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BARROCO A época do Barroso inicia-se em 1580, quando Camées morre e Portugal perde sua autonomia para a Coroa espanhola, e termina em 1756, quando se funda a Arcddia Lusitana. Consti- tuindo-se 0 Barroco numa tentativa de fusdo harmGnica entre as duas linhas de férca que orientavam a cultura renascentis- ta (a medieval e a cléssica, respectivamente teocéntrica ¢ an- tropocéntrica), durante a sua vigéncia cultivaram-se a oraté- ria, a prosa doutrindria, a poesia, a historiografia, a epistolo- grafia eo teatro. A maior figura dessa época foi o Padre An- tonio Vieira, quer por sua agdo pessoal, quer pelos méritos de sua oratéria e de sua obra epistolografica. Papre Antonio Vieira Nasceu em Lisboa, em 1608. Aos seis anos, vem para o Brasil, e mais tarde ingressa no colégio jesuitico da Bahia, Ordenando-se em 1634, logo alcanga renome de pregador elo- qiiente e culto, Com o movimento portugués de restauracio da independéncia (deflagrado a 1! de dezembro de 1640), viaja para Portugal a fim de protestar lealdade ao nOvo monarca, D, Joao IV, junto a quem passa a gozar de grande prestigio ¢ respeito, de que resulta ser nomeado para varias embaixadas diplo- maticas no estrangeiro. Em 1652, transferindo-se para o Maranhao, dedica-se & catequese e conversio dos indigenas. Nove anos apés, regressa a Lisboa e é préso por suas idéias de fundo sebast nista. Confinam-no durante oito anos numa casa jesuitica e cas- sam-lhe o direito de pregar. Liberto, segue para Roma a pleitear revisio do seu proceso, e tornase orador oficial do salao literario da Rainha Cristina da Suécia, Depois de alguns anos em Lisboa defendendo a causa dos judeus perante a Inquisicio, retorna ao Brasil (1681) ¢ entregase a faina de redigir ¢ polir seus ser 147 mes e outras obras. Morreu em 1697. Escreveu: Sermédes (15 volumes, 1679-1690, 1710-1718), Histéria do Futuro (1718), Espe- rangas de Portugal (1856-1857), Clavis Propheiarum (inédita e perdida) e quinhentas cartas. SERMAO DA SEXAGESIMA Pregado na Capela Real (Lisboa), em margo de 1655, 0 Ser mdo da Sexagésima abre a série de quinze volumes que enfeixam as pecas oratérias do Padre Antonio Vieira, e serve-lhes de prd- logo, ao mesmo tempo que encerra uma teoria da arte de pregar, inspirada em moldes conceptistas. O tema do sermao ¢ extrafdo, como de regra, duma passagem biblica escolhida para a ocasiao: Semen est verbum Dei (S. Lucas, VII, 2) ou seja, A Semente € a palavra de Deus. O pregador transforma em pergunta © tema da peca: “Se a palavra de Deus ¢ tao eficaz ¢ t40 po derosa, como vemos t4o pouco fruto da palavra de Deus?”. Se- gue-se 0 inirdito, em que expde o plano que pretende executar na discussao do tema. O trecho que se vai ler (correspondente a0 terceiro tépico em que o sermio esté dividido), abrange o final do intréito (que termina em “Provo") e principio do desenvol- vimento (ou argumentagao), em que o pregador comenta os vé rios aspectos da propositura inicial e fundamenta suas opinides com os textos evangélicos: Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de um de trés princfpios: ou da parte do prega- dor, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermao hi de haver trés con- cursos: hi de concorrer o pregador com a doutrina, per- suadindo; h& de concorrer o ouvinte com o entendimento, pereebendo; hé de concorrer Deus com a graca, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo sio necessdrias’trés coisas; olhas, espelho ¢ luz. Se tem espelho ¢ é cego nio se pode ver por falta de olhos; se tem espetho e olhos, ¢ é de noite, nio se pode ver por falta ‘de luz, Logo h4 mister luz, hé mister espelho, e ha mister olhos. Que coisa é a conversio de uma alma sendo entrar um homem dentro em si, ¢ ver-se a si mesmo? Para esta vista sio necessérios olhos, é necessiria luz, ¢ € necessério espelho. O pregador concorre com o espelho que é a doutrina; 148 Deus concorre com a luz, que é a graca; 0 homem concorre com os olhos, que ¢ 0 conhecimento, Ora, suposto que a con- versio das almas por meio da pregagio depende déstes trés concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte; por qual déles havemos de entender que falta?’ Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente por parte de Deus nao falta, nem pode fal- tar, Esta proposicio é de {é, definida no Coneflio Tridentino, € no nosso Evangelho a temos, Do trigo que deitou terra 0 semeador uma parte se logrou, ¢ trés se perderam, E por que se perderam estas trés?_ A primeira perdeu-se, porque a afoga- ram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira porque a pisaram os homens, © a comeram as aves. Isto é 0 que diz Cristo; mas notai o que nao diz. Nio diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordindriamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade © pela intemperanga dos tem- pos, ou porque falta ou sobeja a chuva ou porque falta ou sobeja o Sol. Pois por que io introduz Cristo na pardbola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque 0 sol e a chuva sio influéncias da parte do céu, ¢ deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca € por falta do cfu, sempre é por culpa nossa, Dei- xard de frutificar a sementeira, ou pelo embarago dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influéncias do céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus est4 pronto de sua parte, com o sol para aquen- tar € com a chuva para regar; com o sol para alumiar, ¢ com a chuva para amolecer, se 0s nossos coragdes quiserem: Qui solem suum orii facit super bonos, et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dé o seu sol ¢ a sua chuva aos bons ¢ aos maus; aos maus se quiserem fazer bons, como a negara? Este ponto € tio claro que nio h4 para que nos determos em mais prova, Quid debui facere vineae meae, et non feci? Disse © mesmio Deus por Isaias. Sendo pois certo que a palavra divina nio deixa de frutifi- car por parte de Deus, segue-se, que ou € por falta do prega- dor, ou por falta dos ouvintes. "Por qual seré? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas nao é assim. Se féra por par- 1499 te dos cuvintes, nao fizera a palavra de Deus muito grande fru- to, mas nio fazer neahum fruto, ¢ nenhum cfeito, ni € por parte dos cuvintes, Provo. Os ouvintes on so maus ou io ms: se so bons; faz néles grande fruto a palavra de Deus; se séo maus, ainda que nao faca néles fruto, faz feito. No Evan- gelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul erortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também; mas secou-se: Ed natum aruit. O trigo que caiu na boa terra, nasceu ¢ frutificou com grande multiplicacio: Et natum facit fructum centuplum. De maneira que 0 trigo que caiu na boa terra, nasceu ¢ fru- tificou; o trigo que caiu na mé terra, nfo frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tio fecunda que nos bons faz. muita fruto, € € tio eficaz que nos maus, ainda que nio fica fruto, faz efeito; lancada nos espinhos, nao frutificou, mas nasceu até nos espinhos; langada nas pedras, nao frutificou, mas nasceu até nas pedras, Os piores ouvintes que h4 na Igreja de Deus, sio as pedras ¢ os espinhos.. E por qué? Os espinhos por, agu- dos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos, ¢ ouvintes de vontades endurecidas, so os piores que hé. Os ou- vintes de entendimentos agudos so maus ouvintes, porque vém 86 a ouvir sutilezas, a esperar galanterias, a avaliar pensamentos, € As vézes também a picar a quem os nio pica. Aliud cecidit inter spinas: 0 teigo nio pou os esinhos, antes os esinhos © picaram a @le: ¢ o mesmo sucede c4. Cuidais que 0 sermao vos picou a vés, ¢ nao é assim; vés sois quem picais o sermio. Por isto so maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda sio piores, porque um entendi- mento agudo pode-se ferir pelos mesmos fios, ¢ vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra yontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas sio mais agudas, tanto mais ficilmente se des- pontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda sao piores que as pedras. A vara de Moisés abran- dou as pedras, ¢ nio péde abrandar uma vontade endurecida: Percuntans virga bis silicem, et egressae sunt aguae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendi- mentos agudos, ¢ os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, € tanta {Orga da divina palavra, que apesar da agudeza nasce nos espinhos, € apesar da dureza nasce nas pedras. 150 Pudéramos argitir ao lavrador do Evangelho, de nao cortar os espinhos, e de nao arrancar as pedras antes de semear, mas de inddstria deixou no campo as pedras ¢ os espinhos, para que se visse a férca do que semeava. F tanta a fOrca da divina pa- lavra que sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos, E tanta a férca da divina palavra, que sem arrancar nem abran- dar pedras, nasce nas pedras, Coragées embaracados como es- pinhos, coragées secos ¢ duros como pedras, ouvi a palavra de Deus € tende confianga; tomai exemplo nessas mesmas pedras, € nesses espinhos. Esses espinhos ¢ essas pedras agora resistem ao semeador do céu, mas viré tempo em que esas mesmas pe- dras 0 aclamem, e ésses mesmos espinhos 0 coroem. Quando o semeador do céu deixou o campo, saindo déste mundo, as pe- dras se quebraram para lhe fazerem aclamagGes, ¢ os espinhos se teceram para Ihe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos ¢ das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; nfo triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corasées, nao € por culpa, nem por indisposigéo dos ouvintes. Supostas estas duas demonstragdes; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, nio fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por conseqiiéncia clara que fica por parte do pregador. E assim é, Sabeis, cristdos, por que nio faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, por que nio faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa. * (Sermées, pref. e rev. pelo Pe. Goncalo Alves. Porto, Lello & Irmaos, 1945, Vol. I, pp. &11.) * Qui solem suum orii facit super bonos, et males, et pluit super- justos, et injustos = Que faz nascer o sol sobre os bons e os maus e choyer sébre 0s justos e injustos (Mateus, V, 45); Quid debui facere vineae meae, et non feci? = Que tive de fazer & minha vinha e nao fiz? (saias, V. 4); Percutans virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae = Batendo a vara duas vézes na pedra, arrebentaram abundantes aguas (Wiimeros, XX, 11); Indu- ratum est cor Pharaonis = Endureceu o coragéo de Faraé (fxado, ‘VIL, 13). iI Observese, primeiro que tudo, um aspecto em que o Padre Anténio Vieira se tornou mestre indiscutivel: o seu estilo. Cla- reza, simplicidade, rigor sintitico e dialético (ou seja: rigor da l6gica do pensamento) constituem algumas de suas carac- terfsticas marcantes. Supondo que o texto do sermio contenha literalmente as palavras proferidas diante do publico, percebe-se que o orador atinge os figis de modo direto e insinuante. Estes, seduzidos pelo travejamento seguro das idéias, tomados de sur- présa pela avalanche dialética, deixam-se docilmente conduzir pelo orador as conclusdes implicitas no seu espfrito. Como se nota, 0 pregador convoca a assisténcia, por meio de interroga- gées, para o intimo do tema pdsto em causa. Ao mesmo tem- po, lanca mao de passagens evangélicas estreitamente vincula- das as idéias que procura expor, ¢ ofercce-as 20 ptiblico com a naturalidade sugerida pelo proceso associative: é a verdade dos textos religiosos que pretende transmitir, mas como est4 cOnscio de que os fiéis reagiriam negativamente 4 sua comuni- cacao desassombrada e fria, o orador explora a analogia exis- tente entre as circunstancias suas coevas e 0 pensamento con- tido na Biblia. Apanhado desprevenido, o ouvinte nao tem como escapar e acaba assimilando a mensagem do pregador. E a missio déste se cumpre plenamente. Para consegui-lo, éle re- corre ainda & sua imaginacdo, ndo somente para estabelecer a correspondéncia assinalada, como para arquitetar as metdéforas em que o pitiblico poderia visualizar melhor o contetido de seu pensamento. Os tépicos seguintes do sermao nos ofertam o transunto da doutrina oratdria do Padre Anténio Vieira. Quanto 20 estilo: “0 estilo ha de ser muito facil e muito natural.” Como se vé, 0 pregador postula exatamente o que pratica no sermao, e vice-

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