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Celso Pinto Carias Teologia para todos Manual de iniciagio teoldgica a partir de seus principais temas y EDITORA VOZES Petrépolis I Bases fundamentais da teologia Neste capitulo apresentaremos dois fundamentos importantissi- mos para a teologia. O primeiro diz respeito 4 concep¢ao de pessoa humana que se pode extrair da tradigio judaico-crista, base funda- mental para contextualizar a fé. Eo que em teologia se chama de an- cropologia teoldégica. O segundo é a construgao elementar de trés conceitos-chave no cristianismo: revelacio, fé e salvagao. Este segun- do diz respeito ao tratado chamado de teologia fundamental. 2.1. O ser humano como relacgao Antes mesmo de falar de Deus, é preciso ter consciéncia de nossa prdpria realidade humana. Cada vida humana é um emaranhado com- plexo de relagoes. E se nao possuirmos certo equilibrio fica diffeil rea- zar uma experiéncia de fé em Deus que nos realize dentro de nossa humanidade. Mesmo sabendo que Deus nunca nos abandona, faz-se necessdrio possibilitar sempre mais as condigées para realizar certa eproximagio experiencial de Deus. E como diz um velho jargio teo- logico: “a graga sup6e a natureza”. Assim, quanto mais equilibrada or a nossa experiéncia humana, melhor condi¢io se tera para cami- nhar na diregao de Deus, O leitor ea leitora podem achar estranho que para falar de Deus rimeiro se fale do ser humano. Mas, como Deus se revela? Como Ele toma a iniciativa de mostrar ao ser humano que nele esté 0 sentido absoluto da vida? Deus, ao criar, nao cria outros deuses, mesmo ten- do criado o ser humano (homem e mulher) a sua imagem e semelhan- ¢a. Existe uma diferenga entre o humano e Deus. E, quando existe di- ferenga, é preciso estabelecer um acordo de comunicagio, € preciso escolher mediagdes. Mediagio é aquilo que liga uma realidade a outra. Portanto, para chegar a Deus precisamos de mediag6es. Ora, mesmo tendo clareza de que Jesus Cristo se tornoua grande mediagio salvifi- ca, na realidade da histria humana a mediagao para encontrar Deus é © proprio ser humano, pois justamente ele é imagem e semelhanga: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeiao seu irmio, é um menti- roso” (1Jo 4,20). Mas, quem € 0 ser humano? Diferentemente do conjunto de todo reino animal, o ser humano €0 tinico ser capaz de modificar a trajetéria determinada pela nature- za. E.0 énico animal que tem consciéncia de si, e, por isso, é um ser caracterizado pela reflexao no interior do seu meio social. A pergunta sobre as coisas e sobre sua propria realidade faz do ser humano um ser em continuo aprendizado. A cada novo momento homens e mu- lheres esto construindo sua trajetéria. O poeta jé assinalava: “Mas que coisa é o homem. Que hd sobre o nome: uma geografia?” (Carlos Drummond de Andrade). Dentre as tantas perguntas que o ser humano faz uma se destaca: a pergunta que diz respeito a si mesmo — Quem é 0 ser bumano? Podemos afirmar que a respostaa tal pergunta é um pressuposto fundamental para determinar a sua trajetoria. O que significa ser pessoa humana? Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? 6 uma situagao de constante cri- se. A palavra crise, etimologicamente, quer dizer cortar, separar. Entao, constantemente, o ser humano percebe que precisa cortar algumas coi- sas de sua vida e acrescentar outras. Eo ser da diivida (duas vidas). Ea busca pelo o que podemos chamar de sentido da vida. Sentido procura- do a todo 0 momento. Nao hé ser humano que nao tenha um, qualquer um, pois a recusa de um sentido é 0 suicidio direto ou indireto. Na procura de um sentido para a vida o ser humano esbarra consi- go mesmo ¢, principalmente, com os outros. Necessariamente, para encontrar respostas € preciso ter consciéncia de que a identidade hu- mana é configurada pelo conjunto de relacionamentos que o ser hu- 24 mano trava desde a infancia. A identidade humana s6 existird se exis- tir, ao mesmo tempo, outros humanos a oferecer algo de siaos outros (mie, pai, irmio, parente, amigo, enfim, sociedade). E interessante observar as famosas lendas onde o ser humano é identificado com ou- tros animais (Tarzan, 0 Menino Lobo, etc.). Nelas a identidade é de- terminada pelos animais que tiveram o papel de socializar tais perso- nagens. Por isso, podemos afirmar que o ser humano 6, intrinseca- mente, um ser de relag3o. Entio, caro(a) leitor(a), se quisermos co- nhecer e encontrar Deus, temos que aprender a nos relacionar como seres humanos. Temos que criar possibilidades de se encontrar com 0s nossos parceiros de humanidade. 2.2. O ser humano como ser do encontro Nao hi, na estrutura humana, como j4 foi salientado, qualquer possibilidade de existéncia abstrata. E isso € necessario para encon- trar Deus. EF irreal pensar 0 ser humano fora do contexto social. Oser humano é sempre um ser que coexiste. Isolado ele nao se humaniza. A minha humanidade implica a humanidade do outro, Nio existe possibilidade de liberdade plena no reino humano, pois 0 outro é sempre um espelho para mim. Nele eu me reconhego e sou reconhe- cido. A natureza humana, portanto, é solidaria e nao solitaria, O ser humano é, consequentemente, o ser do encontro, E bom lembrar que individualidade € um dado fundamental na existéncia humana, pois é cada um que faz 0 processo de socializacio, A existéncia humana é determinada pelo hist6rico-social e também pelo pessoal. Mas, o individualismo é um cdncer que mata 0 conjunto da existéncia humana, pois os seres humanos precisam uns dos ou- tros e, juntos, precisam de harmonia com © conjunto da natureza. O individualismo leva, por exemplo, & apropriacio da natureza. Apro- priando-se da natureza, indevidamente, 0 ser humano reduz as possi bilidades de vida, de vida em todos os sentidos. Por isso, € fundamen- tal ao ser humano se abrir para 0 encontro consigo, com outros, com anatureza, e, consequentemente, com Deus, £ preciso permitir o en- 25 contro para se humanizar. E preciso olhar, escutar e falar humana- mente. Criar sensibilidade pelo conjunto da existéncia com todas as implicagdes que isto acarreta. E, assim, abrir espago para Deus. Porém, o ser humano é um ser finito com aspiragées ilimitadas para a sua realizacao. £, um ser finito que nao se conforma com a sua finitude (a morte). Entao, no seu processo de busca ele nem sempre consegue 0 equilibrio. Na procura da imortalidade muitas vezes acontece o esquecimento da solidariedade inerente 4 condigio huma- na e af a desumanizacio acontece. E a fonte da desumanizagio no cristianismo é chamada de pecado. Mas, durante toda a existéncia humana, vem se realizando um gran- de esforgo de tematizar aquilo que é o melhor para a vida. E 0 que os gregos, por exemplo, chamaram de filosofia (amor pela sabedoria). Ea procura da melhor interpretacio do sentido da vida. E, neste caminho, as respostas se multiplicaram. Forjando a cultura, isto 6, 0 conjunto dos sentidos e valores de um determinado povo, os seres humanos fo- ram detalhando sua maneira de ver o mundo, de tentar entendé-lo, de explicar as diversas realidades (0 mal, 0 sofrimento, a dor, por exem- plo). Foram detalhando maneiras diferentes de descrever os sentidos, © que determinou ideologias diferentes. Ideologia pode ser explicada, entre outras coisas, como um modo préprio de interpretar e conduzir a realidade na qual um grupo humano se encontra e de orientar a sua agio a partir dessa explicagao. E assim, ao longo de sua histéria, no pas- sado e no presente, e também no futuro, o ser humano vai continuar buscando a justificativa ultima de sua existéncia. Portanto, como se pode perceber, a relacionalidade carrega tam- bém um alto grau de complexidade, sendo necessério um profundo discernimento sobre a propria existéncia. Sem este grau de responsabi- lidade a vida humana corre o risco de uma concorréncia destruidora. justamente af que se inscreve a origem das religides. As religiGes se constitufram como 0 espaco sagrado no qual o sentido da vida é cele- brado por um determinado grupo humano, Porém, como tudo na vida humana, as religides correm o risco de estar a servigo da desumaniza- cio, pois na Ansia da procura a vida humana esbarra nas dificuldades 26 que todo e qualquer ser humano encontra para achar uma resposta para o sentido da vida. Uma resposta que seja capa. de manter 0 equilibrio e a harmonia com o conjunto da natureza. E aqui que a reflex sobre 0 ser humano, a luz do projeto de Jesus Cristo, inscreve o seu papel: ten- tar orientar os(as) cristaos (4s) a viver humanamente neste mundo em direcao a plenitude da vida, fazendo o caminho como um ser tinico. 2.3. O ser humano é uno Vimos que o ser humano é relagio, isto 6, necesita sempre do ou- tro para construir sua identidade. Vimos também que esta relagao se realiza no encontro. Somente na abertura a si, ao outro, a natureza, ¢, consequentemente, a Deus, é que a pessoa humana cria condigées para constituir-se como imagem e semelhanga de Deus. E é olhando, escutando e falando humanamente que isso pode acontecer. Mas, pos- so olhar, escutar ¢ falar querendo que 0 outro se transforme na minha imagem e semelhanga. Eo pecado que invade o nosso ser e nos desu- maniza. Pecar é caminhar para desumanizacio. E. bom frisar que, fun- damentalmente, o pecado nao deve tomar uma conotagao exclusiva- mente moral, e sim como umaatitude que vai em diregao contraria do projeto de Deus. Projeto que se tornou mais evidente para nés em Je- sus Cristo, como ser visto em outro capitulo. Quando somos capazes de viver a nossa humanidade de acordo com 0 projeto de Deus criamos maiores condigées para superar 0 pe- cado em nossas vidas. Contudo, nem sempre as condigées historicas de formagao da cultura humana nos capacita a ir no caminho do pro- jeto de Deus. Muitas vezes até nos iludimos com determinadas com- preens6es do ser humano que nao vio em diregio daquilo que nos apresenta a Sagrada Escritura. E uma ilusio bastante forte em nosso meio, inserido na histéria do Ocidente a centenas de anos, é 0 dualis- mo platénico entre corpo e alma. Por isso, faz-se necessario sempre retornar ao modelo biblico de pessoa humana. Deus, ao criar, fez homem e mulher a sua imagem e semelhanga (Gn 1,26s), com uma tinica vida que caminha para a plenificagio através do 27 encontro definitivo que se dé na morte. No Antigo Testamento a unici- dade humana esta bastante evidente, pois para o povo judeu o ser huma- no € unico. No entanto, 0 advento de Jesus Cristo, com a respectiva in- culturagao (introduzir um valor na raiz de uma cultura) de sua mensa- gem no mundo grego, obrigou a comunidade cristi do inicio a falar do advento pascal com conceitos da cultura predominante na época (grega, também chamada de helénica). Ora, por influéncia de grandes pensado- res, sobretudo um, chamado Platao, esta cultura acabou por definir o ser humano como um composto de duas partes: corpo e alma. Sendo que a alma seria superior ao corpo, é o dualismo platénico. A esta altura 0(a) leitor(a) pode perguntar: mas qual o problema na afirmagio do ser humano como corpo ¢ alma? Falar de corpo e alma como dimens6es de uma tinica vida dada por Deus que continu- ard na eternidade nao € problema, Foi isso que os primeiros cristaos fizeram, sobretudo Paulo. O problema é quando se cai na hierarqui- zagao da alma sobre 0 corpo, levando a considerar 0 corpo como 0 principio de todo mal. Isto levou, historicamente, a constituicao de religiosidades e praticas religiosas que nao estio de acordo com a vi- sao biblica, chegando, inclusive, a autoflagelagao. Levou 4 compreensio, por exemplo, da sexualidade, j4 que esta tem uma forte dimensao cor- poral, como mi. Levou a uma forte separacio entre o que é material e © que é espiritual, consequentemente, entre fé e vida, acdo e oragio, etc., criando uma facil justificagdo do pecado, ja que este, na perspec- tiva dualista, s6 se refere ao corpo, ¢ nao ao ser humano por inteiro. Hoje, no cristianismo, o trabalho eclesial ea experiéncia religiosa ainda recebem a influéncia de tal concep¢ao (0 dualismo), mesmo que a tradigao crista nunca tenha cafdo em um dualismo radical. Por isso, é necessrio, em nossos dias, retomar uma es piritualidade que mantenha a unidade da vida. Somente mantendo uma visio integral do ser humano, onde a dimensio corporal est4 unida i dimensao espi- ritual, é que seremos capazes de encontrar o caminho de humaniza- cdo na diregao do encontro definitivo com Deus, aquele do qual so- mos imagem e semelhanga. Mas, nao seria esta uma visio muito oti- mista? Nao estariamos apontando para um ser humano ideal que nao 28 existiria na realidade? Por isso, precisamos ainda refletir sobre o pro- blema do sofrimento. 2.4. O problema do mal e do sofrimento Onde se encontra o ser humano criado 4 imagem e semelhanga de Deus? Apés refletir sobre a valorizagao do ser humano na obra da cria- Gao, pode parecer que depositamos um otimismo exagerado na pessoa humana. Pode parecer esquecimento da complexidade e ambiguidade do mundo, onde a dor, o sofrimento, a injustiga, o mal eo pecado pos- suem grande influéncia. Nao esquecemos. A questo é: como devemos encarar os limites humanos no contexto de uma criagao boa de Deus? A angistia diante do sofrimento e da realidade do mal no mundo, sobretudo quando nao se encontra alguma justificativa para explicar © sofrimento de alguém (ex.: “esta pagando o mal que fez”), tem acompanhado o ser humano, podemos afirmar sem medo de errar, desde tempos mais distantes. Na Biblia 0 livro do Génesis possui 11 capftulos sobre isto. Temos também na Sagrada Escritura o livro de Jé. Em toda histéria da Igreja encontraremos alguém preocupado com esta questao. Santo Agostinho, por exemplo, que formulou a doutrina do pecado original tendo esta preocupagio de fundo. No entanto, no cristianismo, a grande revelagao sobre como de- vemos encarar a dor, o sofrimento e o mal, esta na cruz de Jesus Cris- to. Porém, nao é a hora ainda de abordar este caminho. Queremos apenas indicar, por enquanto, que na prépria constituigio humana existe os elementos para enfrentar tal desafio. O ser humano é limitado, mesmo tendo aspiracées ilimitadas. Nés nao nos conformamos em apenas sobreviver. Queremos sempre mais. Nunca estamos satisfeitos. Mas, é bom lembrar que nao somos deuses. Imagem e semelhanga nao é igualdade. A busca da igualdade com Deus é 0 pecado dos pecados, como narra o Génesis: querer do- minar, comendo o fruto proibido da arvore do conhecimento do bem e do mal, foi o pecado que marcou e continua marcando toda huma- 29 nidade. E 0 pecado nao deixa perceber que a questao fundamental nao €0 sofrimento, e sim quais as condigdes humanas para enfrenté-lo. Com os olhos fechados pelo pecado, introduzimos no mundo o mal. Introduzimos o mal na Ansia de, utilizando 0 poder da inteligén- cia, querer ocupar o lugar de Deus. Assim, criamos uma rede de dis- tribuigéo do mal, uma concorréncia na procura de estarmos acima de tudo e de todos. E 0 ser humano, e nio Deus, 0 autor do mal. O mal nao é sofrer. O mal nao é ver uma crianga sofrendo. O mal é nao ser- mos capazes de nos ajudar diante da dor e do sofrimento. Nao sermos capazes de reconhecer que o caminho humano é a busca constante de superacao de si mesmo, pois isto nos capacita para o encontro de- finitivo com Deus. Irmios e irmas, ninguém tem uma resposta definitiva em face da dor e do sofrimento. Porém, podemos ter certeza de uma coisa: Deus nio € um carrasco, ou sadico que nos quer ver sofrer. No entanto, se somos a sua imagem e semelhanga, certamente deve existir algo no sofrimento que esteja proximo da propria realidade de Deus. E » pela criagao livre de Deus, somos convidados(as) a reconhecer, em nés mesmos, a capacidade de ir ao seu encontro, mesmo no meio da dor. Nao fagamos da nao explicagao de tal realidade humana um pretexto para causar sofrimento aos outros introduzindo o mal para aliviar o meu sofrimento, nao reconhecendo que esta é uma escollia de destrui- ¢do de sie do mundo criado. Assim, terminamos a reflexio sobre o ser humano e Deus. Certa- mente falta muita coisa. Contudo, a nossa intengao é dar apenas algu- mas pistas, para assim podermos mergulhar melhor naquilo que Deus nos revela através da fé e do caminho da salvacao. 2.5. Revelacao de Deus na hist6ria humana Tendo compreendido um pouco quem é o ser humano criado por Deus, passaremos a refletir sobre como este mesmo Deus se mostra na obra da criagao ao homem eA mulher criados A sua imagem e seme- 30 Ihanca. E preciso verificar como se dé a iniciativa divina de nao aban- donar a humanidade em sua fragilidade. Nao é uma tarefa facil, pois Os conceitos, os termos, as palavras que serviram de base para a for- mulagio da teologia fundamental foram estruturadas em uma lingua- gem muito distante de nosso ambiente cultural atual. Queremos langar um pequeno facho de luz para a compreensio do processo no qual o ser humano percebe a manifestagio de Deus em sua histéria. Assumiremos aqui 0 caminho do tedlogo holandés E. Schillebeeckx, em sua obra Histria humana, revelagao de Deus.O tedlogo faz uma proposta metodolégica que muito nos ajuda na com- preensao do conceito revelagao diante do paradigma cultural atual. Ele constata a necessidade de inversao do velho adagio “Fora da Igre- ja nao ha salvacao” para “Fora do mundo nio ha salvagao”, a fim de proporcionar uma reflexao mais coerente com o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, com a realidade da histéria humana moderna. Va- mos colocar algumas pistas para tentar entender a seguinte questio: 0 que é revelagio de Deus? E para nao ficar com uma compreensio mé- gica da revelagio de Deus é preciso esclarecer algumas coisas. Estamos acostumados a pensar, por causa de uma leitura funda- mentalista dos textos biblicos, isto é, ao “pé da letra”, que a revela- Gao de Deus acontece de forma direta, sem mediagao. Deus escolhe- ria uma pessoa ou povo para quem comunicaria, diretamente, como se utilizasse um “telefone divino”, a sua vontade. Na Biblia, por exem- plo, Deus teria ditado no ouvido dos redatores o que deveria ser escri- to, sem nenhuma intervengio da cultura humana. Ora, Deus nio criou bonecos para brincar, criou seres humanos com liberdade, com capaci- dade de decidir, como jé fizemos mengio. O fato de ser 4 sua imagem e semelhanga nao significa que podemos prescindir de nossa estrutura humana para compreender o criador e sua vontade para nés. E preciso levar em consideragdo que quando nos referimos a Deus usamos linguagem humana ¢ nao divina. Alguém conhece 0 idio- ma de Deus? Teria Deus privilegiado uma cultura para expressar sua vontade? Todas as nossas imagens de Deus sao imperfeitas, so apro- 31 ximagoes da realidade de Deus e nao Deus integralmente. Quando assumimos, por exemplo, que Deus é Pai, como 0 proprio Cristo nos mostrou, deve-se ter em mente que Ele nio é pai como nés somos pai. Até mesmo uma das melhores definig6es de Deus, que encontra- mos em IJo 4,16 (Deus € amor), nao esgota tudo o que seja Deus, pois © amor de Deus nao é como 0 nosso amor. Embora todas essas ex- press6es contenham uma verdade sobre Deus, essas expressdes nao podem ser confundidas com Deus em si mesmo, pois 0 nosso saber é estruturado pela capacidade humana de organizar o pensamento e nao pelo modo divino. Vamos dar um exemplo para entender melhor 0 que acabamos de afirmar. Quando nos referimos a Luiz Alves de Lima e Silva (o Du- que de Caxias, heréi brasileiro), referimo-nos a alguém real, mas que foi apresentado na histéria com conceitos ¢ informagées disponiveis aos narradores, Ora, nem sempre os mesmos conseguiram ser fiéis na apresentagio daquele Luiz que viveu no Brasil no século XIX. Hoje sabemos que durante a guerra do Paraguai 0 famoso “pacificador” foi responsavel por verdadeiras chacinas. Assim, em torno da imagem de um “heréi” existem fatos reais e fatos projetados de acordo com os interesses de quem quer passar a mensagem, Se os interesses forem humanizantes bem poderd ser construido, mas podem carregar uma ambiguidade que gere atitudes desumanas. O que foi dito acima serve para percebermos a dificuldade de ex- pressar exatamente aquilo que seja Deus ¢ sua vontade, pois nao dei- xamos de ser humanos quando tentamos compreender a direcdo que Deus tem para nés. Tudo 0 que somos, e como somos, entra na com- preensao de Deus. Entio, para dizer quem é Deus e como Ele se reve- la é preciso assumir a histéria humana, & preciso valorizar o mundo, e nao fugir do mundo. E no mundo, na natureza, em todo cosmo, que encontramos os vestigios do criador. Assim, 0 que identificamos como revelacio de Deus é percebido no interior do conjunto de nossas experiéncias mais profundas como ser humano, que constata o caminho que o criador “pensou” para a 32 ciagio. Essas experiéncias so narradas pela linguagem religiosae, no nosso caso, pela tradigao crista que se deu, por exceléncia, em Cristo Jesus. Contudo, é preciso afirmar que essas mesmas experiéncias s6 s40 possfveis porque Deus mesmo toma a iniciativa de se mostrar, porque Ele quer que nés compreendamos qual é 0 caminho da salva- So. Porém, nao somos deuses, por isso, como alguém que caminha com os olhos fechados, precisamos tomar cuidado para ndo tropegar e acabar por identificar Deus onde Ele nao esta. Esta é a esséncia do que se chama, biblicamente, de idolatria: colocar algo ou alguém que nao seja Deus em seu lugar. E isto pode acontecer mesmo no interior da linguagem religiosa. Pessoas podem estar pregando Deus, mas no fundo estAo apontando para uma experiéncia idoldtrica, como con- fundir Deus com 0 ter, o poder ou 0 sucesso. Esta compreensao basi- ca de revelagao é fundamental para a nossa resposta a essa mesma re- velacao: a fé. E condigao para experimentarmos com profundidade o desejo salvifico que Deus tem para todo ser humano. 2.6. Fé crista: resposta humana 4 iniciativa amorosa de Deus Lembramos que tomamos por base 0 ad4gio “Fora do mundo nao hé salvagio”. Deus se revela no conjunto da realidade humana. E no meio de nossa histéria que devemos procurar os sinais de Deus e sua vontade. Assim sendo, consequentemente, existe no “corag4o” humano e em sua histéria uma centelha divina que o desperta para o caminho da salvagao. Deus toma a iniciativa e o ser humano respon- de. A resposta humana iniciativa de Deus é 0 que chamamos de fé. O que é fé? Uma resposta rapida afirmaria que é acreditar na exis- téncia de Deus e em sua criacao. Contudo, nao existe fé em estado puro, isto é, independente de nossa existéncia humana. Para acreditar em alguém ou em alguma coisa é necessério ter certo grau de plausibi- lidade (a palavra plausfvel é dificil, mas é a melhor. Quer dizer: algo que pode ser aceito com algum fundamento). A fé nao é um “tiro no escuro” ou um “se jogar num abismo sem saber o que tem no fundo”. Evidentemente havera sempre uma dimensio do mistério divino que 33 nao conseguiremos capturar, mas isso nao quer dizer que nao possa- mos afirmar nada sobre Deus. Nossa relagdo coma realidade divina é como a relagao de uma pessoa que caminha com os olhos vendados no meio de uma floresta. Sabemos, pela fé, que Deus existe, porém nao temos condigées de descrever a totalidade do seu ser. Sea fé nao pode ser vivida sem a realidade da histéria humana, de- vemos sempre nos perguntar que tipo de fé se tem. A resposta a inici- ativa de Deus se manifesta na experiéncia humana de varias maneiras em toda a sua criagao. No entanto, a nossa experiéncia de fé possui uma caracteristica especial: a manifestagio que Deus tem em Jesus Cristo, O Deus Trino (Pai, Filho e Espirito Santo) se revela para nés no Filho feito homem, Uma pessoa humana com tempo e histéria de- terminados. Uma referéncia objetiva. Ea agio do Espirito Santo nao elimina a objetividade da revelagio de Deus no Filho. A nossa fé, por- tanto, é fé crista. Entao, para afirmarmos que temos fé, e fé crista, qual o contetido minimo que deverd fazer parte de tal experiéncia? Levando em consideragio essas répidas observagées, devemos afir- mar que a {6 crista € uma resposta humana que compromete a vida toda de quem responde, individual e coletivamente, a um caminho bem de- terminado: o caminho de Jesus Cristo. A fé € uma resposta existencial (envolve a vida toda) a um projeto de vida, E emboraa fé crista carregue consigo, necessariamente, um envolvimento comunitario nos ritos que celebram a meméria viva do mistério do Deus revelado em Jesus Cristo, ela nao pode ser confundida como adesio a uma espécie de associagio, A £6 crista nao é simplesmente a integracdo a uma corporagao, nao é como ser membro de uma torcida de futebol. Eu nao posso ter fé independen- te daquilo que sou. E interessante observar na historia inicial da Igreja que quando alguém se convertia ao cristianismo e tinha uma profissio considerada contraria aos principios do mesmo (ex.: gladiador) ou aban- donava a profissio ou nao seria cristio. Certamente que a fé possui um crescimento, ¢ neste crescimento a experiéncia religiosa é um instrumento necessirio, Ha e sempre ha- vera um processo de iniciagio a fé que supoe uma cultura religiosa. Contudo, nao podemos esquecer que a nossa fé é f€ crista. Assim, 34 mesmo vyalorizando o simbolismo religioso, no podemos perder de vista que 0 objetivo da fé crista é proporcionar ao convertido uma ex- periéncia de vida que dé sentido ¢ finalidade a vida como um todo, ocasionando uma transformagio pessoal e coletiva. Uma transforma- Go que testemunhe o Deus da Vida revelado no caminho concreto de Jesus Cristo. Torna-se, portanto, fundamental conhecer o caminho de Jesus, como veremos no proximo capitulo, para que se possa expe- rimentar 0 que chamamos de salvacdo. 2.7, Salvacio: dom gratuito de Deus Vimos que o ser humano faz parte da criagio divina e, dentro dela, € 0 tinico capaz de perceber, conscientemente, a constante iniciativa de Deus para revelar 0 seu plano de amor aquele que é sua imagem e semelhanga. E a resposta humana A autorrevelagao de Deus é a fé. Fé que é uma resposta existencial (envolve a vida toda) a um projeto de vida. Assim sendo, a consequéncia da fé 6a salvagao. E, muitas vezes, a percepgao da constante vontade salvifica de Deus € um estimulo a {é, Assim podemos constatar que é dificil separar revelacao, fé e sal- vagio. Sao trés realidades de um tinico processo salvifico, Portanto, pelo que j4 foi desenvolvido até aqui, pode-se concluir que salvagao nao pode ser entendida como um prémio que se recebe pelo dever cumprido. A salyacio comega desde o momento do nasci- mento (titero materno). Quando nascemos iniciamos uma vida que nao tera fim. Certamente haver4 um momento de plenitude (vida eterna, céu, paraiso — questdes que abordaremos em outro capitulo) que se da na passagem que chamamos morte. Salvacio € experiéncia de salvagdo, isto é, porque Deus me ama ao oferecer a vida, o dom mais precioso dado por Ele, eu comeco a viver consciente desta realidade. Nao fico esperando por uma recompensa que vird mais tarde coma morte. Passo a tentar viver, desde ja, apesar do pecado, como alguém que caminha para Deus. O perigo de uma teologia da recompensa é se fechar na autojustificagao, isto é, pensar que posso comprar a salvagio com as minhas atitudes ou com o mero 35 cumprimento da lei. Passo a pensar que tenho direito de me salvar in- dependente da graca de Deus. Quando transformo Deus em um co- merciante de salvacdo posso, consequentemente, fazer das pessoas me- ros trampolins para comprar o céu. Quando experimentamos a salvagio como um dom gratuito de Deus Se passa a ver os outros como parceiros no caminho da salvagao. Estamos todos debaixo, solidariamente, da mesma vontade divina de salvar. Deus 6 aquele que vai as tiltimas consequéncias para nos oferecer a felicidade de viver eternamente com Fle, Se precisar, Ele deixa noventa e nove e vai ao encontro daquele que se perdeu: “Assim também nao é da vontade de vosso Pai, que esta nos céus, que um destes pequeninos se perca” (Mt 18,14). Deste modo, o cumprimento de determinadas leis é consequén- cia de uma vida que jé procura viver como aquele e aquela que esto sub- metidos(as) a um sentido maior: viver 0 amor misericordioso de Deus desde jé. O que salva é a fé neste amor, mas que se concretiza em amor para outros parceiros em humanidade. Assim sendo, nao ha oposigao en- tre f€ ¢ obra: uma confirma a outra. Ora, por que podemos afirmar tal definigao de salvacio? A res- Posta esti no caminho revelador feito por Jesus Cristo. Compreen- dendo como se processa a revelagio de Deus, sabendo que a fé é uma resposta existencial, e vivendo, desde ja, na fé, a salvacio oferecida gratuitamente por Deus, em quem podemos ter um roteiro mais pro- fundo do caminho a seguir na trajetéria de nossa vida? Esta é a per- gunta que se buscaré responder no préximo capitulo. Sugestoes bibliograficas Para aprofundar na diregao da antropologia teoldgica recomendamos o livro de Alfonso Garcfa RUBIO: Elementos de antropologia teo- légica (Petrdpolis: Vozes, 2004). Quanto 4 teologia fundamental sugerimos o livro de E. SCHIL- LEBEECKX: [istéria humana, revelagéo de Deus (Sa0 Paulo: Pau- lus, 1994). 36

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