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INTRODUCAO ] ma grande voga de coleta de poe- i a e musica popular varreu a Eu- ropa desde © final do éculo 18, estendendo-se nesse continente ¢ fora dele até nossos dias. Escritores, puetas © miuisicos dedicaram-se ao colecionamento de cancoes da tradigfo oral. Elas ensinavam sobre 0 passado remoto da misica ou a hist6ria de culturas especificas, ao mes- mo tempo em que podiam servir de exemplo inspirador para os artistas do presente. Este texto trata da relagdo enue o idedrio estético € os trabalhos vinograficos de dois coletores de cancdes populares Mario de Andrade ¢ Béla Bartok. Como outros artistas modernos, eles reproduzi- ram © paradoxo do primitivismo: as qualidades presentes em certos gru- pos humanos e suas expressdes culturais sao aquelas cuja auséncia € percebida em outros, cujo modo de vida foi marcado pela civilizagao; ao mesmo tempo, os atributos positivos dos primeiros podem ter validade para os Gltimos e devem ser recuperados. E possivel identificar inclina- g6es primitivistas nas artes, sobretudo na literatura, muito antes da gran- de voga de que se fala aqui.’ Humanistas do Renascimento e do Século das Luzes tinham curiosidade pelos selvagens das Américas e acredita- vam que eles viviam em liberdade, nao conheciam a desigualdade social € possujam uma religiao natural. Mas o pendor primitivista que motivou a coleta de cangdes entre populagdes afastadas dos centros urbanos, na 8 + OS MANDARINS MILAGROSOS propria Europa, combinou-se freqiientemente com a crenga na existén- cia de uma forga interna a cada povo, sua alma ou personalidade, que se manifesta na historia, na lingua, nas instituigGes sociais, nas formas de governo e de expressao artistica. A crenga no espirito dos povos também tem longa histéria, com conseqiiéncias sobre o desenvolvimento de um conceito antropologico moderno de cultura (Stocking Jr. 1982). Associa- so do primitivo sobre o civilizado ¢ do natural sobre 0 da a valorizag artificial, resultou num poderoso impulso de colecionamento de cangdes do povo que atingiu um grupo numeroso de artistas e intelecutais situa- dos em contextos sociais ¢ hist6ricos diversos, espalhados da Argentina a Finlandia, dos Estados Unidos 4 Russia. Mario de Andrade (Sao Paulo, 1893-1945) esta entre os melhores representantes do paradoxo, para os brasileiros. Consagrado como poe- ta ¢ participante ativo de um movimento artistico renovador, ele foi tam- bém um estudioso de miisica popular que lamentava a inexisténcia de “tradicdo brasileira”. A combinagao de militancia em prol das artes moder- nas e da consolidagio de tradigées afeta a avaliagdo de seu legado. Na condigao de membro destacado do movimento modemista que eclodiu nos anos 20, conquistou um lugar na hist6ria da cultura brasileira. No papel de mentor de um projeto de nacionaliza¢ao artistico-cultural que acreditava imprescindivel ¢ valido para tod s artistas, encontra mais resisténcia nos leitores contemporineos. Ele proprio intrigava-se com a dupla (ou aparen- temente dupla) lealdade. Durante a viagem de coleta musical ao Nordeste realizada entre dezembro de 1928 € marco de 1929, registrou em seu diario: Dizem que sou modernista e... paciéncia! O certo é que jamais neguei as tradiges brasileiras, as estudo e procuro continuar a meu modo dentro delay, E incontestivel que Gregorio de Matos, Dirceu, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Biluc ou Vicente de Carvalho sto mestres que dirigem a minha literatura, Eu os imito. O que a gente carece € distinguir tradicao € tradicao Tem tradicdes méveis ¢ tradigdes imaveis. Aquelas so diteis, em importincia enor- me, 4 gente as deve conservar talqualmente sio porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que tém. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a danca populares. As tradig6es inGteis nao evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos sio prejudiciais. Algumus so perfeitamente ridiculas que nem a *carroga” do rei da Inglaterra. Dessas a gente s6 pode aproveitar o espirito, a psicologia € ndo a forma objetiva (Andrade 1976a:254) INTRODUGAO-9 De algum modo, a identidade de modernista era inc6moda no viajante que queria conhecer de perto as tradigdes brasileiras, dizendo para si mesmo que nunca as linha negado. © mesmo paradoxo é oferecido pelo compositor Béla Bartok (Nagyszentmikl6s, 1881 — va York. 1945), conhecido internacional- mente como um dos modernizadores da miisica no século 20 e — em menor proporgéo — como © folclorista desapontado com a vida urbana moderna que se esmerou na elaboragao de um método de anélise da musica popular que parece irremediavelmente datado. De um lado, ha o compositor inovador, autor de uma obra perene; de outro, 0 folclorista absorvido na classificagdo de melodias, detecgio de tipos originarios e outras questées desaparecidas do horizonte dos estudos de mtisica po- pular. © “bizarro taxidermista” (na expressao de Alexis Salatko) que pra- ticava amadoristicamente a entomologia, colecionando ¢ idemificando espécies de insetos, parecia colher e tratar cangdes como quem lida com espécimes do mundo natural. Como Mario de Andrade refletindo sobre a dupla lealdade, o moderno ¢ as tradi¢des, Bartok tentou explicar a seus contemporaneos a légica da “busca do novo no velho", expressdo que usou para caracterizar 0 eixo de seu programa Ele pretendia fundar a mdsica culta magiar a partir de estilos guarda- dos pelo povo, para que vla pudesse estar ao lado das misicas das demais nagdes européias.’ A fundagao forneceria lastro cultural ¢ moral para a in- dependéncia da Ilungria, subordinada ao Império Austriaco desde o século 17 mas que obteve status de monarquia associada em 1867. A asp’ io de ordem nacionalista, poréin, nao basta para explicar por que dedicou quaren- ta anos ao estudo de cangées populares, mesmo que na Hungria nao houves- st possibilidade de renovagdo “neoclassica” - uma forma de busca do novo no velho -, dada a auséncia de tradic¢ao nacional culta. As tentativas de criagao de uma misica nacional estavam aquém do que Bartok esperava delas. Também nao estava satisfeito com o trabalho de coleta de musica popular que vinha sendo feito desde pelo menos 0 inicio do século 19. A produgao artistica nacionalizadora seguia tendéncias consagra- das na Europa ocidental, incluindo a de incorporar elementos “caracte- risticos “dialética do local e do cosmopolita” (AntOnio Candido 1980), os magiares viram-se diante da fartura de dangas e raps6dias htingaras na composi- ¢ao de alemaes, austriacos, franceses ¢ italianos, Nagdes como Hungria, que lhe dava sabor exdético. Num dos momentos tensos da 10 - OS MANDARINS MILAGROSOS Espanha ¢ Turquia eram uma fonte de exotismos, codificados num voca- buldrio mais ou menos estereotipado de csdrdas, ciganos, boleros e alla turca. A Hungria tornou-se mera “fornecedora de matéria-prima” para a Europa ocidental no entender de Zoltan Kodaly (Kecskemét, 1882 — Bu- dapeste, 1967), compositor e colega de pesquisas de Bartok. Os brasileiros podiam orgulhar-se do sucesso de Carlos Gomes na Europa, mas alguns achavam que sua misica repetia a ligao de Verdi num “italianismo de realejo" ¢ que seu Peri era a pitada de exdtico numa Opera italiana, um indio de palco “cheio de bons sentimentos portugue- “Tudo Aidas pra outros tantos Verdis”, resumiu Mario de Andrade.” Também acompanharam o misico Darius Milhaud em seus passeios musi- cais pelo Rio de Janeiro ¢ conheciam Le boeuf sur le toit, de 1919, repleto ica popular brasileira, sobretudo maxixes que faziam sso na cidade, As Américas comegavam a entrar no centro do mercado musical de exotismos depois de freqiientar suas bordas com a moda de lundus e modinhas em Portugal, ¢ uma ou outra raps6dia brasileira com- posta por europeus que nao pertenciam ao primeiro escalao da musica culta, No Ensaio sobre a misica brasileira, de 1928, Mario tentou precaver os artistas da fome de “exotismo divertido” que atacara a Europa, sequiosa de “elementos estranhos pra se libertar de si mesma” (1972b:15). Conside- rava Saudades do Brasil, de Milhaud, misica francesa de compositor judeu “Do Brasil, o que ha nessas pecinhas sao alguns ritmos, algumas melodias tradicionais ou de musica impressa maxixeira. E as saudades” (1933:182) Bartok e Kodaly lembraram quanto era dificil escapar aos padrées “estrangeiros” de composigao, com uma escola oficial na qual nada se sabia da Gnica misica nacional magiar, criada pelo povo. Ou nao se acreditava que ela pudesse dar qualquer contribuigao a grande arte mu- sical. Para culminar, a verdadeira misica magiar munca fora coletada com ses de citagdes de m su critérios cientificos. Alias, queriam tanto uma mdsica moderna quanto o estudo “moderno" da masica popular, realizado com métodos cientificos que corrigiriam os erros cometidos por amadores. De fato, estao entre os fundadores de uma nova disciplina que Bartok chamava folclore musi- cal. O apoio financeiro e institucional para o desenvolvimento das pes- quisas foi solicitado desde cedo a entidades culturais de Budapeste, nem sempre com resposta posiliva imediata. A partir de certa época, a Acade- mia de Ciéncias da Hungria abrigou as investigacdes e colegoes que faziam desde os primeiros anos do século. INTRODUCAO- 11 Os artistas modernos coletores de cangoes partilham idéias e valo- res que ultrapassam as circunstincias particulares apontadas acima e que subjazem a grande voga de que sao continuadores. Os encantos da arte primitiva ¢ da pluralidade de realizagdes dos povos foram percebidos em meio 4 insatisfagao com as doutrinas ¢ realizacdes artisticas dominantes na Europa, legitimadas pelas academias, cuja fungdo era justamente for- necer padroes de corregdo © bom gosto. Tudo o que nao havia sido acorrentado por normas acad@micas dotou-se de um apelo itreprimivel. Gragas a isso, “o antigo, o distante e 6 popular eram todos igualados’, observa Peter Burke, que cunhou a expressio “descoberta do povo” para referir-se ao despertar dos intelectuais para a existéncia de uma outra cultura, guardada pelo povo. A quantidade de palavras novas que apareceram nessa época, lembradas pelo historiador € por outros auto- res, € 6 sintoma da descoberta: cangdo popular, ciéncia do povo, sabe- doria popular (Volkslied, Volkskunde, Folklore). A palavra “povo", que comp6e a nova terminologia, designava ora uma parcela da populacao, nem sempre claramente delimitada, ora um grupo étnico ou comunidade nacional A homogeneizagdo cultural que as academias produziam, institu- indo uma lingua literdria, fez insurgirem-se intelectuais cujas linguas maternas eram consideradas impr6prias 4 literatura ou especificamente a certos géneros poéticos. Eles se engajaram na defesa das possibilidades literdrias do vernaculo ¢, eventualmente, na defesa da autonomia politi- ca de suas nagdes. As “tradigSes populares” € toda a gama de novas idéias associadas desempenharam um papel nos atritos entre artistas & academias (ou instituigées equivalentes, destinadas 4 transmis modelos artisticos) ¢ motivaram formulagGes em prol da renovagao nas artes, Coletores de cangdes como Mario de Andrade ¢ Bartok valeram-se das idéias de “tradigao”. “povo”, “primitivo” e “natural” em suas contesta- gOes da supremacia artistico-cultural dos centros de civilizagao (Paris, Europa, Viena, Ocidente) e do prestigio de suas pontas-de-langa locais, as academias de letras, as de belas-artes € as escolas de misica oficiais. Essas agéncias promoviam, segundo eles, uma arte comprometida com 0 passado ¢ imposta de fora para dentro, inadequada, portanto, 4 época em que viveram ¢ as necessidades culturais particulares de seus povos. Por isso deixaram temporariamente as escolas de musica onde gens de pesquisa. lam ao encontro de uma lecionavam e sairam em 12 - OS MANDARINS MILAGROSOS hipotética, desprezada ou simplesmente desconhecida tradigdo nacio- nal, onde esperavam encontrar elementos para modernizar as artes. Ma- rio de Andrade fez coleta sistematica na viagem ao Nordeste (1928-29), nas incursdes na periferia de $40 Paulo © no interior paulista (1931-37) Antes disso, anotava o que Ihe chamava a atengao nas ruas € 0 que ouvia de amigos e alunos. Ensaiou uma “viagem etnografica” 4 Amaz6nia du- rante a qual fez observagées esparsas sobre a cultura local. Barték per- correu varias regides do antigo territério da monarquia hingara entre 1906 e 1918. Esteve no norte da Argélia em 1913 e na Turquia em 1936, sempre para coletar musica popular. Para entender como os dilemas da modernizagdo com base na tradigdo nao imobilizaram aqueles que os enunciaram, procurei relacio- nar © idedrio artistico renovador ¢ os estudos da cultura popular. O movimento modernista brasileiro costuma ser dividido em duas fases: a primeira, entre 1917 e 1924, foi de atualizagdo das linguagens artisticas, herdica, demolidora, carisméatica, e privilegiou o problema das artes; a segunda, entre 1924 e 1929, foi de construgaéo nacional, consolidagao das conquistas ¢ abertura para os problemas da soviedade, tendendo a politizagao.> Varios estudos sobre Bank afirmam que ele foi do nacio- nalismo conservador ao pluralismo étnico-cultural ¢ a0 socialismo. Tam- bém @ comum separarem-se os diversos campos de atividade em que estiveram envolvidos: magistério, criagao artistica, pesquisa ¢ estudo de musica popular (aos quais se devem acrescentar, sobretudo no caso de Mario de Andrade, jornalismo. critica de arte ¢ literatura, edigio comen- tada de obras musicais). Em lugar de escolher periodos e frentes de atuagdo especificos, tento reconstruir a ideologia que articula as varias atividades em momentos diferentes ¢ que rege tanto a identificagao de problemas no fimbito das artes quanto a perspectiva de estudo da muisi- ca popular A reuniao de Mario de Andrade ¢ Bartok pode causar surpre: quem os identifica, em reflexo automatico, com o “poligrafo e musicélogo brasileiro” ¢ o compositor htingaro moderno. Qualificados por oficios ¢ nacionalidades, surgem, de fato, como personagens unidos apenas pela proximidade das datas de nascimento e coincidéncia do ano de morte. Enuetantu, podem ser reunidus ma qualidade de artistas que coliginam cangoes populares — identificagao que nao pretende diminuir sua contri- buigao etnogrifica ou etnomusicolégica. Qualquer leitor que tenha tido aa INTRODUCAO - 13 um minimo de contato com seus textos sabe que a coleta era o nticleo de projetos de grandes dimens6es que os obrigavam a inteirar-se de matéri- as que desconheciam, como etnografia ¢ antropologia. Embora as epigrafes que anunciam o teor dos capitulos destaquem mais Os parentescos entre os dois, as especificidades ¢ a comparabilidade de suas idéias devem ficar claras ao longo do texto. Por ora, basta assinalar que os dois ofere- cem uma perspectiva privilegiada dos dilemas

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