grew “nao have- ria propriamente um método comparativo”. O “uso da comparagio [em Bloch] era uma maneira de alcangar diferentes perspectivas no campo 12 Experiéncias nacionais, temas transversais: subsidios para uma historia comparada da América Latina da pesquisa. [Tratar-se-ia de um] modelo que prescinde da elaboragio de estruturas formais ¢ que se apresenta mais como uma forma de pen- sar 0 objeto do que como uma metodologia”. Mesmo Kocka, talvez 0 mais importante historiador comparatista em atividade, coordenador daquele que é possivelmente 0 maior empreendimento internacional do género, a pesquisa sobre as burguesias europeias do século XIX, cha- ma a atengao para uma dimens‘io mais subjetiva das virtudes do méto- do: “a comparagao ajuda a tomar o ‘clima’ da pesquisa histérica menos provinciano”! Para ele, a comparagao na pesquisa historica responde a quatro propésitos: heuristico, descritivo, analitico ¢ paradigmatic, Em relagio ao primeiro, Kocka sugere que a abordagem comparativa permite loca- lizar questées ¢ problemas que, de outra forma, seriam possivelmente negligenciados ou ignorados. Kocka ilustra 0 propésito com a célebre identificagao de Bloch da questao de estruturas de apropriagio da terra similares aos “enclosures” no sul da Franga, uma “revelagao” que ao mesmo tempo da perspectiva ao caso classico inglés ¢ tensiona de for- ma objetiva a historiografia agraria e regional francesa. No plano des- ctitivo, a comparagao se presta a iluminar os perfis dos casos singula- res, contrastando-os com outros. Kocka exemplifica este propésito com © grande nimero de caracterizagées particularistas dos fenémenos his- téricos do tipo Sonderweg alemao ou Excepcionalismo americano. Neste as- pecto, poderiamos reconhecer a fungao descritiva da comparagao na his- toriografia regional ou nacional, por exemplo, na identificagao de tipos diferentes de “regionalismo”, como 0 “regionalismo gaiicho” de Joseph Love, de vies autoritario ¢ fortemente ideoldgico, em contraste com re- gionalismos menos “particularistas” de outras regides do pais; ou, ain- da, a pretensa semelhanga dos regimes politicos varguista e peronista. Em relagao a fungao analitica, a comparagao se mostra indispensavel na formulagao ¢ na resposta a questées causais. E afirma Kocka, sem antes deixar de assinalar que fora Weber 0 ‘pionciro deste tipo de ambiciosa comparagiio’: “William Sewell ¢ outros sublinharam que a comparagio * PRADO, Maria Ligia Coelho. “Repensando a historia comparada da América Latina”. Revista de Histéria, Universidade de S40 Paulo, n. 153, 2005, p. 19 SKOCKA, op. cit., p. 39 (tradugo nossa) 13 Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer pode ter o lugar de um experimento indireto que facilitaria o ‘teste de hipéteses’, Ainda que possamos ser céticos em relagao a esta reivindica- ¢40, nao ha divida de que a comparagio ¢ indispensavel para historia- dores que gostam de formular questées causais oferecer respostas cau- sais”. Por fim, a fungao paradigmatica da comparagio aparece na aber- tura que ela oferece ao historiador, distanciando-o daquilo que conhece melhor e ampliando sua capacidade de problematizar seus temas de pesquisa. Neste sentido, Kocka oferece uma extraordinaria leitura dos problemas das formagées profissionais excessivamente “nacionais” e do peso das historiografias regionais de viés marcadamente particularista: “Historiadores esto com frequéncia muito concentrados na histéria de seu proprio pais ou regiao. Por causa disso, a comparagao pode ter um efeito de ‘desprovincializagao’ ¢ liberagao, de abertura dos olhos, com consequéncias para a atmosfera ¢ 0 estilo da profissio™ Para concluir, duas palavras sobre as tensées entre 0 comparatis- mo histérico ¢ as novas tendéneias historiograficas de privilegiar a di- mensio supranacional ou internacional dos processos. Referimo-nos as histérias chamadas interconectadas, ou “connected histories”, que se popularizaram entre os historiadores por permitir que 0 objeto de pes- quisa condiza 0 investigador. Diferentemente dos estudos comparati- vos, modelizados, estruturados e, sobretudo, definidos a partir de uni- dades de andlise mais ou menos rigidas, como o estado nacional e suas instituigées, ou ainda, suas unidades regionais (como fizeram Joseph Love, Robert Levine ¢ John Wirth na andlise de trés estados brasileiros na primeira fase republicana), a historia conectada persegue um tema, um objeto que migra entre diferentes classes, grupos sociais, identida- des étnicas ou profissionais, e, sobretudo, passa relativamente impune pelas fronteiras regionais ¢ nacionais. Uma disciplina genuinamente ‘na- cional’ como a histéria se deixa assim seduzir pela possibilidade de que 0 aspecto universalizante presente na circulagaio mundial de determina- da ideia ou produto cultural se deixe apreender, no no quadro de sua inscrigao nacional, mas nos tragos por vezes erraticos de sua recepgio em diferentes populagées. Retomando Cohen, € preciso dizer que am- bas as histérias, a comparativa ¢ as ‘histérias eruzadas’ ou interconecta- “KOCKA, p. 41 (tradugao nossa), 14 Experiéncias nacionais, temas transversais: subsidios para uma historia comparada da América Latina das, tem em comum o fato de sustentarem sua legitimidade na habilida- de de ver algo que as histérias nacionais obscurecem, ainda que com diferentes motivagées e resultados: “Depois de tudo, a histéria compa- rada esté preocupada fundamentalmente com diferengas ¢ semelhan- gas, frequentemente com questées de causalidade. Histérias transnacio- nais, em contraste, podem nos falar sobre circulagao transnacional, so- bre a histéria das trocas culturais, sobre fendmenos internacionais”’. Os textos O inventario de temas aqui propostos retoma alguns dos temas- chave do comparatismo histérico, daquele que se realiza ha muito tem- po no hemisfério norte, é certo, mas também daquele esbogado por his- toriadores das duas margens do Rio Uruguai: fronteira, elites politicas, homens publicos ¢ imigragao séo apenas alguns deles. Debrucemo-nos sobre eles um instante: O texto de Maurice Aymard que abre esta coletanea, apresentado na sesso de abertura do II Encontro da Rede Internacional Mare Bloch, intitula-se 4 longa duragdo hoje: balango de meio século (1958 2008). Erudi- to e metodologicamente instigante, Aymard propée uma discussiio so- bre a nogao de longa duragao a partir da publicagao, nos Annales E. S. C., em 1958, do célebre artigo de Fernand Braudel, “Histoire et sciences sociales, La longue durée”. Constatando o impacto internacional do tex- to de Braudel ao longo do iiltimo meio século, Aymard propée-se a ex- plorar alguns aspectos do texto e a situa-lo no contexto de sua elabora- ¢éo, a abordar suas formas de recepgao/adaptagio ¢ a perguntar-se so- bre sua influéneia e possivel atualidade O texto de Rosa Congost, historiadora do espago agrario espanhol, foi aquele da conferéncia de encerramento do evento. Escrito em tom pessoal, como afirma a propria autora, Comparagdo ¢ andlise historia: re- flexées a partir de uma experiéncia de pesquisa, narra o pereurso de reflexto ¢ as percepgées da autora em tomo da historia comparada. Afirmando nio conceber outra maneira de realizar estudos histéricos, Rosa Con- 7 COHEN, p. 24 (tradug&o nossa), Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer gost aponta que a comparagao permite ao historiador analisar melhor a realidade investigada, ajudando-o a situar os problemas estudados em coordenadas de espago ¢ tempo. Estabelecendo dialogos com Maurice Aymard ¢ Mare Bloch, ¢ abordando suas experiéncias pessoais de in- vestigagao sobre a propriedade na Catalunha “entre os séculos XVII a XX”, a autora discute os desafios e os “ganhos” da comparagao em ana- lises historicas. O objetivo da historiadora Marta Bonaudo, da Universidade Na- cional de Rosario, no terceiro dos textos aqui reunidos, é aproximar-se da complexa experiéneia de conformagao/configuragao de instancias de mediagio entre a sociedade civil ¢ o Estado — os partidos — na Argen- tina da segunda metade do século XIX. Analisando as experiéncias ¢ reflexes sobre a politica e os partidos em Santa Fé, entre 1853 e 1890, a partir de fontes como periddicos ¢ correspondéneias, Bonaudo discute os dilemas ¢ as tensées que marcaram a dinamica das construgées repu- blicanas e nacionais como a organizagao da vida politica e de um siste- ma representativo. Raiil Fradkin aborda as tradig6es militares forjadas no espago do Rio da Prata durante 0 periodo colonial enfocando, principalmente, 0 século XVII Neste sentido, Fradkin se propée a identificar as caracte- risticas das formagées armadas que se configuraram no espago da In- tendéncia de Buenos Aires — milicias, corpos veteranos, entre outras — ¢ as tradigdes que se forjaram em tomo dessas formagées, buscando com- parar a experiéncia de Buenos Aires com outras do Prata, investigando especificidades e variagées regionais. Tradiciones militares coloniales. El Rio de la Plata antes de la revolucién, texto embasado em vasta bibliogra- fia, deve ser entendido, segundo o autor, como parte de uma preocupa- gao maior: desvelar a natureza ¢ as caracteristicas das forgas beligeran- tes que intervieram no ciclo de guerras aberto no Rio da Prata entre as décadas de 1810 ¢ 1870 para compreender melhor as possibilidades de intervengio politica dos setores sociais subalternos, bem como a inci- déncia da guerra e das tradigées militares na configuragao de suas cul- turas politicas. Susana Bandieri, historiadora da regio patagénica, propée-se a discutir 0 processo de “argentinizagao” da Patagénia nas primeiras dé- cadas do século XX. Apontando a crescente penetragao estatal na regiao 16 Experiéncias nacionais, temas transversais: subsidios para uma historia comparada da América Latina patagénica no periodo em questo, Bandieri analisa a Ley de Fomento de los Territorios Nacionales, de 1908, e outras agGes realizadas neste sentido, a partir da década de 1920 e, principalmente, nas décadas de 1930 € 1940, auge do pensamento nacionalista. De acordo com Bandieri, a partir dos anos 1920, com o crescimento da preocupagao em “argenti- nizar” a regido — criar a identidade nacional e proteger a soberania —, 0 Estado nacional ampliou sua presenga na Patagénia através, por exem- plo, da criagao de sucursais do Banco de la Nacién Argentina em cen- tros fronteirigos da regiao, da transformagio de San Carlos de Bariloche em centro turistico internacional, da criagao de escolas de fronteira e da exploragio de recursos como petréleo e gas. Assim como outros autores presentes neste volume, Bandieri defende, em La redefinicidn de las fron- teras: cwando “argentinizar” fue la consigna, a necessidade de se transcen- der as andlises tradicionais sobre fronteira. Mariana Flores da Cunha Thompson Flores ¢ Luis Augusto Fari- natti propéem, a partir de uma reflexao historiografica sobre a questo da fronteira no estudo da sociedade dos confins meridionais do Brasil no século XIX, formas alternativas de andlise do espago fronteirigo. Em. A fronteira manejada: apontamentos para uma histéria social da fronteira me- ridional do Brasil (século XIX), Thompson Flores ¢ Farinatti discutem as visées opostas de “fronteira-barreira” e de zona de fronteira completa- mente integrada para, a partir dai, proporem a discussao sobre o “ma- nejo da fronteira”. Refutando as ideias de fronteira como espago que isola/separa as partes ou que as integra totalmente, os autores apontam a necessidade de se perceber que viver em uma zona de fronteira — no caso, a regiao sudoeste do Rio Grande do Sul —, ao longo do segundo ¢ do terceiro quartéis do século XIX, era uma situagao que propunha pos- sibilidades e problemas diversos para os agentes, conforme sua posigao social; as relagées com a fronteira ¢ os significados atribuidos a ela pelos sujeitos eram dinamicos, histéricos. Articulando vasta bibliografia e do- cumentagao, como processos-crime e inventarios post mortem, os auto- res buscam exemplificar como grandes estancieiros, lideres militares, subalternos — pequenos produtores e pedes —, perseguidos pela justiga, escravos ¢ comerciantes se relacionaram, a partir de seu posicionamen- to social, com a situagao de fronteira. Karl Monsma aborda a honra masculina enquanto capital simb6- lico em O comerciante, o estancieiro e o militar: nogées divergentes de honra 17 Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer entre as elites do Rio Grande do Sul no inicio do século XIX. Analisando os conflitos do comerciante Joao Francisco Vieira Braga com o estanciciro Boaventura José de Oliveira ¢ com o militar Anténio Francisco Pinto de Oliveira, Monsma discute as diferengas nas nogées de honra de seg- mentos distintos da elite no Rio Grande de Sao Pedro Imperial — ponto importante para compreender os conflitos apresentados —, bem como as formas, também distintas, com que os envolvidos realizavam a defesa da honra. Merecem destaque, na discussao trazida por Monsma, as as- sociagdes estabelecidas entre honra e palavra. Assim como Susana Bandieri, Graciela Blanco também elegeu a Patagénia argentina como recorte de sua investigagao. Em Los actores sociales de la ganaderia patagénica: politicas publicas y formas asociativas en las primeras décadas del siglo XX, os principais objetivos de Blanco sao trés: analisar o processo de ocupagao e distribuigao da terra na Patago- nia, destacando o final do século XIX ¢ 0 inicio do século XX; caracteri- zar os atores sociais que se configuraram a partir das distintas formas de apropriagao da terra ¢ sua exploragao através da criagao extensiva de gado, tais como proprietarios, arrendatarios e “ocupantes”; e, por fim, buscar uma aproximagio dos conflitos emergentes ¢ da agao das orga- nizagées corporativas surgidas na Patagénia neste periodo, como a Fe- deracién de Sociedades Rurales de la Patagonia. Ana Teruel ¢ Maria Teresa Bovi, da Universidade Nacional de Ju- juy, elegeram a complexa ¢ variada realidade socioeconémica da pro- vineia de Jujuy, no século XIX, para abordar as transformagées dos di- reitos de propriedade no periodo, explorando questées relativas a como estes direitos foram formulados depois da expropriagao das comunida- des indigenas. Em Aportes al estudio de la conformacién de la propiedad mo- derma en Argentina. Ni “feudal” ni “comunista”: El caso de la Provincia de Jujuy’, Teruel ¢ Bovi centram sua analise na gestao do governador Euge- nio Tello na década de 1880 (1883 — 1885), momento de inflexao mais claro, segundo as autoras, entre a antiga ordem ¢ a nova, cujos valores basicos eram o trabalho e a propriedade privada. A fronteira também € tema do texto El desierto y sus confines. Con- texto y narrativa en la Descripcién Amena de la Reptiblica Argentina de Esta- nislao Zeballos, de Sandra Fernandez, da Universidade Nacional de Ro- sario. Fernandez analisa Descripcién Amena de la Reptiblica Argetina, obra 18 Experiéncias nacionais, temas transversais: subsidios para uma historia comparada da América Latina em trés tomos publicada ao longo da década de 1880 e que representa a cosmovisio do espaco pampeano na ética de Estanislao Zeballos, ho- mem publico rosarino com transito pelos caminhos da ciéncia e pelo mundo editorial. Entrecruzando informagées biograficas ¢ contexto, a autora traz trechos da Descripcién e analisa como Zeballos, representan- te do homem moderno de fins do século XIX e inicio do século XX ar- gentino, abordou temas como a construgao do Estado nacional ¢ a ne- cessidade do ingresso da Argentina na modernidade. Nadia Andrea De Cristéforis, da Universidade de Buenos Aires — UBA, propés-se a compreender como operaram os mecanismos de as- sisténcia oficial no ultimo ciclo da imigragao galega para a Argentina, entre 1946 e os primeiros anos da década de 1960, e em que medida a ago destes mecanismos incidiu sobre a conformagio e as caracteristicas sociodemograficas desta imigragao. Apontando os estudos sobre imi- gragdo como campo fértil para aprofundar as reflexées sobre os proble- mas da comparagio ¢ sobre a escolha da escala de analise, De Cristéfo- ris analisa a colaboragao entre o Comité Intergubernamental para las Migraciones Europeas (CIME), o Instituto Espafiol de Emigracién (IEE) ¢ a Comision Catélica Espaiiola de Migracién (CCEM) na organizagao ¢ funcionamento do Plan de Reagrupacién Familiar. Em Los mecanismos de asistencia oficial en el tiltimo ciclo de las migraciones gallegas hacia la Ar- gentina, a autora apresenta e contextualiza o Plan de Reagrupacion Fa- miliar, a doutrina eclesiastica sobre a imigragao ¢ 0 papel desempenha- do pela Comision Catélica Espaiiola de Migracién no funcionamento do Plan, entre outras questées. Por fim, no texto que fecha este volume, Elites, politicos e institui- ¢6es politicas: 0 Estado Novo no Brasil, de novo, Adriano Codato, cientista politico da Universidade Federal do Parana, apresenta argumentos em favor de um “necessario e urgente” retorno aos estudos sobre o Estado Novo para compreender a reestruturagao do universo das elites na pri- meira metade do século XX, ponto capital, segundo 0 autor, do processo de transformagao capitalista do Brasil. Abordando aspectos da historia politica do periodo ¢ da historiografia, Codato destaca a modificagio da posigao dos atores no campo politico ¢ a transformagao do proprio cam- po do poder no Brasil depois de 1930, enfocando questées relativas aos politicos profissionais. O autor defende a utilidade de se conhecer, atra- 19 Comparagées e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndorfer vés de estudos prosopograficos, o perfil da nova classe politica nacional para uma melhor avaliagdo das mudangas sociopoliticas do periodo. Devido as semelhangas ¢ afinidades ideoldgicas entre as elites intelec- tuais de Brasil e Argentina entre 1920 e 1940, o autor prope que o texto sirva como um “roteiro” de questées possiveis a histéria e @ historiogra- fia argentinas. 20

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