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MASSAUD MOISES A LITERATURA PORTUGUESA através dos textos EDITORA CULTRIX sO PAULO defesa de donzelas e cavalheiros desprotegidos ou injusticados, como fazia disso sua propria razfo de viver. Assim, por tras da interferéncia altruista de Galaaz, percebese que éle simbolizava Cristo em sua peregrinacao entre os homens, a fim de pacificé-los e defender os pobres contra os ricos, os fracos contra os fortes, etc. E por seu intermédio se patenteia o intuito do autor da Demanda: exortar os leitores @ pratica das virtudes cristas e pregar a salvago do mundo pelo exemplo de Cristo e seus apés- tolos encarnados em Galaaz e seus irmaos de armas. Do ponto de vista estrutural, observe-se a expresdo “ora leixa o conto”, ou “conta a estoria”, ou “ora ende se cala 0 conto”, em que as palavras “estéria” e “conto” encerram o mesmo significado que “narrativa”, e funcionam apenas como elementos de ligacdo entre as partes ou episédios da novela. HUMANISMO ‘A época do Humanismo inicia-se em 1418, quando D. Duarte nomeia Ferndo Lopes para as fungGes de Guarda-Mor da Torre do Tombo, e termina em 1527, quando S4 de Miranda, retornan- do da Itélia, enceta em Portugal a campanha em prol da cul- tura clissica. No seu decurso, em que se opera a implantacdo das idéias humanfsticas, cultivamse a historiografia, a prosa doutrinaria, a poesia, 0 teatro ea novela de cavalaria (Amadis de Gaula). A Historiografia A atividade historiografica, que na época do Trovadorismo nao passara’da fase embriond- ria e improvisada, entra agora em sua fase madura, gragas es- pecialmente a Fernéo Lopes, seguido de Gomes Eanes de Azurara e Rui de Pina. Fernio Lopes Pouco se conhece de sua biografia. Como vimos, em 1418 D. Duarte nomeia-o Guarda-Mor da Térre do Tombo, e em 1434 incumbe-o de escrever a crénica dos reis da primeira dinastia. Faleceu depois de 1459. De suas obras, apenas trés nos resta- ram: Crénica d’ELRei D. Pedro, Crénica d'El-Rei D. Fernando e Crénica d'El-Rei D. Jodo I (até 1411). 35 CRONICA DE D. PEDRO Filho de Afonso IV, D, Pedro I reinou entre 1357 e 1367. Aos vinte anos, casow-se com D. Constanca, filha do Infante Joao Manuel, regente de Castela. Entre as damas de companhia de D. Constanca contava-se Inés de Castro, filha do fidalgo galego Pedro Fernandes de Castro, da qual D. Pedro logo se apaixonou. ‘Mas seu pai, que entao reinava, interpos-se. Com o falecimento de D. Constanga em 1345, os enamorados passaram a entreter livremente os seus améres. Todavia, o rei se deixa convencer por seus conselheiros, a permitir o assassinio de Inés, que se consumou a 7 de janeiro de 1355. Enfurecido de dor e de indigna- gio, D. Pedro, quando ja erguido ao trono, conseguindo aprisionar os matadores de Inés, ordenou que morressem com tal sadismo que éle acabou merecendo os epitetos de “O Cruel” e “O Justiceiro”. Nem por isso amainaram as saudades de Inés: torturado pela auséncia, passava noites e noites de horrores e pressentimentos, de que se julgava livrar saindo as ruas para dancar e confrater- nizar com 0 povo. # precisamente uma cena como essa que se vai ler a seguir: Em _ trés cousas, assinadamente, achamos, pela mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava scu tempo. A. saber: em fazer justica e desembargos do Reino; em monte e caca, de que era mui querencoso; ¢ em dangas ¢ festas segundo aquéle tempo, em que tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido. E estas danas eram a som de umas longas que entio usavam, sem curando de outro instrumento, posto que o af hou- vesse; ¢ se alguma vez lho queriam tanger, logo se enfadava déle dizia que © dessem 20 demo, e que Ihe chamassem os trombeiros. Ora deixemos os jogos ¢ festas que el-Rei ordenava por de- senfadamento, nas quais, de dia e de noite, andava dangando por mui grande espaco; mas véde se era bem saboroso jégo. Vinha el-Rei em batéis de Almada para Lisboa, e safam-no a receber 0s cidadaos, ¢ todos os dos mesteres, com dangas ¢ trebelhos, se- gundo entio usavam, e éle saia dos batéis, e metia-se na danca com éles, € assim ia até 0 paco. Parai mentes se foi bom sabor: jazia el-Rei em Lisboa uma noite na cama, ¢ nio lhe vinha sono para dormir. E féz le- ‘vantar 0s mocos, e quantos dormiam no paco; e mandou cha- mar Joo Mateus ¢ Lourengo Palos, que trouxessem os. trombas 36 de prata. E féz acender tochas, ¢ meteu-se pela vila em danca com os outros. As gentes, que dormiam, safam as janelas, a ver que festa era_aquela, ou por que se fazia; e quando viram daquela guisa el-Rei, tomaram prazer de o ver assim ledo. E andou el-Rei assim gri parte da noite, ¢ tornou-se ao pago em danga, e pe- diu vinho ¢ fruta, e lancou-se a dormir... E nao curando mais falar de tais jogos: ordenou el-Rei de fazer conde ¢ armar cavaleiro Joio Afonso Telo, irm&o de Mar- tim Afonso Telo, e féz-lhe a mor honra, em sua festa, que até aquéle tempo fOra visto que rei nenhum fizesse a seme- Ihante pessoa; pois el-Rei mandou lavrar seiscentas arrdbas de céra, de que fizeram cinco mil cirios e tochas; e vieram do térmo de Lisboa, onde el-Rei ent&o estava, cinco mil homens das vintenas para terem os ditos cirios. E quando 0 conde hou- ve de velar suas armas, no mosteiro de S. Domingos dessa ci- dade, ordenou el-Rei que desde aquéle mosteiro até os seus pacos, que é assaz grande espaco, estivessem quedos aquéles homens todos, cada um com seu cirio aceso, que davam todos mui grande lume; e el-Rei, com muitos fidalgos ¢ cavaleiros, andava por entre éles, dangando ¢ tomando sabor. E assim despenderam gr parte da noite. Em outro dia, estavam mui grandes tendas armadas no Rossio, acérca daquele mosteiro, em que havia grandes montes de pio cozido, ¢ assaz de tinas cheias de vinho, ¢ logo. prestes por que bebessem. E fora estavam ao fogo vacas inteiras em espetos a assar, € quantos comer queriam daquela vianda, ti- nham-na muito prestes, e a nenhum nio era vedada. E assim estiveram sempre, enquanto durou a festa, na qual foram armados outros cavaleiros, cujos nomes nao curamos di- zer.* (Crénicas de D. Pedro e D, Fernando, org. er ‘Agostinho de Campor, 2+ ed., Lisboa, ertrand, 1921, cap. XIV, pp. 31-34.) ‘monte — caga de monte, caga gros- $a; querencoso = aprec’ador; adur = apenas; longas = trombetas longas; mesteres = oficios; trebelhos = jogos, bailados; parai mentes se foi bom sabor — detende a atenc&o se vos agradar; homens das vintenas = de cada vinte homens destacava-se um para servir © rei; terem = trazerem. * assinadamente — notadament: Esta passagem, das mais sugestivas de quantas oferecem 0 retrato de D, Pedro, convida a observar algumas das caracteris- ticas marcantes da obra historiografica de Fernio Lopes. 1) 0 cronista concentra sua atencdo no rei: sua concepgéo da His- téria, portanto, é regiocéntrica; mas como Ihe interessa sobretudo. a face politica das ocorréncias, sua concepso é também poli- tica (0 que, infelizmente, nao pode ser percebido no trecho mencionado); e é igualmente psicoldgica, visto que Ihe est4 preo- cupando a sondagem do interior do monarca, ainda que sé do ponto de vista de suas imprevistas e descontroladas manifesta- ges de alegria; pelo flanco politico e regiocéntrico, Ferndo Lopes se revela ainda préso @ cultura medieval. 2) Pela primeira vez, e para contrabalancar o regiocentrismo, 0 cronista faz compa- recer 0 povo no palco dos acontecimentos, lado a lado com o rei, duma forma tal que os plebeus “tomaram prazer de o ver assim Iedo”. 3) O historiador descreve as cenas como se as visse, num visualismo dinfmico que semelha o movimento de uma cAmara cinematogréfica surpreendendo os pormenores mais flagrantes da personagem central, por fora e por dentro: dir- seia um visualismo ao mesmo tempo cenografico ¢ psicolégico. 4) Atentese para a humanidade que Fernfo Lopes divisa no in- timo do desditoso rei, denotadora duma sincera compreensio do seu profundo drama e de seu irremedidvel tormento: nem por se tratar de um monarca o cronista foge de encaré-lo antes de tudo como homem. 5) Vejamosthe o estilo e a estrutura narra- tiva: por heranga da novela da cavalaria e mercé do talento de fino prosador que possuia Fernao Lopes, o estilo caminha com uma naturalidade e um vigor realmente “modernos”, pré- prios de um ficcionista, corroborados pela andamento das cenas, obediente a um tipico ritmo novelesco; alguns arcaismos, como “trebelho” e outros, cooperam para conceder ao trecho um sOpro de coisa viva e esponténea, quase se diria coloquial. 6) Bsc estilo ficcional, porém, nio empana, pelo contrdrio, emoldura, a pro- pensfo inata do cronista para ater-se a verdade histérica com base no documento, a qual se patenteia nitida no referido trecho, tudo com uma serenidade que assinala um historiador seguro no seu método e infenso a quaisquer extremismos ou paixdes desnorteantes. CRONICA DE D. JOAO I D. Joao I, filho bastardo de D. Pedro I, que o elevou a Mes- tre de Avis com apenas sete anos, ascendeu ao trono por meio 38 duma revolucdo popular, em 1383-5. Antes disso, reinava o seu meio -irmao, D. Fernando: casado com Leonor Teles, espanhola de nascimento, em pouco tempo a perigosa influéncia de Castela se féz notar, sobretudo por causa dos améres ilicitos entre a rai- nha e um seu compatriota, 0 Conde Joao Fernandes de Andeiro. Inconformado com a situagio, 0 povo insurge-se contra o trono, comandado pelo Mestre de Avis. ste, vitoriosa a sublevagio, é aclamado rei (64-1385) e da inicio A dinastia de Avis e a um reinado de proffcuas realizacdes, acima de tudo culturais. 0 trecho selecionado corresponde a um dos momentos mais dramé- ticos da revolta, quando o Mestre de Avis assassina o amante de Leonor Teles: Em outro dia pela manha partiu o Mestre daquela aldeia u dormira, ¢ comegou de andar seu caminho, sem triganga al- guma desacostumada; e no caminho dizem que descobriu 0 Mestre esta cousa a alguns seus, convém a saber: ao Comenda- dor de Jerumenha, ¢ a Fernando Alvares, e a Lourengo Mar- tins de Leiria, e a Vasco Lourenco que depois foi Meirinho, e a Lopo Vasques que depois foi Comendador mor, ¢ a Rui Pe- reira que o foi receber. E disse a um déles. — Ide-vos diante quanto puderdes e dizei a Alvaro Paes que se faga prestes, ca eu vou por fazer aquilo que éle sabe. O Escudeiro andou & pressa_e deu-lhe o recado ¢ tornou-se pera o Mestre de onde vinha. E éle trazia uma cota vestida até vinte consigo com cotas ¢ bracais ¢ espadas cintas como ho- mens caminheiros; ¢ chegou ao Paco a hora de térga ou pouco mais, sem deter porém em outra parte. E quando descavalgou e comegaram de subir acima, disseram uns aos outros mui manso: — Séde todos prestes, ca 0 Mestre quer matar 0 Conde Joao Fernandes. ‘A rainha estava em sua cdmara e donas algumas assentadas no estrado, ¢ o Conde de Barcelos seu irmio, e 0 Conde Dom Alvaro Peres, e Fernando Afonso de Samora, e Vasco Peres de Camées ¢ outros, estavam em um banco; e o Conde Joao Fer- nandes que diante estava em cabeceira déles, estava entio ante ela e comecava de the falar passamente. E em lhe sendo assim falando, bateram 4 porta, ¢ o porteiro como entrou o Mestre, quis cerrar a porta por néo entrar nenhum dos seus, € disse que 0 39 perguntaria & Rainha, nao por déles haver nenhuma suspeita, mas porque a Rainha estava com d6, ¢ nao era costume de ne- nhum entrar, salvo ésses senhores, sem lho primeiro fazer sa- ber. Eo Mestre respondeu ao porteir — Que as tu assim de dizer? E nisto entrou de guisa, que entraram os seus todos com @le; e éle moveu passamente contra onde estava a Rainha; e ela se levantou, ¢ todolas outros que eram presentes. E depois que o Mestre f@z reveréncia A Rainha e mesura a todos, ¢ éles a éle recebimento, disse a Rainha que se assentas- sem, ¢ falou ao Mestre dizendo: —E pois, irmao que é isto a que tornastes de vosso ca- minho? — Tornei, Senhora, disse éle, porque me pareceu que nio ia desembargado como cumpria, Vs me ordenastes que tivesse cargo da comarca de Entre Tejo e Odiana, se por ventura el-Rei de Castela quiscsse vir ao reino © quebrar os trautes entre vds e ble; e porqus aquela fronteira é grossa de gentes e gran- des senhores, assim como do Mestre de Santiago, e do Mestre de Alcantara e doutros e bons fidalgos; e aquéles que vds assi- nastes pera a guardarem comigo, me parecem poucos; por ende tornei pera me dardes mais vassalos, p2ra vos eu poder servir, segundo cumpre a minka honra e vosso servigo. ‘A Rainha disse que era mui bem, ¢ mandou logo chamar Joao Goncalves seu Escrivio da Puridade, que viste 0 livro dos vassalos daquela comarca, e que lhe dese quantos ¢ quais 0 Mestre requeresse, e que fésse logo desembargado de todo. Joao Goncalves foi chamado a pressa'¢ foi-se assentar com seus ¢s- crivaes a prover os livros pera desembargar o Mestre, Nisto comegaram de o convidar os Condes cada um per si; € isso mesmo 0 Conde Jodo Fernandes se aficava mais que co- messe com éle que os outros. O Mestre nao quis tomar convite de nenhum, escusando-se per suas palavras, dizendo que j4 tinha prestes de comer que mandara fazer ao seu Vedor; porém dizem que disse mui escusamente ao Conde de Barcelos que 0 nao sentiu nenhum: — Conde, i-vos daqui, ca eu quero matar 0 Conde Joao Fernandes. 40 E que éle respondeu que se no iria, mas estaria af com éle pera o ajudar. — Nao sejais, disse 0 Mestre, mas rogo-vos todavia que vos vades dagui, ¢ me aguardeis pera o jantar; ca eu Deus querendo tanto que isto fér feito, logo irei comer convosco. A ventura por melhor azar a morte do Conde Joao Fer nandes, comegou de Ihe fazer recear a vida do Mestre; per tal guisa que Ihe pés em vontade, que mandasse a todolos seus que se fossem armar ¢ se viessem pera éle; ¢ de qualquer jeito que foi, partiram-se os seus todos do Paco, assim fidalgos que © acompanhavam como os outros, e foram-se armar pera se vi- rem per éle; e esta foi a razio por que éle ficou s6 de todos @les, ¢ nenhum estava ai quando morreu. ‘A rainha isso mesmo pés femenga nos dos Mestres; ¢ ven- do-os assim todos armados, nao lhe prougue em seu cora¢ao, e disse falando contra todos: — Santa Maria val! como os Ingléses hia mui bom cos- tume, que quando sto no tempo da paz, nao trazem armas, nem curam de andar armados, mas boas roupas e luvas nas mios como donzelas; e quando sio na guerra, entio costumam as armas e sam delas como todo 0 mundo sabe. — Senhora, disse 0 Mestre, é mui grande verdade. Mas isso fazem éles porque hio mui amitide guerras, e poucas vézes paz, ¢ podem-no mui bem fazer; mas a nds é polo contrério, ca havemos mui amidde paz e poucas vézes guerra; ¢ se no tempo da paz nao usarmos as armas, quando viesse a guerra nao as poderiamos suportar. E falando em isto e em outras cousas, chegavam-se as ho- ras do comer, e despediu-se 0 Conde de Barcelos, e desi os ou- tros, ca os mais déles dava a vontade aquilo que se depois f€z. Ficando assim o Conde Joao Fernandes, gastava-se-lhe o coragdo, ¢ tornou a dizer ao Mestre: — Senhor, vbs todavia comereis comigo. — Nao comerei, disse 0 Mestre, ca tenho feito de comer. — Se comerdes, disse éle, ¢ enquanto vds falais, irei eu man- dar fazer prestes. — Nao vades, disse 0 Mestre, ca vos hei de falar uma cousa antes que me vd, e logo me quero ir, que jd é horas de comer. 4 Entao se despediu da Rainha, e tomou o Conde pela mio e safram ambos da cAmara a uma grande casa que era diante, ¢ os do Mestre todos com éle, e Rui Pereira e Lourenco Mar- tins mais acérca. E chegando-se 0 Mestre com o Conde acérca de uma fresta, sentiram os seus que o Mestre lhe co- megava de falar passo, e estiveram todos quedos FE as pala. yras foram entre éles tio poucas ¢ tio baixo ditas, que ne- num por entio entendeu quais eram; porém afirmam que foram desta guisa. — Conde, eu me maravilho muito de vés serdes homem a que cu bem queria, ¢ trabalhardes bs de minha desonra ¢ morte. — Eu, senhor! disse tle, quem vos tal cousa disse, men- tiu-vos mui grande mentira. O Mestre que mais vontade tinha de 0 matar que de estar com éle em razées, tirou logo um cutelo comprido, e enviou- -lhe um golpe 4 cabeca; porém nao foi a ferida tamanha que dela morrera, se mais nao houvera. Os outros que estavam de arredor, quando viram isto, langaram logo as cspadas fora pera lhe dar, e éle movendo pera se colhér & cAmara da Rainha com aquela ferida, ¢ Rui Pereira que era mais acérca, meteu um estoque de armas per éle de que logo caiu em terra morto. Os outros quiseram-lhe dar mais feridas, ¢ 0 Mestre dis- se que estivessem quedos, e nenhum foi ousado de Ihe mais dar; ¢ mandou logo Fernando Alvares e Lourengo Martins que féssem cerrar as portas que ado entrasse nenhum, ¢ disses- sem 20 seu pajem que fdsse 4 pressa pela vila bradando que matavam o Mestre, e éles fizeram-no assim. E era o Mestre quando matou 0 Conde, em idade de vinte ¢ cinco anos e andava em vinte ¢ seis; ¢ foi morto seis dias de dezembro, era jé escrita de quatrocentos ¢ vinte ¢ um. (Crénica de D. Joao I, ed. pref. por Anténio Sérgio, 2 vols., Pérto, Liv. Civilizagao, 1945, vol. I, cap. IX, pp. 19-22). triganca = pressa; que se faca prestes — que se pre- pare; ca = porque; passamente = vagarosamente; de guisa = de = isso; aficava = teimava; mandasse = mandasse dizer; femen- Como se vé, confirmam-se as caracteristicas da passagem anterior, algumas se intensificam e outras sc acrescentam: de um lado, a estrutura novelesca da historiografia de Fernio Lo pes, agora evidenciada pelo desenrolar da acio e pelo emprégo sistematico do didlogo, numa alternancia peculiar a melhor prosa de ficcdo; de outro, o dramatismo da’cena, pésto em re- Iévo por essa mesma estrutura ficcional, em que o didlogo, evoluindo num crescendo, nos vai insinuando a calma interior do Mestre de Avis, sua determinagao calculada, sua firmeza de homem audacioso, intemerato, astucioso, dotado duma ina- balavel retidao de cardter, nascido para a acdo esportiva e a lideranga de povos e exércitos: tudo se passa como se fdsse a descrigéo da psicologia dum heréi novelesco, pleno de férca in- tima e de poder de presenca, “vivo” enfim & frente do leitor. A descri¢ao do modo como o Mestre de Avis executa o Conde de Andeiro (no antepeniltimo pardgrafo) impressiona por sua concisio e precisio: Fernio Lopes possuia o sentido agugado para a economia sintatica e para a impressio que ela deveria causar no 4nimo dos leitores. Em resumo: um extraordinério cronista, iniciador da historiografia portuguésa a sério, e um notavel escritor. Gomes Eanes _Nascido depois de 1410 e falecido entre 1473 e de Azurara 1474, como segundo Cronista-Mor do Reino pro- curou continuar a obra de Ferndo Lopes, Es- creveu a 3* parte da Cronica de D. Jodo I (ou Cronica da Tomada de Ceuta), Cronica dos Feitos de Guiné, Crénica do Infante D. Henrique (ou Livro dos Feitos do Infante), Créni- ca de D. Pedro de Meneses, Cronica de D. Duarte de Meneses, Cronica de D. Fernando, Conde de Vila-Real (desaparecida). CRONICA DOS FEITOS DE GUINE Como declara o titulo, esta crénica trata da emprésa de conquista da Guiné, em seguida a instalacio da Escola de Sagres, do Infante D. Henrique. La chegados, apés ultrapassa- atengao; contra todos = para todos; prougue = agradou; vatha (como na expresséio “Valha-me Deus"); desi = de- pois; vontade = pressentimento; todavia = sempre, completa- mente; acérca = préximo de; quedos = quietos; era jé escrita de quatrocentos ¢ vinte eum = 1383. B rem as superstiges em t6rno do Cabo Bojador, os nautas por tuguéses travam seguidas batalhas contra os mouros, as quais sio narradas em tédas as suas minudéncias. Mas outros pon- tos da Africa e arredores também se tornam cendrio de diver- sos cometimentos, como o Rio Nilo, as ilhas atlinticas (as Canérias, as Palmas, a Madeira), etc. Até que, por fim, as novas terras acabam sendo conquistadas para a Coroa portu- guésa. O passo que se vai ler, contém o relato das crendices e fantasias que, no creptisculo da Idade Média, desencorajavam os navegantes de intentarem contornar 0 Cabo Bojador, e corres- ponde ao capitulo 8", intitulado “Por que razom nom ousavam 0s navios passar além do Cabo do Bojador”: Pésto assim o infante em aqueste movimento, segundo as razées que j4 ouvistes, comecou de aviar scus navios € gentes, quais a necessidade do caso requeria: mas tanto podeis apren- der, que pero a enviasse muitas vézes, e ainda homens que per experiéncia de grandes feitos, entre os outros haviam no off- cio das armas avantajado nome, nunca foi algum que ousasse passar aquéle cabo do Bojador pera saber a terra de além, se- gundo o Infante desejava. E isto por dizer verdade, nem era com mingua de fortaleza, nem de boa vontade, mas por a no- vidade do caso, misturado com geral ¢ antiga fama, a qual ficava j4 entre os mareantes de Espanha, quase por sucesso de geragées. Ej seja que fésse enganosa, porque a experiéncia disto ameagava com © postumeiro dano, era grande ditvida qual seria o primeiro que quisesse pér sua vida em semelhante ventura, Como passaremos, diziam éles, os térmos que puseram nossos padres, ou que proveito pode trazer ao Infante a perdigéo de nossas almas, juntamente com os corpos, ca conhecidamente seremos homicidas de nds mesmos? Por ventura nao foram em Espanha outros principes, nem senhores tao cobicosos desta sabe- doria como o Infante nosso senhor? Por certo nao é de presu- mir que entre tantos € tao nobres, e que tao grandes e tao altos feitos fizeram por honra de sua meméria, nao fora algum que se dello ndo atremetera. Mas sendo manifestos do perigo, e fora da esperanca da honra nem proveito, cessaram de o fazer. Isto é claro, diziam os mareantes, que depois déste cabo nao hf i nte nem povoacSo alguma; a terra nao é menos areosa que os Sosertos de Libia, onde nio hd Agua, nem 4rvore, nem erva ver- 4H de; ¢ o mar é tio baixo, que a uma légua de terra nfo hd de fundo mais que uma braga. As correntes sio tamanhas, que navio que 14 passe, jamais nunca poder4 tornar. E portanto os Nossos antecessores nunca s¢ entremeteram de o passar. E por certo nao foi a éles o seu conhecimento de pequena escuridio, quando 0 nao souberam assentar nas cartas, por que se regem todolos mares, per onde gentes podem navegar. Ora qual pea- sais que havia de ser o capitao do navio, a que pusessem seme- Ihantes diividas diante, ¢ mais per homens a que era razio de dar f€ e autoridade em tais lugares, que ousasse de tomar tal atrevimento, sob tio certa esperanga de morte como lhe ante os olhos apresentavam? Ou tu virgem Témis, diz o autor, que entre as nove musas do Monte Parnaso, havias especial prorro- gativa de escoldrinhar os segredos da cova de Apolo! Eu duvido se 0 teu temor era tio grande de por os teus pés sdbre aquela sagrada mesa, onde as revelages divinas te davam trabalho pouco menos de morte, quanto era em aquestes, ameagados nio sdmente de médo, mas de sua sombra, cujo grande engano foi causa de mui grandes despezas, ca doze anos continuados durou o Infante em aqueste trabalho, mandando em cada ano Aquela parte seus navios, com grande gasto de suas rendas, nos quais nunca foi algum que se atrevesse de fazer aquela passagem. Bem 6 que éles nao se tornavam sem honra, ca por emendar o que faleciam em nao cumprir perfeitamente 0 mandado de seu se- nhor, uns iam sdbre a costa de Granada, outros corriam per 0 mar de Levante, até que filhavam grossas présas de infiéis, com que se tornavam honradamente pera o reino.* (Crénica dos Feitos de Guiné, Lisboa, Agén- cia Geral das Col6nias, 1949,’ pp. 47-52.) A primeira observagao que cumpre fazer, diz respeito a lin- guagem de Azurara: comparando-a com a de Ferndo Lopes, per- cebe-se que houve algo como um retrocesso, pois que o estilo do segundo Cronista-Mor se caracteriza por ser pétreo, complicado, * aqueste = éste; aviar = preparar; pero = pésto que; postumei- ro = iltimo; dello = disso; atremetera = arriscara; i = af; escoldrinhar = esquadrinhar, vasculhar; filhavam = tomavam, apossavam-se de. artificioso, Numa palavra, dirse-ia que volveu em historiogré- fico (no sentido menor desta palavra) e que perdeu a feicdo literaria adquirida com o autor da Crénica de D. Pedro. Quais seriam as causas désse empobrecimento estilistico? De um lado, nitagdes naturais de que padecia Azurara, falto que era de sensibilidade estética e de inteligéncia analitica, o que significa um pendor para a descrigéo e para a minticia nem sempre rele- vante. De outro, a influéncia pronunciada dos prosadores la- tinos, cuja sintaxe procurou assimilar e imitar. Bem por isso, a presenca de elementos classicos jé se estadeia nitida, inclusive pelo gosto duvidoso e postico da citagdo erudita e meramente ornamental (vejase a referencia a Teémis, Monte Parnaso e Apolo), e via de regra bebida em segunda mao. Ainda Ihe com- promete a visio das coisas o fato de historiar acontecimentos muito recentes, apoiandose mesmo em testemunhos orais, em- bora submetendoos a rigoroso crivo. Paradoxalinente, ésses depoimentos, dado o seu carater subjetive e fantasista, ao invés de estimularem as aptidées literdrias de cronista, mais Ihe acen- tuam a auséncia de imaginacdo pléstica e a sua inclinagao para uma historiografia predominantemente descritiva. Salva-o, po- rém, 0 mérito de haver iniciado a cronica dos descobrimentos, com uma ufania que viria a fazer longa carreira nas décadas seguintes. Observese, por ultimo, que tais restricdes se atenuam no caso da Crénica da Tomada de Ceuta, Rui de Pina Quarto Cronista-Mor do Reino, viveu entre 1440 e 1522. Das nove cronicas que escreveu (Sancho 1, Afonso II, Sancho I, Afonso III, D. Dinis, Afonso IV, D. Duarte, Afonso V e D. Jodo II), somente a derradeira parte da ante peniiltima e a iltima Ihe pertencem: as demais seriam refun- digdo de obra alheia, inclusive de Fernéo Lopes. CRONICA DE D. JOAO I D. Joao Il, filho de Afonso V, reinou entre 1481 e 1495. De nominado o “Principe Perfeito”, déle conta Rui de Pina que, su- bido ao trono com 2% anos (nasceu em 1455 ¢ faleceu em 1495), tratou logo de consolidar o poder régio em suas mos e resolver as questdes internas, sobretudo no que toca as finan- cas. A seguir, cuidou de estimular a emprésa dos descobrimen- tos em Africa. © trecho que se transcreve, foi extraido do pe- nuiltimo capitulo da crénica intitulado “Feigdes, virtudes, cos- 46 tumes e manhas d’El-Rei D. Joao”, e parece resumir, pelo re- trato do monarca, 0 que havia sido o seu reinado: Foi el-Rei D. Joio homem de corpo, mais grande que pe- queno, mui bem feito, e em todos seus membros mui proporcio- nado; teve 0 rosto mais comprido, que redondo, ¢ de barba em boa conveniéncia povoado. Teve os cabelos da cabeca castanhos, e corredios; ¢ porém em idade de trinta e sete anos, na cabega, € na barba era jf mui co, de que mostrava receber grande con- tentamento, pola muita autoridade que a sua Dignidade Real suas cds acrescentavam: ¢ os olhos de perfeita vista, e as vézes mostrava nos brancos déles uma veias, e mAgoas de sangue, com que nas cousas de sanha, quando era dela tocado, Ihe fa- ziam o aspecto mui temeroso, E porém nas cousas de honra, prazer, ¢ gasalhado, mui alegre, e de mui real, ¢ excelente graca: © nariz teve um pouco: comprido, e derribado algum tanto sem fealdade. Era em todo mui alvo, salvo no rosto que era corado em boa maneira, E até idade de trinta anos foi mui enxuto das carnes, ¢ depois foi nelas mais revélto. Foi principe de ma- ravilhoso engenho, e subida agudeza, e mui mistico pera téda- las cousas; ea confianca grande que disso tinha, muitas vézes Ihe fazia confiar mais de seu saber, ¢ creio conselhos de outrem menos do que devia. Foi de mui viva, e esperta meméria, € teve 0 julzo claro, e profundo: e porém suas sentengas, ¢ falas que in- ventava, e dizia, tinham sempre na invengio mais de verdade, agudeza, ¢ autoridade, que de dogura, nem elegdncia nas pa- lavras, cuja pronunciagao foi vagarosa, entoada algum tanto pe- los narizes, que lhe tirava alguma graca. Foi rei de mui alto, esforgado © softido coraydo, que the fazia suspirar por grandes, € estranhas emprésas; polo qual conquanto seu corpo pessoalmente em seus reinos andasse polos bem reger como fazia, porém seu espfrito sempre andava fora déles, com de- sejo de os acrescentar. Foi principe mui justo, e mui amigo de justiga, ¢ nas execugdes dela mais rigoroso, e severo, que piedoso; porque sem alguma excecio de pessoas de baixa, alta condigio, foi dela mui inteito executor: cuja vara, ¢ leis nunca tirou de sua prépria seeda, por assentar nela sua von- tade, nem apetites; porque as leis que a seus vassalos condena- yam, nunca quis que a si mesmo absolvessem; ca sendo senhor 7 das leis, se [Wt logo servo delas, pois Ihe primeiro obedecia, E porém de lt condigio com pena, e dificuldade entendia nas petigdes, € daapachos das partes, 0 que pareceu ser em seu tem- po com rink ® bem de seus reinos, € vassalos; porque com isso dava causa, £°8trem entre éles demandas, e grandes litigios, e prncipalmen'®, cesordenados, © cobigosos requerimentos, pera Phe a acildyade 40 despacho muitas vézes convidas porque squilo, ue nos horRs cobica, e perfia despertavam pera requererem, 4q a tardanca do despacho que esperavam, lho fazia ¢ litigarem, 2 . = assoss€go e honesto contentamento reprimir, € es- com pacient? cusar. gacipe de seu tempo mais privado de privados, e nao devidos famidites> de que se esperasse, que contra razdo, honesti- ade, justga © com quebra de sua honta, estima, ¢ estado 2 g0- sa dS gesse; porque como mui perfeito rei, assim ordenou aa A ds, fe sreste Passo tio livre de reprensio, que sendo senhor de senhores PUNCA quis ser, nem parecer servo dos servidores: ¢ disto rincipaimente procedia, que em sua vida foi havido por Soe fe eotisto, ¢ nio humano, nem pareceu em viendo de seo Ae cont mado, ¢ estimado, como o foi depois de sua morte. Ma eae ney tio grande, e to geral amor, que a éle, ¢ a sua meméria per todos depois sobreveio, nfo nasceu tanto dos mere- Cimentos de £¢U COfPA, em que houve muitos, ¢ de grande lou- gloriosa salvacio, e bem-aventuranga de sua alma, Foi o pr! vor, como di vilggio de graga s6 Deus por sua misericérdia de- 3 due, Ore Porte quis conceder. Foi principe sdbre todos em pois de sua ;2g8es to constante, e nas palavras tio verdadeiro, s6 palavra, quando a dava, iam os homens mais eguros, do que poderiam ir nos assinados, e sé-los de rei de tio grande, e tio geral nobreza, sem mégoa, prodigo, que nunca péde, nem soube dar pouco, mas muito, ¢ a muitos, [...]" suas determi que em sua contentes, ¢ s muitos. Foi nem vicio dé nem a pouco” (Crénica dE Rei- D. Joao II, pref. e notas de A. M. de Carvalho, Coimbra, Atlantida, 1950, cap. LXXXII, pp. 202-204.) q lho, com cabelos brancos; seeda — cadeira, lugar; cio = grit, ca = porgY 48 Observe-se que 1) o estilo de Rm de Pina difere do de seus antecessores na medida em que se caracteriza por fluéncia, so- briedade e espontaneidade, apesar de tender para os periodos longos, fruto de o cronista ressentir-se, mais do que Azurara, do impacto classico sobre a sua formagio; note-se como o historia- dor procura a ordem direta do pensamento, numa légica sim- ples, metédica, accessivel ao leitor mais descontraido; 2) do ponte de vista historiogréfico, Rui de Pina falha pelo vézo de vincar demasiado as qualidades do rej e de sempre Ihe justificar as fraquezas, 0 que denotaria um recriminavel anseio de agradar © seu mecenas, D. Manuel, primo e cunhado de D, Jodo II; as- sim, compromete-se a verdade histérica e acentuase a impressio de pouco honesto que cerca Rui de Pina desde o século XVI; 3) cronista semelha acariciar a idéia de fazer histéria moral, ou de vestir a roupagem de doutrinador, como se pode reparar no final do primeiro pardgrafo; e quando o faz, o seu estilo ganha algo de obscuro; na verdade, éle ja transpirava o clima renas centista que se adensava desde o luscofusco do século XV; 4) mais do que Azurara, sua historiografia é descritiva, narrativa, linear e isenta de dramaticidade. Prosa Doutrindria Durante a vigéncia do Humanismo, entrou a desenvolver-se a prosa doutrinaria, vol- tada para a formaco integral do Homem, sobretudo o perten- cente a fidalguia, em razdo de serem reis ¢ aristocratas os seus autores (D. Joao I, D, Duarte, D. Pedro, o Regente, Péro Menino), ¢ de a educagao ser entio privilégio das classes abastadas. D. Duarte Filho de D. Joao I, nasceu em 1391 e faleceu em 1438, e subiu ao trono em 1433. A éle se devem os atos que propiciaram a Fernao Lopes criar sua notdvel obra historiografica. Escreveu _o Leal Conselheiro e 0 Livro da Ensi- nanca de Bem Cavalgar Téda Sela, LEAL CONSELHEIRO Redigida entre 1437 e 1438, esta obra somente foi dada a pliblico em 1842. Dividida em cento e trés capitulos, consiste numa espécie de tratado moral para a edificacao da aristocracia, girando em témo de temas fundamentais, como o entendimento, a meméria, a vontade, o siso, a soberba, a vangléria, a inveja, a sanha, a avareza, a gula, a caridade, o amor, a prudéncia, etc. 99 A doutrina moral de D, Duarte se resume em fazer a apologia das virtudes e a admoestagéo dos pecados. Dentre os varios té- picos de que se compde a obra, escolheuse 0 referente a sau dade, que integra o capitulo XXV: E a saudade nao descende de cada uma destas partes, mas é um sentido do coragéo que vem da sensualidade, e nao da razdo, ¢ faz sentir As vézes os sentidos da tristeza ¢ do nojo. E outros vém daquelas cousas que a homem praz que sejam, ¢ alguns com tal lembranca que traz prazer e nao pena. E em casos certos se mistura com tio grande nojo, que faz ficar em tristeza, E pera entender isto, ndo cumpre ler per outros livros, ca pou- cos achario que déle falem, mas cada um vendo o que escrevo, consiire seu coragio no que j4 per feitos desvairados tem sen- tido, e pudera ver ¢ julgar se falo certo. Pera maior declaragio ponho disto exemplos. Se alguma Pessoa por meu servico e mandado de mim se parte, € dela sin- to saudade, certo € que de tal partida nao hei sanha, nojo, pe- sar, desprazer nem aborrecimento, ca praz-me de ser, € pesar- -me-ia se nao fsse. E por se partir algumas vézes vem tal saudade, que faz chorar ¢ suspirar, como se fésse de nojo. E porém me parece @ste nome de saudade tio prdprio, que o La- tim nem outra linguagem que eu saiba nao é pera tal sentido se- melhante. De se haver algumas vézes com prazer, € outras com nojo ou tristeza, isto se faz, segundo me parece, por quanta saudade prdpriamente he sentido que 0 coragio filha por se achar partido da presenga de alguma pessoa, ou pessoas que muito per afeicio ama, ou o espera cedo de ser. E isso medés dos tempos ¢ lugares em que per deleitago muito folgou. Digo afci¢io ¢ deleitacio, por que sio sentimentos que a0 coracao pertencem, donde verdadeiramente nasce a saudade mais que da razao nem do siso. E quando nos vem alguma lembranca dalgum tempo cm que muito folgamos, nfo geral, mas que traga rijo sentido, e por conhecermos o estado em que somos ser tanto melhor, ndo desejamos tornar a éle por leixar o que possuimos, tal lembramento nos faz prazer. E a mingua do de- sejo per juizo determinado da razdo nos tira tanto aquéle sen- tido, que faz a saudade, que mais sentimos a folganga por nos lembrar 0 que passamos, que a pena da mingua de tempo ou 50 pessoa. E aquesta saudade é sentida com prazer mais que com nojo nem tristeza. Quando aquela lembranca faz sentir grande desejo, outor- gado per téda maior parte da razao, de tornar a tal estado ou conversacdo, com esta saudade vem nojo ou tristeza mais que prazer. E por que sobre esta lembranga que traz saudade mui- tos incorrem em pecado, tristeza e desordenanca da vontade, lembrando-lhes por vista de homens ¢ mulheres casadas, canti- gas, cheiros, ou per saltamento doutras falas e cuidados algu- mas pessoas com que houveram algumas folgangas quais nao deviam, ou puderam compridamente haver como desejavam, ¢ o leixavam de fazer, e por ello hes vem desejo de tornar a tal estado ¢ conversacao, nio havendo reprendimento do mal que fi- zeram, mas ho desprazer do que nado cumpriram, éstes provei- tosos avisamentos pensei declarar da boa mancira que devemos ter em tal caso. * (Leal Consetheiro, ed. crit. ¢ an. por Joseph M. Piel, Lisboa, Bertrand, 1942, pp. 9496). Com esta pagina, em que revela um agudo senso das ma- zelas morais que acometem o homem, D. Duarte realiza pela primeira yez a andlise psicolégica do complexo sentimento da saudade. Que éle existia antes, desde o despontar da poesia trovadoresca, provou-o A saciedade Carolina Michaglis de Vascon- celos (A Saudade Portuguésa, 2" ed. rev. e resc., Porto/Lis- boa/Rio de Janciro, Renascenga Portuguésa/Seara Nova/Anud- rio do Brasil (19221), mas o primeiro que empreendeu o seu * sensualidade = sensibilidade, sensagéio; nojo = sofrimento; ho- mem = a gente; casos certos = certos casos; ca = pois; consiire = considere; feitos desvairados = circunstancias diversas; ca praz-me de ser = pois me agtada de haver-me separado; porém = por isso; espera cedo de ser = espera de cedo separar-se; medés = mesmo (ou seja: a saudade viria do afastamento dos lugares e tempos em que a pessoa foi feliz); siso = julzo; nem- branga = lembranca; nao geral, mas que traga Tijo sentido = nao vaga, mas determinada; mingua = diminuigao; desordenanca perturbacdo; saltamento = associagio; ello = isso; reprendimen- to = arrependimento, remorso; proveitesos avisamentos = D. Duarte tece, a seguir, consideragdes acérca de como vencer o apélo da saudade mérbida por meio do exercicio da vontade, SI exame foi D. Duarte. E félo, como declara no primeiro paré- grafo, néo “per outros livros", ou seja, baseowse na propria experiéncia € na observaciio percuciente dos fatos. Além disso, tornowse o jniciador da id¢ia segundo a qual se considera intra- duzivel a palavra “saudade” para qualquer outra lingua, ao afir- mar “que o Latim nem outra linguagem que eu saiba nao é pera tal sentido semelhante”. Observe-se que o escritor dis- tingue uma saudade negativa, feita da “tristeza e do nojo”, ¢ uma saudade positiva, composta “daquelas cousas que a homem praz que sejam”. Importa, outrossim, atentar para o fato de que D. Duarte, tratando da saudade com vistas a edificar o fidalgo, esquadrinhou a esséncia désse sentimento (daf a pa- lavra “sensualidade”, que significa “sensibilidade”, “sensacao”) dum tal modo que acabou equacionando antinomias mais tarde glosadas por poetas de varias tendéncias ¢ feitios. Como se fundamentou na experiéncia, suas palavras adquiriram uma vi- talidade e uma dimensio préximas da poesia, o que as con serva ainda hoje validas e ressoantes. A Poesia A poesia na época do Humanismo desliga-se do for- malismo trovadoresco gragas ao divércio havido entre a letra e a pauta musical, e modernizase, admitindo novos re- cursos estilisticos, novas formas poeméticas (a trova, a esparsa, vilancete) € novos temas (influéncia grecolatina e italiana). Encontra-se compendiada nO Cancioneiro Geral, organizado por Garcia de Resende e vindo a lume em 1516. Garcia de Resende Nasceu em tomo de 1470 e faleceu em 1536. Favorecido por sucessivos monarcas (D. Joao II, D. Manuel ¢ D. Jofio III) mercé de seus varios dotes pessoais artfsticos, além do privilégio de compilar O Cancio- neiro Geral, escreveu: Misceldnea (1554), longo poema composto em trezentas e onze décimas, e Vida e Feitos de D. Joao II (1545), ambas as obras de menor interésse que sua colaboragéio nO Can- cioneiro Geral, da qual se ressaltam suas ‘TROVAS A MORTE DE D, INES DE CASTRO Senhoras, se algum_ senhor vos quiser bem ou servir, quem tomar tal servidor eu lhe quero descobrir 52 SS a © galardao do amor. Por Sua Mercé saber © que deve de fazer, vej'o que féz esta dama, que de si vos dar4 fama, se estas trovas quereis ler. Fala D. Inés: Qual seré 0 coragio to cru, e sem piedade, que the nao cause paixio Uma tam gra crueldade € morte tio sem razdo? ‘Triste de mim, inocente, que por ter muito fervente lealdade, fé, amor, ao principe meu senhor, me mataram cruamente! A minha desayentura, no contente de acabar-me, por me dar maior tristura, me foi por em tanta altura, para d’alto derribar-me. Que, se me matara alguém antes de ter tanto bem, em tais chamas nao ardera, pai, filhos, nao conhecera, nem me chorara ninguém. Eu era méca, menina, por nome dona Inés de Castro, ¢ de tal doutrina ¢ virtudes, que era dina de meu mal ser ao revés. Vivia sem me lembrar que paixio podia dar nem déla ninguém a mim: foi-me o principe olhar por seu nojo ¢ minha fir! 53 54 Comegou-me a desejar, trabalhou por me servir, fortuna foi ordenar dous coragdes conformar e fia vontade vir. Conheceu-me, conheci-o, quis-me bem, ¢ eu a éle, perdeu-me, também perdi-o, nunca até 4 morte foi frio © bem que, triste, pus néle. Dei-lhe minha liberdade, néo senti perda de fama; pus néle minha verdade, quis fazer sua vontade, sendo mui fremosa dama. Por me estas obras pagar, nunca jamais quis casar; polo qual, aconsclhado foi el-Rei, que era forcado, polo seu, de me matar. Estava mui acatada, como princesa servida, em meus pacos mui honrada, de tudo mui abastada, de meu senhor mui querida. Estando mui de vagar, bem fora de tal cuidar, em Coimbra d’assosségo, polos campos de Mondego cavaleiros vi somar. Como as cousas que hio de ser logo dao no coracdo, comecei entristecer e comigo sé dizer: “Estes homens, d’onde irdo?” E tanto que perguntei, soube logo que era ¢l-Rei: quando 0 vi tio apressado, meu coragio trespassado foi, que nunca mais falei. E quando vi que descia, saf A porta da sala; devinhando 0 que queria, com gra chéro, e cortesia Ihe fiz Ga triste fala. Meus filhos pus derredor de mim, com gra humildad mui cortada de temor, Ihe disse: “havei, Senhor, desta triste piedade! Nao possa mais a paixdo que o que deveis fazer; meteis nisso bem a mio, que é de fraco coracao sem porqué matar mulher. Quanto mais a mim, que dio culpa nao sendo razao, por ser mae dos inocentes que ante vés esto presentes, @s quais vossos netos sao, E tém to pouca idade que, se nao forem criados de mim, sé com saudade ¢ sua gra orfandade, morreram desemparados. Olhe bem quanta crueza fard nisto Vossa Alteza, ¢ também, Senhor, olhai, pois do principe sois pai, nao Ihe deis tanta tristeza. Lembre-vos 0 grande amor que me vosso filho tem, e que sentir gra dor morrer-Ihe tal servidor, por Ihe querer grande ‘bem; 55 que, se algum érro fizera, fra bem que padecera fe que éstes filhos ficaram 6rfaos tistes, e buscaram que déles paixdo houvera Mas, pois eu nunca errei ¢ sempre mereci mais, deveis, poderoso rei, nao quebrantar vossa lei que, se moiro, quebrantais, Usai mais de piedade que de rigor nem vontade; havei dé, Senhor, de mim, no me deis tAo triste fim pois que nunca fiz maldade!” El-Rei, vendo como estava, houve de mim compaixao € viu 0 que nao olhava: que cu a éle nao errava nem fizera traicio. E vendo quao de verdade tive amor e lealdade ao principe, cuja sam, pide mais a piedade que a determinacio. Que, se m’éle defendera que a seu filho nio amasse, e Ih’eu nao obedecera, entio com razio pudera dar-me a morte que ordenasse, Mas, vendo que nenhi’hora, — dés que nasci até'gora — nunca nisso me falou, quando se disto lembrou, foi-se pola porta fora. Com seu rosto lactimoso, co propésito mudado, muito triste, mui cuidoso como rei mui piedoso, mui cristo e esforcado. Um daqueles que trazia consigo na companhia, cavaleiro desalmado, detr4s déle, mui irado, estas palavras dizia: — “Senhor, vossa piedade é dina de reprender, pois que, sem necessidade, mudaram vossa vontade lagrimas d‘tia mulher; quereis que abarregado, com filhos, como casado, éste, Senhor, vosso filho? De vés, mais me maravilho que déle que € namorado! Se a logo nao matais, nao sereis nunca temido nem fario 0 que mandais, pois tio cedo vos mudais do conselho que era havido. Olhai quéo justa querela tendes, pois por amor dela vosso filho quer estar sem casar, e nos quer dar muita guerra com Castela. Com sua morte escusareis muitas mortes, muitos danos; vés, Senhor, descansareis, ea vés ea nds dareis paz para duzentos anos: © principe casaré, filhos de béngao ter4, se, fora de pecado; que agora seja anojado amanha lh’esquecer4!” Desejava dar-me vida, por the nao ter merecida a morte nem nenhum mal: sentia pena mortal por ter feito tal partida. E vendo que se Ihe dava a éle téda esta culpa, € que tanto 0 apertava, disse aquele que bradava: — “Minha tengdo me desculpa. Se o vds quereis fazer, fazei-o sem mo dizer, que eu nisso nao mando nada, nem vejo essa coitada por que deva de morrer.” Fim Dous cavaleiros irosos, que tais palavras Jh'ouviram, mui crus € nao piedosos, perversos, desamorosos, contra mim rijo se viram. Com as espadas na mio, me atravessam 0 coracio, a confissio me tolheram. Bute € 0 galardao que meus amdres me deram. * (Cancioneiro Geral, 5 vols., Coimbra, Im- prensa da Universidade, 1910-1917, vol. V, E, ouvindo seu dizer, el-Rei ficou mui torvado, Por se em tais extremos ver que havia de fazer ou um ou outro, forgado, pp. 357-364.) | * foma = noticia, exemplo; fervente = ardente; doutrina = edu- cac&o; era dina / de meu ser o revés = era digna / de merecer 538 Observese, de infcio, que € a propria Inés de Castro quem relata a sua “desaventura” amorosa. Parece que recobramos momentaneamente © clima das cantigas de amigo, 20 menos tendo em vista ésse recurso dramético de transferir para a protagonista a incumbéncia de falar. Por outro lado, o em- prégo do redondilho maior (verso de sete sflabas) constitui uma nota popularesca que deve ser considerada. Entretanto, nada menos popular que as trovas de Garcia de Resende, seja pelo drama que nelas se contém (ou seja: o afeicoamento passional de Inés e D. Pedro, a morte dela por questées de seguranca de Estado), seja pelo seu alcance tragico. Com efeito, trata-se dum auténtico poema palaciano, néo sé porque derivado da am- biéncia cortesanesca em que viveu o seu autor, como pela essén- cia mesma da tragédia que néle se encerra. O ritmo dramatico, adensando-se a pouco e pouco, numa ascensao que se diria ul- trapassar o plano humano para participar dum plano mitico, ajuda a explicar ésse halo de tragédia grega que circunda o de- senlace infeliz da pobre Inés. Mas a tragicidade da composicao leva a um paradoxo: como, sendo Inés castelhana e¢ tendo vi- vido “em pecado” com D. Pedro, péde um portugués de cos tados aquecidos pelo calor dulico enaltecéla a tal ponto e, como se nao bastasse, deixar entrever uma recriminagéo aos mata- dores de Inés, inclusive ao Rei? # que a verdade do sentimento sobrelevava, para Garcia de Resende, qualquer outra verdade no caso da desventurada amante de D. Pedro. Realmente, 0 poema guarda, na pessoa de Inés, um encémio & grandeza trdgica do sentimento amoroso, que induz a pessoa déle habitada a tudo sacrificar, a fim de vivélo em plenitude. A rigor, a simpatia do poeta deve ser posta na conta de sua psique portuguésa, e quem diz portugués, diz sentimental e emotivo. Entendido ésse ponto, sorte contréria; cru = cruel; erueza = crueldade; polo seu = pela necessidade de proservar a sucesso do poder na pessoa de D. Pedro; de vagar = calma; somar = assomar; comigo s6 dizer dizer a mim préprio, de mim para mim; vontade = arrebatamen- to; e viu o que ndo olhava = percebeu o que nfo havia enten- dido antes; cuja sam = de quem sou, a quem pertenco; deter- minagto = ordem, resolucdo (isto 6, de assassinar Inés)); éle me defendera / ca seu filho nam amasse = 6le me proibisse / de amar seu filho; dés = desde; necessidade — motivo justo; abarregado = amasiado; este = esteja; me maravilho = me espanto; querela = queixa; filhos de béncdo = filhos legitimos; qu’agora seja anojado = ainda que agora possa sofrer; um ou outro = perdoar ou no; tal partido = ter partido para’ Coimbra, 59 no surpreenderé saber que o retrato apologético pintado por Garcia de Resende veio a fazer imitadores: em Camées (Os Lusiadas) e em Anténio Ferreira (A Castro) é a mesma emocao compungida e compreensiva que informa a visdo de Inés de Castro. Apenas no século XIX, com Eugénio de Castro, 6 que se tentou, reabilitando Constanga, mostrar o reverso da medalha. Mas em vo: nossa perspectiva de Inés continua a ser a que nos oferece esta obraprima da poesia dO Cancioneiro Geral. Joao Ruiz de Castelo Branco De origem fidalga, foi contador da Guarda e teria freqiientado o paco real durante o rei nado de D. Joéo II. Tornou-se um dos mais destacados poctas do Cancioneiro Geral, gracas & CANTIGA SUA PARTINDO-SE Senhora, partem tio tristes meus olhos por vis, meu bem, que nunca tao tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tio tristes, tio satidosos, to doentes da partida, tGo cansados, tao chorosos, da morte mais desejosos cem mil vézes que da vida. Partem tio tristes os tristes, tio fora d’esperar bem, que nunca tao tristes vistes outros nenhuns por ninguém. (Cancioneiro Geral, vol. III, p. 134) Nesta cantiga, mais do que parecia suceder ao poema de Garcia de Resende em relagdo a cantiga de amigo, temos a im- pressio de que refloresce, enriquecida e modernizada, a cantiga de amor. O verso redondilho maior comparece ainda uma vez para revestir segmentos liricos cuja musicalidade evola do ritmo, plangente e murmurante, casado & substancia psicolégica do 60 poema todo. A dor de partir, de ausentarse da “senhora”, pro- voca uma melopéia tristonha, de musica em surdina. Observe- ‘se que a “senhora” no é mais a fidalga; ao contrario, seme lha a propria méca do povo de quem o poeta se afasta sofrendo tanto que a sua confissdo se abafa, se insinua, em vez de fa zerse diretamente, Percebe-se que a relacdo entre os namorados se pOe ao nivel das realidades concretas, e que o sentimento trans- mitido possui uma sinceridade que logo se comunica ao leitor. A presente cantiga, com encerrar uma forte carga poética, ao mesmo tempo que exemplifica uma época em que o homem se dimensio na por sua prdpria altura, anuncia aquéle clima de “vale de 1é- grimas” que, passando por Bernardim Ribeiro, viria a permane- cer como uma das tonicas da poesia portuguésa de sempre. Por ultimo, repare-se que o poema logra efetuar 0 que constitui mar- ca da auténtica poesia: numa forma simples e condensada, o maximo de significado e de sugestio de ritmo e de emocdo. Gu. Vicente Nasceu em 1465 ou 1466 e morreu entre 1536 e 1540. Iniciou seu teatro a 7 de junho de 1502, ao entrar na camara da Rai- nha D. Maria de Castela, que acabara de dar A luz o futuro D. Joao III. Declama em Espanhol 0 Mondlogo do Vaqueiro, tam- bém chamado de Auto da Visitacao, Como impressionasse viva- mente, os monarcas Ihe pedem que recite de ndvo a peca por ocasiéo do Natal. Em vez de o fazer, representa outra, 0 Auto Pastoril Castelhano. Confirmado 0 éxito, dai por diante leva o seu teatro, de feicéo absolutamente popular, até 1536, quando encena a Floresta de Enganos. Escreveu quarenta e seis pegas, entre satiricas, misticas, medievais, modernas, comédias ¢ farsas, das quais se destacam as seguintes: Auto da Alma, Tri- logia das Barcas, Farsa de Inés Pereira, Quem tem Farelos?, Juiz da Beira, Auto da Fé, Auto da India e Auto da Lusitania. A esta iiltima pertence 0 excerto que escolhemos como indice do ta- lento cénico de Gil Vicente. . AUTO DA LUSITANIA Representada ao Rei D. Joao III em 1532, esta peca, como o préprio Autor declara a certa altura, gira em térmo da origem mitolégica de Portugal: a ninfa Lisibea, de magnificente beleza, provocou paixdo no Sol e déle teve uma filha, Lusitania, cuja for: 61 didamente por ela, desencadeia tal ciime em Lisibea, que vem a falecer. Enterrada na montanha Feliz Deserta, sébre ela se edificou uma cidade que, por causa do nome da ninfa, veio a denominar-se Lisboa. Da lenda, Gil Vicente extrai o episédio do encontro entre Lusitania e Portugal, 20 qual também concorrem Meretirio e algumas deusas, cujos “capelaes”, Dinato e Berzebu, se dispdem a relatar a Lucifer “tudo quanto aqui se monta”. O didlogo em que ambos se desincumbem de sua missdo cons- titui a cena que a seguir se transcreve. Note-se, ainda, que a primeira parte da peca contém a descricio duma familia ju- daica do tempo de Gil Vicente. Topo 0 Munvo £ Nincuim Entra Todo 0 Mundo, homem como rico mercador, ¢ faz que anda buscando alguma cousa que se the perdeu; e logo apds dle um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz: Nin. Que andas tu af buscando? Tod. Mil cousas ando a buscar: delas nio posso achar, porém ando perfiando, por quio bom é perfiar. Nin. Como h4s nome, cavaleiro? Tod. Eu hei nome Todo 0 Mundo, ¢ meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro, ¢ sempre nisto me fundo. Nin, E eu hei nome Ninguém, ¢ busco a consciéncia, (Berzebu para Dinato) Esta € boa experiéncial Dinato, escreve isto bem. 62 Din. Ber. Tod. Nin. Ber, Ber. Que escreverei, companheiro? Que Ninguém busca conscitncia, E Todo 0 Mundo dinheiro. (Ninguém para Todo 0 Mundo) in. E agora que buscas k? Busco honra muito grande. . E eu virtude, que Deus mande que tope co ela jd. (Berzebu para Dinato) Outra adigio nos acude: escreve af, a fundo, que busca honra Todo 0 Mundo, e Ninguém busca virtude. Buscas outro mor bem qu’ésse? Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse, (Berzebu para Dinato) Escreve mais, Que tens sabido? Que guer em extremo grado Todo o Mundo ser louvado, ¢ Ninguém ser repreendido. (Ninguém para Todo 0 Mundo) Buscas mais, amigo meu? 6 64 Tod. Nin. Ber, Busco a vida e quem ma dé. A vida nio sei que é a morte conhego eu. (Berzebu para Dinato) Escreve 14 outra sorte. Que sorte? Muito garrida: Todo 0 Mundo busca a vida, E Ninguém conhece a morte. (Todo 0 Mundo para Ninguém) E mais queria o paraiso, sem mo ninguém estorvar. E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso. (Berzebu para Dinato) Escreve com muito aviso. Que escreverei? Escreve que Todo 0 Mundo quer paraiso, ¢ Ninguém paga o que deve. (Todo 0 Mundo para Ninguém) Folgo muito d’enganar, € mentir nasceu comigo. Eu sempre verdade digo, sem nunca me desviar. (Berzebu para Dinato) Ora escreve 1, compadre, nao sejas tu preguicoso! Din. Qué? Ber. Que Todo 0 Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade. (Ninguém para Todo 0 Mundo) Nin. Que mais buscas? Tod. Lisonjar. Nin. Eu sou todo desengano, (Berzebu para Dinato) Ber. Ecreve, ande la mano! Din, Que me mandas assentar? Ber. Poe ai mui declarado, nio te fique no tinteir: Todo 0 Mundo é lisonjeiro, ¢ Ninguém desenganado.* (Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Portugalia Editéra, 1959, pp. 305308.) Observe-se que o didlogo se passa entre Todo o Mundo e Ninguém, mas Berzebu e Dinato, decerto as escondidas, escu- tamno e registram-no a fim de comunicé-lo a Lucifer. A cena, que possui unidade e autonomia, parece estar vinculada ao con- junto da pega por mera justaposigao. De onde, pode ser desta- cada sem prejuizo do todo da peca e sem perder nada de sua validez e significagio. Tratando-se duma evidente alegoria, os interlocutores devem ser entendidos nao como pessoas ou séres “concretds”, mas como simbolos de gente viva ou de tendéncias humanas t4o perenes quanto o proprio homem. 0 intuito do * perfiar = porfiar, procurar obter; honra = respeito social; ande lq mano! = maos a obra!, s 6s comedidgrafo salia a vista: empregando o estilete da sdtira, pretende atingir o amago das fraquezas humanas e, por meio de sua demincia em forma indircta ou metaférica, chamar 4 atencdo dos espectadores para os seus vicios e debilidades. Dai a carga de moralidade que mora no episédio, mas uma morali- dade despreconcebida, com os pés na terra, realista e objetiva, como, de resto, era tipico do teatro de Gil Vicente. Situado no limiar da Renascenga, 0 que equivale a colocar em crise certos valdres medievais, e os oportunismos emergentes, seu enderéco é © homem como espécie ou como animal gregdrio vivendo em gtupos sociais comprometidos por conveniéncias e dissimulacées de téda ordem. Entretanto, o destinatario préximo e imediato de sua sdtira é o portugués de Quinhentos, aqui retratado com im- pressionante fidclidade. Realmente, Todo o Mundo seria o pro- t6tipo dos contemporaneos do escritor, e Ninguém constituiria a materializacdo daquilo que Ihes faltava. Désse modo, Todo o Mundo busca o respeito social, o dinheiro, o louvor, a vida, 0 Paraiso, enganar, mentir, lisonjear. Em contrario, Ninguém bus- ca a consciéncia, a virtude, a repreensio, a morte, “paga o que deve”, diz a verdade, é desenganado. O que cumpre anotar nessa feliz antftese é 0 seguinte: 0 contetido satirico da cena nem é exclusivo dela nem sequer do préprio teatrélogo, ou seja, anda disseminado pelas demais pecas, e outros dramaturgos o yém explorando desde sempre. Por outro lado, ressalta ao pri- meiro olhar no texto vicentino 1) a conciséo do pensamento, le- vada a cabo dum modo decididamente lapidar, 2) a felicidade na construgio dos versos, que escoam com um ritmo facil, esponta- neo e saltitante, 3) a vibracdo da cena a um nivel que se man- tém até o desfecho. Assim, a cena, embora breve, concentra um efeito teatral que semelha visivel no papel, como se prenun- cidssemos, pela simples leitura, sua representacio no palco, com tédas as virtualidades que ostenta. Basta sentir a altura dramatica déste trecho para se chegar a compreender a gran- deza poética e filoséfica lograda pelo teatro vicentino.

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