You are on page 1of 28
15 FAERIE. 5 eu nn mate HA “FEVoADA”: NEGOCIACAO E VIOLENCIA NAS PRATICAS POLICIAIS DE MEDIAGAO DE CONFLITOS' Paula Pocion’® Resumo Este artigo tem como objetivo principal analisar as representacies s0- ciais elaboradas por policiais sobre o papel desenvolvido pela policia na sociedade brasileira contempardnea, por intermédio, principalmente, das pniticas de mediagao de confltos realizadas no exerccio profssional coti- diano do policial, particularmente no atendimento @ chamada “fijoada”. A anétise apresentada baseou-se em pesquisa bibliogrifica ede campo. A pesqui a bibliognfica consistin no escame da literatura das ciémciassociais, nacional e internacional, sobre papel, as fngies¢0 ugar da atividade profissional polical em diferentes contestos nacionais,privilegiando as prticas policiais entidianas. A pesquisa de campo foi realizada junto a policia civile& policia militar do estada do Rin de Janciro3 A pesquisa realigada permite infrir que, apesar da democra- 1 Orgnalent preparado para apresenlato no 120 Serindilrtrnacionaldo hsv Basler de Circis Crminasretzado Séo Paul, SP 06 29d agosto #01 de sete do 7008. Nesta versa, Inodszimoseagses,ampkando oescopo ca discussie, 2, Doutora em Sociologia USP), Pofessora da Escola de Serco Socal da Universiade Federal do Rio de Janes {Tata's pesquise retzadasolong dos tims dz anos, especielent para minhadisserarso ‘ mesredo (ca, 195) e para mina exe de doutorado (Poncon, 200), Aalment, eta Sendo eservelvida no mbto da Escola de Saigo Social da UFR, sb a minha cootenagao a pesausa Um lar sotre as potcas de seguranca pica através da armagdoprfssiona depois no Ro Jara como spa da FAPERI PoeAS SOCKS SEOLREIGAMIRICA 157 tigagito do Brasil no bowve mudangas substanciais no funcionamento da policia ‘brasileira, persistind um desempenbo inefcienteeinfica, consubstanciado em priticaseprocedimentosinscritos em um padria de atuagao predominantemente wialento ¢ arbtririo para a conducio da ordem ¢ seguranga pitblicas no pats. Palavras-chave: Policia, mediagaa de conflites; violencia; pobres. Abstract ‘This article has as main objective to analyze the social representations elaborated by policemen |/wemen about the rale developed bythe palin the contemporary Brian society, through by the practices of mediation of conflicts realied in the policeman's] woman's daily professional exercise, particularly to attend the cated “jada”. The presented anabsis included bibliographical research and field.work, The bibliographical research consisted in the exam of the literature of the social seences, national and international, about the role, the functions and the place of the professional policeman/woman activity in different national contexts, privileging the daily policemen| women practices. The feld research was carried ‘out in the civil police and the military police of the state of Rio de Janeiro The accomplished research allows ta iner that, in despite ofthe democratization. of Brag, there were not substantial changes in the operation of the Brazilian poliee, persisting an inefficient and an ineffective performance, consolidated in practices and procedures inscribed in a predominantly violent and arbitrary pattern of performance to th ander maintenance and pubic safety inthe country Word-key: Police, mediation of conflicts; violence; poor people. 158, PANERA. 451 Re ne te Introdugado No Brasil, a partir da deflagracao do processo de demoeratizagao no pais, nos anos 80, podese constatar uma erescente tematizagio da ques tao da cidadania, dos direitos humanos, da complexa situacZo social na realidade brasileira e, em especial, das diferentes expressdes da violencia, inclusive da violéncia polieial, como algumas das principais questées que cestudan: passam a fazer parte do debate piiblico envolvendo intelectuai tes, politicos, jornalistas, formuladores de politicas na rea de seguranca publica, hem como integrantes da prépria instituiede policial ‘Nao obstante posea se observar, ao longo das duas tiltimas décadas, algumas iniciativas do roforma da estrutura ¢ funcionamento da institu ¢do policial em termos de metodologias praticas de intervene da policia para a realizagéo das tarefas didrias compreendendo a manutengéo da ordem piblica ¢ da seguranca piblicas, constata'se que muitas das veres as mudangas empreendidas limitaram’se, ao nivel da ago, ao provimento de recursos materiais no que diz respeito ao reaparelhamento da policia viaturas, sistema de telefonia, informétiea ete @ humanos, relacionados 20 aumento do efetivo de policiais no quadro de pessoal. Verifica'se que, salvo rarissimas excegdes, nio houve um investimento efetivo na érea de ‘uma politica de recursos humanos, com vistas a modificar os valores, as crengas, 08 preconceitos e 08 esterestipos do policial, sua visio de mundo, isto 6, a sua concepeao acerca da realidade, de si mesmo, da natureza de seu trabalho e de suas atitudes em relagio ao “mundo social’ e a0 proprio ‘mundo policial’, © que incorporasse a magnitude e diversidade de forgas sociais com as miltiplas e diferentes facetas do trabalho policial Em estudo realizado junto aos contros de formacdo ¢ treinamento profissional de policiais civis ¢ militares no estado do Rio de Janeiro foi constatado que o processo de socializagio profissional do policial revelado através das orientagdes, condutas e atitudes relacionadas a formagao pro fissional nas academias de policia expresaa uma determinada concepsio do fazer policial que privilegia, quase exclusivamente, como preocupago principal, moldar 0 policial para um comportamente legalista, numa ver agave 159 ‘do burocratico-militar, com forte énfase no “combate ao crime”; omite-se, em sua preparacdo, a multiplicidade de tarefas que 6 exercida no trabalho diario do policial e que nio se restringe apenas & soluso de problemas costritamente legais ou penais (Poncioni, 2004). Sob esse ponto de vista, a perspectiva adotada na formagdo profissional ‘do leva em conta a importncia do ‘papel social” desempenhado pela policia no cotidiano de seu trabalho, Tal papel se caracteriza fundamentalmente pelo exercicio continuo da mediagio e negociagio (via a conciliagao ou atrat vvés da violéncia, conforme a situacao e segmento da popularao atendido) dos contflites sociais levados pola populagao a policia. Ressalta'se que a dificuldade apontada ndo 6 uma particularidade a policia carioca, ¢ tampoueo da policia brasileira. O exame da literatura internacional sobre formagio e treinamento policial revela que os eurricw los dos cursos de formagio profissional bisica para policiais apresentam doficiéncias quanto ao preparo do policial para o desempenko das extensas atribuigses relacionadas & manutengo da ordem (Drummond, 1976; Kat ppeler: Sluder: Alpert, 1998) Porém, 9 que chama a atengio na formacio profissional do policial brasileiro é a quase total auséncia de estratégias menos discriminatérias ¢ autoritarias para moldar o comportamento policial no desempenho de suas funpdes de manutengdo da ordom o de seguranga pUblicas, Salientarse, ainda, que, a despeito das diversas inovardes legais que buseam assogurar o acosso as diferentes dimensdes do dircito A cidadania, ‘bom como ampliar o acosso a justiga como, por exemplo, os Juizados Espe ciais Civeis ¢ Criminaist, sugerindo um tipo de padre nove para a solugio do conflitos, uma investigardo empirica, mesmo que superficial, revela que apolicia desenvolve no exercicio profissional cotidiano, seja no ambito das 40s Juizados EspeiaisCivis» Crimi foram cidos em 1995 e alerdem a sagas que camreendemos crimes donor peer otesivo, denis pola |i 2099/95. Apes dofunconarari ‘competbrea esectia dos uzados Especia para a mediago dos conits, na grande maioa dos cases, apolca anda éotnico swig blo a qu se pode recarar em qualquer hora do da, om caso de necessidade urgent. Os diversas problenase difcudades da poplaglo,apesar de nda se constue, mutas des vees, om ‘casos pola, fore de se repetrem, S80, ana, incrparados rota pola 180 FAERIE. 485 eu nn mat Delogacias de Policia seja nos atendimentos aos chamados para o mimero 190, praticas de mediacdo de conflites diversos, com cunho criminolégico ou nilo, funcionando como uma “instdncia alternativa de resolugio dos contflitos” (Oliveira, 1984; 2004) Ha que se destacar, ainda, que 6 0 segmento mais pobre da popw lagdo que procura a policia para resolver seus problemas cotidianos, de ordem juridiea ou de ordem social, Para este contingente da populagio, a instituigao policial aparece como “concreta, real e tinica mediadora entre as situagées cotidianas de violéncia e o ordenamento juridico estabelecido! (Pischer, 1985, pp. 20. A constatasao da alta freqiéncia de atendimentos a um conjunto especifica de situagiee - 08 chamados “casos sociais” - pela poliia (civil fou militar), bem como a generalizada desqualificagdo que lhes 6 atri: bbuida pelos policiais (Mota, 1995; Poncioni, 2004), nos colacou em face de duas questées fundamentais para reflexao, De um lado, a procura da delegacia reflete a absoluta caréncia da populagéo para solucionar seus problemas, seja na area das relagdes interpessoais e familiares, ou, em tormos de recursos institucionais, das organizagoes de “bom-ostar social eda justiga, De outro, revela que a policia busca reselver assuntos que vio além de sua competéncia na érea do crime para aqueles eujos problemas nem a legislagio nem quaisquer outras instituigdes da sociedade oferecem respostas satisfatérias Muitos estudos ostrangeiros, sobretudo os de Tingua inglesa e, em feseasso niimero, os brasileiros tém revelado, através de pesquisa teérica e empirica sobre organizacdo policial, que o trabalho policial cotidiano nas sociodades ocidentais contempordneas consiste em intervir em problemas ou dificuldades diversas quo nao so constituem necessariamente em proble ‘mas logais ou penais, incluindo atividades que nio estio obrigatoriamente vinculadas diretamente as fungées policiais tradicionais de controle do crime, mas dizem respeito as numerosas e diversificadas tarefas desem penhadas pela policia associadas manutengdo da ordem e & prestagio de ‘servicos sociais! © exame dos estudos desenvolvidos sobre a problemitica do exereicio Pome socws tSCLRUNGAPURICA 181 152 FREE. 485 Feu nn ate 2. A realidade cotidiana do trabalho policial: 0 trabalho policial “verdadeiro” Aroflexio dosonvolvida na literatura especializada por autores estran geiros, principalmente os anglo-saxios, que examinam as priticas policiais cotidianas, denominadas aqui o trabalho policial “vordadeizo”®, seguem uma linha semolhante de argumentagdo na reflexdo sobre o trabalho da policia, apontando essencialmente para as caracteristicas peculiares que envolvem esta atividade, Esses autores destacam, fundamentalmente, a preponderincia do papel desempenhado pela policia na manutengio da ordem, afirmandoro como parte constitutiva ¢ importante do trabalho policial, mas também colocando em evidéncia as particularidades subjacentes a esta atividade, camo 0 acesso Minico a lei e ao uso logitime da forea. A.concepeao do papel da policia desenvolvida por eles sugere, ainda, uma dimensao simbélica do trabalho policial que autoriza a policia lidar com uma série de eventos sem ter que recorrer & aplicagao da lei ou ao uso da forga fisica, mas com a singular prerrogativa de poder fazé-lo, como recursos de apo concreta para a resolupio dos problemas, Como é aludido em diversos trabalhos, a descoberta empirica das praticas policiais cotidianas provoca uma polémica entre académicos, administradores de policia formuladores de politica sobre 0 papel da policia nas sociedades ocidentais contemporaneas, podendo-se destacar dois argumentos principais que estdo no cerne deste debate. Por wm lado, entende-se que a policia 6 mais bem dofinida se for considerada como ‘uma forga, com a funcdo primaria de prevengio e investigagao do crime, ¢ dofende-se o poder da policia como panacéia para o cumprimento da lei fe problemas da ordem publica: por outro, considerarse que ela é mais bem 5. Aida do trabalho pola "verdadero elaconase ao conjunt das avidedes que consftuem 0 ‘abso poll cotsiano, lund a areas vinculdasdretamante as funges poles rains de contle do crime, mas dz espato ualnants Se nunerosasedveriicacstrlas dvarponhadas pelplciaque escapam ao mb cinnal ean vineulagasamanulena da orden eapresiga0 4 sergos soc, constants desemperhadss pala pol (Porcion, 2004) agar 188 rotratada como servigo, frnccendo respostas para miitiplos problemas sociais através do assisténcia ou servigos & coletividade, como um tipo de servio social®, Porém, como indicam alguns autores, o trabalho policial & muito mais complexo ¢ contraditério do que possa configurar um ou outro argumento isoladamente De acordo com Bittner (1990), papel policial na estélimitado somen to. prestar atengio a atos ilegais. £ muito mais amplo do que isso, Pode envolver outros tipos de stuagées, nlo necessariamente legais, is quais a policia atende habitwalmente nas sociedades democraticas modernas. esas situagies so referem ao que foi dfinido por ele como “algo que iio deveria acontecer e sobre o que seria bom alguém fazer alguma coisa imediatamente!”, Apesar de nao dizerem respeito diretamente Aquele que 6 coneebido como 0 objeto primordial de intervensao policial (crime), elas ‘io podem esperar uma resolugio posterior. Neste sentido, o dieito para usar forga cooreitiva torna distinta a competéncia da policia para fazor algo no “aqui e agora’, com vistas a superar toda e qualquer opasigio imediata mente. E, justamente, o tipo de intervengao possivel para a policia realizar que torna a sua competéncia “especial e sinica’, haja vista que nenhuma outra ocupa¢do possui ao encontrar “problemas” na sua Area de trabalho, © autor afirma que “A competéncia especfica da polis estécompletamente conta om sua capacidade agio decisva, Mas especiicamente, que essa decisdocaracteritica doriva da ‘autordade para dominar a oposigdo dentro do carter ‘media’ de situacéo da ‘ado. 0 policial, © apenas o pals, esta equipad, autorzad © 6 exigido para \idar com toda emergéncia om que possa te de sor usada @forga para enfent-l ‘Alem disso, a eutorizagéo para o uso da forgs& confers ao poiial com a mera ‘condi de que ola 4 soja uiizada om quantdads adequadas, que ndo excedam ‘ominimo necessario, como for determinad por uma apreciago intulivada sitvagao apenas o so da fore etalé regulado com um pouco mais de rigor (Bittner, 1990, 256, gito do autor. 6. Varios ema podem serenconados alteraur espealizada pra desinaro papel desemperhado polapolica no atondmontaincmarasstvagdes som Igagao com oarine scam adobngitact, como ‘amateu social worar[vatahdores sodas aradoes, “peace alfca (pleals da pa) secret sail service [srvig socal secrets enire ous. Vera propést Porcini 2008} 84 618515, i se 8 Para Shearing: Leon (1992), o debate se baseia exclusivamente na analise do que a policia precisa fazor e © que atualmente faz, ¢ deixa do focalizar o que a poliia pode e tem autoridade para fazer (p. 215, grifos 10 originaD. Para cles, os meios disponiveis constituem um horizonte de possibilidades que precisa ser considerado, se o significado de alguma atividade policial esta sendo apreciada. Uma atividade polcial particular pode ser apropriadamente compreendida apenas se for vista dentro de um. contexto de agdo possive. Considerando que © principal papel da policia 6 a manutenpao da ordem, os autores buscam depurar os elementos que distinguem a ago da policia daquoles dos cidade comuns, como também de outras oeupagies responsiveis pela preservagio da ordem. Na sua concepgio, 0 que singulariza a policia com relagio a outros agentes sio os elementos normativos e factuais dos quais ela dispée para a manutengio da ordem pablica Deste modo, os meios que esti disponiveis unicamente para a policia que, por essa razio, ornecem o contesdo substantivo do mandato policial (police licence") e da competéncia potcial (“police capability’) & 0 acesso Ximico & lei e ao uso legitimo da forea, como meios usados para manter a ordem (Shearing: Loon , op. cit, p. 217) No que diz respeito, por exemplo, & aplicaglo da Tei, argumentam «que, do ponto de vista do policial, a aplicagdo da lei envolve essencialmente duas possibilidades de ago: a prisio e a intimagio. Porém, além disso, a Joi 6, om muitos casos, muito mais relovante como meio para lidar com 08 problemas do que para defintlos Como salientam os autores citados, os polciais encaram situagies que sio em grande parte pré-definidas como problemas por um ou mais cidadaos, em que eles sio chamados a intervir e, assim, em face de cada situagao, examinam uma ampla variedade de recursos disponiveis como reios que precisam ser usados para traté-los, Hstes meios existem dentro dle um contesto ~ aplicagio da lei e da forga — que a policia nao compart Jha com nenhum outro agente e que aio, om conseqiiéncia, caracteristicas particulares de sua atribuigio, Deste modo, o contexto acima mencionado agar 185 penetra completamente todos o8 meios A disposigdo do policial e muda inteiramente o sentido e significado dos meios utilizados para a resolueao do problema em questo, Neste sentido, a aplicagao da lei, por exemple, constituirse em mais que um simples recurso, entre outros, que o policial ‘tem A disposigo para a resolugio de problemas’ ela é 0 recurso que, na realidade, 6 singular para a policia Para Shearing! Leon, a aplicacio da lei e 0 uso da forga fisica so recursos que tém duas conseqiéncias' iste se torna definitive da atribuicao a policia, ou seja, ola nao é simplesmente vista como um solucionador de problemas, mas é um solucionador de problemas quo tem um acosso espe cial para a aplicagdo da lei, como meio de lidar com os problemas, Asin, dado o significado especial da aplicagio da lei e do uso da forca fisica como ‘meios para lidar com os problemas, a decisio policial de usar algum outro ‘meio é vista, nao simplesmente como uma decisio para fazer tal coisa ‘mas como decisao de nao aplicar a lei ¢ ndo se utilizar do uso legitimo da {orca fisica, Os autores saliontam que a aplicagao da lei e da forca fisica sao ex racteristicas essenciais do mandato e da competéncia da policia, portanto, da atribuigdo policial no trato com os problemas com que se defrontam os agentes, o que, definitivamente, os diferencia dos outros agentes de controle social na sociedade De acordo com eles, “Tudo que um poll faz azontace no context da autoizagéo o da compoténcia

You might also like