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Em nome da inocência: Justiça | 3

ficha
catalográfica

4 | Em nome da inocência: Justiça


ORGANIZADORES
Jailson Lima da Silva
Lédio Rosa de Andrade
Sergio Graziano

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Sumário

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Dr Jailson Lima
Jailson Lima da Silva, médico graduado na UFSC em 1983, Especialização em Saúde Pública
Universidade Evangélica do PR em 1985, Especialização em Medicina do Trabalho em 1986 pela
Universidade Federal do PR, Especialização em Reumatologia Hospital de Clínicas do PR 1989,
Prefeito de Rio do Sul SC ano 2002 - 2006, Deputado Estadual SC período legislativo 2006 - 2010
e 2011- 2014. Diretor Administrativo Financeiro da empresa Transmissora Sul Brasileira de Energia
2015 - 2017. Autor do Livro A História me Absolverá. edição 1986.

Prefácio

É muito dolorido para quem conviveu com o Cau organizar este capítulo de resistência de quem não capi-
tulou e foi até às últimas consequências em seu último combate em vida. Através do conjunto de artigos
e reflexões escritos por juristas e jornalistas do Brasil sobre o processo de prisão e suicídio/homicídio
praticado pelo Estado, pretende-se produzir um debate racional sobre nossas responsabilidades como
cidadão e a responsabilidade dos que praticam seus atos em nome do Estado.
Este registro não se presta a canonizar e nem determinar a culpabilidade ou inocência, mas sim refletir
sobre o devido processo legal e o arbítrio que está se instalando em parte do Judiciário, da Polícia Federal
e do Ministério Público Federal deste país.
Ao mesmo tempo cabe ressaltar que a operação draconiana, em todos os sentidos, mobilizou um batalhão
de policiais, assim como a movimentação deles de outros estados para Santa Catarina, para aprisionar
pessoas indefesas, quando bastava uma intimação para que eles comparecessem onde a Delegada da
Polícia Federal Erika Mialik Marena e a Juíza Federal Janaina Cassol Machado assim desejassem.
Sempre é bom lembrar e registrar que esta operação não se deu apenas com a prisão do Reitor, mas tam-
bém com a prisão de mais seis envolvidos nas investigações, que tiveram o mesmo tipo de tratamento. No
entanto por não estarem no topo da hierarquia da UFSC não tiveram o destaque da imprensa nacional com
a relevância que foi dada ao Cau, mas com certeza padecem do mesmo sofrimento e grau de humilhação.
Confesso que fiquei estarrecido quando no jornal da Globo, no horário das 13:15 hs assisti ao noticiário
com a foto estampada do Cancellier, com a chamada de desvios no valor de oitenta milhões de reais. O
mesmo repetiu-se no horário nobre da noite quando vi o jornal da TV Bandeirantes. Tecem o rosário com a
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manchete de desvio de recursos acompanhados por uma fotografia em destaque. Isso repetiu-se em todos
os jornais do país. A imprensa opera cirurgicamente sem anestesia o que, diga-se de passagem, tem sido
o cotidiano da comunicação brasileira. A condenação antes do veredito final.
É neste panorama que observamos o desenvolvimento de uma grave doença que denomino de “HOLOFOTI-
TE”, ou seja, uma Síndrome dos Holofotes, que tem contaminado parte dos membros do aparato de Estado
da esfera federal e que tem se alastrado como uma verdadeira epidemia também nas instituições estaduais.
No dia 2 de outubro após as 11:00 horas, quando o corpo do Cau já havia sido identificado e a imprensa
informada, a noite seu corpo retorna triunfante para o Hall da Reitoria. Sai de minha cidade Rio do Sul,
interior de SC e me dirigi para o velório. Cheguei em Florianópolis as 23:30 hs e ao me deparar com o grau
de sofrimento dos presentes minha memória retoma os tempos de convívio com o Cau na Universidade.
Lembranças da história do movimento estudantil sendo adversários, porém defendendo as mesmas ban-
deiras. Ali naquele local fiz meu primeiro discurso em defesa da educação pública e gratuita. Brigávamos
por mais verbas para educação e a meta de termos o mínimo de 12% do orçamento do Brasil investido em
educação, uma vez que não chegavamos a 7% para esta área. Hoje temos garantido em Lei e na soma de
investimentos entre municípios, estados e União mais do que isso. Nossas brigas pela qualidade da alimen-
tação do Restaurante Universitário e contra seus sucessivos aumentos, a luta pela conclusão do Hospital
Universitário, onde tive parte de minha formação, a organização do movimento de resistência que culminou
com a Novembrada e a prisão de seis estudantes, e tantos outros momentos de convergência em defesa
da democracia e da cidadania. Em todos os momentos o Cau estava presente. Era um combatente lúcido e
parcimonioso. Representava a vanguarda do movimento.
Para qualquer um que tenha um pouco de conhecimento em orçamento, nestes períodos de vacas magras
em recursos para o Ministério da Educação, não é necessário o uso de muitos neurônios para saber que
é impossível desviar o que a imprensa noticiou, considerando-se o tempo de gestão e os organismos de
controle externo que tem as universidades brasileiras, mesmo considerando-se sua autonomia. Me admira
muito que uma delegada, uma juíza e um promotor federal não tenham tido essa percepção.
Meu contato mais presente com o Cau retomou-se nos últimos dois anos. Ele sendo Titular de uma
cadeira de humanas, era aficionado por inovações. Tinha o sonho de transformar a UFSC na primeira uni-
versidade autônoma em geração de energia fotovoltaica (solar). Era um preservacionista das estruturas da
universidade . Demonstrou isso com sua perambulação em Brasília na busca de recursos para restaurar o
mosaico do grande artista catarinense Rodrigo de Haro, que está pintado no Hall da Reitoria. Exatamente o
local onde agora estava sendo velado. Um eterno sonhador tendo como pauta a política de inclusão social
e o objetivo de transformar a UFSC numa universidade de renome internacional.
Preocupado com a saúde dele e querendo entender melhor o que estava se passando, oito dias antes de
sua decisão pelo destino que tomaria, fizemos um jantar quando conversamos por aproximadamente
cinco horas. Ali deu para perceber seu desolamento e o nível de medicalização, pois teve que submeter-se
a acompanhamento psiquiátrico. Encontrava-se literalmente entorpecido. Nos descreveu as cenas a que
foi submetido e a eternidade da prisão, mesmo tendo ficado apenas um dia recluso. Relatou o extenuante
interrogatório, levantou os punhos ao simbolizar a colocação das algemas e olhou para os pés ao falar do
acorrentamento das pernas. Descreveu que a penitenciária de segurança máxima tem um certo protocolo

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de comunicação entre os prisioneiros das celas, pois a noite, quando conversam entre uma cela e outra
há um certo respeito para a comunicação. Relatou que em determinado momento ouviram uma voz alta se
dirigirem ao “pessoal da UFSC”, numa espécie de recepção.
Foi nesse momento que conseguimos entender seu enclausuramento pessoal, pois sabia que seus telefo-
nes estavam grampeados e que estava proibido de manter contato com qualquer pessoa da universidade,
além de estar proibido de entrar nesta que era sua principal casa.Tinha uma preocupação em preservar
seus colegas de qualquer constrangimento ou risco de prisão. Neste momento ele faz referência a copeira
da universidade que o atendia, preocupado com o estado de saúde dela e o sofrimento que podia estar pas-
sando com o episódio, pois tinha muita deferência pelo seu atendimento. Ela acabou ficando uma grande
amiga dele. Isto por si só já demonstra seu caráter altruísta uma vez que mesmo passando por um tsunami
pessoal ainda preocupou-se com uma servidora da universidade.
Torna-se importante dizer que o Cau não tinha mais nenhuma militância político partidária e que, no espectro
ideológico eu o considerava como uma pessoa de centro. Era membro da maçonaria e se relacionava igua-
litariamente com todas as pessoas independente de suas posições, políticas, ideológicas, religiosas, etc…
O destino acabou apresentando-lhe seus algozes, no entanto durante o jantar que tivemos, apesar dos
duros relatos que ouvimos, em nenhum momento, vimos nele a expressão ou a manifestação de indigna-
ção em relação ao que estava produzindo tamanho sofrimento e quem o causou.
Sua única vontade era apenas de poder entender porque estava acontecendo desta forma, querendo ape-
nas ter o direito ao contraditório.
Diante da atitude covarde de seus agressores e de todas as manchetes desproporcionais, o nosso Reitor
foi transformado em uma partícula jogada ao vento sem vislumbrar qualquer possibilidade de recuperação
de sua reputação. Mesmo após sua morte ainda apareceram manchetes dando a entender que sua morte
estava relacionada com sua culpa e que estava passando por problemas de saúde, como se o seu processo
depressivo súbito fosse obra do acaso.
Para se ter noção da escala de profanação da vida e da gestão de Cancellier, num rápido levantamento no
Google, no período de 14 de setembro, dia da prisão, até o dia 02 de outubro de 2017, dia de sua morte,
foram postados 244 mil artigos. Do dia 14 de setembro até o dia 06 de novembro, 466 mil artigos e cita-
ções fizeram referência à sua trágica morte. Isso sem levar em conta as matérias dos jornais televisivos,
rádios e redes sociais.
Em decorrência desses fatos este livro tem uma dinâmica literal livre iniciada pela introdução do professor
e Desembargador Lédio, um dos protagonistas do nosso jantar - reunião e que conviveu de forma mais
intensa e profunda com o Cau, uma vez que sua amizade pessoal decorria da infância.
A maioria dos escritores de artigos não tiveram a felicidade da convivência com o Cau mas de forma pes-
soal discorreram analisando tecnicamente a prisão, os procedimentos jurídicos e criminalísticos adotados
e a contextualização conjuntural dos fatos.
Com certeza um dos momentos mais marcantes e tristes na história da Universidade Federal de Santa
Catarina foi a despedida de um dos reitores mais resilientes deste país, com uma trajetória extremamente
curta de gestão. Alguém que mesmo dentro do caixão, despido pelas deformidades produzidas em sua
queda, nas homenagens póstumas era a figura mais imponente, ao reunir mais de 1500 pessoas em um

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auditório perplexo e entristecido pelos acontecimentos. As manifestações e discursos são registrados
neste livro como um acontecimento histórico do período “democrático” deste país. Acontecimento em
relação ao qual caberá ao Estado Brasileiro reconhecer sua inoperância e sua face autoritária representada
por seus interlocutores.
O périplo desse roteiro levou a uma Sessão Solene Póstuma produzida no Salão do Senado da República
em homenagem ao Reitor e seus feitos. Esta sessão também é reproduzida neste livro para que os leitores
possam ter uma noção ampliada do momento e dos fatos, assim como a necessidade de aprovação da Lei
Cancellier de Abuso de Autoridade, de autoria do Senador Roberto Requião (PR).
Como um combatente pela democracia, a presunção da inocência, o direito ao contraditório e o respeito a
Carta Magna, o nosso amigo Cau resolveu dar seu último discurso em vida da forma mais altiva possível.
Não tinha platéia e seu púlpito estava em uma elevação equivalente a sete andares de altura.
Ele tinha esse direito, pois sabia que sua eloquência teria eco e a certeza que a decisão irrevogável de sua
morte não seria em vão. Hoje milhares de seus seguidores estão levantando a voz dando continuidade ao
seu pronunciamento.
E aqui os protagonistas deste livro apenas dão sequência aos seus passos e seu discurso em nome de uma
Universidade Autônoma, uma nação livre, respeitosa e soberana.
Amigo Cau, “adelante” e até breve.
Você acabou fazendo o discurso mais brilhante de sua vida sem precisar falar. Teus amigos estão orgulho-
sos de sua bravura.

Abraço Fraterno!!!!

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Introdução
“If we do not protect democracy, democracy will not protect us”.
Aharon Barak

Para que fique claro na primeira linha: o livro que o leitor tem em mãos não é um discurso avesso ao
combate ao crime e, muito menos, ao combate à corrupção. Também não direciona críticas contra a ma-
gistratura, o ministério público e a polícia em si. Ao contrário: é uma coletânea de depoimentos em defesa
das instituições, no marco do Estado Democrático de Direito. E esse marco democrático exclui o abuso,
o fundamentalismo, a ilegalidade e a prática autoritária patrocinada pelo Estado, por parte de alguns seus
agentes, em nome falso da legalidade e da justiça.
O Estado não existe como abstração. A democracia se mede pelas ações das pessoas físicas que atuam
em seu nome. Quando agentes públicos passam a operar, de forma livre e sem responsabilidade, no coti-
diano da vida social, práticas antidemocráticas, desconsiderando os princípios constitucionais basilares
ao Estado Democrático de Direito, a sociedade como um todo corre sério risco. E o risco é o de se permitir
instalar um Estado totalitário, aniquilador da liberdade, da legalidade, do respeito mútuo e de se impor em
seu lugar os já historicamente conhecidos sistemas da brutalidade institucional e das hecatombes crimi-
nais realizadas em nome da Lei.
Nesse exato momento vários membros da polícia, do ministério público e da magistratura estão atuando
por conta própria, colocando como razão de Estado os seus próprios desejos psíquicos pessoais, conflitos
e frustrações, colocando a si próprios como os únicos éticos, como os únicos com capacidade de fazer
Justiça. Uma Justiça personalíssima, por certo, embalada por propósitos de higienização segundo proje-
ções imaginárias, com a carga de
limpeza do estanho, qualquer que seja ele; de uma certeza lancinante. Nessa certeza constituída como sin-
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toma neurótico, não mais aceitam a Lei geral como reguladora social, e passam a atuar em nome do bem,
a partir da convicção – a lei sou eu. Agentes que excluem os demais em raciocínio típico fundamentalista
e paranoico, fechados em suas fórmulas imaginárias de salvação coletiva. Em passos rápidos, usando as
instituições, vão solidificando um sistema social fascista, no qual o respeito às instituições e às pessoas
é substituído pela infalibilidade doentia das certezas “intuitivas”. A consequência disso é a instalação da
barbárie estatal, da destruição de vidas de pessoas honestas e honradas – munidas de presunção de
inocência –, a disseminação do medo entre os cidadãos, caldo de cultura de qualquer regime de terror,
altamente persecutório.
Hoje em nossa sociedade não basta ser honesto, não basta não cometer crime, será preciso comprovar a
inocência que deveria ser pressuposta. Há de se torcer para não cair na simples desconfiança ou na própria
má-fé de um policial ou de um membro do ministério público desses grupos fascistas, que, munidos de
seu imaginário potencializado, pleitearão a prisão a um juiz com identidade ideológica e esse, abandonando
a necessária ponderação e raciocínio profundo que se exige de um magistrado, atuará instrumentalizado,
como um funcionário banalizado, um carimbar maluco, em pensamento simplista guiado pelo desejo de
estrelato, e logo expedirá um mandado de prisão. A primeira instituição a ser avisada é a mídia. E, em
um amanhecer qualquer, um cidadão que jamais praticou um crime, primário para fins penais, em total
desrespeito aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, é acordado com ruídos no
umbral de sua casa. De pijama abre a porta, quando ela não é arrombada, para ver os barulhos de fora. E
se depara com as câmeras de televisão e os canos de espingardas e metralhadoras direcionados para si.
Nesse instante sua vida é destruída para sempre, mesmo sendo absolvido tempos depois. A pena a jato
suja a reputação que não poderá ser mais lavada.
Ainda estamos em tempos de diálogo. Ainda há prazo para conter os agentes da antidemocracia. Ainda é
possível salvar as instituições democráticas. Se eles tomarem o poder, só a guerra poderá restabelecer a
liberdade e a democracia.
Este livro é feito em homenagem ao cidadão Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina, um homem que nunca respondeu a um processo criminal, eleito democraticamente à
reitoria, e que teve o azar, mesmo não sendo réu, de ouvir os alaridos em sua porta, em um amanhecer.
Abriu-a, foi preso, levado coercitivamente, depôs por várias horas e em seguida encaminhado à Peniten-
ciária Estadual, onde foi encarcerado no setor de segurança máxima. A imprensa soube de tudo antes do
Cau (apelido carinhoso). Nesse ínterim ilegal e macabro, mesmo com ordem judicial, Cau teve suas mãos
algemadas, seus pés acorrentados (olvidaram a súmula vinculante n. 11 do STF), tiraram-lhe as roupas,
investigaram seu pênis e seu ânus, meteram-lhe um uniforme de condenado e foi jogado em uma cela. Seu
médico cardiologista atendeu-o com ele algemado. Padres foram impedidos de lhe dar apoio espiritual.
Solto por uma magistrada democrata (e que pensa), Cau deparou-se com a vida destruída. Combatente
que era pela democracia, pelo diálogo, pelo respeito à diversidade, não suportou os corolários da força
da coerção advinda do abuso do poder. Cau não estava mais livre. A opressão fascista lhe comandava.
Agentes invisíveis do terror lhe agarraram, levaram-lhe até o shopping center e lhe atiraram das alturas do
vão central. E quando seu corpo bateu ao solo e sua vida parou, Cau terminou seu último ato político: nos
alertar sobre a necessidade de ação, de atuar contra a crescente onda fascista que vem tomando as insti-

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tuições e corrompendo a democracia. A morte social, no entanto, fora-lhe decretada primeiro.
Que este livro seja uma poderosa arma para restabelecer o Estado Democrático de Direito e, junto com
outros armamentos pacíficos, possa contribuir para o restabelecimento dos princípios constitucionais e
para uma vida social livre e sem terrorismo de Estado. Afinal, hoje com o outro – na verdade, já, com tantos
–, amanhã poderá ser com você. Só a democracia nos salva de um delírio autoritário qualquer.

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Roberta Duboc Pedrinha 1

Autoritarismo Penal Fatal

Assistimos, terrificados, às agruras do sistema penal,


Essa máquina de produção e reprodução de violência,
Que atua em múltiplos níveis de prepotência,
Com seus tentáculos irrompe e agarra,
Pelo tilintar do chicote virtual-visceral.
Intrépida ousa intitular-se jus puniendi,
Com massacrante teia que enlaça e amarra,
Pela violência institucional.

É assombroso quando cai o véu,


Quando a máscara que oculta desvanece,
E a brutalidade espraiada mostra o seu rosto,
Que isola, confina, aprisiona e esquece,
Desmedidas medidas, Poder Punitivo imposto,
E que a cada nova lei penal só recrudesce.
Transmuda o espírito em fel.

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Injungir à vida condição de sofrimento,
Está criminalizado, é tortura.
Impelir entre jaulas, no século XXI,
Desconstrói o humano, reifica e macula.

Mas a mídia inflamada atiça a população,


Lança, e não se cansa, medo, ódio e rancor,
E não há cristão e nem perdão.
Todos reclamam carregados de temor,
No prisma etiológico, da “causa” de tudo: a impunidade!
E desconhecem de Feuerbach a ultrapassada lição,
Por ignorância, intolerância ou iniquidade,
Clamam do rádio à internet, em uníssono, por sanção!

Querem o emparedamento em vida,


Só desejam multiplicar para todos,
Pois pela “Justiça” é pena devida,
Calculada na técnica dosimétrica “sob medida”.
Até sem condenação, ergue-se a prisão!

No cárcere a alma definha,


A agonia sufocante encapsula,
Lá a solidão engole, resvala, é rainha,
Quando a esperança captura;
Dos indisciplinados aos adestrados hipócritas alinha.

Até quando seremos capazes de suportar


Essa nódoa que nos devora,
Vidas comprimidas, interrompidas de sonhar;
Sócrates, Tiradentes, Mota Coqueiro, antes e agora...

Mancha que nos inculca tanta dor,


Impingida ao longo da História,
De tormenta, castigo e horror,
Mas que todos suprimem da memória;

Onde milhões de vidas foram ceifadas,


Milhares de vozes foram caladas,
E vastos rios de sangue já derramados,

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Milênios de anos de liberdade confiscados,
Tudo em nome da pena,
Esta pústula que não sai de cena.

Os infortúnios do modelo punitivo,


Ninguém passa por ele em vão.
Deles todos se tornam eternos cativos,
Incrusta marcas indeléveis, têm esse condão.

Então, a violência mostra suas entranhas,


Cala o silêncio constrangedor,
Emudece de Munch o grito de horror,
E expande-se, eis sua façanha!
E leva embora o destemido Professor-Reitor,
Irmão do Sul, de Tubarão, o digníssimo Cancellier,
Tal como fez com Getúlio, Frei Tito e tantos outros...
Mas agora embalado pela Operação “Ouvidos Moucos”...
Sem Garantias, sem Ampla Defesa e sem Contraditório,
De sua Casa, desafortunadamente, conduzido.
É permanência Inquisitorial esse repertório.
De suas vestes ainda foi despido,
E, entre muros, encarcerado.
E depois em “liberdade”,
De sua casa universitária exilado.
Demasiado, para um ser sensível.
O desfecho de Sófocles se consolidou,
Algo até então imprevisível.

Mas não conseguiu macular a sua trajetória,


Sua excelência acadêmica, seus livros, escritos e ideais.
Apagar da cartografia de sua admirável história,
Não embotou seu engajamento político.
Do Corpo Discente da Faculdade de Direito da UFSC ao Movimento Estudantil,
Do Trabalho como jornalista à Assessoria Parlamentar,
Da Participação ativa em Campanhas pela Anistia e Diretas Já,
Até a Constituição Cidadã do Brasil.
Da Graduação em Direito, Especializações, Mestrado e Doutorado.
Professor de Direito Público, Chefe de Departamento, Diretor e Reitor.
Desta insigne citada Instituição,

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Fica a sua Dignidade Ética e Verve Inspiradora,
O seu Comprometimento com o Segregado, o Oprimido.
E nos fala ao Coração.
Já atomizado, rompido.

Este encerramento trágico não enlutou a sua Bandeira,


Que também é a nossa e Triunfará.
Aglutinando Estudantes e Professores nas mesmas fileiras,
De Solidariedade e Tolerância, sem se resignar.

Agora, retirou-se para outros desafios,


Deixando-nos órfãos,
Entre desencanto e consternação.
Singrando os mares sombrios,
Em tempos de angústia, medo e desolação...

Mas ainda cobriu-nos de Força,


Deixando-nos coesos em compaixão,
Por que até ao sair,
Em seu último suspiro, sepulcral,
Protestou a barbárie-baderna,
E fez da morte seu ato final,
De Resistência Eterna.

Sua retirada ecoou o desamparo,


No qual estamos todos imersos,
Atormentou tal qual disparo,
Dos mais próximos aos dispersos.
Fragmentou sentimentos,
Despertou indignação,
Dilacerou almas sem acalento,
Carregadas de comoção.

Com a queda de Cancellier,


Não tombou apenas um corpo.
Mas um pedaço de todos nós Professores,
Abruptamente arrancado,
E daqueles que como o Mestre,
Sempre Acreditaram,

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Na Universidade e na Educação,
Como instrumento de Transformação,
De Igualdade e de Emancipação.
Também foi retirado um pedaço de cada Estudante,
Que se inspirou em quem desde outrora os liderou.
Com sua emoção transbordante,
Atomizada, cingida no peito,
Aberta outra fissura no Estado Democrático de Direito.

Cancellier combateu o autoritarismo, até findar...


Contudo, não logrou sua partida,
Separá-lo dos seus Familiares e Amigos,
Professores, Funcionários e Alunos.
Que lhe guardam em recôndito mais profundo,
No seu pensar e gostar.

Ainda tem guarida na Universidade Federal de Santa Catarina,


Se lá os autoritários proibiram que pisasse os pés,
Não obstaram que lá deixasse inexoravelmente a sua alma.
Apesar de conclamarem o seu revés.

Cancellier tem guarida em todas as Universidades,


Nos grandes Centros de Excelência,
Nos espaços dedicados à Educação de qualidade,
Nos Recantos de diálogos e debate,
De reflexões críticas, cultura e arte.
Na formação de seres humanos livres,
Éticos, responsáveis, e voltados,
Ao bem comum da Sociedade.
Espíritos sempre engajados.

Que os Ensinamentos de Cancellier se coloquem à nossa frente,


Como uma estrela, a nos guiar,
A iluminar nossos caminhos,
Em cada um dos nossos passos,
Dando continuidade a sua obra.
Para que a nossa voz sempre se levante
Diante da mais singela injustiça,
Ou da mais funesta mazela do mundo a ruir,

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Corajosa, firme e atuante,
Pois, nos legou lições até sair...
Que encontre Paz e Justiça!
Salve o Professor dos Professores!
Salve Cancellier!

1 Advogada. Doutora em Sociologia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Doutoranda em Direito
Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina). Mestra em Ciências Criminais pela Universidade Candido Mendes (UCAM).
Pós-graduada em Criminologia pela Universidade de Havana (UH-Cuba). Graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora e Coordenadora da Pós-graduação em Criminologia, Direito e Processo Penal (UCAM).
Professora Convidada de Direito Penal da Pós-graduação (FGV) e (PUC/RJ). Professora e Pesquisadora Convidada de Criminologia
das Especializações, Mestrados (Acadêmico e Profissional) e Doutorado em Direito e Saúde Coletiva (FIOCRUZ). Professora de Crimi-
nologia (DEPEN-MJ), (EMERJ) e (ACADEPOL). Professora e Coordenadora (licenciada) do Núcleo de Estudos Criminais (IBMEC-RJ).
Ex-Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos e Ex-Avaliadora da Banca Examinadora de Direito e Processo Penal da Ordem dos
Advogados do Brasil – Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ). Editora da Revista Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, da Revan.
Membro do Instituto Carioca de Criminologia (ICC). Ex-Membro da Comissão Permanente de Direitos Humanos e de Direito Penal do
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

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Capítulo 1

Conhecer para apreender o Direito

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Ricardo Lemos Thomé

Doutor em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (2002). Diretor de Planejamento
da SSP de Santa Catarina (1995/1998 e 2003/2004), Delegado Geral da Polícia Civil (2004/2005),
Ouvidor da SSP (2007 a 2014), Diretor Parlamentar da Associação dos Delegados de Polícia (2011
a 2015) e Presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de Santa Catarina (2014 a 2017).

A democracia não caiu do céu: a permanente luta de


Cancellier pela negação do totalitarismo

INTRODUÇÃO
Dentre a farta cobertura jornalística descuidada sobre a prisão do professor doutor Luiz Carlos Cancellier
de Olivo, Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, a primeira leitura inteligente que pude fazer
foi proporcionada pela carta de autoria do ex-senador e advogado Nélson Wedekin, publicada em 16 de
setembro de 2017, pelo jornalista Carlos Damião, no jornal Notícias do Dia1.
E é nela que encontro sustentação para poder discorrer sobre aspectos históricos e jurídicos do devido
processo legal que supreendem a sociedade brasileira pelo evidente e claro retrocesso institucional que
estamos vivendo, após quase trinta anos de vigência da mais avançada e democrática Constituição que o
Brasil produziu.
Com a devida licença, introduzo parte da referida leitura que me deu conhecimento e consciência da situa-
ção, proporcionada pelo nosso eterno senador da Assembléia Nacional Constituinte:
“Na solidão do cárcere, Cancellier deve ter revisitado os tempos sombrios, as reuniões
clandestinas, a oposição sem tréguas à ditadura. Deve ter se lembrado de que alternou -
como todos nós naquela época - medo e coragem. Vem da noite escura e longa da ditadu-
ra, em Cancellier, a paciência, a tolerância, a voz calma e macia. Era tático e uma questão
de tempo: apostar no acúmulo de forças, no descompromisso do regime com os interes-
ses populares, na unidade das forças da oposição democrática. O estratégico era superar
1 Disponível em https://ndonline.com.br/florianopolis/coluna/carlos-damiao/ex-senador-wedekin-sobre-a-prisao-do-reitor-da-ufsc-
-ninguem-merece

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

o ciclo autoritário de poder, estabelecer um regime de liberdades civis e democráticas, de


respeito aos direitos fundamentais. 
Deve ter pensado, nas horas amargas, sobre a insensatez e a ignorância de jovens ativistas
e de velhos endurecidos de um mundo caduco, que classificavam a sua candidatura a rei-
tor como “de direita”. Terá se perguntado em que cova rasa foram enterrados o processo
regular, a presunção de inocência, pilares do Estado de Direito, para que ele estivesse
vivendo aquele drama.
Deve ter pensado onde estavam os seus algozes quando ele lutava pela democracia, nos
anos de chumbo. Eles que agora são senhores, senão da vida e da morte, mas da reputa-
ção e da liberdade dos concidadãos, de tanto poder que dispõem.
E se os papéis de Cancellier e dos seus algozes fossem trocados? Eu sei o que aconteceria:
Cancellier teria cumprido com exação, competência e senso de medida os seus deveres e
atribuições. Ninguém seria acordado de manhãzinha com o camburão da polícia à porta.
Se alguém tivesse de pagar por um delito cometido, seria ao final e não no começo do
procedimento. Porque esta é a essência deste episódio insólito: as investigações poderiam
ser feitas, devem ser feitas no rigor da lei, porém a prisão foi uma violência, um abuso de
arbítrio e força bruta, desmedido e desnecessário.
No final do processo, o resultado - podem ter certeza - será mais ou menos o mesmo.
Com as prisões de Cancellier e dos outros ou sem elas. Mas certas autoridades não estão
interessadas nos fins, mas nos meios. Pouco se lhes dá se os meios (a prisão temporária
e arbitrária ) possam causar danos irreversíveis a quem, no final, provará que nada fez de
mal, ou no mínimo, que nada justifica a violência sofrida.”
A missiva apresenta outro ponto muito interessante, quando ficamos sabendo que, aos tempos da cons-
tituinte, o Reitor trabalhou “articulando e participando ativamente de uma reunião com um grupo de pro-
motores de vários estados brasileiros, onde suas excelências faziam lobby em favor das prerrogativas do
Ministério Público, que ele, Cancellier, via com entusiasmo”.

O VAI E VEM DAS INSTITUIÇÕES


É fora de dúvida que, durante o período do regime militar brasileiro (1964-1985), preponderou na inves-
tigação criminal a busca pela confissão do criminoso como modo mais rápido e eficaz da solução de um
fato delituoso.
Também é fato que, no mesmo tempo, o promotor era conhecido como “assessor do juiz” e proliferavam
nas audiências a figura do promotor ad-hoc, sendo que o salário pago a um procurador da república era tão
irrisório que não atraia os operadores do direito.
E nós, estudantes naquela época, percebíamos que os juízes eram humanos, pelo menos nos bancos
universitários.
O que aconteceu efetivamente nos últimos trinta anos mudou totalmente a realidade brasileira a partir da
visão das estruturas destinadas à administração da justiça.
Podemos sustentar que são dois distintos, que podem ser separados num plano histórico: a década de 90

Em nome da inocência: Justiça | 23


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

e o período pós social-democracia.


Na década de 90, temos:
a) A incipiente observação do processo legal e das garantias e liberdades individuaispela polícia na inves-
tigação criminal;
b) O ministério público federal e estadual elevado às alturas, com o fortalecimento de suas prerrogativas
e funções;
c) O judiciário, inerte, acreditando que sua onipresença bastava à sua sobrevivência.
Na era pós social-democracia, temos:
a) a descoberta pela polícia de que poderia exercer a força de Estado com poder (armado) e independência;
b) o ministério público exercendo o poder político com força (desarmada) pública;
c) o judiciário, em reação à concorrência antes inexistente, passando à judicatura política.
Mas...vamos por partes.
Àqueles que amam estudar e entender o direito e o processo penal, é oferecida de imediato a leitura e com-
preensão das Misérias do Processo Penal, do genial advogado italiano Carnelutti2, cuja primeira edição é
datada de 1957, de onde é retirada a seguinte e atualíssima passagem:
“Um pouco em todos os tempos, porém na época atual cada vez mais, interessa o proces-
so penal à opinião pública. Os jornais ocupam uma boa parte de sua páginas com a crônica
dos delitos e dos processos. Quem os lê tem consigo a impressão de que neste mundo
se produzem muito mais delitos que boas ações. O que ocorre é que os delitos asseme-
lham-se às papoulas, que quando há uma em um campo, todos se dão conta dela; e as
boas ações se ocultam, com as violetas entre as ervas do prado. Se os jornais se ocupam
com tanta assiduidade dos delitos e dos processos penais, é porque a gente se interessa
muito por eles; sobre os processos penais célebres, lança-se avidamente a curiosidade do
público. E é também esta uma forma de diversão; evade-se da própria vida ocupando-se
da vida das demais pessoas; e a preocupação não é nunca tão intensa como quando a vida
dos outros assume o aspecto de drama. O mal é que se assiste ao processo da mesma
maneira que se goza de um espetáculo num cinema, o qual, pelo mais, imita com muita
frequência tanto o delito quanto o correspondente processo. Contudo, posto que a atitude
do público a respeito dos protagonistas do drama penal é a mesma que tinha há um tempo
a multidão diante dos gladiadores que combatiam no circo, e todavia tem, em certos países
do mundo, diante da corrida de touros, o processo penal não é, outra coisa senão uma
escola de incivilidade. O que com estes colóquios se desejaria é fazer do proceso penal um
motivo de reflexão em lugar de diversão.”
A investigação criminal, parte integrante do moderno processo penal que garante direitos, é um tema fasci-
nante em razão das múltiplas abordagens que a sociedade pode perceber diante de um único fato. A polícia
rapidamente se apodera desta “charmosa” faceta e dela tira proveitos políticos de tempos em tempos.
Esta investigação criminal empreendida pela polícia evoluiu e inovou com a superação da tortura pela in-
vestigação formal-processual, fato que se consolidaria com a legislação subsequente a 1988.
2 As misérias do processo penal, Francesco Carnelutti; tradução da versão espanhola do original italiano por Carlos Eduardo Trevelin
Milan, 2ª. Tiragem, São Paulo: Editora Pilares, 2009

24 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Claro está que a preocupação do constituinte, quando da análise e formação do texto constitutivo das ga-
rantias individuais, se baseou no conhecimento de precisos fatos históricos registrados no período anterior
do regime militar.
Tome-se como exemplo o expresso na Magna Carta, quando no inciso II do seu Art. 5º fica estabelecido
que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; ou no inciso LXIII do
mesmo artigo ordena-se que o “preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer ca-
lado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, sepultando-se definitivamente a busca
da confissão mediante tortura. Mais adiante, estabelece o formalismo da investigação criminal quando, no
seu Art. 144 trata da segurança pública e de seus órgãos.
O formalismo processual também é uma preocupação permanente do constituinte, para se evitar os abusos
do regime militar e a garantia do devido processo legal e da ampla defesa e do contraditório são reforçados
na investigação criminal. Com base nessas evidências, Ives Gandra explica que “a Constituição claramente
divide as funções judiciárias entre o poder de julgar (Poder Judiciário, artigos 92 a 126), o de acusar (Mi-
nistério Público, artigos 127 a 132) e o de defender (advocacia, artigos. 133 a 134). Os delegados agem
como polícia judiciária. Estão a serviço, em primeiro lugar, do Poder Judiciário, e não do Ministério Público
ou da Advocacia, que são partes no inquérito policial — processo preliminar e investigatório que deve ser
presidido por uma autoridade neutra, ou seja, o delegado”.3
Embora a abertura proporcionada pelo último presidente do regime militar, João Figueiredo (1979-1985)
tenha sido “lenta e gradual”, a sociedade rapidamente percebeu a mudança proporcionada pelos debates
da Assembléia Constituinte e, quando da entrada em vigor da nova Constituição em 1988, imediatamente
exigiu o fiel cumprimento das garantias individuais e coletivas estabelecidas. Tal acontecimento exigiu,
por sua vez, o aprimoramento policial no exercício de sua missão institucional de efetuar a investigação
criminal.
Na década de noventa houve uma série de acontecimentos com reflexos diretos na área da segurança
pública e, em especial, na investigação criminal. Investigações no Congresso Nacional, como a quadrilha
dos sete anões do orçamento; a destituição do presidente Fernando Collor; a delinquência juvenil em São
Paulo; o reconhecimento da existência do crime organizado a partir do jogo do bicho e do narcotráfico, no
Rio de Janeiro, levaram a sociedade a exigir o esclarecimento dessas situações a partir de investigações
criminais conduzidas pelas polícias civis nos estados e pela polícia federal no âmbito da União. Neste tem-
po, o ministério público pavimentou um caminho seguro para a consolidação de sua missão institucional
e a polícia ensaiou uma espécie de garantidora de direitos, tentando superar um modelo de polícia violenta
e repressora.
Os dez primeiros anos do novo século seguiram a mesma linha de acontecimentos marcantes com a
banalização e escalada de violência em níveis intoleráveis, notadamente nos crimes contra a vida e patri-
moniais cometidos por adolescentes e pela presença da criminalidade organizada na atividade pública e,
em paralelo, os crimes contra a administração pública passaram a ser de conhecimento do grande público.
E aqui passamos a uma reviravolta total nas instituições do poder executivo (ministério público e polícia)
e no Poder Judiciário.
A percepção de que a força e o poder do conhecimento através da informação pressiona forte e perma-
3 http://www.gandramartins.adv.br

Em nome da inocência: Justiça | 25


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

nentemente o Poder Executivo por melhorias salariais, estruturais e benesses na formação de uma elite
de servidores públicos, fez com que ministério público e polícia passassem a competir e divergir, não em
busca da justiça, mas para ver quem tinha maior poder de pressão sobre o Poder Executivo.
E o Poder Judiciário, conforme mencionado, não passou incólume no processo, pois foi da inércia às
constantes decisões políticas, principalmente em instâncias únicas, tanto nos Estados quanto na União
pelos Tribunais Superiores.
E é neste contexto histórico que chegamos ao ano de 2017, com as carreiras jurídicas de estado, ditos
“elite funcional”, dentre elas procuradores, delegados e juízes diretamente envolvidos nas verdadeiras cor-
porações em que se transformaram suas nobres Instituições, não na produção da verdade e Justiça mas
travestidos de autoridades públicas ávidas de aprovação e reconhecimento popular.

DA AUTORIDADE PÚBLICA POP STAR:


Três delegados de polícia foram representativos da prática de tortura em delegacias no período militar:
Sérgio Fernando Paranhos Fleury, João Lucena Leal e Antonio Cláudio Guerra.
Sérgio Fernando Paranhos Fleury foi responsável pela morte de dois dos maiores guerrilheiros, Eduardo
Collen e Carlos Marighella, bem como pelo episódio conhecido como “chacina da lapa” quando três di-
rigentes do Partido Comunista Brasileiro foram mortos no bairro da Lapa, em São Paulo. Fleury recebeu
a medalha do pacificador, concedida pelo Exército Brasileiro, foi condecorado pelo governador Abreu So-
dré (1969) e foi escolhido delegado do ano em duas oportunidades (1974 e1976)4, em meio a diversas
acusações de tortura e homicídios.
João Lucena Leal,  ex-delegado de polícia federal, concedeu entrevista de quatro horas de duração, reali-
zada pelo programa Conexão Repórter, do SBT, levada ao ar em 30 de março de 2011,  falou sobre torturas
e mortes das quais ele próprio participou, tendo presenciado “de 10 a 15 execuções” e que a tortura se
justifica “para extrair uma informação ardente”, completando que fazia parte de seu trabalho extrair tais
informações dos ativistas políticos as quais “eu executava com nobreza”.5
Antonio Cláudio Guerra é personagem do livro investigativo “Memórias de uma guerra suja” “Rogério Me-
deiros e Marcelo Netto”. Consta na obra que o ex-delegado do DOPS do Espírito Santo foi “um ardiloso
e implacável combatente da bandidagem às custas de mais de 35 execuções de acusados de crimes
comuns, confessando outras 40 mortes anteriores de pistoleiros e lideranças camponesas, no início da
carreira policial em Minas Gerais. Os autores dizem que era “comum Guerra ser homenageado e cortejado
pelo mundo político e empresarial. Seu gabinete no DOPS era frequentado por dois governadores do perí-
odo da ditadura militar: Élcio Álvares e Eurico Rezende.” 6
Em tempos de abertura do regime militar, o policial Mariel Mariscot7, certamente é o melhor exemplo de
como um agente prestador de simples serviço público do estado transforma-se em figura pública festeja-
da, louvada e reconhecida pela sociedade.
Com o advento da constituição-cidadã de 1988, os agentes policiais pisaram no freio e, por duas dezenas

4 http://torturasnobrasil.blogspot.com.br/2012_11_01_archive.html
5(http://ultimosegundo.ig.com.br/2012-05-02/claudio-guerra-um-matador-que-se-diz-em-busca-da-paz.html)
6 Disponível em http://www.sbt.com.br/conexaoreporter/noticias/7687
7 Morto na rua, no centro do Rio de Janeiro, em 08 de outubro de 1981. Disponível em http://www.canaljusticia.jor.br

26 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

de anos, não tivemos notícias do aparecimento de figuras folclóricas, justiceiros ou super policiais em
âmbito nacional, o que acabou por aparentemente consolidar a polícia judiciária como cumpridora dos
direitos e garantias individuais.
Eis que, na última década, surgem, do nada e ao mesmo tempo, juízes, procuradores e delegados pop star.
Argumente-se que nem todos são ou se comportam como tal, mesmo a imensa maioria, e ao contraponto
é possível afirmar que ao aceitar essas figuras, os demais fazem “ouvidos moucos”. Basta ver as imediatas
reações estampadas nas notas oficiais da entidades representativas, recheadas de baboseiras, quando
alguém discorda de uma dessas autoridades públicas.
Só esse fenômeno seria odioso por si só; entretanto, os motivos de tal nascedouro são execráveis e indig-
nos. Enquanto delegados e procuradores buscam exercitar a força ao delirante público para acrescentar e
perpetuar benesses corporativistas, o juiz simplesmente é vaidoso.
A franca exposição das sessões do Supremo Tribunal Federal, através de canal de televisão exclusivo, bem
como as constantes declarações de seus Ministros à imprensa têm consequências imediatas na sociedade
brasileira.
Também, “ver” uma sessão da maior corte do país por rede nacional de televisão ao vivo ou nos noticiários
de horário nobre, traz à luz lição de Erasmo, em seu Elogio da Loucura8, cujo conteúdo é sintomático aos
nossos tempos:
“Comecemos pelos juristas. Eles julgam-se os maiores de todos os sábios, e nenhum
mortal se admira tanto quanto eles quando, a exemplo de Sísifo, rolam continuamente até
o alto de uma montanha uma enorme pedra que torna a cair assim que chegou ao topo –
isto é, quando eles entrelaçam quinhentas ou seiscentas leis umas com as outras, sem se
importar se elas têm ou não relação com os assuntos de que tratam; quando amontoam
glosas sobre glosas, citações sobre citações, fazendo assim o vulgo acreditar que sua
ciência é uma coisa muito difícil.”
A nobreza da missão do judiciário está à mercê do julgamento dos leigos às aparições dos pop star. Basta
colocarmos o nome “Gilmar Mendes” na ferramenta de pesquisa Google e teremos aproximadamente
500.000 (quinhentos mil) resultados, o que seria uma maravilha se o número guardasse relação estrita a
decisões de sua lavra. No mesmo sentido, o campeão é “Sérgio Moro”, com resultado de aproximadamente
1.540.000 (hum milhão quinhentos e quarenta mil) fontes, seguido muito de perto por “Rodrigo Janot”,
com aproximadamente 1.420.000 (hum milhão, quatrocentos e vinte mil) resultados. São números astro-
nômicos que dimensionam com exatidão a importância que o personalismo adquiriu em áreas da justiça
antes sadiamente impenetráveis. A busca incesssante pela fama deveria ser absolutamente incompatível
com o exercício da magistratura e dos órgãos que administram a justiça9.
Não existe diferença entre as condutas dos delegados Fleury, Leal e Guerra nos anos de chumbo e a de
juízes de hoje que não explicam suas sentenças em embargos de declaração, mas o fazem para os jornais
e televisão e quando ainda assim não são entendidos, uma “nota oficial” de suas entidades de classe vem
de pronto a socorrê-los, ou quando o ministério público e a polícia, por não possuírem a responsabilidade
8 Erasmo, Desidério, 1467-1536. Elogio da loucura/tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2003, pág 83.
9http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2017/09/1919021-gilmar-mendes-vai-doar-r-30-mil-que-ganhou-em-acao-
-contra-monica-iozzi.shtml ou https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/03/sergio-moro-faz-politica-nas-redes-sociais-e-re-
cebe-criticas.html ou https://www.cartacapital.com.br/politica/lava-jato-nao-pode-se-deixar-levar-pela-euforia-diz-ex-pgr

Em nome da inocência: Justiça | 27


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

da decisão final, fundamentam seus atos o suficiente para agirem ao sabor dos holofotes e opondo-lhes
argumentos, também suas associações produzem “notas oficiais” sacramentando a ação das respectivas
corporações.
A autoridade pública pop star, nestes tempos de velocidade e atualidade da informação, veio para ficar e é
o principal foco da pior doença invisível que pode acometer a sociedade: a injustiça.

A PRISÃO DO REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


Nesta toada que acomete de soberba parcela inestimável do poder judiciário, do ministério público e da
polícia, a prisão do professor doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, Reitor da Universidade Federal de
Santa Catarina, foi um show orquestrado, organizado e previamente agendado, com execução sumária e
acompanhamento midiático.
Como primeira e incontestável prova do circo armado e para melhor entendimento da barbárie do aparato
estatal, legitimado por uma decisão judicial, estabeleço a ordem cronológica dos acontecimentos princi-
pais que envolvem o processo, segundo informações10:
a) Em 05 de julho de 2017, a polícia federal oferece representação pela prisão temporária;
b) Em 13 de julho de 2017, o ministério público federal dá parecer favorável à prisão tem-
porária;
c) Em 25 de agosto de 2017, a justiça federal decreta a prisão temporária;
d) Em 28 de agosto de 2017, são expedidos os mandados de prisão, para cumprimento;
e) Em 28 de agosto de 2017, a polícia federal recebe mandado e determinação para que
notifique o Reitor da UFSC sobre o afastamento do cargo;
f) Em 29 de agosto de 2017, a polícia federal é intimada da decisão da justiça federal;
g) Em 14 de setembro de 2017, a polícia federal informa o cumprimento dos mandados de
prisão temporária.
O que esta ordem cronológica nos prova é a pérfida intenção ao show midiático de toda a “operação
policial”. Desde 29 de agosto de 2017, a polícia federal tinha conhecimento de que deveria cumprir os
mandados de prisão temporária e de afastamento do cargo contra o Reitor da UFSC. Entretanto, só reali-
zou o serviço em 14 de setembro de 2017, por razões “técnicas”, ou seja, a preparação e mobilização de
centenas de policiais.
Ledo engodo: sabemos que Luiz Carlos Cancellier de Olivo viajou para o exterior, em evento oficial, confor-
me informa Moacir Pereira11, em sua prestigiosa coluna:
“O reitor Luiz Carlos Cancelier chegou nesta quarta-feira a Florianópolis, vindo de Lisboa. Permaneceu em
Portugal durante uma semana, proferindo palestra em evento internacional de Direito e fazendo contatos
com Universidades para projetos de intercâmbio acadêmico.”
Luiz Carlos Cancellier de Olivo viajou para Portugal, passando pelo controle de imigração da polícia federal,
e segundo evidências, já com mandados de prisão e de afastamento da Reitoria expedidos contra si pela
justiça federal.

10 Seção Judiciária de Santa Catarina, Processo 5018469-32.2016.404.7200


11http://dc.clicrbs.com.br/sc/colunistas/moacir-pereira/noticia/2017/09/reitor-da-ufsc-foi-preso-apos-voltar-de-portugal-9898942.
html

28 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Houvesse a disposição para a simples detenção, sem estardalhaço, sem câmeras, sem imprensa, teria sido
preso ali mesmo, no aeroporto internacional.
E não foi assim.
Nem na ida e muito menos na volta!
E a volta, com controle de imigração novamente, deu-se no dia anterior à ação policial espalhafatosa. Duas
oportunidades de prisão, que não ocorreram por livre arbítrio ao arbítrio. Preferiram deixá-lo solto para
submetê-lo à execração pública em seu estado natal.
E ela ocorreu com requintes de crueldade.
A prática da tortura está presente em toda a história brasileira, notadamente em episódios do uso da força
por parte do estado e encontramos o exemplo perene de Tiradentes, torturado, morto e esquartejado; ou o
uso da força conjugada estado-proprietário contra o negro escravo. Essa tradição produziu uma herança
cultural que fica estampada quando lemos o recente depoimento do ex-presidente Ernesto Geisel (1974-
1979)12:
“Em um depoimento concedido a historiadores do CPDOC sobre sua trajetória no regime militar autoritário
de 1964, o ex-presidente Ernesto Geisel admitiu a tortura como um meio necessário para a obtenção de
confissões. O general reconheceu que “há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura
para obter determinadas confissões, e assim, evitar um mal maior”. A revelação de Geisel, o quarto general
a exercer o poder após a deposição de presidente João Goulart, coloca em questão a imagem do dirigente
militar comprometido com a legalidade e com a condenação dos excessos de violência praticados pelo
aparato repressivo, sob controle da linha dura. Desse modo, se abre novas vias de pesquisas sobre um dos
períodos mais sombrios da história republicana brasileira no século XX.”
E a confissão era extraída com violência, sob a prática de tortura nos porões das delegacias de polícia e
quartéis. Isso era aceitável pelas autoridades judiciárias e reconhecido pela sociedade como um modo
cômodo de se praticar uma investigação criminal.
Hoje a tortura, por ligações e excludentes, está maquiada pelos juristas das “carreiras jurídicas” que se
ocupam da matéria. Isto é, não está mais associada à violência física; entretanto, ela persiste e atinge o
estado mental das pessoas, diretamente. Quem mais sofre são as almas sensíveis, mas todos, indistinta-
mente podem sentir diariamente novas formas de tortura.
A prisão temporária, conhecida em seu cerne como “prisão do delegado” e cunhada como instrumento ex-
traordinário de investigação criminal, tornou-se ferramenta inquisitória torturante. A intimidação provocada
pela simples ideia de prisão leva o cidadão à pressão mental, própria da era medieval. E o concurso do tripé
juiz-ministério público-polícia, com a exclusão do advogado opondo o contraditório, dá-nos a sensação de
que os órgãos estatais estão em conluio para a prática mais pérfida do poder: o totalitarismo.
Nesse sentido, passando pela lição de Michel Foucault, quando aborda a questão da tortura e das relações
de poder, conforme Laurindo Mékie Pereira:13
“A mais conhecida e importante influência certamente foi de Michel Foucault e sua visão de
que o poder é “algo que circula”, que“funciona em cadeia” e que “[...] nunca está localizado

12http://torturasnobrasil.blogspot.com.br/2012_11_01_archive.html
13A nova história política e o marxismo Revista Opsis, do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de
Goiás, Vol 8, n. 11, págs. 97-119.

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem” e em cujas malhas os “[...] indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer a sua ação, nunca são o alvo inerte [...] mas são sempre
centros de transmissão (FOUCAULT, 2000, p.183).”
Há verdadeiramente uma sincronia de poderes com movimentos antidemocráticos espraiando-se pelo
país. Ninguém duvida.
Ao juiz é lícito decidir conforme sua consciência e o faz fundamentadamente. Mas não nos foge ao conhe-
cimento que a indústria de sentenças14 está presente em seu dia a dia, onde o melhor julgador é o que pro-
duz mais sentenças, conclui mais processos, tudo monitorado por sistemas informatizados movimentados
por experts assessores. Neste contexto de obrigação e exigência é muito mais difícil decidir com justiça.

CONCLUSÃO
O inquérito policial 419/2016, oriundo da polícia federal e analisado pela justiça possui aproximadamente
cento e cinquenta folhas com inúmeros documentos simplesmente juntados de processo administrativo
anterior, ao qual são colados meia dúzia de “testemunhos”.
Mencione-se que a prova testemunhal é considerada, por muitos, a mais pobre de todas as provas e nela
reside a melhor intervenção interpretativa do julgador, mantendo-se na plenitude a sua livre convicção.
Também, de uma simples análise descomplicada, não há como se estabelecer um nexo causal próprio
das ações do Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, eleito e empossado em 2016, com fatos irregulares
iniciados no longínquo ano de 2008.
Interessante mesmo é que, nos autos, apesar de suas diligentes ações resumirem-se, como mencionado
a copiar/colar peças dos autos de outro órgão federal e juntar depoimentos, a autoridade preocupa-se em
justificar até mesmo o nome da operação policial, cujo teor lavrado lembra a descompostura de um pai em
seu filho por mal comportamento, tipo “você não me ouviu...agora vai ver...”.
Certamente não podemos imaginar algo mais sensacionalista e de apelo midiático do que isso e, quem
sabe, um exame mais acurado das provas teria proporcionado ao procurador da república que elaborasse
seu parecer conforme o direito e o juiz estaria convicto para o afastamento das premissas legais referentes
à prisão temporária.
Pois tal não aconteceu e o professor doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, Reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina foi preso em circunstâncias escandalosas ao prazer do aparato repressor estatal, que
atende pelo trinômio delegado-promotor-juiz.
Levado ao calabouço, nada, mas nada realmente justifica o tratamento que lhe foi dispensado. Sem men-
cionar a determinação da justiça federal para órgão estadual receber um preso temporário em penitenciária
(estabelecimento legalmente destinado a presos sentenciados). Ainda mais para o Departamento de Ad-
ministração Penal, sempre muito reticente em atender determinações da justiça estadual e receber presos
das polícias civil e militar.
Solto, no segundo dia, escreveu artigo publicado em 28 de setembro de 2017, em grande jornal de circula-

14 Os interessados no aprofundamento do tema fica a sugestão para pesquisar como funcionam as metas estabelecidas pelo Conselho
Nacional de Justiça – CNJ e sua repercussão entre os magistrados brasileiros.

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

ção nacional e replicado pelo site da Universidade Federal de Santa Catarina15, cuja introdução se repete
abaixo:
“Reitor exilado
Não adotamos qualquer atitude para obstruir apuração da denúncia
A humilhação e o vexame a que fomos submetidos — eu e outros colegas da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) — há uma semana não tem precedentes na história da
instituição. No mesmo período em que fomos presos, levados ao complexo penitenciário,
despidos de nossas vestes e encarcerados, paradoxalmente a universidade que comando
desde maio de 2016 foi reconhecida como a sexta melhor instituição federal de ensino su-
perior brasileira; avaliada com vários cursos de excelência em pós-graduação pela Capes
e homenageada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Nos últimos dias tivemos
nossas vidas devassadas e nossa honra associada a uma “quadrilha”, acusada de desviar
R$ 80 milhões. E impedidos, mesmo após libertados, de entrar na universidade.”
O currículo do professor doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo é invejável, mas o que é grande aos olhos
teve certamente um grande começo.
Pelos relatos que colecionamos de seus amigos, a tônica de sua vida é marcada pela passagem na asses-
soria do Senado Federal durante a Assembléia Nacional Constituinte, onde demonstrou o espírito concilia-
dor e agregador para contribuir às conquistas estampadas na Constituição Federal de 1988, afastando da
realidade brasileira as experiências totalitárias vividas no anterior regime de exceção.
Certamente colheu frutos de sua luta e o Brasil está há praticamente três décadas vivendo uma plenitude
de liberdade, tolerância e vida em sociedade com civilidade.
Mas há sempre os contrários em minoria, mas que ecoam forte contra toda a forma de liberdade e exercício
da democracia.
Esses amantes do totalitarismo, veneram ainda hoje o Manual do Interrogatório16, adotado pelas forças
repressoras do regime de 1964, do qual extraio importante passagem, que ilustra como uma fotografia o
que aconteceu em 14 de setembro de 2017, com o professor doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo:
“Tratamento de prisioneiros 1) Desde o momento da captura deve ser adquirida a ascen-
dência moral sobre o preso. Os prisioneiros devem ficar impressionados por se sentirem
em mãos de autoridades firmes, eficientes, duras, contudo treinadas, educadas e militar-
mente organizadas. 2) ... Os guardas nunca devem confraternizar com os prisioneiros. O
emprego da força física deve ser evitado e as algemas só utilizadas quando necessário.
As ordens devem ser dadas e cumpridas rápida e silenciosamente. 3) Logo que possí-
vel, depois da captura, os prisioneiros devem ser isolados; quanto mais um indivíduo for
privado de ver seus camaradas, menos encorajamento e apoio moral poderá receber. 4)
Os prisioneiros devem ser, cuidadosamente, revistados e deles retirados todos os seus
documentos e equipamentos de valor informativo, principalmente qualquer coisa que sirva
para ajudá-los a fugir. ... Se for experimentada alguma dificuldade na obtenção do nome do

15 http://noticias.ufsc.br/2017/09/jornal-o-globo-publica-artigo-do-reitor-luiz-carlos-cancellier/
16 MAGALHÃES, M. B. de. Documento: Manual do interrogatório História: Questões & Debates, Curitiba, n. 40, p. 201-240, 2004.
Editora UFPR

Em nome da inocência: Justiça | 31


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

preso, para este mister, cada um deles deve receber uma placa de identificação para usar
no pescoço (ou pulso), com um número que será marcado em suas roupas e pertences;
em alguns casos poderá o número ser pintado no corpo (testa, braço etc.) do prisioneiro.
Isto pode ser feito com uma tinta indelével, como a violeta genciana. A distribuição ou a
utilização indébita de qualquer pertence do preso é estritamente proibida. 5) Os prisionei-
ros não devem ter permissão para falar ou fumar, exceto nos interrogatórios, de acordo
com as necessidades, e devem receber o mínimo de água e alimentos, suficientes para
conservá-los num razoável estado de saúde. Há, algumas vezes, uma tendência natural de
sentir piedade de um prisioneiro com aparência infeliz e apavorada. isto deve ser evitado.”
Assim a repressão tratava os presos por ideologia no Movimento de 1964.
A Constituição Federal de 1988, desde seu embrião tão brilhantemente defendida pelo professor doutor
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, veio justamente para assegurar o tratamento digno às pessoas, coisas tão
básicas como o conforto espiritual negado ao Reitor da UFSC (segundo o padre William Barbosa Vianna,
ele e outro religioso foram impedidos ao menos quatro vezes pela Polícia Federal de oferecer-lhe apoio).
Nosso direito à cidadania está sendo colocado à prova, todos os dias e é preciso muita tenacidade para
defendê-lo. Disto, certamente, o jovem idealista assessor da Assembléia Nacional Constituinte tinha plena
consciência; já Reitor, quase trinta anos depois, posto à prova no dia de sua posse, agiu com espírito
democrático e conciliador ao chamar ao diálogo um grupo contrário que embaraçava a sessão solene
que inauguraria sua gestão. Assim, se demonstra que sua luta foi permanente contra todas as formas de
totalitarismo.
Tramita na Câmara desde o dia 10 de maio último, o Projeto de Lei 7596/17, do Senado, que define os cri-
mes de abuso de autoridade cometidos por servidores públicos e membros dos três poderes da República,
do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas e das Forças Armadas, tendo o Senador Roberto
Requião, do Paraná, batizado referido texto com o nome de Cancellier17.
Aprovado o texto e a homenagem, certamente o peso do nome do professor doutor Luiz Carlos Cancellier
de Olivo serve de alerta ao nosso momento de descuido das Instituições e será permanente inspiração às
gerações futuras na permanente luta contra o arbítrio e tirania.

17 http://dc.clicrbs.com.br/sc/colunistas/moacir-pereira/noticia/2017/10/senador-roberto-requiao-sugere-nome-do-reitor-cancellier-
-para-lei-de-abuso-de-autoridade-9943468.html

32 | Em nome da inocência: Justiça


Jorge Henrique Schaefer Martins1

Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Presidente da Quinta Câmara Criminal.


Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Especialista em Direito
Penal e Processual Penal pela Universidade Regional de Blumenau - FURB, Mestre em Ciências
Jurídicas Pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

PRENDER OU NÃO PRENDER


Critérios, adequação, necessidade – a escolha entre a prisão provisória,
as medidas cautelares e a liberdade

1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
Tempos difíceis os atuais. A exacerbação da criminalidade violenta, o crescimento e a evolução das organi-
zações criminosas, e o envolvimento da classe política em crimes de corrupção são fatores que provocam
fortes reações da sociedade, fazendo-a exigir resposta rápida e efetiva dos agentes estatais.
Esse estado de coisas mostra-se perigoso uma vez que permite a falsa percepção de que se deva agir com
maior rigor, optando por medidas mais gravosas em detrimento de soluções possíveis em conformidade
com as previsões legais e constitucionais. Abandonam-se, dessa forma, conceitos construídos ao longo
dos séculos de evolução humana, representantes de importantes conquistas históricas.
Dentro deste contexto, recentes episódios de aprisionamento cautelar vêm causando discussões acirradas
no mundo jurídico e na sociedade em geral. Medidas aplaudidas por boa parte da população - que as tem
como profiláticas e indispensáveis - são ao mesmo tempo condenadas por aqueles que enxergam nas mes-
mas ações evidentes abusos, utilização indevida e incorreta de institutos legais, supressão de garantias
constitucionais.
É difícil equacionar com equilíbrio essas posições e, para que seja possível estabelecer um norte a esse
respeito, importante incursionar sobre os aspectos legais e constitucionais que regulam a matéria – permi-
tindo, assim, uma avaliação técnica e desapaixonada.

Em nome da inocência: Justiça | 33


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

2 - MEDIDAS APLICÁVEIS A INDICIADOS OU ACUSADOS


Inicia-se enunciando que, a partir da vigência da Lei n. 12.403/2011, convive-se no país com três espécies
de prisão provisória, a saber:
(i) prisão temporária - regulada pela Lei n. 7.960/1989;
(ii) prisão em flagrante - com a nova disciplina dos arts. 301 a 310 do Código de Processo Penal, ao
que se acresce a audiência de custódia estabelecida pela Resolução CNJ 213/2015;
(iii) prisão preventiva - igualmente com novos regramentos contidos nos arts. 311 a 318 do Código de
Processo Penal;
Mais que isso, também em razão das alterações produzidas na legislação processual penal brasileira por
aquele mesmo normativo, criou-se um elenco de alternativas à prisão além da fiança - tendo-se por escopo
evitar, o mais possível, o encaminhamento antecipado ao cárcere. Tratam-se das medidas cautelares
diversas da prisão previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
Estabelecidas as modalidades de prisão, bem como a existência de formas de se deixar de aplicá-las,
mister o esclarecimento de seus requisitos e pressupostos.

2.1 - Prisão temporária


A prisão temporária foi criada pela Lei 7.960/1989, que estabelece três critérios para o seu cabimento: a. a
imprescindibilidade da medida para as investigações do inquérito policial; b. não ter o indiciado residência
fixa ou a existência de dúvidas sobre a sua identidade; e c. existência de fundadas razões de autoria ou
participação do indiciado em algum dos crimes expressamente previstos no rol contido no inciso III do
art. 1º (homicídio doloso; sequestro ou cárcere privado; roubo; extorsão; extorsão mediante sequestro; es-
tupro; atentado violento ao pudor; rapto violento; epidemia com resultado morte; envenenamento de água
potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte; quadrilha ou bando; genocídio em
qualquer de suas formas típicas; tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro; e crimes previstos
na Lei de Terrorismo).
O primeiro aspecto a ser destacado é que o requisito contido no inciso III de seu art. 1º é obrigatório, isto
significando que sem a presença de quaisquer dos crimes ali tratados, não se poderá cogitar da constrição
judicial representada pela prisão temporária. Trata-se de rol de crimes taxativo e não exemplificativo im-
plicando dizer que a autoridade (seja policial, integrante do Ministério Público ou do Poder Judiciário), não
está autorizada a ampliá-lo, a estendê-lo analogicamente a outros crimes.
De tal sorte, o requisito do aludido inciso III deve ser concomitante a um ou dois dos demais pressupostos
(incisos I e II) para que se possa aplicar a medida.
Assim, e é necessário repetir, qualquer pedido (representação ou requerimento) de prisão temporária de-
verá conter obrigatoriamente a menção à prática de um dos delitos expressamente listados na legislação,
sendo vedado que se avance além deles – uma vez que isso configuraria inegável analogia in malam
partem, o que não é admissível e caracterizaria arbitrariedade por evidente contrariedade ao texto da lei.
Quanto às demais exigências, observa-se que a “imprescindibilidade” da medida para as investigações
policiais é um argumento bastante aberto, cuja amplitude pode variar de acordo com a interpretação, sendo
assim uma circunstância passível de ensejar abuso.

34 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Logo, exsurge o questionamento: como definir essa imprescindibilidade? O mínimo que se deve exigir é que
a autoridade policial ou representante do Ministério Público, ao formular a representação ou requerimento,
respectivamente, indique com exatidão no que consiste essa necessidade absoluta que está a justificar o
pedido.
A simples utilização da fórmula legal é absolutamente inaceitável, pois na prática o juiz estaria aceitando
como razão do aprisionamento uma justificativa vazia, – e o que é pior: deixaria o indivíduo alvo da cons-
trição judicial sem saber o motivo determinante de seu aprisionamento.
Ademais, o que é “imprescindível” para a autoridade policial ou membro do Ministério Público pode não o
ser na avaliação da autoridade judiciária. Não se pode trabalhar com adivinhações ou mesmo abstrações.
A razão deve ser clara e, caso acolhida, indicada como realmente indispensável.
Os demais motivos para a prisão temporária, relativos às eventuais desinformações acerca da residência
ou identidade (inciso II), não necessitam de maiores esclarecimentos.
Outrossim, há que ser ressaltado que a prisão temporária é instrumento excepcionalíssimo, consistindo em
aprisionamento fundado em pouco mais que suspeita - uma vez que se está no nascedouro da investigação
criminal, período durante o qual não se tem segurança sobre os rumos que ela possa vir a tomar, sequer
no tocante à efetiva incriminação do “suspeito”. Por conta disso, trata-se da única modalidade de prisão
cautelar que tem um prazo certo e definido.
Não obstante o antes apontado, a prisão temporária ainda é uma prisão. Logo, além de representar o cer-
ceamento da liberdade de ir e vir do indivíduo, acaba por estigmatizar por “culpado” pessoa contra a qual
sequer existe segurança no inquérito policial, muito menos acusação formalizada, frente à uma sociedade
tão ávida por “justiça”- principalmente em razão do destaque dado pela imprensa em geral e pela reper-
cussão em mídias sociais.
No tocante à prisão temporária, outro aspecto merece ser considerado: Acompanha-se pela imprensa
notícias do encaminhamento de presos temporários a estabelecimentos penais destinados a presos de-
finitivos, em patente e abusiva ilegalidade, descumprindo a previsão contida no art. 3º da Lei 7.960/1989
que estabelece que os presos temporários deverão permanecer, obrigatoriamente, separados dos demais
detentos.
O argumento por vezes levantado é o da inexistência de local devido para esse recolhimento. Essa justifica-
tiva é absolutamente inaceitável. O preso temporário, como já mencionado, é um preso excepcionalíssimo.
Trata-se de pessoa contra quem há meros indícios – se é que existem – e, portanto, não pode sob hipótese
alguma receber tratamento de preso contra quem há fortes elementos de inculpação e motivação suficiente
para a permanência no cárcere - muito menos o procedimento dispensado a quem já foi submetido ao
processo penal e recebeu a condenação definitiva.
A falência do sistema prisional, resultado de décadas de inércia de atuação do poder executivo, não pode
servir de justificativa para as “dificuldades” no recolhimento de presos. Milita em favor do preso não só a
presunção de inocência, mas o direito à dignidade, e isso se mostra suficiente para afastar qualquer tenta-
tiva de validar o procedimento.
Além disso, a sanha acusatória e o frenesi da responsabilização criminal não podem ser considerados
como álibis para o Estado descumprir as determinações legais e, mais que isso, para desprezar princípios

Em nome da inocência: Justiça | 35


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

e garantias constitucionais.

2.2 - Prisão em flagrante


Na sequência há a prisão em flagrante, regulada pelos arts. 301 e seguintes do Código de Processo Penal.
Em um primeiro plano, exige-se a estrita observância das cautelas constitucionais representadas pelo
direito ao silêncio, direito à assistência familiar e advogado, informação a respeito da identificação dos
responsáveis por sua prisão e comunicação à autoridade judiciária competente (art. 5º, incisos LXIII, LXIV,
LXII, respectivamente).
O auto de flagrante deverá obedecer às prescrições relativas às tomadas de declarações do condutor e
testemunha(s), além do interrogatório do indiciado, com a posterior expedição de nota de culpa (art. 304,
caput e §§ 2º e 3º e, art. 306, caput, ambos do CPP).
Por força da Resolução n. 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, deverá ocorrer o encaminhamento do
preso à audiência de custódia, ocasião em que se observará o cumprimento dos preceitos constitucionais
e legais na lavratura do auto de prisão em flagrante, configuração ou não das situações de flagrância (art.
302, incisos I a IV do CPP) e, na continuidade, a análise da possibilidade-necessidade de sua convalidação
em prisão em preventiva, substituição do aprisionamento por medidas cautelares diversas ou mesmo a
simples soltura.
A partir da vigência da Lei n. 12.403/2011, a prisão em flagrante assumiu um caráter de transitoriedade, na
medida em que somente subsiste entre o momento da captura e o da análise de sua validade por parte da
autoridade judiciária.
Entendendo o juiz por observadas as determinações de ordem formal e constitucional, assim como presen-
te alguma das situações de flagrância, deverá dispor a respeito da continuidade ou não do aprisionamento,
fazendo-o fundamentadamente.
Deverá, de pronto, verificar se a hipótese encontra guarida na previsão contida no art. 313 e incisos e 314
do diploma processual penal, uma vez que, a exemplo do que se observou na digressão acerca da prisão
temporária, não poderá expandir as hipóteses além das que são previstas em lei.

2.3 - Prisão preventiva


Já a prisão preventiva pode vir a ocorrer em circunstâncias diversas.
Primeiramente quando se verifica a ocorrência de prisão em flagrante – vencida a análise das formalidades
constitucionais, processuais e da configuração de situação de flagrância – passa-se a perquirir acerca da
possibilidade/necessidade da decretação da prisão preventiva, por intermédio da conversão da primeira
nesta.
Nessa hipótese, é dado ao juiz fazê-lo de ofício, isto é, sem provocação da autoridade policial ou Ministério
Público1, como está autorizado a assim decidir no curso da ação penal (art. 311 do CPP).
Em segundo lugar, caso ainda não deflagrada a persecução penal e não se tratar de prisão em flagrante,
dependerá de representação do Delegado de Polícia ou requerimento do Promotor de Justiça ou querelante
1 Não é nula a decisão do Juízo singular que, de ofício, converte a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos
e fundamentos para a medida extrema, mesmo sem prévia provocação/manifestação do Ministério Público ou da autoridade policial.
Exegese do art. 310, II, do CPP. Precedentes deste STJ [...] (RHC 46.903/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, QUINTA TURMA, julgado em
05/06/2014, DJe 20/06/2014).

36 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

(art. 311 do CPP).


A prisão preventiva pressupõe obrigatoriamente a demonstração da existência do fato e de indícios sufi-
cientes de autoria, o que perfaz o chamado fumus commissi delicti. Ademais, para que se possa cogitar
do cerceamento da liberdade, há que se verificar a concomitância de ao menos um dos pressupostos do
art. 312 do CPP, quais sejam, a garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da
instrução criminal e garantia de aplicação da lei penal – elementos caracterizadores do periculum libertatis.
Assim, tem-se que apenas a presença simultânea do fumus commissi delicti e do periculum libertatis – em
no mínimo uma de suas formas – é que pode tornar válida a decretação de prisão preventiva.
A análise dos pressupostos do art. 312 compreende divergências interpretativas, principalmente no tocante
ao muito questionado critério da garantia da ordem pública, considerado abstrato e passível de manejo por
parte da autoridade judicante.
A respeito do tema, já pude considerar que a “garantia da ordem pública, em breves palavras, estará
configurada quando e se for possível concluir-se, diante dos elementos colacionados aos autos, tratar-se
de individuo com inclinação para práticas delituosas, a ser comprovada pelas condutas havidas em seu
passado e registradas como ações penais ou investigações policiais, decorrência da particularidade da
conduta quando da prática criminosa, reveladora do caráter perverso e de sua periculosidade, enfim,
quando se puder observar e afirmar que a manutenção em liberdade colocará em risco a tranquilidade no
meio social”2.
Ainda, Basileu Garcia3 considera que o magistrado, ao decretar a prisão preventiva, objetiva evitar que o de-
linquente volte a cometer delitos - ou porque se mostra acentuadamente propenso a práticas dessa estirpe
ou porque, estando solto, teria os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida.
Contudo, Antônio Magalhães Gomes Filho4 alerta que o argumento consiste na “superação dos limites
impostos pelo princípio da legalidade estrita”, fazendo com que se conceda ao Juiz “um amplo poder
discricionário não sujeito a limitações outras que não sua ‘sensibilidade’”.
Eugênio Pacelli de Oliveira5 assevera “que a prisão para a garantia de ordem pública não se destina a pro-
teger o processo penal, enquanto instrumento de aplicação da lei penal. Dirige-se, ao contrário, à proteção
da própria comunidade, coletivamente considerada, no pressuposto de que ela seria duramente atingida
pelo não aprisionamento de autores de crimes que causassem intranquilidade social”.
Esclarece que o termo “garantia da ordem pública” comporta extremas dificuldades de definição, na medi-
da em que pode se prestar “a justificar um perigoso controle da vida social, no ponto em que se arrima na
noção de ordem, e pública, sem qualquer referência ao que seja efetivamente desordem”.
Comenta, ainda, que no Brasil a jurisprudência tem se mostrado ao longo dos anos ainda vacilante, embora
reconheça inclinação “pelo entendimento da noção de ordem pública como risco ponderável da repetição
da ação delituosa objeto do processo, acompanhado do exame acerca da gravidade do fato e de sua
repercussão”.
Aponta, igualmente, a existência de interpretações no sentido “de se aferir o risco à ordem pública a partir
2 MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito criminal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2004. p. 110.
3 GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal, volume V. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 169/170.
4 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 67.
5 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de Curso de Processo Penal, 16 ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 550-552.

Em nome da inocência: Justiça | 37


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

unicamente da gravidade do crime praticado, a reclamar uma providência imediata por parte das autori-
dades, até mesmo para evitar o mencionado sentimento de intranquilidade coletiva que pode ocorrer em
tais situações”
Por outro lado, Alexandre Morais da Rosa6 critica de forma contundente o uso da “garantia da ordem
pública” como fundamento para a prisão preventiva, entendendo cuidar-se de argumentos de retórica ma-
nipuláveis.
Finalmente, e ainda sobre a questão, interessante mencionar o que disse o Ministro Ayres Brito, quando
atuante no Supremo Tribunal Federal:
O conceito jurídico de ordem pública não se confunde com incolumidade das pessoas e do patrimônio (art.
144 da CF/1988). Sem embargo, ordem pública se constitui em bem jurídico que pode resultar mais ou
menos fragilizado pelo modo personalizado com que se dá a concreta violação da integridade das pessoas
ou do patrimônio de terceiros, tanto quanto da saúde pública (nas hipóteses de tráfico de entorpecentes
e drogas afins). Daí sua categorização jurídico-positiva, não como descrição do delito nem cominação de
pena, porém como pressuposto de prisão cautelar; ou seja, como imperiosa necessidade de acautelar
o meio social contra fatores de perturbação que já se localizam na gravidade incomum da execução de
certos crimes. Não da incomum gravidade abstrata desse ou daquele crime, mas da incomum gravidade
na perpetração em si do crime, levando à consistente ilação de que, solto, o agente reincidirá no delito.
Donde o vínculo operacional entre necessidade de preservação da ordem pública e acautelamento do meio
social. Logo, conceito de ordem pública que se desvincula do conceito de incolumidade das pessoas e do
patrimônio alheio (assim como da violação à saúde pública), mas que se enlaça umbilicalmente à noção
de acautelamento do meio social.7
O tema é controvertido, mas o que se observa é a necessidade de verificação, em cada caso concreto, do
efetivo risco de que o agente possa vir a reiterar em práticas criminosas e que desse comportamento adve-
nha perigo específico a integrantes da sociedade particularmente identificados, ou mesmo à sociedade em
geral - considerada a gravidade concreta das ações criminosas e suas consequências (práticas violentas
ou perniciosas).
A explicitação do convencimento do juiz a respeito é obrigatória, devendo colocar suas razões de convic-
ção de forma clara a permitir eventual irresignação, como apreciação pela superior instância.
6 O fundamento da ordem pública é retoricamente manipulável, afinal de contas qual a conduta criminalizada que não alterou a dita
“ordem social”? Assim, o art. 312 do CPP utiliza-se de termos claramente ‘vagos’ e ‘ambíguos’ – como já dito (18.4.4.4) – para
acomodar matreiramente em seu universo semântico qualquer um, articulando-se singelos requisitos retóricos, valendo, por todos, a
anemia semântica do art. 312 do CPP: ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal, assegurar a aplicação da
lei penal. De fato, àquele que conhece um pouquinho da estrutura linguística pode construir artificialmente tais pseudo requisitos, cuja
falsificação – pressuposto –, diante da contenção, será inverificável.
Tanto assim que o STF editou as Súmulas 718 (A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação
idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada) e 719 (A imposição do regime de cum-
primento mais severo do que pena aplicada permitir exige motivação idônea.), demonstrando que a imputação, em abstrato, não é
fundamento capaz de autorizar a prisão cautelar. Entretanto, a maioria dos Tribunais manipula retoricamente as premissas para fazer
prevalecer a mentalidade autoritária, com ampla utilização de prisões cautelares. O STJ entende possível a prisão para garantia da
ordem pública nos casos de reiteração delitiva, participação em Organizações Criminosas, gravidade em concreto da conduta, “peri-
culosidade social do agente”, ou pelas circunstâncias (modus operandi) em que foi praticada a conduta imputada (STJ, HC 311.909;
RHC 054.7S0; HC 003.660; HC 312.368). (ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed. rev.
atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 585/586).
7 HC 101.300, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 5-10-2010, Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, DJE 18-11-2010.

38 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Não basta, como tem sido repelido pela jurisprudência, a mera indicação de formulismos legais ou abstra-
ções relativas ao dano que referida conduta traz à sociedade. Considerações genéricas, aplicáveis indistin-
tamente a quem quer que esteja sendo investigado ou acusado de crime, não têm o condão de determinar
ou manter alguém encarcerado.
Situação similar se dá no tocante ao pressuposto da garantia da ordem econômica. Idênticos riscos hão
de ser identificados, não obstante haja restrição aos crimes que efetivamente possam ocasionar abalos na
ordem econômica, não se estendendo aos crimes contra a ordem tributária em geral.
A conveniência da instrução criminal, de mais fácil identificação, encontra-se diretamente relacionada à
coleta de provas. Isso significa que, em se observando ações do agente no sentido de impedir, dificultar ou
alterar elementos probatórios, poderá vir a ser determinada a sua prisão. Mas ressalta-se que sua duração
é limitada, visto que somente será admissível enquanto não houver sido colhida ou estiver sendo produzida
a prova. Finda a atividade, exaure-se a necessidade.
De outra parte, a suspeita ou a mera hipótese de que possa vir a acontecer algum embaraço à prova não
podem ser admitidos como fundamentos para a decretação da prisão por essa motivação. Deve existir
razão definida, nítida, a ser apontada pelo juiz na imposição da constrição judicial, sob pena de se decretar
o encarceramento de alguém por mera ilação.
Por fim, a garantia da aplicação da lei penal é o último dos critérios admissíveis para a decretação da prisão
preventiva.
Para o seu reconhecimento é necessária a presença de indícios de que o inculpado possa vir a tentar fugir
do cumprimento de eventual sanção penal de caráter prisional que contra ele possa ser aplicada - manifes-
tada por sua não localização, por sua fuga do distrito da culpa, ou por atitudes que demonstrem que esteja
pretendendo se ocultar.
Novamente não bastam suspeitas, deve existir demonstração da situação, bem como a insuficiência de
medidas outras (cautelares) que serão adiante abordadas.
Vê-se, pois, que após verificada a legalidade da prisão em flagrante competirá ao juiz na audiência de
custódia (ou em gabinete, em locais onde ainda não se viu implantada), proceder a verificação da presença
dos requisitos e pressupostos da prisão preventiva, para sobre o tema decidir.

3 - MEDIDAS CAUTELARES PROCESSUAIS PENAIS


Entretanto, a matéria não se resume a isso, uma vez que a legislação que instituiu as medidas cautelares
diversas da prisão impôs um estudo suplementar: presentes os motivos que poderiam em tese sustentar
o recolhimento ao cárcere, imperativa a verificação da efetiva necessidade do aprisionamento.
A reforma promovida pela Lei n. 12.403/2011 provocou a superação de uma antiga distorção do Código de
Processo Penal: a bipolaridade das medidas cautelares de natureza pessoal.
Conforme bem menciona Renato Brasileiro Lima, durante anos, o sistema processual penal ofereceu ao
magistrado apenas duas opções: a prisão cautelar ou a liberdade provisória.8
Acrescenta que seguindo a orientação do direito comparado, a alteração legislativa ampliou de maneira
significativa o rol das medidas cautelares, proporcionando ao juiz a escolha da providência mais ajustada
ao caso concreto, dentro de critérios de legalidade e proporcionalidade.
8 LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal, vol I. Niterói: Impetus, 2012. p. 1118.

Em nome da inocência: Justiça | 39


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Quanto ao princípio da proporcionalidade, no dizer de Jorge Miranda9 verifica-se que contém três subprin-
cípios: necessidade, adequação e racionalidade, ou proporcionalidade strictu sensu.
Revela o prestigiado autor lusitano que a necessidade está representada pela existência de bem juridica-
mente protegido e de circunstância que determine intervenção ou decisão; a adequação, sob a ótica de se
ter a providência como própria ao objetivo colimado, ao propósito inserido na norma; e a racionalidade, ou
proporcionalidade strictu sensu, como apanágio da justa medida, da localização de providência que não
esteja além ou aquém do necessário para o alcance do resultado devido.
Assim, mesmo que se admita a título precário a presença dos pressupostos do fumus commissi delicti e do
periculum libertatis, tendo-se em consideração que as razões motivadoras da prisão preventiva são idên-
ticas às que dão legitimidade à aplicação de quaisquer das medidas cautelares preconizadas no art. 319
do CPP, deve-se sopesar o caso concreto, considerando a condição do agente como o grau de lesividade
decorrente de cada uma das medidas cautelares possíveis, para aí se decidir pela imprescindibilidade da
prisão ou pela suficiência de sua substituição por medidas diversas menos gravosas.
A constrição preventiva tem caráter de excepcionalidade e é imprescindível a demonstração de sua real
indispensabilidade em cada caso concreto, sendo esse o entendimento que prevalece nas Cortes Superio-
res aí incluído o Supremo Tribunal Federal10, que confirma a condição incomum da prisão cautelar, que não
pode ser vista como antecipação da punição.
A par disso existe entendimento de que obrigatoriamente as medidas cautelares alternativas do art. 319
devem ser analisadas antes de se cogitar a decretação da prisão preventiva – cumprindo, assim, a vontade
legislativa extraída do conteúdo dos dispositivos reguladores do tema, trazidos ao mundo jurídico proces-
sual penal pela reforma antes mencionada.
Essa é a inteligência do artigo 282 do CPP, que em seu § 6º estabelece que “a prisão preventiva será deter-
minada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”.
Do mesmo modo, é a interpretação que deflui do artigo 310, o qual dispondo acerca da prisão em flagrante
estabelece a possibilidade de sua conversão em prisão preventiva, somente quando “se revelarem inade-
quadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão” (inciso II de referido artigo).
Certo é que os Tribunais têm relativizado essa condição, ao disporem que em se fazendo presentes os
9 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988, t. 4. p. 207.
10 A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA DE NATUREZA EXCEPCIONAL. - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de
caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em
face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência
material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões
justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão
da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP.
Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A
PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PU-
NIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como
instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em
bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações
sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que
sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal
desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO
CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão
cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. (HC 115613, Relator: Min. CELSO DE MELLO,
Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, julgado em 25/06/2013).

40 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

requisitos e pressupostos da prisão preventiva, automaticamente se afasta a possibilidade da substituição


por medidas cautelares.
Trata-se, no entanto, de meia verdade, pois também se necessita do reconhecimento dos pressupostos da
prisão preventiva para se aplicar qualquer das medidas cautelares.
É imprescindível, então, a expressa menção de que a condição pessoal do indiciado/acusado, o contexto da
prática criminosa, enfim, toda a situação que envolve os aspectos de que envolvam a cautelaridade a ser
aplicada justificam a opção pela prisão, sendo inviável a aplicação da providência menos gravosa.
De qualquer sorte, é aspecto que será abordado a seguir.
Deve ser mencionado que essa modificação legislativa – que ampliou as perspectivas no tocante às medi-
das a serem adotadas durante a investigação ou processo-crime – ainda encontra resistência por parte de
integrantes do Ministério Público e Judiciário, apegados à sistemática anterior de aprisionamento. Não raro
se verifica a escolha da prisão como alternativa única à prevenção de recalcitrância criminosa, não obstan-
te o elenco de medidas previstas permita atingir o mesmo objetivo sem os gravames ao indiciado/acusado,
invariavelmente sujeito à condições absolutamente insatisfatórias nos estabelecimentos prisionais, e com
menor ônus ao Estado e idêntica eficiência.
Olvidam-se que as medidas cautelares consistem em instrumento que não cerceia de forma absoluta, mas
restringe a liberdade do indiciado ou acusado, tendo caráter provisório e importando em controle e acom-
panhamento da vida do alvo da deliberação, enquanto perdurar a determinação.
Verifica-se que, a exemplo do que ocorre no tocante à prisão preventiva, as medidas cautelares possuem
finalidades específicas, a saber: assegurar a aplicação da lei penal; garantir a higidez da investigação ou a
instrução criminal e impedir a reiteração das práticas delitivas.
Deve-se observar, igualmente, a necessidade e a adequação, atentando-se para a salvaguarda das situ-
ações antes descritas, observando-se a imposição de medidas que se mostrem necessárias e estejam
conformes com a gravidade do crime pretensamente cometido, além de se dever observar as condições
pessoais do indiciado ou acusado.
Previstas em número de nove, apresentam diversas conformações:
O comparecimento em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar as ati-
vidades – controle exercido sobre a vida do indiciado/acusado, obrigando-o a dar satisfações sobre atos
de sua vida.
Proibição de frequência ou acesso a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao
fato, deva o investigado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas in-
frações – objetiva impedir ou dificultar a ocorrência de novos crimes, privando o agente de se deslocar
a locais onde sua presença poderia ocasionar tumulto, ou por se tratar de local onde haveria o risco de
continuidade de condutas ilícitas.
Proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato,
deva o investigado ou acusado dela permanecer distante – evita a reiteração de conduta criminosa contra
pessoa específica, como previne eventual intimidação à vítimas e testemunhas.
Proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniência ou necessária para a in-
vestigação ou instrução – restringe parcialmente a liberdade de ir e vir, mantendo controle sobre a pessoa

Em nome da inocência: Justiça | 41


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

do indicado/acusado.
Recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha
residência e trabalhos fixos – constrição parcial da liberdade, obrigando o recolhimento em casa em perí-
odos determinados.
Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando
houver justo receio de sua utilização para prática de infrações penais – a restrição de direitos nessa
hipótese alcança o exercício da atividade pública ou profissional, e está direcionada à possibilidade de
recalcitrância desde que se dê continuidade às referidas atividades, cuidando-se de medida preventiva
para crimes como corrupção, concussão, prevaricação, peculato, ou mesmo para crimes praticados no
exercício do comércio, dentre outros.
 Internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça,
quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração – que na
prática implica em prevenção pela aplicação provisória de medida de segurança, a ser realizada em local
apropriado, separado da prisão comum.
Fiança nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obs-
trução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial – instituto já existente na
conformação jurídico processual penal e que é revigorado, permitindo a liberdade mediante a contrapres-
tação financeira, e assumidas as obrigações previstas nos artigos 327, 328 e 341 do Código de Processo
Penal.
Monitoração Eletrônica – maneira de controlar o deslocamento do indiciado/acusado, a monitoração ele-
trônica surge como alternativa ao aprisionamento, dando ao Estado condições de controlar, mesmo à dis-
tância, a vida de quem está sob restrição sem a necessidade do custo de manutenção no presídio. Trata-se
da tão conhecida tornozeleira eletrônica.
Faz-se possível, ainda, a prisão domiciliar, na exata dicção do art. 317 do Código de Processo Penal, a
qual consiste no recolhimento em casa, permitindo a saída unicamente para o exercício do trabalho ou
estudo. Teve as hipóteses de aplicação ampliadas pelo art. 318 do mesmo diploma legal, que estabeleceu
a possibilidade para as hipóteses de ser o agente maior de 80 (oitenta) anos (inciso I), estar extremamente
debilitado em razão de doença grave (inciso II), ser pessoa imprescindível aos cuidados especiais a criança
menor de 6 (seis) anos ou pessoa com deficiência (inciso III), tratar-se de gestante (inciso IV), for mulher
com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos (inciso V), o mesmo direito a homem, caso seja o
único responsável pelos cuidados de filho de até 12 (doze) anos incompletos (inciso VI), devendo ocorrer
a comprovação de tais situações.
Ressalte-se que por mais brandas que possam ser ou parecer, principalmente se confrontadas com a
hipótese de prisão, representam uma forma de limitar a liberdade de quem é alvo de investigação ou ação
penal, e não podem vir a ser implementadas sem que se verifique a presença do fumus commissi delicti
e periculum libertatis, além de ser indispensável o convencimento e a explicitação da concomitância dos
pressupostos autorizadores da medida.

4 - CONCLUSÃO

42 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Toda e qualquer providência no âmbito criminal que implique em restrição à liberdade ou restrição aos atos
da vida civil deve encontrar correspondência na prova, ter suporte em elementos suficientes de convicção,
não podendo ser lançada pela autoridade judiciária sem a necessária reflexão.
A determinação de encarceramento ou a imposição de medidas restritivas é ato de extrema responsabili-
dade, posto conflitar com o princípio da presunção de inocência consagrado na Constituição Federal e na
Declaração Universal dos Direitos do Homem, o qual somente pode ser excepcionado quando presentes
elementos suficientemente fortes a justificá-lo.
Permite-se, assim, burlar licitamente, ou na melhor terminologia, relativizar os direitos e garantias funda-
mentais relativos à liberdade e presunção de inocência, privilegiando-se o respeito ao Direito constitucional
de segurança concedido à população em geral, consequente ao direito-dever de punir do Estado - desde
que presentes os requisitos indispensáveis à prisão ou imposição de medidas cautelares, devendo as
razões motivadoras estarem devidamente explicitadas e individualizadas.
Em resumo, a imposição do aprisionamento antes do estabelecimento definitivo da culpa - representada
pelo trânsito em julgado de sentença criminal condenatória - exige a presença de fortes elementos ati-
nentes à ocorrência de prática criminosa e indicação de envolvimento em sua consecução, assim como a
constatação de que a permanência em liberdade poderá trazer sérias consequências à sociedade em geral
ou pessoas em particular, à higidez da prova, ou à segurança de posterior execução penal.
Mas não é só isso, obrigatoriamente deverá ocorrer a verificação da possibilidade de se optar por solução
diversa, menos gravosa ao indivíduo mas igualmente eficaz à prevenção dos aspectos relacionados à
sociedade, ao processo e à garantia da execução do provimento jurisdicional, representada pelas medidas
cautelares do art. 319.
Deve-se ter em mente, ainda, que mesmo em se afastando a possibilidade da prisão, a opção pela aplica-
ção de tais medidas deve decorrer da constatação de sua efetiva necessidade e conveniência, posto não
se tratar de providência que possa ser implementada livremente, sem a observância das exigências legais.
A prisão cautelar ou as medidas cautelares, portanto, não são escolhas da autoridade judicial, são alterna-
tivas previstas na legislação processual penal para situações excepcionais, e como tal devem ser tratadas.

BIBLIOGRAFIA:

GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal, volume V. Rio de Janeiro:


Forense, 1945.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo:
Saraiva, 1991.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal, vol I. Niterói: Impetus, 2012.

MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito crimi-
nal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2004.

Em nome da inocência: Justiça | 43


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988,
t. 4.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, 16 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed.
rev. atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RHC 46.903/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, QUINTA
TURMA, DO STJ, julgado em 05/06/2014, DJe 20/06/2014.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, HC 101.300, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma do
Supremo Tribunal Federal, julgado em 5/10/2010 DJe 18-11-2010.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, HC 115613, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma
do Supremo Tribunal Federal, julgado em 25/06/2013.

44 | Em nome da inocência: Justiça


Deivid W. dos Prazeres1
Hélio Rubens Brasil2
Nívea M. D.Cademartori3

(Advogados do Reitor Luiz Carlos


Cancellier de Olivo)

PROCESSO PENAL DO ESPETÁCULO E A ESCOLA


QUE NÃO ENSINOU NADA
Deivid Willian dos Prazeres1
Hélio Rubens Brasil2
Nívea Maria Dondoerfer Cademartori3

1 - INTRODUÇÃO
A interação entre o direito e a mídia é um dos assuntos mais complexos da atualidade, sendo objeto de
inúmeros trabalhos acadêmicos e obras especializadas, que acendem o debate a respeito das questões
que envolvem este delicado tema.
Sabe-se, não é novidade, que a mídia possui demasiado poder dentro da sociedade moderna, represen-
tando, por esta razão, uma ameaça real e concreta a todos que pretendem e se atrevem a confrontá-la.
Não obstante seu relevante papel cívico, no sentido de socializar conhecimento e possibilitar que o cidadão,
por meio da informação, exerça controle sobre o cenário político em que se encontra inserido, a mídia têm
desempenhado questionável função ao (des)informar situações cotidianas de maneira espetacular, criando
o ambiente propício para intensificação de uma cultura punitiva que clama por leis penais mais rígidas e a
flexibilização de garantias fundamentais como resposta mais severa aos fatos que causam grande como-
ção social.
Seguindo os passos ditados por um sistema econômico que prima essencialmente pelo lucro, os meios de

1 Deivid Willian dos Prazeres - Diretor-Tesoureiro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina-AACRI-
MESC. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SC. Advogado criminalista.
2 Hélio Rubens Brasil - Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina-AACRIMESC. Membro
efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB. Advogado criminalista.
3Nívea Maria Dondoerfer Cademartori - Membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina-AACRI-
MESC. Advogada Criminalista.

Em nome da inocência: Justiça | 45


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

comunicação se tornaram grandes conglomerados empresariais4 e transformaram a informação - um bem


imprescindível numa sociedade verdadeiramente livre e democrática - em produto para comercializá-la em
um novo e concorrido nicho mercadológico5.
A partir daí, a imprensa deixa de exercer sua função principal - que é disseminar informações - e desvia-se
de sua finalidade cívica para exercer exclusivamente uma atividade de cunho comercial, em que o sucesso
é mensurado pela obtenção do maior índice de audiência.
De acordo com Nelson Werneck Sodré6, o segredo para o bom desenvolvimento da imprensa concomitan-
temente ao sistema capitalista consiste, basicamente, em dois itens: a rapidez com que as informações
chegam aos espectadores e o maior número o possível de receptores das respectivas informações.
Nesse contexto vislumbra-se a adesão em massa dos diversos meios de comunicação a praticas cada vez
mais sensacionalistas7, como a exploração de títulos espetaculares e a larga cobertura a crimes e outras
anomalias sociais8.
Percebendo a eficiência da nova roupagem utilizada, notadamente em virtude da escolha pelo público alvo
do entretenimento ao invés da pura e simples informação, a imprensa imerge sua atividade em um gigan-
tesco espetáculo midiático.

2 - O PROCESSO PENAL
Embora seja inegável o avanço vivenciado pela humanidade desde o momento em que o homem optou por
abdicar de sua individualidade para viver em conjunto com os seus pares, é sabido que a vida em socieda-
de, desde os tempos mais remotos, é marcada por inúmeros conflitos.
Por ter optado abandonar o lado primitivo para exercer sua existência como um ser politizado, o homem é
obrigado a suprimir com todas as suas forças alguns sentimentos intrínsecos à sua própria natureza, como
o insaciável desejo de punir e se vingar dos indivíduos transgressores da ordem social.
É nesse ínterim que de acordo com Aury Lopes Junior9:
O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e o dever) de proteger a
comunidade e também o próprio réu, como meio de cumprir sua função de procurar o bem
comum, que se veria afetado pela transgressão da ordem jurídico-penal, por causa de uma
conduta delitiva.
Em outras palavras, o Estado, como ente jurídico, elimina o sentimento de vingança privada de cada ci-
dadão e avoca para si a tutela penal, exercendo-a por meio de um aparelho pelo qual os infratores são
devidamente julgados e punidos: o processo penal.
4 Segundo Bordieu (1997, p. 57/58): “A concorrência econômica entre as emissoras ou os jornais pelos leitores e pelos ouvintes ou,
como se diz, pelas fatias de mercado, realiza-se concretamente sob a forma de uma concorrência entre os jornalistas, concorrência
que tem seus desafios próprios, específicos, o furo, a informação exclusiva, a reputação na profissão, etc.”
5 Para Ignacio Ramonet (2007, p. 15): “A mídia está sujeita a uma concorrência cada vez mais feroz; as pressões comerciais se
intensificam. Muitos quadros dirigentes da mídia vêm doravante do universo empresarial e não mais do mundo jornalístico. Eles são
menos sensíveis à veracidade da informação. Aos olhos deles, o new business, o mercado da informação, é, antes de tudo, um meio
de gerar lucros.”
6 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999
7 RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p.66
8 CAPELETO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1994. p. 15
9 LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional). Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p.2

46 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Para que esta poderosa prerrogativa - de punir, castigar, sancionar alguém – seja genuinamente exercida, é
imprescindível a existência prévia deste instrumento processual que, na lição de Aury Lopes Junior, “como
instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece legítima para imposição de pena” 10.
Assim como a civilização humana, o processo penal passou ao longo da história por inúmeras transfor-
mações. Na medida em que o homem ia se tornando mais polido, mais civilizadas se tornavam as normas
processuais penais da sociedade em que habitava.
Não é por outro motivo que diversos estudiosos defendem que o referido regramento, que regula o sistema
punitivo, constitui verdadeiro termômetro11, segundo o qual é possível determinar, dentre outras coisas, o
grau de civilidade de determinado meio social.
No Brasil, especificamente, o processo penal encontra-se regulamentado pelo Decreto-lei 3.68912, de
1941, cujo nascedouro data da época em que vigorava em nosso país o regime autoritário instituído por
Getúlio Vargas - o Estado Novo.
Por vivermos atualmente sob a égide de um Estado Democrático de Direito, é inconcebível que o processo
seja conduzido sem observar os dispositivos contidos na Constituição Republicana promulgada em outu-
bro de 198813.
No texto do referido diploma constitucional foram elencadas uma série de garantias instituídas com o fim
de frear o autoritarismo inerente à natureza do próprio ente estatal e de proteger o indefeso e hipossuficien-
te cidadão comum deste poderoso Leviatã.
Dentre as referidas garantias, cujos enunciados compõe princípios norteadores de nosso ordenamento
jurídico14, encontra-se, além o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de
inocência, o estado de liberdade como regra constitucional, direito fundamental este que, no contexto de
exceção, é o primeiro a ser vilipendiado e olvidado por autoridades públicas inebriadas pelo poder.

3 - O DIREITO NO CONTEXTO DO ESTADO DE EXCEÇÃO


Em realidade, o contexto em que se define todo o aparato institucional de normas jurídicas constituídas
pelos diversos princípios, leis e garantias fundamentais, desenha-se sob a ótica de um direito sujeito ao
que, por alguns, é chamado de Estado de Exceção.
Entendendo melhor este conceito pode-se observar que o Estado de Exceção foi concebido como um me-
canismo jurídico/político poderoso o suficiente para, por vezes, deixar em estado de latência as próprias
normas jurídicas e os processos políticos democráticos diante de uma suposta ameaça ao Estado de
Direito mas, paradoxalmente, sem romper a própria ordem jurídica.
Por essa e outras razões que a concepção do Estado de Exceção se remete à idéia clássica definida por

10 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. O fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade garantista. Jus Navigandi,
Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1060>. Acesso em: 30 out. 2017.
11 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento, requisito e princípios gerais das prisões cautelares. Disponível em: http://www.ambito-juridico.
com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5060. Acesso em: 30 out. 2017.
12 BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Brasília, DF. Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 30 out. 2017.
13 BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil de1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 30 out. 2017.
14 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 24

Em nome da inocência: Justiça | 47


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Carl Schmitt como teoria da soberania15, para quem a ideia última de poder soberano e o que define seu
autêntico detentor é a identificação daquele que detêm o poder de decidir sobre a própria exceção ao direito
constituído, vale dizer, entre o direito e o não direito.
O conceito de soberania, nessa esteira, pressupõe que a hipotética excepcionalidade do Direito não estaria
prevista na ordem jurídica vigente, e, portanto, não poderia ser por ela abrangida, de tal maneira que cabe-
ria ao soberano a decisão tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como o que
deve fazer para saná-lo.
Assim, para Schmitt, o funcionamento da ordem jurídica, baseia-se, em última instância, em um dispo-
sitivo (estado de exceção) que visa tornar a norma aplicável suspendendo temporariamente sua eficácia.
Entretanto, a idéia de Schmitt baseava-se nos dispositivos explicitamente previstos nas constituições, tais
como estado de sítio ou estado de emergência, mas na realidade, a exceção ao direito dentro de uma ordem
juridicamente vigente, é mais insidiosa e, portanto, perigosa do que se poderia supor.
É Giorgio Agamben, quem atualiza e melhor define esse fenômeno (estado de exceção) para trazê-lo a
realidade atual.
Segundo o autor, com o decorrer do tempo a ideia de estado de exceção distanciou-se gradualmente das
situações de emergência tradicionalmente expostas nos contextos de guerra, passando a ser invocada em
contextos de crises políticas e econômicas, em situações de calamidade pública, de grandes movimentos
sociais, até ser plasmada como uma verdadeira técnica de ação de governos ao invés do que um explícito
conjunto de medidas excepcionais.
Isso significa dizer que a exceção do direito é ínsita a ele próprio, em estado de latência dentro da própria
ordem jurídica vigente, razão pela qual uma ordem jurídica vigente pode ter sua validade e eficácia sus-
pensas ou moduladas sem comprometer formalmente a própria ordem jurídica, declarando o não direito a
partir do próprio direito e, assim, caracterizando de forma definitiva o exercício do poder soberano.
No contexto Brasileiro atual, a população acostumou-se a assistir, sobretudo nos meios de comunicação,
declarações de estado de sítio, estado de defesa e intervenções federais diante das mais diversas situ-
ações, o que extrapola ainda mais o caráter insidioso e manipulável da técnica de exceção descrita por
Agamben.
Aliás, o próprio autor exemplifica o posicionamento do ex-presidente americano George Bush quando, após
os ataques às torres gêmeas, passou a referir-se constantemente como Commander in chiefofthearmy,
em uma clara reivindicação de poderes soberanos nos termos de Schmitt, pois era necessário abrir uma
“guerra ao terror”.
Este é o mote fundamental para excepcionar uma série de garantias constitucionais dentro da própria
ordem democrática vigente sem comprometer, aparentemente, o estado de direito tal como proclamado
na constituição.
No caso brasileiro, basta trocar a expressão “guerra ao terror” por “guerra à corrupção” para se ter o ce-
nário perfeito de distorções, modulações ou mesmo suspensão de várias garantias processuais penais em
nome de um suposto combate definitivo para erradicar a corrupção do país.
E aquilo que começou como uma guerra a um certo movimento político, insuflada pela mídia e com am-
pla repercussão de movimentos sociais, culminou com mais um trauma institucional no impedimento de
15 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 8.

48 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

um governo e a posterior perda de controle dos próprios sistemas de justiça (poder judiciário, ministério
púbico, polícia federal, etc) na consecução do combate definitivo contra toda forma de possível corrupção
política ou econômica.
Todo esse fenômeno, no entanto, se desenvolve numa aparente normalidade institucional, sob a égide de
uma constituição democrática e a vigência de um direito supostamente garantista.
A exceção, portanto, não implica a extinção do direito, mas sim o seu temporário afastamento ou suspen-
são sob um estado de normalidade.
Nas palavras e Agamben:

“Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico
e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença,
em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não
significa a sua abolição e a zona de autonomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos,
não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.”16
O autor se contrapõe, com base na ideia do que realmente seria um estado de exceção, à teoria se Schmitt
de equivalência entre poder soberano e o Poder Executivo, como potência externa ao direito; assim como a
conceituação de soberania desenvolvida por Hans Kelsen, no sentido de que o Tribunal Constitucional seria
a autoridade máxima detentora de competência para a interpretação da norma suprema do ordenamento
jurídico.
Isso porque17:
“Se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não e, então, nem um conceito
exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, (...) ela é a estrutura
originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão.”
Em última análise, a distinção schmittiana entre a situação de normalidade institucional e a hipótese excep-
cional de fratura pura e simples é refutada por Agamben que sustenta a indiscernibilidade entre o estado
de direito e o estado de exceção.
Segundo Agamben, a possibilidade de que o soberano venha a relativizar ou suspender as garantias cons-
titucionais revela – tal como afirmado por Schmitt – a decisão como elemento jurídico determinante, capaz
de (des)autorizar a aplicação das normas jurídicas.
Assim, afirma o autor que “o estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar possível
a aplicação.18
Segundo Walter Marquezan Augusto, sob a égide do estado de exceção:
“o soberano é o único intérprete com o poder de decisão, consequentemente, por ser o
único com o poder para interpretar, é que se pode dizer que o texto enquanto tal é suspen-
so, fica fechado para leituras, e o que vale é a vontade soberana do intérprete”.19
Destarte, a atualidade e relevância desse tema acarretou alguns trabalhos acadêmicos voltados a esta
16 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 39.
17 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 35.
18 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 58.
19 AUGUSTO, Walter Marquezan. Desativar o direito: um caminho a partir da obra de Giorgio Agamben. Dissertação submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2014, p. 68.

Em nome da inocência: Justiça | 49


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

estranha realidade vivenciada no Brasil atual e que Agamben teria identificado, em hipóteses extremas e
normalmente marcadas pelo enfrentamento de problemas jurídico-políticos de grande magnitude, havendo
aqui uma espécie de “desativação” ou “inoperosidade” do Direito.
Essa situação extrema – o estado de exceção – é declarada pelo soberano, não necessariamente situado
no Poder Executivo mas no caso brasileiro, pelos sistemas de controle e justiça, que autoriza a desativação
do Direito.
Nas palavras de Agamben, “é como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento
da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou
seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em
vigor”20.
O autor prossegue, descrevendo o estado de exceção como capaz de evidenciar as decisões eminentemen-
te políticas, sem as tradicionais justificativas jurídicas:
De fato, se são genuinamente políticas as decisões capazes de romper a conexão entre violência e direito,
revela-se fundamental identificar ou desvelar as ações que se mostrem como verdadeiramente políticas.
Para Agamben, a política corresponde à vida nua, já que “contrariamente ao que nós modernos estamos
habituados a representar-nos como espaço da política em termos de direitos do cidadão, de livre-arbítrio
e de contrato social, do ponto de vista da soberania, autenticamente política é somente a vida nua”21.
A vida nua, nessa percepção, corresponderia à vida política que se inicia a partir da instituição do Estado,
que não difere do estado de natureza porque permanece exposta a ameaças constantes, mas que agora
reside exclusivamente nas mãos do soberano. Assim é que Agamben, em contraste a Carl Schmitt, define
o soberano não como simplesmente aquele que decide sobre o estado de exceção, mas aquele que decide
sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal, tornando desnecessária a utilização de subterfúgios
jurídicos.

4 - A “OPERAÇÃO OUVIDOS MOUCOS” E A ESCOLA QUE NÃO ENSINOU NADA


Eleito democraticamente por sufrágio direto dos docentes, estudantes e servidores ao cargo de Reitor da
UFSC, Luis Carlos Cancellier de Olivo, Cau, como era conhecido pelas pessoas e amigos mais próximos,
era graduado em Ciências Jurídicas e pós-graduado stricto sensu pela UFSC, onde recebeu os graus de
Mestre (2001) e Doutor (2003) em Direito.
Além disso, foi chefe do Departamento de Direito e Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal e atualmente era professor do programa de mestrado e doutorado da referida Instituição de Ensino
Superior.
Militante aguerrido de causas sociais, Cau foi engajado com o movimento estudantil e lutou contra a
Ditadura Militar, tendo participado ativamente de campanhas pela anistia, Diretas Já e pela Constituição
Democrática de 1988, exercendo, ainda, a profissão de jornalista e advogado.
Apesar de sua relevante trajetória de vida, foi surpreendido no dia 14 de setembro de 2017 com um man-

20 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 49.
21 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. Ed. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2010, p. 106.
50 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

dado de prisão temporária expedido a requerimento da Autoridade Policial para o aprofundamento das in-
vestigações na denominada “Operação Ouvidos Moucos”, sob a alegação de supostamente ter tentado, na
qualidade de Reitor, atrapalhar investigações realizadas no âmbito administrativo (corregedoria) da UFSC,
sem que sequer tenha sido previamente intimado para comparecer na sede da Polícia Federal.
Utilizando-se de conhecido e maldoso recurso de semiótica, que confunde título e imagem com conteúdo
diverso de notícia, os meios de comunicação transformaram uma investigação recém-nascida pela anôma-
la infração de “tentativa de obstrução administrativa” em “desvio de verbas públicas”, o que foi catalisado
por autoridades públicas que, antes mesmo de concluir o torturante interrogatório, sem pausa, de mais de
cinco horas, montavam o picadeiro que seria fator determinante para sua morte prematura.
Foi assim que no dia 2 de outubro de 2017 a sociedade recebeu a triste notícia de que o processo penal do
espetáculo fez mais uma vítima fatal: o estimado Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau.
Quem milita na área sabe o poder destrutivo que o excesso de exposição possui na vida de uma pessoa,
sobretudo quando se é alvo de divulgação de informações distorcidas.
A mentira, reiterada inclusive na data de sua morte por grandes veículos de comunicação (inclusive jurí-
dicos), poderia ter sido facilmente desmentida pela rápida leitura da peça que inaugura o inquérito, mas
não renderia tantos “cliques” quanto a humilhação pública do sujeito, motivo pela qual provavelmente foi
ignorada.
O trágico e indigesto episódio, que ainda mantém todos consternados e incrédulos, trouxe a lembrança de
fato similar ocorrido no bairro da Aclimação, na cidade de São Paulo, em meados 1994, que ficou registra-
do pela história como “Caso Escola Base”.
Naquela oportunidade, a imprensa, realizando um julgamento paralelo àquele originalmente incumbido ao
Poder Judiciário, divulgou tendenciosamente determinados fatos e condenou sumariamente algumas pes-
soas pela prática de crimes sexuais envolvendo crianças numa escola da Grande São Paulo.
A malfadada denúncia, constantemente alimentada por um delegado ávido por holofotes, logo ruiu e todos
os indícios apontados como provas cabais do fato foram comprovados inverídicos e infundados, colocan-
do fim aquele processo penal do espetáculo.
O estrago, contudo, estava feito e era irremediável, especialmente para os inocentes injustamente acusa-
dos, que faleceram antes mesmo de a injustiça ser definitivamente reparada pelas autoridades competen-
tes.
Muito embora tal conduta tenha repercutido negativamente e gerado inúmeras críticas não só por atores
jurídicos como também por integrantes do próprio meio jornalístico, a lição deixada pela “Escola Base”
parece ter sido esquecida e os mesmos outrora praticados foram repetidas no contexto da “Operação
Ouvidos Moucos”
Após ser diuturnamente massacrado e humilhado pela opinião pública(da), Luis Carlos Cancellier de Olivo
acabou por ceifar a própria vida, ficando, ao cabo do trágico episódio, apenas a tristeza para familiares
e amigos mais próximos e uma reputação agora manchada por inverdades propagadas pela mídia (vide
comentários raivosos do senso comum que inundaram as redes sociais na época dos fatos).
A dolorosa partida de Cancellier repercutiu internacionalmente e acendeu um caloroso debate a respeito
dos abusos cometidos no curso do processo penal, especialmente por agentes que, entorpecidos por ego

Em nome da inocência: Justiça | 51


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

e vaidade, extrapolam suas funções institucionais, e aos demais sujeitos que divulgam e replicam notícias
de maneira açodada e equivocada, destruindo carreiras, reputações e vidas.
Em virtude do trágico episódio, o Senador da República Roberto Requião sugeriu o nome do Reitor Luiz
Carlos Cancellier de Olivo para batizar o Projeto de Lei 7596/17, do Senado, que define os crimes de abuso
de autoridade cometidos por servidores públicos e membros dos três poderes da República, do Ministério
Público, dos tribunais e conselhos de contas e das Forças Armadas.

5 - CONCLUSÃO
Os veículos de informação sempre possuíram (e continuam possuindo) demasiada importância nas socie-
dades civilizadas, exercendo indispensável papel para a manutenção de regimes verdadeiramente livres e
democráticos.
Apesar disso, na atual conjectura, os meios de comunicação em massa, por serem influenciados por um
sistema econômico em que “os lucros justificam os meios”, têm contribuído de maneira significativa para
o caos social.
Isto ocorre, em resumo, pelo fato de inexistir um regramento específico que descreva os exatos contornos
do direito de informação, como anteriormente definia a extinta “Lei de Imprensa” (Lei nº. 5.250/67), fato
que permite, por exemplo, a concentração da propriedade dos meios de comunicação e o monopólio do
discurso por parte de um seleto grupo de empresários que compõe a “grande imprensa” no país.
O discurso vendido pela “velha mídia” e atualmente reproduzido e exponenciado pelas redes sociais que
alimenta uma ansiedade febril no país, fazendo com que os cidadãos, confusos, desorientados e, principal-
mente, intoxicados pela má qualidade da informação veiculada, exijam uma resposta penal cada vez mais
severa para os delitos que causam grande comoção social.
O paradoxo vivenciado no Brasil, aliás, há muito é denunciado pela doutrina pátria, a exemplo do Presidente
do Instituto dos Advogados Brasileiros, instituição jurídica mais antiga da América Latina, Técio Lins e
Silva, que em discurso proferido por ocasião do X Simpósio da AACRIMESC22 ressaltou que nos anos de
chumbo a juventude ia para as ruas pedir liberdade e hoje vão para as ruas pedir prisão.
Dentro de um Estado verdadeiramente Democrático e de Direito, a prisão antes do trânsito em julgado da
sentença condenatória, deveria ser medida de excepcional ocorrência.
Contudo, atualmente, apesar de o Brasil possuir uma das maiores populações carcerárias do mundo (mais
de 620 mil reclusos em 2016), segundo estudo realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional-DE-
PEN, cerca de 40% sujeitos que estão presos no país (aproximadamente 250 mil pessoas) sequer foram
julgados na primeira instância, sendo, portanto, presos provisórios.
Ao romper esta premissa e permitir que prisões cautelares se transformem regra no ordenamento jurídico
pátrio, sobretudo para que se alimente a chama que mantém aceso o processo penal do espetáculo criado
por determinados agentes públicos, ignora-se todo o processo civilizatório, suprimindo-se de todo cidadão
importantes conquistas sociais para flertar, na contramão da história, com os regimes de exceção que
outrora assolaram o mundo.

22 Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina – X Simpósio - Tema: “Em busca das Garantias Perdidas”, de
01 a 03 de setembro de 2016, promovida pela AACRIMESC, auditório da OAB/SC.

52 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

REFERÊNCIAS

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rianópolis. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1923554-rei-
tor-afastado-da-ufsc-e-encontrado-morto-em-shopping-de-florianopolis.shtml. Acesso
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Em nome da inocência: Justiça | 53


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

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SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad

54 | Em nome da inocência: Justiça


Rômulo de Andrade Moreira1

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CORRUPÇÃO,


O SISTEMA POLÍTICO, O SISTEMA ECONÔMICO
E O SISTEMA JURÍDICO – OU QUEM SUICIDOU O
REITOR?
Rômulo de Andrade Moreira1

Costuma-se dizer, e ser dito, que o Brasil é o País da corrupção. Afirma-se, inclusive, que se trata de um
fenômeno endêmico, portanto, algo como uma “doença que existe constantemente em determinado lugar
e ataca número maior ou menor de indivíduos.”2 E que existiu desde sempre!
Lembra-se, inclusive, da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita desde Porto Seguro, da Ilha de Vera Cruz,
no primeiro dia do mês de maio do ano de 1500, quando descoberto o Brasil. Ao final da sua primeira
missiva em terras brasileiras, o escriba da Corte pede a D. Manoel I, então rei de Portugal e dos Algarves,
“o venturoso”, um “favorzinho” para o seu genro, um tal Jorge de Osório. Escreveu o escrivão da armada
de Pedro Álvares Cabral:
“Senhor, posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam
1 Procurador de Justiça na Bahia. Ex-Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias Criminais. Ex-Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador -
UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Coordenador do
Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/
Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador- UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor
J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências
Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim e ao Movimento
Ministério Público Democrático. Integrante por três vezes de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do
Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso
JusPODIVM, do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Autor das obras “Co-
mentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais”, ambas pela editora JusPODIVM, além de organizador
e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPODIVM, 2008. Participante em várias obras
coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
2 Dicionário Aurélio, verbete “endemia”.

Em nome da inocência: Justiça | 55


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se
achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu me-
lhor puder, ainda que - para o bem contar e falar - o saiba pior que todos fazer.” (...) “E pois
que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que
de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por
me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o
que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.”
Outros, digamos mais generosos, atribuem à corrupção um caráter sistêmico – referindo-se a uma acep-
ção mais geral do conceito de sistema -, posto que já enraizada no “complexo de estruturas, de procedi-
mentos e de funções”, bem como no “conjunto de instituições, grupos ou processos políticos”3 brasileiros.
O certo é que de uma maneira ou de outra não há negar-se que a corrupção é um fenômeno presente – e
muito – na sociedade brasileira. Uma primeira questão é saber se se trata de um fato ou de um aspecto
tipicamente brasileiro. De outro lado, indagar cabe também a forma como se deve combater a corrupção.
De início é preciso compreender que a corrupção “é uma forma particular de exercer influência: influência
ilícita, ilegal e ilegítima. Amolda-se ao funcionamento de um sistema, em particular ao modo como se
tomam as decisões.” Ela “está também relacionada com a cultura das elites e das massas”, acentuando-se
“com a existência de um sistema representativo imperfeito e com o acesso discriminatório ao poder de
decisão.”4
Portanto, “quanto mais ameaçada se sentir, tanto mais a elite recorrerá a meios ilegais e à corrupção para
se manter no poder.” Assim, “são notáveis os efeitos da corrupção no funcionamento de um sistema políti-
co.”5 E não só do sistema político, pois, “de um modo geral, portanto, a corrupção é fator de desagregação
do sistema”6, seja o político, o jurídico ou o econômico.
Ora, por óbvio, que não se trata de um fenômeno tipicamente brasileiro ou que esteja mais ou menos
presente em nosso País – muitíssimo pelo contrário, aliás. De acordo com o novo relatório da organização
não governamental Transparência Internacional, divulgado no dia 25 de janeiro deste ano, a nova edição
do Índice de Percepção da Corrupção mediu os níveis percebidos de corrupção no setor público em 176
países, com base na opinião de especialistas. Os países receberam notas que variam de 0 a 100. Quanto
mais próxima de zero for a pontuação, mais corrupto é o setor público daquele lugar. Ao todo, dois terços
de todos os países listados no índice têm uma pontuação abaixo de 50, em uma escala de 0 (considerado
o mais corrupto) a 100 (considerado o menos corrupto). Veja o gráfico: quanto mais vermelho escuro, mais
corrupto é o país.7
Em 79.º lugar, o Brasil está entre os que mais perderam posições nos últimos cinco anos de ranking.
Segundo a Transparência Internacional, nenhum país é livre da corrupção. A Somália, o Sudão do Sul e a
Coreia do Norte são os piores casos. A Dinamarca e a Nova Zelândia são os melhores exemplos. Confiram:8
3 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco, Dicionário de Política, Vol. 2, Editora UnB, 10ª. Edição, 1997,
páginas 1157 e 1163.
4 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco, Dicionário de Política, Vol. 1, Editora UnB, 10ª. Edição, 1997, página
292.
5 Idem.
6 Idem.
7 https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016
8 https://exame.abril.com.br/mundo/os-20-paises-mais-corruptos-do-mundo-e-os-menos-desonestos/#

56 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Países mais corruptos Pontuação / 100 Países menos corruptos Pontuação/100


Somália 10 Dinamarca 90
Sudão do Sul 11 Nova Zelândia 90
Coreia do Norte 12 Finlândia 89
Síria 13 Suécia 88
Iêmen 14 Suíça 86
Sudão 14 Noruega 85
Líbia 14 Singapura 84
Afeganistão 15 Holanda 83
Guiné-Bissau 16 Canadá 82
Venezuela 17 Alemanha 81
Iraque 17 Luxemburgo 81
Eritreia 18 Reino Unido 81
Angola 18 Austrália 79
República do Congo 20 Islândia 78
Haiti 20 Bélgica 77
Chade 20 Hong Kong 77
República Centro-Africana 20 Áustria 75
Burundi 20 Estados Unidos 74
Uzbequistão 21 Irlanda 73
República Democrática do Congo 21 Japão 72

Vê-se, portanto, que a corrupção não é fenômeno especialmente brasileiro, mesmo porque decorre, ora do
próprio sistema político, ora se situa como uma decorrência do sistema econômico.
Um sistema político antidemocrático como o nosso tende a facilitar a corrupção.E vejam que criticar o
sistema político de maneira firme não significa, muitíssimo pelo contrário, criminalizar a política ou os
políticos, como se faz também hoje no Brasil. A política, seja em que sentido for tomada a palavra, é funda-
mental para a Democracia e para a realização do Estado Democrático de Direito. Afinal, se se “encontram
na mesma linha a falta de saída em que caiu nosso mundo e a expectativa de milagres, essa expectativa de
modo algum nos remete para fora do âmbito político original. Se o sentido da política é a liberdade, então
isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter a expectativa de
milagres. Não porque acreditemos (religiosamente) em milagres, mas porque os homens, enquanto pu-
derem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam
disso, quer não.”9
Quando nos referimos às mazelas do sistema político brasileiro estamos particularizando-as, tais como,
por exemplo, o “presidencialismo de coalização”? O sujeito elege-se com o voto popular e, depois de
escolhido pelo povo, alia-se com o Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber vive!). E como se deu, e como
9 ARENDT, Hannah, A Dignidade da Política – Ensaios e Conferências, Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 3ª. Edição, 2002, página
122.

Em nome da inocência: Justiça | 57


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

se dará, o financiamento das campanhas políticas? Será por mero diletantismo? E como é distribuído o
horário político na televisão e no rádio? E o que dizer dos partidecos de aluguel? Verdadeiras cooperativas
de arrecadação de dinheiro para os seus idealizadores/malfeitores.
A questão, por óbvio!, não é a política em si. É como se estrutura em nosso País o sistema político, há
décadas. Não se trata, portanto, de preconceito, pois, “em nosso tempo, ao se pretender falar sobre polí-
tica, é preciso começar por avaliar os preconceitos que todos temos contra a política – visto não sermos
políticos profissionais”, como observa Arendt. Para ela, “no entanto, esses preconceitos não são juízos
definitivos. Indicam que chegamos em uma situação na qual não sabemos – pelo menos ainda – nos mover
politicamente. O perigo é a coisa política desaparecer do mundo.”10
Como afirmava Milton Santos, “as formas tradicionais de fazer política são um modelo de atraso, pois a
canalização eficaz das queixas e reivindicações dos de baixo é impedida pela política dos de cima. É a
partir dessas constatações que os partidos do progresso e os setores de boa vontade de alguns outros
podem entregar-se a uma tarefa de renovação, facilitada pelo fato de que, em tempos de globalização, tudo
é política.”11
Muito a propósito, Beck afirma que no mundo atual deu-se, gradativamente, “a perda de importância do
parlamento como centro de formação da vontade racional. Decisões que, de acordo com o texto constitu-
cional, incumbiriam ao parlamento e a cada um dos deputados, passariam a ser tomadas cada vez mais,
de um lado, por líderes de bancadas parlamentares e sobretudo no seio dos aparatos partidários, de outro
lado, porém, pela burocracia estatal.”12
E a mídia no Brasil? Há democracia? Há alguma democratização no uso da comunicação brasileira, uma
concessão que é do Estado? Quais brasileiros têm acesso a uma informação verdadeiramente plural? Nos
rincões do Brasil há alguma tecnologia que permita assistir algo mais que as novelas da Rede Globo de
Televisão e os seus tendenciosos e mentirosos noticiários?
Como nota Hobsbawm, a função política dos meios de comunicação ampliou-se, pois agora chegam “a
todas as casas, proporcionando de longe o mais poderoso meio de comunicação da esfera pública para
homens, mulheres e crianças privados”, transformando-os “nos grandes atores no cenário público” e “um
componente mais importante do processo político que os partidos e os sistemas eleitorais.” Não são, em
difinitivo, muito pelo contrário, “um meio para um governo democrático.”13
Ademais, é preciso, destacando-lhes a importância para o Estado Democrático de Direito, realçar a urgen-
te necessidade de democratização do Poder Judiciário e do Ministério Público, este, nos termos do art.
127, da Constituição Federal, defensor da ordem jurídica e do regime democrático, evitando-se lhe que o
sistema judicial torne-se alvo “e, por vezes, refém dos meios de comunicação social.” De toda maneira, “o
alcance e o sentido de uma refundação democrática do judiciário irão, contudo, depender da orientação
local das reformas judiciais em cada país e da intensidade da influência exercida pela globalização hege-

10 ARENDT, Hannah, O que é política – Fragmentos das obras póstumas compilados por Ursula Ludz, Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil Ltda., 2002, 3ª. edição, página 100.
11 SANTOS, Milton, O país distorcido, São Paulo: Publifolha, 2002, 3ª. edição, página 108.
12 BECK, Ulrich, Sociedade de Risco – Rumo a uma outra modernidade, Rio de Janeiro: Editora 34, 2011, 2ª. edição, página 281.
13 HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremos – O breve século XX – 1914/1991, São Paulo: Companhia das Letgras, 2012, 2ª. edição, 46ª
reimpressão, página 559.

58 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

mônica do direito e da justiça.”14


Por outro lado, um sistema econômico perverso e não igualitário, também como o nosso, produz, reproduz
e facilita a corrupção. Mais do que o capitalismo sáfaro – que se trata, inclusive, de uma redundância -, fa-
lamos aqui de um seu aspecto que se costumou chamar de neoliberalismo. O neoliberalismo é mais nocivo
que o liberalismo. Em um certo sentido, deve-se, hoje, até sentir uma certa nostalgia dos velhos liberais,
pois não eram, ao menos, facínoras! Estes acham que “se os homens simplesmente não se metessem a
impedir o curso natural das coisas com seus projetos e seus planos, tudo iria da melhor maneira no melhor
dos mundos. Esse curso natural consiste na ausência de todo obstáculo erguido ante a livre concorrência,
e portanto de toda intervenção estatal para corrigir os eventuais efeitos indesejáveis dela.”15
E quando falamos de neoliberalismo, não o fazemos apenas em um sentido econômico. É o jeito de ser e
de se comportar um diante do outro. É uma falta absurda de solidariedade. É um consumir e uma gana de
possuir para além de qualquer limite. É um desejo de ter que não encontra espaço para que outrem também
o tenha – ou, o que é mais grave, não tenha vontade de o ter! A consequência é que “as pessoas alteram
seu comportamento porque pagamentos regulares e grande capacidade de crédito lhe dá acesso à mais
extraordinária gama de escolhas, de roupas e restaurantes, a viagens de volta ao mundo. O controle social
passa a localizar-se não apenas na performance no trabalho, mas no status financeiro”, levando com que
as pessoas sejam tratadas “como mercadorias, como coisas e como essências.”16
O neoliberalismo atinge todas as esferas do viver e do conviver. E o faz de uma maneira tão nociva que
contamina a todos, ainda que a grande maioria sequer se dê conta do desastre que, mais cedo ou mais
tarde, ou agora!, ocorrerá.
Há no mundo, e no Brasil não poderia se dar o oposto, o que Milton Santos chamava de “uma concorrência
superlativa entre os principais agentes econômicos – a competitividade”, permitindo “a emergência de um
lucro em escala mundial, buscado pelas firmas globais que constituem o verdadeiro motor da atividade
econômica” e “produzindo ainda mais desigualdades. E, ao contrário do que se esperava, crescem o de-
semprego, a pobreza, a fome, a insegurança do cotidiano, num mundo que se fragmenta e onde se ampliam
as fraturas sociais.”17
Sem dúvidas, “o modelo de desenvolvimento neoliberal, dada a sua maior dependência dos mercados e do
setor privado, exige um marco jurídico para o desenvolvimento que fomente o comércio, os investimentos
e o lucro.”18
A corrupção, destarte, é consequência também de um modo de vida neoliberal. Aliás, hoje já se fala em
uma terceira fase, o ultraliberalismo: “Após os atentados de 11 de setembro, os Estados que adotaram
essa ideologia, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aumentaram seu controle sobre as liberdades
civis, enquanto deixavam plena liberdade aos agentes econômicos individuais. A partir desse momento,
entramos no ultraliberalismo.” Assim, “enquanto os benefícios permanecem individuais, os riscos são
14 SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça, São Paulo: Cortez Editora, 2010: 3ª. Edição, páginas
30 e 32.
15 TODOROV, Tzvetan, Os Inimigos Íntimos da Democracia, São Paulo: Companhia das Letras, 1ª. Reimpressão, 2014, página 100.
16 YONG, Jock, A sociedade excludente – Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente, Rio de Janeiro: Editora
Revan, 2002, páginas 279 e 285.
17 SANTOS, Milton, O país distorcido, São Paulo: Publifolha, 2002, 3ª. edição, página 80.
18 SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça, São Paulo: Cortez Editora, 2010: 3ª. Edição, páginas
30 e 31.

Em nome da inocência: Justiça | 59


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

socializados.”19
E o sistema jurídico, hein? Pobre dele, ou quão ingênuo, quando acredita poder dar cabo à corrupção. E,
pior, quando rasga todas as regras do jogo em nome do combate aos corruptos, que só se multiplicam
na mesma razão que se propagam as mazelas do sistema político e do sistema econômico. E suicidam
também!
O que não se entende, por ingenuidade, por ignorância ou por má-fé - quem sabe!, é que o poder, como
afirmava Kelsen, “é a capacidade de influenciar outros. Uma pessoa tem o poder sobre os outros se ela
pode levá-los a agir de acordo com sua vontade. O poder não é, portanto, nem político nem econômico,
mas político e econômico, são os meios pelos quais tal comportamento é obtido.”20
O grande, e preocupante problema, como anota Boaventura Santos, é que o Poder Judiciário passou a se
assumir “como poder político, colocando-se em confronto com os outros poderes do Estado, em especial
com o executivo.” Assim, “o combate à corrupção que, em regra, surge devido a uma certa conjuntura polí-
tica, leva a que muitos dos conflitos políticos acabem por ser resolvidos em tribunal. É esse o momento em
que se verifica uma das faces da judicialização da política. Defendo que há judicialização da política sempre
que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afetam de modo significativo as condições da
ação política”, afetando, por conseguinte, “o desempenho dos próprios tribunais, conduzindo à politização
do judiciário. (...) Neste contexto, temos mesmo vindo a assistir, em alguns países, a um deslocamento da
legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário.”21
Logo, quem suicidou o Reitor? Por que exatamente agora? Lógico que não se trata de uma coincidência
histórica. Trata-se, sim, de um contexto histórico. A “neo-inquisição” continua. A fogueira não é a mesma,
mas arde e queima, não o corpo, mas a alma. Machuca. Consome e mata.
Óbvio que os arautos da moralidade continuarão bradando a bandeira brasileira, como surtados, em busca
da salvação (vejam, por exemplo, Janaína Paschoal, apoplética, na Universidade de São Paulo, ou o Pro-
curador da República, Deltan Dallangnol, pregando em templos para conseguir assinaturas em favor das
medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público Federal - quase todas inconstitucionais).
A questão é: quem quer mesmo a ajuda deles? E eles são mesmo capazes disso ou não passam de “(mais)
uns idiotas úteis da mercadoria?”22 Obviamente que não pregamos a impunidade. O que repudiamos com
veemência – e sempre o faremos – é o uso que hoje se faz do sistema jurídico como estratégia de con-
trole social e político, fato que se iniciou com a Ação Penal nº. 470, o chamado “processo do mensalão”
e continuou com a Lava-Jato e o processo vergonhoso do impeachment, culminando com um verdadeiro
golpe parlamentar.
O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, antes de se preocuparem em
punir os membros que se expressam livremente – como lhes permite a Constituição Federal e exercendo
a sua cidadania – e de legislarem via resoluções, deveriam, efetivamente, atuar como órgãos de controle
externo (e não interno, pois para isso já existem as respectivas Corregedorias – que deveriam funcionar).

19 Idem, página 102.


20 MIGLINO, Arnaldo, As cores da democracia, Curitiba: Empório do Direito, 2016, 2ª. edição, página 118.
21 SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça, São Paulo: Cortez Editora, 2010: 3ª. Edição, páginas
22, 29 e 30.
22 MARTINS, Rui Cunha, A hora dos cadáveres adiados – Corrupção, expectativa e processo penal, São Paulo: Editora Atlas S.A, 2013,
página 77.

60 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Não há a participação da sociedade no controle externo do Poder Judiciário (veja que dos seus treze
conselheiros, nove são escolhidos dentre membros da Magistratura, dois do Ministério Público, dois re-
presentantes da Ordem dos Advogados do Brasil e, pasmem!, dois representantes da sociedade civil (art.
103-B da Constituição Federal).
O mesmo ocorre no Conselho Nacional do Ministério Público, sendo oito conselheiros escolhidos dentre
membros da carreira, dois Magistrados, dois Advogados e apenas dois representantes da sociedade civil
(art. 130-A da Constituição)
Também necessário observar o modo e a forma como hoje, e desde sempre, dá-se a seleção dos membros
do Poder Judiciário e do Ministério Público. Ademais, urge afastar o corporativismo e os privilégios que
dele decorrem.
Ademais, o excessivo protagonismo do Poder Judiciário – referido por Boaventura de Souza Santos - “leva
a que se criem expectativas positivas elevadas a respeito do sistema judiciário, esperando-se que resolva
os problemas que o sistema político não consegue resolver”, o que acaba sendo um grave problema, pois,
“quando analisamos a experiência comparada, verificamos que, em grande medida, o sistema judiciário
não corresponde à expectativa e, rapidamente, de solução passa a problema.” E se tais “expectativas forem
muito elevadas, ao não serem cumpridas, geram enorme frustração.”23
Repensar o papel do Juiz no atual processo penal brasileiro e a sua impertinente iniciativa persecutória/
instrutória. Vejam, por exemplo, os arts. 5º, II (a requisição de inquérito policial), 28 (o procedimento de
arquivamento do inquérito policial), 83 (a prevenção), 155 (o valor probatório dos atos investigatórios), 156
(o ônus da prova), 385, etc, do Código de Processo Penal.
Outra grave distorção é o que se dá com o uso abusivo da prisão provisória, muitas vezes decretada sob o
duvidoso critério da garantia para a ordem pública. Olvida-se com uma facilidade criminosa do princípio da
inocência (veja-se que até a Suprema Corte rendeu-se aos apelos da opinião pública, autorizando a prisão
provisória após a decisão de segundo grau - Habeas Corpus nº. 126292).
Dá-se, outrossim, uma banalização da condução coercitiva, violando o direito de não autoincriminação
do investigado e do acusado. Veja-se, por exemplo, o caso do ex-Presidente Lula da Silva, conduzido
coercitivamente em março de 2016, quando, sequer, foi notificado para comparecer a qualquer Delegacia
de Polícia.
Muito já se escreveu acerca da possibilidade da condução coercitiva no Processo Penal brasileiro, razão
pela qual temos muito pouco a acrescentar àqueles que defenderam a sua ilegalidade, ressalvando as
hipóteses dos arts. 201, parágrafo primeiro (em relação às vítimas recalcitrantes nos crimes de ação penal
pública), 218 e 278 (relativamente às testemunhas faltosas e aos peritos), todos do Código de Processo
Penal.
Além destas três hipóteses, restaria o art. 260 a autorizar a condução coercitiva do acusado (não do inves-
tigado ou do indiciado, atenção!). Em relação a este dispositivo, é óbvio que a sua validade constitucional
é questionável, pois em um País em que constitucionalmente assegura-se o direito ao silêncio e no qual
o ordenamento jurídico abarcou as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de
São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado em Nova York,
parece-nos absolutamente inconstitucional e violador das cláusulas convencionais admitir a condução
23 Idem.

Em nome da inocência: Justiça | 61


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

coercitiva do investigado ou mesmo do réu.


Aqui, pouco importa, para nós, ter havido notificação prévia ou não, desatendimento ou não, tratar-se de
João ou Maria. A questão é outra: proíbe-se no Brasil a autoincriminação. Ponto. Isso basta. Se deixo de
comparecer a um ato investigatório (interrogatório, acareação, reconhecimento de pessoa, reprodução si-
mulada do fato, etc.) ou a um ato processual é porque não quero, pois, certamente, não é, do ponto de vista
de minha defesa, favorável. Esta estratégia é absolutamente legítima e encontra respaldo constitucional e
convencional. Goste-se ou não! É a regra do devido processo legal imposta a todos que estão submetidos
a uma investigação criminal ou a um processo. Um dia dela podemos ser beneficiários, afinal de contas
todos podemos também um dia ser acusados de cometer um crime.
Nestes termos, qual o sentido da condução coercitiva? Dir-se-á: colher a qualificação do conduzido. Ora,
nada mais falacioso. Primeiro que, havendo processo, já há denúncia (ou queixa) e, obviamente, o réu já
está qualificado suficientemente. Se não há, portanto, se ainda na fase investigatória, deve o Estado cui-
dar de qualificá-lo pelos (vários) meios disponíveis (como a Justiça Eleitoral, por exemplo). É um ônus a
cargo do Estado que não pode ser imposto ao réu que tem, repita-se, o direito de não autoincriminação e
o direito ao silêncio. No Processo Penal o ônus é sempre do Estado/acusador/investigador, inclusive o de
provar. Afinal de contas de quem se presume a inocência nada se pode exigir. Repita-se: goste-se ou não,
é a regra do devido processo legal imposta a todos que estão submetidos a uma investigação criminal ou
a um processo, inclusive a nós.
Restaria, então, uma última possibilidade: trabalhar com a tese de que a condução coercitiva poderia ser
utilizada como medida cautelar autônoma. Nada mais inapropriado falar-se no Processo Penal de uma tal
coisa, com todo respeito dos que assim pensam. É um erro dogmático sério e que põe em risco os direitos
e garantias fundamentais, além de demonstrar desconhecimento da própria natureza das medidas cautela-
res. É de um eficientismo perigosíssimo. Abre-se um precedente sem igual.
Aliás, esta distorção vem de um outro equívoco que vez por outra se repete, que é uma tentativa nociva
(sob todos os aspectos) de importar determinadas categorias do Direito Processual Civil para o Processo
Penal, como se existisse uma Teoria Geral do Processo, quando se sabe algo impossível, pois o Direito
Processual Civil possui conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual
Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob
pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.
E estas medidas cautelares no Processo Penal somente podem ser aceitas quando tipificadas em lei.
Nada de aplicar o chamado Poder Geral de Cautela (Piero Calamandrei), outra invencionice importada do
Processo Civil para o Processo Penal. A expressão “medida cautelar autônoma” no Processo Penal é uma
contradição em si mesma. Medida cautelar de natureza penal exige tipicidade processual. Exatamente para
isso foi promulgada a Lei nº. 12.403/11, ou não foi? Se medida cautelar autônoma fosse possível em maté-
ria penal, qual o sentido daquela alteração legislativa? Ficava como estava, óbvio: ou prende ou fica solto,
ou se inventa medida cautelar autônoma em nome da eficiência do Processo Penal.
Lembremos que Hitler foi, em certo aspecto e para os seus propósitos, de todo eficiente, pois “los pro-
fesores de derecho desempeñaron un papel importante en el declive del derecho durante el tercer Reich.
Brindaron un ropaje filosófico a los actos arbitrarios y los crímenes de los nazis, que sin esse disfraz se

62 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

habrían reconocido claramente como actuaciones ilegítimas. Prácticamente no hubo desafuero alguno
perpetrado por los nazis que no hubiese sido reconocido durante el régimen como ´supremamente justo` y
que no hubiese sido defendido después de la guerra por los mismos académicos, valiéndose de los mismos
dudosos argumentos en cuanto a su ´justificación` o incluso su ´conveniencia` desde un punto de vista
jurídico.”24 Será que não vamos aprender com a História?
Por outro lado, defender a condução coercitiva como medida cautelar substitutiva da prisão provisória
chega a ser um escárnio, um desrespeito à inteligência de quem estuda seriamente o Direito Processual
Penal. Ora, se estão presentes os pressupostos e os requisitos de uma prisão provisória (e, no Brasil quase
sempre não estão) que se prenda. Tenha-se a coragem e fundamente-se a decisão, sem subterfúgios e sem
interesses escusos e ilegais (para se conseguir a delação premiada, por exemplo).
Tampouco admite-se a condução coercitiva como medida cautelar probatória. Como? Óbvio que é possí-
vel medidas cautelares probatórias. Não desconhecemos esta possibilidade. Há, inclusive, previsão legal
(art. 155, parte final do Código de Processo Penal). Mas, condução coercitiva para servir como “cautela
de prova” em um sistema processual penal que inadmite a produção de prova contra si mesmo? É ou não
uma contradição técnica imperdoável? Impor cautelarmente uma medida judicial das mais graves para
assegurar a prova quando o sujeito tem o direito de não autoincriminação? Então, que sejam rasgados
solenemente os Pactos Internacionais.
Portanto, não há dúvidas de que este episódio também fez parte de toda uma estratégia traçada desde o
início da chamada Operação Lava-Jato para impedir a continuidade do mandato da Presidente da Repúbli-
ca, legitimamente conquistado. Usou-se de mais uma ilegalidade rumo à sua finalidade: ganhar as eleições
perdidas nas urnas!
Fez-se da delação premiada o grande meio investigatório a cargo e nas mãos sempre limpas do Ministério
Público. E ela que, no máximo, pode ser tratada como uma mera fonte de obtenção de prova. Tudo com
direito a vazamentos altamente seletivos, desde o conteúdo até o meio de comunicação.
Cria-se a figura do inimigo da sociedade para justificar as mais absurdas ações de repressão policial.
Suicidaram há pouco um ex-Reitor de uma Universidade Federal, humilhado pela ação policialesca e es-
petacular! Os traficantes são a bola da vez! As mulheres – sempre pobres e negras – são estupidamente
etiquetadas como traficantes e, como tais, trancafiadas em uma jaula.
Criminaliza-se a advocacia, a política, a pobreza, os empresários. Propugna-se pela rigidez das leis penais
e processuais penais (fenômeno que se iniciou no início dos anos 1990, com a promulgação da Lei dos Cri-
mes Hediondos), diminuição do número de recursos, impossibilidade da utilização do habeas corpus, etc.
E se é verdade que estamos em crise, é preciso atentar para Bauman, quando afirma que a noção de crise
coincide com “o estado normal da sociedade humana. De forma paradoxal podemos dizer que não há nada
crítico no fato de a sociedade estar em crise. ´Estar em crise` é a maneira costumeira e talvez a única
concebível de auto constituição, de auto reprodução e renovação, e cada momento na vida da sociedade é
um momento de auto constituição, reprodução e auto renovação.”25
Chegamos, definitivamente, ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio
Agamben: “O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do
24 MÜLLER, Ingo, Los Juristas del Horror, Bogotá: Inversiones Rosa Mística Ltda., 2009, página 101.
25 BAUMAN, Zygmunt, Em Busca da Política, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, página 147.

Em nome da inocência: Justiça | 63


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políti-
cos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao
sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que,
eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (...) O estado de exceção apresenta-se, nessa
perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”26
Enfim, quem matou mesmo o Reitor?

26 AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, página 13.

64 | Em nome da inocência: Justiça


Jaime João Pasqualini

Advogado desde 1.981. OAB 3665 - Ex-Reitor da UNIDAVI entre 1.996/2003. Professor da Cadeira
de Direito das Obrigações e Direito Empresarial

A pior injustiça é aquela praticada sob o manto da lei

Desde os primeiros passos na academia das ciências jurídicas, logo ficamos sabendo que o homem - em
sua evolução social - passou por dois períodos bem distintos: da AUTOTUTELA à JURISDICAO. O primeiro
se caracterizou pelo que se denomina “justiça com as próprias mãos” - onde o mais forte fazia valer sua
vontade sobre o mais fraco - uma verdadeira vingança traduzida pela lei de Talião: olho por olho, dente
por dente, enquanto que na JURISDIÇÃO, qualquer prejudicado deverá buscar por um TERCEIRO - que é o
ESTADO - através da AÇÃO, para o reconhecimento de um eventual direito tolhido.
Percebe-se, atualmente, um nítido e profundo desconhecimento e, por conta disso, uma sensível confusão
feita pelos leigos acerca da diferença entre a VINGANÇA e a JUSTIÇA. Basta assistirmos aos canais de
televisão em horário apropriado, que noticia os diversos e mais variados crimes, que diariamente aconte-
cem em solo brasileiro, para constatarmos que entre uma e outra não há qualquer distinção, assim como
existe obviamente nas ciências jurídicas. Um pai cuja filha foi molestada em sua intimidade é perguntado
pelo repórter sobre o que ele pensa, e rapidamente responde: queremos JUSTIÇA!, Porém, o que ele quer
mesmo é VINGANÇA.
A vingança é um sentimento não tão incomum entre os seres humanos, basta sofrermos uma agressão
para logo revidarmos na forma de vingança tentando atingir nosso desafeto. Isso é quase que automático.
Ao longo dos meus 37 anos de militância na advocacia, tive a oportunidade de acompanhar centenas de
casos em que meus clientes, de uma forma ou outra, vingaram-se ou tentaram se vingar de agressões
sofridas e por isso acabaram sendo levados às esferas dos Tribunais. Alguns casos se tornaram bastante
recorrentes, como por exemplo, o de algumas mães que durante o casamento sofreram adultério e foram
Em nome da inocência: Justiça | 65
Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

trocadas pela amante e logo encontraram uma forma de se vingar do ex-marido dificultando o acesso aos
filhos, situação que acabou inclusive ensejando a criação da lei da alienação parental.
Como disse, a vingança não é tão incomum entre os seres humanos, ela está presente tanto nos mais
humildes e ignorantes, como também nos mais intelectuais e abastados, assim como também não são só
os leigos que confundem entre o que seja vingança e o que seja Justiça, mas também entre os próprios
operadores do direito. Recentemente a mídia nacional divulgou um rumoroso caso em que cinco jornalistas
do vizinho estado do Paraná, após divulgarem na imprensa a remuneração dos Juízes de direito, passaram
a sofrer cerca de 40 ações judiciais que buscavam um ressarcimento por dano moral, obrigando-os a per-
correr quase cinco mil quilômetros entre uma Comarca e outra para se defenderem. A VINGANÇA não se
caracteriza ou está apenas na repulsa física do ofendido contra seu ofensor, pode estar também disfarçada
do exercício regular de um direito e, portanto, amparada pela lei, como foi e é o caso daqueles pobres
jornalistas que também estavam no exercício da profissão de informar.
Mas digamos que este seja um caso isolado e não comum e pode ser! Porem, nesta longa caminhada
forense, não foram poucas às vezes em que me deparei com decisões em processos em que atuei, os
quais continham algum erro ou omissão. Após insistir para que fossem prestados os esclarecimentos
necessários, como de direito, e até mesmo oferecendo recurso à instância superior, para meu espanto
e numa verdadeira demonstração de VINGANCA recebi uma resposta acintosa e malcriada. E de quem?
Justamente daquele que não só tem o direito, mas acima de tudo a obrigação de discernir entre vingança e
justiça — praticando somente esta última.
Há cerca de alguns anos atrás na companhia de outros cinco advogados, durante a realização de uma au-
diência criminal, presenciamos diversas atitudes estranhas praticadas pelo magistrado que presidia o ato.
Entre elas a prisão de uma testemunha em seu gabinete por cerca de 10 longas horas, tudo isso aos olhos
auspiciosos do Promotor de Justiça que a tudo aplaudia.
Incitados por um dever profissional de defesa do direito na busca pela JUSTIÇA, jamais pela VINGANÇA,
ousamos representar aquelas Autoridades perante a OAB e às respectivas Corregedorias, pedindo que
fossem apurados os fatos e eventualmente responsabilizados seus autores.
Já passados quase cinco anos desde aquela infeliz representação, a qual foi arquivada pelos órgãos com-
petentes, sem que apurasse o CRIME DE ABUSO DE PODER, praticado contra aquela testemunha, julgada
que foi justamente porque seus autores eram seus pares, diferente, porém, foi, do que aconteceu com os
seis advogados que desde então sofrem a VINGANÇA deles respondendo tanto na justiça criminal quanto
na justiça civil por quase QUARENTA PROCESSOS, tudo amparado e sob o sagrado manto da lei.
Ainda que se considere seja um caso isolado e como tal não possa ser generalizado, afinal inúmeros ma-
gistrados atuam de forma salomônica e proba na distribuição da Justiça, certo é que situações inusitadas
como aquelas citadas tem o condão de fragilizar a instituição do Judiciário e do MP e assim comprometer
sua centenária imagem, já tão aviltada por sua morosidade e alto custo.
Desconhece-se até o presente momento ou pelo menos não é divulgado pela imprensa a percepção ou
a leitura da opinião pública sobre a credibilidade que tenha o jurisdicionado em relação ao Poder Judici-
ário, frente aos casos de Vingança ou abuso de autoridade praticada. Por certo não teremos tão cedo à
divulgação desses resultados, sejam aqueles almejados e imaginados pelas Autoridades, sejam aqueles

66 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

manifestados pelos jurisdicionados, afinal quem se arrisca ser processado?


Mas se ao leigo e até profissionais paira certa suspeita e em alguns casos a certeza de que poderão sofrer
uma RETALIAÇÃO (Vingança) ou até mesmo um abuso através de processo judicial, caso resolva repre-
senta-la, acusá-la ou divulgar informações que devem ser erga omnes, tudo a pretexto do exercício regular
de um direito, hodiernamente surge ou recrudesce a preocupação do leigo e também dos operadores do
direito em relação à algumas práticas tanto das autoridades da Polícia, do Ministério Público, como da Ma-
gistratura, agora não mais motivados por uma eventual VINGANÇA, mas sim pelo apelo midiático que suas
ações e decisões, algumas vezes inescrupulosas, podem propiciar na exposição de suas figuras. Grande
parte querendo se igualar aos pares que atuam na operação lava jato, em prejuízo é claro da presunção de
inocência e ferindo de morte o estado de direito, evidentemente tudo feito sob o manto da lei.
Nossa Carta Maior em seu artigo 5º, Inc. LVII estabelece como regra pétrea a presunção de inocência de
qualquer acusado até o trânsito em julgado da decisão condenatória. Isso porque quis o legislador consti-
tuinte ressalvar dos eventuais abusos de autoridade e em último caso os atos de vingança praticados por
autoridades contra cidadãos de bem, trazendo assim para o texto constitucional sua proteção, tendo como
base inarredável a presunção constitucional de que todo cidadão tenha um convívio harmonioso e salutar
junto ao meio social em que vive, evitando com isso não apenas atos de vingança, mas abuso de autoridade
e em último plano o que chamamos de erro do judiciário.
Mas os ventos que sopram pelas ações tomadas por algumas autoridades não são nada animadores. Como
já foi dito, além da preocupação quanto a um possível abuso de autoridade decorrente de alguma vingança,
hoje os cidadãos de bem já têm, dormem e acordam com o receio de que as ações policiais acompanhadas
pelo MP e com a conivência de um Magistrado, sem nenhum respeito à presunção de inocência, possam
ser vilipendiados a qualquer hora, simplesmente porque seus protagonistas terão sua exposição em mídia
nacional como os novos heróis da República.
Lembro-me que certa feita, quando ainda reitor da nossa Universidade local que também mantinha o ensino
médio, certo dia descobri que um experiente professor contratado e que tinha peculiaridades apropriadas
como preparador para o vestibular, tinha seu diploma conferido por uma universidade do Nordeste, que
não era verdadeiro e isso implicava necessariamente a que os respectivos alunos refizessem todas as
disciplinas por eles ministradas. Isso levaria pelo menos dois anos, bem como a sua evidente demissão.
Após algum tempo de muita reflexão resolvi chamar o falso professor e disse-lhe da descoberta e pedi que
ele me apresentasse uma solução. Foi quando ele pediu sua exoneração e mudou-se de cidade e assim
nenhum dos alunos teve que repetir suas disciplinas. Antes que os vingadores sob o manto da lei tratam de
investigar esses fatos vislumbrando alguma ação judicial contra minha pessoa em razão desta confissão,
logo faço a seguinte admoestação: já se passaram mais de 20 anos.
Fico a imaginar, hipoteticamente, se esse mesmo professor estivesse nos dias atuais sendo monitorado
pela Polícia e a certa altura da conversa que tive com e, sobre o diploma falsificado, fosse considerada
pelos policiais, pelo MP e por um Magistrado como uma ação minha para OBSTACULIZAÇÃO DA JUSTIÇA,
o que teria acontecido comigo?
Por certo a decisão que tomei foi a de não prejudicar os alunos que nenhuma culpa tinha naquele episódio e
muito menos a Universidade, afinal, o professor apresentou seu diploma que somente depois se constatou

Em nome da inocência: Justiça | 67


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

ser falsificado, porém, de pouca valia teria a minha intenção e portanto, minha inocência não seria presu-
mida e aliado ao fato de que a prisão de um REITOR sempre leva a projeção das autoridades segregadoras,
por certo eu ainda estaria preso.
É preciso que se diga que qualquer agente público e até mesmo aqueles que têm o poder na iniciativa
privada ao longo de anos na gestão de interesses públicos e privados, sempre se deparam e se depararão
com situações nem sempre previstas em regimentos ou em leis que lhe ofereçam a resposta certa ao caso
concreto, mas nem por isso podem ficar sem uma decisão capaz de causar o menor prejuízo possível com
o melhor resultado.
Para situações como essa há sem dúvida alguma de ser alcançado e aplicado de imediato o dispositivo
constitucional da presunção de inocência, capaz de impedir que inocentes sejam levados ao cárcere e
assim seja ultrajada e aviltada uma vida toda de retidão – principalmente voltada à distribuição do conheci-
mento - como o foi a vida de Cancelier. Que sua passagem nos sirva ao menos para essa reflexão serôdia.

68 | Em nome da inocência: Justiça


Rubens Casara
Graduação em Direito pela Univ. Cândido Mendes (1995), mestrado em Ciências
Penais pela Univ. Cândido Mendes (2003) e doutorado em em direito pela UNESA/RJ
(2011).Experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Penal, atuan-
do principalmente nos seguintes temas: processo penal, hermenêutica, poder judiciário
e sociedade brasileira. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Ja-
neiro, fundador do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD),
membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano.

Primeiras investigações sobre o juiz de personalidade


autoritária em tempos de neo-obscurantismo no Brasil

I – Introdução
Em 1950, foram publicadas as conclusões da pesquisa conduzida por Theodor W. Adorno e outros pes-
quisadores, realizada nos Estados Unidos da América, logo após o fim da 2a Guerra Mundial e a derrota
dos fascistas, com o objetivo de verificar a presença naquele país de tendências antidemocráticas, mais
precisamente de indivíduos potencialmente fascistas e vulneráveis à propaganda antidemocrática. Os da-
dos produzidos na pesquisa, tanto quantitativos quanto qualitativos, não deixaram dúvida: a potencialidade
antidemocrática da sociedade norte-americana já era um risco presente naquela oportunidade.
Neste breve texto, prévio à elaboração de pesquisa mais profunda sobre a tradição autoritária dos atores
jurídicos, buscar-se-á, a partir dos caracteres da personalidade autoritária identificados por Adorno1, de-
monstrar que eventual potencialidade fascista de juízes brasileiros é um risco à democracia no Brasil, em
especial porque o Poder Judiciário deveria funcionar como garante dos direitos e garantias fundamentais,
isto é, como limite ao arbítrio em nome da democracia e não como fator antidemocrático.
A investigação segue a hipótese formulada por Adorno: que as convicções políticas, econômicas e sociais
de um indivíduo formam com frequência um padrão amplo e coerente, o que alguns chamam de “menta-
lidade” ou “espírito”, e que esse padrão é expressão de profundas tendências de sua personalidade. No
caso dos juízes brasileiros, a aposta era de que seria possível falar em uma tradição ou uma mentalidade
antidemocrática, que vislumbra o conteúdo material da democracia, os direitos e garantias fundamentais
1 ADORNO, Theodor W. Estudios sobre la personalidad autoritaria. In Escritos sociológicos II, primeira parte, Obra Completa, 9/1.
Madrid: Ediciones Akal, 2009.

Em nome da inocência: Justiça | 69


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

dos indivíduos, como um obstáculo a ser afastado em nome da eficiência do Estado.


Para identificar o espírito ou a mentalidade antidemocrática, para os fins deste pequeno artigo, a proposta
é de que o leitor compare artigos, entrevistas e decisões judiciais com sintomas e características identifi-
cadas por Adorno em 1950 como tendencialmente antidemocráticos.

II – Dos sintomas antidemocráticos


Em Estudos sobre a personalidade autoritária, Adorno identifica uma série de características que revelam
uma disposição geral ao uso da força em detrimento do conhecimento e à violação dos valores historica-
mente relacionados à democracia. Na lista de Adorno estão, dentre outros:
Convencionalismo: aderência rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com
os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República. Assim, por exemplo, se é
possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na classe média, apoio ao linchamento de su-
postos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tenderia a julgar de acordo com opinião média
e naturalizar esses fenômenos. No Brasil, a sociedade foi lançada em uma tradição autoritária e acostu-
mou-se, em especial após o Estado Novo de Vargas e a ditadura civil-militar instaurada em 1964, com o
uso da violência em resposta aos mais variados problemas sociais. Atos como linchamentos e arbítrios
policiais tornaram-se objeto de aplausos e até de incentivo de parcela dos meios de comunicação de mas-
sa, e passam a integrar o repertório de ações aceitas pela classe média e, consequentemente, por juízes
tendencialmente antidemocráticos. Ao aderirem a esses valores da classe média autoritária, esses juízes
abandonariam a natureza contramajoritária da função jurisdicional, que exigiria o respeito aos direitos e
garantias fundamentais, mesmo contra a vontade de maiorias de ocasião, para atuar de maneira populista
e julgar de acordo com a opinião média;
Submissão autoritária: atitude submissa e acrítica diante de autoridades idealizadas no próprio grupo. O
juiz autoritário tenderia a ser submisso com desembargadores e ministros, em relação aos quais se con-
sidera inferior e a quem atribui uma autoridade moral idealizada. Essa submissão acrítica faria com que o
juiz autoritário aplauda medidas administrativas tomadas por seus “superiores”, mesmo que contrárias às
prerrogativas da magistratura, e reproduza acriticamente as decisões dos tribunais, desde que o prolator
da decisão seja tido como do mesmo “grupo moral” a que considera pertencer. Assim, repudiaria decisões
que ampliem os espaços de liberdade e incorporaria em seu repertório jurisprudencial as decisões que,
mesmo contra o texto expresso da Constituição, afastam direitos e garantias fundamentais;
Agressão autoritária: tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar e castigar as pessoas
que violam os valores “convencionais”. O juiz antidemocrático, da mesma forma que seria submisso com
as pessoas a que considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária), seria
agressivo com aquelas que etiqueta de inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de
juiz se revela incapaz de fazer qualquer crítica consistente dos valores convencionais, tenderia a repudiar
e castigar severamente quem os viola, por ser incapaz de entender a razão pela qual esse valor foi ques-
tionado. De igual sorte, não se pode descartar a hipótese de que a vida que esse juiz considera adequada,
inclusive para si, é muito limitada, o que faz com que as pulsões sexuais e agressivas sejam reprimidas de
tal forma que retornam na forma de violência contra todos aqueles que, por suas posturas, incitam sua an-

70 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

siedade e o seu próprio medo de castigo. A grosso modo, pode-se supor que o juiz autoritário, convencido
que alguém deve ser punido por exteriorizar posições que ele considera insuportáveis, expressa em sua
conduta profissional, ainda que inconscientemente, seus impulsos agressivos mais profundos, enquanto
tenta reforçar a crença de si como um ser absolutamente moral. Como é incapaz de atacar as autoridades
do próprio grupo, e em razão de sua confusão intelectual é incapaz de identificar as causas tanto de sua
frustração quanto a complexidade dos casos postos à sua apreciação, o juiz autoritário teria que, a partir de
algo que poderia ser chamado de uma necessidade interna, escolher um “bode expiatório”, em regra dirigir
sua agressão contra grupos minoritários ou aqueles que considera traidores do seu grupo;
Anti-intracepção: oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. O juiz autoritário tenderia a
ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com metáforas e pre-
ocupações bélicas e desprezando análises que busquem a compreensão das motivações e demais dados
subjetivos do caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer
compaixão ou empatia. Segundo a hipótese de Adorno, o indivíduo anti-intraceptivo tem medo de pensar
em fenômenos humanos e de ceder aos sentimentos, porque poderia acabar por “pensar os pensamentos
equivocados” ou não controlar os seus sentimentos;
Simplificação da realidade e pensamento estereotipado: tendência a recorrer a explicações primitivas,
hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas, ideias e obser-
vações necessárias para um enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos. Correlata a essa
“simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. O juiz autoritário ten-
deria a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como
premissas, que faz com que não tenha a necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda
a sua complexidade;
Poder e “dureza”: preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à identificação com
figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma desproporcionalmente os valores
“força” e “dureza”, razão pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas basea-
das na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-inte-
lectualismo e à negação de análises minimamente sofisticadas. Não é possível descartar a hipótese de que
o juiz antidemocrático reafirma posições duras (“lei e ordem”) como reflexo tanto de sua própria debilidade
quanto da natureza da função que ele é chamado a exercer. O juiz autoritário veria tudo em termos de cate-
gorias como “forte-débil”, “dominante-dominado”, “herói-vilão”, etc.
Destrutividade e cinismo: hostilidade generalizada somada à desconsideração dos valores atrelados à
ideia de dignidade humana. Há um desprezo à humanidade de tal modo que o juiz antidemocrático exerce
uma agressão racionalizada. Ou seja, o juiz antidemocrático buscaria justificações para agressões, em
especial quando acreditasse que a agressão seria aceita pelo grupo do qual participa. Em meio a juízes que
aceitam agressões à pessoa, o juiz autoritário busca justificativas, ainda que contrárias à normatividade
constitucional que o permitam agredir;
Projetividade: disposição para crer que no mundo existem ameaças e ocorrem coisas selvagens e peri-
gosas. O juiz antidemocrático acredita que o mundo está sempre em perigo e que sua função, ainda que
insuficiente, torna o mundo menos selvagem. Em suas ações, contudo, vislumbrar-se-ia a projeção de

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

fortes impulsos emocionais inconscientes. Deve-se admitir a hipótese de que os impulsos reprimidos de
caráter autoritário do juiz antidemocrático tendem a projetar-se em outras pessoas, em relação às quais
ele acaba por atribuir toda a culpa por pulsões e pensamentos que, na realidade, dizem respeito a ele. Se
um juiz insiste em “demonizar” uma pessoa (um acusado do crime de tráfico, por exemplo) atribuindo-lhe
propósitos hostis para além da conduta imputada, sem que existam provas de nada além dos fatos im-
putados, existem boas razões para acreditar que o juiz autoritário tem as mesmas intenções agressivas e
está buscando justifica-las ou reforçar as defesas da instância repressiva pela via da projeção. Da mesma
maneira, deve-se assumir a possibilidade de que quanto maior for a preocupação com a “criminalidade
organizada”, o “aumento da corrupção” ou as “forcas do mal”, mais fortes seriam os próprios impulsos
inconscientes do juiz antidemocrático no âmbito da destrutividade e da corrupção;
Preocupação com a sexualidade: preocupação exagerada com o “sucesso” sexual e com a sexualidade
alheia. O juiz antidemocrático teria medo de falhar no campo sexual e compensaria suas inseguranças
com condutas que acredita reproduzirem a imagem do homem viril. Penas altas e desproporcionais, por
exemplo, procurariam compensar a impotência e o medo de falhar. Não se pode descartar a hipótese de que
juízas procurariam reproduzir a imagem do “homem viril” como forma de se afastar do estereótipo do sexo
frágil. Com Adorno, pode-se apostar na força das pulsões sexuais inconscientes do sujeito na formação da
personalidade autoritária;
Criação de um inimigo imaginário: o juiz antidemocrático, que trabalha com estereótipos e preconceitos
distanciados da experiência e da realidade, acabaria por fantasiar inimigos e riscos sem amparo em dados
concretos. Nessas fantasias, marcadas por adesão acrítica aos estereótipos, prevalecem ideias de poder
excessivo atribuído ao inimigo escolhido. A desproporção entre a debilidade social relativa ao objeto (por
vezes, um pobre coitado morto de fome que comercializa drogas ilícitas em uma comunidade como meio
de sobrevivência) e sua imaginária onipotência sinistra (“capitalista das drogas ilícitas e responsável pela
destruição moral da juventude brasileira”) parece demonstrar que há um mecanismo projetivo em funcio-
namento. No combate ao inimigo imaginário com superpoderes igualmente imaginários, os sentimentos
implicitamente antidemocráticos do juiz autoritário apareceriam por meio de sua defesa discursiva da ne-
cessidade do afastamento das formas processuais e dos direitos e garantias fundamentais como condição
à eliminação do inimigo e da ameaça;
O fiscal como juiz e a promiscuidade entre o acusador e o julgador: a confusão entre o fiscal/acusador e
o juiz é uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia processual
autoritária. A hipótese é de que, no momento em que o juiz tendencialmente fascista se confunde com a
figura do acusador, em que passa a exercer funções típicas do acusador como tentar confirmar a hipóte-
se acusatória, surge um julgamento preconceituoso, uma paródia de juízo, com o comprometimento da
imparcialidade que atuaria como condição de legitimidade democrática do julgamento. Tem-se, então,
o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que aderiu
psicologicamente à versão acusatória, de comprovar a hipótese acusatória ao qual está comprometido;
Ignorância e confusão: uma característica da personalidade autoritária é que ela se desenvolve no vazio
do pensamento. Assim, o juiz autoritário em suas manifestações deixaria claro a ignorância e a confusão
acerca de conceitos políticos, econômicos, culturais, criminológicos, etc. A hipótese, nesse particular, é

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

que se o indivíduo não sabe sobre o que se manifesta, razão pela qual substitui o conhecimento pela força
em uma postura anti-intelectual, que ele disfarça como “senso prático” (“eu faço”, “eu entendo porque
sou eu que faço”, “eu sei porque passei em um concurso”, etc.”), precisa preencher o vazio cognitivo com
chavões, senso comum, preconceitos difundidos na classe média e estereótipos. O pensamento estereoti-
pado, que atua em favor de tendências reacionárias (todo movimento e propaganda antidemocrática busca
o ignorante e, por vezes, alcança também o “semi-formado”, aquele que tem uma formação “superior” e
diplomas, mas é incapaz de reflexão porque não consegue articular as informações recebidas ou as des-
considera por acha-las desimportantes para suas metas individuais). Impressiona, ainda hoje, o grau de
ignorância e confusão observado em pessoas com nível educacional formal relativamente alto. Também
não se pode descartar o fato de que a ignorância e a confusão, não raro, são incentivadas e produzidas pe-
los meios de comunicação de massa e pela propaganda, muitas vezes direcionada a fins antidemocráticos
ou pseudodemocráticos;
Pensamento etiquetador: o pensamento etiquetador é fenômeno conexo ao pensamento estereotipado. O
fundo de ignorância e confusão, mesmo que inconscientemente, gera um quadro de ansiedade, semelhante
ao estranhamento e a ansiedade infantil, o que faz com que o indivíduo recorra a técnicas que afastem essa
ansiedade e orientem a ação, mesmo que essas técnicas sejam grosseiras e falsas. Os estereótipos e as
etiquetas, com as quais divide o mundo e as pessoas (“homem mau”, “pessoas de bem”, “petralha”, “coxi-
nha”, “personalidade voltada para o crime”, etc.), servem ao indivíduo como um substituto do conhecimento
(ou uma forma de conhecimento precária e tendencialmente falha) que torna possível que ele tome decisões
e posições (tendencialmente antidemocráticas, uma vez que falta a informação que legitima as escolhas
verdadeiramente democráticas). A hipótese aqui é a de que o juiz antidemocrático recorre ao pensamento
etiquetador para produzir em si uma ilusão de segurança intelectual ou como forma de buscar apoio popular
no meio que também só pensa a partir de estereótipos e outras estratégias de simplificação da realidade;
Pseudodemocracia: a personalidade autoritária, por questões ligadas à ideologia, muitas vezes, caracte-
riza-se por recorrer a distorções de valores e categorias democráticas para alcançar resultados antidemo-
cráticos. Há, nesses casos, um descompasso entre o discurso oficial e a funcionalidade real. Isso ocorre,
por exemplo, ao se defender práticas racistas em uma sociedade racista a partir da afirmação do princípio
democrático da maioria (“se a maioria é racista, o racismo está legitimado”). A hipótese, portanto, é de que
o juiz autoritário recorre ao argumento de estar atendendo às maiorias de ocasião, muitas vezes forjadas na
desinformação, para violar direitos e garantias fundamentais.

III – Desafio ao leitor


Agora, cabe ao leitor para ter uma ideia do pensamento e da mentalidade dos juízes brasileiros comparar
artigos, entrevistas, decisões e demais manifestações desses importantes atores jurídicos com os sinto-
mas e caraterísticas identificados por Adorno como tendencialmente antidemocráticos.
Importante ter em mente que as características e sintomas descritos por Adorno, em regra, apresentam
nexos entre si, mas se referem apenas a uma tendência. As conclusões sobre a aderência, ou não, de cada
pessoa às características da personalidade tendencialmente fascista nos servem para refletir sobre a for-
mação da subjetividade de nossa época e a responsabilidade dos atores sociais na defesa da democracia.

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Lédio Rosa de Andrade1

Quem garante a Democracia?

Lédio Rosa de Andrade1

A democracia é, assim como o amor e o ódio, uma palavra de múltiplos sentidos. Dos extremos dos di-
tadores de direita e de esquerda, passando pelos liberais, socialistas, socialdemocratas e tantos outros
rótulos políticos, todos se dizem democratas, cada um à sua forma. Não se vê nos livros de história algum
líder político assumir expressamente ser um ditador, um sádico, um violento ou um sedento de poder. Pa-
lavras como nazismo, fascismo e stalinismo só adquiriram um sentido negativo em um momento histórico
posterior a sua existência. A polícia bate, o ministério público acusa, os juízes condenam, o sangue jorra,
as invasões ocorrem, as guerras são realizadas, os cadáveres se empilham sempre sob o argumento legi-
timador da defesa da democracia. Quem ganha a luta se autoconceitua de democrata.
A história humana segue, em algumas regiões há paz, em outras guerras. A violência, em todas as suas
formas, se alastra e a palavra democracia vaga pelas mentes, é escrita e falada, mas sempre com seu con-
teúdo incerto. Mas a vida política cotidiana não é absolutamente aleatória e indeterminada, sem qualquer
critério que tenha o mínimo de objetividade. Deixando de lado as teorias críticas e de conflito de classes,
a análise da sociedade ocidental burguesa, no tocante a sua estrutura jurídica, nos permite ver uma certa
1 Graduação e especialização em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1981); graduação em Psicologia e especialização
em economia, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (1999); mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(1992); doutorado em Filosofía Jurídica, Moral y Política, pós-doutorado em Direito e doutorado em Psicologia Clínica e da Saúde,
todos pela Universidad de Barcelona (1995 e 2015). Atualmente é Desembargador no Tribunal de Justiça de Santa Catarina e professor
concursado da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Experiência nas áreas de Psicologia, Psicanálise e Direito, com ênfase
em Direito Alternativo, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, direito alternativo, filosofia, poder judiciário, psicologia
jurídica, psicanálise, psicodinâmica do trabalho e sociologia.

74 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

evolução em suas instituições. De início, sob um paradigma formal, tínhamos um Estado liberal de Direito
e separada dele uma sociedade individualista; o Direito era preponderantemente privado, havendo pouco
espaço ao Direito Público; o bem jurídico mais protegido era a propriedade privada, as relações laborais
eram reguladas pelo Direito Civil e a regulação social fundamentava-se pelo contrato e pela autonomia
da vontade; a proteção jurídica e o conceito de igualdade e justiça eram formais; e a liberdade tinha um
conteúdo negativo, ou seja, o indivíduo era livre na proporção em que o Estado não intervinha em sua vida.
Nesse período ocorreram duas guerras mundiais e o advento do comunismo. A revolução mexicana co-
locou na constituição direitos não burgueses e a revolução soviética resultou em um Estado não burguês
que se estendeu a outros países. Esses fatos colocaram em risco a hegemonia da burguesia e um dos
resultados foi uma profunda modificação nas instituições jurídicas. O paradigma formal foi substituído pelo
paradigma material. Nesse, o Estado passou a ser social de Direito e misturado a uma sociedade coletivis-
ta: o Direito passou a ter um conteúdo material e público; criou-se o Direito do Trabalho, a regulação social
passou a ser regrada pelos Direitos Humanos e Sociais e a economia sofreu regulação das instituições
legais. A proteção jurídica, a igualdade e a Justiça obtiveram um conteúdo material, ou seja, já não basta
a igualdade formal de todos perante a Lei, e passou-se a exigir uma igualdade material, sendo função do
Estado igualar os desiguais. A justiça iniciou a ser medida pela quantidade de comida na mesa, atendimento
médico real, escola de fato e outros direitos a serem concretizados; a liberdade de negativa passou a ser
concebida como positiva, quer dizer, o sujeito só é livre na medida em que o Estado garanta essa liberdade,
principalmente entre os desiguais.
No final da década de setenta a socialdemocracia entra em crise e seu paradigma jurídico passa a ser mo-
dificado. Houve o crescimento do Estado neoliberal e com ele veio a desregulação social. O Estado nova-
mente se distancia da sociedade no que se refere ao bem-estar social, o Direito passa a ser procedimental,
houve a judicialização da política, a regulação social passou a ser tarefa da lex mercatoria, os Direitos do
trabalho, sociais e econômicos são paulatinamente diminuídos, o sistema financeiro passa a ditar as regras
a serem seguidas, o Direito Penal se agiganta, a igualdade e a Justiça voltam a ser formais e submetidas
ao mercado, e a liberdade revive sua forma negativa e atrelada também ao mercado. No neoliberalismo
as questões políticas deixam de ser debatidas de forma pública e em seu lugar na trilogia dos poderes: o
parlamento. O Poder Judiciário é mais confiável ao sistema e assume preponderância política, trazendo
para sua competência temas antes restritos ao setor parlamentar e executivo.
As instituições jurídicas do Estado Burguês também podem ser analisadas por outro viés: o da criação
ou geração de Direitos, ou, mais especificamente, de Direitos Fundamentais. Essa análise costuma negli-
genciar o estudo da concretização e, mais ainda, o da perda de Direitos. Mas essa deficiência não retira
sua importância para permitir o entendimento do que seja o Estado Democrático de Direito, talvez a maior
conquista (mesmo com suas deficiências) na evolução da civilização humana. Trata-se dos Direitos Funda-
mentais de primeira geração ou dimensão (relacionados à liberdade, aos direitos civis e políticos, e exigem
atuação negativa do Estado); de segunda geração (direitos sociais, econômicos e culturais, de caráter
positivo, que exigem atuação do Estado); de terceira geração (relacionados à fraternidade e solidariedade e
dizem respeito ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, à propriedade sobre o patrimônio comum
da humanidade e ao Direito de comunicação) considerados Direitos transindividuais com função de prote-

Em nome da inocência: Justiça | 75


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

ção ao gênero humano; de quarta geração (direitos à democracia, à informação e ao pluralismo); também
se fala em Direitos Fundamentais de quinta geração (direitos virtuais e relacionados à honra, à imagem e ao
princípio da dignidade da pessoa humana.) Outros autores mencionam essa quinta geração como Direito à
Paz. Da mesma forma, há os que falam em Direitos das gerações futuras.
Esses Direitos são o fundamento do Estado Democrático de Direito, melhor forma político/jurídica de se
viver, segundo a quase totalidade dos estudiosos e com forte reflexo na massa social. Na atualidade é
difícil encontrar algum sujeito que se declare abertamente contra o Estado Democrático de Direito e a favor
da tirania. Os tiranos, especialmente os de espírito, são os primeiros a defendê-lo na busca pelo poder.
Entretanto, basta um olhar ao mundo real para ver a destruição concreta desses princípios, ou dessas
gerações de Direitos. Diante dessa desconexão entre a teoria jurídica sobre os Direitos Fundamentais e o
cotidiano das populações das democracias ocidentais, surge uma pergunta importante: quem deve garantir
a democracia?
Vamos ao caso do Brasil. Não há dúvida de que após o fim do regime militar houve uma grande judiciali-
zação da política. Os meios comuns do debate político democrático, o parlamento, o executivo e as ruas
foram substituídos, em boa parte, pelas decisões judiciais. Isso se dá por dois motivos. Primeiro, é a
proposta neoliberal. Há um horror neoliberal pelo debate político e, ainda mais, se esse debate ocorrer nas
ruas. Então, o melhor é judicializar, pois o tradicional conservadorismo do Poder Judiciário atende de forma
mais adequada às intenções neoliberais. Mas há outro fator talvez preponderante: o descrédito da classe
política, corolário de suas próprias práticas. Não há sentimento republicano e nem sentimento público. A
democracia não é um valor estrutural na consciência do brasileiro. Ao contrário, nossa população é bem
condescendente com práticas antidemocráticas, desde que obtenha alguma vantagem real ou imaginária.
O resultado é a apropriação dos bens e serviços públicos para atender os interesses de políticos e suas
famílias. Deputados e senadores votam questões fundamentais à sociedade brasileira em nome de deus,
da família, da esposa, do filho e não em nome da democracia e da república. Essa realidade aperfeiçoou
um sistema endêmico de corrupção que parece não salvar mais ninguém. E se os políticos são tidos, de
forma geral, pela população como ladrões, perdem força social e com isso esvai-se a própria capacidade
de fazer política. Torna-se normal, portanto, passar ao Judiciário essa função. E aqui há de se entender
Judiciário de forma mais ampla, como Sistema de Justiça, pois também se incluem o Ministério Público e
a Polícia, em especial a federal.
Politizado o Poder Judiciário, um dos primeiros resultados foi o aparecimento de personagens jurídicos
que atuam como pop star. Parece que a moda agradou, todos querem se tornar celebridade ou ter momen-
tos de notoriedade. A Lei de Gerson agora convive com outra Lei: galgar a fama a qualquer custo. Esses
novos valores atuam nas mentes de agentes públicos e moldam suas ações. Mas as formalidades legais,
o respeito aos princípios constitucionais, em especial o da presunção de inocência, da ampla defesa e do
contraditório, impedem os espetáculos, as cenas emocionantes e capazes de encantar o público. E sem
show o público não gosta e aí não vale a pena fazer Justiça. Por certo, nesses espetáculos teatrais públi-
cos, ademais das vaidades pessoais de cada um, há outros fatores poderosos, relacionados às relações
sociais de poder e, de maneira mais específica, ao jogo político.
Os corolários dessas transformações nas instituições republicanas são visíveis. Uma minoria está impon-

76 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

do as regras e elas não são nada republicanas, muito menos, democráticas. Para manter o espetáculo, uma
parte dos agentes públicos, em conluio prostituído entre alguns juízes, promotores de justiça e policiais,
cujas funções se pervertem, instalou uma rede de atuação nazifascista, onde tudo é azeitado pela atuação
da grande mídia.
Nazismo e fascismo não são meros conceitos. São uma prática de vida. No Brasil de hoje há ações nazi-
fascistas no Judiciário, no Ministério Público e na Polícia Federal. E quais ações são essas? Muitas. Des-
tacam-se algumas. A) abusar do poder legalmente estabelecido; b) atuar em acordo espúrio entre institui-
ções diferentes; c) desrespeitar os princípios constitucionais; d) praticar, culposa ou dolosamente, erros in
procedendo, contrários às normas legais expressas e claras; e) agir os agentes públicos como informantes
da mídia, inclusive em processos em segredo de justiça; f) ignorar as leis gerais e instalar a lei pessoal; g)
banalizar a prisão e outras medidas coercitivas. O dramático disso é que os Tribunais Superiores não estão
coibindo esses abusos, ao contrário, os avalizam.
Essas ações ilegais e ilegítimas levam a quais resultados deletérios? Vários. Isso já está denunciado há
anos, principalmente nas ações realizadas cotidianamente contra os extratos pobres da sociedade. Vamos
aos mais importantes: a) destruição das instituições republicanas e democráticas; b) o poder não é mais
usado com base na lei geral, mas ao gosto da autoridade do caso, com consequências perniciosas; c)
pessoas são presas de forma injustificável como primeira medida, mesmo que muitas delas não sejam rés
ou sejam inocentadas posteriormente; d) a grande mídia recebe informações privilegiadas e ilegais para
transformar as prisões em show business; e) a vida pessoal de cidadãos, presumidamente inocentes, é
destruída em questão de segundos; d) os corpos de pessoas suspeitas são transformados em brinquedo
de exposição midiática, para o sucesso dos agentes de repressão; e) crianças presenciam, sem neces-
sidade e fundamento legal, suas casas serem invadidas por policiais mascarados e fortemente armados,
veem os canos dessas armas apontados para si, assistem a seus pais serem algemados em sua presença,
levados acorrentados, sem que qualquer perigo ou resistência exista no caso; f) a mídia pré-condena, não
informa, apenas realiza com competência o show de destruição; g) destruídos de forma irreparável, alguns
se suicidam.
Mas há quem entenda não existir qualquer arranhão ao Estado Democrático Brasileiro. Além das posições
estremas, há as associações de classes representantes da magistratura, do ministério público e da polícia
defendendo essas práticas. Os argumentos classistas soem se repetir. Vêm em defesa da democracia, só
existente com a condição da liberdade dessas instituições e as críticas sempre são classificadas como
tentativa de manipular a opinião pública e de buscar destruir as instituições democráticas a fim de benefi-
ciar os criminosos. Talvez sejam exatamente esses argumentos corporativistas a mais profunda tentativa
de manipulação da opinião pública.
E por que seriam uma manipulação? Também a resposta é: por muitos motivos. Vamos aos mais impor-
tantes: a) os críticos das ações de alguns dos membros dessas associações não são contra uma magis-
tratura, um ministério público e uma polícia livres. Também não defendem os corruptos e qualquer outro
tipo de crime, inclusive o praticado pelo Estado; b) as críticas se dirigem contra os abusos cometidos pelos
agentes públicos. Aqui surgem questionamentos: essas associações defendem o direito de seus membros
praticar abusos? Por que igualam controle de abusos e ilegalidades com ataque à democracia? O princípio

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

fundamental da liberdade da magistratura, do ministério público e da polícia lhes dá o direito de agirem


contra a Constituição e contra as Leis? Um rotundo não me parece a resposta. A manipulação está no
propósito de ocultar os desmandos existentes nessas instituições.
Vamos ver esses abusos mais de perto, analisando casos reais: a) um juiz, ao ver seu time de futebol per-
der a final de um campeonato, mandou prender em um campo de futebol toda a torcida do time vencedor
que estava a comemorar em carreata, ao estilo Pinochet; b) um procurador de justiça, usando material de
expediente, manda a população de uma cidade, sob as penas da lei, ir a um campo de futebol assistir uma
pregação religiosa com conteúdo sexista proferida por ele mesmo; c) juiz decreta prisão preventiva de três
pessoas, incluindo uma mulher com gravidez de risco, porque se reuniram para discutir uma ação de ocu-
pação a ser realizada pelo MST. No Brasil atos preparatórios não são considerados crimes. Portanto, pren-
deu sem qualquer crime; d) o juiz marca interrogatório, sem o réu saber. Decreta sua condução coercitiva,
sem ele ter conhecimento. A mídia é avisada, mesmo em processo de segredo de justiça, às escondidas.
Por desconhecimento e falta de intimação, o réu primário jamais se negou a comparecer perante a autori-
dade. Mesmo assim é preso, filmado e execrado. Essa prática é abundante no Brasil. O art. 260 do Código
de Processo Penal é bem claro: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconheci-
mento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo
à sua presença.”; e) a prisão temporária foi banalizada e está sendo usada como primeiro ato processual,
inclusive contra pessoas não indiciadas em qualquer crime. A Lei 7.960/89 também é bem cara.
Art. 1° Caberá prisão temporária:
I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II - quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos neces-
sários ao esclarecimento de sua identidade;
III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na
legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°);
b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);
c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°);
e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo
único);
g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223,
caput, e parágrafo único);
h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo
único);
i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°);
j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualifi-
cado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285);
l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em


qualquer de suas formas típicas;
n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);
o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986);
p) crimes previstos na Lei de Terrorismo.

Nesse ponto chegamos ao caso da vítima homenageada com esse livro. O Reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, era primário, com residência fixa ao lado da univer-
sidade, sua identidade era conhecida de todos, nunca praticou qualquer crime, principalmente aqueles lis-
tados na Lei, não era réu no processo, então, por que foi preso, algemado, submetido à revista íntima, tendo
o ânus investigado, e levado à ala de segurança máxima da Penitência do Estado? A Súmula Vinculante n.
11, do Supremo Tribunal Federal, está assim escrita: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência
e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal
do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado.” Não bastasse isso, o médico cardiologista que havia instalado stent no
Cau foi lhe atender e teve de examinar o paciente algemado.
Lei clara e Súmula Vinculante do Supremo são desobedecidas de forma evidente e as associações defen-
dem tais ilegalidades como democracia. Os juízes que mandaram, a pedido do ministério público e com o
uso da polícia, os réus serem queimados em fornos no nazismo exerciam democracia? Já está na hora de
pararmos para discutir e estabelecer as diferenças entre o legítimo exercício da magistratura, do ministério
público e da polícia e o abuso de autoridade, a ilegalidade e o crime praticado em nome do Estado. Talvez
se tenha de reviver no Brasil a quarta emenda à Constituição dos Estados Unidos da América.
O momento brasileiro é grave e ultrapassa o macarthismo norte-americano. A corrupção e outros crimes
precisam ser combatidos com rigor, disso não se duvida. Mas hão de ser combatidas as ações de Juízes,
que deveriam ser os guardiões da Constituição e das leis, quando se transformam em justiceiros, funcioná-
rios banalizados, meros homologadores de pedidos vindos da polícia e do ministério público, sem qualquer
ponderação, sem respeito à vida alheia. Se espera de um magistrado atuação com parcimônia, respeito a
todos, decisões pensadas e o uso das medidas drásticas e excepcionais quando efetivamente necessárias.
O julgador tem de ser um garantidor de direitos e não um amedrontador pelo seu uso abusivo. Porém,
Direitos básicos de qualquer cidadão estão sendo destruídos. O autoritarismo, o governo pessoal aumenta
e substitui a lei geral e o interesse de todos. A prática fascista está crescendo e se impondo, diante de um
congresso nacional acovardado e envolvido em crimes, de um executivo agonizante, e de um judiciário
receoso da mídia e da opinião pública e que não dá um basta aos abusos de poder.
A magistratura, o ministério público e a polícia são instituições fundamentais ao Estado Democrático de
Direito. A grande maioria de seus membros, mesmo calada, é composta de democratas, pessoas honestas
e desejosas de realizar suas funções de acordo com o Direito Positivo vigente. Mas de forma impressio-
nante uma minoria tomou o comando e está dando as regras do jogo, inclusive subjugando os Tribunais
Superiores que assistem aos abusos sem dar o necessário basta.

Em nome da inocência: Justiça | 79


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Eles estão de volta. Precisamos pará-los. Ainda há tempo para o debate e para uma solução pacífica e de-
mocrática. Mas se os fascistas chegarem ao poder, a história nos diz que só a guerra é capaz de detê-los.
Evitemos esse erro. Vamos derrotá-los novamente agora, ainda em paz. Só assim poderemos garantir a
democracia.

80 | Em nome da inocência: Justiça


Thiago M. Minagé1

FUNDAMENTAR O PROCESSO PENAL EM BASES


EQUIVOCADAS VIABILIZA O USO DA PRISÃO
PREVENTIVA COMO VERDADEIRA ARMA.

Thiago M. Minagé1

INTRODUÇÃO
A ideia proposta por Luigi Ferrajloli de que “nulla culpa sine judicio” possui significativa grandeza e impor-
2

tância para compreensão deste tópico. A obrigatoriedade do processo, no entanto, não é algo que possua
valor, por si só, que possa permitir sua explicação de forma reducionista, como por exemplo, identificando
funções e suas respectivas definições3. Parte-se dessa premissa para iniciar-se análise da finalidade do
processo penal, tendo como desafio, à frente, variantes, tais como, a incerteza do resultado processual4 e
o uso desmedido do exercício do poder jurisdicional5.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, percebeu-se a necessidade
de adequação a alguns conteúdos jurídicos, para que, necessariamente, se adequassem à concepção de
estado democrático de direito, principalmente, quanto aos conteúdos normativos inerentes ao processo,
uma vez que, a permanência no tratamento do processo como relação jurídica entre as partes e o juiz, o
colocando como um instrumento da jurisdição, com o objetivo de realizar os escopos metajurídicos e a

1 Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá-RJ. Professor de Processo Penal da UNESA-RJ, ABDConst e EMERJ. Diretor
Acadêmico da ABRACRIM-RJ. Advogado Criminalista.
2 FERRAJOLI, 2002, p.73-74.
3 PRADO, Geraldo. Prova Penal e sistemas de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos
ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 18.
4 LOPES JR., 2017, p.85. Aliado a tudo isso, a epistemologia da incerteza e a relatividade sepultam as “verdades reais” e os “juízos de
certeza ou segurança” (categorias que o direito processual tanto utiliza), potencializando a insegurança.
5 FERRAJOLI, 2002, p.95-96.

Em nome da inocência: Justiça | 81


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

pacificação social, e consequente enfraquecimento das partes6 [autor e réu], demonstrou-se equivocado7.
Principalmente, por permitir o malsinado solipsismo judicial, admitindo que o juiz seja o único intérprete no
processo, podendo fundamentar sua decisão em argumentos metajurídicos, inclusive, alheios a preceitos
constitucionais, sobretudo, pela falta de instrumentos de contenção e controle em relação às decisões
judiciais8.
Necessário abandonar a ideia da teoria geral do processo instrumental, retirando o juiz do lugar de prota-
gonista do processo, deixando para as partes [acusação e defesa] a principal função, para tanto, compre-
ender a origem do processo, constatar o uso de premissas equivocadas [processo civil] que demonstra
um equivoco metodológico, deságua no uso do poder arbitrário. Superar esse tema [TGP] se faz como
premissa básica para democratização do processo penal e um passo para sua humanização, da forma que
está, inegavelmente, muitos sofrerão e morrerão em decorrência do estrago de sua aplicação.

1 - ORIGEM COMPREENSIVA E EXPLICATIVA DO PROCESSO


Desde a origem dos estudos sobre processo, a ideia pelo ângulo privado, como se contrato fosse, foi uma
das primeiras formas de análise do tema no direito romano, o processo dependia de prévia autorização ou
manifestação de vontade das partes envolvidas: legis actiones e per formulas, quando as partes dirigiam-
-se perante o pretor, que fixava os limites do objeto que deveria ser solucionado, acatando, posteriormente,
a decisão que fosse tomada, a litis contestatio9.
Naquele contexto, não existia a figura do estado, propriamente dito, atuando de forma impositiva frente
aos particulares. Talvez, por isso, por falta de instrumentos jurídicos coativos cabíveis, o processo nesse
período era despido de força coercitiva legal para fazer valer a decisão do pretor10. Com o passar do tempo,
críticas surgiram e passou-se a entender o processo como um ‘quase contrato’, ou seja, embora semelhan-
te a um contrato, não possuía natureza contratual pura11.
Essa compreensão privatística – processo enquanto negociação entre as partes interessadas e não como
exercício do poder estatal -, partia de uma premissa básica, que era focada apenas na ideia de direito do
ofendido como faculdade de iniciativa do interessado no processo, como se quem provocasse a instaura-
ção do processo, por si só, determinasse a sua natureza.
Nesse período, o processo era tido como mero ritual procedimental para aplicação do direito material vio-
lado, ou seja, a relação privada, agora litigiosa, dava origem à prática de uma sequência de atos, visão que
até hoje, ainda explica, e muito, a lógica processual civil.
Com o passar do tempo, ocorreu o que se denomina de publicização do direito processual, pois, o poder de
6 NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG, Belo Hori-
zonte, v.1, p. 39-55. jan./jun. 2004.
7 STRECK. Lenio. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio. Dilemas da crise do direito. Brasília a. 49 n.
194 abr./jun. 2012. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 01 mar. 2017.
8 Ibidem.
9 DA SILVA. Ovidio Baptista. Jurisdição e execução na tradição romana-canônica.
10 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDERO, Daniel. Curso de Processo Civil, v.I, 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016, p. 424. Esse compromisso ou litis contestatio foi qualificado pela doutrina como um negócio jurídico de direito privado
ou como um contrato. O contrato era estabelecido pela litis contestatio. Por essa razão, atribui-se ao processo natureza contratual.
Tratava-se de uma espécie de contrato judicial.
11 Ibid., p 424.

82 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

julgar do estado, passou a exteriorizar-se pela função de solucionar litígios. Abandonou-se a ideia de iden-
tificação do processo pelas partes interessadas e, passou para uma compreensão baseada no exercício do
poder de imposição da decisão final12.
A publicização fez cair por terra a ideia de que o processo serve para aplicação do direito material violado,
fruto da teoria concreta do direito de ação, consequentemente, perdeu força a respectiva visão privatís-
tica contratual de processo, tendo o direito material como pressuposto para exercício da ação e início do
processo, anteriormente utilizada. O estudo das teorias da ação permitiu uma abertura ideológica e de
compreensão do processo, agora como instrumento de direito público e exercício do poder estatal.
Cabe observar que, a ação, embora busque do judiciário a efetivação do direito material, dirige-se frente
ao Estado, dele exigindo a solução do conflito, logo, embora o processo seja instaurado, mediante uma
divergência em âmbito de direito material, invoca-se a atuação do estado para que o exercício de seu poder
jurisdicional resolva o conflito, sendo aqui, o principal fundamento que permitiu a afirmativa de que o pro-
cesso se tornou autônomo e de natureza pública13, por ser o exercício do poder estatal.
Assim, conforme o estudo da época, exercida a ação e iniciado o processo, formam-se vínculos jurídicos
entre as partes e o estado instituindo poderes, direitos, faculdades, deveres, obrigações e sujeições, ca-
racterizando verdadeira relação processual, onde o juiz antes de julgar um pedido de aplicação da lei, deve
verificar a pertinência e veracidade das alegações14.
A lógica processual penal, por conta de seu objeto de análise, deve sofrer um deslocamento de premissa
compreensiva para, só então, se efetuar uma leitura adequada e compatível com sua finalidade. Faz tempo
que se discute acerca da finalidade do processo penal, porém, enfrenta-se, sistematicamente, manuais de
direito processual penal que dedicam apenas algumas páginas para o tratamento desse tema, que de regra,
inicia-se pela apresentação dos escopos da jurisdição para, em seguida, atribuir os mesmos fins ao pro-
cesso, ou seja, os fins da jurisdição acabam sendo os mesmos do processo, visto que, este é instrumento
da atuação daquele15.
Assim, percebe-se em Candido Dinamarco uma proposta de que o processo deverá atingir não só escopos
jurídicos como, também, políticos e sociais16. Onde, ação é direito subjetivo, jurisdição um sistema de
tutelas a direitos e, processo mera sucessão de atos, caracterizando-se, assim, a ação como um exercício
de direitos17. Essa instrumentalidade processual única, fruto de uma teoria geral do processo, permite
situações particulares completamente fora da finalidade processual penal, embora, utilizando-se de uma
retórica eloquente padece de fundamento teórico. Principalmente, quando traz uma característica para o
processo que seria a de pacificar com justiça e servir como educação18.
No entanto, é de extrema delicadeza definir em que consistiria a expressão ‘justiça’ [tão almejada e citada],

12 MARINONI, 2016, p 426. Portanto, o que se evidenciou, é que a solução dos conflitos depende da força do Estado, isto é, em
relação à qual os litigantes estão submetidos. O processo não mais é um mero contrato ou um meio através do qual as partes, a partir
da autonomia privada, exercem seus direitos. O processo é colocado pelo estado à disposição das partes, mas bem sabem elas que
estão submetidas ao poder jurisdicional, dele não podendo escapar (imperatividade e definitividade da jurisdição).
13 MARINONI, 2016, p 427.
14 CHIOVENDA, 1936, p. 55.
15 DINAMARCO, 2001, p. 180.
16 DINAMARCO, 2001, p. 186.
17 Ibid., p. 180.
18 Ibid., p. 193-214.

Em nome da inocência: Justiça | 83


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

em determinado caso concreto ou mesmo a justiça, genericamente considerada, a título de padrão semân-
tico. Muitos tentam definir, mensurar ou mesmo determinar o que seria justiça em um processo criminal,
porém, se indagados, não saberiam certamente conceituar genericamente o que é justiça. Entretanto, por
várias razões, não são raros os processos e decisões injustas que permanecem afetando as vidas dos
envolvidos de forma arbitrária e injusta, assim sendo, muitas vezes, até quando nada mais se pode fazer
a favor do injustiçado.
A problemática advinda dessa concepção trabalhada por Dinamarco, de cunho, notadamente, instrumen-
talista do processo, advém da influência estrangeira Bülowiana, da concepção de processo como relação
jurídica entre as partes e o juiz, tendo como principal característica, afirmar que uma parte tem direito e a
outra, dever de sujeição, já que, quem tem direito [sujeito ativo] pode exigir determinada conduta do sujeito
passivo [direito subjetivo], devido à existência de um pretenso vínculo jurídico de exigibilidade entre os
sujeitos do processo19. Entretanto, não se pode afirmar, que no processo uma das partes tem o direito de
exigir da outra uma determinada conduta20.
Ao se falar sobre o processo penal, de forma específica, não está se tratando de qualquer tipo de processo,
está-se falando de um método de definição da responsabilidade penal, que deve partir de uma perspectiva
analítica, de forma a identificar e considerar não apenas seu objeto específico como, também, sua função
e finalidade21.
A falta de precisão compreensiva do processo penal acaba por ser uma ferramenta que sempre favorece a
discricionariedade judicante e, desta forma, o arbítrio estatal, trazendo sérios prejuízos a toda sociedade,
envolvidos e, principalmente, o acusado22. Fruto de conceitos indeterminados, como tantos outros, dos
quais está repleta a legislação processual penal, encontrando referencial semântico naquilo que entender o
julgador. Quando não há forma precisa, não existe garantia e segurança ao acusado e, por consequência,
não existe devido processo legal23.
Embora traçada para uma teoria geral do processo, a concepção sobre os escopos do processo, que o
próprio Rangel Dinamarco24 reconhece como fins ideais delineados, por ora, definidos como social, político
e jurídico, foram fundamentais para se iniciar a compreensão do tema. Isso porque, para ele, o processo
tem como fim, em síntese, o escopo social, cuja finalidade seria pacificar a sociedade através da realização
da justiça e, mediante a utilização de critérios justos de segurança jurídica, conscientizando a população
de seus direitos e obrigações. Como escopo político, o processo serve para reafirmar o poder estatal de

19 ARAÚJO, Marcelo Cunha de. O novo processo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
20 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 98.
21 PRADO, 2014, p.18-19.
22 STRECK. Lenio. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio. Dilemas da crise do direito. Brasília a. 49 n.
194 abr./jun. 2012. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 01 mar. 2017, p. 18. Sob qualquer tese, perspectiva ou bandeira teórica que se adotem, persiste um problema fulcral na
metodologia (ou teoria) do Direito: o problema das condições da interpretação e da aplicação do Direito. Há fortes indicativos de que
parcela significativa dos juristas não se apercebeu do problema paradigmático envolvendo o giro ontológico-linguístico. Um dos
pontos centrais está no “problema do esquema sujeito-objeto”, para o qual a comunidade jurídica não presta a devida atenção. É ali,
no sujeito solipsista (Selbstsüchtiger), que reside o ponto de estofo que impede a superação da cisão entre nterpretar e aplicar, assim
como os diversos dualismos que, desde Platão, tornam os juristas reféns da dicotomia razão teórica–razão prática.
Ibid.
23 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1158.
24 DINAMARCO, 2001, p. 154.

84 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

decidir de forma imperativa, assegurar o culto ao valor liberdade e assegurar a participação dos cidadãos
nos destinos da sociedade política e, como escopo jurídico, aplicar a lei ao caso concreto25.
Assim, a partir de uma visão mais antiga de sistema jurídico, quando se tinha como seu ponto central a
ação, o direito de ação, entendia-se que o fim do processo, em especial do civil, era a tutela de direitos26.
Naquele contexto, não é difícil concluir que o processo civil e penal servia apenas para a obtenção de uma
sentença com força de caso julgado, sendo o principal objetivo jurisdicional.
Inevitável, a conclusão de que esta ideia apresenta-se, totalmente, imprestável à concepção atual da juris-
dição e do processo, ou seja, embora seu estudo parta da impossível ideia de uma teoria geral do processo
[conforme já delineado acima], também, no processo penal a jurisdição serve à tutela de direitos individuais
do acusado, visto que, a possibilidade de violação dos mesmos é grande e, para tanto, não se pode ficar
apenas com o conceito de proteção aos direitos considerados abstratamente27.
Ocorre que, após demonstrar as teorias inerentes ao exercício da ação28, constata-se uma forte crise no
conceito de relação jurídica processual por conta de sua generalização e abstração conceitual, que acaba
desconsiderando a própria situação material [sendo certo que penal e processo penal estão ligados, em-
bora autônomos] sem explicar, ainda, a forma de exercício do poder do estado frente às particularidades
de cada caso concreto29. Com isso, toda a estrutura processual, acaba por desconsiderar a realidade
social-fática a ela submetida30.
Mesmo porque, jurisdição possui outra dimensão no processo penal, para além do poder-dever, torna-se
verdadeira garantia fundamental, um limite ao poder legítimo, tendo o juiz um papel [atuação] completa-
mente distinto do exercido no processo civil31.

2 - SUPERANDO OS ESCOPOS META JURÍDICOS.


É de extrema importância entender o fenômeno processual conjugado com o direito material, isso não sig-
nifica vincular um ao outro, muito menos transportar teorias de um para o outro32, mesmo porque, apenas
com essa consideração que se alcançará uma correta adequação procedimental, intimamente relacionada
aos direitos fundamentais e garantias de cada indivíduo envolvido no processo, que legitima o exercício do
poder. É através do procedimento que o estado exerce seu poder e, por questões óbvias, a via procedimen-

25 Ibid., p. 159-223.
26 Ibid., p. 151.
27 Ibid., p. 151.
28 Teoria Imanentista, a respectiva teoria, permaneceu em vigor, durante longo período até a metade do século XIX, a concepção que
se tinha sobre a ação [processo] estava, inseparavelmente, submetida ao direito civil [verdadeiro direito adjetivo]; Teoria Abstrata,
imediatamente, após a superação do período imanentista e reconhecida a autonomia do direito de ação processual, na obra de Bülow;
Teoria Concreta, após o surgimento e desenvolvimento da teoria abstrata da ação surge, então, a doutrina de Adolph Wach, que explica
o direito de ação, inerente ao pressuposto da autonomia do direito de ação, em relação ao direito material; Teoria Eclética, mediante
nova abordagem capitaneada por Liebman.
29 LOPES JR., 2017, p. 95. Mas também se deve sublinhar que a polemica em torno do conceito de ação foi desviada para um caráter
extraprocessual, buscando explicar o fundamento do qual emana o poder, afastando-se do instrumento propriamente dito. Assim, hoje,
podemos claramente compreender que esse desvio conduziu a que fossem gastos milhares e milhares de folhas para discutir uma
questão periférica, principalmente para o processo penal, regido pelo princípio do a necessidade e com uma situação jurídica complexa,
completamente diversa daquela produzida no processo civil.
30 Ibid.
31 LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal - Introdução Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.
32 Ver capitulo que falamos sobre autonomia do processo penal.

Em nome da inocência: Justiça | 85


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

tal incorreta acarreta a ilegitimidade estatal33. Significa dizer que o processo penal somente se legitima à
medida que se democratizar e for devidamente construído a partir da constituição34.
Voltando às finalidades do processo, é necessário destacar que, a realização da justiça esbarra no terceiro
intuito do processo, qual seja: a segurança jurídica35. Evidentemente, pelo discurso do senso comum, a jus-
tiça deve sempre prevalecer, mas isso, às vezes, não ocorre, justamente, por conta da segurança jurídica,
que não passa de uma retórica despida de efetividade prática na garantia de direitos.
Na medida em que se sustenta uma relação mútua, de complementariedade funcional, entre o direito penal
e o direito processual penal, admitindo que serem partes de uma mesma unidade36, não se pode descon-
siderar que se tem um direito penal autoritário e extremamente punitivo, logo, como decorrência lógica e
indispensável, necessário um processo penal que o acompanhe37, por isso, não é absurdo afirmar que,
se o direito penal é conduzido de forma desajustada dos valores constitucionais, inevitavelmente, assim
também será o direito processual penal38. Eis a discrepância no tratamento dos institutos e o principal
empecilho para a democratização do processo penal.
Com efeito, o que se observa na realidade atual é que cresce a criminalização de condutas, aumenta-se o
patamar de imposição das penas, criam-se novos regimes e para o seu cumprimento39 [além de se criar
novas formas de cumprimento, meio à la carte]. Vale dizer, aumenta-se o rigorismo de algumas leis penais
que, por sua vez, adaptam-se com facilidade ao vigente código de processo penal - o qual, desde sua
origem mantém uma condição autoritária -, como exigência de um neopunitivismo penal40, tendo em vista
que, o direito penal, historicamente, sempre perseguiu os etiquetados41.
Desse modo, o movimento sentido nos últimos anos de expansão do direito penal, até sua vertente mais
cruel do direito penal do inimigo é sentida, sem dúvidas, na legislação processual penal, em um verdadeiro
processo penal do inimigo42, no percurso natural verificado na esfera criminal, hoje dominada por um
simbolismo que traça um verdadeiro colapso do processo penal que, por sua vez, não dá conta do excesso
de demanda.
Com uma aparente contradição, percebe-se o investimento em um abrandamento do poder punitivo do
Estado, para determinadas condutas às quais não mais se aplicam penas privativas de liberdade43 e, ainda,
de forma simultânea criam-se formas discutíveis de eliminação de processos penais, a exemplo, da com-

33 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Tradução: Maria da Conceição. Brasilia. UNB, 1980.
34 LOPES JR., 2017, p. 30.
35 LOPES JR., 2017, p. 91. É necessário destacar que o direito material é um mundo dos entes irreais, vez que construídos à semelhan-
ça da matemática pura, enquanto o mundo do processo, como anteriormente mencionado, identifica-se com o mundo das realidades
(concretização), pelo qual há um enfrentamento da ordem judicial com a ordem legal.
36 MAIER, Julio B. J. Estado Constitucional de Derecho y procedimiento penal. In: Antología. El proceso penal contemporáneo. Lima:
Palestra Editores, 2008, p. 904.
37 MIRANDA COUTINHO. Jacinto Nelson de. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. In.: Discursos sediciosos.
Rio de Janeiro: Freitas bastos, 2000, p. 75-84.
38 MAIER, 2008, p. 905.
39 Regime Disciplinar Diferenciado instituído pela Lei n. 10.792/03.
40 PASTOR, Daniel. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos.
Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 20015 p. 73-1114.
41 Ver capítulo sobre etiquetamento.
42 MALAN, Diogo Rudge. Processo penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59,
p. 223-259, mar./abr., 2006. Diogo defende a existência de um processo penal do inimigo no Brasil, inserido pela lei 9.034/95.
43 Ver Leis 9.099/95 e 9.714/98

86 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

posição civil dos danos na ação penal pública; a transação penal na lei dos juizados especiais criminais e
a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo44.
Quanto a esta trajetória de eficácia invertida do projeto penal que, necessariamente, abrange, também, o
processo penal, como desconstrução [des] legitimadora do sistema de pena, causada pelo desmascara-
mento dos princípios liberais e das teorias da prevenção especial e geral, que trazem em si uma demanda
de fortalecimento das garantias individuais e de modos alternativos de solução de conflitos. O sistema
penal experimenta, ao mesmo tempo, uma demanda [re] legitimadora proveniente da ascensão do mo-
vimento de lei e ordem, de recrudescimento da ação estatal, bem assim, uma demanda de expansão do
Direito Penal para a tutela de novos bens, ou seja, um verdadeiro período de reivindicações contraditórias
para o sistema penal45.
Decerto, a leitura feita do processo penal sempre foi distanciada do direito penal, na ânsia da separação
metodológica entre ambos, lembrando que, mesmo com lógicas distintas, devem ser estudados e apli-
cados de forma complementar, cabe ressaltar, ainda, que durante muito tempo investiu-se numa visão
asséptica e tecnocrática do processo penal, também, completamente alijado da política criminal e isso
se deu por várias razões, seja por considerar o processo apenas como um apêndice do Direito Penal, por
conta da influência de [mal] dita Teoria Geral do Processo e, em razão de uma visão equivocada de proce-
dimentalismo, vendo no processo, apenas, um conjunto burocrático de trâmites46.
Tenta-se aqui mostrar a necessidade da aceitação da importância fundamental do processo dentro de todo
o sistema de política criminal em vigor. Isso porque, a colocação da matéria penal dentro da sistemática
processual penal é estratégica e, o modo como aquela se organiza influi decisivamente na configuração da
política criminal e na sua formulação47.
Não admitir essa relação [penal, processo penal e política criminal] é um erro, pois, desde meados dos
anos 70 do século passado, percebeu-se um movimento no sentido de o processo não só se configurar
como um instrumento de aplicação do Direito Penal202, mas como verdadeiro instrumento de atuação ime-
diata de controle da massa, recaindo sobre os indivíduos como um meio antecipado dos efeitos da pena,
que sequer sabe se surgirão. E hoje, processo é instrumento de proteção de direitos individuais48.
Importante firmar o entendimento de que o processo, como um dispositivo articulador de elementos de
várias ordens, cujas modalidades de interação são regulares e, ainda, previsíveis49 sendo que, no processo
penal, forma é ‘garantia e limite de poder’, pois, aqui, se exerce o poder de punir em detrimento da liberda-
de. É um poder limitado e condicionado, que precisa legitimar-se pelo respeito às regras do jogo. Logo, não
se deve importar a tal ‘instrumentalidade das formas’ e ‘informalismo processual’, pois, aqui o fenômeno
é completamente diferente50.
Na verdade, então, em virtude da estreita relação com o Direito Penal, o que se deve ver no processo
44 Ver Lei 10.684/2003, art. 9º.
45 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 295-297.
46 LOPES JR., 2017, p. 90. O mundo do processo é o mundo da instabilidade, de modo que não há que se falar em juízos de segurança,
certeza e estabilidade quando se está tratando com o mundo da realidade, o qual possui riscos que lhes são inerentes.
47 BINDER, Alberto M. Justicia penal y estado de derecho. 2. ed. Buenos Aires: Ad Hoc, 2004.
48 LOPES JR., 2017, p. 91.
49 MARTINS, 2010, p. 83.
50 LOPES JR., 2017, pp. 78-80.

Em nome da inocência: Justiça | 87


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

penal é outro instrumento, daquilo conhecido como criminalização secundária51, que se apresenta como
verdadeiro instrumento de política criminal e, justamente, pela ligação que deve ter com o direito mate-
rial, não se confundindo com este, mas, da mesma forma, contribui para a seleção dos destinatários do
sistema punitivo. De regra, os que têm alguma vulnerabilidade com relação ao referido sistema, o que, na
grande maioria dos casos, recai sobre os estereótipos definidos como etiquetados, que, por ignorância,
acabam cometendo os crimes mais grosseiros e violentos, os que causam maior repercussão e que, se
repreendidos, passarão à população a [falsa] ideia de que o Estado está cumprindo seu papel no combate
à criminalidade52.
Sem muito esforço para entender o aqui trabalhado, basta ver, por exemplo, a impossibilidade daqueles
menos providos de poder aquisitivo em contratar advogados, logo, na maioria das vezes, ficam prejudi-
cados em sua defesa técnica, dependentes da defensoria pública, não muito estruturada e, até mesmo,
inexistente em determinados lugares.
Percebam que, se as condutas investigadas pelas agências policiais são, basicamente, sempre as mesmas
praticadas pelo mesmo estereótipo de pessoas, são essas mesmas pessoas que serão acusadas pelo
órgão de acusação [Ministério Público] e, serão elas as processadas pelo Estado no exercício do poder
jurisdicional, sendo elas, então, as grandes destinatárias das decisões e, de consequência, são as mesmas
a se submeterem às regras e infelicidades da execução penal. É o processo, logo, um dos instrumentos da
seleção criminalizante secundária, especialmente, porque regrado por leis, em grande parte, antidemocrá-
ticas e inconstitucionais e, mesmo assim, sistematicamente aplicadas por um judiciário descompromissa-
do com os direitos individuais do acusado.
Como dito anteriormente, o judiciário sempre acaba por servir aos regimes de governo em vigor, sendo
necessário reconhecer, assim, que, principalmente, em dias de tamanha sensação de insegurança social,
descrença no Poder Judiciário e na Segurança Pública, em geral, os fins, tradicionalmente, delineados ao
processo restam totalmente abalados.
Necessário, ainda, identificar quais as condições legitimadoras para o exercício do poder estatal, seja,
pela definição das condutas proibidas, como também, da forma que se estabelece a atuação jurisdicional,
ou seja: por quê?, quando? e como punir? [ou não punir], por quê?, quando? e como proibir? [ou não
proibir], por quê?, quando? e como julgar? [ou não julgar]53. Encontramos em Ferrajoli a melhor forma de
descrição dessas condições formais da legitimação do exercício do poder, que são: (i) interna, pautada no
princípio da legalidade, que estabelece as condutas criminosas, não com base na reprovabilidade moral
e, sim, individualizando taxativamente o que é proibido de ser praticado; (i) externa, que além da interna,
tem como objetivo especificar as justificações políticas que levaram a estabelecer determinada conduta
como proibida54.

PARA NÃO CONCLUIR

51 ZAFFARONI, Eugénio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan,
2003, p. 43.
52 MAIER, Julio B. J. Estado Constitucional de Derecho y procedimiento penal. In: Antología. El proceso penal contemporáneo. Lima:
Palestra Editores, 2008, p. 906.
53 FERRAJOLI, 2002, p. 186.
54 Ibid., p. 185.

88 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Tratar o processo penal como um instrumento de prevenção da prática delitiva afeta diretamente sua fina-
lidade, ou seja, quando a ideia utilitarista preventiva sobrepõe-se aos direitos individuais do investigado ou
processado, permite-se a antecipação dos ideais retribucionistas da pena, por exemplo, o uso da prisão
cautelar, com base em análises pessoais do tipo: periculosidade, capacidade para delinquir, como se es-
tivesse castigando um suspeito ou acusado. Dessa forma, a pena e seus preceitos se tornam um meio e
não um fim do processo penal55.
Definitivamente, ao expor a real finalidade do processo, como se estivesse despindo o processo penal de
sua maquiagem, não mais se devem mascarar ideologicamente os objetivos de um processo penal, para
utilizar analogicamente os argumentos dados à finalidade da pena56. Desse modo, deve-se utilizar da razão
para limitar e, não justificar ou idealizar a atuação do poder punitivo, ainda, quanto ao processo penal, deve
funcionar, assim como o direito penal, como limitador do poder punitivo do Estado e garantia dos direitos
individuais, certo de que, o que necessita de legitimação é o poder de punir do estado, é a intervenção
estatal e não a liberdade individual57.
Necessário entender que o papel do juiz como centralidade do processo e a relação jurídica entre o sujeito
ativo e o sujeito passivo, no processo, foram importados ao instrumentalismo processual, portanto, as
críticas também se estendem ao próprio instrumentalismo, já que não se poderia pensar em um efetivo
contraditório, eis que, pela instrumentalidade, a ideia de contraditório não se fundamenta na simetria de
igualdade das partes (um direito de imposição e outra parte submissão). Logo, o entendimento do processo
como instrumento da jurisdição condiz com o Estado Social, que tem como objetivo precípuo reforçar o
papel dos juízes e enfraquecer a atuação das partes e, consequentemente, não encontra amparo em um
estado democrático de direito58.
Quando se sustenta que a legalidade democrática, deve ser cumprida, ou seja, o devido processo legal
democrático constitucional, não se está discutindo aplicação da letra fria da lei, e sim o caráter normati-
vo da Constituição Federal, e isso é ir contra não só a ativismos e decisionismos, como também contra
protagonismos judiciais. Em um país onde a Constituição Federal prevê direitos fundamentais e sociais,
mas que a modernidade é tardia e o cenário é complexo, será contingente o protagonismo do Direito, o
que em hipótese alguma quer dizer que o protagonismo judicial seja aceito. O protagonismo judicial viola
os pressupostos básicos da democracia. Em um processo, principalmente o penal, não podem haver pro-
tagonistas. Todos devem ser chamados ao debate, contraditório [re] surge como princípio estruturante do
processo, o qual deve originar uma resposta devidamente fundamentada.
A compreensão do processo e do papel das partes e do juiz, no Estado Democrático de Direito, depende
de revisitação crítica e reflexiva do liberalismo e da socialização processual, iniciando-se pelo abandono
dos equívocos praticados nos respectivos modelos, para a busca de um sistema processual, democrático-
-constitucional, compreendendo que o papel a ser desempenhado pelas partes, através do contraditório, é
fundamental e jamais será possível sem o amparo da publicidade e oralidade concomitantemente.
55 FERRAJOLI, 2002, p. 297.
56 Ver capitulo próprio sobre o tema quando abordamos a necessidade da autonomia do processo penal frente ao direito penal, par que,
não seja possível a transposição de teorias de cunho material para o âmbito processual.
57 LOPES JR., 2017, p. 31.
58 Ibidem.

Em nome da inocência: Justiça | 89


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Assim, a primeira finalidade do processo penal é garantir os direitos inerentes a cada indivíduo submetido
ao exercício do poder jurisdicional; prestando, ainda, em segundo plano, à limitação do exercício do mesmo
poder; impondo respeito irrestrito às formas procedimentais estabelecidas, para então, proteger aqueles
que devem e/ou serão absolvidos e, ainda, legitimando pelo procedimento correto a punição a ser imposta.
Por todo o exposto, partindo da premissa que não há pena sem processo, a presunção de inocência exer-
ce uma função fundamental: de que toda investigação e processo criminal tem como ponto de partida a
incerteza por ela inserida, qualquer ato de poder restritivo de direitos será legítimo apenas e tão somente,
quando superada essa incerteza, viabilizando o conhecimento da infração penal e sua autoria, em um es-
quema lógico e jurídico, previamente definido, apto a apoiar a decisão proferida59.
Prender e impor restrições de direitos de forma aleatória e sem fundamento para atender finalidade diversa
do próprio processo penal viola, machuca e mata, mais que qualquer outra forma de agressão. O processo
mata, entendam isso.

59 PRADO, 2014, p. 19.


90 | Em nome da inocência: Justiça
Carol Proner1
Juarez Tavares2

O suicídio do Reitor: a política de execração pública

Carol Proner1 e Juarez Tavares2

À primeira vista, parece que o suicídio é a expressão de uma condição patológica ou de grave distúrbio
mental, próprio de pessoas enfermas e destituídas de racionalidade. Sem querer introduzir aqui a polêmica
em torno de suas causas reais ou da noção de racionalidade, que poderiam suscitar longas especulações,
o certo é que a eliminação da própria vida é um ato grave e que está a merecer certa consideração, não
importam as condições que o desencadearam. Na época da ocupação americana do Vietnam, não foram
poucos os protestos da população local contra os invasores, sendo bem marcantes os suicídios de monges
budistas, autoimolados em praça pública. Os corpos carbonizados na combustão da gasolina, despejada
1 Carol Proner: Doutora em Direito Internacional pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha, Espanha; Mestre em Direito Internacional
pela Universidade Federal de Santa Catarina; Advogada formada pela Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenadora do curso
de relações internacionais e professora de Direito Internacional na UNIBRASIL, Curitiba, Paraná; Autora de “Direitos Humanos e seus
Paradoxos”, “Propriedade Intelectual e Direitos Humanos”; Coordenadora do programa de pós graduação em “Diplomacia e Relações
Internacionais” da UNIBRASIL; Afiliada ao Centro de Estudos Estratégicos da América do Sul (CEESA).
2 Juarez Tavares: Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Professor convidado da Uni-
versidade de Frankfurt am Main. Professor convidado da Universidade Pablo D’Olavide, Sevilha, Espanha. Professor da Universidade de
Buenos Aires; Pós-doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt am Main, Alemanha; Doutor em Direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro - UERJ e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Pós-graduado em Direito pela Universidade Freiburg in
Breisgau, Alemanha; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR; Subprocurador-Geral da República aposentado;
Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros; do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; da Associação Nacional dos Procurado-
res da República; do Conselho de Redação da Revista Retchsgeschichte und Retchsgeschehen; e da Nova Comissão de Redação do
Código Penal Tipo para a América Latina; Membro fundador da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais; Ex-membro
das Comissões de Reforma do Código Penal; Ex-Conselheiro Federal da OAB; Publicações mais relevantes: Teoria do Injusto Penal;
Teoria do Crime Culposo; Teoria dos Crimes Omissivos; Bien Jurídico y Función en Derecho Penal; Teoría del Injusto Penal; Princípios

de cooperação penal internacional (com Raúl Cervini); Racionalidad y Derecho Penal; Idiomas: alemão e espanhol.

Em nome da inocência: Justiça | 91


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

sobre a cabeça e depois inflamada com o auxílio de uma pira, expressavam a dureza e quase irreversibili-
dade de uma situação de desespero e de impotência diante do senhor poderoso do Ocidente. Nos tempos
atuais, a violência do sistema econômico-financeiro produziu tentativas de autoimolação na Grécia, suicí-
dios pelos desahucios, na Espanha e a morte do jovem Mohamed Bouazizi, estopim da crise tunisina e um
dos símbolos das chamadas Primaveras Árabes. O relato das vítimas do sistema econômico é semelhante
quanto à angústia, ao desespero e à impotência. No suicídio, como sacrifício extremo, há sinais intensos
de rebeldia e protesto.
Antes mesmo desses acontecimentos que marcaram época, já interessava o estudo de suas causas. Ten-
do em conta sua frequência em grupos sociais determinados, chega DURKHEIM a anunciar, a partir dele,
sua teoria de coesão social, como fundamento explicativo dos fenômenos que ocorrem nas chamadas
sociedades anônimas. Uma vez que o suicídio não é somente o ato de um indivíduo isolado, mas também
um fenômeno social, conclui DURKHEIM que cada sociedade possui, em determinando momento histó-
rico, uma atitude definida diante dele.3 Conforme o grau de integração social seria possível explicar por
que, em certas condições e em determinados grupos, sua taxa de incidência seria maior ou menor. O que
assinala, então, sua principal característica não é a patologia, a qual pode ocorrer, é verdade, mas, sim,
a posição social do sujeito e suas relações com o mundo da vida. À medida que sua personalidade e os
mecanismos de superação de traumas já não possam mais corresponder às exigências de uma integração
ou reintegração social, estarão nele suspensos todos os vínculos vitais. O suicídio, portanto, não é um ato
irracional, nem um ato de covardia, senão um ato de valentia, de coragem, de discernimento, de rebeldia,
de enfrentamento de uma realidade que já não lhe serve e que deve ser mudada, mas para cuja mudança o
sujeito se vê impotente, tal como os monges budistas do Vietnam ou os imolados do sistema econômico.
Se a cada sociedade há uma forma de suicídio que lhe corresponde, na atual sociedade pós-moderna, em
que os vínculos sociais se desagregam em favor de sentimentos de ódio e oposição ao próximo, fortale-
cidos e disseminados de maneira massiva e universal por atos de desprezo e humilhação, estão cada vez
mais evidentes os atos de autoextermínio, como demonstração da própria impotência para alterar a reali-
dade inóspita. Justamente, a partir da crítica exposta por esse ato extremo, podemos ver como a sociedade
contemporânea se ajusta ao que a mais eminente historiadora alemã, UTE FREVERT, assinala, à chamada
política da execração.4
Não é nova essa política de execração. Fora das películas, a política de execração nasce justamente das
formas de execução penal, ou seja, é um produto do poder punitivo, uma criação do Estado. Como pena
infamante, estava presente em todas as legislações desde o século XIII até a implantação dos Estados
constitucionais. Não é à toa que a Constituição mexicana de 1917, que é o diploma legislativo por excelência
da modernidade e sob cujo modelo se elaboraram os demais diplomas constitucionais, expressamente a
proíbe (art. 22). Essa proibição representa os anseios de uma sociedade que valoriza a pessoa, que faz dela
o centro da ordem jurídica, o que, na verdade, correspondia ao arcabouço teórico do iluminismo, mas que,
na prática, ficara perdida nas urdiduras parlamentares.
Nos seus primórdios, as penas infamantes eram geralmente impostas aos autores de furto e de delitos
sexuais. Mais tarde se estenderam a inúmeros outros delitos, como aos atos de violação sexual ou de de-
3 DURKHEIM, Emile. El suicídio, Buenos Aires: Schapire, 1965, p. 17.
4 FREVERT, Ute. Die Politik der Demütigung, Schauplätze von Macht und Ohnmacht, Frankfurt am Main: Fischer, 2017, p. 7 e ss.

92 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

floramento, ao homossexualismo, às blasfêmias, às falsificações, ao falso testemunho e a toda a sorte de


heresia. De conformidade com a legislação então vigente, o condenado deveria ser submetido à execração
pública por duas horas, aos domingos e feriados, mediante a inflição de insultos, sofrimentos físicos e,
inclusive, lançamentos de dejetos ou excrementos. Alguns condenados estavam também sujeitos a ape-
drejamentos, que lhes causavam dores e até lesões graves. A execração servia tanto à vingança pessoal ou
à exteriorização dos sentimentos de torpeza, como também à imposição de uma condição de medo e terror.
Com esse último propósito, a própria execução da pena de morte se fazia publicamente e era sempre prece-
dida de atos de humilhação, na Alemanha até o Código Penal prussiano de 1851, na Inglaterra até 1868 e na
França até 1939. As penas infamantes eram comuns no mundo jurídico medieval, mas sua disseminação
começa aos poucos a retroceder, com a multiplicação de movimentos de repulsa e também por força de
alterações ocorridas no âmbito do próprio direito penal e dos direitos humanos. O governo da Saxônia,
por exemplo, pressionado por revoltas contra essa forma de punição, recomenda aos tribunais, em 1727,
que não mais a apliquem. Sua decisiva eliminação só se dá, porém, com o fortalecimento da prisão, que
inaugura, no dizer de FOUCAULT, uma nova tecnologia de poder e de disciplina.5 No seio dessa alteração
de perspectiva e no sentido da tônica dos movimentos de reforma penal humanitária, em 1815, o deputado
britânico Michael Taylor apresenta um projeto de lei para eliminar, definitivamente, do Reino Unido, todas as
formas desonrosas de execução de penalidades e, com efeito, todas as penas infamantes. Apesar da disse-
minação dos movimentos de reforma penal, em muitos outros países ainda perduraram penas infamantes
e desonrosas. Assim, o Código Penal napoleônico de 1810, sob o argumento de seus efeitos dissuasórios,
as manteve, como penas acessórias das penas de prisão perpétua ou de longa duração, previsão essa mais
tarde revogada para facilitar a reintegração social do condenado.
A Idade Média é sempre invocada como a época das trevas, dos infortúnios, dos sofrimentos, dos abusos
e das desumanidades. Mas a questão fundamental que se coloca na pós-modernidade é justamente a de
verificar até que ponto as penas infamantes medievais ou, como chama FREVERT, a política de execração
se recupera e se dissemina. A execração pública medieval, apesar de todos seus malefícios e atentados
à dignidade da pessoa humana, tinha uma limitação: só era executada por no máximo duas horas, aos
domingos e feriados; em determinadas épocas, já no final de seu desenvolvimento, durante duas horas
a cada mês. Uma vez que se admita sua reconstituição na atual quadra histórica, principalmente diante
do chamado direito penal do espetáculo, será que essa execração está ainda sujeita a limites? Aqui, não
interessa propriamente a execução das penas de prisão, que como todo o mundo sabe, por ser fato público
e notório, encerra toda a torpeza, humilhação e sofrimento. O que nos interessa mesmo, até em face do
ato de suicídio que temos como parâmetro, é outra forma de humilhação: é a própria política de execração.
Quando foram substituídas as penas infamantes pelas penas privativas de liberdade, tinha-se em vista
sua natureza, tomada no sentido de retributivo, e também sua finalidade, essa última bem esboçada no
Programa de Marburg: a ressocialização dos capazes de ressocialização, a intimidação dos não carentes
de ressocialização e a inocuização dos incapazes de ressocialização.6 Com essas finalidades, o positivis-
mo sociológico alemão compreendia a pena como um instrumento do Estado destinado a disciplinar os
5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão, Petrópolis: Vozes, 1999, p. 18.
6 LISZT, Franz von. Der Zweckgedanke im Strafrecht, in Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, Volume 1, Berlin: J. Guttentag, 1905,
p. 126–179.

Em nome da inocência: Justiça | 93


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

cidadãos conforme sua capacidade de adaptação social. Com isso, obteve uma ocultação do sofrimento
causado pela execução e, ao mesmo tempo, maior eficácia na contenção dos indesejados. A execração
nessa forma de disciplina se resumia, assim, ao uso dos aparelhos internos de repressão. Para o público,
em geral, bastava a publicidade da condenação. Procedia-se, como elucida FOUCAULT, ao desapareci-
mento do corpo. O projeto todo se destinava mesmo à destruição do condenado como agente social ou à
intimidação dos não condenados.
Na pós-modernidade, no entanto, a política de execração deixa os muros da prisão e, sem limites, alcança
formas eficientes de eliminação do inimigo a ser combatido, entrando em cena a midiatização do compor-
tamento desviante acompanhado de narrativas de pós-verdade que tornam o ato da privação da liberdade
apenas o complemento de um martírio psicológico.
Os tempos sombrios vividos no Brasil convidam a uma reflexão sobre o agravamento da tensão social e o
correspondente aumento dos mecanismos de controle de poder e comportamento, censura, atos de exce-
ção e abuso de autoridade. O inimigo a ser combatido, o antissistema, não está bem definido, assim como
também não está identificado com clareza quem é o perpetrador, sequer o próprio sistema é conhecido,
sendo essa uma característica estratégica da pós-modernidade, ou modernidade líquida, como prefere
ZYGMUNT BAUMAN.
O traço mais evidente do aumento da exceção no Brasil tem sido identificado pelo uso do sistema de justiça
criminal para combater um pretenso mal maior da sociedade, a corrupção sistêmica, difusa, corrupção
líquida, que passou a ser justificativa para a inobservância do estado de inocência em nome do bem maior,
a sociedade. Admite-se abertamente a hipótese da condenação sem provas, acolhe-se o uso de métodos
ilegais para a obtenção de provas e o vazamento seletivo de informações processuais à imprensa com o
fim de informar a opinião pública, manobrando a verdade pós factual e atingindo a execração pública do
inimigo, mesmo sem qualquer acusação formal. Eis a fórmula da execração pós-moderna.
Com o enfraquecimento dos poderes legislativo e executivo e a crise política, o poder judiciário acolhe boa
parte das expectativas populares de rearranjo institucional, o que reforça o fenômeno da judicialização da
política e o estímulo ao ativismo de juízes e procuradores que parecem cumprir uma missão civilizatória.
A fórmula da exceção se locupleta pela legitimidade do poder punitivo apoiado na ideia segundo a qual
vivemos tempos igualmente excepcionais que precisam ser enfrentados com o apoio da população, com o
respaldo midiático amparado no princípio da publicidade dos atos processuais, fazendo crescer o clamor
popular e a possibilidade de aniquilação moral.
O arbítrio que decorre do sistema de justiça criminal tem função didática e já é sentido em todas as partes,
espraiando-se nas relações verticais com a certeza da impunidade. O problema não é o general, mas o
guarda da esquina, lembrando a frase de PEDRO ALEIXO nos tempos de COSTA E SILVA. O arbítrio está no
delegado de plantão, no chefe de departamento na Universidade, no síndico do prédio, no juiz corregedor,
nas relações de subalternidade que se inspiram na exceção judicial. O suicídio do Reitor da Universidade
Federal de Santa Catarina, LUIZ CARLOS CANCELLIER OLIVO, serve de alerta para a gravidade do fenô-
meno e foi denunciado por ele próprio como ato extremo diante da humilhação e do abuso de autoridade.
Sem deixar de reconhecer que a seletividade penal é traço definidor do sistema de justiça brasileiro, atu-
ando no compasso discriminatório social e racial desde as origens, um tipo novo de seletividade tem sido

94 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

recorrente nesses processos de combate à corrupção, a seletividade política, que, a pretexto de combater
os desmandos, escolhe investigar e perseguir apenas alguns. Mas o Reitor não corresponde ao alvo-tipo
político, tal qual ocorre na Operação Lava-jato. O que assemelha a Lava-Jato à Operação Ouvidos Moucos
é a forma de atuação do aparelho repressivo penal e a exposição midiática coordenada que, em nome da
transparência, respaldou uma série de violações de direitos e garantias individuais, as quais levaram um
homem público a uma situação limite.
Em escritos anteriores e no bilhete de despedida, CANCELLIER relatou a humilhação e o vexame a que ele
e outros colegas da instituição estavam sendo submetidos, tendo sido presos, desnudados, revistados e
encarcerados sem qualquer denuncia prévia; tiveram suas vidas devassadas e, acusados de formarem
uma quadrilha criminosa, foram impedidos de entrar na Universidade. As medidas de força adotadas,
da condução coercitiva aos mandados de busca e apreensão acompanhados pela mídia, produziram um
linchamento moral indefensável, o sentimento de banimento, infâmia perante a comunidade universitária.
Na sociologia do conhecimento, a contenção do desvio social e o correspondente processo de aniquila-
mento simbólico ou real do inimigo (usando as categorias de BERGER e LUCKMANN)7 se dá pelos mais
variados e difusos mecanismos de controle social, da violência propriamente dita à execração simbólica.
O reitor foi desprezado, achincalhado, mesmo sem denúncia formal, sem processo e sem possibilidade
de defesa. Com a espetacularização do processo midiático-penal, de partida ele já estava difamado, hu-
milhado e condenado. A exposição do acusado à infâmia, com o fim de rebaixá-lo, atingir sua reputação,
probidade, até desacreditá-lo por completo, produziu o desejo do autodesaparecimento do corpo, objetivo
de todos os tormentos.
E se a cada sociedade existe uma forma de suicídio que lhe corresponde, os tempos sombrios vividos no
Brasil convidam a uma reflexão sobre o agravamento da tensão social e o correspondente aumento dos
mecanismos de controle e do avivamento dos atos de exceção pelo sistema midiático de justiça, capazes
de produzir a indefensável execração.
O caso do Reitor é gravíssimo, exige investigação e atribuição de responsabilidades que leve em conta o
que expressamente está denunciado pela vítima, capaz de discernir perfeitamente a respeito da escolha
extrema, e deixa registrado o sentimento de impotência e de repúdio a uma realidade que se naturaliza com
consequências monstruosas.

7 BERGER/LUCKMANN. Die gesellschaftliche Konstruktion der Wirklichkeit, Frankfurt am Main: Fischer, 1998, p. 38 e ss.

Em nome da inocência: Justiça | 95


Alexandre Morais da Rosa

Doutor em Direito. Juiz de Direito. Professor da UFSC e UNIVALI

Entender as investigações pela tatica de guerra:


Blitzkrieg.

Cada vez mais os processos criminais e também as possibilidades de acordo (colaboração premiada e
leniência1) têm como palco de batalha não mais a instrução e sim a investigação prelimilar. Sob essa
premissa, cabe apontar as diversas modalidades da Teoria da Guerra que são manejadas por agentes da lei
cientes de suas obrigações e que, na busca de informação qualificada para apuração dos fatos, valem-se
de estratégias e táticas desenvolvidas no campo da guerra. Por isso, tratarei brevemente da estratégia
relâmpago: Blitzkrieg.
A Guerra2, como tal, não acontece por palavras, mas por batalhas reais, enquanto nas investigações
penais o desacordo encontra um campo para realização do embate de posições (argumentativas), sem
desprezar as artimanhas e jogos ocultos, na ânsia de antecipar as possíveis ações defensivas do, então,
alvo investigado.
1 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Para entender a Delação Premiada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório Modara, 2018.
2.TZU, Sun. A arte da Guerra. Trad. Antônio Celiomar Pinto de Lima. Petrópolis: Vozes, 2013. Embora banalizado por alguns, existem
boas leituras do livro, inclusive no Direito (RONCONI, Diego. A Arte da Guerra para Advogados. Florianópolis: Visual Books, 2005).
O importante é a demonstração de mecanismos e vocabulário próprio da Guerra, consistente em: “ofereça ao inimigo uma isca para
seduzi-lo; simule desordem e ataque”; “não há na guerra condições constantes”; “Quando obtenho uma vitória não repito as táticas”;
“respondo às circunstâncias em uma variedade infinita de formas”. Além de termos militares: Atacar e subjugar; Cercar e destruir; Ata-
car a fraqueza do oponente; Ataque concentrado; Estabelecer domínio; Manobras rápidas; Flexibilidade planejada; Retirada planejada;
Contra-ataque planejado; Admitir perdas iniciais; Espalhar os recursos do oponente; Atrair para posições defensivas; Enfraquecer a
vontade política e psicológica do inimigo; Dissimular, astúcia, ousadia; Manobras enganosas; Usar mensagens enganosas; Principal
impulso focalizado; Mobilidade, surpresa; Abordagem indireta; Manobras de flanqueamento; Pontos de domínio; Fortificar uma base-
-chave; Formar cabeça-de-ponte; Consolidar forças e Retirada.

96 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

A guerra informacional busca evitar o confronto e alcançar a vitória, muitas vezes sem levar em conta os
custos e os recursos necessários e disponíveis3, especialmente diante da escassez4. Daí que a existência
de tática bem-sucedida no espaço investigativo pode gerar espaço rendição, principalmente pelo efeito
surpresa. No decorrer do procedimento investigativo, diante das sucessivas jogadas (subjogos), em geral,
surge realinhamento dos objetivos possíveis, especialmente pelo fato de que a iniciativa investigativa é do
Estado, por seus agnetes. Dependeremos da atitude e capacidade de articulação dos agentes na busca de
seus objetivos.
A dinâmica do jogo5 investigativo entendido pela metáfora da guerra sustenta algo em desequilíbrio. Não há
investigação penal sem jogadas arriscadas, porque a interação é sinônimo de risco e instabilidade. O jogo
investigativo é enfrentamento, confronto, em geral, oposição visceral e respeitosa, muitas vezes cínica, em
que a cooptação cognitiva e/ou alinhamento de recompensas será fundamental em busca do ganho alme-
jado. A questão é bem complexa e cabe sublinhar que na investigação penal se instaura uma modalidade de
competição (jogo), na qual se pode entender o motivo da dificuldade de cooperação6.
A incerteza e opacidade 7 do campo de batalha investigativa podem ser chamadas de atritos, na linha de
Clausewitz, ao exigirem a tomada de posição estratégica e tática, antecipando os movimentos dos jogado-
res. O atrito, entendido como a forma de dificuldades de obter informação, faz com que a prova seja sempre
uma exceção8 e, como tal, inserida em uma lógica singular, sem universalismos. Deve-se a) dominar a te-
oria da guerra como investigação e do direito penal; b) ter experiência de jogo (de combate) ou treinamento
e, c) entender o caráter cambiante do jogo e das sucessivas rodadas (subjogos).
A transformação da investigação prealiminar em jogo de guerra possibilita entender a pressão externa de

3.SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A guerra ao crime e os crimes da guerra: uma crítica descolonial às políticas beligerantes
no sistema de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 111-113.
4.MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011; MULLAINATHAN, Sendhil; SHAFIR, Eldar. Escassez: uma nova forma de pensar a falta de recursos na vida das pessoas e nas
organizações. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Beste Business, 2016.
5 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
6.PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise económica da litigância. Coimbra: Almedina, 2005, p. 46.
7.CÁRCOVA, Carlos Maria. La opacidad del derecho. Madrid: Trotta, 1998, p. 18: “Existe, pues, una opacidade de lo jurídico. El derecho,
que actúa como una lógica de la vida social, con un libreto, como una partitura, pardójicamente, no es conocido o no es comprendido
por los actores en escena. Ellos cumplen ciertos rituales, imitam algunas conductas, reproducen ciertos gestos, con escasa o nula
percepción de sus significados y alcances”.
8.CARNELITTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Conan, 1995, p. 40: “Desenvolve-se assim, sob os olhos do juiz,
aquilo que os técnicos chamam o ‘contraditório’ e, é, realmente, um duelo: o duelo serve para o juiz superar a dúvida, vem de ‘duo’. No
duelo se personifica a dúvida. É como se, na encruzilhada de suas estradas, dois bravos se combatessem para puxar o juiz para uma
ou para outra. As armas, que servem para eles combaterem, são as razões. Defensor e acusador são dois esgrimistas, os quais não
raramente fazem uma má esgrima, mas talvez ofereçam aos apreciadores um espetáculo excelente”.

Em nome da inocência: Justiça | 97


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

personagens, especialmente do populismo9 penal 10: a) mídia – vende o produto crime, vazamento e furos
de reportagem; b) políticos – que usam o medo como plataforma política e se autoprotegem; c) máfia,
crime organizado, – lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e pessoas, os quais podem intervir na prova
(coação); d) agências de controle estatal – para valorizar seu status; e) magistrados, Ministério Público,
defensores (maximizando as recompensas). Tudo isso na especificidade dos fatos que são objeto da per-
secução estatal.
Cada etapa do procedimento investigativo deve ter uma tática de abordagem e enfrentamento. As táticas
se constituem como a materialização da estratégia e, no conjunto, visam a vitória. Articulam-se de modo
coerente para o fim a que se destinam. Devem ser analisadas em contextos diferentes e concentradas em
objetivos parciais. A segmentação e a concentração de esforços em face de cada elemento de informação
probatória, são condição de possibilidade para se jogar de modo global um embate que se dá de modo seg-
mentado, por partes. São muitas batalhas (subjogos) em uma guerra (investigação). Embora o resultado
da investigação deva levar em consideração o conjunto probatório, as apostas probatórias se desenvolvem
isoladamente. Agressividade ou passividade devem levar em consideração os objetivos (estratégia), afinal
de contas pode ser necessário sacrificar “soldados” em nome da vitória. A economia de forças, diante da
estratégia, sempre será recomendável. Logo, não adianta entrar em atrito em qualquer subjogo, mas sim
no que for fundamental para girar o sentido da investigação. Deve-se saber o momento do ataque. ‘Entubar’
e engolir em seco podem fazer parte da estratégia, ainda que jogadores amadores não consigam entender
a dimensão do jogo ampliado. As manobras argumentativas, recursais e de ações impugnativas (Habeas
Corpus e Mandado de Segurança), no sentido de se esperar o momento correto para apresentar a surpresa
(trunfo, blefe, truque, ameaça, etc.) ou se postar no lugar correto da dinâmica investigativa, podem exigir
uma dose de dissimulação, munida de suficiente coleta de informações relevantes.
O domínio das normas processuais, ainda que importante para compreensão do fenômeno investigativo,
depende das noções teóricas (penais, processuais e criminológicas) dos jogadores envolvidos, não só for-
malmente, mas também materialmente11, dado o uso que se pode fazer das diversas colorações interpre-
tativas. Poderão ser movidos pelo anseio de vencer a qualquer custo – mesmo por meio de provas ilícitas
– em nome de um bem (dito) maior, por exemplo, a diminuição da criminalidade, combate corrupção, ou

9.AMARAL, Augusto Jobim do. Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro con-
temporâneo. São Paulo: Almedina, p. 367 e 369: “Há uma constante profunda que, não obstante, emerge como sintoma de fundo no
ambiente político, em alguma medida, nominado por Salas como vontade de punir. Aqui reúnem-se naturalmente, muito além dos
atores jurídicos envolvidos na questão criminal, uma amálgama muito mais difusa e alargada. Um fervor punitivo invade as sociedades
democráticas para além dos palácios de justiça (...). Aquele juiz envolvido antes, pela inépcia estatal, com as demandas de judicializa-
ção atinentes a direitos básicos de cidadania, é alçado agora ao posto de ator político por excelência em termos criminais: os juízes,
agora, ‘só são visíveis de vermelho’. Resumida a tríade conformadora deste estado de coisas a partir de (...) uma polícia forte, uma
magistratura disciplinadora e um direito de exceção sempre pronto a atuar. (...) O populismo penal torna-se claramente uma compo-
nente forte da vida democrática. Um ‘direito de punir’ puramente repressivo, conjugado a uma democracia de opinião (efervescente), é
meramente uma pequena amostra das promessas atrativas (aos eleitores) deste discurso político de emoção midiática. Sua irrupção
passa a ter três elementos fundamentais: punições radicais; com a total indiferença quanto a qualquer eficácia destas políticas (pois
vale o impacto que produz sobre a opinião publicada) e a legislação rigorosa que promete reduzir a criminalidade”.
10.LACLAU, Ernesto. La razón populista. Trad. Soledad Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011: BATISTA, Nilo. Puni-
dos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
11.Os jogadores podem ser aparentemente iguais, como aliás, parece a noção idealizada de parte. Ninguém duvida que num jogo de
futebol entre dois times com onze (11) jogadores, como bem aponta L. A. Becker, o Real Madrid seja melhor que o Ibis (time com fama
de ser o pior do mundo).

98 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

pelo acolhimento de função de garantia (defesa dos direitos individuais).


Dominar teoricamente o campo de batalha é fundamental, tendo em vista o mapa mental do universo de
personagens que incidem naquela investigação, a saber, os jogadores que se têm e não os que se deseja.
Pode ser que um excelente goleiro não tenha o mesmo desempenho como camisa 10 e vice-versa. A
performance depende dos atributos do jogo e, no caso das novas possibilidades de interação no disposi-
tivo investigativo, como colaboração/delação premiada e leniência, bons jogadores de processos penais
cotidianos, não necessariamente, serão bons no de delação. Será necessário dominar as regras do jogo
particularizado. Um excelente jogador em crimes patrimoniais pode não ser em crimes ambientais, por
exemplo. Nem todo jogador de futebol de salão é um bom jogador de campo (o exemplo de Falcão, melhor
do mundo no salão e pífio em campo). Enfim, será necessário dominar para além das regras, porque cada
invetigação tem suas regras e manhas próprias. O excesso de confiança poderá ser um limitador12.
Talvez a assunção alienada da noção de guerra seja verificável quando o jogador, em nome do resultado,
aceita mitigar os princípios da própria guerra, uma vez que a necessidade13 de vitória exclui a legalidade
impeditiva do êxito. Vira uma guerra suja, como visto comumente nos regimes de exceção. Ainda que haja
vitória, tal qual na trapaça, há mácula democrática. Se o resultado condenar sempre é o leitmotiv, pouco
resta para impedir a fraude e a ilegalidade14. Essa tensão entre segurança coletiva e os direitos individuais
não é novidade 15. De qualquer sorte, dependerá de escolhas antecedentes a maneira pela qual os jogado-
res se postarão diante da informação probatória trazida. Diferente da Guerra, todavia, nem sempre a ofen-
siva será o mecanismo para vitória, dado que o centro de gravidade deveria ser a presunção de inocência.
Em jogos viciados, contudo, nos quais o investigado larga com tendência de ser condenado, a postura pas-
siva da defesa precisa ser alterada para ofensiva. As posições e táticas, portanto, dependem do contexto
do jogo. Em todos os momentos a lógica será de desequilibrar o oponente e cooptar cognitiva e argumenta-
tivamente o adversário. Sem objetivos bem definidos por parte dos jogadores, a atividade será amadora e,
assim, mais arriscada. Será preciso ser profissional no desempenho das funções. As táticas não excluem
a cooperação entre oponentes, porque pode ser relevante para manutenção de uma vitória parcial (ganho
relativo), melhor do que a derrota (abandono da mesa de negociação). Por isso as recompensas devem ser
constantemente avaliadas, dando-se relevo à segurança da tática, tendo em vista as forças e fraquezas dos
demais jogadores. Os jogadores podem estar sujeitos à fadiga, ao medo e ao prejuízo à reputação, dentre
outros fatores. Um trabalho constante e cuidadoso de coleta de informações sobre o jogo, investigadores,
12 WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas deci-
sões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018.
13.AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004; TIMM DE SOUZA, Ricardo. Justiça em seus
Termos: Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
14.Esperar equilíbrio moral no jogo negócio da delação é aceitar o processo como elemento de divertimento ou passatempo. Os
jogadores querem ganhar. Os limites morais podem funcionar, no limite, em cada jogador singularmente, mas não operam de maneira
universal. Muitas vezes os acusadores e julgadores (sic) se valem de jargões como: “se não paga por esse, por certo, paga por outro”.
15. LOPES, Edson. Política e Segurança Pública: uma vontade de sujeição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009; ZACCONE, Orlando. In-
dignos de Vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015; VALOIS,
Luis Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016; D’Avila, Fabio Roberto. Liberdade e segurança
em Direito Penal. O problema da expansão da intervenção penal. In: POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila; ÁVILA, Gustavo Noronha de.
Crime e interdisciplinaridade: estudos em homenagem à Ruth Chittó Gauer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 273-286; SAAVEDRA,
Giovani Agostini; VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Expansão do Direito Penal e relativização de seus fundamentos. In: POZZEBON,
Fabrício Dreyer de Ávila; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Crime e interdisciplinaridade: estudos em homenagem à Ruth Chittó Gauer. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 251-271.

Em nome da inocência: Justiça | 99


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

possíveis fontes probatórias, bem assim reputação e pontos sensíveis, sempre será um ganho, mesmo que
não utilizado. A guerra investigativa será de informações e recompensas.
A chantagem e a ameaça ostensiva ou subliminar operam no ambiente do jogo investigativo. Compõem
tática coordenada/combinada para obtenção de cooperação. A lógica do ataque contra-ataque nem sempre
será a mais inteligente/eficiente. Deve-se antecipar as consequências e possíveis revides (imediatos ou
futuros; diretos ou colaterais). Por isso, será possível usar os atrativos e atos com o efeito máximo em seu
favor, tentando desestabilizar o jogador oponente. O foco será sempre descobrir e explorar os pontos fra-
cos dos adversários. Enfraquecidos ou exauridos, os oponentes têm a tendência de cooperação ou recuar.
Por isso o uso das táticas de prisão temporária, preventiva e de condução coercitiva. O impacto da au-
sência de liberdade em sujeitos acostumados ao conforto é lancinante. Por mais que não se possa medir
esse efeito de modo objetivo, pode-se afirmar que a sensação de confinamento, desconforto ambiental e
submissão ao regime institucionalizado da prisão altera a capacidade de apreensão da realidade, além de
impor o estigma social da condição de presidiário. A valorização da liberdade aumenta em face da ausência
de expectativas. O fator tempo, que varia na percepção de quem está dentro do cárcere, daquele que está
fora, implica em estímulos corporais e psíquicos. A fixação na liberdade modifica a forma com que se
estabelece a percepção. O foco deixa de ser racional para se vincular ao sugerido: liberdade, muitas vezes,
por colaboração premiada. A possibilidade de liberdade domina/captura a atenção de sujeitos segregados.
Será preciso muito controle emocional e foco no jogo ampliado (nas externalidades negativas e positivas)
para resistir aos preços oferecidos à obtenção da liberdade imediata.
A armadilha do jogador defensivo é focar na liberdade e não perceber que a atenção na liberdade serve de
mecanismo de barganha manipulador. Conseguir diferenciar os diversos focos e as tentativas de conseguir
pensar o processo a médio e longo prazos passam a ser o desafio de convencimento de acusados/investi-
gados privados da liberdade – e que estão capturados pelo desejo de liberdade –, e os defensores que con-
seguem perceber que a tática da prisão é um meio e não um fim em si mesmo. Até porque as condições em
que a liberdade é “acordada” implicam efeitos devastadores. O que se denomina de “expansão subjetiva do
tempo” é o fenômeno de quem está inserido no contexto da experiência, dado que a apreensão do sentido
acontece por dentro da experiência. Já o observador externo não consegue ter a dimensão e o impacto. A
sensação de escassez captura o sentido, impõe-se como dominante e pode impedir a leitura adequada do
contexto e das melhores recompensas possíveis.
A leitura pela lógica da guerra, demonstra se tratar de ‘tática relâmpago’ (Blitzkrieg)16 – é uma penetração
em profundidade nas linhas do oponente para causar confusão e caos, capaz de abatê-lo psicologicamen-
te. (240 CPP, condução coercitiva, prisão temporária, sequestro de bens, etc.). A lógica é a de concentra-
ção de forças, redução das resistências e abertura de vantagem nos subjogos futuros. A ideia de causar
grandes estragos pressupõe a capacidade de manutenção do ritmo, pois o oponente pode ser convencido

16  VALLE, Juliano Keller do. A defesa do direito de defesa: uma percepção garantista. Florianópolis: Habitus, 2016, p. 121-123: “O
Império Nazista criou uma formidável estratégia militar vencedora de guerras que combinava velocidade, surpresa e medo, a Blitzkrieg
(literalmente ‘guerra-relâmpago’). Referida tática envolvia unidades de tanques leves, apoiadas por aeronaves e infantaria, abrindo
caminho através das linhas inimigas e rumando rapidamente para capturar objetivos antes que o inimigo tivesse tempo de reagrupar-se.
O sucesso nos primeiros anos da guerra foi imediato. (...) A comparação do uso das prisões temporária e preventiva (velocidade e
surpresa) como táticas de aniquilamento e seus mecanismos de pressão cooperativa (medo) no campo das delações brasileiras com
o Blitzkrieg é inevitável”.

100 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

do poderio (que pode ser inexistente). As vitórias táticas promovem o desgaste psicológico do adversário,
tornando-o mais suscetível à cooperação, ainda mais na lógica do mercado da delação premiada. Uma
ação de choque pode gerar, pelo espetáculo do poder, grande efeito dissuasório. Mesmo em organizações
criminosas providas de disciplina, uma derrota tática gera necessidade de realinhamento. Quando os focos
de comando são retirados (presos), os mecanismos de ocupação não são lineares e podem gerar guerras
internas (fatricidas). O oponente não pode ter momentos de alívio capazes de reorganizar as estruturas.
Será necessário manter a iniciativa, com ritmo das operações/ações. O custo moral, físico, econômico e
midiático deve ser sempre pago pelo oponente, na pretensão de sustentar o desequilíbrio constante.
O peso dos números pode abalar as resistências. Pode-se supor, por exemplo, no âmbito da Lava Jato, que
quando Marcelo Odebrecht não aceitou a colaboração premiada, logo se iniciou a instrução processual.
Com isso, ao final, diante da pena aplicada, bens sequestrados e massacres midiáticos, inclusive à família,
as resistências foram amplamente reduzidas. A tática de choque com Marcelo Odebrecht serviu, também,
aos demais investigados como “exemplo”, a saber, sairá caro para quem não cooperar. O peso da resposta
estatal esmaga a resistência e incentiva à colaboração premiada, como, de fato, operou-se. A prisão tem-
porária também pode ter o efeito “pedagógico” de exibição do poder, isto é, por não se cumprir eventuais
desejos do investigador, joga-se com contenção cautelar, buscando demonstrar aos demais que devem
cooperar sob pena de acontecer a eles o que se deu com o líder.
Até que ponto o investigado/processado poderá “aguentar o tranco” de uma investida agressiva, mediante
táticas cautelares, depende de diversos fatores, bem assim da capacidade de leitura do jogo desde os
mais variados pontos de vista. Criar o clima para deixar o oponente fora do controle e do conforto usuais
é sempre uma vantagem tática. O cenário hostil fomenta a tendência a delatar. (“Numa terra de ninguém
e já no fim da linha, era hora de negociar com a lei”17.) Ficar focado apenas em seu ponto é um erro. A
capacidade de se colocar como o oponente e de mensurar o jogo de perde-ganha, criando espaços de
ganhos relativos (reais ou aparentes), é uma tática dominante. Não se deixe cegar, antecipadamente, pela
vantagem momentânea, porque o jogo é de longa duração e mesmo uma vitória parcial pode sofrer reveses
(efeito Joesley)18.
Na lógica da delação/colaboração premiada, por exemplo, a ideia é desarmar o oponente, transformá-lo
física, psicológica, midiática e materialmente desamparado, tornando-o impotente às possibilidades de-
fensivas de resistência. Com isso quanto mais rápida e violenta for a investida, inclusive com ameaças a
terceiros e familiares, melhores os resultados. A rendição do investigado/acusado não é só uma decisão de
arrependimento ou confissão e sim, fundamentalmente, de estar encurralado; uma decisão de custo/bene-
fício. Sofrer ataques concentrados e contínuos exige certa dose de defesa heterodoxa. Quando o oponente
lança mão de ferramentas extraprocessuais, como a mídia, não jogar no mesmo nível é um preço tático
adverso. Os aspectos aparentemente periféricos do jogo investigativo ganham dimensão no resultado. O
momento certo de cooperar é dinâmico. Para isso a grelha teórica da tomada de decisão não pode ser a
mesma da presunção de inocência. Há um giro de sentido.
Assim é que adotado o vocabulário de guerra fala-se em “morder e prender” ou mesmo em ‘tática-relâm-
17 LEHR, Dick; O’NEILL, Gerard. Aliança do crime. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p. 169.
18 TROTT, Stephen S. O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial. Trad. Sérgio Fernando Moro. Revista CEJ,
Brasília, Ano XI, n. 37, p. 68-93, abr./jun. 2007, p. 74: “O que este artigo ensina, acima de tudo, é como a mídia irá rapidamente contra
você se algo der errado”.

Em nome da inocência: Justiça | 101


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

pago’ (Blitzkrieg). Em cada jogo de investigação o centro de gravidade é imaginário, vinculado ao cálculo
futuro dos estragos (pena, regime, familiares, empresas fechadas, reputação, etc.). Isso porque é sempre
na antecipação que se investiga e lança mão de táticas agressivas. Para isso, a manipulação do ambiente
atual, bem assim a disposição mental dos jogadores e da mídia, promove as condições necessárias à
rendição e, em alguns casos, à tragédia. Alguns jogadores devem aprender que não se pode tudo. O
jogo moral (e sujo) de destruição de reputações é online, tanto assim que se pode ser a vítima amanhã.
O contra-ataque concentrado, contínuo, especialmente na reputação, pode gerar o efeito psicológico de
perigo e mesmo o jogador aparentemente superior sentir-se acuado. Mas podemos aprender com os erros
ou mesmo os superar pelo tapinha nas costas de que está tudo bem, afinal, foi um custo do exercício da
função. A escolha é de cada um. O que posso dizer é que se deveria prestar a atenção nas fontes humanas
que promovem a narrativa que se julga verdadeira, porque o apetite pode fazer com que armadilhas cog-
nitivas sejam habilmente construídas e, ao final, pensando que temos o protagonismo, no fundo, somos
manipulados. Aprender com os acertos e erros é o desafio que se renova.

102 | Em nome da inocência: Justiça


Ruy Samuel Espíndola1

AS SIRENES DO ESTADO DE DIREITO ESTÃO SOANDO:


o alerta do Reitor Cancellier, com sua trágica morte.

Ruy Samuel Espíndola1

I
Estamos vivendo, no Brasil, situações trágicas e indesejáveis para uma Democracia2 que quer se conso-
lidar, permanecer e progredir; para um Estado de Direito3 que promete “o império do direito”; “um estado
de direitos fundamentais”; “que observará o princípio da justa medida”; “que garantirá o princípio da le-

1 Advogado publicista, com militância nos Tribunais Superiores - Fundador e Sócio-gerente da Espíndola & Valgas, Advogados Asso-
ciados, com sede em Florianópolis, SC - Mestre em Direito Público pela UFSC - Professor de Direito Constitucional, de Direito Proces-
sual Constitucional, de Direito Eleitoral e de Direito Processual Eleitoral de pós-graduação lato sensu - Membro da Comissão Nacional
de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e das Comissões de Direito Constitucional e de
Direito Eleitoral da Seccional da OAB de SC – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, patrono Acácio Bernar-
des – Autor de obras e artigos jurídicos – Conferencista nacional e internacional. ruysamuel@hotmail.com – fone 055 048 3224-6739.
2 Como nos diz Roberto Dahl, em um primoroso livro editado pela UnB, intitulado Sobre a Democracia: a democracia é uma forma de
governo, uma estruturação constitucional, uma cultura política, que melhor assegura a liberdade do homem, suas liberdades e seus
direitos, e só pode existir ou perdurar em um regime onde as liberdades, especialmente as liberdades políticas, de expressão, de im-
prensa, de opinião, de manifestação do pensamento, de reunião, de voto e candidatura, de eleições periódicas, entre outras, sejam re-
almente asseguradas por uma Constituição efetiva e por uma cultura política e jurídica que a saiba valorizar, a preservar e a desenvolver.
3 Nossa intertextualidade, para o conceito de estado de direito, está assentada, entre outros, nos seguintes estudos: FAGUNDES,
Eduardo Seabra. “Estado de Direito”. Revista Brasileira de Direito Público, São Paulo, RT, ns. 45-46/83, jan.-jun./1978; SALDANHA,
Nelson. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. 124 p; SAMPAIO, Nelson de Souza. “Estado de Direito
– conceito e características.” Revista Brasileira de Direito Público, São Paulo, RT, ns. 45-46/7, jan.-jun./1978; SILVA, José Afonso da.
“O Estado Democrático de Direito.” Revista dos Tribunais, RT, n. 635, set./198; SOUZA, José Pedro Galvão de. “O Estado de Direito e o
Direito Natural”. In: - Primeiras Jornadas Brasileiras de Direito Natural. O Estado de Direito. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980. P.
11-35; VERDÚ. Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 160 p; VILANOVA, Lourival. “Fundamentos
do Estado de Direito”. Revista Brasileira de Direito Público, São Paulo, RT, ns. 43-44/21, jul.-dez./1977; BONAVIDES, Paulo. Do Estado
Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 230 p.

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Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

galidade da administração”; “que responderá pelos seus atos”; “que garantirá a via judiciária” e que “dará
segurança e confiança as pessoas” (Gomes Canotilho)4.
Após a reconstitucionalização de 1988, na qual se instituiu novas bases materiais e formais de nosso
Estado de Direito, renovando e fortalecendo as promessas constitucionais de divisão e limitação dos po-
deres e do estabelecimento e proteção de uma nova base constitucional dos direitos fundamentais5 em
terra brasilis, sejam eles individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais, estamos a viver um ciclo
que beira a retrocessos e nos remete as práticas investigativas medievais, há muito superadas, mas que
agora, em face de inúmeros arbítrios policiais, ministeriais e judiciais, voltam a emergir no cenário político
e forense da atualidade.
Práticas aplaudidas, difundidas, apoiadas e incentivadas por uma mídia sem responsabilidade e sem chan-
ce de produzir reflexões públicas, fundadas e sérias, plurais, dialéticas e em contraditório.
Todo dia os jornais noticiam prisões provisórias ou preventivas de pessoas no âmbito de inquérito policiais.
Delações premiadas depois de longas prisões cautelares, realizadas mesmo para produzirem auto e hetero
incriminações. Conduções coercitivas de investigados ou testemunhas que nunca foram instados a depor.
Inquéritos que se eternizam, que duram de dois a cinco anos (ou mais), impondo medidas restritivas da
liberdade ambulatória, da liberdade patrimonial; medidas cautelares de todos os matizes e de todas as
formas, sem uma lógica razoável a presidi-las.
Com isso tudo, estamos a ver a banalização da liberdade em favor de um jacobinismo penal que por vezes
confunde, em mesmo polo, o acusador, o investigador e o juiz, como órgãos integrantes da mesma “força
tarefa”... (vide fenômeno “lava-jato”).
Nas palavras de Gilmar Mendes, “quando o promotor, o delegado e o juiz, estão do mesmo lado, o cidadão
que se cuide”. E os tempos presentes, na sua crônica judiciária e jornalística, tem demonstrado o aumento
crescente, embora não dominante, não hegemônico, desta associação espúria entre polícia-acusação-juiz.
A “lava-jato”, por vezes, comprova o acerto de nossa crítica, que apenas repete o que muitos outros es-
píritos mais avantajados e experimentados referem (Lênio Streck, Alberto Toron, Alexandre Morais da Rosa,
Lédio Rosa de Andrade, etc).
Em nome de uma cultura punitivista, duma crença crescente de que é melhor punir, mesmo os inocentes,
do que deixar salvar-se um culpado, estamos a atemorizar as pessoas, a destroçar vidas e currículos, dig-
nidades e corpos. E pior: estamos a corromper as estruturas legais e constitucionais do Estado de Direito
e de seu sistema de direitos fundamentais, especialmente o aparato que dá suporte jurídico e cultural ao
devido processo legal criminal.
Nossa sede de justiçamento e vingança é muito maior que nossa busca de justiça racional, fundada na lei
e nas provas em contraditório. Assim, quem sabe regressaremos ao “estado de natureza”, e aí “cada um
com seus tacapes”... É o que nos parece, nos jogos atuais do processo penal “combatente da corrupção”...
4 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. 81 p, p. 47-74.
5 Obras referência sobre direitos fundamentais na literatura brasileira: Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, 10 ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009, 493 p.; Virgilio
Afonso da Silva, Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, São Paulo, Malheiros, 2009, 279 p.; Dimitri Dimoulis
e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 2 ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, 304 p.; André Rufino do
Vale, Estrutura das Normas de Direitos Fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, São Paulo, Saraiva,
2009, 274 p. Vale destacar a primorosa e competente tradução feita por Virgílio Afonso da Silva, da obra clássica de Robert Alexy, Teoria
dos Direitos Fundamentais, São Paulo, Malheiros, 2008, 669 p.

104 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Estamos sendo carcomidos por uma onda salvacionista e moralista, que, no objetivo de “purificar” as ins-
tituições e as suas práticas está, em verdade, a corrompê-las, pois em nome do politicamente correto, do
moralmente apetecível, olvidam, toldam ou obscurecem o juridicamente correto e o constitucionalmente
sustentável.
Devemos ter em conta que mesmo os níveis de liberdade e democraticidade já alcançados pós-1988 - e
agora em periclitação crescente - precisamos cuidar, para não retrocedermos, pois o “movimento da lei
e da ordem”, “da defesa social”, que cultiva “o direito penal do inimigo”, “o direito eleitoral do candidato
inimigo e do eleitor infante”, assim como “o direito administrativo do agente público inimigo”, precisa de
nossa reflexão séria, para que retrocessos como os apontados não se estabeleçam e/ou permaneçam
entre nós com a banalidade (“do mal”, Hannah Arendt) que temos testemunhado.
Já se disse que quem não conhece a história está fadado a repeti-la. E quem não sabe o valor das coisas
que possui e conquistou, está fadado a perdê-las.
O Povo que não valorizar as suas conquistas históricas, estará fadado a perdê-las ou a vê-las definhar,
pouco a pouco, pela apatia dos homens de bem ou de letras, ou pelo silêncio dos que ouvem e sabem, mais
nada dizem, e nada fazem...
E nesse contexto de reflexão crítica, é preciso dizer que a democracia não é a vacina definitiva contra a volta
da ditadura nem imunidade inexpugnável contra o totalitarismo. E ditaduras e totalitarismos não morrem
totalmente por que delas ou de suas cinzas emergiram democracias.
Ideias e práticas democráticas assombram ditaduras (lembremos os tsunamis políticos no oriente médio
desde 2013) e ideias e práticas totalitárias ou ditatoriais, convivem, cotidianamente, no seio das demo-
cracias com muita mais facilidade e sutileza (EUA, e caça ao terror; Brasil, moralidade pública superior a
Constituição e seu regime de liberdades!).
Muitas vezes essas ideias são ilusoriamente vendidas como democráticas... e compradas iludidamente
como tais, por amplos setores da sociedade civil, imprensa, representações de classe, movimentos so-
ciais, partidos políticos, tribunais, etc...
Isso ocorre em sociedades nas quais o debate não é verdadeiramente livre, plurilateral, franco e democrá-
tico; onde o pluralismo das ideias é renegado em nome da unicidade de dogmas, fruto do moral e politica-
mente correto, a despeito do Direito posto; nas quais o medo de ser perseguido ou rotulado por suas ideias
diferentes é corrente - basta ver a polarização atual, nas redes sociais, e o crescente discurso de ódio e
intolerância, com a arte, a religião, a ciência, a orientação sexual, a justiça, etc, etc.
No Brasil, não podemos deixar que tais ideias tenham vida fácil, perante o Tribunal da razão e da ciência:
as do politicamente correto e moralmente apetecível, contrastando e negando o constitucionalmente sus-
tentável.
Não devemos esquecer que a democracia é o regime que, dialética e respeitosamente, admite o seu con-
trário (Norberto Bobbio). Mas é o constitucionalismo que lhe assegura a vida e impede o avanço das forças
contrárias, mesmo que aclamadas por vontade popular circunstancial que agrida a perene e pétrea vontade
constituinte fundacional (Jorge Reinaldo Vanossi).
O fiel da balança em uma Democracia, constituída em Estado de Direito, que a salvaguarda da emergência
de arroubos ditatoriais ou totalitários, ou melhor, de ideias provindas desses matizes, é a existência de

Em nome da inocência: Justiça | 105


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

uma Constituição democrática e efetiva. Constituição originada de uma constituinte livre, representativa e
soberana, guarnecida por uma Corte Constitucional independente e ciosa de suas tarefas institucionais em
um regime de direitos fundamentais e separação de poderes.
Corte Superior cujos juízes julguem, acima de qualquer expediente, com base em regras e princípios cons-
titucionais pré-estabelecidos no próprio texto da Constituição. E não se fundamentem em volúveis, difu-
sos, imprecisos e irracionais sentimentos populares vazados por setores da sociedade que nem sempre
atentam para o valor de uma Lei Fundamental e seu regime de contenção dos arbítrios de toda sorte - pro-
venham esses abusos do Poder Estatal ou do Poder Social, ambos poderes constituídos e contidos pela
Constituição democrática vigente (Jorge Miranda).
Tem ocorrido no Brasil, do primeiro grau de jurisdição a Suprema Corte, um forte embate, nos temas
candentes ligados ao Direito Penal, ao Direito Eleitoral ou ao Direito Sancionador, etc. Embate entre magis-
trados moralistas e magistrados constitucionalistas.
Os moralistas seriam aqueles magistrados que olhando para a nossa Constituição e para a cena política
brasileira, encontram no princípio da moralidade administrativa, no princípio da probidade, na ideia de
persecução penal como supremo combate à corrupção, o maior valor a ser perseguido em quaisquer de
seus julgamentos. Para esses juízes, tais princípios, somados ao cânone de proporcionalidade entre bens
em conflito (direitos individuais x moralidade, combate à corrupção), são os principais critérios que devem
balizar toda a produção das leis, especialmente leis penais, materiais e processuais; notadamente a exege-
se lata e larga sobre tais normas do direito punitivo.
Tais posturas jurídicas são alimentadas pelo sentimento geral da população (e o alimentam em retorno) de
descontentamento com a classe política, com as autoridades públicas, com o atual estado de insegurança
pública que vivemos em nossas comunas urbanas; classe política e autoridades públicas que são tratadas
e avaliadas não pela média ou excelência de seus representantes, mas sim pelos piores exemplos conhe-
cidos midiaticamente.
Os raciocínios moralistas dos magistrados (e operadores do direito de mesma matriz ideológica) partem
de particularidades para chegarem a generalizações nada animadoras: se alguns são tão vis e indignos, é
preciso todos cuidar de todos, pois muito mais o serão!
O homem é o lobo do homem (Hobbes)!
A lei, de qualquer sorte, deve ser preventiva de improbidades!
A presunção reinante é a de desconfiança do agente público, do cidadão comum investigado, do candidato
e da não confiança na capacidade de escolha do eleitor, entre outras violações à presunção de boa fé e ou
de inocência...!
Os juízes constitucionalistas, por sua vez, são aqueles que veem na Constituição um limite ao exercício
arbitrário de poderes públicos ou privados.
Para esses magistrados a Constituição tem um sistema de direitos fundamentais que deve ser observado
na feitura de leis, sem qualquer exceção para as leis penais.
A vontade de Constituição é o fiel da balança a regrar a vontade popular, a vontade do legislador e a vontade
judicial. Para esses magistrados, entre os direitos fundamentais respeitáveis em qualquer produção do Le-
gislativo ou do Judiciário está a segurança jurídica, a não retroatividade das leis, a presunção de inocência,

106 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

a razoabilidade da ação legislativa punitiva, o respeito à liberdade e a dignidade da pessoa humana. E mais:
o sagrado direito de liberdade, de dignidade da pessoa humana, são pedras angulares de compreensão de
todo nosso sistema de justiça; compreendem esses juízes o quão relevante é para o regime democrático a
liberdade de ir, vir e ficar; compreendem a sua necessariedade para qualquer regime afastado da barbárie
e que caminha rumo ao avanço civilizatório.
Esses juízes constitucionalistas se sustentam na razão (Voltaire), expressa na razão jurídico-constitucio-
nal, para ditarem seus comportamentos e suas decisões judiciais. Para eles uma Constituição é importante
também para as minorias e para conter a fúria e a paixão das maiorias, que, em dados momentos históri-
cos, podem, sem freios constitucionais, desencadear involuções ao argumento de estatuírem progressos.
Pois há épocas em que o ânimo de fazer justiça pode levar a intoleráveis injustiças, como são os justiça-
mentos passionais e homicidas, e algumas açodadas e levianas prisões cautelares.
Para esses Juízes uma Constituição é seguro critério de julgamento, em grandes causas públicas na his-
tória das nações. É o mastro de Ulysses diante do canto atraente e destrutivo das sereias. Esses homens
de toga julgam para a história, e não para o momento; eles plantam carvalhos para o amanhã e não couves
para as próximas semanas (Rui Barbosa). Estão mais interessados em cumprir seus deveres com indepen-
dência e vigor do que “ficarem bem” perante uma opinião pública sem opinião e sem chance de reflexão
séria e fundada.
Esse embate entre moralistas e constitucionalistas é salutar para entendermos que a moralidade (e seu
consectário, o combate à corrupção) é um valor constitucional fundamental, mas não constitui um direito
fundamental e não é norma superior às garantias e direitos individuais estabelecidos na Constituição. Aliás,
a moralidade administrativa sequer é cláusula pétrea, enquanto os direitos fundamentais o são, por obra da
razão que ilumina e não da paixão que cega.
E a moralidade (de matiz fascista, muitas vezes) utilizada em alguns dos discursos judiciais e midiáticos
na atualidade brasileira, apesar da diferença de tempo, lugar e regime, parece ser a mesma que justificou o
holocausto nazista; a prisão de Oscar Wilde; a discriminação racial que aprisionou Nelson Mandela e matou
Luther King; alimentou a fúria do macarthismo no EUA e justificou atos de força e de exclusão política na era
de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas e do triunvirato militar pós 1964. Essa mesma moralidade precipitou o
triste fim do Reitor Luis Carlos Cancellier e muitas outras arbitrariedades policiais, ministeriais e judiciais
registradas na crônica atual.
As sirenes do estado de direito sibilam e nos dizem que nesses temas de liberdades constitucionais, que
são liberdades de todos – o condomínio social das liberdades assente na Constituição, como dizia Rui
Barbosa -, independe, para ter eficácia e ganhar vida, de quem, ocasionalmente, esteja sob o pálio protetivo
dessas franquias legais. Essas liberdades, como o sol que nos ilumina, são para todos, sob uma Constitui-
ção democrática. Não se podem tolerar casuísmos, nem para se atingir o demônio, pois este, se em corpo
de gente, tem direitos comum a todos nós, e não pode haver força viva acima ou abaixo da Constituição
que excepcione direitos em função do tipo de pessoa, e sim, apenas em face de seu comportamento efe-
tivo, devidamente investigado e devidamente processado, segundo os ditames legais, constitucionais e
convencionais do Estado de Direito.
Tenho constatado, em minha experiência de advogado e professor, quanto ao tema das liberdades e de

Em nome da inocência: Justiça | 107


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

suas garantias processuais e matérias, certo permissivismo judicial, um relativismo hermenêutico perni-
cioso, em nome de correções morais, em nome de recortes moralistas feitos por operadores do direito,
juízes, promotores e colegas advogados, que procuram, manuseando princípios, standards, cláusulas ge-
rais, corrigir pretensas “falhas do legislador” e atender ao clamor das ruas – recentemente vimos um Juiz
de nossa Suprema Corte (Luiz Fux) afirmar que se seu voto estivesse a contrariar os interesses da rua, a
vontade popular, ele poderia adaptá-lo para conformar-se a tais inclinações da opinião pública...
Essas posturas, no mais das vezes envolta em aparente ou plena boa fé e bom ânimo público, são reflexos,
muitas vezes, dos movimentos da lei e da ordem, no direito penal, no direito eleitoral e no direito admi-
nistrativo – como disse -, que mesmo sem o querer de seus defensores, dão vida para antigas práticas
autoritárias, fascistas6, contrárias à ambiência democrática e ao regime de direitos e liberdades constitu-
cionalmente posto.
Nesse mesmo clima, que assume ares antidemocráticos, temos vistos juízes serem criticados por cumpri-
rem seus deveres constitucionais de proteger essas liberdades asseguradas na Constituição e em Tratados
Internacionais e normas legais. Como já disse o Ministro Asfor Rocha, ex-presidente do STJ, se no passado
juiz corajoso era o que condenava, no presente, corajoso é o que absolve ou liberta ou deixa de atender
requerimento policial ou ministerial, por que estão sem fundamento legal hábil.
Desde a disseminação de práticas policiais e investigativas nada ortodoxas, em que pessoas são presas
para darem seus depoimentos contra a garantia de autoincriminação; outras são condenadas por indícios,
sem provas cabais, imersas em dúvidas razoáveis; outras ainda, estimuladas a acordos ministeriais-po-
liciais irrazoáveis e mesmo imorais (caso da JBC), sob a ameaça de enormes condenações; conduções
coercitivas desnecessárias (caso Lula); prisões espetaculosas (caso Cancellier); afastamentos de cargos
públicos sem a devida motivação exigida pelas leis de improbidade ou do processo penal.
Com tudo isso, devemos enfatizar e reenfatizar: as sirenes do Estado de Direito estão soando o alerta
há algum tempo. Mas a comunidade jurídica ainda transita tranquila pelo convés, enquanto o titanic da
constitucionalidade está a afundar, após ter se chocado contra o “iceberg” do arbítrio policial, ministerial
ou judicial (advindo de alguns setores dessas importantes instituições) e da banalização dos direitos e
garantias fundamentais.
A comunidade jurídica, que tem o papel de consciência jurídica da Nação, não pode se calar diante de atos
desta natureza, que tem sido a tônica diária da crônica jornalística.
Precisamos lembrar que para tais retrocessos e abusos, que devem ser debelados, refletidos, não temos
os problemas do passado ou de outros países. Pois não dispomos, no Brasil, de grupos paramilitares que
tentam sublevar-se contra a governança civil; não temos grupos extremistas que queiram instituir a supre-
macia racial ou separatismo a lá Eta (em Espanha); não temos insurgência militar nos quartéis, como mos-
tra nossa história republicana; não temos um ditador a frente dos negócios de estado, como na Venezuela.
O que temos é o silêncio da comunidade jurídica, a passividade de alguns setores do judiciário em cumprir
seu papel de terceiro imparcial e guardião da ordem democrática, notadamente no que toca aos direitos
e garantias individuais, sobretudo as penais; o que temos é uma mídia que fatura sobre a desgraça e
6 A intertextualidade dessa colocação pressupõe as seguintes leituras: Norberto Bobbio, Ensayos sobre el Fascismo. trad. Luis Rossi.
Buenos Aires, Bernal, Universidad Nacional de Quilmes, 2006. 175 p; Michael Mann. Fascistas. trad. Clóvis Marques. RJ e SP: Record,
2008. 556 p; Márcia Tiburi, Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro:
Record, 2017. 194 p.

108 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

opróbrio do justiçamento sumário e inapelável de meros investigados; temos uma disputa entre poderes,
que colocam em campo de batalha, de um lado, os “sem mandato”, e de outro, os “com mandato”; temos
uma demonização crescente das instituições democráticas, por quem tem a missão de defender o regime
democrático e seus consectários, como é o caso de alguns membros integrantes do Ministério Público
brasileiro7.
Devemos persistir e lutar, e não olvidar as lições desse alerta, nessa esgrima em defesa da legalidade
democrática. A morte do reitor Cancellier não pode ser em vão!
Precisamos cultivar e recultivar nos espíritos das gerações em formação o valor da democraticidade, da
liberdade e de um sistema de direitos que não se deixe curvar por moralismos jacobinistas, por discursos
redentores de salvação pública, ao modo da era do terror, de Robespierre.

II
A prisão provisória e afastamento do cargo do Magnífico Reitor da UFSC, finado Prof. Dr.  Luiz Carlos
Cancellier, como disse no dia de sua concretização, a noite, em meu perfil do facebook, foi exagerada e
completamente desnecessária.
Afirmei, em primeiro momento, que não conhecia ainda os autos, os indícios colhidos, as razões judiciais
que decretaram sua reclusão cautelar e temporária. E só por isso não poderia ser peremptório em minha
crítica, evitando produzir juízo leviano e apressado.
Mas disse que conhecendo a pessoa do Reitor, meu confrade de Academia Catarinense de Letras Jurídicas,
conhecendo seu passado e seu presente, seu caráter e seus ideais, esses dados compunham o lastro de
minha crítica inicial.
Afirmei que quem o conhecia, sabia a pessoa honesta e íntegra, dedicada à causa pública e à universidade;
Cancellier era um homem com uma história modelar de vida, ser humano que não guardava qualquer ele-
mento comportamental próprio de quem atravancaria a justiça ou que se prevaleceria do interesse público;
cidadão que honrava o ensino universitário barriga-verde e brasileiro.
Devemos condenar duramente esses espetáculos midiáticos, nos quais se imolam a vida de pessoas pú-
blicas honradas. Essa imolação, como o mesmo disse, em seu bilhete de despedida, foi o que levou a tirar
a própria vida (em 02.10.17).
Disse eu, naquele 14.09.17, que, pelo histórico e honorabilidade de Luiz Cancellier, o inquérito contra si seria
arquivado; se denúncia fosse oferecida, não seria recebida; se fosse recebida, seria julgada improcedente.
No dia seguinte, em 15.09.17, depois de ter lido integralmente a fatídica decisão que o mandou prender e
afastar do cargo, afirmei em palestra dada em Congresso de Direito da Unisul, no auditório do Tribunal de

7 Exemplo interessante é o noticiado no perfil do facebook, em 25.10.17, pelo jornalista Moacir Pereira, de SC: “REITORA ANULA
PORTARIA E AUREO DEMITE-SE DA CHEFIA DE GABINETE A reitora da Universidade Federal de Santa Catarina, professora Alacoque
Erdmann, anulou esta tarde a portaria assinada pelo professor Áureo Moraes, afastando o servidor Rodolfo Hickel do Prado da Contro-
ladoria Geral da União. Com a decisão, Aureo Moraes decidiu pedir demissão. Vai examinar a hipótese de tirar férias antes de retornar
à lecionar no Departamento de Jornalismo do Centro de Comunicação e Expressão. A professora Alacoque Erdmann alegou ter sofrido
pressões e ameaças do Ministério Público Federal de ser acionada na Justiça por crime de improbidade administrativa se a portaria de
Áureo Moraes fosse mantida. As ameaças foram avalizadas pela Controladoria Geral da União em Santa Catarina durante reunião ocor-
rida ontem a tarde no “campus”. A portaria do Chefe de Gabinete do falecido reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, afastando Rodolfo do
Prado por 60 dias do cargo, teria sido decidida no dia 13 de setembro, com base em parecer da Procuradoria Federal, quando surgiram
várias denúncias do professor Gerson Rizzatti Junior. (...)”

Em nome da inocência: Justiça | 109


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Contas do Estado de SC, em companhia de Salomão Ribas Júnior (ex-conselheiro daquela Corte), falando
sobre os “Conflitos entre a Autoridade e a Liberdade e seus dilemas entre a Moral e a Constituição”8, afir-
mei que sua prisão fora ilegal, pois não atendia os requisitos legais para sua decretação.
Seu ato reitorial de avocação de autos de controle interno, era presumido legal, segundo a dogmática
jusadministrativa, gozava de presunção de boa fé e legalidade, e não tinha a natureza de intervenção em
inquérito policial ou ação penal. Única intervenção, que fosse ilegítima, poderia justificar sua segregação
momentânea.
Isso demonstra o calcanhar de Aquiles, para o alerta do Estado de Direito em perigo.
Justo que o projeto de lei de abuso de autoridade seja chamado de Lei Cancellier, como divulgou o Senador
Relator Roberto Requião.
Todas as críticas feitas depois da prisão e depois de sua morte, principalmente as descritas e muito bem
alinhavadas, por João dos Passos Martins Neto (que inclusive foi lida no Senado, pelo Senador Espiridião
Amim, de SC), Nelson Wedekin, Arno Dal Ri Júnior e Lédio Rosa de Andrade (todas amplamente divulgadas
pela mídia, em SC e Brasil), merecem a nossa atenção e reflexão. Pois revelam toda a força das sirenes, do
alerta, de nosso Estado de Direito que afundará, se a consciência jurídica da Nação, se a atuação oportuna
e eficaz dos operadores do Direito não buscarem a mudança e superação desse pérfido estado de coisas
inconstitucionais no seio das atividades persecutórias penais vigentes.
Oxalá, pela reflexão e crítica, pelo pensamento e ação, cheguem a bom porto: nossa cultura jurídica, nos-
sas praxes investigativas e nosso Estado de Direito.

8 Palestra disponível na íntegra no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=8teNpDhzzMs, acesso em 22.10.17, 21:19 horas.


Início de minha exposição aos 18 minutos. Depois, em 1 hora e 45 minutos, respondo a primeira pergunta, e as 02 horas e 5 minutos,
a segunda. Ilustro a exposição, na maioria dos momentos, com o caso do Reitor.

110 | Em nome da inocência: Justiça


Alberto Sampaio Júnior

ENCARCERAMENTO EM MASSA:
há luz no fim do túnel?
“Coisa estranha as nossas punições! Elas não purificam o criminoso. Elas não são
expiações, elas machucam mais do que o próprio crime.”
Friedrich Nietzsche.
Alberto Sampaio Júnior1

A indiscriminada utilização de prisões cautelares e o respectivo desrespeito a direitos e garantias funda-


mentais, a exemplo das constantes violações ao devido processo legal e à presunção de inocência, indicam
um progressivo e linear fortalecimento de um Sistema de Justiça Criminal que, para além autoritário e
seletivo, caracteriza-se pela ausência de limites rígidos ao exercício do poder. O encarceramento em massa
é o reflexo mais perceptível da expansão do poder punitivo.
Prestes a completar mais uma década – a terceira, para sermos mais específicos –, o projeto democrático
delineado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 demonstra estar muito distante de
concretizar antigas promessas que, inevitavelmente, esvaíram-se ao longo do regime autoritário que o
antecedeu: precipuamente, o desenvolvimento de uma sociedade igualitária e a efetiva defesa de direitos
e garantias fundamentais. Em meio ao desolador cenário de desesperança e desconfiança dos cidadãos
para com os Poderes Constituídos, potencializado pelo discurso völkisch, o desejo de paz social continua
a depositar suas esperanças numa pretensa eficiência do Sistema de Justiça Criminal.
Com a emergência da “pós-democracia”, cujo projeto neoliberal de coisificação de direitos e de pessoas
encontra seu apogeu – ou seja, tudo passa a ser compreendido como mercadoria –, qualquer inovação
legislativa que otimize a contenção do poder punitivo e, consequentemente, reduza os índices de encarce-
ramento, esbarra na tradição autoritária a que estão imersos os atores que compõem as instituições que
se incumbem de realizar o direito penal, em especial o Poder Judiciário. Isso porque, uma vez que a norma
1 Possui graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2013). Atualmente é Advogado do Marcio Vieira e Miranda Advogados
Associados.

Em nome da inocência: Justiça | 111


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

é produzida pelo intérprete, e este, reitera-se, imerso sob uma tradição predominantemente autoritária, o
“novo”, aqui identificado pela consonância constitucional, passa a ser instrumentalizado em proveito da
manutenção do “velho”, aqui identificado pelo ranço autoritário que ainda orienta as famigeradas políticas
criminais de defesa social.
Malgrado o fracasso da prisão enquanto instrumento de contenção à violência urbana, os acentuados
índices de homicídios, por exemplo, servem de pano de fundo para o fortalecimento e adesão de discursos
de lei e ordem. Por todos os lados, novos “messias” surgem. Alguns deles, concursados, pregam ódio
ao “garantismo”. Cria-se, assim, em que pese o vertiginoso crescimento da população carcerária, a ideia
de impunidade. Nesse contexto, influenciados pelo medo, cidadãos clamam pela expansão do Estado-re-
pressor. Propaga-se, aliás, a expectativa de um Sistema de Justiça Criminal eficiente, dotado de poderes
ilimitados à proteção da sociedade, com a contenção de inimigos devidamente “etiquetados”. Uma vez
aderido pela maioria da população, práticas autoritárias, discursos de ódio e decretações de prisões pre-
ventivas são aplaudidas de pé. Ingenuidade oriunda do populismo criminológico? Seria um projeto político
bem delineado? Pois bem.
Sob a estrutura do denominado “Estado Pós-democrático”, cujo caracterização se revela por meio da au-
sência de limites rígidos ao exercício do poder 2, os anseios populares que pregam justiça a qualquer custo
criam um terreno fértil a expansão do poder punitivo, impedindo, consequentemente, a concretização de
direitos fundamentais, transformando-os em “mercadorias”, passíveis de venda e permuta, em atenção
aos interesses intrínsecos às políticas neoliberais. Nesse contexto, a extirpação de indesejáveis – melhor:
dos excluídos da cadeia de produção e consumo – é algo que ocorre por meio da gestão da liberdade
ambulatorial, de maneira ‘natural’, circunstância esta que mantém o Brasil entre os primeiros no ranking
mundial de encarceramento. A respeito da estreita ligação entre neoliberalismo e contenção de massas,
Malaguti assevera:
“Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho e jogadas à própria sorte, o neoliberalismo precisa
de estratégias globais de criminalização e de políticas cada vez mais duras de controle social: mais tortura,
menos garantias, penas mais longas, emparedamento em vida”.3
É inconteste que a gênese desse tipo de política de encarceramento de indesejáveis encontra suas raízes
ao longo da história do próprio sistema prisional. De acordo com Georg Rusche e Otto Krichheimer, o
fundamento do sistema carcerário está no mercantilismo elaborado e promovido ainda no Iluminismo; e
concluem:
“Vimos como, no início do século XVIII, as casas de correção aceitavam condenados, vadios, órfãos,
velhos e loucos sem distinção. Fazia-se pouca diferenciação entre eles. Onde o encarceramento foi intro-
duzido, os que detinham o poder utilizaram-no para afastar os “indesejáveis””.4
A propósito, a História denuncia que os métodos de contenção dos indesejáveis se modificaram conforme
as necessidades dos processos de mercantilização, criando, a cada tempo e de acordo com os interesses
do poder, discursos de legitimação e deslegitimação das políticas de controle.
Na atual quadra histórica, observamos que a constante tensão entre os anseios por segurança [pública] e a
2 CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1.ª ed., Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2017.
3 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2.ª ed., Rio de Janeiro : REVAN, 2011, p. 28.
4 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social.

112 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

necessária preservação de liberdades individuais servem de observatório para a respectiva distinção entre
modelos de política criminal de caráter autoritário – cujo desejo por segurança predominantemente se
acentua em detrimento às liberdades individuais – e modelos de aspirações democráticas – precipuamente
voltados à efetivação de direitos e garantias fundamentais.
No âmago da referida tensão política, a propagação do medo e a disseminação de um pretenso sentimento
de impunidade – potencializados, hoje, pelo demasiado fluxo de informações (de fontes duvidosas, aliás)
disponibilizado nos espaços virtuais – forjam os mais variados discursos voltados à expansão do poder
punitivo. Inevitavelmente, em meio aos holofotes das grandes agências de produção jornalística, direitos
e garantias fundamentais cedem espaço à espetacularização do processo penal. Com maestria, Rubens
Casara esclarece:
“Nesse quadro, delações premiadas (que, no fundo, não passam de acordos entre “mocinhos” e “bandi-
dos”, em que um criminoso é purificado – sem qualquer reflexão crítica – e premiado com o aval de Esta-
do), violação da cadeia de custódia (com aceitação de provas obtidas de forma ilegítima, sem os cuidados
pelo devido processo legal) e prisões desnecessárias (por vezes, utilizadas para obter confissões e outras
declarações ao gosto do diretor) tornam-se aceitáveis na lógica do espetáculo, sempre em nome do bem
contra o mal”. 5
Mesmo diante de políticas de segurança pública nitidamente fracassadas, a exemplo do desastroso e
famigerado combate bélico às drogas, responsável pelo derramamento de sangue em muitos centros urba-
nos, boa parte da sociedade carioca, por exemplo, manifesta adesão a discursos autoritários. Em recente
pesquisa coordenada pela pesquisadora Julita Lemgruber, “cerca de 37% dos cariocas concorda com a
frase [bandido bom é bandido morto] e 73% acha que direitos humanos atrapalham o combate ao crime”.
6
Há quem aproveite a popularização de clichês autoritários para a consolidação de um eleitorado incons-
cientemente amedrontado, utilizando os mesmos discursos de implementação de políticas de lei e ordem
como palanque eleitoral.
Nesse panorama de louvor popular às práticas autoritárias, endossadas pela ausência de pensamento crí-
tico, onde a complexidade de circunstâncias socioeconômicas são quase que desprezadas e substituídas
por crenças e mito (caráter ressocializador da pena privativa de liberdade, por exemplo), qualquer reforma
penal que busque coadunar o Sistema de Justiça Criminal à dignidade da pessoa humana, tronco axiológico
do sistema normativo constitucional, está fadada ao fracasso.
Em meio ao caótico cenário instalado a partir do desejo de segurança – impulsionado pela ampliação do
poder punitivo – e de manutenção de liberdades individuais – cujo respeito a direitos e garantias fundamen-
tais é condição necessária ao fortalecimento da democracia –, os efeitos são devastadores: a instituciona-
lização da violência e encarceramento como meio de contenção à violência.
O então Projeto de Lei n.º 4.208/2001 teve como principal objetivo, de acordo com a Comissão elaborado-
ra, ajustar o sistema “às exigências constitucionais atinentes à prisão e à liberdade provisória e colocá-lo
em consonância com modernas legislações estrangeira, como as da Itália e de Portugal”.7 Dentre as
propostas, a ampliação de medidas cautelares diversas à privação de liberdade, notadamente, visava de-
5 CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: ensaio sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade
brasileira. Florianópolis : Empório do Direito, 2015, p. 13
6 Notícia disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/reportagens/cariocas-discordam-que-bandido-bom-e-bandido-morto/
7Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=401942&filename=PL+4208/2001

Em nome da inocência: Justiça | 113


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

sacelerar o crescimento da população carcerária, que à época chegava à marca de 233.859 presos, dentre
os quais 75.064 eram provisórios.8
Dez anos depois [2011], o referido projeto de lei deu origem a Lei n.º 12.403, sob a expectativa de signifi-
cativas mudanças quanto à utilização indiscriminada da prisão enquanto regra, elencando hipóteses à sua
decretação e medidas alternativas à sua utilização. Em linear leitura do então projeto de lei, perceber-se
que a referida Comissão já demonstrava preocupação com possíveis subversões às interpretações do texto
legal. Exemplo disso está na proposta de substituição de referências às expressões “garantia da ordem pú-
blica” e “ garantia da ordem econômica”, anêmicas sob o prisma semântico, pela “existência de fundadas
razões de que o indiciado ou acusado venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à
probidade administrativa” etc. A sugestão não prosperou, infelizmente.
A desconfiança dos juristas que compuseram a Comissão era oportuna. Isso porque, hoje, milhares de
decretações de prisões preventivas são fundamentadas por meio de uma espécie de “cheque em branco”:
a garantia da ordem pública. Resultado disso: em 2011, ano da promulgação da Lei n.º 12.403, a população
prisional alcançou a marca de 514.000 presos, dentre os quais 173.000 eram provisórios.9 Três anos de-
pois, em 2014, a população carcerária alcançava o total de 607.000 presos (gráfico abaixo).10

De acordo com levantamentos disponibilizados pelo CNJ, o Brasil hoje conta com uma população de pre-
sos provisórios superior a 200.000 encarcerados. Infelizmente, o uso indiscriminado de prisões preven-
tivas fez com o que o atual número de presos provisórios se aproximasse ao total de encarcerados em
2001, ano marcado pela iniciativa de contenção à população carcerária. Os números dizem por si só.
Continuamos a falhar.
Recentemente, a implementação das “audiências de custódia”, em 2015, com um lamentável atraso de 22
anos desde a ratificação do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos, fez ressurgir novas expec-
tativas para a contenção do encarceramento em massa. De certa maneira, as expectativas se cumpriram.
8 http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional/anexos-sistema-prisional/
populacao-carceraria-sintetico-2001.pdf/view
9 https://www.conjur.com.br/2012-mai-01/numero-presos-provisorios-cresce-populacao-carceraria-2011
10 http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf

114 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 1 - Conhecer para aprender o Direito

Relatório anual11 (2015-2016) divulgado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro apontou que o
índice de soltura de custódias alcançou 34,38%. Entre outros dados, destacam-se: 5.139 presos assistidos
pela defensoria (93,61% da demanda); 1.573 afirmaram ter sofrido alguma violência policial; 73,63% são
negros.
A partir da divulgação dos números de liberdades concedidas em sede de audiência de custódias (61%)12,
a luz vermelha de instituições notadamente reconhecidas pelo viés autoritário se acendeu, ao ponto de
denominarem a audiência de custódia como “audiência de soltura” – nada mais leviano.
A expansão de políticas autoritárias provenientes do modelo “pós-democrático” coincide com o cresci-
mento constante da população carcerária. Os indesejáveis continuam a ser enjaulados. A propósito, muito
embora algumas vozes insistam afirmar que a prisão de políticos e grandes empresários representaria
uma espécie de “democratização da prisão”, o que ensejaria, hipoteticamente, maior atenção aos temas
relacionados ao Sistema Prisional, o lado de dentro dos pavilhões, ao som inquietador de cadeados e por-
tões de ferro se fechando, está muito longe de ser um espaço democrático, mas não pela falta heterogenia
socioeconômica dos encarcerados; é algo anterior; é um círculo de violações à própria democracia.
Enquanto o Sistema de Justiça Criminal estiver sob a égide do aludido modelo de “estado pós-demo-
crático”, estaremos a presenciar cada vez mais violações a direitos e garantias fundamentais. Ademais,
enquanto não haja controles rígidos ao exercício do poder, conforme delineado pelos projetos neoliberais,
a “parte fraca da corda”, representada por uma população que há décadas têm seus direitos surrupiados,
estará sob o alvo do encarceramento.
Mais do que inovações legislativas, a contenção do autoritarismo tem como ponto de partida o resgate
da democracia, superando o simulacro implementado pelas políticas neoliberais, que se utiliza do poder
punitivo para a manutenção do projeto capitalista, tendo o encarceramento em massa, reitera-se, um efeito
reflexo.
Portanto, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, a fim de reduzir mazelas sociais como o
constante crescimento de população carcerária, começa, inevitavelmente, pela contenção ao exercício do
poder, fortalecendo e reafirmando direitos e garantias fundamentais.
Sim, há luz no fim do túnel.

11 http://www.portaldpge.rj.gov.br/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/Relatorio_1_Ano_Audiencia_Custodia.pdf
12 Fonte: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/audiencias-de-custodia-soltaram-61-dos-presos-em-flagrante-no-rio-no-pri-
meiro-trimestre-de-2017.ghtml

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116 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 2

Tragédia anunciada

Em nome da inocência: Justiça | 117


Alice Bianchini
Doutora em Direito penal pela PUC/SP, Presidenta da Associação
Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ – Comissão
São Paulo. www.alicebianni.com
Luiz Flávio Gomes
Jurista. Criador do movimento Quero Um Brasil Ético.
Estou no f/luizflaviogomesoficial

O suicídio do Reitor e a proporcionalidade das prisões


O reitor que se suicidou (UFSC) foi vítima de uma prisão desproporcional?

1 - Introdução
O professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo era reitor da Universidade Federal de Santa Catarina quando o
Judiciário decretou, na operação Ouvidos Moucos, sua prisão provisória, que foi revogada rapidamente.
Ele, ademais, ficou impedido de entrar na instituição.
Ficou uma noite na prisão e depois cometeu suicídio. A polêmica se instalou. Era realmente necessária sua
prisão? O reitor não era acusado de desviar dinheiro público em um programa de educação a distância.
Contra ele pesava a imputação de acobertamento ou obstrução da investigação. Não desvio de dinheiro.
Ele foi acusado pelo corregedor da Universidade de tentar obstruir ou de atrapalhar o seu trabalho inves-
tigativo. O crime de obstrução de Justiça está previsto no art. 2º da Lei do Crime Organizado, desde que
ocorra no âmbito de uma associação ou organização criminosa.
Dizia o reitor que nunca fora ouvido em qualquer tipo de auditoria interna. Ele também não teria sido ouvido
na investigação policial. Tendo passado um dia na prisão, o reitor se suicidou, deixando o seguinte bilhete:
“Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”.
Também fez referência à forma degradante como foi tratado ao ser transferido da sede da PF para o Presí-
dio da Agronômica. Foi despido diante dos policiais.
A prisão, nesse caso, foi decretada como a extrema ratio da ultima ratio (como a extrema medida que se
fazia necessária) ou foi só mais um “espetáculo” midiático?
A operação Mãos Limpas na Itália caiu em desgraça quando o povo italiano deixou de apoiá-la. E isso

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

ocorreu depois que 11 empresários presos se suicidaram.


O suicídio do reitor afetará a Lava Jato? Foi legal e proporcional sua prisão? Ou o Estado terá que indenizar
sua família em virtude de algum abuso? Houve “crueldade, virulência e desumanidade” nessa prisão?

2 - Exposição midiática “escandalosa”


Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha de S. Paulo (8/10/17), escreveu que o jornal noticiou os fatos
da seguinte maneira:
“Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em cursos”. A abertura do texto diz: “A
Polícia Federal prendeu o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, e outras seis pessoas ligadas à
instituição nesta quinta-feira (14/09)”.
“Segundo a PF, o grupo (sic) é suspeito de desviar (sic) recursos que deveriam ser investidos em progra-
mas de Educação a Distância. Só o parágrafo seguinte esclarece que o reitor é, na realidade, suspeito de
tentar barrar as investigações”.
Na versão eletrônica, a Folha publicou um “Erramos” 23 dias depois. Disse: “A reportagem deixou de infor-
mar que o reitor da UFSC era investigado por suspeita de interferir na apuração sobre o desvio de recursos
na universidade, e não pelo desvio em si”.
Não apenas a polícia, o Ministério Público e a Justiça devem prestar as devidas explicações nesse caso.
Também se faz necessário questionar a espetacularização midiática, que muitas vezes é mais cruel que
eventuais abusos da Justiça. O comportamento de manada (Paula Cesarino) vem se revelando extrema-
mente pernicioso para os direitos fundamentais.
As pessoas agora acuadas pela polícia e pela Justiça (por força da operação Lava Jato), para além de várias
outras indignadas com o suicídio, aproveitaram para atacar, uma vez mais, referida operação. Embarcaram
na onda de emotividade que todo suicídio gera.

3 - Liberdade é a regra; prisão é exceção


A liberdade individual (também chamada de liberdade de locomoção ou liberdade de ir, vir ou permanecer
num determinado lugar) constitui a regra no nosso ordenamento jurídico, estando assegurada (no papel) a
sua inviolabilidade no art. 5.º, caput, da CF/1988.
Leia-se: a liberdade (de deambulação) é a regra; a prisão (a privação ou restrição da liberdade) é exceção.
O normal, o natural, é o ser humano estar em plena liberdade. Sua prisão constitui, portanto, medida
excepcional, que só pode ser adotada (pelo juiz) quando razões muito sérias a justifiquem, cabendo-lhe ex-
plicitá-las com base (a) no direito, (b) nos fatos comprovados (para além da dúvida razoável, tanto quanto
possível), assim como (c) na sua absoluta necessidade.
Toda medida restritiva da liberdade não fundada na absoluta necessidade é tirania (Montesquieu).
A liberdade individual é um dos direitos fundamentais mais valiosos (de aplicação imediata e com força
vinculante – impositiva - perante todos os poderes), posto que, sem liberdade de locomoção, incontáveis
outros direitos não podem ser exercidos.
Toda restrição que venha a incidir sobre a liberdade deve ser rigorosamente justificada e necessária: por-
que, como afirmado, a liberdade é a regra, sendo sua supressão ou restrição uma exceção (e toda exceção

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

deve ser devidamente prevista em lei e justificada).


Ninguém pode ser privado da sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas
pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas (artigo 7.º
da CADH). No Brasil, são múltiplas as possibilidades legais e constitucionais de prisão.
De qualquer modo, não se pode conceber, no Estado de Direito, que a prisão preventiva cumpra papel
distinto de qualquer outra medida cautelar. Não se pode primeiro castigar, para depois se condenar (Fer-
rajoli). A prisão processual não pode se revestir do caráter de pena antecipada. Ela só se justifica quando
absolutamente necessária.

4 - Medidas cautelares e o princípio da proporcionalidade


As medidas cautelares previstas no Título IX do Código de Processo Penal (prisão domiciliar, proibição de
frequentar lugares, entrega de passaporte, suspensão das funções, proibição de se aproximar de pessoas
etc.) não podem ser aplicadas de acordo com a visão peculiar ou particular de cada julgador, isto é, de
acordo com o “seu” código penal ou consoante “seu” segundo código.
Manda o art. 282, caput, do CPP, que sejam observados alguns critérios. Fez bem o legislador em fixar
(explicitamente) alguns parâmetros para a aplicação das medidas cautelares. Além dos explicitados em
cada dispositivo legal, outros são absolutamente indispensáveis.

Dentre eles podemos citar:


(a) instrumentalidade das medidas cautelares;
(b) requisito essencial (fumus commissi delicti – prova mínima do cometimento de algum delito);
(c) fundamento imprescindível: periculum libertatis (perigo que representa a pessoa em liberdade);
(d) princípio da presunção de inocência;
(e) princípio da liberdade; e
(f) regra da excepcionalidade das medidas cautelares.

Todas essas regras e princípios se imbricam com o famigerado princípio (ou super-princípio) da propor-
cionalidade.
Nenhum ato do poder público, sobretudo o que implica restrição de algum direito fundamental, pode ser
arbitrário, tirânico, desproporcional, abusivo ou desarrazoado.
De forma sucinta: todos os atos públicos (especialmente os restritivos dos direitos fundamentais) devem
ser regidos pela razoabilidade ou proporcionalidade (Barroso).
A crítica que se faz a esse princípio diz respeito à sua possível subjetividade (que poderia dar ensejo a muita
insegurança jurídica).
Para combater esse inconveniente, exige-se que toda decisão do juiz seja devidamente fundamentada. É
por meio das razões da sua decisão (das fundamentações) que se possibilita o controle do seu ato. Isso
vale inclusive para a decisão que julga outra decisão como não razoável. Muitas vezes a irrazoabilidade está
no ato que decreta a irrazoabilidade de outro ato.
Referido princípio cumpre a função de critério aferidor da constitucionalidade e até mesmo da convencio-

120 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

nalidade (aferição do ato diante das normas internacionais) de todas as restrições aos direitos fundamen-
tais (pouco importando de qual órgão emana essa restrição).
Todo e qualquer tipo de restrição a um direito fundamental (incluindo-se aqui a prisão e demais medidas
cautelares) deve ser proporcional (ou razoável). A proporcionalidade é o limite intransponível dessas res-
trições.
Os direitos fundamentais não são absolutos, ou seja, podem ser limitados e o princípio da proporcionalida-
de é o limite dessas limitações (limite dos limites).
Sintetizando: todos os atos públicos (incluindo-se, particularmente, a decretação de uma prisão ou de
outra medida cautelar) devem ser regidos pela razoabilidade ou proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade tem amparo tanto nas leis como na Constituição e nos tratados internacio-
nais; não há nenhuma dúvida de que o juiz, no momento de decretar qualquer tipo de medida cautelar contra
o suspeito ou indiciado ou acusado (réu) ou condenado, tem que seguir (obrigatoriamente) não somente as
duas exigências expressas no texto legal (necessidade e adequação), senão também todas as decorrentes
ou relacionadas com o princípio da proporcionalidade, que são os seguintes:

(a) a instrumentalidade das medidas cautelares;


(b) o seu requisito essencial (fumus commissi delicti);
(c) o seu fundamento imprescindível: periculum libertatis;
(d) o princípio da presunção de inocência;
(e) o princípio da liberdade;
(f) a regra da excepcionalidade das medidas cautelares;
(g) o princípio da legalidade da medida;
(h) a justificação teleológica da medida;
(i) a autorização ou convalidação judicial;
(j) a sua motivação;
(k) a idoneidade (ou adequação) da medida;
(l) a necessidade da medida (intervenção mínima);
(m) a proporcionalidade em sentido estrito (ponderabilidade dos bens envolvidos, relação do custo–bene-
fício etc.); e
(n) o princípio da homogeneidade das medidas cautelares.

5 - A necessidade concreta da medida cautelar


O princípio da proporcionalidade deve ser enfocado em sua tríplice dimensão: (a) adequação da medida, (b)
necessidade da medida e (c) proporcionalidade em sentido estrito.
A necessidade da medida cautelar constitui requisito intrínseco do princípio da proporcionalidade. “Não é
preciso um canhão para matar um pombo” (dizia Jescheck).
A adequação (idoneidade) da medida é o primeiro subprincípio da proporcionalidade. Significa que o juiz
deve analisar se o meio escolhido é apto para alcançar a finalidade almejada. A relação que permeia a
adequação é a de meio e fim.

Em nome da inocência: Justiça | 121


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

De todas as medidas adequadas conta com prioridade a menos onerosa (por força do princípio da inter-
venção mínima). Aqui já estamos falando da necessidade. Aqui estamos dimensionando a necessidade.
Quando o juiz, dentre todas as medidas adequadas, opta pela mais onerosa, deve justificar a necessidade
concreta dessa intervenção mais dura.
Suponha-se que o agente deva ficar impossibilitado de fazer contato com a vítima. Há duas formas de se
alcançar essa meta: (a) determinando a prisão do acusado ou (b) decretando-se o impedimento de aproxi-
mação (que é uma das medidas cautelares alternativas).
Cabe ao juiz, em primeiro lugar, fazer a valoração da adequação da medida (para o fim almejado). Depois
seu dever é escolher a medida menos onerosa (medida alternativa). Se o juiz optar pela prisão, deve funda-
mentar sua absoluta necessidade.
O princípio da necessidade traz, em seu bojo, o princípio da intervenção mínima. A intervenção penal esta-
tal deve ser a mínima possível. De todas as existentes, compete ao juiz escolher a que menor gravame gera
para o direito fundamental da pessoa afetada.
Se outras medidas existem e são suficientes, o juiz não pode optar pela mais drástica. Incide aqui o princí-
pio da suficiência da medida menos onerosa.
A prisão, de qualquer modo, é medida que se adota sob o império da extrema ratio. Ela é a extrema ratio da
ultima ratio (que é o direito penal). Tem toda pertinência aqui:
(a) o princípio da subsidiariedade da medida mais gravosa, ou seja, a mais drástica só incide em última
instância; e
(b) o princípio comparativo: toda prisão deve necessariamente ser comparada (em tese) com a liberdade
provisória com fiança ou sem fiança ou mesmo com outras medidas cautelares menos danosas.
Cabe ao juiz aquilatar as vantagens e desvantagens de cada situação. A relação que permeia o princípio da
necessidade é a fundada nos custos e benefícios. Se uma medida alternativa ou substitutiva é suficiente,
deve-se evitar a prisão (princípio da suficiência das penas ou medidas alternativas ou substitutivas).

6 - Adequação ou idoneidade da medida cautelar


A idoneidade (ou adequação) da medida cautelar é um outro requisito intrínseco de toda medida restritiva
dos direitos fundamentais. Nos termos do art. 282, II, do CPP: “Art. 282. As medidas cautelares previstas
neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (...) II – adequação da medida à gravidade do crime,
circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”.
Teoricamente, esse subprincípio deveria ser estudado antes da necessidade. Mas aqui estamos seguindo a
ordem do texto legal. Daí porque estamos analisando somente agora a adequação.
Na práxis, o juiz deve observar a ordem principiológica da adequação (em primeiro lugar) e somente depois
passar para a necessidade da medida.
Antes de tudo, a medida deve ser o meio idôneo para alcançar o fim perseguido. No caso da prisão, por
exemplo, ela deve ser o meio idôneo para se alcançar a garantia da ordem pública ou econômica, o bom
andamento da instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Se a prisão, no caso concreto, mostrar-se
inadequada, impõe-se ao juiz adotar outras medidas cautelares, menos traumáticas.
Se o escopo é evitar a aproximação do agente com a vítima, a medida cautelar da apreensão do passaporte

122 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

não se revela uma medida idônea. Quando se trata de uma violência doméstica, que requer a separação
do agressor diante do agredido, a medida cautelar de recolhimento domiciliar se mostra totalmente inade-
quada.
A medida é idônea se, com sua ajuda, o êxito desejado pode ser facilitado. A medida é inidônea quando se
pretende alcançar fins incompatíveis ou ilegítimos (como a condenação antecipada do réu, a sua prisão
para garantir a sua própria segurança etc.).

São exigências inerentes à idoneidade ou adequação:


(a) a adequação qualitativa da medida (para evitar que o acusado continue ameaçando testemunhas, cabe
sua prisão; para evitar que se aproxime da vítima, cabe a proibição de aproximação etc.). As circunstâncias
do fato, especialmente, orientam o juiz na busca da medida cautelar mais adequada;
(b) a adequação quantitativa da medida: não pode haver excesso. A interceptação telefônica, por exemplo,
só pode ser decretada por até 15 dias (depois pode haver renovação, justificadamente); a prisão temporária
só pode ser decretada por até 5 dias ou 30 dias, no caso de crime hediondo. A gravidade do crime, muitas
vezes, constitui um excelente guia para a quantificação da medida cautelar;
(c) a adequação subjetiva da medida: a medida tem que ser imposta contra uma determinada pessoa (con-
tra quem se justifica a restrição de um direito fundamental). O juiz, no momento de decretar qualquer medi-
da cautelar, tem que levar em conta “as condições pessoais do indiciado ou acusado” (art. 282, II, in fine).

7 - Proporcionalidade em sentido estrito


A proporcionalidade em sentido estrito é o terceiro requisito intrínseco do princípio da proporcionalidade.
Deve ser conjugada (numa relação de complementariedade) com a adequação da medida.
Ela requer a ponderação dos valores ou bens envolvidos no conflito. Cabe ao juiz ponderar esses valores
ou bens para verificar qual deve preponderar no caso concreto. De um lado está a liberdade. De outro está
a necessidade de prisão ou de outra medida cautelar para garantir a aplicação da lei penal.
Ao juiz impõe-se o dever de eleger em cada situação concreta qual desses bens tem prioridade. O interesse
preponderante, em cada situação concreta, deve ser eleito pelo juiz.
Aprioristicamente, não parece adequado dizer que o interesse público sempre deve preponderar. Nem
sempre. Tudo depende do caso concreto.
É a proporcionalidade em sentido estrito que permite, por exemplo, acomodar a programação normativa
genérica (o programa da norma) ao caso concreto. Nisso reside o que chamamos de relativização da lei,
em favor dos direitos e garantias fundamentais.
A lei não pode ser absoluta, sobretudo em matéria de prisão ou de outras medidas cautelares contra a
pessoa, em que a primeira palavra (e última) é sempre do juiz (nunca constituindo uma atividade exclusiva
do legislador).
A proporcionalidade em sentido estrito exige a ponderação de todos os interesses em conflito em cada
caso concreto.
No que diz respeito à manutenção ou decretação de uma prisão ou de outra medida cautelar, impõe-se que
o juiz pondere todos os interesses envolvidos:

Em nome da inocência: Justiça | 123


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

(1) de um lado estão os interesses do Estado: (a) no correto desenvolvimento do processo e dos institutos
processuais; (b) na realização do ius puniendi, levando-se em conta as consequências jurídicas esperadas
(pena; substituição; sursis; regime aberto), a importância da causa (gravidade da infração), o perigo de
reincidência, o grau de imputação (certeza sobre o resultado), êxito previsível da medida (rendimento) etc.;
(2) de outro lado estão os interesses do indivíduo: preservação do ius libertatis; presunção de inocência;
prejuízos da medida para sua saúde (aids), vida familiar, profissional, social etc.; condições da prisão; a
demora do processo etc.
Nos termos do art. 282, II, do CPP, cabe ao juiz impor a medida adequada, levando em conta “a gravidade
do crime, as circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”.
As normas que impõem restrições aos direitos fundamentais, como afirma a doutrina alemã, são normas
de “disposições de poder”, nunca “normas de dever”.
O juiz “pode”; não se trata de um “dever”. No âmbito das medidas restritivas dos direitos compete ao juiz
analisar cada caso concreto com lupa aumentada.

8 - Nossa posição
Qualquer tipo de valoração definitiva sobre o suicídio do reitor bem como sobre a decretação de sua prisão,
evidentemente, exige muita prudência assim como a análise completa de todos os fatos e provas.
Todos que tiverem acesso a tudo isso assim como à base doutrinária e dogmática que acaba de ser exposta
terá condições de concluir se houve ou não abuso (excesso) na decretação da prisão, se ela foi ou não a
ultima ratio, se podia ou não se alcançar o escopo pretendido com outras medidas menos drásticas.
De qualquer modo, para se aquilatar eventual excesso policial e/ou judicial na prisão do reitor torna-se sem-
pre imprescindível recordar tudo que já se sabe sobre o princípio da proporcionalidade, que pode iluminar
a análise desse e de tantos outros casos concretos (dentro ou fora da Lava Jato).

124 | Em nome da inocência: Justiça


TENTATIVAS ASSASSINAS DE ASSASSINAR A
CULTURA DA CORRUPÇÃO NO BRASIL

Paulo Ferrareze Filho1

Freud e Jung, cada qual à sua maneira, reconheceram em suas obras as implicações coletivas no e do
psiquismo. Em Psicologia das Massas2, Freud demonstra como estruturam-se psiquicamente os afetos
em uma massa, assim considerada como “uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no
lugar de seu ideal do Eu”. A análise da Igreja e do Exército revelam que, nas massas, a libido orienta-se para
satisfazer o desejo de todos: ser amado pelo líder. Jung3, por outro lado, sugere uma instância coletiva do
psiquismo, de base arquetípica, dada a orientar instintualmente determinados padrões diante de determi-
nados eventos emocionais.
No livro Inconsciente Jurídico: julgamentos e traumas do século XX, Shoshana Felman sustenta tese de
que determinados julgamentos expandem-se para além da esfera conflitiva individual, irradiando-se para
conflitos culturais, sociais, comunitários, enfim, coletivos.
Felman analisa dois notáveis julgamentos notáveis do século XX que, nos limites dessa efêmera reflexão,
podem ser chamados de casos clínico-jurídicos: o julgamento de Eichmann em Jerusalém em 1961; e o
julgamento de O.J. Simpson em 1995 nos Estados Unidos. No primeiro, constatando o retrato de uma
terapêutica coletiva contra o trauma do antissemitismo e, no segundo, diagnosticando a expansão de um
homicídio para o tratamento jurídico do trauma americano do racismo.
A perspectiva de Felman pode oferecer uma leitura do enfrentamento que nosso sistema de justiça faz

1 Doutor em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UNISINOS). Professor de Psicologia Jurídica.


2 FREUD. Sigmund. Psicologia das Massas, análise do Eu e outros textos. (1920-1923). São Paulo: Cia das Letras, 2011.
3 JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

contra o brasileiríssimo trauma da corrupção, pano de fundo do processo penal que matou Cancellier.
Existem fartas e ricas pesquisas sobre as origens da malandragem, da corrupção e do jeitinho brasileiro.
No entanto, talvez uma possibilidade de se pensar sobre as origens de nosso modo brasileiro, seja a partir
de nossa lusitanidade. Conta-se que Lisboa foi fundada por Ulisses, que ali descansou depois da longa
batalha de Troia. Daí o nome da cidade, Ulissabon que, do grego, significa a cidade de Ulisses. “Aquilo que
Aquiles não conseguiu durante dez longos anos pela força, Ulisses realizou com a esperteza a partir do
estratagema do cavalo de Troia.” Nossa identidade é marcada, desde a origem lusitana, por truques, trapa-
ças, arranjos, corrupções, malandragens. Não é sem razão que Pedro Malasartes, Macunaíma, Zé Pelintra
e Malandro Carioca são figuras simbólicas do nosso folclore.4
Apesar de nossa corrupção ser especializada em política, já os primeiros juízes brasileiros, todos bacharéis
portugueses cedidos pela Coroa, ficaram marcados pelas associações interessadas que realizaram com
as filhas dos senhores de engenho e das famílias tradicionais, donas dos grandes latifúndios5. Para esses,
o parentesco com alguém ligado aos Tribunais, garantia segurança e benefícios. Para aqueles, significava
unir o poder institucional com o poder inerente à condição de detentor donos da terra.
Este preâmbulo cultural objetiva recuperar as razões históricas que fomentam o modo paranoico com que
o Judiciário brasileiro tenta combater o trauma cultura da corrupção.
Em setembro de 2017 a comunidade acadêmica foi surpreendida com a prisão preventiva do Reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina, Prof. Luiz Carlos Cancellier de Olivo. O mote da prisão era impedir
que o acusado obstruísse a investigação que apura desvios de repasses do governo federal à UFSC. Solto
através de habeas corpus, Cancellier ficou impedido de frequentar a Universidade, o que, segundo bilhete
por ele manuscrito, motivou o cometimento de seu suicídio.
Considerando que nosso sistema constitucional garante a presunção de inocência, a presente reflexão não
pretende especular sobre a legitimidade das acusações perpetradas pela Polícia Federal e pelo Ministério
Público Federal, mas destacar a coparticipação de dois traços da cultura brasileira nessa tragédia: a cor-
rupção e a mentalidade inquisitorial.
Primeiro, há de se detectar o linchamento moral ao qual foi submetido Cancellier. Vítima do espetáculo
que se tornou o processo penal, Cancellier sofreu, na carne encarcerada e na alma exilada, os efeitos de
uma tentativa atabalhoada da Justiça de combater o trauma cultural da corrupção. A mistura de heroísmo,
narcisismo e vontade-de-holofote atingiram o ápice com a morte de Cancellier, ligando o sinal de alerta em
relação ao caráter inquisitorial e mortal do processo penal brasileiro, agora não só contra os seus tradicio-
nais clientes pretos e pobres, mas também em relação aos outros.
O caso do suicídio de Cancellier deve ser um divisor de águas. Um marco de estancamento dos excessos. É
difícil, ao leigo, compreender o resultado catastrófico do uso malandro (corrupto?) dos institutos jurídicos
à disposição de quem os tem à mão. Talvez, agora, ao também matar quem vive na Casa Grande, possa-se
iniciar um debate real sobre as misérias do processo penal brasileiro. Afinal, como mostraram os ataques
de Las Vegas e da Somália, no mundo há mortes mais e menos importantes.
O processo penal que envolveu Cancellier, como tal qual ocorreu com a Lava-Jato, não objetiva apenas
resolver um caso pontual desvios de verba pública na UFSC. Trata-se de mais uma tentativa institucional
4 BOECHAT, Walter (org.). A Alma Brasileira: luzes e sombras. Petrópolis: Vozes, 2014.
5 Conforme SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Cia das Letras 2010.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

de eliminar o trauma da corrupção no Brasil. A tese de Felman acerta em cheio e demonstra como o uso
do processo penal se dá com objetivos que extrapolam os limites de individualização da investigação e da
pena, fazendo com que uma espécie “culpa” cultural seja agregada aos que respondem processos que
tratem de desvios de dinheiro público. É com Cancellier que nosso “inconsciente jurídico” se manifestou
da pior maneira.
Mais que isso, observa-se algo interessante e paradoxal no combate cultural contra a corrupção: ao exage-
rar na dose e, em determinadas situações, decidir contra legem, as instituições – Judiciário, MP e Polícia
– agem também de modo corrupto. Afinal, não é disso que a corrupção é feita? Desmandos, privilégios,
mal uso de bens públicos. Na medida em que fazem mal ou inadequado uso da normatização que embasa
nosso Estado de Direito, operadores jurídicos, com consciente boa intenção e inconsciente narcisismo,
acabam tendo que corromper para combater a corrupção.
O julgamento e o rotulamento antecipados, expressão máxima do que Carnelutti denominou magistralmen-
te de miséria processual penal, associados à demonização de nossa própria cultura, que teima a refletir-se
incessantemente no nosso grande espelho nacional, fizeram com que Cancellier fosse a primeira vítima
fatal dessa vã tentativa de correção cultural através do Direito.
Em meio à uma obra com tantos especialistas em processo penal, o que esta breve reflexão pretende
anotar é que mudanças – pessoais e culturais – nunca acontecem quando feitas por quem não percebe
por quê faz o que faz.

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Eugênio José Guilherme de Aragão

Doutor em Direito pela Ruhr-Universität Bochum (Alemanha), título


conferido em 2007 com menção “summa cum laude”. Mestre em Direito
Internacional de Direitos Humanos, em 1994, pela University of Essex
(Inglaterra) e Bacharel em Direito, em 1982, pela Universidade de Brasília
(UnB). É professor adjunto da Faculdade de Direito da UnB, onde ingressou
em 1997 por concurso público.

A morte trágica de Luiz Carlos Cancellier: o que temos


a ver com isso

Tragédias que causam grande comoção social estão sujeitas a uso político, muitas vezes não pela tragédia
em si, mas, muito mais, pela comoção. Lamentavelmente. Num mundo em que comunicação se vende
como mercadoria que é e se presta à manipulação interesseira da chamada opinião pública não poderia
ser diferente: estados de ânimo coletivos mobilizam ou desmobilizam. Criam disposições e indisposições.
Induzem até, no mercado de capitais, à aplicação ou desaplicação de investimentos especulativos.
Por isso é forte a tendência de instrumentalizar tragédias. E quem o faz desconsidera, por vezes, a dor de
quem padece do impacto emocional direto. É desumano. É repulsivo. E sugere que tratemos com extrema
cautela esses eventos, para que não sejamos acusados de tirar proveito da desgraça alheia.
Por outro lado, há tragédias que fazem parte, naturalmente, do espaço público onde foram causadas. Silen-
ciar sobre elas, ao contrário, seria um desrespeito às vítimas e um sinal de monstruosa indiferença com o
sofrimento que é gerado pelas estruturas de que participamos em maior ou menor grau.
Violência estrutural: um conceito introduzido pelo cientista político sueco Johan Galtung, que se aplica a
nossos dias atuais com tal perfeição e completude, como se para eles fosse concebido. Trata-se de forma
tão disseminada de agressões, quase mesológicas, a pessoas e grupos, que se torna difícil identificar uma
única autoria intelectual responsável por elas. Expressões de misoginia, de homofobia, xenofobia, racismo,
ódio político e preconceito a crenças e culturas são alguns exemplos de violência estrutural.

128 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

Quando se diagnostica esse tipo de violência disseminada numa sociedade, todas e todos que dela fazem
parte têm responsabilidade e só com ações políticas determinadas e campanha de informação esclare-
cedora é que se pode enfrentá-la eficazmente. É preciso debater o fenômeno, tematizá-lo no dia a dia e
despertar a consciência coletiva para o repúdio a práticas que o consubstanciem.
Ao revelar-se uma tragédia como resultado ou expressão de violência estrutural, compete a todas e todos
nós meter a colher. A dor já não se restringe a familiares e amigos das vítimas, mas deve pertencer ao
coletivo que a causou: só assim se prevenirão novos episódios da tragédia.
A morte de Luiz Carlos Cancellier é uma expressão da violência estrutural que acomete nossa doentia
sociedade. A fixação coletiva pelo chamado “combate à corrupção”, em que corruptos são sempre os ou-
tros, gerou um clima de lustração política que permitiu a algumas instituições que se prestigiassem ao se
apresentarem como os guardiões da ética e da moralidade e por isso legitimadas a agir a ferro e fogo contra
qualquer cidadã ou cidadão por elas apontados como decaídos. Instalou-se um frenesi persecutório que
faz o gáudio dos autoproclamados “righteous”, deleitados com o sofrimento e a exposição dos escolhidos
para a função de bodes expiatórios.
Essa predisposição social de aceitar o injusto como um mal menor diante dos desafios da lustração gera
ampla aprovação da violência de agentes públicos, como violência de todas e todos que se sentem repre-
sentados na prática dos abusos aquiescidos.
Érica Marena, uma mera delegadinha lotada na província, que presidiu o inquérito contra Cancellier, con-
quistou seu estrelato na tal “Operação Lava Jato”, assim como seus coleguinhas de arma, expondo à
execração pública pessoas submetidas a sua confiança, como funcionários de um Estado custodiador.
Cada condução coercitiva, cada detenção, cada busca e apreensão era encenada como acontecimento de
impacto, aparecendo agentes e delegados no papel de anjos justiceiros e os estigmatizados suspeitos –
meros suspeitos – como monstros, cancros da sociedade, definitivamente e inapelavelmente condenados
aos olhos do público. Seu erro? – terem aparecido do radar dos meganhas, alguns da polícia, outros do
ministério público, sempre sob as bênçãos do patriarca togado do elenco cinematográfico, o juiz Sérgio
Moro. Para estar na tela desse radar, bastava ao pobre coitado se encaixar, como peça de um quebra-ca-
beças, na teoria montada pelos meganhas e tornada pública antes mesmo de minimamente amadurecida.
É assim que se criou, com imprescindível auxílio da mídia e acovardamento das instâncias superiores, ora
ativamente cúmplices, ora omissas por acomodação ou conveniência, o ambiente de violência estrutural.
Os impactos dessa ação desenfreada contra pessoas e grupos cria dor, desespero e forte sensação de
injustiça naqueles apanhados a esmo pela ira cinematográfica da meganhagem. Lembro-me bem, numa tal
de “Operação Voucher”, contra o Ministério do Turismo, da prisão do médico Colbert Martins, então Secre-
tário Nacional de Programas de Desenvolvimento do Turismo. Empossado havia poucos dias, o Sr. Colbert
nada mais fez do que assinar o empenho de contratos antes aprovados por todas as instâncias de controle
interno da pasta. Mal sabia que esses contratos estavam na mira dos anjos justiceiros. De inopino, Colbert
foi preso, transportado em aeronave da Federal para Macapá, onde, após fotografado feito delinquente
de dorso nu à frente de uma régua, ficou preso por 24 horas, quando o juiz substituto se apercebeu da
barbeiragem do titular e mandou soltar todos os apeados pelo açodamento prepotente dos investigadores.
Mas, para sua honra, já era tarde demais. Sua foto e a de outros fez a alegria dos editores dos semanários

Em nome da inocência: Justiça | 129


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

marrons que infestam nossas bancas de jornal. O filho, frequentador de escola de classe média em Brasí-
lia, passou pelo bullying inevitável de colegas que o identificaram como rebento “do corrupto”. E Colbert,
depois de tudo por que passou, ainda teve que lidar com a dor de sua família, linchada por um coletivo
celerado. E nada – nada mesmo – se provou contra o Secretário, pessoa de caráter e estatura moral ímpar
e de relevantes serviços prestados à Bahia e ao Brasil.
Luiz Carlos Cancellier repetiu a sina de Colbert. Reitor de universidade de ponta no cenário acadêmico bra-
sileiro, jurista e professor exemplar, foi laçado pela ira dos meganhas lotados na província. Como sempre,
sob as bênçãos de um judiciário que não merece esse nome. Viu sua reputação e sua vida profissional
construída em décadas de esforço e denodo sendo destruídas pela arrogância corporativa. Nem direito
a apoio espiritual teve, segundo noticiário da semana que se encerra. Estaria “obstruindo” o trabalho de
corregedor e delegados na faina de provas para sua teoria. Qualquer um que questione a arbitrariedade e o
abuso é, nos dias de hoje, um obstrutor da “justiça” - whatever that means!
Jornais e curiosos, como no caso de Colbert, não tardaram em dar seus palpites e em reproduzir acriti-
camente as suposições dos meganhas, sem qualquer fidelidade aos fatos. E isso tudo em nome de uma
exigência de “justiça”.
Não é à toa que o Professor Cancellier preferiu a morte à desonra. Foi, nisso, muito superior a seus algo-
zes. Com a extrema coragem de se imolar, chamou a atenção de todas e de todos por esses monstruosos
desvios em nossas instituições, nas quais o estrelato de alguns, o oportunismo ávido por ganhos de classe
de outros, a covardia de quem poderia impedir os desvios a imbecilidade obnubilada da massa produzem
esse tipo de tragédia humana e deformação do Estado.
Luiz Carlos Cancellier , vítima de nossa violência estrutural, merece não só o reconhecimento para dar
seu nome à nova lei de abuso de autoridade, mas a inscrição no livro dos heróis da pátria: Fique em paz,
professor, que será lembrado por aquelas e aqueles que não desistem de um Brasil mais altivo e justo.

130 | Em nome da inocência: Justiça


Léo Rosa de Andrade

Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1978), graduação em Psico-
logia pela Universidade do Sul de Santa Catarina (1998), mestrado em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (1984) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (1991). Atualmente é professor da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tem experiência
na área de Direito, com ênfase em Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito,
Ideologia, Governo e Política.

O Cau, a desHonra, a inJustiça, a funcionária banal

Foi acaso: domingo, namorada, cinema. Ao fim do filme, num corredor, palmilhava o Cau. Não parecia ter
destino certo; ao ver-me veio em minha direção. Encontro de conversa ligeira, descomprometida. Não se
falou – e eu não seria tão infausto para tal descuidado – sobre a situação aflitiva que meu amigo enfrentava:
vergonha por desonradez imposta por uma funcionária banal.
Banal, a constatação de uma estupefata Hannah Arendt. Banalidade: atributo da insignificância, condição
da trivialidade. O Cau foi preso assim, por um prenda-se enjambrado que perdurou o tempo de a funcio-
nária que lhe determinou a prisão ser substituída. Tempo breve para os ocupados dos afazeres cotidianos.
Tempo largo para quem está tomado pelo sentimento penoso da humilhação.
Não o encontrei cabisbaixo, o que não me surpreendeu; tratava-se de um homem sempre tomado por com-
postura de altivez. Vi muita tristeza, o que haveria de ter cabimento. Se havia, não compreendi desespero.
Mandíbula cerrada, isso era aparente. Notei-lhe a face densa porque o sorriso irônico que o caracterizava
sumira. Certamente a decisão já estava tomada, agora suponho eu.
Dos juízes sempre se esperou que cumprissem e fizessem cumprir as leis. Tarefa que sempre lhes deve ter
sido fácil, pois é próprio do ofício poder dá-la por bem feita. Juiz está dispensado de muita explicação. Até
já o povo deu-se por convencido de que “sentença não se discute, cumpre-se”, mesmo porque a lei, ao fim
e ao cabo, é o alvedrio pessoal do poder que o Estado concede ao magistrado.
Os juízes sensíveis ao mundo, os que sabem bem as exigências da circunspecção, devem sentir alguma
dificuldade quando se lhes pede que, mais que se açular a si mesmos para fazer tramitar com celeridade os
processos, façam Justiça. A idealização de fazer Justiça beira soberbosamente a mentalidade do funcioná-
Em nome da inocência: Justiça | 131
Capítulo 2 - A tragédia anunciada

rio impessoal que habita os meandros da burocracia. Ou seria coisa de quem é justo?
Um bom juiz – há muitos bons juízes – conhece seus limites profissionais, sua condição de humanidade.
Um juiz sabe que não dá conta da declarada neutralidade; sabe que, quando muito, se portará com equidis-
tância. Quanto a ser funcionário – a maioria o é –, ninguém quer sê-lo. Já um pretensioso tem-se por justo,
e até se esforça por sê-lo; cumpre o métier. Tenho medo é do justiceiro.
O Brasil é justiceiro. A mentalidade medíocre brasileira é justiceira. Praticamos por demais linchamentos
físicos e morais. Seja na vida real, no que despontamos no mundo, seja na vida das redes sociais, que
espelha a realidade dos ódios latentes; aniquilamos, sem dó, corpos e reputações. O justiceiro com autori-
dade para sê-lo, realizando justiciamento fundado na lei, é um horror.
Quando o Estado-juiz lança os aparatos da burocracia estatal repressora sobre um indivíduo, desman-
cha-lhe a vida. É um tormento que alcança o tempo da vítima, seus recursos, sua paz. Sobre a vida do
assujeitado paira uma aflição. É um abuso que desarranja qualquer personalidade que resolva atropelar.
Resta impotência para reagir. Acabrunha o cara. O existir fica desanimado.
Sobre o Cau veio o Termidor, figurado na decisão da funcionária que trata o poder que o Estado lhe confere
com vulgaridade: prenda-se o reitor. Dane-se que seja o reitor. Ou, talvez – mas confio preocupado que não
–, que bom que o subjugado seja o reitor. Um reitor será notícia, haverá espetáculo. Mídia. Desimporta que
sobre o homem-reitor incidam os rituais de humilhação dos encarcerados.
Cau foi preso ilegalmente e, eu diria que, pior, desnecessariamente, sob suspeita de que obstaculizara
investigações que uma comissão investigadora que ele mesmo instituíra realizava acerca de atos corrup-
tos praticados em gestão que nem era a dele. Não havia nenhum fato substancioso que recomendasse,
nenhum amparo legal que autorizasse sua prisão. Foi assim, banal: prenda-se para averiguar.
Trocada a funcionária, ou a funcionária sendo substituída em decorrência de padecido malestar, Cau, ou
o reitor, foi solto, mas se lhe determinou a permanência no exílio da Universidade à qual dedicava a vida.
Que fazer? Conformar-se? Teria aptidão para se conformar? Andar desonrado por aí? Cau era cioso da sua
dignidade e não tinha vocação para suportar as agruras de Josef K.
Não me alinho aos indignados de ocasião, muitos cúmplices dos ladrões da Pátria que acusam juízes de
persecução seletiva. Nada disso. Tenho acompanhado os processos, visto as provas, o repatriamento de
dinheiro graúdo, inclusive. Estou na formação dos críticos de aspectos específicos do Poder Judiciário:
48% dos presos brasileiros estão assim mantidos em condição preventiva.
Prisão temporária é por causa muito grave e por extrema necessidade. A legislação pertinente é claríssima
a respeito (aqui, lembrar: juiz, que não sejas justo, é mesmo difícil sê-lo, mas não te fantasies justiceiro; só
cumpre a lei). E há os efeitos: se para o juiz de espírito burocrata a decretação da prisão é uma “canetada”,
é um anátema para o preso alcançado em estado de inocência.
O ato de pôr termo à própria vida espanta; a cultura abraâmica arrolou o gesto como pecado grave contra
a sua divindade. Ora, no mundo laico é ato de vontade, é um direito. Suicídio não necessariamente é fastio
ou fuga irrefletida da existência. Nem tem que ser disforia. Pedro Nava anunciou que ao tempo adequado
se mataria. Cumpriu com elegância, coragem e lucidez o anunciado.
Getúlio Vargas tinha a biografia compromissada com a História. Dar cabo de si mesmo não foi ato deses-
perado, foi gesto praticado com extrema ponderação. Foi uma grande resposta política neste País de tantos

132 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

políticos miúdos. “Eu vos dei minha vida. Agora vos ofereço minha morte. Nada receio. Serenamente dou
o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.
Domingo, namorada, cinema. Ao fim do filme (Polícia Federal – A Lei é para todos), percebo Luiz Carlos
Cancellier de Olivo. Sozinho, perambulava absorto, mirava o espaço vazio à sua frente, mas se me pareceu
desinteressado dele. Ao me ver, dirigiu-se, gentil, da borda da escadaria do Shopping Beira Mar até onde eu
me encontrava aguardando a toalete de Karine Gomes Vieira. Conversamos.
– Um elogio à Polícia fundado na estética “efeito demonstração”, mas gostei, digo. – Justiça mediada pela
mídia, estética midiática, diz. – Engajamento das autoridades, digo. – Justiça apressada, diz. Silêncio. – Fui
posto nesse show espetaculoso; vou responder, retomou. Esbocei palavras. Um abraço me silenciou. Vi-o
retornar com vagar à escada que lhe ajudaria na resposta que formulara.
Vinda Karine, refiro-lhe o encontro. Ela lembra Foucault, Vigiar e Punir: Diz: – Os corpos eram presos,
julgados. Então expunham a execução do condenado ao público. Exemplificavam com o horror. Hoje, in-
versão: expõem para condenar. Faz-se um espetáculo quando se empreende a busca de um acusado.
Espalhafato de mídia. Para exemplificar, leviana condenação antecipada.
Segunda, a notícia triste. Então, foi mesmo isso: quando o vi, Cau media o lugar da sua morte. E a morte
foi no lugar medido. Cau foi um animal político. Viveu desse modo. Seu último gesto público foi nessa
condição. Morreu daquele modo. A deliberação de se fazer morrer exposto objetivava expor sua condição
de sujeitado a uma judicatura esbirra. À judicatura extrema, o rebate extremado.
Seu ato de fazer-se morrer está insertado nessa conjuntura adversa. Extremou-se com atitude de derra-
deira rebeldia, uma resposta rebelde ao escracho imposto à sua dignidade. Cau deu-se em holocausto aos
seus compromissos consigo mesmo. Se me fosse de alentar seus entes queridos, eu lhes diria: Foi morte
em combate, foi maneira valente de ceder a vida sem dobrar-se o guerreiro.
Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, discorre sobre a banalidade do mal. O nazista julgado não se
caracterizava por um caráter doentio. Agia burocraticamente, zeloso no cumprimento eficiente do seu dever
para com o cargo que lhe dava significado à sucessão dos dias, só. Era como que compulsado pela rotina
que adestra, dispensado de considerar a medida das coisas.
Burocrata, Houaiss: “pessoa que, por achar de grande prestígio seu cargo burocrático, exorbita de suas
funções e assume atitudes intoleráveis no desempenho dessas”. Ao Eichmann funcionário aplicado não
concernia questionar sentido ou consequências das tarefas a seu encargo. Isso não é ontológico, natural
ou metafísico, é alienação e manifesta-se onde encontra espaço institucional para tanto.
A magistratura brasileira nunca foi assim. Contudo, alguns juízes ou juízas desertaram as contas morais,
não medem consequências. Ora, Justiça é poder, é ideologia. Toda sentença é uma escolha e suas impli-
cações. Uma expressão da psicanálise: sujeito advertido. Trata-se do indivíduo prevenido sobre si mesmo.
Magistratura é poder de Estado. Todo poderio público deveria advertir-se.
Honra, um valor. Há quem porte a marca da deferência, distinga-se, granjeie respeito por sua conduta. Hon-
ra é conceito, compõe o “existir como obra de arte”. Banalidade é mesquinharia. Quem banaliza a grandeza
da sua função e exorbita da autoridade que lhe é outorgada pode não entender, mas para algumas pessoas
a vida pressupõe a condição honrada de vivê-la. Era o caso do Cau.

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Leonardo Isaac Yarochewsky1

QUEM MATOU
LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO?

Leonardo Isaac Yarochewsky 1

Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO, foi en-
contrado morto na manhã da última segunda-feira (3/10) no Beiramar Shopping, em Florianópolis. Segundo
investigação preliminar, a hipótese é de suicídio.
No dia 14 de setembro, o reitor CANCELLIER foi preso em decorrência da Operação “Ouvidos Moucos”,
da Polícia Federal (PF), por suspeita de desvio de recursos dos cursos de Educação a Distância (EaD).
Segundo a PF, o reitor CANCELLIER nomeou professores “que mantiveram a política de desvios e direcio-
namento nos pagamentos das bolsas do EaD”. Ainda, de acordo com a PF, o reitor “procurou obstaculizar
as investigações internas sobre as irregularidades na gestão do EaD”.
Embora tenha sido solto no dia seguinte à prisão, o reitor, 60 anos, estava afastado da UFSC por decisão
judicial. CANCELLIER era doutor em direito pela UFSC e professor da universidade desde 2005.
Um bilhete foi encontrado no bolso da calça de LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO com os seguintes
dizeres: “Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade”.
Em carta publicada no jornal O Globo, o reitor CANCELLIER revela o caráter humilhante da sua prisão e de
seus colegas da UFSC:
Não adotamos qualquer atitude para obstruir apuração da denúncia. A humilhação e o vexame a que fomos
submetidos — eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) — há uma semana
não tem precedentes na história da instituição. No mesmo período em que fomos presos, levados ao
complexo penitenciário, despidos de nossas vestes e encarcerados, paradoxalmente a universidade que
1* Advogado, Mestre e Doutor em Ciências Criminais (UFMG) , Membro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa)

134 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

comando desde maio de 2016 foi reconhecida como a sexta melhor instituição federal de ensino superior
brasileira; avaliada com vários cursos de excelência em pós-graduação pela Capes e homenageada pela
Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Nos últimos dias tivemos nossas vidas devassadas e nossa hon-
ra associada a uma “quadrilha”, acusada de desviar R$ 80 milhões. E impedidos, mesmo após libertados,
de entrar na universidade.2

Hodiernamente, em nome de um ilusório combate a criminalidade e como forma de antecipação da tutela


penal, a prisão provisória vem sendo decretada a rodo - notadamente nas operações espetaculosas das
forças tarefas que unem a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça Federal – em assalto aos direitos
e garantias fundamentais. Não é sem razão que cerca de 40% das pessoas que estão presas no Brasil são
de presos provisórios (prisão preventiva) e que ainda não foram julgadas nem na primeira instância.
MICHEL FOUCAULT já se referia ao suplício como forma de ritual para um grandioso espetáculo. “Na forma
lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo:
cada pedaço é exposto no balcão”.3 Mais adiante, FOUCAULT observa que “há também alguma coisa de
desafio e de justa na cerimônia do suplício. Se o carrasco triunfa, se consegue fazer saltar com um golpe a
cabeça que lhe mandaram abater, ele a mostra ao povo, põe-se no chão e saúda em seguida o público que
o ovaciona muito, batendo palmas”.4
Independente da acusação, a Operação Ouvidos Moucos - que culminou com a decretação da prisão do
reitor da UFSC - foi mais uma, entre tantas outras, eivada de ilegalidade e arbitrariedade. Desgraçadamente
no Brasil a presunção de inocência que decorre do processo penal democrático foi abandonada – inclusive
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – em nome da fúria punitivista, do falacioso discurso de combate à
impunidade e do Estado Penal.
No que se refere ao ardiloso e já banalizado discurso da impunidade, para justificar o avanço do Estado
Penal através de medidas draconianas, RICARDO GENELHÚ observa que:

E o ‘discurso da impunidade’, com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de pen-
samento, tem poderosamente servido muito mais para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos
‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os ‘inimigos’ (pare-
cença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do sistema penal antes e depois que um
‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora
do cotidiano privado, seja porque indespertadora da cobiça midiática.5

A prisão provisória (cautelar) que deveria ser decretada apenas e tão somente em casos extremos e ex-
cepcionais - e, mesmo assim, quando não há outra medida de caráter menos aflitivo para substituí-la (Lei
12.403/11) - se converteu em regra. Em seu instigante e indispensável “Guia compacto do processo penal
conforme a teoria dos jogos”, ALEXANDRE MORAIS DA ROSA a partir da teoria dos jogos assevera que
2 Disponível em:< http://www.vermelho.org.br/noticia/302611-1
3 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 48.

4 FOUCAULT, op. cit. p. 48.


5 GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democra-
cia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

“as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou tática de
aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão
cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra como ‘tática de aniquilação’, uma vez que
os movimentos da defesa vinculados à soltura”. 6
Há muito, vários juristas verdadeiramente comprometidos com o Estado democrático de direito vem aler-
tando para o avanço do Estado penal. O braço repressor do Estado (Polícia Federal e Ministério Público)
com o aval de parte do judiciário está “governando” o país.
O elevado número de prisões como mecanismo para obtenção das delações ou colaborações premiadas -
que são tomadas como se fossem verdadeiras em troca da liberdade dos delatores - está transformando o
processo penal em um processo de exceção. Em um processo em que juiz e procuradores vestem a mesma
toga. A toga punitiva.
É preciso advertir, conforme observa JUAREZ TAVARES7, “que a garantia e o exercício da liberdade indivi-
dual não necessitam de qualquer legitimação, em face da sua evidência”. Mais adiante, TAVARES assevera:
“o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de que
ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção”.

Desgraçadamente, no Estado Penal prende-se primeiro – sem direito a defesa - para depois apurar. As
prisões são filmadas, noticiadas e exibidas pelos abutres da grande mídia que transformam a desgraça
alheia em mercadoria e o processo em espetáculo.
No espetáculo midiático – braço do Estado Penal -, LUANA MAGALHÃES DE ARAÚJO CUNHA observa que
“as dúvidas acerca do delito, circunstâncias e autoria são transformadas em certezas. O possível autor
do fato criminoso é tratado como culpado e julgado pela opinião pública que cuida de impor ao indivíduo
a pena da estigmatização”. 8 NILO BATISTA nota que “a imprensa tem o formidável poder de apagar da
Constituição o princípio de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. 9
Não é exagero dizer que no processo penal midiático o juiz se torna refém da mídia punitiva e opressora.
Referindo-se a denominada “criminologia midiática”, RAÚL ZAFFARONI afirma que na guerra contra eles
(os selecionados como criminosos) são os juízes alvo, preferido da “criminologia midiática”, que segundo
o jurista argentino, “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito, em
especial se o delito for grave, o que provoca uma alegria particular e maligna nos comunicadores”. Neste
viés, os juízes “brandos” são um obstáculo na luta contra a criminalidade e contra “eles”. Como assevera
RAÚL ZAFFARONI, “as garantias penais e processuais são para nós, mas não para eles, pois eles não
respeitam os direitos de ninguém. Eles – os estereotipados – não têm direitos, porque matam, não são
pessoas, são a escória social, as fezes da sociedade”.10
Assim, no Estado Penal, a defesa é relegada ao segundo plano, quando não considerada estorvo para as
6ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria do jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
7 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
8CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: A influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a
vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 20, n. 94, jan-fev,
2012.
9 BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan,
1990.
10 ZAFFARONI. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

136 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

investigações. No Estado Penal, promotores de Justiça e procuradores da República se transformam em


acusadores e paladinos da justiça. Os juízes, no Estado Penal, se travestem em verdugos, e alguns em “su-
per-heróis”. No Estado Penal, a Constituição da República é dilacerada e com ela são triturados os direitos
e garantias do Estado Constitucional.
RUBENS CASARA, referindo-se ao Estado Pós-democrático, observa que “no momento em que direitos
e garantias individuais são afastados com naturalidade por serem percebidos como empecilhos ao livre
desenvolvimento do mercado e à eficiência punitiva do Estado, lamenta-se a ausência de debates sobre o
agigantamento do Estado Penal. Lamenta-se a ausência de debates que tratem da amplitude e importância
do valor liberdade”.11
No Estado democrático de direito fundado, realmente, em bases democráticas - democracia material -
deve prevalecer o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com
condenações sem defesa. Repita-se, o status libertatis é a regra. A presunção é de inocência. A prisão
cautelar como medida drástica e de exceção somente deveria ser decretada como remédio extremo, como
ultima ratio. Em caso da imperiosa necessidade de decretação de alguma medida cautelar, que seja feita a
opção pela menos gravosa e menos aflitiva ao acusado. Por fim, que seja sempre evitada à prisão e que a
liberdade sempre prevaleça.
Na verdade, nua e crua, o reitor LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO não se suicidou, foi “suicidado”, foi
“suicidado” sem direito a defesa e com emprego de meio cruel, por todos aqueles que representam e agem
em nome do Estado Penal, que massacram diuturnamente a dignidade da pessoa humana, postulado do
Estado democrático de direito.

11 CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2017, p.225-226.

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Denise Assis

Jornalista há 41 anos, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrou a Comissão
Nacional da Verdade e a Comissão da Verdade do Rio, autora dos livros Propaganda e Cinema a
Serviço do golpe - 1962/1964 e Imaculada.

Um corpo que cai


“O movimento vertical no vácuo é um caso particular
de movimento uniformemente variado (MUV).”
(No estudo de física a queda livre é uma particularização do movimento uniformemente variado)

Quando o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, diri-
giu-se por volta das 10h30 ao quarto andar do shopping Beiramar, em Florianópolis e soltou o seu corpo
no ar, fez mais pelos movimentos de resistência ao golpe de 2016, que os milhares de manifestantes que
lotaram as praças das capitais e cidades do interior, para protestar. O seu vôo solo definiu com contornos
mais fortes, o Brasil policial/ditatorial a que estamos submetidos desde então, subjugados por regras tão
rígidas quanto fluidas, de um Judiciário totalmente atrelado ao sonho de um juiz de primeira instância, que
ambicionou importar para o país a operação “Mãos Limpas”, da Itália. É bom lembrar, no entanto, que lá
toda a movimentação em torno da pretensa ação para varrer a corrupção do mapa, trouxe ao poder um
Silvio Berlusconi, e 11 cadáveres, por suicídio.
Aqui, estamos na terceira vítima, se considerarmos que D. Marisa Letícia sucumbiu à tristeza e às pres-
sões de ver a vida de sua família devassada e ser alvo das persistentes acusações a ela e ao marido. Seu
aneurisma latente explodiu. Logo em seguida, lá se foi Marco Aurélio Garcia. Seu coração simplesmente
parou perplexo ante os rumos que tomava o partido ao qual se dedicou toda uma vida, desgastado por su-
cessivas “delações”. Por fim, Cancellier fez do ato extremo de se lançar no ar, o ato político mais marcante
dos últimos desdobramentos da “Operação Lava Jato”, dirigida por Sergio Moro, o colega da delegada Érika
Marena, ex-integrante da força-tarefa da Operação Lava-Jato, em Curitiba (PR).
Antes de saltar para a morte, Cancellier, como era chamado pelos colegas, redigiu um bilhete: “Minha
morte foi decretada no dia de minha prisão”, escreveu. A frase tem a concisão de quem já passou pelo
jornalismo e a eloqüência de uma carta testamento. Aponta corajosamente o dedo para os que lhe fizeram
138 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 2 - A tragédia anunciada

“ouvidos moucos” - nome escolhido para a operação, pela PF - e dirigida pela comandante da área de
combate à corrupção e desvios públicos, Dra. Érika Marena. Um detalhe ampliou a comoção que se seguiu
à sua morte. Cancellier, antes de pular para o nada, escolheu para vestir por dentro da camisa social, uma
camiseta da UFSC.
O reitor foi exposto ao vexame de ser preso, no dia 14 de setembro, por determinação da juíza Janaína
Cassol Machado, e conduzido a um presídio comum, onde foi obrigado a ficar nu, teve as suas partes
íntimas tocadas no ritual da revista invasiva, feita nesses casos. A prisão, ainda que tenha durado um dia, é
questionável, do ponto de vista do rigor jurídico, pois foi feita antes mesmo do reitor ser chamado a prestar
esclarecimentos.
A acusação que pesava contra ele, foi a mesma que o juiz mito tem atribuído a outros acusados, subme-
tidos aos rigores de uma prisão preventiva abusiva. Cancellier teria “obstaculizado as investigações inter-
nas” sobre irregularidades na gestão de recursos dos cursos do Educação a Distância (EaD), da unidade de
ensino, no bojo da operação que apurava, de acordo com a ação policial, o desvio de R$ 80 milhões. Fontes
ligadas à universidade, no entanto, dizem que, na verdade, esse é o montante destinado ao programa, e o
que teria sido desviado, não chega a o,5% desse total.
As apurações foram iniciadas no departamento de Física, a matéria que estuda, dentre outras coisas, o
deslocamento dos corpos no espaço.
Ao repórter Marcelo Andrade, do Diário Catarinense, não passou despercebido, o fato da delegada Érika,
que coordenou a operação que resultou na prisão do reitor, ter deixado “a robusta equipe montada em Curi-
tiba”. Em sua reportagem publicada em 19 de setembro, ele destaca que a Dra. Éricka estava “acostumada
aos holofotes nacionais com a repercussão das fases da operação e às prisões de envolvidos em crimes do
colarinho branco”. Soou incomum ao jornalista que ela tenha preferido ir para Florianópolis, “para chefiar
a discreta e tímida estrutura da delegacia de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da PF na Capital
catarinense. Oficialmente, a mudança foi uma promoção na carreira.  Para o presidente da Associação
Nacional dos Delegados da PF (ADPF), Carlos Eduardo Sobral, a remoção para uma unidade menor causou
estranheza nos delegados federais e, evidentemente, não se tratou de uma promoção.”
Provavelmente, a retirada estratégica para Florianópolis, tenha a ver com a proporção que a delegada
estava tomando na cena da PF, a ponto do seu nome estar sendo defendido pela associação para o cargo
de diretor da PF em uma eventual substituição ao atual diretor, Leandro Daiello. Paranaense de Apucarana,
41 anos, a delegada Érika chegou a ser eleita em uma votação nacional informal da ADPF como a preferida
para chefiar a instituição.
E é bom não esquecer, também, que a Dra. Érika deixou o cargo na Lava Jato surfando num sucesso que
a levou para as telas do cinema, na pele da atriz Flávia Alessandra, no filme que leva o nome da operação
Lava Jato. E, outro dado de relevância: a delegada trabalhou na condução do caso que ficou conhecido
como CC-5, ou o escândalo do Banestado. As apurações, iniciadas em pleno do governo FHC caminharam
de 1996 a 2003. Mesmo tendo à frente o “incansável?” juiz Sergio Moro, cuja fama é a de um justiceiro,
nem Moro nem a determinada delegada viram naquelas investigações que envolveram grandes empresas
(Globo) e políticos expressivos, (e apuravam o sumiço de 124 bilhões de dólares), nenhum motivo para
incriminar ou punir ninguém. Estranhamente a CPI do caso deu em nada.

Em nome da inocência: Justiça | 139


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

Denúncia encaminhada à PF partiu do Corregedor-geral


A pressão sobre Cancellier vinha sendo feita pela corregedoria da UFSC, na pessoa do corregedor-geral
Rodolfo Hickel do Prado. Em 19 de julho ele enviou ofício à Polícia Federal “denunciando” que o reitor es-
taria tentando impedir o prosseguimento da investigação interna, que analisa os crimes apurados pela PF.
No documento, ele “particulariza” a sua denúncia, alegando que recebeu “diversos tipos de pressão, como
ser rebaixado a uma função comissionada menor, por não aceitar ser subserviente ao gabinete do reitor”.
Ele acrescentou no documento encaminhado à PF, que tinha sofrido “ameaças de exoneração” e contestou
a decisão do reitor de trazer para si o processo, em trâmite na corregedoria. Denunciou, também, que foi
“obrigado” a repassar cópias da investigação ao gabinete da reitoria, mesmo o processo sendo sigiloso e
de são ser, a seu ver, atribuição da reitoria aquele tipo de apuração.
Em seu ofício, ainda insinuou: “Parece que existe um conluio entre o gabinete do reitor com diretoria da
Capes no sentido de tentar frustrar as investigações, uma vez que informações de caráter sigiloso tratadas
com seu presidente foram passadas ao gabinete do reitor e ao setor investigado”. E, no final, Hickel pediu
o afastamento do reitor.
Em total sintonia com a denúncia do corregedor, a delegada Érika Marena, responsável pela investigação,
destacou na manifestação enviada à Justiça, que “a Controladoria Geral da União expressou estranheza
no fato da reitoria da UFSC “avocar um procedimento específico da corregedoria”. Para a Dra. Éricka, a
situação demonstrou a “preocupação dos investigados com o andamento do caso”. O ofício da corregedo-
ria da UFSC, a manifestação da Superintendência da Controladoria Regional da União e o depoimento do
corregedor-geral foram levados à Justiça para amparar o pedido de prisão.
Segundos fontes da própria universidade, no entanto, as coisas não são bem assim. As suspeitas de des-
vio de dinheiro recaem sobre o setor de ensino a distância, que é subordinado às Fundações de Apoio de
Direito Privado, que têm sistema próprio de gerenciamento, onde o reitor não tem controle total, sob pena
de ser uma gestão centralizada, o que vai de encontro ao caráter de gestão que era feito por Cancellier.
Outro ponto a ser considerado é sobre o pedido de “avocação” eito pelo reitor, à matéria. Toda a investiga-
ção estava se dando no âmbito da Corregedoria, sem que o reitor estivesse participando de nada. Ele nem
sequer sabia se estava ou não sendo citado. E, como a Corregedoria foi criada recente, no início de sua
gestão, há lacunas sobre o seu gerenciamento. Por exemplo, uma das alegações do corregedor, Rodolfo
Hickel, é de que o reitor se interessou em “avocar” o processo administrativo quando soube que o seu
nome estava citado. De acordo com esta fonte, era natural que o reitor quisesse saber se estava ou não
citado, até porque, sempre se colocou à disposição para ser ouvido. E, do ponto de vista do regimento
geral da Corregedoria, o seu corregedor responde ao reitor diretamente nas questões administrativas, e
esta investigação estava se dando no âmbito administrativo.
E, por fim, a fonte destaca que ainda está pendente até agora, e isto está sendo discutido em Brasília, se
cabe ou não a avocação nesses casos. Ou seja, não havia nada sacramentado que incriminasse o reitor
pelo fato de pedir a avocação. Porque a corregedoria é muito recente e há lacunas regimentares sendo
revistas. A avocação do ato é normal numa investigação administrativa. Um reitor não pode caminhar no
escuro quando a sua instituição está sendo investigada.
Em sua fala no ato no Centro do Rio, Lula discursou e denunciou que, ao contrário desse arrazoado de

140 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

acusações feitas contra Luiz Carlos Cancellier, o que pesou em sua prisão foi a sua defesa intransigente
dos domínios da universidade, onde os estudantes que se manifestavam eram ameaçados de prisão, e sua
luta contra a privatização das universidades públicas, ameaça que vem sendo ventilada constantemente,
após o golpe.
Fato é que, com sua morte, Cancellier levou consigo uma reserva de conhecimento que leva anos para ser
construída, custando noites de sono perdidas, feriados sacrificados e privações do convívio da família.
O país perde quando se vai este conhecimento acumulado. Ao renunciar à vida pelo bem maior, que é a
preservação da liberdade e de um centro de excelência que ele ajudou a construir, o reitor deixa o exemplo
de até onde um homem pode chegar, quando acredita no que defende.

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Carlos Magno Spricigo1

Um reitor diante da Lei

Carlos Magno Spricigo1

O romance O processo, de Franz Kafka, começa assim: “Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois
uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum”2. A detenção estatal carente de explicação
plausível deflagra a perturbadora obra do escritor tcheco e perdurará por toda a intrincada narrativa.
A partir daí o protagonista travará contato minucioso com as instituições judiciais que o perseguem, mer-
gulhando angustiado no mundo do direito e conhecendo de perto juristas e outros personagens secundá-
rios que orbitam este universo. Quanto mais se aproxima, menos condições de compreender sua situação
encontra o personagem K., submetida que parece estar a um conjunto de elementos desconexos e des-
providos de sentido. Tudo, aos olhos do protagonista, ponto de vista compartilhado pelo leitor, toma ares
de absurdo, surreal.
O absurdo está presente na maioria das obras de Franz Kafka, a tal ponto que mesmo pessoas que nunca
o leram eventualmente utilizam o adjetivo de emprego comum derivado de seu nome: “kafkiano”. Para o
senso comum, o termo “kafkiano” remete a situações absurdas, adotando também o sentido de algo ex-
cepcional, que ocorre apenas em situações excepcionais. Mas a riqueza e permanência da obra de Kafka
nos indica que seus escritos vão mais longe, fornecendo mesmo uma chave interpretativa da realidade.
A ficção tornou-se realidade na vida de Luiz Carlos Cancellier de Olivo no dia 14 de setembro de 2017. O
dia clareava quando policiais fortemente armados irromperam em sua casa, levando-o à força, algemado

1 Doutor em Direito; professor do Programa de Pós-Graduação Justiça Administrativa e da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense.
2 KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 1.

142 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

nas mãos e pés, este professor e jornalista de 59 anos, Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina,
estudioso dos sentidos do direito por meio de suas conexões com a literatura. Restavam-lhe apenas 16
dias de vida, mas então ninguém poderia suspeitar disso.
Em O Processo destaca-se uma passagem em que o protagonista, em sua busca frenética por compreen-
der sua situação e defender-se de acusações que desconhecia, ouve de um padre a parábola do camponês
denominada “Diante da lei”. Nela, vemos um homem do campo que se dirige à Lei – assim, com maiúscula
– e é recebido por um guarda com ares de intimidação, que lhe ordena que sente e espere. O camponês
assim procede e passa toda a sua vida sentado diante do portão e do guarda, até morrer melancolicamente.
Antes de morrer ainda reúne forças para uma pergunta perturbadora dirigida ao guarda: se todos aspiram
à Lei, por que somente eu aqui permaneci todo este tempo? O guarda lhe responde que esta porta lhe era
reservada com exclusividade e agora que iria morrer ele a fecharia e iria embora.
Kafka parece ter captado com crueza a essência do jurídico na modernidade, onde pela primeira vez na
história da humanidade cada indivíduo, mesmo o camponês que aqui representa o cidadão comum – hoje
poderíamos substituí-lo pelo operário, o desempregado etc. – é concebido como um sujeito de direitos
universais. Esses direitos se apresentam, assim, como a nova Lei, diante da qual o camponês sentou e
esperou. Em vão, como tantos outros, principalmente os mais humildes. Como Cancellier.
Na história que ceifou a vida do Reitor da UFSC, o pano de fundo a ilustrar e embaralhar os seus possíveis
sentidos é justamente a Lei. A Lei com suas promessas a cada um dos sujeitos tidos agora como cidadãos,
a quem lhes bastaria sentar e esperar.
Pois não há uma lei que regule como se devem dar as prisões temporárias e preventivas, resguardadas
para casos excepcionais e apenas se atendidos critérios rigorosos, a serem verificados pelas autoridades
incumbidas da persecução penal?
Não há uma súmula vinculante – do SUPREMO Tribunal Federal - que estabelece que o preso só poderá ser
algemado “em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria
ou alheia”?
Não existe uma lei que determina que os presos provisórios não devem ser custodiados no mesmo am-
biente que os presos já condenados em processos transitados em julgado e além disso classificados de
acordo com sua periculosidade?
Não está em vigor entre nós um princípio do devido processo legal, que dentre outras coisas promete que
a todos os cidadãos é garantido o contraditório e ampla defesa?
Não há, enfim, um dispositivo constitucional que estabelece, como regra geral a nortear os valores e práti-
cas de um Estado Democrático de Direito, que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado
de sentença penal condenatória, ou seja, inocente até que o Ministério Público prove o contrário?
No final de O processo, depois de ser executado “como um cão” pelos agentes do Estado, o autor encerra
seu romance com uma última frase aguda: “Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.”
Pois não bastou aos agentes de Estado envolvidos na prisão do Reitor dar credibilidade a uma calúnia e vio-
lar diversos dispositivos legais – por cupidez ou desconhecimento, escolha o leitor. Em tempos de proces-
so penal do espetáculo a atuação estatal se dá em conluio com os veículos da mídia, que amplifica infinita
e irreversivelmente os efeitos da ação estatal sobre o acusado. Assim, a operação cujo nome de fantasia

Em nome da inocência: Justiça | 143


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

– “ouvidos moucos” - colocava indevidamente o Reitor no centro da investigação incluiu uma entrevista
coletiva, em que os protagonistas deste festival de violação de direitos angariaram momentaneamente a
fama almejada, inflando números para que seu trabalho pudesse receber o epíteto - conferido preguiço-
samente por uma mídia conivente - de “maior operação contra a corrupção do Estado de Santa Catarina”.
Morto o Reitor, não faltou nestes tempos tão aziagos a ausência de humanidade de associações profissio-
nais que se apressaram em empenhar sua solidariedade e prestígio às violações de direitos perpetradas
em Santa Catarina com desfecho trágico. São muitas as mãos que contribuem para que a última frase de
O processo tenha um peso atemporal, pois parece não bastar que os sujeitados à sanha punitiva estatal
tenham seus direitos violados e sua subjetividade destroçada, parece que, para muitos, a vergonha lhes
deve sobreviver.
Kafka era um advogado em uma empresa de seguros, mas desde cedo convicto de sua vocação para a
literatura. A escolha pelos estudos jurídicos foi feita na medida em que avaliou ser a área que menos o des-
viaria do seu foco principal e disso ele não deixa a menor dúvida: “Estudei, pois, direito. Isso significava que
nos poucos meses antes das provas, com régio prejuízo dos nervos, eu alimentava o espírito literalmente
de serragem, que além do mais já tinha sido mastigada por mil bocas antes de mim.”3
Cancellier além de reitor era professor de direito. Mestre e doutor em direito, tendo contribuído para a
formação de milhares de profissionais desta área. Arguto, parecia compartilhar do ceticismo kafkiano em
relação a este campo profissional. É o que entrevemos neste excerto em que avalia criticamente a repre-
sentação do jurídico na literatura, debruçado especificamente sobre a obra do grande Machado de Assis:
“A derradeira atualização da falácia da autoridade poderia estar inscrita nas palavras fi-
nais de Brás [Cubas], que entre todas as negativas, encontra no fato de não ter filhos um pe-
queno saldo. Não tendo filhos, não transmitiu ‘a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’.
Brás não teve filhos, ou seja, não gerou futuros estudantes de Coimbra, de São Paulo, Rio de Janeiro ou Re-
cife; não gerou advogados, juízes ou desembargadores. Seriam estes personagens o símbolo da miséria,
que não seria transmitida a nenhuma criatura? A vida, livre do bacharelismo, seria melhor? Gledson [John],
comentando a volubilidade do personagem Tristão, afirma que os bacharéis e políticos devem estar no topo
das pessoas que desagradam Machado, por serem frívolos e superficiais.”4
Uma boa parte da miséria dos dias que correm no Brasil atual, infelizmente, se deve inequivocamente à
atuação de profissionais da área do direito. São inúmeros casos, a vitimar diariamente centenas de pes-
soas. Foi o caso de Cancellier.

3 KAFKA, Franz. Carta ao pai. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 57.
4 OLIVO, L. C. C de. A representação do jurídico no discurso literário: um estudo de Machado de Assis. In: CALVO GONZALEZ, J. (Dir.)
Implicación derecho literatura. Granada: Editorial Comares, 2008, p. 47.

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Sergio F. C. Graziano Sobrinho1

A destruição dos abandonados: análise de um suicídio

Sergio F. C. Graziano Sobrinho1

A lista de tragédias de William Shakespeare é, além de vasta, muito curiosa, justamente pelo seu enorme
potencial de análises e performances. Uma dessas peças é Romeu e Julieta, a qual retrata uma relação
amorosa proibida, ou minimamente indesejada pelas famílias do casal apaixonado. “Romeu e Julieta” é,
certamente, uma das tragédias mais conhecidas de Shakespeare, muito provavelmente pela íntima relação
dos temas envolvidos: amor e morte violenta. De toda forma, neste espaço de análise de um fato recente
da vida real, importa relacioná-lo àquilo que Shakespeare trouxe como contradições: amor (vida) e morte,
luz e escuridão.
O caso real que serve de pano de fundo da presente análise é o “suicídio” do Reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina, Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ocorrido no dia 02 de outubro de 2017. O
Reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier havia sido preso em meados de setembro de 2017, por determinação
judicial de prisão temporária e, supostamente, por ele obstaculizar investigações administrativas na própria
universidade. Destaco aqui, ainda, que a decisão judicial determinou o afastamento cautelar da função pú-
blica, com proibição de exercer cargo público de qualquer natureza e, finalmente, impediu que ele entrasse
na UFSC até o final das investigações.
Faço aqui, preliminarmente, pequena incursão na decisão judicial que decretou as medidas cautelares
contra Luiz Carlos Cancellier de Olivo, com as ressalvas evidentes de que não conheço os autos e não
tive acesso às investigações, mas, tão somente a referida decisão judicial, com a finalidade de fazer um

1 Advogado, Pós Doutor em Ciências Criminais, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade de
Caxias do Sul (RS)

Em nome da inocência: Justiça | 145


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

questionamento. Assim, para esse questionamento é fundamental esclarecer, por exemplo, que a prova
documental nas investigações sobre supostos casos de fraudes, é absolutamente necessária, justamente
para comprovar a materialidade delitiva. Contudo, no caso do processo em análise, os documentos amea-
lhados tanto pela investigação administrativa realizada pela Corregedoria da UFSC, como pela investigação
da Polícia Federal, minuciosamente estudados e relatados pela magistrada, já haviam sido colhidos. Aliás,
diga-se, estes documentos foram suficientes para determinar a própria prisão e a continuidade das inves-
tigações. Ora: se todos esses documentos foram acautelados pelas instituições formais de investigação
– Corregedoria da UFSC e Polícia Federal – enquanto os investigados estavam soltos, qual o motivo da
prisão?
Faço essa abordagem preliminar, pois o centro da análise está exatamente aqui. Vejamos: foram presos
além de Luiz Carlos Cancellier, mais 6 (seis) pessoas e expedidos 5 mandados de condução coercitiva.
Estes tipos de medidas se tornaram comuns nos últimos tempos, contudo, apesar de comuns e previs-
tas como medidas processuais penais, são aplicadas ao arrepio da legislação. As prisões e conduções
coercitivas foram determinadas a partir de critérios pessoais, pois a lei não autoriza esse tipo de decisão
judicial, pela forma como foi feita. Em momento algum houve desrespeito à ordem judicial por parte dos
investigados, isto porque, se houvesse, poderia justificar medidas drásticas e constritivas da liberdade.
Esta foi, tipicamente, uma decisão autoritária, justamente porque foi tomada ao comando de critérios
pessoais, não republicanos.
Ao ler a decisão judicial que decretou a prisão do reitor da UFSC percebe-se, escancaradamente, uma
análise pactuada entre Polícia Federal, Ministério Público e Magistrada, isto porque antes de decidir sobre
o requerimento formulado pela Delegada da Polícia Federal, a magistrada resume as investigações e as
trata como se fossem verdades absolutas. A narrativa produzida é conclusiva. Lembrando: somente havia
procedimento investigativo realizado pela Polícia Federal. Nada mais!
O conteúdo da decisão está diretamente vinculado aos propósitos elencados pela investigação, isto é, não
houve ponderação da medida tomada pela magistrada, mesmo porque ela não se colocou como o terceiro
imparcial que poderia (deveria) analisar os elementos circunstanciais e decidir sobre a necessidade ou não
da prisão.
Veja, por exemplo, o conteúdo da decisão às fls. 25, item 1.3. disse a magistrada: “Fica a autoridade policial
autorizada a liberar os presos, após seus interrogatórios, em sendo constatada a ausência dos perigos aqui
descritos.” Como assim? Transferiu jurisdição? Deixou a critério da autoridade policial soltar o preso? A
autoridade policial pede ao Poder Judiciário autorização para prender alegando riscos à investigação e a
magistrada diz que é aquele mesma autoridade policial que pode avaliar a ausência de riscos? Esqueceu
qual o papel do juiz criminal na garantia das garantias? Esqueceu que estamos no Estado de Direito? Foi
realmente isso que ela decidiu? Será que a prisão foi decretada para mostrar o poder e a violência de Esta-
do, para, simplesmente, interrogar alguém?
Curioso entender e perceber os discursos legitimadores das práticas autoritárias no estado democráti-
co. Uma figura híbrida de estado democrático com suspensão temporária de direitos, em que o estado
democrático serve para os momentos de paz e a suspensão dos direitos nos momentos de crise: a vida
democrática não permite o poder absoluto, mas convive com demonstrações diárias de intolerância, isto é,

146 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

as práticas autoritárias e a suspensão de direitos estão a conviver “harmonicamente” com o estado demo-
crático. Em 1964, por exemplo, quando militares rompem com a ordem jurídica e social vigentes e instalam
um modelo autoritário, sob o manto da necessidade de impedir a ameaça do comunismo, o discurso da
segurança serviu para legitimar práticas autoritárias.
É importante perceber a total degradação do sistema de justiça criminal brasileiro, na medida em que
sempre se decidiu contra a classe pobre e trabalhadora, violando garantias penais e processuais penais,
impondo medidas privativas de liberdade sem qualquer critério minimamente objetivo. Agora este mesmo
padrão decisório, permanentemente aplicado nos diversos processos judiciais penais brasileiros, é (foi)
utilizado no caso da prisão do Professor Luiz Carlos Cancellier. Recentemente o Ministro Édson Fachin,
fundamentando seu voto para impor medidas cautelares ao Senador Aécio Neves escreveu: “Não podemos
confundir imunidade parlamentar com impunidade”. Ora, mas que impunidade fala o Ministro Fachin? Será
que ele quis dizer do dever moral de punir criminosos? Será que ele percebeu que ali, naquele momento,
não cabe debater sobre impunidade, justamente porque medida cautelar não serve para punir, mas tão
somente garantir a fluidez do processo como meio de se chegar a uma sentença penal, a qual poderia ser
condenatória ou absolutória?
Ao meu sentir, a prisão do Professor Cancellier teve início, meio e fim determinados por critérios inconfes-
sáveis e certamente destituída de critérios mínimos garantidores do devido processo legal, mas, o mais
importante é que estes critérios inconfessáveis determinaram sua prisão e a antecipação da punição e, exa-
tamente por isso, o Reitor Luiz Carlos Cancellier sucumbiu. Ele sucumbiu, é verdade, por diversos outros
motivos, tais como o exame vexatório na prisão que foi submetido, a proibição de retornar à universidade
para trabalhar, o descrédito acadêmico, dentre outros, contudo, penso, que o peso maior foi sua própria
formação e visão do mundo.
Conta-nos a história do Prof. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, tematizada por um de seus melhores amigos,
que sua cultura estava muito além do conhecimento jurídico. Dentre outras particularidades, o Cao (como
era carinhosamente conhecido pelos amigos) havia lido obras completas de autores como Machado de
Assis e William Shakespeare, e não só as lia como também gostava de fazer debates sobre elas. Era um
profundo conhecedor da literatura, em especial desses dois autores.
Da mesma forma como Shakespeare trouxe a contradição, Luiz Carlos Cancellier trouxe a luz diante da
escuridão, pois diante dos inconfessáveis e irreversíveis motivos de sua prisão, ele entendeu mais do que
ninguém que a tragédia era a única forma de chamar a atenção necessária para os problemas políticos
que vivemos e colocou os holofotes diante da hipocrisia. Cancellier encontrou na morte seu caminho,
iluminando-o e, desde logo, revelando-o. Realmente Cancellier sucumbiu na tragédia, mas seus propósitos
foram maiores do que a simples despedida de um mundo difícil de se viver, uma vida difícil de ser vivida.
Assim como Romeu e Julieta encontraram na morte a melhor solução para a hipocrisia da época, o nosso
Reitor Cancellier também encontrou na morte o meio para chamar atenção dos equívocos sociais, políticos
e jurídicos do nosso país.
Luiz Carlos Cancellier de Olivo trouxe para o dia, para a luz, a podridão que o sistema de justiça criminal
se encontra, mas seu propósito foi, unicamente, tornar conhecido o que verdadeiramente ocorre no mun-
do real, sem a fantasia e sem a clandestinidade da corrupção e do jogo de poder. Não aquela corrupção

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

simples e hipócrita do pagamento de vantagens, mas a corrupção da rapinagem, a corrupção do estrelato,


do poder pelo poder. Cancellier sucumbiu para registrar a história como ela verdadeiramente é: seletiva,
hipócrita e perversa. Sua morte revela a vida, sua morte ilumina a escuridão da vida daqueles que se com-
prometem exclusivamente com suas próprias vidas, pois ilumina o caminho daqueles que se escondem
nas sombras da servidão, nas sombras da falsa moralidade, tipicamente de vidas comandadas por mentes
autoritárias.
A legitimação do estado policialesco e violento que reprime manifestações sociais, se ancora na existência
de práticas violentas e intolerantes da comunidade, simbolicamente suportadas no discurso da segurança,
da proteção dos direitos e do cidadão de bem, mostrando claramente a necessidade da suspensão dos
direitos para determinadas classes sociais. É necessário perceber, portanto, que as conquistas humanas
não podem ser perdidas pelo olhar, ainda que incrédulo, das práticas desumanas.

148 | Em nome da inocência: Justiça


João Ricardo W. Dornelles1

HUMILHAÇÃO, DOR E A BANALIDADE DO MAL:


O caso do Reitor Cancellier

João Ricardo W. Dornelles 1

“Minha morte foi decretada quando fui banido da univercidade” 2


Desde o ano de 2013 o Brasil está vivendo uma onda retrógrada de histeria coletiva que foi avançando
passo a passo e se espalhou por todos os espaços da sociedade.
A partir de 2016 foi rompido o pacto democrático que supúnhamos existir desde o fim da ditadura civil-mi-
litar, atingindo em cheio as conquistas civilizatórias que foram sendo consolidadas nas últimas sete ou oito
décadas e especialmente após a vigência da Constituição de 1988.
Em menos de um ano o bloco histórico conservador que comanda o Brasil atingiu diretamente os direitos
trabalhistas, as políticas sociais, as garantias dos segmentos excluídos e vulneráveis e a própria demo-
cratização da sociedade, abrindo espaço para retrocessos inimagináveis. Desde a venda do patrimônio
público para o capital internacional à flexibilização das relações de trabalho; da redução da idade para a
responsabilidade penal à vergonhosa portaria flexibilizando o combate ao trabalho escravo; da ampliação
do punitivismo à intolerância religiosa e comportamental; do sexismo e da homofobia às formas mais
abomináveis de preconceitos; do racismo ao ódio aos pobres; da exaltação do individualismo possessivo
ao “apartheid social”; do elitismo à meritocracia; do corte de recursos públicos para políticas sociais e o
congelamento por vinte anos de investimentos na área social à indiferença do sistema de Justiça com os di-
reitos fundamentais inscritos na Constituição de 1988. Enfim, o país deu um “cavalo de pau” de 180 graus,

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio;
Membro do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina.
2 Frase escrita pelo Reitor Cancellier na carta deixada aos amigos.

Em nome da inocência: Justiça | 149


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

uma brusca guinada para o passado. Um passado colonial, de injustiças, de autoritarismo, de exclusão e
de violações dos direitos humanos.
Foi aberta a caixa de Pandora e todos fantasmas mais assustadores, que durante toda a nossa história
usaram o disfarce da cordialidade, tolerância e generosidade, emergiram sem máscaras ou fantasias,
revelando a verdadeira essência desta sociedade. Uma sociedade que nunca se preocupou com a memória
histórica, que sempre preferiu o esquecimento das suas perversidades e barbáries, que se construiu sobre
o extermínio das nações indígenas, a escravidão (por sinal, foi a última sociedade a abolir a escravidão
negra), o poder das oligarquias coloniais e a ampla exclusão da maioria da sua população. A realidade sem
fingimento revela o que já estava presente em toda a nossa história, mostra a face cruel onde o ódio e a
intolerância passam a estar presentes no cotidiano da vida brasileira.
Fazer a narrativa do tempo presente, dos retrocessos e da fascistização da sociedade brasileira demandaria
um longo e complexo trabalho de pesquisa, o que não é o objetivo deste artigo. Aqui pretendemos apenas
relatar e denunciar um evento que dramaticamente se associa à toda esta onda de retrocessos. Um evento
que não se restringe ao drama individual ou familiar da morte trágica de uma pessoa. Um evento que atinge
toda a sociedade e que tem como responsáveis aqueles que deveriam zelar pela cidadania e pelos direitos
fundamentais. Um evento que, mesmo com todas estas características, passou quase desapercebido na
grande mídia hegemônica.
O trágico evento foi o suicídio do Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), ocorrido no dia 2 de outubro de 2017.
O reitor Cancellier, conhecido pelos amigos como Cao, formou-se em Direito pela UFSC, era Mestre e
Doutor em Direito também pela UFSC. Foi eleito democraticamente para o cargo de reitor da mesma UFSC.
No dia 14 de setembro de 2017, o reitor Cancellier foi surpreendido por uma mandado de prisão temporária
expedido no âmbito da chamada “operação ouvidos moucos” sob a alegação de que tentara obstruir as
investigações administrativas – vejam bem, administrativas, no âmbito da Universidade, não a criminal -
realizadas pela Corregedoria da UFSC sobre um possível desvio de recursos em programa de educação à
distância. É importante registrar que o mandado de prisão temporária foi expedido sem que o reitor tivesse
sido previamente intimado para comparecer na sede da Polícia Federal em Florianópolis para prestar escla-
recimentos. Também é importante deixar claro que as investigações se referem à fatos que teriam ocorrido
na vigência do mandato da reitora anterior.
A prisão foi determinada pela juíza Janaína Cassol Machado e efetivada pela operação da Polícia Federal
coordenada pela delegada Érika Marena, a mesma que deu início anos antes à operação Lava Jato. Como
tem sido usual nos últimos tempos, no momento da prisão a imprensa de Florianópolis estava a postos
para acompanhar mais uma midiática operação da valorosa e teatral Polícia Federal. Ao ser preso, o reitor
foi humilhado, conduzido a um presídio comum, mesmo tendo direito à prisão especial, algemado, obriga-
do a ficar nu e ter as suas partes íntimas examinadas pelos policiais e colocado em uniforme de presidiário.
As denúncias contra o reitor, encaminhadas à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal, foram feitas
pelo Corregedor-Geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado.
Quem é o corregedor Rodolfo Hickel do Prado ? O Corregedor-Geral foi indicado pela reitora anterior pouco
antes de sua saída do cargo, era uma figura estranha à Universidade e logo que assumiu a função passou

150 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

a agir de forma autônoma e autoritária, passando por cima da reitoria e de outros órgãos administrativos
da UFSC. 3
Também é importante lembrar a atuação sensacionalista e irresponsável dos meios de comunicação mais
uma vez condenando antecipadamente o suspeito através de bombásticas manchetes nos jornais e re-
vistas e nas chamadas televisivas e radiofônicas. A mídia hegemônica, reincidente, condenava alguém
induzindo ao linchamento moral pela opinião pública.
“Utilizando-se de conhecido e maldoso recurso de semiótica, que confunde título e imagem com conteúdo
diverso de notícia, os meios de comunicação transformaram uma investigação recém-nascida pela anôma-
la infração de “tentativa de obstrução administrativa” em “desvio de verbas públicas”, o que foi catalisado
por autoridades públicas que, antes mesmo de concluir o torturante interrogatório, sem pausa, de mais de
cinco horas, montavam o picadeiro que seria fator determinante para sua morte”. 4

3 Ver artigo de Luis Nassif:


https://jornalggn.com.br/noticia/a-morte-do-reitor-e-o-espirito-punitivista-por-luis-nassif
“O corregedor policial: A figura central da tragédia da UFSC é o corregedor Rodolfo Hickel do Prado (...) Imediatamente tratou de se
transformar em um poder autônomo, colocando-se acima da reitoria e das demais instâncias administrativas, um comportamento que
refletia, no microcosmo da Universidade, o clima persecutório que tomou conta do país, e o poder apropriado pelos cabeças-de-por-
ta-de-cadeia ganhando um status até então inimaginável. (...) Houve dois episódios iniciais envolvendo estudantes.(...) O segundo inci-
dente foi uma cola, uma molecagem de um estudante, já reprovado, que copiou parcialmente o trabalho de um colega. O caso também
foi apreciado pelo colegiado e o aluno punido com 30 dias de suspensão. O Centro Acadêmico reagiu, julgando a segunda punição por
demais severa e  entrou com recurso e o caso foi para o Conselho da Unidade, espécie de 2a instância. Houve um parecer mantendo
a punição. A reação do corregedor foi típica de um perfil psicológico já estudado: se não punir exemplarmente o aluno, hoje é a cola,
amanhã estará roubando e traficando. No dia 16 de outubro, o CA da Produção publicou nota do Facebook onde dizia não concordar
com o parecer. Na nota, apontavam denúncias de alunas sobre assédio sexual na sala de aula. Quatro dias depois, os alunos receberam
ofício do Chefe de Departamento solicitando que fossem apresentados nomes. Os alunos suspeitaram que havia intenção de abafar o
escândalo. Como estava em fim de ano letivo, as alunas não queriam deflagrar nada antes de encerrado o período.
No dia 1o de novembro estava agendada reunião com a aluna e o advogado, para acontecer na sala da professora presidente da Comis-
são, no Centro Tecnológico. Terminada a reunião, o corregedor chegou até os alunos do CA e começou a ameaça-los explicitamente.
Exigia nomes. Os alunos explicaram que as colegas estavam esperando terminar o semestre para avançar com as denúncias. Na
6a feira, a presidente do CA recebeu SMS intimando-a a se apresentar na corregedoria. Presentes na sala, apenas ela e o corregedor.
Foi pressionada de todos os modos para entregar nomes. A moça permaneceu firme na postura de só entregar após encerramento do
ano letivo. (...) Mais de 100 alunas passaram a receber intimações, no meio das aulas, para que se apresentassem na corregedoria.
Algumas das intimações interromperam aulas com provas de cálculo, o terror dos politécnicos. O critério adotado pelo corregedor
foram os cliques na nota do Facebook. Todas as alunas que “curtiram” a nota foram intimadas e submetidas a métodos policialescos.
Para uma das primeiras convocadas, Hickel informou haver denúncia de cola em sala de aula. A ameaça desestabilizou-a por inteiro. Ai
o corregedor explicou que era brincadeira. No total, foram intimados mais de 200 alunos, obrigando o CA a contratar um advogado para
entrar na história. Criou-se um clima de terror amplo, com o entorno dos alunos entrando em pânico com as ameaças. O advogado abriu
denúncia no Comitê de Ética da Universidade, para fugir do cerco do corregedor. Era nítido para os alunos que sua intenção era abafar
o caso e transformar os alunos em réus. No auge do terror, os alunos procuraram o reitor Cancellier. O reitor recebeu-os prontamente,
ligou para o corregedor, que foi até à sala. - Olha, Rodolfo, você não tem poder coercitivo. Se alguém não atender a essa chamada, você
não terá nada a fazer. O corregedor sentiu-se desautorizado. Depois, circularam pela Universidade queixas de diversas pessoas sobre
os problemas criados recorrentemente pelo corregedor, que atropelava procedimentos e não seguia os ritos da Universidade. Certa vez,
por conta própria Hickel chegou a afastar um professor de suas atividades. O chefe de gabinete da reitoria precisou retificar a medida,
que havia sido publicada no Diário Oficial. Essa sucessão de episódios ampliou o fosso entre o corregedor e a reitoria. Pouco depois,
foi apresentada a denúncia ao MPF e à Polícia Federal. Ali, começava a ser montada a tragédia. (...) O grande personagem é o espírito
punitivista desses tempos de cólera, e uma imprensa sensacionalista, totalmente dissociada de princípios civilizatórios básicos, que
acabou conferindo a mentes perturbadas o poder inaudito de assassinar reputações”.
4 Ver artigo “A morte do reitor e o que não aprendemos com o caso Escola Base”, de Deivid Willian dos Prazeres e Hélio Rubens Brasil,
publicado no Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2017. www.conjur.com.br/2017-out-13/opiniao-morte-reitor-nao-aprendemos-es-
cola-base

Em nome da inocência: Justiça | 151


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

A própria mídia (des)informou a opinião pública sobre os valores relacionados ao possível desvio.5 As
manchetes divulgavam desvio de R$ 80 milhões, quando na verdade este valor se referia ao total disponibi-
lizado para todos os programas de educação à distância. Os possíveis desvios teriam ocorrido nas gestões
anteriores à do reitor Cancellier, sem nenhum tipo de participação do mesmo, e seriam de 0,5 % do valor
total, ou seja, cerca de R$ 400 mil.
“Chegou-se a dizer que a operação policial na qual o professor foi preso investigava o desvio de R$ 80
milhões de um programa de educação a distância. Mentira. R$ 80 milhões foi o valor total do programa.
As maracutaias não aconteceram durante a gestão de Cancellier. Havia trapaças no pedaço, envolvendo
servidores e empresários, mas o reitor nunca foi acusado de ter desviado um só tostão”. 6

Exceção, Humilhação e Barbárie


Em relação ao comportamento do Reitor é importante afirmar que não se tratou apenas do desespero - o
que já seria uma justificativa de peso. Ao desespero se juntou a necessidade de dar publicidade ao sofri-
mento e à humilhação a ele impostos. Foi um comportamento limite que acabou por denunciar o Estado
Policial que passamos a viver a partir de 2016.
O terror leva ao desespero, mas também à indignação com a injustiça sofrida, a humilhação imposta de
forma perversa, cruel e arbitrária.
No Brasil dos tempos atuais temos uma confusão da Justiça com o justiçamento, uma identidade entre os
magistrados e os inquisidores e justiceiros, revelando a baixa estatura cultural, intelectual, moral e humana
de parte dos membros do sistema de justiça (juízes, membros do Ministério Público, policiais).
Hannah Arendt, ao tratar do totalitarismo, expos as condições do mal, onde as pessoas perdem a ca-
pacidade crítica. Após acompanhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, a autora escreveu sobre a
banalidade do mal, a incapacidade de percepção crítica sobre a realidade e a naturalização das condições
da crueldade. 7
O mal banalizado se alimenta exatamente de tal naturalização da crueldade, quando os comportamentos
individuais ou coletivos são acríticos, e não são percebidos como tal pelo conjunto da sociedade. Ao con-
trário, o senso comum naturaliza o mal e o mesmo ou é visto com indiferença ou é percebido como sendo
o “bem”. Tanto que o mal naturalizado e tornado banal é o que passa a ser socialmente esperado e expresso
coletivamente pelas chamadas pessoas “de bem”. O processo de fascistização (o fascismo societal) se
alimenta exatamente da naturalização deste mal, transformado em normalidade ou no “bem”.
O que se verifica, portanto, é a desumanização do outro, a negação da alteridade humana.
Por outro lado, a lógica do estado de exceção produz um ambiente onde as maldades, injustiças e cruelda-
des são planejadas, ordenadas, milimetricamente precisas e friamente calculadas, fazendo funcionar todo
um aparato da tecnologia do poder e do controle social.
O gozo com a humilhação, a dor e o sofrimento alheio excede o exercício puro da dominação. A lógica
5 Não seria o caso de ações judiciais, civis e penais, contra os órgãos de imprensa e contra os jornalistas divulgadores de tais irres-
ponsabilidades ?
6 “Elio Gaspari: morte de reitor da UFSC é um desencanto para o Brasil da Lava Jato”. Artigo do jornalista Elio Gaspari no jornal Folha
de São Paulo, de 8 de outubro de 2017.
7 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; As Origens
do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

irracional da produção do sofrimento, da dor e da morte alheia é saboreada com o gozo e a satisfação – ou
mesmo com a indiferença – daqueles que impuseram as condições de desumanização, chegando mesmo
a ser um evento lúdico.
Assim, fazer o mal, banalizar o mal, desumanizar e descartar o outro são características do fascismo. É a
lógica do fascismo que se faz presente.
Entender o tempo presente e os acontecimentos trágicos, como a morte do reitor Cancellier, nos remete à
atualização de pensamentos contra a barbárie e o estado de exceção.
Pensar e agir contra a barbárie é uma imposição do presente e nos leva ao pensamento crítico de Benjamin,
Adorno, Agamben, entre outros.
Em sua reflexão, Benjamin afirmou que as sociedades modernas não superaram a barbárie e que, ao con-
trário, a própria ideia do progresso, embutida na modernidade, é a sua principal produtora. 8
Adorno levanta a importância de um novo imperativo categórico que impossibilite as condições de repeti-
ção da barbárie e das injustiças produzidas pela permanência de violações de direitos humanos. 9
Agamben, por sua vez, nos fala da barbárie atual e das condições presentes nas sociedades contemporâ-
neas, onde prevalece o estado de exceção, tornando essencial o questionamento dos dogmas e a profa-
nação da racionalidade jurídico-penal dominante, desativando os mecanismos de poder que são injustos,
arbitrários e violentos.10
Portanto, pensar criticamente contra a barbárie denuncia a própria racionalidade do sistema penal e de todo
o aparato de justiça que o cerca.
Por fim, a morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo se junta a outras injustas mortes que vão se acumulando
ao longo da história da sociedade brasileira. Mortes como as de Zumbi, Sepé Tiarajú, Tiradentes, Antônio
Conselheiro, Olga Benário, Edson Luís, Vladimir Herzog, Rubens Paiva, Fernando Santa Cruz, Jango, Jus-
celino Kubitschek, Chico Mendes, Amarildo, Dona Marisa, Marco Aurélio Garcia e tantos outros e outras
que vão ficando pelo caminho, atingidos pela violência de uma sociedade profundamente injusta, desigual,
autoritária, individualista e antidemocrática.
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, Presente !!!

Referências:

. AGAMBEN, G. Estado de exceção [Homo Sacer, II, I]. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
. ______________. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
. ARENDT, Hannah. Eichmann
em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
. _________________. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
8 BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. João Barrento, Lisboa: Assírio &amp; Alvim, 2008.
9 ZAMORA, José Antonio. Th. Adorno. Pensar contra a Barbárie. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008.
10 AGAMBEN, G. Estado de exceção [Homo Sacer, II, I]. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004; Profanações. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. João Barrento, Lisboa: Assírio &amp; Alvim,
2008.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio : uma leitura das teses “sobre o con-
ceito de história”  trad. Wanda Nogueira Caldeira. Boitempo. São Paulo. 2005.
. ZAMORA, José Antonio. Th. Adorno. Pensar contra a Barbárie. São Leopoldo: Nova Har-
monia, 2008.

https://jornalggn.com.br/noticia/a-morte-do-reitor-e-o-espirito-punitivista-por-luis-nassif

www.conjur.com.br/2017-out-13/opiniao-morte-reitor-nao-aprendemos-escola-base

“Elio Gaspari: morte de reitor da UFSC é um desencanto para o Brasil da Lava Jato”. Artigo
do jornalista Elio Gaspari no jornal Folha de São Paulo, de 8 de outubro de 2017.

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Rodrigo machado gonçalves1

“À ESPERA DE UM MILAGRE: UMA SINGELA


HOMENAGEM A LUIZ CARLOS CANCELLIER”!

RODRIGO MACHADO GONÇALVES1*

I – UMA HOMENAGEM, UM DESABAFO E UM ATO DE GRATIDÃO QUE PUDE REALIZAR


Não há manifestação capaz de retratar o imenso regozijo pelo convite para homenagear Luiz Carlos Can-
cellier. Querido amigo Alexandre Morais da Rosa, reconhecerei eternamente sua gentileza e farei dessas
páginas um ato de gratidão.
O mundo está em ruínas! A maldade, o descaso e o ignorar do outro - como se ele não existisse, nada fosse
e nada sofresse - caracterizam o comportamento comum. O ódio gratuito permeia os debates, os atos e as
propostas de governabilidade. Estamos diante do estabelecimento de uma nova era, daninha das almas e
afeta do pernicioso, um terrível empobrecimento da subjetividade2. O caos!
Essa nefasta sintomática produz resultados sociais incorpóreos e corpóreos, catalisa e antecipa o resulta-
do maléfico dos procedimentos legais, serve de justificativa para os ilegais (convalidando-os a fórceps) e
dissemina medo, tristeza, doença e morte. Tanto é assim que a presente homenagem se faz postumamente.
Para vencermos tal status de desumanidade precisamos bradar, lutar e doar o tesouro de nossas almas
aos nossos escritos e atos, posto que se perca se não for dado. Fazer deles um reflexo de todo o amor que
nos compõe, une e move. Cada linha desse pequeno texto expressa o que de mais valioso possuo e que
1*Mestre em direito processual penal e criminologia pela UCAM/Centro - Professor da pós-graduação em ciências criminais do CPGD
(UCAM/Centro) - Professor assistente de processo penal e prática jurídica penal da Faculdade Nacional de Direito - FND/UFRJ - Pro-
fessor assistente de direito processual penal da Faculdade de Direito da Universidade Candido Mendes/Centro - Professor de direito
processual penal do Centro Universitário La Salle/Niterói - Advogado criminalista.
2CASARA, Rubens R. R. e TIBURI, Marcia. Que Julgamento é Possível na Era do Empobrecimento da Subjetividade? in Brasil em Fúria:
Democracia, Política e Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, pp. 139/142.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

não pretendo deixar perecer.


O título dado tem o filme “The Green Mile”, cuja tradução em português é “À Espera de um Milagre” (com
Tom Hanks), como inspiração por dois motivos: estarmos diante de degeneração democrática tão avança-
da (identificada por Rubens Casara como “Pós-Democracia”3) que somente a crença milagrosa pode nos
dar esperança de reversão e a compreensão de que esse mundo de maldades injustiça homens inocentes,
probos e amorosos.
Deixo meu mais afetuoso abraço à família do querido Cancellier, na certeza de que cada página desse livro
consagra o melhor que se pode deixar em legado: o amor ao próximo.

II – OS ASPECTOS DO ESTADO “PÓS-DEMOCRÁTICO”: UMA LEITURA DRÁSTICA DA


REALIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS – O “FIM DO MUNDO”
“Prisões preventivas usadas para consecução de delações premiadas, acordos espúrios de violação de
direitos, planos de ampliação de poderes orgânicos pautados em falácias punitivistas, legislaturas avil-
tadoras do devido processo legislativo, incomunicabilidade de presos, transgressão das prerrogativas
defensivas, intolerância ao pensamento libertário, determinações de enclausuramento mesmo ciente do
perecimento do preso pela falta de condições carcerárias, desapego aos princípios de salvaguarda da
liberdade e vida alheias: o cárcere e “a morte não causam mais espanto”4, perfeita incompreensão de que
a prisão e a morte de outrem diminui a nós mesmos5””6.
“Infelizmente, venho (re)afirmando, cotidiana e incansavelmente, estarmos diante de uma crise de sus-
tentabilidade político-jurídico-democrática tão severa que vislumbramos a aniquilação da Constituição de
1988 e do Estado Social e Democrático de Direito, o qual sequer foi experimentado pelo povo brasileiro.
Muito pior, que o órgão criado para ser seu guardião esteja contaminado pelas matrizes autoritárias de
outrora, servido de porta-voz da vindita pelo discurso de combate à impunidade e ao crime, subvertendo
todos os preceitos da Carta Republicana. Declaro, então, a “saudade que sinto de tudo que eu ainda não
vi”7”8.
A assertiva que outrora sustentava foi elucidada e aprofundada politicamente por Rubens Casara, porquan-
to a noção de crise prospecta possível término, ciclicidade, mas, em verdade, ao longo das apreciações
político-econômico-jurídicas percebe-se um planejamento estruturado para implantação de uma legitima-
ção das relações de poder a partir de um projeto mercadológico, da confusão e ausência de limites para o
exercício de poder, que se consolide como plataforma de gestão estatal. Nesse sentido, Casara afirma: “O
Estado Pós-Democrático implica um governo no qual o poder político e o poder econômico se identificam.
Assim, muda-se também a relação entre a esfera pública e privada. Com isso desaparece a própria noção
de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do
3CASARA, Rubens R. R.. ESTADO PÓS-DEMOCRÁTICO - NEO-OBSCURANTISMO E GESTÃO DOS INDESEJÁVEIS, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017, 240p.
4TITÃS. Miséria.
5MÁXIMO, Ricardo. Um dos maiores poetas brasileiros em uma de suas colocações dialogais.
6GONÇALVES, Rodrigo Machado. “O SUPREMO É A ÚLTIMA TRINCHEIRA DA CIDADANIA” E O MINISTRO MARCO AURÉLIO MENDES
DE FARIAS MELLO UM DOS ÚLTIMOS JUÍZES PELA DEMOCRACIA! in DELAÇÃO PREMIADA: Estudos Em Homenagem ao Ministro
Marco Aurélio Mello, Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 380.
7URBANA, Legião. Índios.
8GONÇALVES, Rodrigo Machado. Op cit., p. 380.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

poder econômico. O poder político torna-se subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder
econômico torna-se o poder político”9.
Os opositores do modelo que se instaura são alvos de todas as possíveis formas de persecução, pos-
ta a obstaculização indesejável das pautas opressivo-excludente-conservadoras e a desmascaração das
querelas e suas consequências sociais, as quais podem ser, eventualmente, compreendidas e gerarem a
deslegitimação popular, um risco à execução de tal projeto de Estado e Governo. Não há qualquer dúvida
de que a persecução penal seja a mais destrutiva delas, um instrumento de coação e de estigmatização
humana efetivíssimo, que se torna mortal ao encontrar o Judiciário como adjuvante instrumental e não seu
limitador, postas as certezas de condenação e privação presentes e futuras que se instauram na cognição
do perseguido: será culpado, mesmo inocente!
Um dos destaques da obra de Casara, o qual se coaduna perfeitamente com a alusão supra, se apresenta
pela afirmação de que “Hoje, percebe-se claramente, que o Sistema de Justiça Criminal se tornou o locus
privilegiado da luta política. Uma luta em que o Estado Democrático de Direito foi sacrificado. Não há
como pensar o fracasso do projeto democrático de Estado sem atentar para o papel do Poder Judiciário
na emergência do Estado Pós-Democrático. Chamado a reafirmar a existência de limites ao exercício do
poder, o Judiciário se omitiu, quando não explicitamente autorizou abusos e arbitrariedades – pense, por
exemplo, no número de prisões ilegais e desnecessárias submetidas ao crivo e autorizadas por juízes de
norte a sul do país”10.
Demonstra-se, portanto, um planejamento reificador, logo, de legitimação da aniquilação humana, que Ca-
sara também alude: “Os bens, as pessoas, os princípios e as regras passaram a ser valorizadas apenas na
condição de mercadorias, isto é, passaram a receber o tratamento conferido às mercadorias a partir de seu
valor de uso e de troca. Deu-se a máxima desumanização inerente à lógica do capital, que se fundamenta
na competição, no individualismo e na busca do lucro sem limites”11.
Avançamos, apressadamente, ao “Fim do Mundo” Menegatiano, no qual o não idêntico é sistemática e
intencionalmente decantado e excluído, as relações sociais se desintegram sob a ótica do ser-para-outro,
ou seja, a realização da totalidade na forma da sociedade-em-si não ultrapassa o nível raso da autoconser-
vação. O outro, portanto, se perde no momento de sua estruturação intencional, as necessidades vão se
tornando funções que expelem todo fim negador. Afirma Marildo: “Na Dialética do esclarecimento, Adorno
e Horkheimer se referem a esta condição como uma anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de
satisfazer necessidades [...] torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos
homens”12.
Bauman, por sua vez, esculpirá a certeza da impossibilidade ético-social na sociedade de consumidores,
justamente porque: “Ao se projetar a “grande sociedade” destinada a substituir o agregado de ordens
locais autorreproduzidas, certas seções da população são inevitavelmente classificadas como “sobras”,
aquelas para as quais não se pode encontrar nenhum espaço na futura ordem racionalmente construída –

9CASARA, Rubens R. R.. ESTADO PÓS-DEMOCRÁTICO - NEO-OBSCURANTISMO E GESTÃO DOS INDESEJÁVEIS, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017, p 183.
10Idem, pp. 127/128.
11Ibidem, pp. 39/40.
12MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da crise da modernidade e a barbárie. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará/
FAPERJ, 2003, p.65.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

assim como, ao se projetar um padrão harmonioso num jardim, certas plantas precisam ser assinaladas
na categoria de “ervas daninhas”, destinadas à destruição. O assassinato categórico, como a capina (ou,
de forma mais genérica, toda e qualquer atividade de “limpeza” e “purificação”), é uma destruição criativa.
Pela eliminação de tudo de deslocado e inadequado (como “estrangeiros” ou unwertes Leben), a ordem é
criada ou reproduzida”13.
Se a sociedade é dirigida pelas regras do mercado e ele se vincula à capacidade de consumo, eureca, quem
não consome, quem ameaça a capacidade dos já consumidores, quem discute o bem-estar social pelo di-
rimir das desigualdades econômicas (atingindo seus bens), quem permite que o incapaz ganhe capacidade
econômico-político-jurídico-social deve ser eliminado, é daninho.
O engendramento da noção de liberdade pelo viés econômico surte nuclear efeito. O aniquilamento da
lógica comunicativa se afeiçoa como decorrência inevitável para a consolidação do plano de dominação
mercadológico, segundo o qual as relações sociais econômicas não podem aparecer como premissa. O
microscópio sociológico nos permite enxergar o genoma “Pós-Democrático” e, consequentemente, diag-
nosticar seus sintomas e prognosticar seus resultados.
Vivemos a era da incapacidade comunicativa engendrada, querida para a manutenção do status quo social,
a perpetração de atos de violência da espécie contra a própria espécie como forma de solução, em face
da problemática compreensão e aceitação da aderência ao perverso quando tudo se nega e tudo se cobra.
O discurso dos deveres constitucionais como concretizadores dos direitos se mostra inerente à lógica.
“Os aniquilamentos realizados num determinado momento histórico têm a força da sua permanência na
história como a marca num corpo, que grita feito uma chaga, não apenas pela dor do que foi amputado,
como também pelo esquecimento de um mundo melhor que então se queria e não se realizou. Adorno, na
Dialética Negativa, vai a fundo desta questão quando observa que os indivíduos estão mutilados demais
para a liberdade, o que significa dizer que o reino desta, que é histórico, não se poderá constituir apenas
por meios lógicos, sejam eles os da compreensão das crises do capital, ou os de uma lógica discursiva
de atores sociais. Em outras palavras, no âmbito da história, a lógica comunicativa às vezes deve ser pro-
tegida do seu aniquilamento violento por meios não lógico-comunicativos. Assim como foram por estes
mesmos meios não-comunicativos que se instituiu a divisão social do trabalho e se terminou como os
campos de Auschwitz”14.
Afirmo, categoricamente, o Estado “Pós-Democrático” tem como estandartes: a dominação político-e-
conômico-jurídico-social, a manutenção das desigualdades e a seletividade social. Nele, os julgados são
meras repetições de consciências e subconsciências perversas, indignas, mal educadas e intencionadas,
arrogantes, que se negam a ouvir e se apressam a vociferar seus feitos de tirania, de angústia, de maldade
e de morte, sim, ele prende, isola, defenestra e mata!

III – AS AUTORIDADES PELA DEMOCRACIA: UMA ESPERANÇA PARA A LIBERDADE E


PARA A VIDA
Uma autoridade pela Democracia se despe de seus preconceitos, matrizes, intenções e veste a toga da
13BAUMAN, Zygmunt. A Ética é Possível num Mundo de Consumidores? Tradução: Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011,
p. 109.
14MENEGAT, Marildo. Op. cit., p. 207.

158 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

dignidade libertária, direciona-se mais à obediência que ao mando, ama mais que odeia e não se vinga,
julga, acusa, defende, rege, governa convicto de que não manipulou o fato e suas circunstâncias, não
ignorou o outro e suas dores, vivências, limitações. Reconhece que o resultado prático de seu erro, de sua
interpretação, para a liberdade e para a vida pode ser cruel e irreversível, está ciente e obediente de suas
limitações temporais e espaciais, objetivas e subjetivas.
A autoridade democrática é amorosa, compassiva e cooperadora. Nela se encontram sintomas de vida
em abundância, de alegria, de igualdade, de paz, de necessidade das pessoas, de cautela decisória e de
assunção de suas próprias “misérias”, ou seja, de suas limitações constantes e sazonais. Submete-se à
compreensão de que a Constituição está sobre ela e aceita a frustração da incerteza, conferindo-a signifi-
cado honroso, para não dizer poético: inocência!
No rol das autoridades, aquela sobre a qual recai maior carga de responsabilidade é o juiz, haja vista seu
poder decisório e executório. Seus atos produzem efeitos imediatos e, muitas vezes, irreversíveis, motivo
porque deva se pautar na liberdade como regra.
“O juiz pela Democracia está atento aos fatos da vida e contempla a possibilidade deles, por si sós,
suplantarem em muito o universo do direito, muitas vezes expondo sua incompletude, sua incoerência
ou sua desumanidade. Projeta o resultado de suas decisões nos planos material e imaterial da existência
humana, se preocupa com as repercussões de seus atos para o outro, sobretudo o debilitado, ignoto,
carente, acabrunhado, preso e, não raro, moribundo. Não se nega a conhecer o cheiro, o olhar, a fala e
a percepção daqueles aos quais irá julgar, sob pena de julgar papéis e não seres humanos, de aplicar o
direito e denegar a justiça”15.
“Ademais disso, o juiz não deve negar a humanidade, não ignorar que “conhecer o espírito de um homem
quer dizer conhecer a sua história. E conhecer uma história não é apenas conhecer a sucessão dos fatos,
mas encontrar um fio que os vincule”16, somente assim, a justiça pode aflorar nos processos”17. A história
de Luiz Carlos Cancellier milita em desfavor de todos os atos contra ele praticados e, se observada, seria
barreira intransponível à consideração de qualquer atitude atentatória às suas dignidade e liberdade. A
diferença entre sua vida e morte.
Pela terceira vez assevero: “o autoritarismo punitivista faz os heróis nacionais, os direitos e garantias fun-
damentais atrapalham e os advogados criminalistas são os maiores inimigos da justiça. Marildo Menegat
foi profético em sua cátedra, nos idos de 2003, ao afirmar que o “novo holocausto” se perfazia não mais
nos moldes genocidas do Reich e do Fascismo, ganhava forma sob quatro fatores, aos quais chamou,
numa analogia apocalíptica, de “quatro cavaleiros”: a desindustrialização do mundo, a criminalização da
pobreza, a militarização das ruas e a criminalização do exercício da advocacia, maiormente a criminal”18.
O “holocausto” está consignado.
As autoridades pela Democracia estão sendo perseguidas e ela está severamente ameaçada, instaura-se
e avança o “Pós-Democrático”. Os prenúncios do “holocausto democrático” se materializam a cada dia,

15GONÇALVES, Rodrigo Machado. Op. cit., p. 383.


16CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal, Campinas: Edicamp, 2002, p. 31.., p. 26.
17GONÇALVES, Rodrigo Machado. Op. cit., p. 383.
18GONÇALVES, Rodrigo Machado e GONÇALVES, Fernanda Menezes. A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E O HOLOCAUSTO DEMO-
CRÁTICO. Direitos Humanos: Da Teoria à Prática. O Complexo Diálogo. Orgs. Milla Benício e Sérgio Câmara. Rio de Janeiro: Autografia,
2015, p. 102.

Em nome da inocência: Justiça | 159


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

a cada lei que se promulga. A sociedade tem legitimado e aclamado àqueles que se voltam ao discurso
e às ações tirânicas e, concomitantemente, execrado aos que suscitam a necessidade de obediência à
Constituição. As agências públicas, pela ação de seus atores imbuídos da implementação do regime auto-
ritário, têm oprimido a atuação funcional, política, dogmática e social daqueles que a ele resistem. Vide a
instauração do processo no CNJ contra: Rubens Casara, André Nicolitt, Cristiana Cordeiro e Simone Nacif.
“Entretanto, “se o mundo é mesmo parecido com o que vejo, prefiro acreditar no mundo do meu jeito”19,
nele está Luiz Carlos Cancellier, um guerreiro pela Democracia abatido, em matéria, pelo autoritarismo,
mas vivo pela luta, pela dignidade, pela história e pela resistência que sua morte torna obrigatória e inven-
cível. A liberdade vencerá!
Todavia, não nos esqueçamos da advertência de Bauman: “O advento da liberdade é visto como uma
inspiradora emancipação – seja das horríveis obrigações e das irritantes proibições, seja das rotinas mo-
nótonas e bestificantes. Mas tão logo a liberdade se instale e se torne nosso pão de cada dia, um novo tipo
de horror, o horror da responsabilidade, nem um pouco menos amedrontador que os terrores afugentados
pelo advento da liberdade, tornam pálidas as recordações de sofrimentos passados. Noites que seguem
dias de rotina obrigatória estão lotadas de sonhos de libertação dos constrangimentos. Noites que seguem
dias de escolhas obrigatórias estão cheias de sonhos de libertação das responsabilidades”20 .
eitero: minha inspiração à escrita e a seguir pelo direito se constrói pelo convívio e aprendizado com meus
alunos da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, do Centro Universitário La Salle e da Faculdade de Direito
da Universidade Candido Mendes/Centro. Bálsamos para minhas dores e alimento para minha fé, são
sementes de um novo porvir, incumbidas da mais importante missão que poderia lhes dar: germinarem a
luta pela Democracia!
Espero, verdadeiramente, que a presente homenagem configure diminuto alento para a infinita dor decor-
rente do falecimento material de Cancellier.
VIVA AS AUTORIDADES PELA DEMOCRACIA, elas dignificam a humanidade e asseguram seus maiores
patrimônios: a liberdade e a vida!

IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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19URBANA, Legião. Eu era um lobisomem juvenil.


20BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 53.

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Em nome da inocência: Justiça | 163


Francisco José Castilhos Karam

Jornalista e Professor Titular Aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor dos
livros “Jornalismo, Ética e Liberdade” e “A Ética Jornalística e o Interesse Público”.

Verificação, opinião e dano moral: para onde vai o


jornalismo da grande mídia brasileira?

O Código de Ética da Associação Nacional de Jornais garante: “Apurar e publicar a verdade dos fatos de
interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses” (da ANJ são sócios
muitos jornais, entre eles O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Diário Catarinense e Zero
Hora). O código de Ética da Associação Nacional de Editores de Revistas determina: “Assegurar ao leitor
as diferentes versões de um fato e as diversas tendências de opinião da sociedade sobre esse fato” (da
ANER são sócias, entre muitas, as revistas Veja e Istoé). A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
Televisão subscreve a Declaração de Chapultepec, que assegura: “A credibilidade da imprensa está ligada
ao compromisso com a verdade, à busca de precisão, imparcialidade e equidade e à clara diferenciação
entre as mensagens jornalísticas e as comerciais.” (da Abert são sócias, entre muitas, a TV Globo).
A distância entre intenção e gesto, entre discurso e prática, é, atualmente, enorme. E aproxima a falsa
intenção do gesto; aproxima o discurso moral do cinismo e da hipocrisia. Por quais razões a operação Ou-
vidos Moucos, desfechada pela Polícia Federal contra a Universidade Federal de Santa Catarina, atingiu de
forma desproporcional e mesmo covarde o então Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo e teve, inicialmente,
tanta cobertura equivocada?
Começa com as acusações sem prova; com a prisão às 6 horas da manhã; com a revista ultrajante; com
as algemas; com a confusão entre números (80 milhões de reais para um projeto que contemplou e bene-
ficiou legalmente, com conhecimento, milhares de pessoas – muito diferente do valor suposto de desvio
de alguns professores em torno de 300 mil reais...). Continua com a repercussão como se todos fossem
ladrões e que o Reitor estaria no centro dos desvios, fato comprovadamente inexistente – os desvios teriam
164 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 2 - A tragédia anunciada

ocorrido em gestões anteriores e, em nenhum caso, envolveria os administradores maiores da Instituição,


mas apenas um pequeníssimo grupo entre 6 e 15 pessoas, de um total, entre professores, servidores
técnico–administrativos e alunos, de mais de 40 mil pessoas que habitam a UFSC diariamente. E de outros
tantos milhares beneficiados por projetos de pesquisa, extensão e ensino. A repercussão jornalística foi
decisiva para empurrar para a morte o ex–Reitor.
Se nos últimos 300 anos os pilares do Jornalismo foram a legitimidade social que granjeou e a credibilidade
em que presumivelmente se assentava, os rumos da atividade profissional – menos por vontade de seus
jornalistas e mais por imposição dos aspectos mercadológicos e ideológicos sobre o processo de produ-
ção jornalística – apontam a perda da crença de que a Imprensa, como Instituição da Modernidade , tem
algo ainda a ver com o esclarecimento público imediato.
O jornalismo tem se tornado, muitas vezes, mais um enfeite moral para outros negócios da grande empre-
sa, veemente defensora da privatização de tudo que interesse a ela, incluindo Universidades públicas.

O linchamento midiático de um Reitor


O praticamente assassinato pelo Judiciário e pela Mídia do ex–Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo e o ata-
que à instituição Universidade Federal de Santa Catarina representam também um ataque à Democracia e
a confirmação de que vivemos, hoje, em um Estado Autoritário e de Exceção. O método do autoritarismo –
utilizado em excesso na operação Lava–Jato – é o de prisão sem provas, manutenção de prisão preventiva
sem fatos comprobatórios para tal, vazamento para a imprensa de dados que deveriam estar sob segredo
de Justiça, exagero no aparecimento sob holofotes de jovens investigadores, juízes e policiais.
Basicamente, parece–me (não falo de redes sociais e pequenos veículos e suas reportagens) que o jorna-
lismo incorreu em dois erros centrais na grande mídia, se é que se pode chamar de erro já que, na maioria
dos casos, há um propósito, ou seja, é proposital:
1) o epicentro da atividade jornalística foi abandonado. Isto é, a figura do repórter e da investigação minu-
ciosa – baluarte moral e de justificativa da própria existência e defesa do jornalismo como vital à democra-
cia – foram substituídas, em grande parte, por uma “investigação” de segunda mão, recorrendo a relatórios
das próprias fontes, como Polícia Federal, Ministério Público e outros. E publicando imediatamente sem
desconfiança e verificação profunda. As perguntas incômodas, que deveriam ser direcionadas à Polícia
Federal, por exemplo – e com contundência e persistência – deram lugar à submissão, a um jornalismo de
reverência. Versões, simples versões, passaram a ter validade como fato;
2) o papel quase criminoso, se criminoso não for, de alguns colunistas, comentaristas, analistas, que tanto
se valem de informações não comprovadas quanto disseminam, com adjetivos, o ódio coletivo a partir
de denúncias inverídicas, de “dedoduragens”, de conversas de corredor, às vezes por vingança pessoal
ou política, às vezes por simples retaliação motivada por diferentes razões. Colunistas que repercutem
qualquer fonte que interesse a ele/ela ou à empresa e que digam algo que convém ao interesse particular
de sua empresa, de si mesmo ou de setores poderosos – econômica e politicamente – da sociedade. Em
grande parte, colunistas se tornaram porta–vozes do ódio, do linchamento moral; tornaram–se responsá-
veis pela ampla repercussão de crimes que não houve, de acusações sem provas, de fontes que plantam
informações. Seguem interesses escusos e estão ao lado de golpes à democracia. Deixaram de praticar o

Em nome da inocência: Justiça | 165


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

bom jornalismo, o da opinião livre mas fundamentada em algo sólido que justifique a defesa de uma ideia.
É tempo de exceção e de perseguição.
As empresas jornalísticas se tornaram censoras da realidade em grau muito acentuado, com um cinismo
de defesa da liberdade que é apenas uma retórica vazia. Tornaram–se inimigas da democracia. Atentam
cotidianamente contra ela.
Seletividade crítica é a marca. E justificam, legitimam e repercutem, nos holofotes para o público, aqueles
agentes da lei movidos pela vaidade e marcados pela falta de experiência e por muito desconhecimento
histórico e do que seja um ambiente de controvérsia, de justiça efetiva e de democracia como é o de uma
Universidade. O ataque ao setor público, que efetivamente sustenta grande parte da sociedade, é uma parte
visível de um emaranhado de interesses particulares.
É neste ambiente – do linchamento moral midiático e público – que aparecem as mãos que empurraram
Cau Cancellier para o suicídio, como expressou o ex–senador Nelson Wedekin. Foram decisões responsá-
veis por danos morais que levam a marca da prisão arbitrária e que empurram pessoas com “vergonha na
cara” ao limite. Foram pessoas responsáveis pela informação sem controvérsia e sem comprovação e pela
opinião infundada e leviana que lincharam, em praça pública e como espetáculo – tal como no velho oeste
se verificava nas sessões públicas e divertidas de enforcamento –, levando ao suicídio quase anunciado,
que na verdade equivale a um assassinato.
As mãos que empurraram Cancellier para a morte, voltando a Wedekin, pode–se dizer que são as mesmas que
tentaram empurrar, por exemplo, o ex–deputado José Genoíno, que durante décadas de atuação parlamentar
não aumentou um milímetro seu patrimônio. E que foi linchado, como tantos outros, em praça pública por uma
mídia que não mede consequências de seus atos e reproduz fatos e amplia colunas até o limite de uma vida.
A forma da prisão de Cancellier foi, além de desnecessária, cruel, que não combina com investigação por
corrupção. E ainda mais em um ambiente de pesquisa, ensino e extensão, próprio para prosperar o conhe-
cimento e envolto pela complexidade do pensar, pesquisar e aplicar o conhecimento.
Haveria, em tal ambiente, também a necessidade de existência de uma Corregedoria, tal como na área
policial e jurídica, com métodos de atuação similares? Cabe isto no ambiente de uma Universidade Pública,
onde já há fiscalização, controle e representação por meio de colegiados de curso, colegiados de departa-
mento, colegiados de graduação e de pós– graduação, conselhos de centro, câmaras de graduação e de
pós, Conselho Universitário, todos com representação, debate e pluralidade? Cabe em uma instituição que
já tem uma Procuradoria Federal e é submetida à Controladoria Geral da União? Ou o método policial das
corregedorias se instala agora dentro de ambientes de Universidades? Quantas Universidades e ambientes
de produção de conhecimento e de aprendizado admitem tal posto que, no caso, serviu à criação de um
clima de perseguição e terror?
O jornalismo tem como uma de suas principais tarefas, historicamente, as perguntas incômodas. Segue
um método socrático da desconfiança. Elas faltaram, como faltou reportagem para cobrir com dignidade o
evento e para fazer, com contundência, perguntas incômodas.
Ao analisar a mídia, o pesquisador holandês Teun Adrianus van Dijk já tinha constatado uma velha estraté-
gia que se aplica ao cenário de cobertura jornalística atual a partir dos centros de decisão das empresas
de mídia, pelo menos na Política e na Economia, e que servem para muitos casos de repercussão midiática

166 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

no País: “1) as virtudes dos amigos nós maximizamos; 2) as virtudes dos inimigos nós minimizamos; 3) os
defeitos dos amigos nos minimizamos; 4) os defeitos dos inimigos nós maximizamos”.
Não são muitos, na grande mídia hegemônica (grandes empresas com rádio, tevê, jornal, revista e internet)
os jornalistas que ainda apuram e informam com os requisitos éticos, técnicos e estéticos pelos quais a
profissão obteve certo reconhecimento social. Sem tais requisitos, aumenta a má informação, a confusão
informativa, a ideia de que jornalistas não servem senão para fazer propaganda travestida de jornalismo, em
que, a despeito dos fatos, a angulação e a narrativa final são dadas pelos centros do poder econômico, pelas
fontes beneficiárias de tal poder, pelos acionistas e pelos anunciantes. Há, com tal perspectiva, claros preju-
ízos ao esclarecimento público; aumentam os preconceitos e os estereótipos. E preconceitos e estereótipos
são o suporte valorativo que dão margem ao linchamento moral generalizado e eventualmente físico.
Os crimes de informação e opinião (calúnia, injúria e difamação) cometidos pela imprensa são crimes tam-
bém com apoio narrativo de grande parte do jornalismo hegemônico, capaz de repercutir para milhões, de
norte a sul e de leste a oeste do País –mesmo para quem não assistiu, por meio da continuidade de comen-
tários entre públicos– o aparente mundo real. Cria-se a crise; forjam-se dados, ouvem-se fontes capazes
de “legitimar” os dados e depois espalham-se os dados forjados e as opiniões das fontes “especializadas”.
A isso, soma-se o papel preponderante dos comentaristas e colunistas de mídia, que ocupam lugar com
muito maior destaque do que o de repórteres que estão – ou deveriam estar – na investigação dos acon-
tecimentos em primeira mão e em seus desdobramentos, em que a comprovação e o contraditório são
princípios defendidos pela profissão ao longo dos últimos séculos, desde que se inseriu na vida moderna.
A assessoria de imprensa que o jornalismo das grandes empresas presta a seus acionistas, anunciantes e
sócios de ideologia ocorre em todo o planeta.

Jornalismo e transparência
Há mais de 20 anos, Peter Desbarats observava, diante do cenário planetário, que os jornalistas, precisa-
mente aqueles que examinam tanto o governo e as empresas públicas, desenvolveram uma “alergia profis-
sional” a qualquer sugestão de serem investigados e transparentes. É como se o jornalismo, as empresas e
os jornalistas estivessem fora do Estado…e acima dele. É como se não houvesse relação entre Jornalismo
e Poder privado… e não houvesse Poder privado dentro do Estado.
Para Marc-François Bernier, “a sociedade tem inteiramente o direito de reclamar prestação de contas não
somente dos depositários da soberania política ou econômica, mas também dos depositários de direitos,
privilégios, liberdades e responsabilidades vinculados à informação dos cidadãos”.
O princípio de “imputabilidade” que os jornalistas invocam para forçar outros atores sociais a serem
transparentes é aplicável a si mesmos, no sentido de participarem do “tribunal da opinião pública”, como
gostam de dizer empresários jornalísticos que argumentam o sagrado direito à liberdade de expressão, à
liberdade de imprensa e ao direito social à informação.
Conforme Bernier, a “imputabilidade” é um elemento da legitimação dos jornalistas. Como “represen-
tantes” do público - e com uma espécie de “contrato social” dado pela Modernidade-, “deveriam render
contas, além de sua responsabilidade, também de suas liberdades e privilégios”.
Acentuou-se, nas últimas décadas, uma tendência e que envolveu praticamente todo o jornalismo: os be-

Em nome da inocência: Justiça | 167


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

nefícios pessoais e empresariais ficaram muito acima dos princípios jornalísticos, os quais, esses últimos,
mantêm-se como pirotecnia moral e como referência para defesas jurídicas que, no fundo, escondem as
intenções privadas.
A fusão e/ou sociedade de empresas da mídia com as de outros ramos resulta na era dos conglome-
rados que se estruturam acima das Nações e, em cada uma delas, associam-se poderes econômicos e
políticos e instituições capitaneadas por eles. O Jornalismo se tornou refém - e também cúmplice - de
tantos interesses particulares travestidos de interesse público e que aniquilam projetos de inclusão
social e mínima igualdade entre cidadãos, como os de acesso qualitativo à Saúde e à Educação. Esses,
só se derem lucro, mas os conteúdos e cuidados correspondem às circunstâncias do lucro e rentabi-
lidade. Os rentistas estão por toda a parte e, embora sejam minoria numérica, detêm o Poder real da
Economia que se reflete na Política.
A dívida não paga à Previdência, a sonegação de impostos à Receita Federal e outros crimes tornam-
-se a outra face da mesma moeda, que inclui a troca de favores e a garantia para os seus... os amigos,
os sócios... Eles estão na empresa jornalística amiga, sócia e proprietária também de empresas de
armamento, de transporte, de agronegócio, de telecomunicações, de automóveis, de construtoras,
de serviços, de shopping centers, de clubes de futebol e de outros esportes, de museus de arte, de
editoras... Uma realidade brasileira e planetária...
Agora a palavra é “corrupção”... Mas só a dos outros. Contra os outros, a corrupção impede a gover-
nabilidade; contra si, a corrupção, mesmo existindo, pode continuar, desde que com governabilidade.
Uma harmonia e tanto entre os Poderes e contra os sem Poder.
A falência da capacidade argumentativa na democracia tem, no outro lado, uma democracia que é
só uma palavra e que nada mais tem a ver com a vida real do cidadão que sofre na pele a perda da
existência. A Universidade Pública é mais uma vítima, e quem assume cargos de relevância, como
o de Reitor, sempre está na mira de justiceiros a qualquer custo, ainda que ao custo da verdade, da
precisão e da comprovação.
Parece-me que, sem um movimento popular massivo organizado, com direção política e clareza de
finalidades, não se sairá de uma crise institucional forjada e que possa reverter o crime de lesa-pátria
a que o Brasil está submetido. E sem um projeto que inclua regulação econômica da mídia e resposta
aos crimes de acusação sem prova, não será possível a realização de um projeto inclusivo de Nação e
sequer a possibilidade do Jornalismo como estimulador da vitalidade democrática, constituindo-se,
apenas, na grande mídia, um de seus criminosos apêndices contra a própria democracia.

Jornalismo, cinismo e vitalidade democrática


Em 1988, o psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa alertava que a sociedade brasileira poderia estar
chegando a um perigoso ponto de não-retorno. Ela estaria incorporando quatro valores: cinismo, narcisis-
mo, violência e delinquência. À época, seus estudos tinham como referência, entre outros, as ideias de Pe-
ter Sloterdijk. O filósofo alemão havia escrito, desde a década de 1970, artigos sobre o cinismo. Suas ideias
culminariam no clássico livro “Crítica da razão cínica”, publicado na Alemanha no início dos anos 1980.
Em relação à mídia, Sloterdijk considerava viver num mundo aparentemente “superinformado” e, no entan-

168 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

to, de notícias “hipertrofiadas”.


Já o ponto de não-retorno de Freire Costa atingiria diversas instituições e o comportamento individual. Se-
gundo o psicanalista, a cultura do cinismo deriva da cultura narcísica e “se não há como recorrer a regras
supraindividuais, historicamente estabelecidas pela negociação e pelo consenso, para dirimir direitos e deve-
res privados, tudo passa a ser uma questão de força, de deliberação ou de decisão, em função de interesses
particulares. Donde o recurso sistemático à violência, à delinquência, à mentira, à escroqueria, ao banditismo
‘legalizado’ e à demissão de responsabilidade, que caracterizam a ‘cultura cínico–narcísica’ dos dias de hoje”.
O cinismo e a violência são marcas centrais do Estado de Exceção. O que vem acontecendo, de forma
reiterada, é de uma desfaçatez enorme diante da ideia de esclarecimento público e da defesa de que o jor-
nalismo é o porta-voz da controvérsia e, portanto, a liberdade de expressão é sagrada, bandeira não só dos
profissionais – muitos deles honestos -, mas também de empresários, a maioria envolvida em sonegação
de impostos e achaque dos cofres públicos.
O cinismo e o narcisismo tem se configurado em diversas coberturas, opiniões, comentários e tratamentos
dos fatos, apesar de vários profissionais darem o melhor de si para a profissão e a sociedade em muitas
matérias, em variadas notícias e reportagens. E sejam honestos em comentários. No entanto, isso parece
ser cada vez mais exceção na grande empresa jornalística.
Na lógica empresarial em que se move o jornalismo tradicional – e na submissão de grande parte de seus
profissionais em questões-chave de economia e de política –, está cada vez mais distante o reconheci-
mento público à atividade e o respeito a uma profissão que lutou muito, por suas entidades, para adquirir
um estatuto profissional específico e uma moral ancorada no interesse público, coisa que ainda as escolas
estão a propor e a realizar. Mas que encontra cada vez mais espaço fora do jornalismo de referência histó-
rica e encontra mais possibilidades dentro de modelos alternativos que surgem, dentro ou fora das redes
sociais. Parece ser um caminho para continuar chamando Jornalismo de Jornalismo, driblando os quatro
vértices elencados por Freire Costa: cinismo, narcisismo, violência e delinquência. Quem sabe assim o
jornalismo escape do que inevitavelmente tem sido a sua marca atual: o perigoso ponto de não-retorno. Ali
onde o pêndulo da dialética que sempre marcou a sua história – entre o capital/interesse privado versus
interesse público – tem pendido sempre para o lado do primeiro. Pelo menos corresponderia em parte ao
que se propôs historicamente.
Do contrário, parece–me, mais mãos empurrarão muito mais inocentes para a morte. Não é pouca coisa.

Referências bibliográficas

BERNIER, Marc-François. Éthique e Deontologie du Journalism. San Nicolas (Québec):


Las Presses de l’Université Laval, 2004.
COSTA, Jurandir Freire. Psicanálise e Moral. São Paulo: Educ, 1989.
DESBARATS, Peter. Guide to Canadian News Media. Toronto: Harcourt Brace Jovano-
vich, 1990.
DIJK, Teun A. Van. La noticia como discurso. Barcelona: Paidós, 1990.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Madrid: Taurus, 1989, 2v.

Em nome da inocência: Justiça | 169


Djefferson Amadeus1

O suicídio do Reitor da UFSC:


quem julgará seus algozes?

Djefferson Amadeus1

Este é um duro (ou seria melhor dizer: duríssimo!) golpe; daqueles que não gostaríamos de escrever, mas,
ao lembrar de Warat, não conseguimos nos conter. Porque o ato mais obsceno da vida – dizia Warat – é o
ocultamento do terror que sustenta a aparência democrática”2 e o silêncio daqueles que, sabendo disso,
mantêm-se inertes!
Tenho certeza que, após este texto, corro um grande risco de ser “condenado” e, tal como Sócrates, sen-
tenciado até à morte; mas os que me condenarão também serão condenados e, segundo penso, a uma
pena muito pior. Esperarei minha pena; eles, a deles. Mas só os nossos “travesseiros” saberão a quem
caberá o melhor quinhão.
Pois muito bem.
Para falar do suicídio do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo
elegi dois livros: Las Miserias del Proceso Penal e Os Miseráveis. O porquê da escolha depreende-se da

1 ADVOGADO criminalista e eleitoralista. Mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ / Bolsista Capes) sob a orientação
do Dr. Lenio Streck, sendo a banca composta pelo Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e o Dr. Rubens Casara. Pós-Graduado em
Processo Penal (ABDCONST) sob a orientação do Dr. Alexandre Morais da Rosa. Pós-Graduado em Filosofia (PUC-RJ). Pesquisador do
Grupo de Pesquisa Matrizes Autoritárias do Processo Penal Brasileiro - para além da influência do Código Rocco (1941), coordenado
pelo Dr. Geraldo Prado (FND-UFRJ). Pesquisador no grupo de pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais, liderado pelo Dr. Salah
Hassan Kaled Júnior (FURG/CNPq). Pesquisador no grupo institucional de pesquisa em Filosofia do Direito, coordenado pelo Dr. Vi-
cente de Paulo Barretto (UNESA/CNPq). Bolsista/Pesquisador da Fiocruz (Coop. Social). Membro da Comissão de Segurança Pública
da OAB-RJ.
2 Warat, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 46.

170 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

pergunta de Carnelutti, feita em 1959, que consta daquele livro:


“Considerar al hombre como una cosa: puede haber una fórmula más expresiva de la incivilidad?”3
Na atual conjuntura, um tanto quanto em todas as partes, mas principalmente na boca da maioria daque-
les que acusaram e julgaram Luiz Carlos Cancellier, a palavra de ordem tem sido uma só: moralização. O
resultado, por evidente, não poderia ser outro senão aquele vislumbrado por Galeano: “O código moral do
fim do milênio não condena a injustiça, mas sim o fracasso”.4
Por isso, o Coronel McNamara, quando perguntado se a Guerra do Vietnã era um erro, respondeu que
sim. Mas não pelo fato dela ter levado ao extermínio de mais de três milhões de pessoas, e sim porque os
Estados Unidos levaram adiante uma guerra, mesmo sabendo que não a ganhariam.5
E assim, ao se deparar com a terceira ou quarta posição no ranking mundial da população carcerária, mui-
tos juízes e promotores, que deveriam ser invadidos por um sentimento de vergonha e culpa, só conhecem
o fracasso; fracasso pelo fato do Brasil não ocupar o primeiro lugar desta lista.
Analisando o atuar daqueles que são regidos pelo pensamento do “prendeu, prendeu, que bom que não sou
eu”, fui tomado de assalto por uma passagem marcante da obra “Os Miseráveis, de Victor Hugo.6
A história se passa com um miserável que, pelo amor à sua esposa e seu filho, ao vê-los tomado pela
miséria, decidiu fabricar dinheiro falso. Nessa época, a pena para tal crime era a morte. Mas, diante da
miséria, num ato de desespero, sua mulher decide trocar a primeira moeda que seu marido fabricara. É
descoberta. E presa. Só havia provas contra ela. Mas o Promotor do rei queria a prisão dela e do marido.
Então teve uma ideia: juntou fragmentos de uma carta e, ardilosamente, forjou a ideia de que o marido dela
estava traindo-a. Ela, tomada pelo ciúme, delata-o. E marido e mulher são condenados à morte. Enquanto
o Promotor do Rei vangloriava-se de suas habilidades que o levaram a descobrir a “verdade real”, o Bispo,
que ouvia tudo calado, perguntou:
– Onde serão julgados esse homem e essa mulher?
– no Tribunal do Júri, responderam a ele.
E, com uma voz alta, redargüiu:
– E onde será julgado o Promotor do Rei?
Assim fica fácil perceber, por exemplo, porque – e mais do que nunca – se faz importante (para não dizer
imprescindível) que indaguemos o seguinte:
E quem julgará todos que acusaram Luiz Carlos Cancellier?
Têm razão Calligaris e Jacinto Coutinho, quando afirmam que o país sofre de alguns déficits fundamentais
que, enquanto não forem resolvidos, nenhuma política econômica salvará. Porque não há política econô-
mica que se sustente onde não existe alteridade e fraternidade.
Enquanto escrevo, algumas lembranças invadem minha mente de forma brutal. Por todas, cito o olhar que
Lula dirigia a mim, na UFRJ, no dia em que lançavamos o livro: Comentários a uma sentença anunciada:
o processo Lula. Enquanto o professor Afrânio falava de sua filha, eu e Lula chorávamos. Mas por alguns

3Tradução: Considerar o homem como uma coisa: pode haver uma fórmula mais expressiva da incivilidade? CARNELUTTI, Francesco.
Las Miserias Del Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentis Melendo. Ediciones Juridicas Europa-America: Buenos Aires, 1959,
p. 15.
4 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p. 33.
5 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p. 34.
6 HUGO, Victor-Marie. Os Miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Martin Claret: São Paulo, 2014. p. 53.

Em nome da inocência: Justiça | 171


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

segundos, enquanto nos olhávamos, chorando, percebi que o olhar de Lula parou de me alcançar. E tornou-
-se opaco. Como se estivesse perdido. E, por um instante, olhando-o, veio a lembrança de Pedro Ramos e
Hogo Alves; e deles lembrei-me de como me olharam quando lia para eles a decisão condenatória.
Nunca vi um zumbi, mas como no relato de Calligaris, também acho que, se um dia deparar-me com algum,
aposto que ele deve ter aquele olhar, que por muito tempo impediu-me nas feiras de voltar, porque toda
vez que um peixe posto à venda lançava em mim o seu olhar, aquelas lembranças insistiam em retornar.
Há de se concluir, porque já se foi ao longe para as singelas pretensões iniciais. Então à pergunta – Reitor
da UFSC: o que ele têm que os seus algozes não têm? –, a resposta é evidente: dignidade! E coragem,
muita coragem.
Por isso encerro este texto com uma frase de Dona Marisa Letícia:
“Em 1980, tomaram o sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a sala
da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato.”

172 | Em nome da inocência: Justiça


Nelson Wedekin
Bacharelou-se em direito. Foi eleito vereador em Joaçaba em 1969, porém, no ano seguinte, foi
pressionado pelos militares a deixar o cargo por segurança. Estudou jornalismo em São Paulo e,
na volta para Santa Catarina, em 1976, advogava em favor dos presos políticos locais.[2] Teve
um papel de destaque ao defender os estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina
envolvidos no episódio da Novembrada, em 1979. Foi deputado à Câmara dos Deputados na 47ª
legislatura (1983 — 1987), eleito pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e
também senador pela 48ª e 49ª legislaturas, de 1987 a 1995.

O REITOR
in memoriam de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, alma cidadã, sal da terra.

Quarta-feira, 13 de setembro.
Já era escuro quando o reitor deixou o prédio da reitoria. Fez o caminho de sempre, dobrando à esquerda
no amplo pátio, e subindo calmamente a alameda interna do campus que leva até a rua do apartamento. O
reitor fazia o mesmo trajeto prazerosamente a pé, com pequenas variações, todos os dias.
Comeu alguma coisa e foi dormir exausto, depois de um dia estafante -- como são todos os dias na reitoria.
Cansado, mas feliz. Estava no auge de uma carreira brilhante. Gostava do que fazia, adorava a Universida-
de, vivia para ela.
No apartamento de três quartos, edifício de quatro andares, tudo era simples e modesto. Mas para o reitor
estava de bom tamanho, se sentia confortável. O lugar era calmo, ideal para o descanso, a leitura, os filmes
que tanto apreciava. O que ele mais gostava é que a Universidade, a sua outra casa, estava a alguns passos,
bastava atravessar a rua.
A ordem cega do destino já estava em curso e aquela seria a última vez que o reitor faria o trajeto que tanto
lhe agradava. Autoridades do Estado, 105 agentes policias de vários estados do país estavam na cidade,
com a mão pesada pronta para agir, preparando frenéticamente a operação do dia seguinte.
Antes de apagar a luz leu um pouco, como costumava, fez uma única anotação no bloco que ficava à mesa
de cabeceira, lembrou de alguns acontecimentos do dia, e dormiu em seguida. O bloquinho de anotações
ficava à mão para lembrar compromissos, anotar ideias, o que, com alguma frequência podia acontecer
no meio na noite.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

Quinta-feira, 14 de setembro.
Estava dormindo a sono profundo quando ouviu a campainha tocar com insistência. Seria ali mesmo no
seu apartamento?. Sentou na cama sonolento, algo sobressaltado porque naquela hora - eram seis horas
da manhã - ninguém costumava chegar e menos ainda tocar a campainha assim, em largos toques, como
alguém com pressa.
Atravessou a sala cheia de livros nas estantes, na mesa, no sofá, e abriu a porta. O que viu o assustou
de vez. Eram quatro ou cinco homens em uniforme escuro, fortemente armados. O reitor teve um alívio
momentâneo: erraram de endereço! Mas logo caiu na real.
A pergunta seca veio de um daqueles homens, não soube qual, estavam com os rostos escondidos.
- O senhor é o reitor?
Sentiu as mãos frias e um arrepio lhe percorreu a espinha, o suor brotou em segundos e escorreu pela tes-
ta. Palidez. As pupilas dos olhos dilataram. O coração disparou e ele teve medo, medo de um infarto, tinha
implantado um marca-passo há pouco mais de três meses. Com a boca seca e a voz trêmula respondeu :
- Sim.
O policial não chegou a ouvir direito mas havia perguntado por mera formalidade. Ele sabia que era o reitor,
e nervoso, ameaçador deu a ordem :
- O senhor está preso!
Um pesadelo, era um pesadelo, o mais real que já tivera! Durante um tempo que não soube calcular, como
um sonâmbulo que não sabe por onde andou, foi obedecendo sem reagir às ordens e instruções dos po-
liciais. Vestiu-se sob o olhar severo e vigilante de dois deles, e foi conduzido até a viatura policial. E de lá
do bairro Trindade até a prédio vistoso da Polícia Federal, em silêncio, meio aturdido, tentava desesperada-
mente entender o que estava se passando. Do que o acusavam?
No prédio da polícia, diante da equipe de inquisição, não gostou do que viu. O delegado, com cara de
poucos amigos, os outros os agentes da lei, olhando-o dos pés à cabeça, cenhos franzidos, e armas,
equipamentos espalhados pelos corpanzis, exibindo força e poder . Bem, pensou ele, com uma tirada de
humor fora de hora: o delegado é o policial durão ; daqui a pouco aparece o bonzinho, como nos filmes.
Fez um esforço sobre-humano para manter a calma e a integridade. Mas àquelas alturas uma dor de cabeça
latejava nas suas têmporas, o coração batia descontrolado. Às vezes, uma esperança fugaz: tudo acabará
esclarecido. Sensações contraditórias, ora confiantes, ora assustadoras varriam a sua mente. Não con-
seguia articular um pensamento com começo, meio e fim. Sentia o corpo dolorido e a alma torturada pela
vergonha, a sensação de impotência, uma voragem o consumia.
Finalmente soube do que estava sendo acusado: obstrução de justiça. Não tinha passado nem perto de
adivinhar. Obstrução de justiça se a matéria nem tinha chegado ainda à alçada da Justiça? “Obstrução” em
sindicância administrativa, ainda não concluída, e ele vai para cadeia antes mesmo de ser ouvido?
Foram cinco horas de depoimento. Desde a primeira pergunta soube que fora jogado aos leões e que ele
era considerado culpado, irremediavelmente culpado.
Quando o delegado lhe perguntou se os funcionários que ele nomeou eram concursados disse para si
mesmo : “ estou ferrado”. Como um delegado da polícia federal, formado em direito, aprovado em concurso
altamente competitivo, pode ignorar que os funcionários da universidade são todos concursados?

174 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

Os advogados pediram cela especial. O preso era jornalista, advogado, mestre e doutor, reitor de universi-
dade. As celas da PF, conhecidas pelo relativo conforto, já tinham hospedado Fernandinho Beira-Mar, uma
celebridade, chefe de facção criminosa. Mas não podiam abrigar o reitor. Ele deveria ir para a penitenciária.
Em que ala? De segurança máxima.
O reitor, que não tinha antecedentes criminais, que nem réu ainda era (e assim veio a morrer) , que nunca
causara mal a ninguém, conhecido pela fala mansa, os gestos contidos , o sorriso tímido, foi encarcerado
em cela de segurança máxima. Nenhum delinquente, dentre todos os que estavam presos na penitenciária,
estava na categoria de “segurança máxima”. O reitor estava.
Antes, como manda (assim disseram ) o protocolo, o reitor teve de se despir diante dos carcereiros e de
se submeter a uma revista íntima. Ficou assim nu por um bom tempo - talvez 40 minutos de pé - ouvindo
os gracejos e as provocações de carcereiros e de outros presos: “ Doutor também vai em cana “, diziam.
Entregaram-lhe a roupa laranja de cor de presidiário, acorrentarem-lhe as pernas e prenderam suas mãos
em algemas.
Durante outro tanto de tempo o reitor e os outros seis presos da operação foram obrigados a ficar de pé,
algemados e acorrentados, de costa para as grades de uma cela apertada, de frente para uma parede alta,
uma janelinha com barras de ferro de 40x50 centímetros acima. Um carcereiro perguntou, de fora : Quem
é o reitor? Ele se apresentou. O carcereiro: “ Aqui não tem essa de reitor”.
Ali, empoleirados no espaço exíguo, os sete presos souberam que a imprensa dava como valor das verbas
desviadas a cifra de R$ 80 milhões de reais. Foi um momento tenso. Os presos protestaram com veemên-
cia e indignação. Souberam também que a operação da PF tinha envolvido 105 agentes federais de Santa
Catarina, de outros estados , como do distante Maranhão. Foi ficando claro que estavam metidos em uma
bruta enrascada.
O reitor, cansado, respiração ofegante, com sudorese e sede insaciável, foi autorizado a sentar no chão
da cela estreita. Ali receberam a refeição noturna, sete marmitas, com apenas duas colheres. Faltavam
colheres no presídio, avisou o carcereiro. Eles que revesassem com as duas disponíveis.
Era noite já quando a porta da cela de segurança máxima bateu às suas costas, soturnamente, como em
filme de terror. As lembranças do dia revolviam a cabeça febril. Quando entrou na cela de catres de cimento,
colchões encardidos e cheiro de mofo, ainda estava confuso sobre o acontecido.
O reitor estava esgotado de todas as suas forças. Um colega de cela quis comentar os acontecimentos do
dia, o que fazer, o que podiam esperar. O reitor se queixou de indisposição e cansaço e ficaram de retomar
o assunto no dia seguinte. Revirou-se um pouco na cama de cimento, revisou aquela sequência caótica de
fatos e devagar fechou os olhos. Pela primeira vez pensou na morte.

Sexta-feira, 15 de setembro.
A juíza, que estava muito bem de saúde para decretar a prisão, foi acometida de um mal repentino e entrou
em licença médica. Era uma boa notícia. O caso iria para as mãos de outra juíza.
Apesar de acordar mais disposto, a palidez do reitor não deixava dúvida: o seu estado geral de saúde
inspirava cuidados. As autoridades da penitenciária autorizaram a entrada do cardiologista do reitor, que o
examinou. O médico não pôde disfarçar o choque, ao ver diante de si o paciente algemado e acorrentado.

Em nome da inocência: Justiça | 175


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

Constatou que a saúde do reitor estava razoável, na circunstância.


No ínterim, melhorou o tratamento dos carcereiros. Passado o primeiro impacto eles pareciam ter se con-
vencido de que naquela operação havia algo de insólito e demasiado.
Fora, os advogados se desdobravam em providências jurídicas para melhorar a situação dos presos e
liberá-los antes do final de semana. Sabiam que se não conseguissem na sexta-feira, eles dormiriam na
cadeia no mínimo até segunda.
(Depois que o reitor foi liberado, soube-se que a Polícia Militar de Santa Catarina havia reservado para ele,
a pedido de alguém, cela especial, mais ampla e confortável. no quartel. Os familiares, os advogados, só
foram tomar conhecimento depois que o reitor foi solto).
Na penitenciária, algo refeito, o reitor tentava desesperadamente recompôr-se. Mal conseguia se deter em
algum ponto. Quando o pensamento tomava um rumo, de repente, do nada, ele voltava ao marco zero. Os
momentos de lucidez era breves e fugidios.
Durante o dia teve tempo para imaginar, como num filme, as chamadas da tevê, imagens suas em movimento,
em entrevistas e eventos, o apresentador mencionando o valor de R$ 80 milhões. O que estariam pensando
dele os conhecidos , os amigos, e mais ainda, os que não o conheciam? Por que mesmo aqueles que o conhe-
ciam deixariam de pensar que ele virou a cabeça e se tornou mais um corrupto da República? Lá fora, milhares
de telespectadores e cidadãos comuns deveriam estar dizendo : “Meus Deus, até o reitor?”
Tentou afastar os pensamentos que o afligiam, Os medos, os temores voltavam, como fantasmas que
sempre retornam para assombrar. A morte. A morte não poderia ser pior do que ele estava vivendo.
À noitinha recebeu a boa nova: a juíza de plantão, considerou que não havia razões suficientes para manter os
presos na cadeia ( o que significava que tais razões nunca existiram ) , decidiu mandar soltá-los. O reitor ficou
feliz por ele mesmo e pelos outros presos. Recebeu a informação com discreta alegria.
Em casa, no apartamento da Trindade, com o campus da UFSC à vista, na presença do filho e dos dois irmãos,
foi até a varanda , respirou fundo, arrumou um cigarro não se sabe de onde (estava proibido de fumar pelos
médicos) e fumou em largas tragadas. O que de pior lhe poderia acontecer ? Um cigarro, às vezes, é o último
desejo de um condenado.
Foi consolado e alentado pelo filho e irmãos. Fizeram relatos das manifestações de confiança e apoio de au-
xiliares da reitoria, professores, conhecidos, amigos. Estava sem apetite, ainda pálido, mas havia sido medi-
cado e estava bem. Foi o melhor momento daqueles terríveis últimas 44 horas. Mais uma vez estava exausto.
Tomou um banho que lhe pareceu reconfortante, abraçou o filho, os irmãos, sempre soube que ele jamais
duvidariam de sua honestidade. Se sentiu bem. Iria dormir na sua casa, na sua cama. Mas a noite é traiçoeira.
Dormiu um sono curto e daí em diante teve uma insônia de enlouquecer. Eram breves períodos de sono
intercalados de uma vigília atordoante. Os pensamentos inquietantes reviravam em sua cabeça. O que
estariam pensando os professores, os colegas de gabinete, os alunos, os funcionários da UFSC que vo-
taram nele? Estariam, talvez, amaldiçoando a escolha, arrependidos. Do modo como as coisas estavam
dispostas, porque iriam acreditar nele?
Tantos amigos na longa jornada, desde os tempos de Tubarão, os companheiros de luta, do Partido,, todas
aquelas pessoas com quem conviveu trocando palavras, confidências, planejando o futuro, discutindo
teses que iriam salvar o mundo, com certeza. A pergunta não calava: que juízo faziam dele? O cansaço

176 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 2 - A tragédia anunciada

vinha e voltava, e ele tirava outra meia hora de um sono agitado. Os sonhos eram recorrentes : policiais sem
rosto, gorro escuro, armados até os dentes, batendo à sua porta ; pessoas mal encaradas zombavam dele
num corredor comprido ; inquisidores de cara fechada e de maus bofes ; uma ordem de prisão. Pesadelo:
ele voava alto, sem medo e sem a menor certeza de se sustentar.

Os dias seguintes.
Foram longos e penosos os dias que se sucederam. O reitor estava proibido de ingressar na UFSC e de
manter contato com os outros seis presos. Podia manter contato com os colegas de reitoria? Melhor não. A
juíza que o havia mandado prender tinha retornado ao serviço, e em entrevista a jornal local, não descartou
um novo decreto de prisão.
Em certos momentos do dia e nas madrugadas de insônia espiava à janela para ver se não tinha nenhum
carro estranho. Quando via camionetes pretas, como as da PF, o coração acelerava. Quase todos os dias
acordou por volta das cinco horas. Ansioso, se dirigia à janela. A lei manda que as prisões sejam feitas à
luz do dia. Só voltava a dormir por volta das oito horas. Ele não suportaria uma nova prisão.
Em casa, mesmo em casa, falava baixinho. No telefone era monossilábico, lacônico. Tinha medo de ser
gravado. Conversava com os advogados na sacada, parecia que ali o grampo era mais difícil.
A sacada. Dali ele via uma pequena parte da universidade que amava, à qual dedicava o melhor do seu
esforço, talento e capacidade de trabalho. Tortura: não poder atravessar a rua e percorrer as alamedas
arborizadas, os cenários tão familiares, o campus de saber, conhecimento, cultura e progresso humano.
Tortura: não poder falar com os amigos diletos, leais, assessores, os pró-reitores, funcionários. Estava
num exílio de fronteira, bastava atravessar uma rua e estaria na sua casa, no seu lar, na sua pátria. A ideia
do ostracismo, do exílio, a ideia da morte.
Por que não? Entre os entes queridos, os amigos, a comunidade universitária, seria um baque. Mas
como ele poderia suportar um olhar de censura e desprezo? Um estudante de mau humor, um funcionário
contrariado na pretensão, um adversário nos embates internos da universidade? Poderiam a qualquer
tempo lhe atirar à cara uma insinuação, uma ofensa. Quanto tempo ele poderia resistir a possibilidades
assim aterradoras?
Nos dias vertiginosos que se seguiram o estado de espírito alternou entre a confiança e discreto otimismo,
e momentos de insuportável sofrimento. Houve um instante em que ele compreendeu perfeitamente - a
morte era uma das alternativas que lhe restava. E se era assim, tinha de esconder do filho, dos irmãos, dos
amigos, o plano fatídico.
Fez-se parecer disposto a enfrentar aqueles eventos terríveis de cabeça erguida. No íntimo, na solidão da
noite, na invencível insônia, apesar de todos os medicamentos indutores de sono, tinha claro para si: a
sorte estava lançada, a decisão estava tomada.
Teria de enfrentar um longo processo para obter - se obtivesse - a recondução ao cargo. Qualquer movi-
mento em falso (ou assim entendido pela Justiça ) o levaria de volta ao cárcere. Com toda a certeza aquela
gente, mais do que nunca, estaria empenhada em provar a sua culpa. Novas tropelias já deviam estar em
curso. Retiraram-lhe o chão, quando lhe proibiram de entrar na sua casa, a universidade. Por mais que
adiante fosse declarado inocente, ele teria de carregar para sempre a ignomínia. Logo ele, tão desambicio-

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

so de bens e vantagens materiais.


E ele não tinha visto, no dia seguinte que voltou da prisão para casa, o que diziam nas redes sociais as milí-
cias raivosas? Estava escrito com todas as letras : “ mais um ladrão da República!”. Na esquerda atribuíam
o “desvio de R$ 80 milhões” a um reitor de direita. E na direita diziam que era um reitor bolivariano. Até o
dia de sua morte, não ligou mais a televisão, não leu mais jornal, não abriu mais o computador.
Morrer seria o fim do sofrimento que lhe atormentava. Que entendessem o seu gesto como o protesto
desesperado da inocência, o ato político de coragem, o grito de alerta contra a força bruta, a injustiça. Ou
como bem quisessem. Tinha chegado ao ponto de não-retorno.

Sábado, 30 de setembro.
De manhãzinha o reitor foi à sacada do apartamento, olhou a rua vazia e como nunca se sentiu triste e
desamparado, um sentimento dilacerante, não poder atravessar a rua, voltar ao seu lar, razão principal de
sua vida, coroamento de uma carreira brilhante. A universidade, tão próxima, e tão inatingível. Os amigos,
professores, colegas de gabinete, tão leais e dedicados, tão próximos e tão distantes...
Não poder mais fazer a lenta travessia das alamedas internas do campus, dar bom dia a quem encontrasse,
receio de uma resposta com raiva e desprezo. Vale a a pena viver assim, acuado, temendo cada gesto,
cada olhar, cada encontro? Como puderam ser tão cruéis com ele? Elucidar os desvios, as irregularidades,
sim, mas a prisão era necessária? Tinha bem claro na memória o ensinamento : a prisão é ato extremo, só
justificável em situações extremas. A procura da justiça não pode se transmudar em injustiça. É melhor ter
100 delinquentes soltos do que um inocente na cadeia. Só para ele o ensinamento não valia?
Pode um homem ser privado de sua liberdade, enxovalhado, execrado pela mídia sensacionalista, pelas
milícias moralistas babando de ódio, porque talvez - só talvez - ele tivesse interferido em um processo ad-
ministrativo que ainda não provou nada? De novo: é crime “obstruir a justiça” em procedimento que ainda
não está no âmbito da Justiça? É ético, é justo, é adequado, é proporcional, botar na cadeia um homem
sem antecedentes criminais , em caso de duvidosa de obstrução, ignorando que isto pode marcar para
sempre a sua vida ?
Nas poucas vezes que o reitor saiu, para ir ao médico ou ao escritório de advocacia, andava cabisbaixo,
mirando chão - medo de ser reconhecido. Sua imagem estava nas tevês, seu nome estava estampado em
letras garrafais nas capas dos jornais. É assim que a sociedade, desinformada, o considerava, um mau
exemplo de cidadão, um mau exemplo para a juventude universitária.
(“Eles marcaram para sempre a minha vida. Destruíram tudo o que eu tinha de melhor. Sou um morto-vivo
andando a esmo nas ruas da cidade. Não. Eles não vão mais me humilhar. Não vou ficar exposto ao opró-
brio. Que ironia! De que valeram todos estes anos de conduta reta, a ficha limpa? Se ao final do processo eu
fosse condenado, como réu primário, não pegaria cadeia. Dobraram meu corpo e mais ainda meu espírito.
Não vou viver na vergonha do que não fiz. “).
 
Domingo, 1º de outubro
Tudo estava claro na cabeça do reitor. Ele teria de aceitar que uma tenebrosal sucessão de fatos consumiu
todas as suas energias. Não havia cura nem salvação.Ele teria de enfrentar serenamente o seu destino.

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Capítulo 2 - A tragédia anunciada

E o filho, os irmãos, os amigos, os colegas de reitoria? Eles compreenderão o gesto. Só o meu gesto pode
falar e dizer tudo. Eles dirão de mim, porque me conhecem e sabem de mim. As lágrimas que derramarem
serão lágrimas libertadoras.
Naquele domingo o reitor repassou a vida, a infância nas Oficinas, em Tubarão, o convívio amoroso com
os pais e os irmãos, os primeiros estudos, o movimento estudantil, o Partido, a luta contra a ditadura, as
namoradas, o casamento, o filho, a política partidária, a Constituinte, a carreira brilhante na Universidade.
Deteve-se longamente mais uma vez na última cilada da vida, o turbilhão que o consumia.
Pensou no seu encontro com a morte, tomado de uma calma estranha. Não tinha mais medo. Foi até o
Shopping Beira-Mar, tomou um café, circulou por ali, fazendo um reconhecimento prévio do cenário. Plane-
jou com cuidado os últimos passos. Domingo não seria um dia bom para morrer. Visitou um velho amigo,
garçom de um restaurante próximo, e se despediu dizendo adeus.
Voltou para casa, tomou as últimas providências. A mais importante foi encontrar um jeito de que o irmão
mais velho não dormisse no apartamento naquela noite, como estava combinado. Queria estar só. Mergu-
lhado no seu drama pessoal, não quis correr o risco de que alguém impedisse o gesto final.

Segunda-feira, 2 de outubro.
O reitor tomou o táxi , retornou ao Shopping, era cedo ainda. Sentou cabisbaixo no banco de uma pracinha
próxima. Fumou dois ou três cigarros enquanto esperava a hora. Um ex-aluno o reconheceu, lhe dirigiu
algumas palavras de ânimo. Ele estava distante, silencioso, o olhar triste. Tudo estava muito próximo do
desenlace.
Quando deu 10 horas e o Shopping abriu, aquele homem triste, alquebrado, atravessou a rua em passo len-
to mas firme, tomou o elevador panorâmico e subiu cinco andares acima. De uma das sacadas se projetou
no vazio. No voo fatal, o reitor pôs fim ao sofrimento.

Em nome da inocência: Justiça | 179


Capítulo 3 - O Retorno

180 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3

Sessão Solene Fúnebre do Conselho Universitário e do Conselho de Curadores

O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

Em nome da inocência: Justiça | 181


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

LEONARDO BRUNO PEREIRA DE MORAES


Representante dos estudantes

Senhoras e senhores bom dia,


A Universidade Federal de Santa Catarina era a vida de Luiz Carlos Cancellier.
Nesta casa, Cancellier fez sua graduação, seu mestrado e seu doutorado em Direito. Em seguida, tornou-
-se professor do Centro de Ciências Jurídicas. Nesse momento, a história de Cancellier e da Universidade
passaram a caminhar juntas.
Professor, orientador, Chefe de Departamento, Diretor de Centro, Reitor. Muito mais do que os cargos,
Cancellier era um homem que vivia a Universidade e fazia dela a sua casa. Gostava de caminhar pelo cam-
pus, conversar com os estudantes, servidores, docentes e quem mais estivesse por ali. Nunca fugiu do
trabalho. Sempre era visto nos finais de semana, nas férias, não medindo esforços para melhorar a nossa
Universidade.
Um jeito humilde, atencioso, que cativava quem com ele convivia. O professor Cancellier fazia questão de
atender a todos de maneira igual, sem qualquer distinção.
As portas de suas salas sempre estiveram abertas aos estudantes.
182 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 3 - O Retorno

Cancellier também era um grande entusiasta das iniciativas estudantis, como Empresas Juniores, Atléti-
cas, Equipes de Competição, Escritórios Modelo, dentre outros. Estava disposto a encontrar espaço para
todos na Universidade.
Esse seu espírito conciliador talvez fosse uma de suas maiores virtudes.
Entretanto, sua simplicidade também era uma característica marcante para aqueles que conviviam com o
professor Cancellier. As calças jeans e moletons, antes usadas em sala de aula e ultimamente relegadas
aos finais de semana e feriados, as conversas no bar dos Servidores depois do expediente e as inúmeras
lições de vida. Tudo isso deixará uma saudade inenarrável no coração de todos aqueles que o conheciam.
No entanto, hoje devemos fazer mais do que apenas compartilhar boas lembranças do professor Cancellier.
Devemos lembrar que a tragédia de ontem não foi um acidente.
Um desafeto político. Uma denúncia deturpada. Um processo arbitrário, conduzido por uma delegada pos-
sivelmente inconformada por ter sido afastada da Lava-Jato.
Uma decisão inconsequente da juíza da 1ª Vara Federal de Florianópolis mudou do dia para a noite a vida do
reitor Luiz Carlos Cancellier. Depoimentos que o absolviam foram ignorados. Provas foram colhidas sem
qualquer contraditório. Uma prisão duramente criticada por toda a comunidade jurídica catarinense. Uma
decisão assinada no conforto de um gabinete, que transtornou a história da nossa Universidade.
Elementos que convergiram para um desfecho que não condiz com o homem que conhecíamos. Cancellier
jamais foi acusado de desvio de recursos.
Não havia fundamentos para uma medida tão agressiva como a prisão temporária. Um homem que lutou
contra a ditadura militar, se viu condenado sem contraditório, julgado pela mídia, pela sociedade, sem
direito de defesa.
O homem do diálogo foi preso sem antes poder falar.
Entretanto, Cancellier não voltaria pela porta dos fundos.
Ontem, Cancellier retornou para a Universidade Federal de Santa Catarina pela porta da frente, sem ordem
judicial, carregado nos braços dos seus alunos, colegas e amigos.
Diante de toda essa situação, peço a licença de todos para ler um pequeno trecho escrito pelo próprio
professor Cancellier na última semana:
De todo este episódio que ganhou repercussão nacional, a principal lição é que devemos ter mais orgulho
ainda da UFSC. Ela é responsável por quase 100% do aprimoramento da indústria, dos serviços e do
desenvolvimento do estado, em todas as regiões. Faz pesquisa de ponta, ensino de qualidade e extensão
comprometida com a sociedade. É, tenho certeza, muito mais forte do qualquer outro acontecimento.
Professor Cancellier, teus alunos preservarão a tua universidade.
Deixamos, assim, a nossa homenagem ao Magnífico Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina,
Prof. Dr. Luiz Carlos Cancellier de Olivo.

Em nome da inocência: Justiça | 183


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

ARNOLDO DEBATIN NETO


Representante dos Diretores de Centros da
Universidade Federal de Santa Catarina

Senhores Membros do Egrégio Conselho da Universidade Federal de Santa Catarina,


Caros colegas Diretores de Unidade,
Servidores docentes e técnico-administrativos,
Autoridades presentes,
Queridos alunos,
Senhoras e Senhores,
Coube-me, no dia de hoje, a árdua tarefa de, em algumas linhas, comentar sobre o Magnífico Reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina, falecido no dia de ontem. Tive a alegria e o prazer de compartilhar
de sua companhia nesse Conselho Universitário e, em 2015, do grupo que o escolheu como candidato a
Reitor e, na sequência, da campanha de consulta pública na qual foi o primeiro colocado.
Foi um momento de cinco candidaturas, de muitos adversários, mas de nenhum inimigo. Essa frase eu
utilizei na última sessão ordinária deste Conselho, no dia 26 de setembro último. Lembro-me muito bem
de sua posse, aqui nesse Auditório, onde, compelido por uma manifestação, soube com singular maes-
184 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 3 - O Retorno

tria conduzir a situação e, no momento de seu pronunciamento, manifestou seu respeito a todos os que
haviam participado do processo eleitoral e solicitou um compromisso de gestão unificada, em prol de
nossa Universidade, pois já previa tempos difíceis, sobretudo por conta de um cenário economicamente
desfavorável.
Lutou incansavelmente por emendas parlamentares para a suplementação de nosso orçamento, de modo a
minimizar perdas e impedir que projetos ficassem sem recursos, o que, ao final, prejudicaria o andamento
de pesquisas, atividades de extensão e o apoio às diversas atividades didático-pedagógicas. Ao final de
2016 tinha, de fato, conseguido diversos apoios de parlamentares catarinenses, apresentados aos Direto-
res de Unidade através de nossa Secretaria de Planejamento.
Politicamente, preferiu e buscou a solução pacífica de conflitos, enaltecendo sempre o fato dessa Institui-
ção acolher a diversidade. Praticava a tolerância e caminhava para uma nova forma de gestão, a partir do
efetivo diálogo e do entendimento da necessidade do outro. Foi assim no processo de protesto discente,
em 2016, quando diversas unidades foram ocupadas e o Reitor convocou lideranças e Ministério Público
para, juntos, encontrarem um bom termo ao processo. Assim ocorreu.
Quanta ironia. Logo ele, que em apenas dois anos conseguiu aglutinar muitas pessoas desta Universidade
em torno de seu projeto de tolerância, foi surpreendido, em 14 de setembro, em uma ação investigatória
que o levou ao cárcere, acusando-o, conforme se depreendeu a partir de diversos documentos tornados
públicos, de obstrução de justiça. Logo ele, doutor em Direito e professor de Direito público, foi vítima de
uma situação descrita por muitos como desmedida. Mas disso não tratarei aqui.
Aqui destaco o sentimento de intimidação disseminado entre os diversos gestores de todas as Universi-
dades Federais e, aqui na UFSC, entre nós Diretores, sob holofotes acusatórios de uma sociedade que nos
orgulhamos em instrumentalizar nos diversos saberes. Tantos médicos, engenheiros, arquitetos, psicólo-
gos, enfermeiros, bacharéis em direito e tantas outras habilitações. Quantos juízes e promotores passaram
pelos bancos da UFSC?
Saibam todos os que nos assistem ou que venham a ler esse humilde texto, que nossa Instituição possui
sim mecanismos de gestão e controle, é auditada regularmente pelos órgãos federais, tais como Advocacia
Geral da União, Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União e sempre acolhemos com total
clareza e objetividade todas as observações feitas em nossos procedimentos, pois temos a maturidade
de nos entender como uma instituição de Estado, autônoma e, acima de tudo, singular, dadas as nossas
características de pesquisa e desenvolvimento.
Somos pioneiros em tantos processos e essa condição revela também o enfrentamento do desconhecido.
É exatamente esse desconhecido que desvendamos para a sociedade, a partir do suporte a nós garantido
por impostos recolhidos de todos os contribuintes brasileiros. Temos sim a consciência de que esses re-
cursos devem ser empregados com toda a responsabilidade e ética, conforme nos impõe a Lei.
Temos também a consciência de que não somos perfeitos, por isso os instrumentos institucionais de sindi-
cância, processos administrativos e seus respectivos resultados, que nesses 57 anos de existência dessa
Universidade mostraram-se sim, bastante efetivos, pois se não os fossem, não ocuparíamos a posição que
ocupamos, com destaques em diversas áreas do conhecimento.
Quanta alegria sentiu cada gestor que, ao longo desse período, contribuiu com seu trabalho à frente da

Em nome da inocência: Justiça | 185


Capítulo 3 - O Retorno

Reitoria desta Universidade para consolidar e melhorar nossos índices. Fico pensando na alegria do Cau
em receber esse legado e na responsabilidade que sentiu em passar ao próximo reitor suas realizações.
Também penso no Cau solitário, como ele mesmo comentou, exilado e submetido à uma situação ve-
xatória. Reflito que, com ele, naquele fatídico dia que foi preso, aprisionou-se também muito de nossa
autonomia, de nossa posição isenta frente a cenários que essa Universidade bem conhece. Uma posição
de respeito institucional que ele tanto prezava, mas tenho minhas dúvidas se ele foi correspondido.
Que fique claro a qualquer cidadão de bem de nossa sociedade que não possuímos aqui qualquer covil qua-
drilheiro ou acobertamento de ilegalidades. Somos servidores docentes e técnico-administrativos, não te-
mos nada além de nosso nome e nossa honra, e não levamos nada além das lembranças de nosso trabalho.
Que ninguém julgue uma pessoa que nada tinha além dos amigos do trabalho e da honra do nome e que,
de um dia para outro, teve jogado na lama anos de uma construção contínua de conduta, personalidade
e trabalho. Logo ele que, lembro bem, em tom solene, convocava sua equipe de gestão informando que
seria um trabalho de 4 anos. Ninguém pensasse em aceitar sem concordar em permanecer esse período.
Quanta ironia. Difícil ainda acreditar. Mas como eu ouvi certa vez, teremos que nos conformar com a pre-
sença da ausência do Cau. Logo ele, que em sua trajetória sempre condenou o estado de exceção e buscou
o direito ao cidadão, o direito ao contraditório e à ampla defesa, e foi o primeiro a ser condenado sem ter
comprovada a culpa.
Compartilho o luto da família, o luto dessa Universidade, o luto de todos os Diretores e daqueles órfãos
do sorriso conciliador de nosso Reitor. Os muitos textos publicados nas redes sociais retratam cada qual
sua experiência com o Cancellier e todos sempre destacam essa linha de cidadão pleno, contemporâneo,
atento e doce.
Quanta honra ter conhecido o professor Cancellier. Quanta honra a UFSC têm em tê-lo como reitor, ainda
que por breve período. Tenho a convicção que seus princípios encontrarão seguimento no projeto agora
herdado pela prof.ª Alacoque, a qual, também acredito, encontrará o apoio necessário das Direções de
Unidade para superarmos esse momento e buscarmos a efetivação de nossas ações.
Respeitando todas as crenças, mas pela fé que professo, espero termos perdido aqui um Reitor, mas lá no
céu termos ganho um intercessor.

186 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

ROSI CORREIA DE ABREU


Representante dos técnico-administrativos da Universidade
Federal de Santa Catarina

Conhecemos o Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo quando se iniciaram os projetos de candidaturas
rumo à Reitoria em meados de 2015. Desde o início, com seu espírito conciliador, parceiro e amável, guiou
aquele grupo como um maestro. Sempre procurou ouvir as demandas de todos, pois queria, como ele
mesmo dizia, “fazer uma administração que trouxesse, de volta, o orgulho e a valorização do servidor”.
Assim que tomou posse, Cancellier passou logo para a ação, discutindo, junto com os servidores, as
questões mais prementes, tais como a flexibilização da jornada de trabalho nos diversos setores da UFSC.
O panorama na UFSC havia se transformado: vivíamos um clima de harmonia e tranquilidade.
As próprias reuniões do Conselho Universitário refletiam isso, pois Cancellier era extremamente hábil na
condução dos trabalhos.
Pouco mais de um ano de gestão, e veio a consternação e o pesar. Primeiro, a prisão no dia 14 de setembro,
e ontem sua morte trágica e precoce.
Esperamos que esta dolorosa partida sirva de reflexão para todos, especialmente àqueles ávidos por ho-
lofotes, que, entorpecidos por ego e vaidade, extrapolam suas funções institucionais. Que sirva também
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Capítulo 3 - O Retorno

de reflexão aos demais, à mídia e às pessoas que divulgam e replicam notícias de maneira errada ou equi-
vocada, com pré-julgamentos, sem a presunção da inocência, destruindo carreiras, reputações e vidas.
É preciso sempre lembrar que, por trás de todo processo, existem vidas humanas. A injustiça sobre os
ombros de uma pessoa inocente é um fardo por demais pesado e muito difícil de ser suportado. O simples
fato de estar sendo processado, por si só, equipara-se a uma verdadeira pena.
Não morre somente o Cancellier, o amigo, o amante de Santa Catarina, mas sobretudo um pedaço da UFSC
e da cidade, uma substância dinâmica da vida do estado, que hoje implora por lideranças, pedindo talentos,
suplicando grandezas e gestos de amor.
Reiteramos hoje, mais uma vez, os nossos sentimentos de solidariedade à família do Cau e a toda a UFSC
enlutada para que possam enfrentar este difícil momento de dor e sofrimento pela irreparável perda.
Cau, teu espírito conciliador jamais será esquecido, e, neste momento, teu projeto para a UFSC faz uma
pequena pausa, mas logo após, com certeza, ele voltará muito mais forte!
Que alcances a paz! Para sempre nosso Magnífico, jamais o esqueceremos!

188 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

GREGORIO JEAN VARVAKIS RADOS


Representante dos Docentes

Inicialmente gostaria de agradecer a todos aqui presentes que, neste momento de luto da nossa UFSC, vêm
prestar seu apoio e solidariedade.
Técnicos da UFSC, nossos alunos, colegas.
Há pouco mais de um ano ingressei neste salão acompanhando a Profª Alacoque no momento da posse
do nosso reitor Profº Cancellier. Cau para os amigos. Hoje aqui, estou repleto de indignação. Indignado
com o que aconteceu com nosso Reitor e com a UFSC, uma universidade pública de qualidade e gratuita.
Com base em uma ação intempestiva e apoiada por uma decisão infundada, nosso Reitor e a UFSC foram
julgados e condenados. Sem o menor direito de defesa. E, como diria Cau, sem o contraditório. Mas com o
tempo, a verdadeira justiça, àquela ensinada nesta escola, há de prevalecer. Mas vamos falar de quem, com
um último ato político, demonstrou sua indignação. Muitos me perguntam o porquê de um ato tão extremo.
Não sei explicar, mas procuro entender! Conheci o Cancellier como uma pessoa do bem, um ser político,
calmo e conciliador, com sonhos e que admirava muito a UFSC.
Ele era professor de direito administrativo. Acreditava na justiça, no sistema, na lei e no direito. Via na UFSC
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Capítulo 3 - O Retorno

como a sua casa, como muitos de nós. Cancellier viu seus paradigmas e seus conceitos vilipendiados.
Destruídos em uma ação inexplicável, segundo seus ideais, a lei e a justiça. Ele foi impedido de entrar na
UFSC, na nossa casa. Uma ação explicada apenas pelo autoritarismo, a prepotência e a arrogância de quem
assim age, com sede de espetáculo midiático. Para quem sempre acreditou e lutou pela justiça, para quem
sempre viveu a UFSC e para ela trouxe, em sua breve gestão, mais tranquilidade, harmonia e agilidade. Esta
violência foi implacável. Cancellier vislumbrou apenas um ato derradeiro na busca por sua honra ultrajada,
por uma ação da justiça que ele tanto admirava, respeitava e, claro, tão bem ensinava. Ao nosso Reitor
Professor Cancellier – Cau, que sua VIDA nos sirva de inspiração para, unidos levarmos aos quatro cantos,
para estes “ouvidos moucos” o quanto a UFSC é nobre e quanta injustiça foi cometida. Fica com Deus!

190 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

NELSON WEDEKIN
Ex-Senador - Representante da família do professor Cancellier

Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, está morto.


Nas estatísticas oficiais a morte de Cau será contada como suicídio. Mas ninguém se iluda. Mãos invisíveis,
muitas mãos invisíveis, o empurraram das alturas, de modo que os seus ossos se quebrassem, o sangue
jorrasse na hemorragia incontrolável, e a vida se extinguisse rapidamente no choque terrível. Instantes
depois do baque surdo, o coração cheio de bondade, de tolerância, de respeito ao próximo, parou de bater.
Que mãos era essas? Mãos de quem talvez saiba o que é vingança, mas sabe pouco do que seja justiça.
Mãos de quem só têm a si mesmo como honesto e virtuoso, senhores do bem e do mal, da reputação de
quem mal conhecem e que não tem curiosidade de conhecer. Mãos de quem, tendo o poder de prender,
ignoram a gravidade do delito suposto, e para quem tanto faz ter o cidadão ficha limpa ou antecedentes cri-
minais. Mãos de quem, sendo ciosos de imagem de suas respectivas instituições, desprezam, entretanto,
a imagem dos demais, como deuses de um alcorão, uma bíblia fundamentalista.
Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e de começar uma investigação pela coerção,
constrangimento e prisão dos suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacida-
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Capítulo 3 - O Retorno

de de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.


Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés de exercê-los com critério, partindo do pres-
suposto inalienável de que o cidadão pode ser culpado, pode ter só parte de culpa, ou nenhuma culpa,
pensando que seu juízo e sua intuição são infalíveis, só têm olhos para as evidências que confirmem as
suas suspeitas.
Mãos de quem, ainda ontem frequentavam os bancos da faculdade, mas para quem a presunção da inocên-
cia – pináculo do estado de Direito, pilar da democracia, conquista da civilização – é um inútil ornamento
da lei.
Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de bondade, de compreensão pelo outro, e
em suas cabeças nenhum raciocínio a respeito da proporção dos seus atos, nenhuma projeção dos seus
efeitos e suas consequências, para o ser humano, a instituição, a comunidade.
Mãos de quem em nada parecem saber a prisão é, em toda circunstância, a não ser nas ditaduras, deson-
rosa. Em nada parecem saber que abate, constrange e humilha, aprisionar, examinar alguém em corpo nu,
vesti-lo em roupa de prisioneiro, e que tudo isso adentra pelo terreno da barbárie, ainda mais quando se faz
sem flagrante, sem a sentença, antes mesmo de ser réu.
Mãos de quem se aproveitam de uma época inglória e insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos
públicos, e que em boa parte, têm espuma e sangue nos lábios, e para quem tudo é joio, e trigo só eles são,
tendo na ponta da língua o chavões da época, de condenação geral aos bandidos de verdade, mas levando
juntos os que passaram perto e os inocentes que têm o azar de atravessar o caminho.
Um pouco de humildade, um pouco de humanidade não lhes faria mal. Não conheço nenhum desses agen-
tes da lei, e não desejo conhecê-los, porque tenho medo deles. Que autoridades são essas que ao invés de
proteger nos causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso
agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade?
Não se passa o país a limpo assim, senhores e senhoras. Sigo de novo o que já escrevi? Os senhores, as
senhoras, estão jogando o bebê fora junto com a água do banho.
Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá,
quando e se pergunta. Uma imprensa que toma como verdadeira, em princípio, a palavra da autoridade, não
media, não contextualizada. De blogueiros, ativistas e pessoas “comuns” que, raivosos, expelem argumen-
tos chulos, pensamentos prontos, clichês preconceituosos, manifestações de atraso e ignorância, e ódio,
muito ódio nas redes sociais. Mãos de quem confunde moral com moralismo de baixo custo, que a todos
rotula, por método, costume e um certo prazer sádico.
Cancellier almoçou lá em casa há menos de uma semana. Com o filho Mokhail, Ricardo Baratieri, Arlete e
Nara Micaela... Ao final, nós estávamos reconfortados. Cancellier nos pareceu lúcido, fazendo um esforço
genuíno para compreender que tinha sido vítima de uma dessas armadilhas do destino, uma coincidência
infeliz. Ele parecia razoavelmente recuperado do golpe sofrido.
Um turbilhão que tudo arrasta, um vendaval que se solta, uma cilada da vida: assim pareceu Cancellier
encarar o seu drama pessoal. Ele aparentava uma calma estranha, uma misteriosa resignação. Quando
soube de sua morte ontem, compreendi imediatamente: ele já havia engendrado o seu destino, fingiu
serenidade, para que ninguém quisesse interromper o plano que já tinha traçado. Alguém já disse que não

192 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

há pior vergonha do que a de não ter feito o que lhe imputam. Muito pior que a desonra, é o sentimento de
quem não merece.
Podem ficar tranquilos todos e cada um dos mais de cem agentes públicos e autoridade do Estado que, de
alguma forma contribuíram para desenlace trágico, dando ou cumprido ordens, assinando as portarias, os
despachos, cumprindo as frias formalidades da “lei”, que este homem singular, Cancellier, que não cultivou
em vida raiva, a mágoa, o ressentimento, também não os levará para a eternidade.
Conduziram ao camburão, abriram as portas do cárcere um homem que não queria mal a ninguém, que
não fazia mal a ninguém. Um homem de coração generoso e aberto, um democrata na teoria e mais ainda
na prática, um homem de diálogo e conciliação, um campeão da harmonia e da paz. Ah, Cancellier, como
você, querido amigo e querido irmão fará falta, ainda mais nessa terra brasileira nunca tão dilacerada pela
dissensão e intolerância, apequenada nos conflitos políticos de uma República abastada, no facilitário do
ódio, na insensatez arrogante de muitas das suas elites.
Como fará falta sua a voz calma e pacificadora, em busca da palavra certa em favor do diálogo e do en-
tendimento, na instituição que você respeitou, protegeu e amou mais do que qualquer outro, a quem você
emprestou o seu talento e capacidade de trabalho, esta Universidade Federal de Santa Catarina, o palco
involuntário de uma tragédia que marcará para sempre e indelevelmente a sua história.
Abraço caloroso, Mikhail, Júlio, Acioly, Cristiane, familiares, amigos. Choremos o passamento de Cau
Cancellier e sigamos o seu exemplo, de uma vida dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e a paz entre os
homens. Descanse Cau em algum lugar, na dimensão possível. E rezemos para que esta tragédia que nos
causa tamanho torpor, tal comoção, que nos fere tão fundo na alma de alguma maneira seja uma lição que
nos afaste da barbárie, nos contagie com um pouco de fraterna humanidade nos dê para enfrentar esta
provação.
Abraço sentido e caloroso, reitora Alacoque, pró-reitores, diretores, servidores e alunos. Universidade, se
bem interpreto o pensamento do amigo e irmão que se foi de forma tão despropositada, é lugar onde se
privilegia o conhecimento e o saber, a extensão e pesquisa. É o lugar dos crentes e dos ateus, dos socia-
listas e dos liberais, da direita e da esquerda, dos negros, indígenas e brancos, dos pobres e dos ricos, das
mulheres e dos homens, dos héteros e dos homossexuais. Aqui se encontram, convivem e aprendem para
a vida e a cidadania, todas as tribos da comunidade nacional e planetária.
Todos os que se acham superiores moralmente, politicamente, esqueçam. Somos todos iguais ou pare-
cidos em defeitos e qualidades. Experimentem, como Cau fazia o tempo todo, calçar de vez em quando as
sandálias da humildade. A Universidade não é lugar apropriado para guerrilha política, para o “nós” contra
“eles”. Aqui podem e até devem se bater as facções, as narrativas históricas, mas ninguém é dono do futuro
e só uma busca possível e legítima: a de uma sociedade próspera, justa, livre e fraterna. Universidade rima
com verdade e liberdade.

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Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

ERNANI BAYER
Ex-reitor 1980-1984
Representante dos Ex-Reitores da Universidade Federal de Santa Catarina.

Minhas amigas e meus amigos,


Amigos fraternos do Cancellier,
É bem difícil dizer alguma coisa neste momento, mas nós não podemos deixar de estar indignados com
toda essa situação que se criou a partir do momento em que foram presos injustamente pessoas que
lutaram e que trabalharam por esta universidade, especialmente o Cancellier. Quando estive na posse
do Cancellier, fiquei extremamente satisfeito quando ele acolheu os estudantes que protestavam e que
subiram a mesa dos trabalhos, mas ele com aquela tranquilidade, retomou o diálogo que passou a existir
depois das eleições, em que ele foi o mais votado. Fiquei satisfeito por ver que a universidade novamente
estava em boas mãos. É muito difícil entender por que a autonomia da universidade não é preservada se
é constitucional, esse princípio da autonomia da universidade que vem sendo defendida pelos reitores
das universidades brasileiras há muito tempo. Das 67 Instituições Federais de Ensino Superior do Brasil,
a UFSC foi atingida por um golpe que nós não esperávamos. Cabe a todos nós não apenas homenageá-lo
hoje, mas homenageá-lo todos os dias com a nossa indignação, com o nosso respeito por aqueles que
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Capítulo 3 - O Retorno

lutaram e que lutam pela Universidade Pública e gratuita. Professores, estudantes, técnicos administrativos
e autoridades, até quando abusarão de nossa paciência?
Queremos neste momento trazer a palavra dos ex-reitores, todos que preservaram a universidade dos ata-
ques, daqueles que não entendem e não compreendem o que é uma universidade. Muito Obrigado.

Em nome da inocência: Justiça | 195


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

EMMANUEL ZAGURY TOURINO


Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior (Andifes) e reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Representante dos reitores das universidades federais.

Bom dia,
Reitora Alacoque,
Senhores e Senhoras Dirigentes da Universidade Federal de Santa Catarina,
Senhores e Senhoras Membros da Comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina,
Eu venho a esta sessão com muita tristeza, representar a ANDIFES, todos os reitores e reitoras das univer-
sidades federais brasileiras, para trazer os nossos sentimentos, a nossa tristeza, a família do Cancellier,
a todos os membros da comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina e a nossa indignação com
o que aconteceu.
Nós tivemos hoje uma tragédia que é fruto da violação dos direitos mais fundamentais de um cidadão.
É fruto do desrespeito a sua biografia, a sua honra, ao processo legal que deveria ter sido respeitado e
pensamos que isto é uma parte de algo muito mais grave que acontece no país hoje. E que nós precisamos
reagir. Temos enfrentado no dia a dia noticias que se repetem sobre a violação dos direitos de cidadãos,
a violação dos diretos das instituições de exercerem a sua autonomia, as instituições universitárias como
196 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 3 - O Retorno

A indignação é o sentimento mais forte que deve nos levar a uma profunda reflexão e, mais do que isso,
a uma ação. A universidade como o lugar do conhecimento, do pensamento crítico, tem um papel fun-
damental a desempenhar no Brasil de hoje, um papel fundamental a cumprir para recolocar este país no
trilho de um processo civilizatório que garanta a dignidade, o respeito e a liberdade de cada cidadão. Nós
entendemos que o que aconteceu aqui, a tragédia que alcançou o professor Cancellier é produto desse país
que nós vivemos hoje e de um processo pelo qual também tem contribuído diversos setores da sociedade
que buscam desqualificar as universidades públicas.
São setores da nossa sociedade que querem desqualificar as instituições e os seus gestores para na
verdade atacar os direitos dos nossos cidadãos a educação pública e gratuita. É isto que estás em jogo.
Não pode a elite deste país admitir que pobres, negros, índios, quilombolas, frequentem as universidades.
Não pode a elite deste país admitir que exista um refugio da liberdade, da crítica e da indignação com
desrespeito aos direitos dos cidadãos a liberdade. A universidade pública é hoje alvo de uma campanha
muito profunda, audaciosa e perversa que pretende suprimir dos nossos cidadãos o direito a oportunidade
da educação superior. Não fosse essa campanha contra um direito constitucional, diga-se de passagem,
dos nossos cidadãos a educação pública e não fosse o estado policial que se instaurou nesse país, nós
estaríamos aqui saudando o professor Cancellier, saudando a sua luta, a sua dedicação, a sua biografia,
a sua contribuição à educação pública no nosso país. Nós todos, reitores e reitoras das Universidades
Públicas Federais decretamos luto oficial de três dias, em todas as universidades. Esse luto coletivo é para
expressar ao mesmo tempo a nossa tristeza, a nossa solidariedade, a nossa coesão e a nossa disposição
de lutar para, defender a universidade pública e defender a honra de todos aqueles que dedicam a sua vida
a causa da educação pública neste país. Obrigado.

Em nome da inocência: Justiça | 197


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

LÉDIO ROSA DE ANDRADE


Desembargador no Tribunal de Justiça - SC

Magnífica Reitora,
Senhor Governador do Estado,
Família UFSC,
Parentes do Cau,
Amigos,
Senhoras e Senhores,
Tentarei num esforço muito grande manter o mínimo de racionalidade, porque confesso que neste mo-
mento o sentimento a emoção me toma, uma tristeza profunda me corrói por dentro, uma raiva forte, uma
indignação maior ainda diz que nós temos que ir a diante, que não podemos parar, porque o momento que
o nosso país passa é grave, é perigoso e precisa de ação.
Accioli, Julinho, que saudade da Rua Santos Drummond, onde morávamos quando criança, onde passa-
mos nossa juventude, onde jogávamos bola na rua e xadrez dentro de casa, tênis de mesa nos dias de
chuva, onde cometemos nossos primeiros crimes, temos que confessar, pois ali furtamos umas goiba-
198 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 3 - O Retorno

das, também rosas para nossas namoradas, todos nós juntos, você era pequeno Julinho, o Accioli um
pouco mais adulto e eu e o Cau da mesma idade. Frequentamos o colégio Deon, brincamos, brigamos,
estudamos. Éramos de família humilde. Só tínhamos nós e nossa capacidade e assim seguimos adiante.
Chegamos a esta universidade como alunos de Direito e enfrentamos a ditadura militar. O Reitor Ernani
administrava tendo que aturar na marra uma sala secreta para os agentes da polícia que nos fotografavam,
que nos espionavam, que podiam nos prender se escutássemos um Chico Buarque ou um Vandré. E que
ironia da história e do destino, porque foi naquele Hall da Reitoria que eu o Cau e tantos outros líderes estu-
dantis, como o Adolfo já falecido, o Jailson Lima que jantamos junto com o Julinho lá em casa essa semana
com o Cau, ali naquele Hall nós fizemos as maiores assembléias do tempo da ditadura milhar e milhares
de alunos sentavam no chão. Nós usávamos a escada como palanque para denunciar a prepotência e para
defender a autonomia e a liberdade da universidade pública e gratuita. 
Nós sabíamos que não estávamos no estado democrático de direito, nós sabíamos que poderíamos ser
presos, nós sabíamos que tivemos colegas e amigos presos, torturados e alguns assassinados, porque
aquele era o regime que nos administrava. Mas não esmorecemos, fizemos a nossa luta e ganhamos
porque acabamos com a ditadura, ela terminou. A vida seguiu, o Cau foi para Brasília acompanhar o com-
batente Senador Wedekin. Voltou e terminou seu curso de direito, fez mestrado, fez doutorado e eu tive a
honra de estar nas duas bancas dele. Discutíamos, conversávamos, estudávamos, pesquisávamos, porque
sempre fomos contra o fundamentalismo, sempre fomos contra os argumentos fáceis, néceis, cheios de
verdade, mas ocos, vazios, fórmulas vazias. Trocamos de lado de estudantes, passamos a professores
desta casa, e como o Cau se orgulhava disso, como ele gostava disso, como ele tinha nisto a sua vida. E da
vida humilde da Rua Santos Dummond, da nossa querida Tubarão, construiu outra vida típica de professor
aqui Florianópolis. Apartamento de professor nem carro tinha, vida de professor, prática de professor e foi
nestas condições que chegou ao seu maior sonho a Reitoria desta Universidade. Claro que todos nós temos
vaidade, todos nós temos um ego e precisamos dele para viver o dia-a-dia. É claro que chegar à Reitor tem
um pouco de ambição de todos que lá chegaram, mas acima de tudo, acima da ambição o Cau tinha vo-
cação, tinha o desejo pelo ensino, tinha vontade de fazer da UFSC o que estava fazendo com a sua equipe,
uma das maiores Universidades deste país. E vejam que coisa senhoras e senhores, a ditadura não nos
prendeu e nós achávamos que tínhamos derrubado, cometemos um erro, porque os ditadores de espíritos
nunca morrem, eles estão sempre aí, estão aqui neste momento alguns deles esperando a hora de voltar,
sempre. Essa luta não acaba e se nós descansarmos eles voltam. Quando se fala em estado democrático
de direito nós estamos falando de muito sangue, de muita guerra, de conquistas feitas com o suor e com
o esforço dos nossos antepassados, quando se fala em ampla defesa, em estado democrático de direito,
em contraditório isso não é brincadeira. Esses néscios que estão por aí dizendo bobagem não sabem o que
é uma ditadura, não sabem que eles serão os primeiros a clamarem por estado de direito daqui a pouco.
E foi dentro destas condições que o Cau se deparou com a mais perfeita ditadura que é ditadura feita em
nome da moral, que é ditadura feita em nome da justiça, que é ditadura feita em nome da democracia. É
claro que um estado democrático de direito precisa de imprensa livre, é claro que um estado democrático
de direito precisa de independência do judiciário, que o estado e os juízes julguem livremente, sem pressão,
só que também é claro que essas instituições absolutamente importantes para a democracia a cada dia,

Em nome da inocência: Justiça | 199


Capítulo 3 - O Retorno

a cada momento são deturpadas. Em nome da liberdade de imprensa se exerce a liberdade de empresa
privada para impor desejos privados a coletividade. Em nome da liberdade de julgar neofascistas humilham,
destroem, matam. Como professor de criminologia eu levei uma vez os meus alunos a penitenciária de
segurança máxima onde o Cau passou uma noite. Confesso que eu tive uma crise de pânico pela opressão
arquitetônica. Não aguentei e sai correndo lá de dentro e eu tava lá por livre e espontânea vontade com
meu alunos. Eu fiquei a pensar e se tivessem tirado minha roupa, e se tivessem feito uma revista íntima, se
tivesse me acorrentado nos pés e nas mãos? Eu morreria lá naquela noite, não sairia de lá vivo e o Cau saiu.
O Cau que sempre lutou com flores na mão contra canhões, que sempre usou a palavra contra a insensatez,
que sempre conversou e que nunca causou mau a ninguém, acabou encontrando a pior das ditaduras lhe
oprimindo, acabou encontrando aquilo que nenhum de nós quer passar. Eu termino falando, o Cau sempre
foi um professor e morreu como um professor nos dando a última lição, a última lição do nosso mestre
foi de que contra a mais absoluta injustiça, que contra o terrorismo de estado só a tragédia pode chamar
atenção de uma população que vive uma histeria coletiva, só a tragédia.
Essa noite com dificuldade de dormir eu fiquei a pensar, quando a humanidade errou e não parou Hitler no
tempo certo. Quando a humanidade errou e não parou Mussoline no tempo certo. Fiquei pensando, eles
estão de volta, será que nós vamos errar de novo e vamos deixar eles tomarem o poder pra nós termos que
trocar as flores por armas e fazer outra guerra para derrubá-los? Será que já não basta? Será que já não
é hora de todos nós nos unirmos e exigirmos consequências, se a família assim quiser, de irmos até às
últimas consequências pedindo que seja apurado esses atos de arbitrariedade? Já não é hora de dizer um
para? Bertolt Brecht já nos disse, “já estão levando não só os vizinhos, já estão levando nossos amigos
próximos e vão nos levar”, a vida é isso companheiros, é luta permanente e a democracia não permite
descanso.
Eu hoje como professor da UFSC sou uma pessoa que tenho orgulho e alegria, como desembargador tenho
vergonha. Porcos e homens se confundem, fascistas e democratas usam as mesmas togas, eles estão de
volta, temos que pará-los vamos derruba-los novamente. 
Obrigado!

200 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

ROGÉRIO CID BASTOS


Decano dos professores da Universidade Federal de Santa Catarina

Bom dia,
Professora Alacoque, reitora da nossa universidade,
Professor Almilton Presidente do Conselho de Curadores da nossa universidade,
Sr. Juliano Cidral, Secretário dos conselhos,
Sua Excelência Governador do Estado Eduardo Pinho Moreira,
Senhores Ex-reitores da nossa Universidade,
Senhores Reitores, Reitor Turino, Reitor Gioro e demais reitores aqui presentes,
Família Cancellier,
Colegas Pró reitores,
Membros do Conselho Universitário,
Uma menção aqueles que ainda estão culpados sem culpa formada,
Talvez eu me repita ou repita muitas coisas que foram ditas aqui, mas eu gostaria de dizer que eu as vejo
com uma forma diferente. Foi dito aqui que o Cancellier foi o escolhido da comunidade numa disputa com
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Capítulo 3 - O Retorno

cinco candidaturas. O que eu queria dizer é que eu era uma das cinco. Eu e o professor Claudio Amândio
éramos uma das cinco e a primeira palavra que o professor Cancellier falou para o professor Claudio Amân-
dio e para mim foi Claudio e Rogério, vamos olhar o futuro. Eu queria dizer para vocês, junto com meus
colegas, momentos terríveis, momentos onde a imprensa e segmentos da sociedade quiseram imputar
a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade Brasileira, a pecha de que nós não queremos
controle, isso é uma inverdade, eu mostro o porquê.
Na composição dessa mesa, nós temos o presidente do mais importante órgão de controle interno da nos-
sa universidade que é presidente do conselho de curadores. Também temos nessa mesa o representante
máximo daquele que é o nosso maior controle, a sociedade brasileira, a sociedade catarinense, nós temos
o nosso governador aqui, ou seja, a universidade não tem medo de controle, o que a universidade precisa, o
que a universidade exige, é que suas instituições, ela própria e seus dirigentes máximos sejam respeitados
como tal. Eu trouxe aqui pra falar com vocês pensamento de dois cientistas e filósofos, e não foram por
acaso, eu pensei com certo cuidado, um deles Voltaire. E por que eu pensei em Voltarie? Por que Voltarie
viveu em 1600, quando a inquisição ameaçava a ciência, quando a inquisição fazia vítimas independente de
processo de julgamentos, ou pior, criava os julgamentos que queria, mas também por outra característica,
por que Voltarie acabou exilado por suas atitudes e por suas ideias. Voltarie era defensor incansável do
direito a tolerância e do dever de ouvir a todos. Voltarie disse uma vez “O maior infortúnio do homem letrado
não é quiçá o fato de ser vítima das intrigas, a inveja de seus colegas e o de se ver desprezados por homens
poderosos, senão de ser julgado pelos néscios”. Einstein, entre as várias frases que procurei, tem uma que
diz: “O homem erudito é descobridor de fatos que já existem, mas o homem sábio é um criador de valores
que não existem e que ele faz existir”. Esses dois personagens da história me desenham a personalidade
e como nós víamos o Cancellier, conciliador, pacifista, calmo, aberto ao diálogo, quem não crê nesses
valores jamais será capaz de entender a importância desse reitor.
Quem acredita que a inveja e a mesquinharia são os apanágios do mundo, quem vê apenas um lado, jamais
poderá compreendê-lo. Ele nos ensinou que criar uma universidade é olhar para frente, é entender o valor
das coisas, o cuidado com a coisa pública, o compromisso com o bem público, nos ensinou sobre o res-
peito, não sobre a discórdia. Ele nos reensinou a importância para o país da justiça social, do bem estar,
do desenvolvimento, da inovação, do respeito a diversidade. Nos reensinou que o país nunca mais poderá
esquecer o valor de uma instituição chamada Universidade, a qual defendeu até e com a morte. Professora
Alacoque em nome dos pró-reitores que fazem parte deste conselho, eu solicito que a senhora considere
uma alteração no trajeto do féretro e que nós passamos pela Beira Mar Norte e em silêncio possamos
mostrar a nossa indignação. Vá em paz Amigo.

202 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

EDUARDO PINHO MOREIRA


Governador do Estado de Santa Catarina em Exercício

Santa Catarina e o Brasil enfrentam desde ontem sentimentos que se misturam inicialmente de perple-
xidade pelo acontecido, eu me encontrava em reunião com o Prefeito Gean Loureiro quando recebemos
essa terrível informação, e fizemos naquele momento alguns minutos de reflexão para avaliar o que tinha
acontecido. A partir da perplexidade nós vivemos um sentimento de sofrimento que não terminou ainda e
que vai se prolongar por muito tempo, mas agora aflora, cada vez mais o sentimento de indignação, quanta
injustiça foi cometida contra um homem de bem.
Como governador em exercício eu podia fazer decretar luto oficial no Estado de Santa Catarina eu o fiz, tra-
zer a bandeira do estado de Santa Catarina para coloca-la sobre o caixão deste catarinense ilustre, e nesse
ato representando 7 milhões de catarinenses que se associam a família enlutada, aos seus colegas da uni-
versidade federal, aos seus amigos e aos seus seguidores por conhecer a história de Luiz Carlos Cancellier.
Ele não foi constituinte, não foi eleito, mas eu me recordo que quando cheguei em Brasília para exercer o
meu primeiro mandato, ainda inexperiente na atividade política, era o Cao, o Luiz Carlos Cancellier quem
participava das reuniões com a bancada do estado de Santa Catarina com informações, fruto da sua histó-
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Capítulo 3 - O Retorno

ria de lutas a favor da democracia e da volta das liberdades. E a nossa constituição avançou nesse quesito,
e o Cao foi fruto, o Cao sofreu o fruto exatamente dessa liberdade excessiva dos órgãos fiscalizadores
que se apoderaram de decisões que interferem na vida de todos nós todos os dias, e como são cidadãos,
são seres humanos, eles cometem muitas injustiças e a do Cao talvez tenha sido a maior que nós temos
conhecimento. A maior autoridade de jurídica do governo de Santa Catarina é o procurador Geral do Estado
e a nota que ele divulgou ontem passa a ser a nota do governo do Estado de Santa Catarina. E eu vou lê-la:
“O Procurador Geral do Estado, leia-se o Governo do Estado de Santa Catarina, vem a público manifestar
profundo pesar pelo falecimento do Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, Magnífico Reitor da Universi-
dade Federal de Santa Catarina, bem como solidarizar-se com seus familiares e amigos.
A morte de Cancellier enluta Santa Catarina pela perda de um de seus filhos mais ilustres, um homem
digno, de poucas posses, que devotou os últimos anos de sua rica trajetória profissional à nobre causa do
ensino, da pesquisa e da extensão universitária.
A tragédia de sua partida ocorre sob condições revoltantes. As informações disponíveis indicam que Cao
padeceu sob o abuso de autoridade, seja em relação ao decreto de prisão temporária contra si expedido,
seja em relação à imposição de afastamento do exercício do mandato, causas eficientes do dano psicoló-
gico que o levaram a tirar a própria vida.
Por isso, respeitado o devido processo legal, é indispensável a apuração das responsabilidades civis,
criminais e administrativas das autoridades policiais e judiciárias envolvidas.
Que o legado do Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo seja, em meio a tantos outros bens que nos
deixou, também o de ter exposto ao país a perversidade de um sistema de justiça criminal sedento de luz
e fama, especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o falso pretexto de garantir a eficácia
de suas investigações.
Governo do Estado de Santa Catarina.”

204 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 3 - O Retorno

Fotos Henrique Almeida Agecom UFSC

ÁUREO MAFRA DE MORAES


Chefe de Gabinete da Universidade Federal de Santa Catarina
Representante do Colegiado da Gestão

Senhora Presidente Professora Alacoque Lorenzine Herdmann, nossa Reitora em Exercício,


Senhoras Conselheiras,
Senhores Conselheiros,
Senhor Presidente do Conselho de Curadores,
Juliana, nossa secretária dos Órgãos Colegiados Centrais,
Excelentíssimo Senhor Governador em exercício do Estado de Santa Catarina,
Comunidade de docentes, técnicos e estudantes, familiares, amigos e autoridades,
Inicio esta breve mensagem agradecendo aos meus colegas de colegiado pela honra com que me brindam
para poder falar em nome de todos ao lado do colega Rogério Cid Bastos, que muito bem situa o que
representamos nós gestores ou aprendizes de gestores que compõe esta administração, é resultado de
uma consulta a esta comunidade que num segundo turno aproxima, agrega e fortalece uma equipe, isto
já é um pouco do Cancellier. Sou grato a este conselho reunido solenemente aqui, por permitir que hoje,
todos que rendemos tributo ao nosso reitor possamos ter assento ao lado de cada um senhores e senhoras
Em nome da inocência: Justiça | 205
Capítulo 3 - O Retorno

neste egrégio colegiado. Este é um valor muito caro que o professor Cancellier desde o início fez questão
de preservar. A sacralidade em torno deste conselho, o respeito a este conselho como órgão máximo de
deliberação da nossa instituição. Não por acaso eu não visto as vestes dos conselheiros, por que a este
conselho não pertenço mais, já pertenci, e respeitosamente Senhora Presidente agradeço a referência de
poder participar desta sessão. Importante também e simbólico a nós todos é a presença aqui ao meu lado
de um conjunto de interpretes de libras, que representam não apenas um segundo idioma, que alguns de
nós falam nesta instituição, mas expressam a pluralidade que ela representa, a diversidade que ela acolhe,
o perfil novo e diferente de uma instituição com apenas 57 anos de idade, e aqui tem mais um tanto de
Cancellier. Um reitor que ano passado fez questão de tratar como tema da campanha do vestibular e como
ilustração do calendário desta instituição distribuído aos milhares, fotos de cada um dos rostos e cada uma
das faces desta instituição e ele dizia onde fosse: “aqui tem diversidade”.
Talvez, eu não consiga corresponder a fluência dos que me antecedem e muito menos atender a honra que
me atribuem os colegas do colegiado, talvez a minha presença se deva muito mais aos 30 anos de convívio
com Luiz Cancellier, com alguns intervalos, que me levam após o processo de eleição e de toda transição,
a ser convidado por ele pra uma função de muita ação executiva no gabinete, no sentido de que talvez ele
tenha enxergado em nós todos, em mim particular, alguém capaz de contribuir com sua gestão. Me lembro
que depois da eleição e no processo de transição, em várias das visitas que ele fez para agradecer toda a
comunidade pela confiança depositada, no colégio de aplicação um colega me pergunta: E você Aureo o
que vai ser na gestão do Cancellier? E eu respondi: Eu quero ser útil, todo mais não me interessa. Então
como eu ouço, como nós ouvimos, um determinado personagem dizer que foi perseguido porque reduzi-
ram seu salário, bom, eu não estou aqui pelo que eu ganho, eu estou aqui pelo que eu contribuo a 24 nesta
instituição.
Senhora Alacoque, colegas, amigos, eu até poderia concentrar as minhas palavras nesse sentimento já
expressado anteriormente, de profunda indignação e revolta que nos assola a todos a pelo menos 20
dias, desde os primeiros episódios em torno disso tudo, confesso para vocês que todos nós vivemos com
isso, que foi uma indignação contida, nós não expressávamos a nossa indignação, porque, para que ela
não fosse interpretada como uma afronta as outras instituições, nós mediamos cada palavra em cada
nota emita pela Universidade, e queríamos deixar claro que acreditávamos na justiça e nas instituições do
Estado, mas a indignação nos sufocava. A revolta também entre todos nós foi abafada, abafada porque se
expressássemos demais essa revolta tínhamos o temor de que as mesmas denúncias sem fundamento,
as acusações levianas e os falsos testemunhos levassem os nossos amigos, os nossos colegas de novo
a privação da sua liberdade, a humilhação e ao linchamento midiático. Algumas coisas precisam ser ditas
aqui, talvez muitos de vocês não tenham a menor ideia, desde a nossa reitora em exercício até cada um
de nós membros desta gestão, desde o dia 14 ou 13 de setembro nenhum de nós pôde falar com o reitor,
eu não pude dar um abraço no meu amigo de 30 anos, porque nós temíamos que a menor aproximação
pudesse refletir em prejuízo pra todos eles, nada supera a dor de agora, nos despedimos de um amigo tão
importante para cada um nós, mas nós viemos convivendo com essa dor da ausência dele a pelo menos
uns 20 dias, não está sendo fácil para nenhum de nós. Mas eu não vou me concentrar neste tipo de coisa,
em nome da memória do nosso amigo Luiz Carlos Cancellier de Olivo, eu vou reservar essa amargura e a

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Capítulo 3 - O Retorno

atribuição de culpa a quem a carrega na própria consciência. Talvez agora vocês que sabem com quem eu
estou falando, percebam o que o exagero das medidas e a ausência do respeito foram capazes de produzir
e deixo uma pergunta: A quem interessou este tempo todo destruir a pessoa do Reitor Luiz Cancellier?
A quem interessava tentar construir a farsa de uma gestão sem controle, de apontamentos resultantes
de relatórios de CGU que nem mencionavam períodos do reitor Cancellier? Vamos ver se agente acha as
respostas. Mas eu vou em verdade me ocupar em buscar nas minhas limitações tentar pensar como pen-
saria o nosso reitor. Ele provavelmente diria no momento como esse: Calma! Paciência, vamos conversar.
Parece que eu estou ouvindo ele dizer isso, e foi alias o que ele fez a vida toda, já mencionada por todos
os outros que me antecederam, e mais recentemente como reitor, esse cara exercitou insistentemente
a tolerância. Ele recebia a todos com a mesma humildade, também aqui já mencionada, com a mesma
simplicidade, com a mesma capacidade de ouvir e quero me lembrar de uma homenagem prestada ontem
aqui pelos estudantes indígenas, olha a diversidade ai, desta instituição. Além de lembrarem que ele foi o
único reitor a visita-los na sua aldeia, fizeram questão de dizer que a mãe UFSC as acolheu, mas que agora
eles ficaram órfão do pai. Era um exercício do reconhecimento da pluralidade da instituição, que não tava
no discurso, tava na prática, ou como ele mesmo escreveu no ultimo texto que publicou: “sempre exerci
minhas atividades tendo como princípio a mediação e a resolução de conflitos com respeito ao outro,
levando a empatia ao limite extremo da compreensão”. Trucidado, atormentado, invadido em sua honra e
sua alma, optou pelo gesto mais terminal que lhe o restou, os detratores já dirão e estão dizendo que foi
uma confissão de culpa, os que optam por esta rasa justificativa não sabem nada de Luiz Carlos Cancellier
de Olivo, não o conhecem, não se ocupam de conhecê-lo. Vir de onde ele veio, Desembargador Lédio recu-
perou aqui, Senador Wedekin também. Percorrer os caminhos que ele percorreu, chegar onde ele chegou
senhoras e senhores, não é pra qualquer um não. O seu gesto meus amigos é na essência o que ele sempre
praticou, um ato político. Quantos de nós conseguiremos interpreta-lo adequadamente, quantos entre nós
saberemos o verdadeiro sentido da decisão que ele tomou, eu temo, mas espero que sejamos muitos, temo
que sejamos poucos, mas torço para que sejamos muitos a alcança-lo nesse derradeiro sinal. E quero
ainda falar do legado de Luiz Carlos Cancellier, expresso no caráter dos seus irmãos, Accioli e Júnior, na
força do seu filho Micail, dos amigos todos que o acompanham e nos atos que ele praticou ao longo da
vida, entre nós gente que com ele conviveu 30 anos, 10 anos ou 3 anos, 2 anos e meio, enfim, fica essa
postura reta, honesta, intransigente na defesa do diálogo, um agregador que de novo provavelmente diria:
“Fiquem juntos, tratem-se com respeito, olhem para frente e sigam unidos”. Olha Doutor Luiz, era assim
que eu me dirigia a ele no gabinete, ele voltava e dizia: Fala meu chefe. Olha Doutor Luiz, é assim que esta-
mos hoje, doídos, machucados e estraçalhados, mas unidos em torno de você. Este teu jeito simples nos
contagiou, fortaleceu em nós a disposição pra seguir com seus projetos e ajudar a realizar os seus sonhos.
Sua liderança continuará nos guiando, seus valores continuaram nos orientando e como eu costumava lhe
dizer, nos momentos de mais diversão no gabinete, era muito divertido trabalhar com ele, apesar de cobrar
muito, sempre que partia dele uma determinação, pedido, alguma orientação, eu me voltava e dizia: A sua
disposição Chefe. Ou simplesmente: Sim senhor, senhor.
Obrigado.

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208 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

Capítulo 4

Sessão Solene do Congresso Nacional em homenagem póstuma a


Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).

O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em nome da inocência: Justiça | 209


Capítulo 4 - O Reconhecimento

ROBERTO REQUIÃO
Senador PMDB-PR

Tempos difíceis e estranhos nós vivemos.


Sinal dos tempos, Presidente!
Talvez fosse pedagógico, ou mesmo um exercício indispensável, que se estudasse a ascensão do fascismo
na Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, e o fenômeno do macarthismo, nos Estados Unidos. Se assim o
fizéssemos, dispararíamos todas as sirenes de alerta para avisar essa Pátria tão distraída que o monstro
vem aí.
Um traço distintivo, característico da escalada fascista é o abuso de poder, a exorbitância, os excessos
da autoridade. As ações imoderadas e arbitrárias são essenciais para que se imponha a ordem fascista.
Ações que causem constrangimentos, espalhem o medo, acuem, humilhem, difamem. A polícia e órgãos
vinculados à operação da Justiça são imprescindíveis para isso, assim como a colaboração dos meios de
comunicação, amigos e simpáticos à causa.
Os pretextos para que se esgarcem ao limite os trâmites legais e tencionem ao máximo a ordem democráti-
ca alternam-se ao sabor das conveniências. Ora é o perigo comunista; depois, a dissolução dos costumes;
210 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

mais adiante, a corrupção; em seguida, a anarquia econômica; e assim por diante.


No fundo, na essência, sempre o mesmo propósito: a salvaguarda e a manutenção do sistema. Este, suas
mazelas, sua entranhada e incorrigível desumanidade, não vem ao caso, não se contesta. Enfim, confirma-
-se mais uma vez: fascismo e capitalismo não se opõem, completam-se.
Mas é claro, o abuso de poder, os excessos da autoridade não são erupções repentinas, surpreendentes,
que surgem do nada. Essas manifestações exigem um longo cultivo, cuidadosa maturação e, como a his-
tória ensina, exigem principalmente a omissão, o silêncio e a conivência dos democratas, dos humanistas,
das mulheres e dos homens de bem – omissão, silêncio e conivência que levam a tragédias como a morte
do reitor Luiz Carlos Cancellier.
O caso do professor Cancellier é um exemplo clássico, pronto e acabado, de abuso de poder. Um exemplo
também completo da impunidade das autoridades arbitrárias e despóticas. Prisão sem justificativa firme,
plausível e feita sob os holofotes da Globo, da CBN; acusações vagas, suposições e todo o ritual de humi-
lhação a que são submetidos os presos, culpados ou inocentes. De um lado, a covardia extrema, sadismo,
maldade, cinismo, baixeza e a vilania praticada em seu grau mais elevado. De outro, angústia, desespero,
desamparo e aquele sentimento de injustiça, de iniquidade, que nada aplaca, alivia ou consola.
Não há como se livrar da mancha de ter sido preso neste Brasil dos abusos da Lava Jato e de operações
inquisitoriais assemelhadas. “Se foi preso é porque deve ter alguma coisa. Se foi preso mereceu”, diz a
voz dos tolos. Como alguns dos presos são realmente bandidos, todos os presos são bandidos. Esse é o
silogismo medíocre, ginasiano, concurseiro, dessa nova rapaziada que invade as instituições brasileiras
pela via do concurso público.
Eliminou-se a presunção de inocência. A Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário transformam-se
na espada santa do Senhor, nos anjos da Justiça, infalíveis e incontestáveis. Se os fatos, se a verdade dos
fatos os contrariam, azar. E vamos parar com essa pusilanimidade de chamar isso de “ativismo judicial”.
Ativismo judicial é a santa progenitora desses causídicos bobalhões! É ativismo político desbragado, des-
lavado, desavergonhado! É militância política pura e simples!
Ativismo judicial.... Ora, que imbecis! Querem enganar a quem?
Não conheci pessoalmente o Reitor Luiz Carlos Cancellier. Não estou aqui santificando-o, canonizando-o.
Dizem que a Universidade Federal de Santa Catarina vivia uma situação complicada, até anárquica, quando
ele assumiu a reitoria, eleito por ampla e incontestável maioria. Dizem que ele tendia à conciliação. Dizem,
apenas dizem. Mas nunca ninguém disse que ele era desonesto, corrupto, parceiro de bandidos, protetor
de bandidos.
Talvez, procurando bem, descobríssemos mais defeitos em Cancellier. Talvez ele fosse, como todos nós,
em determinadas circunstâncias, passível de censuras. Quem sabe? Mas daí a atirá-lo no lodaçal das
suspeitas, equiparando-o, pelo tratamento a ele concedido, a esses notórios bandidos dessa República de
meliantes? Não.
Imaginem só, comparar o Cancellier... Bem, não preciso citar nomes ou fazer desfilar a conhecida nomen-
clatura toda. Pois é, os canalhas ousaram fazer isso com o Reitor Cancellier. Canalhas!
Evidentemente, não vou aqui fazer a óbvia exigência de que apresentassem provas contra Cancellier. Nos
dias de hoje, acusar e apresentar provas é um luxo. Por que provas, se os rapazes têm convicção, se os

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Capítulo 4 - O Reconhecimento

rapazes das instituições têm convicção? Por que provas, se o Jornal Nacional, a GloboNews, a CBN, RBS
e os jornalões já sentenciaram? Por que provas? William Bonner, voz solene e empostada, repete Sérgio
Chapelin e Cid Moreira dos anos da ditadura e também lê diariamente os boletins das execuções sumárias.
Desagravo-o, Luiz Carlos Cancellier, não como santo ou herói. Desagravo-o como mais um brasileiro,
como tantos milhares de compatriotas que, todos os dias, são humilhados pela falta de justiça; pelo de-
semprego; pelo assalto às nossas riquezas e quebra de nossa soberania; pela monstruosa concentração
de renda, que faz seis brasileiros terem a mesmas posses que 100 milhões de brasileiros; pela usura, pelo
rentismo que sacrifica o País, suas empresas e o seu povo no matadouro do capital financeiro.
Desagravo-o, Reitor Cancellier, porque, enquanto o perseguem, o expõem e o enxovalham, a corrupção, a
grande e asquerosa corrupção da escravização dos trabalhadores; a corrupção do corte de gastos públicos
na saúde, na educação, na segurança pública, na geração de empregos, na habitação e no saneamento; a
corrupção da entrega do pré-sal e dos minérios; a corrupção da privatização da energia elétrica e da venda
de terras para os estrangeiros; a corrupção abominável do racismo, que faz com que mais de 70% dos
brasileiros sejam vítimas de violência e sejam pretos, pardos e mulatos; a corrupção de uma Justiça lenta,
insensível e parcial; essa corrupção que corrói e destrói o País, essa corrupção, no entanto, para eles não
vem ao caso.
Mas supostos desvios na Universidade Federal de Santa Catarina, isso sim vem ao caso – não é, Srª Dele-
gada da Polícia Federal e notável atriz “lavajatina”?
Não é senhores juízes e senhores promotores, mais justiceiros e executores do que qualquer coisa. Não é,
senhoras e senhores que nada mais são que contrafacções, pastiches dos verdadeiros e sérios operadores
do Direito e da Justiça.
São força-tarefa ou são esquadrões da morte?
As marcas da maldade ficaram impressas em Cancellier, em seu espírito, em sua alma atormentada, em
seu coração estraçalhado. E o estigma foi lavado com sangue.
Senhoras e senhores, hoje, exatamente hoje, 31 de outubro, há 500 anos, a humanidade conheceu um dos
mais portentosos, sublimes e poderosos gritos contra o abuso de autoridade. No dia 31 de outubro de 1517,
em Wittenberg, Alemanha, Martinho Lutero expõe suas 95 teses, denunciando a que extremos chegara o
abuso de poder da cúpula dirigente da nossa Igreja Católica.
O protesto de Lutero vibra, faz tremer a face da Terra e desperta o homem para uma nova relação com
a religião, com Deus, com a Igreja. O poder discricionário, e seus implacáveis caçadores de heréticos e
rebeldes, sofre um abalo, um abalo para todo o sempre.
Protestemos! Mais que isso, rebelemo-nos, insurjamo-nos! Vamos às ruas, ocupemos as escolas, faça-
mos greve, ocupemos fábricas, bancos, escritórios, estaleiros, refinarias e vamos colocar abaixo o entre-
guismo escravagista, corrupto e inepto.
É o meu grito, é o meu desagravo ao Reitor Carlos Cancellier.
Obrigado, senhores e senhoras.

212 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

ARLINDO CHINAGLIA
Deputado PT-SP

Sr. Presidente, João Alberto Souza; Senador Roberto Requião, que agora assume a Presidência dos traba-
lhos; ex-Senador Nelson Wedekin; Desembargador Lédio Rosa de Andrade, enfim, senhores e senhoras,
nesta homenagem póstuma ao Sr. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ex-Reitor da Universidade Federal de
Santa Catarina, dirijo-me inicialmente aos familiares e amigos aqui presentes para manifestar, em primeiro
lugar, nossos sentimentos, nossa solidariedade, mas também a nossa indignação.
Ninguém, rigorosamente ninguém pode ficar indiferente quando alguém, com uma trajetória tão marcante,
respeitado pelos amigos e colegas de trabalho, tenha um fim de vida tão dramático como teve o Reitor
Cancellier. De resto nos sensibilizaria a mesma situação em qualquer ser humano.
Ninguém pode ficar indiferente quando, quatro dias antes do seu suicídio, o Reitor Cancellier publica artigo
no jornal O Globo citando, aspas, “a humilhação e vexame a que fomos submetidos”, referindo-se a ele e
aos seus colegas da Universidade Federal de Santa Catarina. Na sequência do artigo, fala que ficou surpre-
so, depois diz que perplexo e amedrontado. E, aqui, registre-se – eu também não conheci o ex-Reitor: todas
as referências que li, todos os testemunhos que pude colher, e na minha opinião nessa altura, justamente
Em nome da inocência: Justiça | 213
Capítulo 4 - O Reconhecimento

o caracterizavam como um lutador de coragem.


E nesse artigo ele faz acusação. Ele acusa: uma investigação interna que não nos ouviu; um processo ba-
seado em depoimentos que não permitiu o contraditório e ampla defesa; informações insuficientes à Polícia
Federal; a sonegação de informações fundamentais ao entendimento daquilo que se passava, e a atribuição
a uma gestão de pouco mais de um ano de fatos ocorridos em gestão anterior.
E afirma no mesmo artigo: “Não adotamos nenhuma atitude para abafar a investigação.”
Portanto, isso compõe um quadro que levou a um isolamento, agravado por circunstâncias evidentemente
de caráter também pessoal, e o desfecho não é só lamentável, ele era evitável.
A partir dessa circunstância, nós estamos homenageando-o numa cerimônia que nós não queríamos que
acontecesse.
Portanto, a única saída decente que nós temos, individual e coletivamente, é não só apoiar, mas é incen-
tivar todas as iniciativas para esclarecer os fatos, para apurar responsabilidades, defendendo o Estado
democrático de direito.
Aqui faço referência ao belo pronunciamento do Senador Requião, que aprofundou e deu as tintas neces-
sárias para dar o caráter de urgência, e aqui faço também um parêntese para cumprimentar muitos da
comunidade jurídica do Estado de Santa Catarina, dos seus familiares que, de maneira corajosa, já fizeram
denúncias e, na minha opinião, até pelas circunstâncias do mundo da política, com certeza, com maior
repercussão daquilo que nós aqui no Parlamento podemos falar.
Aqui eu quero entrar naquilo que é óbvio: todos nós sabemos que há erros em todas as instituições do
Planeta, sem exceção, mesmo naquelas onde se acerta muito. Portanto, a pior atitude que podemos ter é,
de forma passiva ou, pior, arrogante, ignorar os erros e as injustiças.
A humilhação e vergonha mencionadas pelo ex-Reitor Cancellier e seu triste e dramático bilhete, onde afir-
ma que a morte dele foi decretada no dia em que ele foi afastado da universidade; o seu suicídio na sequên-
cia; e até o impedimento de um padre – o Padre William Barbosa Vianna – de prestar assistência espiritual
ao, então, Reitor – mas que sociedade é essa que nós estamos construindo? É melhor dizer: que sociedade
é esta que nós estamos tolerando? –; o desrespeito à dignidade humana, que, neste caso, atingiu e ultra-
passou todos os limites do razoável, impõem definitivamente aquilo que deve ser uma atitude continuada,
preservada e aperfeiçoada de todas as autoridades que lidam com o ser humano, com o cidadão.
Todo o cuidado é pouco, porque é fácil mandar prender, é fácil executar a prisão, mas passa a não ser nada
fácil se alguém tiver a mínima decência de se colocar no lugar daquele que pode ser um inocente – aqui eu
abro parênteses, perdoem-me –, é fácil ter sensibilidade quando qualquer um é atingido.
Eu vou dar um exemplo para ninguém utilizar de má-fé contra esta sessão. Eu vou falar do caso de procu-
radores estaduais do Rio Grande do Sul. Três deles chegaram ao absurdo de estarem processando pais de
jovens que morreram no incêndio da Boate Kiss. Um deles porque apresentou um cartaz dizendo que havia
provas de que não podia funcionar aquela boate. Agora, imaginem, pais e mães, dilacerados pela dor, ques-
tionarem o Ministério Público daquele Estado, e dois ou três promotores não terem a mínima sensibilidade.
Eu estou dando um exemplo fora do caso, de propósito. É exatamente porque nós não queremos ter a
mesma atitude com aqueles que investigaram, como eles tiveram com o Reitor e outros. Terão direito a
uma investigação séria, a uma investigação responsável, a começar pelo corregedor daquela universidade,

214 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

que, aliás, se uma mínima parte do que eu li através de reportagem do Jornalistas Livres for verdadeiro, eu
quero dizer que não consigo entender como é que ele consegue continuar corregedor daquela universidade.
Portanto, há que se apurar responsabilidades, a começar pela do corregedor. Todos devem explicações.
Primeiro, para o bem da sociedade, também servirá de homenagem ao ex-Reitor Cancellier, mas também
para o bem das instituições. Elas não podem ser genericamente responsabilizadas pelos erros, omissões
e até crimes que um ou outro, seu mau representante, possa cometer.
Agora, é preciso ter presente que nem tampouco podem encobrir erros ou abusos. E eu quero citar uma
frase emblemática, que já foi mencionada pelo Senador João Alberto, mas ela, de fato, é emblemática, que
diz o que o Reitor em vida, numa entrevista: “Sem o direito, prevalece a força, a barbárie.”
E concluo: ninguém, mas rigorosamente ninguém está acima da lei. Nós estamos aqui, portanto, para
clamar por justiça.

Em nome da inocência: Justiça | 215


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

NELSON WEDEKIN
Senador no período de 1987 a 1995

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Deputados; demais autoridades presentes neste evento,
faço uma saudação muito especial e particular não só aos amigos, mas aos familiares: ao Acioli, que aqui
está presente; à Cris. E quero mencionar também o Mikhail, que não está presente, o filho do Cancellier; e
o Júlio, irmão, que também não está presente.
Queria também cumprimentar, com muito calor humano e vigor, a iniciativa do Deputado Arlindo Chinaglia
e do Senador Roberto Requião.
O Cancellier foi, durante um bom par de anos, funcionário da Câmara dos Deputados e funcionário deste
Senado durante a Constituinte. E foi, indiscutivelmente, um funcionário de altíssima qualidade intelectual,
lisura de procedimento, honestidade pessoal. Enfim, o Cancellier teve uma passagem marcante, não ape-
nas no meu gabinete quando eu era Senador, mas nesta Casa. De modo que, por todas as formas, esta
homenagem póstuma se justifica e tem um enorme valor. Não seria desejável que eventos tão dramáticos
passassem despercebidos de uma Casa que tem a importância do Congresso Nacional.
A morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi um acontecimento trágico, infausto, mas não só. Se houvesse
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Capítulo 4 - O Reconhecimento

uma só autoridade do Estado a refletir, por breves momentos, naquela situação, uma só autoridade com
olhar na lei, na proporção que precisa haver entre o seu ato e as suas consequências, se assim fosse,
Cancellier estaria entre nós, feliz e realizado, como estava na vida, dedicando o melhor do seu talento e da
sua inteligência, de sua capacidade de trabalho, de sua vocação para o diálogo e o entendimento, prestando
serviços em favor da universidade e do País. Como bem disse o Deputado Chinaglia, a tragédia teria sido
evitada.
Tudo está claro hoje. Os fatos que estavam sendo investigados não eram nenhum escândalo. Não havia fla-
grante. Não havia malas de dinheiro. Não havia licitações fraudadas nem obras superfaturadas. Não havia
nota fiscal fria nem dinheiro de caixa dois. Não estavam em investigação financiamentos do BNDES a juros
negativos nem prejuízos biliardários aos fundos de pensão.
Tudo parece bem mais próximo – e mesmo isso ainda está para ser demonstrado – de um conjunto de
irregularidades, precariedade de controles, prejuízos possíveis que, calculados na ponta do lápis, talvez
tenham alcançado a cifra de R$350 ou R$400 mil, isso em um programa que movimentou R$80 milhões
desde o seu início em 2006.
O detalhe de que os eventos investigados eram anteriores à posse de Cancellier não pareceu relevante às
autoridades da Operação Ouvidos Moucos. Também de nada valeu que Cancellier não tivesse antecedentes
criminais. Cancellier era um homem de ficha limpa. Nos 59 anos que viveu, ele foi preso uma única vez, no
raiar daquele dia de setembro de 2017. Dormiu uma única noite na cadeia. E dali saiu para morrer 18 dias
depois, consumido na voragem daquela terrível sucessão de acontecimentos.
Cancellier foi preso, e os policiais que o acordaram de madrugada não souberam explicar as razões da pri-
são. Tentou rever na memória o que poderia ser, enquanto era conduzido de camburão ao prédio da Polícia
Federal, mas não passou nem perto.
Os policiais, o Ministério Público Federal e a juíza poderiam ter tomado uma providência simples: mandar
verificar onde morava o Reitor. E veriam, então, que ele morava num apartamento modesto, de três quartos,
quase todos lotados de livros, num prédio modesto de quatro andares. Saberiam que ele não tinha carro. E
poderiam ter feito o raciocínio elementar: esse homem não tem e não tinha o perfil de delinquente.
Também poderiam ter grampeado os seus telefones. Talvez o tenham feito.
Como sabe esta Casa, no Brasil de hoje é incalculável o número de telefones grampeados. Seriam, dizem
alguns, 250 mil ou 450 mil. Ninguém sabe. Mas, se gravaram, não havia nada que comprometesse o Reitor.
Senão, teriam divulgado, da mesma maneira que foi irresponsavelmente divulgada a cifra de R$80 milhões
como o valor de desvio, quando esse era o valor total de todo o programa investigado desde 2006.
Aquelas autoridades, por dever de ofício, deveriam medir a extensão, a gravidade dos fatos investigados,
face ao gigantismo da operação que montaram, a Ouvidos Moucos. Foram mobilizados, só da Polícia
Federal, 105 agentes policiais, muitos deles vindos de outros Estados da Federação. Vieram agentes do
longínquo Estado do Maranhão, e sabe-se lá mais de onde. Não é demasiado afirmar que a operação custou
mais aos combalidos cofres públicos brasileiros do que o prejuízo investigado.
Aquelas autoridades imprudentes, desmesuradas, ao que parece, não cogitaram de abrir uma investigação
normal, regular, compatível com a dimensão do episódio. Isto é, abrir o procedimento, ouvir o Reitor, os
outros seis presos, os demais envolvidos e, no correr do processo, verificar se havia dolo e culpa, quem

Em nome da inocência: Justiça | 217


Capítulo 4 - O Reconhecimento

eram os responsáveis, se de forma total ou em parte, e quem possivelmente não tinha nenhuma culpa.
Se seguissem a alternativa comum, teriam obtido os mesmos (e até melhores) resultados com o uso co-
medido, discreto de cinco ou seis agentes da PF. Não teriam gasto uma pequena fortuna em passagens,
diárias, refeições. Não teriam de importar reforços de outros Estados. Ninguém parou para pensar. Segui-
ram apenas os próprios impulsos voluntariosos.
Agiram sob a influência de um corregedor buliçoso, ansioso de protagonismo, tomado de excesso de zelo.
Não havia entre os investigados nenhum condenado, indiciado. Todos eram ficha limpa. Nenhum deles
poderia ser chamado de “elemento”, como se costuma chamar no meio policial. Nenhum deles reagiu,
nenhum deles era perigoso. Todos trabalhavam na universidade. Todos tinham endereço certo e conhecido.
Antes de levá-los às barras do tribunal, o que seria até razoável, levaram-nos às barras da penitenciária.
No Brasil são assassinados por ano 60 mil pessoas, 60 mil concidadãos. Em apenas 8% a 12%, dependen-
do das estatísticas desses assassinatos, se conhece a autoria. Então, devem existir nas ruas das cidades
brasileiras e nos grotões do País milhares de assassinos à solta. Nenhuma autoridade teve a ideia de fazer
uma operação que reunisse, digamos, cem policiais para encontrá-los, botar atrás das grades, quem sabe
uma, duas centenas deles. E, se não tanto, ao menos sete, para se equiparar à Operação Ouvidos Moucos.
O programa do Fies já acumula 55% de inadimplência. Fraudes históricas no auxílio-doença, no seguro-
-desemprego, no seguro-defeso vêm sendo praticadas há anos, como denunciam sistematicamente os
organismos de controle. São milhões, bilhões de prejuízos causados aos cofres públicos. Vez por outra,
em longos intervalos, se monta uma operação especial para barrar a pilhagem, conter os abusos, punir os
responsáveis. Nenhuma dessas mini operações chegou perto do aparato da operação Ouvidos Moucos. Ao
que saiba, ninguém foi preso e ninguém está preso.
Mas lá no meu Estado de Santa Catarina montaram uma operação estrepitosa para elucidar o possível
desvio de alguns milhares de reais, cuja única consequência visível foi a de atirar na lama a reputação de
um homem de bem, homem do diálogo e da conciliação, fazendo-o sucumbir na ignomínia.
Era um caso vulgar, ainda restrito ao âmbito administrativo. Um caso que talvez, quem sabe, possivelmente
em hipótese, poderia ter causado algum prejuízo ao dinheiro público. Um caso de obstrução à Justiça,
embora a matéria ainda estivesse em instância administrativa.
Terá sido a primeira vez em que uma suposta interferência no âmbito administrativo se transformou, do
nada, em delito, em crime. E terá sido também a primeira vez que, por tão pouco, se põe na cadeia um
homem comum e, mais ainda, um professor, mestre, doutor e reitor de uma Universidade.
As autoridades responsáveis pela sequência trágica de erros ouviram, a rigor, duas pessoas para montar a
expedição punitiva: o corregedor da universidade e uma única professora. Ao que se sabe, não cogitaram
de um procedimento comum: da hipótese elementar de ouvir antes as explicações do Reitor e dos demais.
Fizeram uma ligação direta com a operação cinematográfica, com pompa e circunstância, atirando-os às
feras da opinião pública, das milícias raivosas das redes sociais, dos justiceiros de plantão.
Expuseram-no à cobertura acrítica da imprensa, que deixou passar barato e acatou quase pressurosa, sem
contestar, a versão pífia das autoridades. Os meios de comunicação, ou partes deles, que com justa razão
se batem pelo princípio da liberdade de imprensa, neste caso como em tantos outros, acabaram por usá-la
como porta-voz de autoridades do Estado.

218 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Em vez de produzir provas, produziram mais uma operação de nome pomposo e manchetes sensacionalis-
tas na mídia. Em vez de fazer justiça, causaram dano irreparável a um homem, levando-o ao desespero, à
pior das vergonhas, que é a vergonha pelo que não fez.
O combate à corrupção não é, decididamente, um projeto de salvação nacional. Que a corrupção é uma
chaga moral que precisa ser combatida, reduzida e, se possível, banida, todos os cidadãos de bem devem
estar de acordo. Mas ela não pode presidir todas as preocupações nacionais, como se fosse o único pro-
blema do País, acima de todos os demais.
Em tal contexto, tecnoburocratas endurecem as medidas de controle, ouvidores e corregedores e técnicos
dos órgãos de controle vasculham repartições de Estado em busca de malfeitos, ameaçando com as nor-
mas e regulamentos que só eles conhecem e só eles interpretam – e interpretam a seu gosto, causando
pânico em chefes e subordinados.
Agentes policiais e procuradores do Ministério Público, tomados de espírito messiânico, na ânsia pro-
tagonista, preferem operações midiáticas, em vez da busca metódica e paciente das provas, em vez de
procedimentos discretos de um processo normal. Processo normal é aquele que, se for o caso, não co-
meça pela prisão dos supostos culpados, mas termina com a prisão de culpados verdadeiros, definitivos
e sentenciados.
Juízes, magistrados, pressionados por policiais afoitos e procuradores apressados e ansiosos por mostrar
serviço, e eles mesmos influenciados pelo clima punitivo geral, admitem de plano, sem maior exame,
grampos telefônicos, quebra de sigilos bancário e fiscal, prisões temporárias e outras medidas extremas
que devem ser tomadas só em caso justificável, com razão muito pertinente, em um Estado democrático
de direito.
As manifestações públicas de entidades de delegados, procuradores do Ministério Público e juízes são
altamente reveladoras e preocupantes: todas essas manifestações apoiaram a Operação Ouvidos Moucos,
todas as associações. Nenhuma delas viu erro, excesso ou abuso.
Se perguntarem se nós estamos em um Estado policial, e se fosse para responder com a régua rigorosa
dessas autoridades de linha dura, de sanha punitiva, e que em tudo enxergam um malfeito, um roubo, então
deveria se responder que sim: já estamos num Estado policial. O que não permite tal resposta de pronto é,
talvez, a esperança de que existam, em igual número e talvez até em maioria, delegados, procuradores do
MP e juízes que trabalham com discrição e comedimento, fazem bom uso de suas prerrogativas e cumprem
com exação e equilíbrio as suas funções. Eu mesmo, devo dizer, conheço vários deles.
O fato é que o clima, o estado de espírito que domina amplos setores dessas corporações, predispõe ao
abuso, ao exagero, à demasia e à exorbitância. E se estamos vivendo uma escalada é porque tais abusos,
tais extrapolações, quando acontecem, fica tudo por isso mesmo. A impunidade pelo erro, pelo abuso de
autoridades, é a impunidade dos novos tempos, pois, no Brasil – e isso é bom e positivo –, não se pode
mais falar de impunidade dos ricos e poderosos, tão numerosos são os que foram presos, os que estão
presos e os que estão para ainda ser.
A sanha punitiva de agentes do Estado, o atropelo de normas elementares da investigação, o conteúdo
draconiano das regulações e das exigências de controle, para além de produzir eventos desastrosos como
o de Florianópolis e da UFSC, de outro modo, consomem as melhores energias da atividade do Estado.

Em nome da inocência: Justiça | 219


Capítulo 4 - O Reconhecimento

E tanto mais obsessivamente se criam normas labirínticas e complexas, maior é a necessidade de contro-
les, novos e sofisticados controles, de tal sorte que – e isso é antigo e é clássico, mas nunca chegou ao
ponto em que está – as atividades meio consomem cada vez mais recursos financeiros, distanciando o
ente estatal da consecução dos seus fins e objetivos. Os meios vão se imiscuindo nos fins, se confundido
com eles, paralisando tudo.
Eis aí uma equação essencial e pouco lembrada da indesmentível ineficiência do Estado brasileiro.
Os tentáculos do Estado, de muito tempo, alcançam a sociedade civil, as empresas privadas, compondo
o opressivo custo Brasil, embaraçando e asfixiando a produção dos bens e da riqueza, desestimulando as
atividades econômicas. Agora, autofágicos, implacáveis e irrefreáveis, se espalham perigosamente nos
entes estatais.
Esse clima punitivo, opressor, repressor, policialesco é o germe do totalitarismo.
O Prof. Cancellier foi um exemplo de vida, dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os homens.
A morte autoinfligida foi um gesto desesperado de inocência, um ato político de coragem, um grito de alerta
contra a força bruta e a injustiça.
O mínimo que podemos fazer é tirar dos episódios trágicos de Florianópolis os ensinamentos certos. O
Senado, o Congresso Nacional, é um lugar ideal para refletir sobre os fatos, alinhar iniciativas de reação e
resistência, levantar a voz em defesa do Estado democrático de direito e das liberdades civis ameaçadas.
Que o exemplo de vida de Cancellier, alma cidadã e sal da terra, nos dê força e coragem. Façamos agora
enquanto é tempo.

220 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

LÉDIO ROSA DE ANDRADE


Desembargador no Tribunal de Justiça - SC

Em nome de V. Exª Senador Requião saúdo as autoridades presentes e o público em geral. Gostaria de
fazer uma saudação mais afetiva, mais carinhosa aos familiares do Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que, a
partir de agora – permita-me, Sr. Presidente –, chamarei de Cao, como era chamado por todos os amigos
queridos e pelo público em geral, mesmo pelos não amigos.
Para mim é uma honra muito grande estar aqui falando da tribuna do Senado da nossa República. E essa
honra ultrapassa a minha vaidade pessoal, porque é a honra de um cidadão que acredita na República como
a melhor forma de organização política do Estado e de um cidadão que acredita na democracia como a
melhor forma de vida social.
E essas crenças, Sr. Presidente, exigem materialização na vida cotidiana da nossa sociedade. E a mate-
rialização da democracia e de uma república se dá com respeito às leis gerais, com respeito ao Estado
democrático de direito, e não com a aplicação de “a lei sou eu”.
Persiste a honra de estar aqui, mesmo em uma sessão solene deste tipo, na qual a dor, o sofrimento

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Capítulo 4 - O Reconhecimento

suplantam outros sentimentos. E tenho certeza de que esta sessão em homenagem ao Cao se estende a
todas as vítimas brasileiras que já sucumbiram, de alguma forma, ao arbítrio e ao exercício ilegal do poder
do Estado.
Por isso, gostaria de falar rapidamente de quem era o Cao, não do currículo que já foi lido, mas, sim, da-
quele menino de saúde frágil que eu conheci, aos 9 anos de idade, na Rua Santos Dumont, na cidade de
Tubarão. Mesmo correndo contra a natureza, ele sobreviveu. Menino que ficou jovem e estudou em colégio
público, com quem tive a oportunidade de estudar por alguns anos. Brincávamos, como todos os jovens.
O Cao, desde aquela época... na nossa cidade de Tubarão, havia uma cultura de que homem tinha que
brigar, para mostrar que era homem. E o Cao sempre buscava fugir dessas lutas, apesar de que, quando
chegou ao extremo do extremo, em que alguém tentou humilhá-lo, ele lutou fisicamente, contra as suas
convicções pessoais. Eu estava lá. Vi a luta, do lado dele, e não me meti, porque ele disse: “Essa questão
eu tenho que resolver por mim”.
Esse jovem passou no vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina, muito difícil na época – era
praticamente a única opção que tínhamos –, e ali começou o curso de Direito, na ditadura militar.
E o Cao, desde novinho, enfrentou a ditadura militar, sabendo dos riscos que isso significava. Houve ami-
gos que sumiram e foram fortemente torturados no nosso Estado.
Seguiu a carreira política e assessorou o combativo Senador Wedekin por vários anos. Voltou para o nosso
Estado e, então, fez a carreira acadêmica. Tive muita honra de participar de duas bancas dele – de mestra-
do e de doutorado –, porque nós gostávamos de discutir e conversar sobre temas sérios.
Fez concurso para a Federal e, ali, começou a galgar a sua carreira, até chegar a reitor. Não sabia o Cao
que o esforço dele, que todas as noites maldormidas, lendo, para passar nos concursos; não sabia ele que
os passos difíceis que ele deu até chegar ao topo do seu sonho de carreira, que era ser reitor, serviriam de
alimento para que as aves de rapina o destruíssem. Ele nunca imaginou isso.
Ele fazia, com a maior inocência, o seu cotidiano, o seu trabalho. E o que ocorreu em Santa Catarina? E
lamento, Sr. Presidente, ter que relatar um processo macabro, porque, em respeito ao público, eu preferia
não fazê-lo, mas há horas em que têm que ser ditas as coisas, cruas e nuas.
Em Santa Catarina, professores e um funcionário tiveram a sua liberdade cerceada. Uns com condução
coercitiva. Pois bem. Vamos à lei. O Código de Processo Penal é claro: o réu intimado, se não comparecer
ou dificultar o comparecimento, poderá o juiz decretar a sua condução coercitiva.
No caso de Santa Catarina, o interrogatório foi marcado às escondidas. Os réus não sabiam que havia
interrogatório marcado, não sabiam que havia processo. A coerção na condução foi decretada sem que os
réus soubessem. Ela foi decretada em um computador privado, de uma magistrada, de um processo de
segredo de justiça. Portanto, só ela ou pessoas de confiança dela sabiam. Os réus não sabiam de nada. A
imprensa sabia. Quem comunicou, se era um despacho privado?
Quando eu dou uma decisão privada, como Desembargador, a responsabilidade é minha de mantê-la pri-
vada, quando se trata de segredo de justiça. Se vazou, a culpa é minha.
Quem comunicou a polícia? Não se sabe, não se sabe. A primeira notícia que os conduzidos tiveram foram
os canos das armas pesadas da Polícia Federal, e ali foram conduzidos. Além da condução, houve a de-
cretação da prisão provisória.

222 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

A lei é específica: pode, sim, um juiz prender excepcionalmente uma pessoa nessa fase do inquérito poli-
cial, mas a lei dá os requisitos, que são três. O primeiro: que seja imprescindível – essa é a palavra. Segun-
do: que não tenha endereço certo ou dificulte o conhecimento – o Cao morava ao lado da universidade,
todo mundo conhecia. E o terceiro requisito: a lei dá uma série de crimes graves – quando se praticam
desses crimes – e ainda fala “que haja indícios fortes de autoria”. Aí o juiz pode, excepcionalmente, decretar
a prisão.
O que aconteceu em Santa Catarina para todos, e não só para o Cao? Eram réus de crimes, principalmente
o Cao, que, se hipoteticamente fossem condenados, não os levariam à prisão, ao final de um processo com
ampla defesa e contraditório. Isso foi o que aconteceu em Santa Catarina.
Daí, eu me pergunto, Srs. Deputados e Senadores, para que serve o Parlamento? Se o Parlamento faz uma
lei clara... Alguém aqui tem dúvida do que significa réu intimado? Alguém aqui tem dúvida do que significa
imprescindível? Não, ninguém tem dúvida. Não se trata de interpretação. Aqui é ataque à lei, frontalmente,
de má-fé ou de forma culposa. É o que nós chamamos, nos meios jurídicos, de “error in procedendo”, é
erro no procedimento. Tem que se investigar se foi por má-fé ou se foi por falta de conhecimento. Eu ia dizer
uma palavra mais forte, mas troquei: falta de conhecimento.
Então, do que adianta? O Parlamento está aqui, faz as leis, e depois qualquer pessoa resolve não usá-las,
afrontá-las. Isso aconteceu em Santa Catarina.
E não é só isso, senhores e senhoras. O ritual macabro: os seis professores e o nosso reitor foram algema-
dos. Ele foi algemado nos braços e acorrentado nas pernas. Foi levado para a penitenciária do Estado de
Santa Catarina. Até hoje o nosso Estado não abriu, pelo menos não se sabe – nenhum procedimento para
apurar isso, porque os funcionários do Estado de Santa Catarina não obedecem ordem da Polícia Federal.
Eles não têm esse poder hierárquico.
Lá na penitenciária, tiraram a roupa de todos e os deixaram nus por quase duas horas, na frente dos outros
presidiários, expostos, para que recebessem piadinhas sobre o tamanho do pênis e coisas desse tipo. Fize-
ram revista íntima no pênis e no ânus do Cao. E ele foi preso de madrugada, às seis da manhã, em casa, e
ficou à disposição da Polícia o dia todo. O que ele iria esconder no ânus, eu me pergunto?
Senhores, há uma súmula vinculante – que eu tenho certeza de que a magistratura fez lobby aqui para não
aprová-la, porque iria tolher os juízes, iria acabar com liberdade dos juízes –, a Súmula Vinculante nº 11,
do Supremo Tribunal Federal, que diz que não pode algemar, salvo se o réu oferecer perigo ou resistência.
Meu Deus do céu! Esse professor tem algum perigo? O que eles iram fazer? Avançar em cem policiais ar-
mados até os dentes? Aliás, que vieram aqui do Norte, de avião, com diária, provavelmente com um gasto
enorme de dinheiro público. Para quê? Pegar cem pessoas daqui para lá. Se qualquer policial pedisse, seria
muito bem recebido lá na UFSC, nós serviríamos cafezinho, eles iriam olhar o que quisessem.
E eu pergunto: para que serve o Supremo Tribunal Federal, se faz súmula vinculante, e ninguém dá bola?
Para que servem as nossas instituições republicanas, se há gente que simplesmente usa de “a lei sou eu,
faço o que quero e se acabou. Danem-se os outros”? Essa é a nossa realidade.
Mas eu hoje, aqui – pode parecer paradoxal –, gostaria de fazer a defesa da magistratura, a defesa do
Ministério Público e a defesa da Polícia. Quero fazer a defesa dessas instituições, porque eu sou professor
da Academia Judicial. Nos últimos oito anos, dou aula para todos os juízes que entram na magistratura.

Em nome da inocência: Justiça | 223


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Recentemente fui convidado e dei aula em Roraima. Então, toda essa juventude são meus alunos na cadeira
de Ética.
E posso asseverar que a grande maioria desses jovens são jovens bem intencionados, que querem traba-
lhar dentro do marco do Estado democrático de direito. Claro que a magistratura, por formação, é mais
conservadora, mas ser conservador não é crime.
O que está acontecendo, senhoras e senhores, é que uma parte da magistratura, uma parte do Ministério
Público e uma parte da Polícia ativa estão pervertendo o Estado democrático de direito, abusando do poder
e afrontando lei expressa, clara. E não se trata de interpretação; trata-se de má intenção ou de falta de
conhecimento. Isso é o que está acontecendo.
E o que entristece é que a grande maioria dessas instituições – ou pelo menos boa parte delas – não con-
cordam com isso, mas estão caladas. Esse é um grande problema.
E outro problema – este sim me entristece, no fundo do coração –: trata-se das posturas das associações
de classes. A Associação dos Magistrados Brasileiros, as associações dos Ministérios Públicos e as asso-
ciações judiciais deveriam ter a coragem de vir para o debate democrático e ajudar a separar o que é juiz
bom do que é juiz fascista; ajudar a separar o Ministério Público que quer, realmente, fazer a sua função
de defender o Estado daqueles que querem se promover à custa dos corpos e da história dos outros. E
deveria ajudar a associação dos policiais a ver quem é policial dentro daquilo que a lei prevê como suas
funções e quem usa a arma para abusar, amedrontar e assustar a população indefesa. Essas associações
estão se postando num corporativismo baixo, estão se colocando acima da sociedade e estão jogando a
democracia no lixo.
Elas venham para cá debater! Sentem aqui e digam por que são a favor de abuso claro de poder. E não
fiquem dizendo que qualquer crítica a uma parte da magistratura é um ataque à democracia.
Essa democracia eu não quero. Se isso for democracia, vou ter que lutar por outra coisa, porque o que
estudei de democracia é outra coisa.
Talvez, Sr. Presidente, tenhamos que fazer uma Quarta Emenda aqui, no Brasil, como foi feito nos Estados
Unidos. Já que os Estados Unidos influenciam tanto a magistratura brasileira, vamos fazer uma Quarta
Emenda.
E eu termino, dizendo que, de fato, a lei é para todos. De fato e prioritariamente, a lei tem que ser seguida
pelos agentes do Estado. E, dentro dos agentes do Estado, mais prioritário ainda: a lei tem que ser seguida
por aqueles que manipulam a violência legítima do Estado – nós, juízes, Ministério Público e polícia –,
porque, quando nós, que temos dado pelo Estado e regulado pelo Parlamento o poder de usar a violência
monopolizada do Estado, legitimamente; quando nós desobedecemos às regras e impomos o nosso desejo
pessoal; quando nós achamos que somos os únicos portadores da ética, que estamos acima do bem e
do mal, nós estamos tirando a legitimidade da violência do Estado e estamos colocando, no seu lugar, o
terrorismo de Estado. E é contra isso que temos que lutar.
E tenho certeza de que grande parte da magistratura, do Ministério Público e da polícia me aplaudiriam
neste momento, porque eles não querem um terrorismo de Estado.
Portanto, que a lei seja para todos, e que nós, ainda na conversa, consigamos parar essa onda de prática
fascista que lamentavelmente vem crescendo em nosso País.
Obrigado.
224 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

DÉCIO LIMA
Deputado PT-SC

Prezado Senador Roberto Requião, que preside esta sessão solene; prezado Deputado Arlindo Chinaglia,
aqui representando o sistema bicameral, a Câmara e o Senado, nesta sessão solene conjunta, da Câmara
e do Senado Federal, querido amigo Juiz Desembargador Lédio Rosa; nosso ex-Senador Senador Nelson
Wedekin; eu queria cumprimentar os familiares, em nome, me permitam, de seu irmão, o Acioli Olivo, ex-
tensivo a sua ex-esposa, sobrinha e familiares presentes; quero também cumprimentar o Estado de Santa
Catarina, aqui representado em grande número, e o faço na pessoa do Presidente da Câmara da cidade de
Natal, do nosso Magnífico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aqui presente, o Presidente da Câmara,
Felippe Luiz Collaço.
Eu queria, neste momento, Senador Requião, dizer que V. Exª, como de estilo, dá uma grande oportunidade
a nós, o povo brasileiro.
Eu não posso imaginar que esta sessão solene póstuma a esta expressão da Academia Brasileira, de uma
das melhores universidades do Brasil, se limite à tragédia do seu acontecimento. Eu não posso, ao mesmo
tempo, imaginar que este acontecimento seja um erro do Estado, um caso isolado, uma situação singular
Em nome da inocência: Justiça | 225
Capítulo 4 - O Reconhecimento

de erros de procedimentos, como aqui detalhados e anunciados por todos aqueles que ocuparam a tribuna
deste Senado Federal.
Eu acho inclusive, Dr. Lédio Rosa, que a maior perversidade nessa tragédia seria nós, os catarinenses,
os brasileiros, os defensores da democracia nos resignarmos, não tirarmos desse acontecimento que, na
verdade, é uma síntese do conjunto de momentos que o Brasil, infelizmente, está sendo palco, para que
nós, na nossa pluralidade de pensamento, na nossa absolvição da democracia como um valor universal,
não venhamos a transformar essa figura eminente do Magnífico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo num
marco regulatório para a construção de uma sociedade justa, fraterna e efetivamente democrática.
Senador Requião, V. Exa. trouxe a esta Casa o relatório da Lei de Abuso de Autoridade, que está lá na
Câmara dos Deputados. Nós temos que, a partir desse momento, expressar a nossa indignação, portanto,
em um ativismo resolutivo, para que possamos estagnar essa onda que está tomando conta da sociedade
brasileira.
Eu, sinceramente, acredito na democracia. Mas ela precisa, neste momento em que estamos vivendo o
maior período da vida democrática do nosso País, produzir um processo de lapidação urgente, sob pena
de estarmos vivendo os momentos cruéis que a humanidade já atravessou em muitos acontecimentos que
nos deixam envergonhados na condição de humanos.
Portanto, eu não imagino que nós possamos sair daqui sem a condução de um processo que possa, além
de chamar o debate do Brasil e da sociedade, efetivamente fazer uma produção eloquente, para que a gente
ponha, de vez, uma barreira nesse impulso que se agigantou no nosso País, de uma onda extremamente
conservadora, de uma onda que dominou e contaminou a sociedade brasileira, não só as instituições
envolvidas nesse episódio, e que tomou conta, infelizmente, dos corações abandonados, principalmente,
da juventude, que não vivenciou a crueldade, como muitos de nós aqui vivenciamos, os momentos de
obscurantismo de que o Brasil, infelizmente, foi palco.
Portanto, eu tenho certeza de que os familiares também aqui têm essa simbologia.
Esta sessão solene não é apenas uma sessão póstuma. Nós não podemos nos render a este momento, a
esta construção, infelizmente, de hegemonia autoritária, fascista, cruel, promovida.
E eu quero torcar os sinônimos das palavras que o Requião tem usado, não de canalhas, mas de crápulas,
que querem substituir o povo brasileiro pelo mercado, fazendo com que a dignidade humana e os valores
democráticos sejam também sucumbidos, com a grande maioria do povo brasileiro.
Portanto, eu tenho certeza que a memória desta personagem que nos honra – o povo de Santa Catarina,
que eu tive a oportunidade de conhecê-lo apenas uma vez e disse ao seu irmão, antes de chegar a esta
sessão solene, quando ele me procurava no gabinete para tratar de uma agenda da Universidade Federal
de Santa Catarina. Quando entrei na minha sala, olhei para aquela personagem e ainda disse aos meus
companheiros colaboradores do meu gabinete: onde está o magnífico Reitor? Ali estava a expressão da-
quele catarinense humilde, reservado, silencioso, mas que deixa para nós um exemplo de vida, para que
nós possamos nos indignar, na certeza de que ele é a síntese de vários acontecimentos e episódios que,
infelizmente, no Brasil estão tendo curso. Acontecimentos que estão nas periferias, na pobreza, na miséria,
no massacre ao gênero das mulheres, na discriminação à pluralidade da vida, na discriminação aos índios,
aos negros... Por isso Cancellier escancarou e abriu a Universidade de Santa Catarina, para que ela efeti-

226 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

vamente pudesse ser plural.


Essa tragédia simboliza a agressão aos valores que nós construímos aqui, na Constituição Federal: da
autonomia da universidade, do Estado de direito e de todas essas conquistas de que a grande maioria do
nosso povo, da nossa gente, tem orgulho.
Portanto, eu espero que esta sessão não fique apagada na memória do povo brasileiro. Que ela possa
ser uma sessão que estabeleça um marco nas nossas vidas, independentemente das nossas diferenças
partidárias. E que ela possa promover uma construção de lapidação nos valores da democracia e de defesa
intransigente do Estado de direito e da democracia.
Portanto, Cancellier: PRESENTE!

Em nome da inocência: Justiça | 227


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

ESPERIDIÃO AMIN
Deputado PP-SC

Desejo saudar todas as autoridades aqui presentes na pessoa do Senador Roberto Requião, cumprimen-
tando o Deputado Arlindo Chinaglia pela iniciativa que de certa forma supre uma carência que todos nós
sentimos até aqui.
No começo da noite do dia 2 de outubro, eu fui socorrido pela Deputada Maria do Rosário, que me mostrou
o texto da nota que o Procurador-Geral do Estado, aqui presente, Dr. João dos Passos Martins Neto, tinha
emitido alguns minutos antes, e eu não tinha lido. Aquele texto ainda hoje me mostra como se pode ser
conciso, contundente e verdadeiro na dosagem certa do sentimento que a partir da dor, da solidariedade,
se pode construir.
E antes de repetir o texto, eu vou dizer que o nosso primeiro sentimento é de solidariedade com os familia-
res aqui presentes, e fazer o pedido de permissão para que este caso, esta tragédia não deixe de produzir
efeitos e resultados.
O que disse a Deputada Maria do Rosário naquele momento, ao me passar o texto, cujos dois últimos
parágrafos eu vou ler de novo, pode ser complementado com uma informação que me prestou há pouco,
228 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

informando que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, da qual eu não faço parte, porque estou
cumprindo um período sabático, de retirada, já aprovou a convocação do Diretor-Geral da Polícia Federal,
da Procuradora-Geral da República e de representante do CNJ, para prestar esclarecimentos sobre aqueles
episódios que foram aqui muito eloquentemente resumidos pelo ilustre Desembargador Lédio, que aliás
eu acho que deveria ser convidado também, porque o Desembargador Lédio nos deu um grande socorro.
Antes de fazer novas leis, vamos cobrar as que existem. E elas existem, como foi muito bem reproduzido
aqui. E vamos cobrar – e aí eu me socorro novamente do Dr. João dos Passos Martins, de acordo com os
exatos termos que ele colocou: “por isso, respeitado o devido processo legal” – e não desrespeitando o
processo legal –, “é indispensável a apuração de responsabilidades civis, criminais e administrativas das
autoridades policiais e judiciárias envolvidas.”
Isto foi escrito no dia 2 de outubro. A meu ver é irretocável e inesquecível. Inesquecível!
Que o legado do Prof. Luiz Carlos Cancellier de Olivo seja, em meio a tantos outros bens que nos deixou,
também o de ter exposto ao País a perversidade de um sistema de justiça criminal sedento de luz e fama,
especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o falso pretexto de garantir a eficácia de suas
investigações.
Não há o que acrescentar. O que não se pode é esquecer. Sem ódio, sem espírito de vindita, para não
replicar defeitos, é preciso que se promova a apuração e se dê à outra parte o que, conforme o Dr. Lédio
demonstrou, foi negado, tanto ao Cao quanto aos demais que estão agora padecendo também.
Eu não posso deixar esconder, Dr. Requião, a minha preocupação com o que pode acontecer com os que lá
estão, à mercê dos métodos que foram aqui expostos, até porque seria humano que para resgatar a justeza
do seu procedimento, como já proclamaram os sindicatos, se queira incriminar os vivos para no mínimo
obter alguma indulgência sobre eventuais excessos. Ou não é humano isto?
Finalmente, quero registrar que, além da solidariedade e dos resultados que devemos consequente e per-
sistentemente buscar, quero fazer duas colocações a mais. Quero antecipar ao nosso Reitor pro tempo-
re – eu, que sou professor da Universidade Federal de Santa Catarina desde 1975, e que consegui concluir
o curso de Direito já faz tempo, em 1970 – que participei com Cancellier, na virada do primeiro para o
segundo semestre, de um evento muito importante para a minha vida, que foi o momento em que ele com-
partilhou a gratidão do nosso curso de Ciências Jurídicas, entre a minha pessoa e a do representante do
ex-Senador Luiz Henrique da Silveira, e foi um grande momento, pessoalmente, para mim.
Eu, que como professor, como aluno, devo à universidade, quero dizer que vamos fazer um grande esforço
junto ao coordenador do nosso fórum. E tenho certeza de que o João Paulo Kleinübing vai aceder ao nosso
apelo para fazermos uma visita a V. Mag.ª, ainda que pro tempore, para que essa nossa solidariedade seja
institucional também.
Concluo dizendo que sempre tive pavor de promover alguma espécie de humilhação ou assistir a alguma
humilhação determinada por autoridade. Basta lembrar as humilhações a que foi submetido Jesus, as hu-
milhações que os regimes totalitários impuseram no Brasil, na Itália, na Alemanha e na Rússia, que podem
ser resumidas naquela frase verberada no livro O Homem que amava os cachorros, quando ele diz que o
que o totalitário quer não é te derrotar.
Não se limite a derrotar o seu inimigo. Cubra-o de excrementos, para que a humilhação seja absoluta, para

Em nome da inocência: Justiça | 229


Capítulo 4 - O Reconhecimento

que até os seus amigos se envergonhem dele.


E nós não podemos, por esquecimento, por falta de persistência, deixar de buscar, respeitado o Estado
democrático de direito, o equilíbrio, que, evidentemente, neste caso não houve.
Muito obrigado.

230 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

DÁRIO BERGER
Senador PMDB-SC

Presidente, eu quero, inicialmente, saudar o Senador Roberto Requião e, preliminarmente, cumprimentá-lo


pela iniciativa, uma vez que foi o subscritor principal para a realização desta homenagem ao Magnífico Rei-
tor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Quero ainda mencionar que estamos diante de uma das vozes mais altas
do Senado Federal e que só isso já demonstra a importância e a relevância que este momento representa
para todos nós. Quero ainda homenagear o Deputado Federal Arlindo Chinaglia. Quero homenagear o nos-
so Senador Nelson Wedekin, catarinense, brilhante e que honrou substancialmente esta Casa Legislativa.
Quero homenagear aqui o Desembargador Lédio Rosa de Andrade, um Desembargador socialmente justo,
equilibrado e que honra a Magistratura de Santa Catarina. Quero ainda homenagear os representantes da
OAB e da CNBB. Quero ainda homenagear o Senador Dalirio Beber e a Senadora Ideli Salvatti, que também
passou por esta Casa e teve uma destacada atuação. Em nome da Bancada catarinense, me permitam
homenagear o Deputado Colatto, o Deputado Ronaldo Benedet, o Deputado Mauro Mariani, a Deputada
Carmen Zanotto, o Deputado Jorginho Mello, o Deputado Décio Lima, o Deputado Esperidião Amin, o De-
putado Boeira e o Deputado Pedro Uczai, que lotam este plenário do Senado Federal. Quero homenagear
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Capítulo 4 - O Reconhecimento

os demais Parlamentares.
Por fim, quero prestar homenagem à família, especialmente ao filho, Mikhail, ao Acioli e ao Júlio, que são
irmãos. Em nome deles, presto as minhas justas e legítimas homenagens aos demais familiares e amigos.
Pois muito bem, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, demais Parlamentares, há momento em que as
palavras não são suficientemente capazes de expressar os fatos que vivemos e que observamos ao nosso
redor. Há momentos em que os fatos não são capazes de demonstrar a nossa dor e a nossa revolta, que
tomam conta da nossa alma e também dos nossos corações.
Estamos aqui hoje por uma razão muito especial: homenagear o Magnífico Reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cao, como gostava de ser chamado pelos amigos.
Dessa forma, vamos contar um pouco a história desse jovem, natural de Tubarão, que, em 1977, ingressou
no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Logo em seguida, interrompeu seus estudos
jurídicos para trabalhar como jornalista no antigo jornal O Estado e também como assessor de parlamen-
tares catarinenses em Brasília.
Com destaque – o faço com muito prazer –, assessorou o brilhante e destacado Senador catarinense Nel-
son Wedekin, presente a esta sessão solene. Isso já mostrava sua paixão pela política, pela sociedade, pela
mudança, pela convivência justa, leal e democrática. Homem de diálogo, de entendimento, um conciliador.
Cancellier participou ativamente dos movimentos estudantis durante a graduação na Universidade Federal
de Santa Catarina. Participou também das campanhas Diretas Já e de outros movimentos democráticos
que se seguiram.
Em 1996, retornou à Universidade Federal de Santa Catarina para concluir a graduação e seguir carreira
acadêmica, com mestrado e doutorado. Mais tarde, iniciou a carreira de professor no Centro de Ciências
Jurídicas, onde lecionava as disciplinas Direito Administrativo e Direito Tributário.
Foi em 2015 que Cancellier pode realizar talvez o seu maior sonho e a sua maior missão. Ele foi eleito Reitor
da Universidade Federal de Santa Catarina, onde sempre estudou, Senador Requião, e a que sempre se
dedicou.
Nessa campanha, Cancellier deixava bem claro no slogan que usou – “A Universidade pode mais” – o que
ele desejava para a Universidade Federal de Santa Catarina. Desde que assumiu, ele apontou a descen-
tralização da gestão e a valorização da participação de todos os centros e unidades da Universidade nas
tomadas de decisão como prioridade.
Ora, Sr. Presidente, o que acenava como uma grande esperança, o que permitia formar um ambiente lumi-
noso para a Universidade acabou se transformando numa grande tragédia.
O destino, Srªs e Srs. Senadores, senhores familiares e amigos, toma caminhos e formas muitas vezes
inesperados, influenciado por circunstâncias, na maioria das vezes, alheias aos nossos olhos e às nossas
vontades.
E é por isso que nós estamos aqui hoje, por força de um destino cruel, em que a arbitrariedade é a principal
algoz e a vítima é o Magnífico Reitor Cancellier, e nós, que o perdemos de forma tão prematura e trágica.
Aos 59 anos, Cancellier passou por uma dura prova, ao ser custodiado, no dia 14 de setembro, e afastado
do cargo de Reitor da Universidade, pela obtusa acusação de obstrução à Justiça, na Operação Ouvidos
Moucos, da Polícia Federal.

232 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Do ponto de vista jurídico, esse ato acredito ser arbitrário, desnecessário e de fácil questionamento. Ele foi
associado com uma humilhação e restrição de todo teor, não suportadas pelo Magnífico Reitor da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina. A investigação que apura suspeitas de desvios no sistema de ensino a
distância era anterior ao seu período como gestor da Universidade Federal.
Cancellier, Sr. Presidente, era um homem de fino trato, querido por todos. Eu mesmo tive a honra de rece-
bê-lo no meu gabinete, aqui nesta Casa Legislativa, logo após a sua posse. Conciliador, buscava apoio e
incentivo para dar à Universidade Federal de Santa Catarina o tratamento e o reconhecimento federal que
ela tanto merece. Mas o caráter do Magnífico Reitor não aguentou o peso daquilo que considerava uma
injustiça absoluta.
A liberdade moral, o mais alto objetivo ético, deve ser obtida apenas por uma negação da vontade de viver.
Longe de ser uma negação, o suicídio é uma afirmação enfática dessa vontade, pois é a fuga dos prazeres,
não dos sentimentos da vida, em que a negação de vontade de viver consiste. Quando um homem destrói
sua existência como indivíduo, ele não quer destruir a sua vontade de viver. Pelo contrário, ele gostaria
de viver, se ele pudesse fazê-lo, com satisfação, se ele pudesse afirmar a sua vontade contra o poder das
circunstâncias, mas as circunstâncias foram muito mais fortes do que ele.
Como Senador da República, como catarinense e como homem que acredita na Justiça, coloco-me à dis-
posição da família, dos amigos e dos companheiros de Cancellier para fazer o que for possível para que a
sua existência não tenha sido em vão.
O País precisa abrir os olhos para o caminho que deseja seguir, pois não podemos subjugar os sentimentos
da humanidade.
A justiça deve prevalecer em todas as circunstâncias, mas ela não deve ser cega a tal ponto de não conse-
guir separar, mesmo diante do mais difícil contexto, aqueles que buscam o bem daqueles que usam o mal
para os seus objetivos finais.
Sr. Presidente, concluindo: ao Magnífico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo quero agradecer por nos
deixar a sua história, por nos deixar a sua luta escrita na história da Universidade Federal de Santa Catarina
e, sobretudo, no coração de todos os catarinenses.
Muito obrigado.

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Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

MARCELO NEVES
Professor de Direito da Universidade de Brasília - UNB

Exmo Sr. Senador Roberto Requião, Exmo Sr. Deputado Chinaglia, eu venho aqui ler uma carta denúncia
que foi assinada por um grupo de mais de 200 juristas e também acadêmicos, inclusive juízes e membros
do Ministério Público, e me restringirei a fazer a leitura desse documento, por indicação de alguns colegas.
Exmo Sr. Presidente do Senado Federal
Exmo Sr. Presidente da Câmara dos Deputados
Os subscritores desse documento vêm com o devido acatamento perante V. Exªs, com [base] no art. 5º,
inciso XXXIV, alínea a, da Constituição Federal, apresentar a presente denúncia, em razão dos fatos a seguir
relatos que ferem gravemente os pilares do Estado Democrático de Direito no Brasil: o caso da morte do
Prof. Cancellier e a ofensa aos pilares do Estado democrático [de direito] no Brasil.
No dia 02 de outubro de 2017, os brasileiros acordaram com a notícia de mais um evento trágico que marca
este período sombrio pelo qual o país vem passando desde que se tornaram comuns operações jurídico-
-policiais com forte cobertura midiática: o suicídio do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina,
Prof. Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo.
234 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

Após ver a sua vida destruída por uma operação autoritária (denominada de “Ouvidos Moucos”) conduzida
por agentes do sistema de justiça criminal (Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal),
o Prof. Cancellier se jogou de um vão do Beiramar Shopping, em Florianópolis/SC, pondo fim ao tormento
pelo qual passava por não suportar ter sido acusado e preso injustamente por crime que não cometera.
A morte do Prof. Cancellier foi o desfecho trágico, mas anunciado diante da forma como os aparelhos de
repressão penal vêm funcionando no Brasil. A sua prisão açodada e a exposição midiática do caso o trans-
formaram do dia para a noite em inimigo do povo, colocando sobre seus ombros o dever de provar que era
inocente, o que é a mais clara subversão dos valores que regem a democracia.
A Operação Ouvidos Moucos repete o padrão de atuação da Operação Lava Jato, que é similar ao padrão
que se viu recentemente na Operação Carne Fraca, e de outras operações jurídico-policial-midiáticas em
curso no país. Delegados da Polícia Federal e Procuradores da República, numa reprovável sanha por
holofotes e reconhecimento público, acusam pessoas a partir do que eles entendem como incriminador,
quando muitas vezes o que possuem são informações desencontradas, denúncias anônimas, documentos
incompletos e provas ilícitas, e sem realizarem antes qualquer diligência preliminar para verificarem a
verossimilhança e a legitimidade da informação recebida.
Com base em “meras suspeitas”, PF e MPF passam a requerer aos juízes federais medidas de força, como
conduções coercitivas e prisões cautelares, muitas vezes à revelia dos requisitos legais. Tais medidas são
quase sempre deferidas pelo Judiciário, que passa a ser avalista das operações policiais e consorte na
destruição dos pilares do Estado Democrático de Direito.
Medidas como condução coercitiva, busca e apreensão domiciliar e prisão cautelar, medidas excepcionais
que deveriam ser adotadas com cautela, tornaram-se a regra, com a finalidade de promover a exposição
midiática de pessoas investigadas, uma vez que tais operações são sempre desenvolvidas sob os holofotes
da imprensa para serem vendidas para opinião pública como a forma mais bem sucedida de fazer justiça.
Também é na imprensa que se fará desde logo o linchamento moral do suspeito, este sempre escolhido a
dedo de acordo com as conveniências de quem conduz a operação.
As medidas de força também são deferidas com o intuito de submeter o investigado ao terrorismo de
Estado. Agentes da Polícia Federal cumprem os mandados de condução coercitiva, busca e apreensão de
prisão sempre vestidos como se fossem combater inimigos (vestem coletes, roupas pretas, balaclava).
Empunhando armas, entram em residências em grupos de vários homens, surpreendem moradores ainda
de pijamas, ao raiar do dia, vasculhando tudo, submetendo o cidadão ao olhar desabonador de seus vizi-
nhos, ao medo e ao desespero do que se trata tudo aquilo e o que lhe acontecerá a partir de então.
O mais grave: a condução coercitiva [tem visado] a impedir que o investigado possa ter acesso prévio aos
elementos que constam da investigação e de ter contato prévio com o seu advogado, o que é um ataque
descarado ao direito à ampla defesa.
A cobertura midiática do cumprimento dos mandados amplifica o quadro de violações aos direitos fun-
damentais dos investigados. A ideia é com a cobertura midiática angariar apoio popular para a operação
e fazer o justiçamento imediato de pessoas que sequer podem ou puderam defender a sua inocência pelo
exercício do contraditório. Nesse contexto, a palavra do investigado fica descredibilizada e restam afasta-
das suas garantias constitucionais por ser ele tido como inimigo do povo.
Em nome da inocência: Justiça | 235
Capítulo 4 - O Reconhecimento

Com a opinião pública a favor da operação, fica mais fácil para o Estado Policial seguir na sua sanha puni-
tivista, destruindo vidas e, com elas, nosso novel Estado Democrático de Direito. Acuados pela imprensa e
pelo público, os Tribunais de Apelação e Superiores se curvam aos desmandos de delegados, promotores
e juízes, negando recursos da defesa e avalizando toda sorte de violações às garantias constitucionais.
O justiçamento midiático é instrumento do aparato de repressão penal para minar a garantia da presunção
de inocência, facilitando a condenação do investigado pelo Judiciário sem qualquer prova cabal de sua
culpa.
Deve-se alertar para o fato de que violação aos direitos humanos das pessoas acusadas da prática de
crimes pode dar ensejo à responsabilização internacional do Estado brasileiro no sistema interamericano
de proteção aos direitos humanos, uma vez que o Brasil é parte do Pacto de San José da Costa Rica e está
submetido à fiscalização da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à jurisdição da Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos. Aliás, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em julgamento recente
(caso Zegarra Marín vs. Peru, sentença de 15 de fevereiro de 2017), assentou que a violação à presunção
de inocência constitui grave violação aos direitos humanos de pessoas acusadas pelos agentes do sistema
doméstico de justiça criminal.
A trágica morte do Prof. Cancellier é a denúncia banhada de sangue de que o Estado Policial no Brasil faz
suas vítimas à luz de holofotes, não poupando biografias e tampouco a dignidade humana. É preciso co-
brarmos a responsabilidade pelo suicídio do Dr. Cancellier, cuja morte representa o ápice do Estado Policial
que se instaurou no país! É preciso revelar a farsa das operações espetaculares que têm destruído vidas
humanas e a democracia no Brasil! Só assim se colará um basta na atuação autoritária dos agentes de
repressão penal que não medem esforços para minar o nosso jovem Estado Democrático de Direito
Ante o exposto, resta manifesto que está a se instalar no Brasil um verdadeiro Estado Policial que não
respeita as garantias constitucionalmente asseguradas, motivo pelo qual se requer, dignem Vossas Ex-
celências, a instaurarem procedimento investigatório para apurar os excessos e abusos no âmbito das
operações jurídico-policial-midiáticas em curso no País, de um modo especial aquela que levou ao suicídio
do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Prof. Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo.
Nesses Termos, Confia no Deferimento.
Brasília-DF, 31 de outubro de 2017.

236 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

LUÍS CLÁUDIO DA SILVA CHAVES


Representante do Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB

Senador Roberto Requião, Senadores, Deputadas e Deputados Federais, caríssimos colegas de Mesa, em
primeiro plano eu gostaria de, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, formalizar a adesão da nossa
entidade a essa homenagem póstuma, transmitindo os nossos mais sinceros sentimentos e a solidarieda-
de à família do Magnífico Reitor Luiz Carlos.
Também quero prestar esta homenagem à comunidade jurídica e acadêmica da conceituada Universidade
Federal de Santa Catarina, e o faço com autorização também do Presidente daquela seccional, Paulo Brin-
cas, que me ligou ainda há pouco.
“Uma injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar” – Martin Luther King.
Na verdade, nós brasileiros reconquistamos a democracia através do sangue e do suor de destemidos brasileiros
que ousaram lutar contra o regime de exceção, contra o cerceamento dos direitos fundamentais, e reconquista-
mos, com o apoio imprescindível desta Casa, do Senado Federal e do Congresso Nacional, que nos trouxe uma
das mais belas Cartas Magnas, a nossa Constituição da República, chamada Constituição Cidadã. E ela tem
como centralidade a dignidade da pessoa humana.

Em nome da inocência: Justiça | 237


Capítulo 4 - O Reconhecimento

E para isso, eminentes Senadores e Senadoras, nos foi concedido um arcabouço de proteções jurídicas e insti-
tucionais relevantes para que nós tivéssemos essencialmente um regime democrático e um Estado democrático
de direito, dentre elas o devido processo legal, algo conquistado na Inglaterra em 1215. Mas com isso a ampla
defesa – não só uma ampla defesa formal, mas uma ampla defesa técnica –, qualificada, o contraditório, a
licitude dos meios de prova, a paridade, a isonomia entre acusação e a defesa em qualquer processo onde há
contraditório evidentemente, até nas lides cíveis como nas criminais, a presunção de inocência, com texto ex-
presso que, permissa venia, não comporta maior interpretação, a pessoa só pode ser considerada culpada após
o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, conforme expresso por este Parlamento.
E o que estamos vendo hoje é a mitigação dessas garantias constitucionais. E a demonstração maior é uma
proposta ofertada por uma associação de representantes do digno Ministério Público, que contemplava
dez medidas contra a chamada corrupção, em que se estabelece uma permissão – a admissão de provas
obtidas por meios nada lícitos, e o fim do habeas corpus – como uma medida essencial ao funcionamento
das instituições jurídicas e à preservação das liberdades fundamentais do ser humano.
Então, que esta homenagem póstuma sirva também, para todos nós, de reflexão do País que temos e do País
que queremos em face da proteção constitucional consagrada por este Parlamento, que torna o País um país
de Primeiro Mundo em termos de tentativa de proteção dos direitos sociais e dos direitos fundamentais.
Sem a Constituição não haverá solução. E o que a Ordem dos Advogados do Brasil pretende é a luta in-
transigente para que a nossa Constituição seja efetivamente cumprida. A Constituição da República nos
assegura a todos igualdade no tratamento, mas nos traz também a responsabilidade quando ocupantes
de cargos públicos relevantes, razão pela qual enaltecemos a importância da apreciação pelo Congresso
Nacional – que já o fez no plenário desta Casa – de uma lei eficaz que contemple e combata o abuso da
autoridade em face do direito de cidadania.
É relevantíssimo, nos dias de hoje, que a gente diga que o caso do Magnífico Reitor não é único e que ele
se assevera nas comunidades mais carentes do Brasil, longe da mídia. O problema não é apenas midiático
e de operações midiáticas: ocorre nos aglomerados, ocorre nas comunidades mais simples quando uma
autoridade policial está contrária a algum ato perpetrado por uma simples pessoa – às vezes por ter essa
formação humilde, por ser de raça diferente – e a joga dentro de um camburão, sem ter acesso mínimo a
uma defesa qualificada.
Nós estamos vivendo hoje não só uma tentativa de criminalização da atividade política: prefeitos de cidades
do interior – sou mineiro, e Minas Gerais tem 853 Municípios –, a maior parte deles, estão amedrontados
pela possibilidade de saírem dos seus mandatos com inúmeros processos porque tiveram que decidir onde
investir recursos públicos parcos em razão das grandes demandas municipais.
Mas nós estamos diante também da tentativa de criminalização da própria advocacia brasileira, responsável
pela proteção e tutela jurisdicional àqueles que mais precisam, que são acusados sem a possibilidade do
exercício pleno de defesa, seja no inquérito policial, seja no processo judicial que se segue.
Então, a nossa manifestação aqui é de adesão não apenas a essa importante homenagem prestada ao Mag-
nífico Reitor, que, assim como outros, sofreu uma grave injustiça, não de haver contra ele um processo,
qualquer um de nós pode responder a um processo, mas de não lhe ter sido permitida a ampla defesa.
Nós estamos diante, como disseram aqui da tribuna vários outros que me antecederam, de medidas de con-

238 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

dução coercitivas absolutamente desnecessárias.


Nós estamos vivendo com prisões preventivas e provisórias que viraram, não exceção, mas regra no sistema
penal brasileiro, num propósito, permissa venia, de compelir aquele detento a prestar delações premiadas.
E cabe a esta Casa o papel fundamental, ao lado de outras instituições, de assegurar mais uma vez a pro-
teção do Estado democrático de direito da nossa Constituição da República, buscando uma efetiva legis-
lação que combata aqueles que, a pretexto de combaterem a corrupção, querem é praticar crimes. Crimes
contra a cidadania brasileira, porque nós entendemos que o combate à corrupção deve ser feito dentro da
estrutura judicial preconizada no Texto Magno das grandes Cartas Constitucionais do mundo, não só do
Brasil, aquela que dignifica a pessoa humana e estabelece regras de paridade entre a acusação e a defesa.
E a eventual morosidade no julgamento dos processos não pode ser substituída por privações de preceitos
constitucionais, mas, sim, de investimento no Poder Judiciário para que ele possa responder suas deman-
das na brevidade, na celeridade, mas com respeito às normas jurídicas.
Muito obrigado.

Em nome da inocência: Justiça | 239


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

CARMEN ZANOTTO
Deputada PPS-SC

Nobre Senador Roberto Requião e nobre Deputado Arlindo Chinaglia, proponentes desta sessão de ho-
menagem póstuma; querido – permita-me chamá-lo assim – Dr. Lédio Rosa, nosso Desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que aqui representa o Acioli, o Júlio, o Mika, a Cris, e
todos os seus familiares; o sempre Senador da República, o nosso Senador Wedekin; colegas Deputados,
Deputadas, Senadores e Senadoras desta Casa, a quem saúdo em nome dos nossos Senadores Dário
Berger e Dalírio; para eu falar do Prof. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o nosso querido Cao, é preciso falar
da relação profunda de amizade, de companheirismo. Falar de um homem que pregava, em todos os seus
momentos difíceis ou nos momentos em que recorríamos a ele para pedir um conselho, o pedido de calma,
de paciência e a fala da conciliação.
Eu estava chegando em Florianópolis e pretendia visitá-lo. Ligávamos e não conseguíamos contato. A
família ainda não sabia o que tinha acontecido de fato. E todos fomos tomados por absoluta surpresa. Mas
durante o encaminhamento do seu corpo para o Instituto Médico Legal, durante os preparativos do seu
corpo para encaminhá-lo à universidade, conseguimos compreender o que o Cao fez. Na sua carteira, junto
240 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

com apenas os seus documentos, havia um bilhete, uma única frase que resumiu tudo aquilo que o Cao
viveu: “Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”. Este era o Cao.
A universidade era a sua vida. A universidade era o seu dia. Quando Reitor, aqui veio, junto com o Gelson e
outros professores e pró-reitores, buscar recursos junto à Bancada de Santa Catarina para a sua institui-
ção, para a sua casa, porque a universidade era, sim, a extensão da sua casa. Ele morava praticamente ao
lado, e era na universidade que a gente sempre o encontrava para conseguir falar com ele.
Pensando nos seus alunos, pensando nos seus professores, pensando na sua instituição, tenho certeza de
que foi assim que o Cao lá se formou, lá atuou e lá buscou preservar.
Foi pensando na sua universidade... Não vejo outra forma de aliviar a dor que ele sentiu, não digo em um
momento de desespero, mas em um momento de absoluto constrangimento, vergonha por aquilo que
sua universidade estava passando mas, especialmente, pelo momento difícil que ele estava vivendo, por
não aceitar o que estava acontecendo. De fato, tenho certeza de que o direito à ampla defesa não lhe foi
permitido.
Assim como disse o Desembargador Lédio, eu continuo acreditando nas instituições, no Poder Judiciário,
no Ministério Público, na Polícia Federal e no conjunto de homens e mulheres que dessas instituições
fazem a diferença, mas não fazem da sua profissão o ato de perseguir ou cometer injustiça.
Acredito, sim, que, com o passar do tempo, a luz da verdade virá. E desejo à Universidade Federal, a todos
os seus professores, a todos os seus alunos e, em especial, a esse conjunto de professores que estão
cerceados consigam, em um curto espaço de tempo, restabelecer aquilo que é orgulho de Santa Catarina:
a nossa Universidade Federal do Estado de Santa Catarina.
Muito obrigada, Sr. Presidente.

Em nome da inocência: Justiça | 241


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

CELSO PANSERA
Deputado PMDB-RJ

Meus cumprimentos ao Senador Roberto Requião, Deputado Federal Arlindo Chinaglia, o sempre Senador
Nelson Wedekin, o representante da OAB, Luiz Cláudio da Silva Chaves, o representante da CNBB, Padre
Paulo Renato Campos e os familiares do Reitor Cancellier.
O Artigo 207 da Constituição brasileira trouxe um grande ganho para o sistema universitário e educacional,
que foi a autonomia administrativa, pedagógica das universidades.
Em 1994, criou-se, através da Lei nº 8.958, um sistema de fundações de apoio que vieram para ajudar
as universidades a gerir projetos e fazer o dia a dia, dando mais velocidade e mais agilidade à gestão das
escolas.
Por outro lado, essas fundações de apoio ficaram submetidas ao alcance do tribunal de contas. E os
tribunais de contas, na sua sanha de fiscalização, criaram um conjunto de medidas, de emaranhados, de
penduricalhos, que tornou a vida do gestor dessas universidades quase impossível. O mesmo ocorre com
os projetos de pesquisa, bolsas e outros tipos de incentivo que pesquisadores têm nas universidades.
Um Estudo do Conselho Nacional das Fundações de Apoio concluiu que 35% do tempo dos professores/
242 | Em nome da inocência: Justiça
Capítulo 4 - O Reconhecimento

pesquisadores brasileiros são dedicados à prestação de contas dos seus projetos. Uma verdadeira distor-
ção daquilo que é prestar contas do dinheiro público. Isso é necessário, mas está provado que não resolve
o problema do combate à corrupção. Gera, sim, uma profunda distorção do papel daquilo que o gestor ou
servidor público tem que fazer com o seu tempo de trabalho. E isso em todas as esferas.
Quando a gente soma esses penduricalhos a uma conjuntura política em que ousam questionar a importân-
cia de Paulo Freire para a educação mundial, para a cultura e o sistema educacional brasileiro; quando se
soma a isso uma conjuntura em que agentes públicos investidos da tarefa de investigar, de policiar e julgar
cidadãos passam a se referir às leis não apenas no recato dos autos dos processos, mas fazendo militância
pública nas mídias sociais, inclusive recentemente tivemos o exemplo de um Ministro do Supremo pole-
mizando no Twitter com cidadãos sobre posicionamentos judiciais e políticos, nós temos um verdadeiro
ataque ao Estado de direito. Isso que o representante da OAB falou tão bem aqui, há pouco.
As coisas saíram do limite. A gente não sabe mais o que é legal e o que é ilegal. É difícil a gente estabelecer
a fronteira entre aquilo que é razoável e aquilo que não é razoável, porque este País foi tomado por uma po-
larização política que nunca se viu e que leva a um tensionamento social, inclusive nas relações familiares.
Quando isso é exacerbado para uma ação judicial, como essa vivida pelo Reitor Cancellier, nós temos um
profundo estágio subjetivo de quem é submetido a isso e de seus familiares, que é difícil prever é difícil pre-
ver o final. Aonde vamos chegar nisso? A gente vê com frequência pessoas que a gente sabe que têm pos-
tura ilibada, que têm um dia a dia defensável sendo atacados de uma forma pública, até por ordens judiciais.
Eu fui vítima de uma batida da Polícia Federal no meu apartamento no dia 15 de dezembro de 2015. De
lá para cá, isso causou um profundo mal-estar e um trauma na minha família. E, de lá para cá, eu pedi
inúmeras vezes para ser ouvido pelo Ministério Público, pela Procuradoria-Geral da República, e sequer me
deram o direito de falar sobre aquilo de que me acusaram.
Uma nota, uma notinha de cinco linhas, em uma grande revista de circulação nacional, bastou para que
fossem à minha casa e nunca mais me dessem nenhuma satisfação de porque fizeram aquilo. Por isso, eu
entendo o drama do Reitor.
Senador Roberto Requião, nós já estamos, na Câmara, com o projeto de abuso de autoridade, que aqui
no Senado foi revisado, ampliado e aperfeiçoado. Pode ter certeza de que a Câmara dos Deputados tem o
dever de votá-lo, porque precisamos colocar um limite nisso.
Nós não somos contra a polícia, não somos contra o Ministério Público, e é fundamental que o Judiciário
funcione, mas as coisas precisam ter limite. As pessoas precisam ser respeitadas nos seus direitos mí-
nimos de viver em sociedade e agir de acordo com a sua consciência. E este País perdeu a noção disso.
O representante da OAB falou que isso é o que a gente vê na mídia. O que a gente não vê na Baixada Flumi-
nense, nas favelas do Rio de Janeiro é muito pior do que isso, porque atenta contra pessoas que não têm
este microfone para falar, não têm talvez uma mídia social para se defender, não têm sequer os recursos de
um advogado para se defender. Então, é importante que a gente coloque um pouquinho as coisas no lugar.
E essa tarefa é este Congresso que deve fazer.
Por fim, eu quero prestar minha solidariedade à família do Reitor e dizer que a causa de vocês é a nossa
causa. E nós que militamos há muito tempo na educação, nós que trabalhamos com a defesa da ciência
brasileira, sabemos o quanto isso é ruim para as instituições; mas também temos noção, como seres

Em nome da inocência: Justiça | 243


Capítulo 4 - O Reconhecimento

humanos, de quanto isso é ruim para as famílias e como é difícil reparar isso. É impossível reparar isso.
Então, eu não poderia deixar de fazer uso da palavra, Senador Requião e todos aqui presentes, porque
precisamos tornar esse desagravo num fato prático, que é a Câmara aprovar a lei já corajosamente enca-
minhada e defendida aqui pelo Senador Requião, no Senado, e a gente avançar, colocar um pouquinho a
carroça atrás dos bois, para que a coisa ande de uma forma razoável.
Obrigado.

244 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

IDELI SALVATTI
Ex-Senadora

Quero, inicialmente, saudar os familiares e amigos do nosso querido Reitor Cancellier e prestar toda minha
solidariedade a eles. Quero aqui também saudar o Senador Requião e o Deputado Arlindo Chinaglia pela
iniciativa tão importante da sessão, o meu querido amigo Nelson Wedekin, ex-Senador, como eu, o nosso
querido Desembargador Lédio Rosa, o representante da OAB, e todos que se fazem presentes nesta tão
importante sessão.
No dia 2 de outubro último, uma segunda-feira, às 10h30 da manhã, num shopping da área central de
Florianópolis, um corpo cai. Uma vida se joga. Está lá o corpo estendido no chão.
A morte, deliberadamente ostensiva, do nosso querido Cao ecoa como um grito angustiado: Vocês têm o
poder, mas não têm o direito! Vocês têm o poder, mas vocês não têm o direito!
A sociedade concede poder às pessoas e às instituições para investigar, para julgar, para punir, até para
matar, mas esse poder não é absoluto, como já disse aqui o Desembargador Lédio Rosa. Esse poder tem
que seguir regras, tem que cumprir as leis, tem que respeitar o Direito.
E esse corpo que cai, essa vida que se joga, continua ecoando: Vocês têm o poder, mas vocês não têm o
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Capítulo 4 - O Reconhecimento

direito! Não têm! Vocês não têm o direito de prender provisoriamente a torto e a direito. Vocês não têm o di-
reito de submeter o preso a procedimentos vexatórios, intimidatórios, que se assemelham à tortura. Vocês
não têm o direito de prender, na área de segurança máxima, alguém que sequer foi acusado de ter cometido
um crime mínimo. Vocês não têm o direito de conduzir coercitivamente quem sequer havia sido intimado.
E esse corpo que cai, essa vida que se joga, continua ecoando: Vocês têm o poder, mas vocês não têm o
direito! Não têm o direito de vazar para a imprensa informações sigilosas dos processos. Vocês não têm o
direito, a cada operação de busca, condução, prisão, de avisar antecipadamente à imprensa para que junto
com os canos das armas estejam apontados também os canos das câmeras, muitas vezes mais mortais.
O nosso querido Cao é um exemplo, infelizmente morto, da crueldade desse conluio de agentes do Estado
com a imprensa sensacionalista, seja regional ou seja global.
Aliás, a imprensa, rádio e TV, que são concessões públicas – também não tem o direito de promover esses
verdadeiros linchamentos midiáticos, essa condenação antecipada e irreparável, sem direito a defesa, esse
verdadeiro conluio para o aniquilamento de reputações, de vidas, feito de forma seletiva, ideológica.
E esse corpo que cai, essa vida que se joga, continua ecoando: Vocês têm o poder, mas vocês não têm o
direito!
Não têm! Vocês não têm o direito de manter em prisão provisória alguém, durante meses, durante anos,
numa antecipação da pena antes da condenação.
Vocês não têm o direito de manter preso provisoriamente alguém até que ele delate o que vocês querem
ouvir.
Vocês não têm o direito de exigir que a pessoa prove que é inocente. Vocês é que tem que provar que ela é
culpada. Presunção de inocência continua na Constituição!
Vocês não têm o direito de condenar sem provas “porque a literatura permite”.
Vocês não têm o direito de condenar sem provas porque têm convicções.
Vocês não têm o direito de condenar por domínio do fato, sem que fatos e feitos comprovem a culpa.
E é desse corpo caído, do nosso querido Cao, do Reitor da nossa Universidade Federal de Santa Catarina,
que ecoa o grito por justiça e por respeito ao Estado de direito para todos, para brancos e pretos, para
homens e mulheres, para ricos e pobres.
É esse corpo caído, essa vida que se joga, que exige que milhares, milhões de corpos se levantem. Que a
vida se erga para barrar o Estado de exceção. Que se erga contra o avanço do fascismo e do autoritarismo.
Que se erga pelo Estado de direito.
Cao PRESENTE, hoje e sempre!

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Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

REGINA SOUSA
Senadora PT-PI

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Deputados, convidadas e convidados. Faço um cumpri-
mento especial à família do Professor Cancellier. Quero dizer que eu compartilho do sentimento de vocês.
E quero dizer rapidamente, porque sei que o horário está avançado: eu fui, aqui no Senado, talvez a primeira
Parlamentar a falar naquele dia fatídico. E eu começava dizendo: temos a primeira vítima do Estado policial
que está se instalando neste País. Está lá no meu discurso daquele dia.
E eu dizia que nós estamos nos acostumando a ver com certa indiferença esses acontecimentos, com o
olhar indiferente desta Casa e dos outros Poderes. Então, precisava haver uma vítima. Temos. E eu dizia
naquele dia também que era hora de começarmos a ter um outro olhar, um olhar mais rigoroso sobre essas
questões, sobre os espetáculos que se produzem, sobre a seletividade que se faz. E aí nós, vemos, por
essa seletividade, que se condena por convicção e se absolve com robustas provas. Estou falando de todos
os Poderes.
Uma vez eu falei aqui da fábula do lobo e do cordeiro. Quando o lobo decide comer o cordeiro, não adianta
você arranjar argumento, porque ele tem o contra-argumento para justificar.
Em nome da inocência: Justiça | 247
Capítulo 4 - O Reconhecimento

Então, o Prof. Cancellier foi escolhido para ser culpado. Não importa que foram R$80 milhões, que houve
desvio, suposto desvio que não houve; não importa se R$80 milhões vão virar R$8 mil; não importa que
foi antes da gestão dele que esse dinheiro entrou e que foi usado. Importa que ele foi escolhido para ser
culpado, e, infelizmente, o espetáculo foi feito, e ele não resistiu a tanta humilhação.
Então, neste momento, o que urge para nós é retomar urgentemente, na Câmara, a questão do abuso de
autoridade, sem se preocupar com a opinião pública, porque alguns ganharam a opinião pública contra
essa questão, porque dizem que é para acabar a Lava Jato. E a Lei de Abuso de Autoridade é para toda
autoridade, do vigia da esquina ao Presidente da República, mas nós temos que encarar, e a Câmara está
com essa tarefa agora nas mãos. Mas não basta isso.
Eu dizia também que a morte do Prof. Cancellier deveria servir para se “estartar” um processo de alguma
apuração. Por isso, eu quero dizer que, como Presidente da Comissão de Direitos Humanos desta Casa,
estou acolhendo o documento dos juristas, requerendo que ele seja encaminhado à Comissão de Direitos
Humanos, que vai debatê-lo, examiná-lo e fazer os encaminhamentos devidos, porque, neste País, nós
estamos nos acostumando com muita coisa ruim. Um caminho perigo que este País está trilhando.
Ontem proibiram um show de Caetano Veloso em um assentamento de sem-teto. Onde já se viu!?
Há duas semanas, invadiram a casa do filho do Presidente Lula, por uma denúncia anônima de existência
de droga – aliás, denúncia anônima que resta provar –, e a polícia foi lá e, não achando droga, levou com-
putadores, 16 sacos com computadores, com pen drives, com CDs, com DVDs. E fica por isso mesmo.
Ninguém diz nada?
Então, eu acho que está na hora de a gente dar um basta no que a gente está vendo acontecer. A matança da
juventude negra... Negro é suspeito só pela cor da pele. Já é suspeito. Há uma matança da nossa juventude
negra, e a gente está assistindo.
Então, eu acho que a gente tem que agir, antes que seja tarde e antes que aconteça de novo.
Muito obrigada.

248 | Em nome da inocência: Justiça


Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

GLEISI HOFFMANN
Senadora PT-PR

Sr. Presidente, Senador Requião; Deputado Arlindo Chinaglia, ex-Senador Wedekin, Desembargador Lédio
Rosa de Andrade, meus cumprimentos a todos. Quero saudar também os Srs. Senadores e Senadoras que
estão aqui, os familiares, amigos e colegas do Prof. Luiz Carlos Cancellier, que acompanham esta sessão
presentes ou também pela rede social ou pela TV Senado, e quem nos acompanha pela TV Senado e tam-
bém pela Rádio Senado.
Quero parabenizar o Senador Requião e também o Deputado Arlindo, por terem convocado esta sessão de
homenagem ao Prof. Luiz Carlos Cancellier. Ela é uma sessão de homenagens necessárias, mas ela tam-
bém é um grito de alerta contra os que pretendem transformar o Brasil em um Estado policial. E é um grito
em defesa da nossa Constituição, para que sejam respeitados os direitos e garantias nela consagrados, a
Constituição cidadã.
O Reitor Cancellier, como já foi dito aqui, foi vítima de uma série de abusos por parte de autoridades que
deveriam defender a lei acima de tudo. E o que fizeram foi rasgar a lei e o direito, a começar pelo princípio
da presunção de inocência.
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Capítulo 4 - O Reconhecimento

Quando se ignora esse princípio, todo o processo penal se degrada. Passa a valer a lei do mais forte, o
poder do agente do Estado contra o cidadão desamparado.
E, ferido em todos os seus direitos e humilhado por seus algozes, o Reitor Cancellier cometeu um gesto
extremo, que chocou a todos. Esse gesto, porém, chamou a atenção da sociedade para a escalada dos
abusos que estamos presenciando no País, como também já foi dito várias vezes aqui. Prisões sem base
legal são feitas com forte aparato da mídia, que se torna cúmplice desse processo: julga e condena antes
que o processo termine – aliás, nem iniciado o processo está –, quando não é ela mesma, a própria mídia,
que incentiva e até comanda o espetáculo.
Esse tipo de prática é intolerável numa democracia. Nada, nada justifica que se cometam crimes em nome
de combater o crime. Nem mesmo o suposto combate à corrupção. E é vergonhoso que as associações de
juízes, delegados e do Ministério Público tenham reagido corporativamente nesse episódio, tratando como
se fossem naturais e legais condutas que foram erradas e fora da lei.
Nós, que lutamos tanto para restabelecer o Estado de direito no Brasil e o Reitor Cancellier participou ati-
vamente dessa luta, conforme muitos aqui falaram, temos a obrigação de impedir esse retrocesso; temos
a obrigação de denunciar o crime que foi cometido contra ele e de exigir que os autores deste crime sejam
julgados por suas condutas, dentro do devido processo legal, até para que aprendam a viver sob uma Cons-
tituição democrática. E a corporação não pode se sobrepor ao Estado democrático de direito.
Agora, a melhor homenagem que nós podemos prestar ao reitor é votar, Senador Requião, e aprovar a
legislação contra o abuso de autoridade a Lei Cancellier, como o senhor batizou aqui, porque a democracia
brasileira precisa se defender daqueles que não a reconhecem.
E eu lembro, Senador Requião, que V. Exª recebeu muitas críticas quando relatou este projeto aqui. Mas,
com coragem, com altivez, sabendo de que lado estava da história, V. Exª fez um belíssimo relatório e foi
aprovado por esta Casa.
Os mesmos que corporativamente tiraram uma nota, quando houve protesto em relação à morte do Reitor
Cancellier, foram aqueles que incentivaram setores da sociedade a virem protestar contra a Lei de Abuso
de Autoridade. Ora, uma sociedade que se quer democrática, uma sociedade que quer respeitar o Estado
democrático de direito não pode conceber abuso de ninguém – abuso de ninguém –, seja de autoridade ou
não. Seja minha, de qualquer um. Uma sociedade que comporta abusos não é uma sociedade verdadeira-
mente democrática.
Então, nós temos uma grande responsabilidade, como Congresso Nacional, com a sociedade brasileira. E
essa responsabilidade agora está nas mãos dos Deputados e Deputadas Federais, na Câmara dos Deputa-
dos. Nós temos que votar essa legislação de abuso de autoridade.
E mais uma vez fica aqui o meu abraço aos familiares e aos amigos do Reitor Cancellier, aos colegas do
Reitor Cancellier. Infelizmente, a sua tragédia e a dor dos seus familiares e amigos vão ser a forma com que
nós chamaremos a atenção da sociedade.
Muito obrigada.

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Capítulo 4 - O Reconhecimento

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

PAULO TEIXEIRA
Deputado PT-SP

Senador Requião, Deputado Arlindo Chinaglia, em nome de V. Exªs cumprimento todos os Parlamentares
presentes. Cumprimento também os colegas do Reitor Cancellier e seus familiares.
Esse fato acontecido com o Reitor Cancellier é um fato cotidiano da vida do povo pobre do Brasil. A polícia
prende gente inocente, expõe à opinião pública imediatamente a prisão, o Ministério Público denuncia es-
sas pessoas, e juízes condenam pessoas inocentes, cotidianamente, no Brasil. É uma regra.
Há exceções a essas regras, mas nós temos um Estado de exceção que oprime as pessoas mais pobres no
Brasil. A Constituição não chegou a muitos lugares do nosso País.
Jovens negros, como disse aqui a Senadora Regina, são vítimas desse Estado de exceção, que tem esse
mesmo modus operandi e que faz com que a Constituição não tenha chegado a eles. São as pessoas que
participam dos noticiários das 5h e das 6h da tarde.
E a sociedade brasileira não conseguiu enquadrar esse Estado de exceção, no que dizia respeito aos po-
bres, e ele chegou ao outro lado da sociedade. Um fiscalismo sem objetivos. Agentes públicos que se
colocam nos tribunais de contas, nas corregedorias, no Ministério Público, na Polícia Federal, na Justiça e
Em nome da inocência: Justiça | 251
Capítulo 4 - O Reconhecimento

que acabam cometendo esses mesmos excessos contra outros cidadãos.


Com os pobres, a ideia era a do combate às drogas, com aqueles que atuam na área pública, é a ideia do,
entre aspas, “combate à corrupção”. É o momento do Estado de exceção necessário ao neoliberalismo.
Discutíamos, eu e o Deputado Wadih Damous, e chegamos à ideia de que esse não é um procedimento
excepcional. É a regra. Só que aplicada aos pobres e, agora, aplicada aos demais.
Nós estamos vivendo esse Estado de exceção, em que esse aparato de Justiça e esse aparato de polícia
emergem na cena pública com o ativismo político, buscando ter uma ascensão sobre os demais poderes
do Estado e sobre a nossa sociedade.
São pessoas que não conseguem combater a criminalidade comum, dado o sentimento de insegurança na
sociedade, mas querem se contrapor aos diversos segmentos da sociedade, muitas vezes uma contrapo-
sição político-ideológica, como imposição do seu poder.
É o Estado de exceção, que se coloca.
O que fizeram com o Reitor Cancellier foi a maior crueldade que um agente público pudesse fazer, porque
eles quiseram humilhá-lo, quando estabeleceram, inclusive, medidas cautelares que o impediam de exercer
o seu cargo plenamente.
Quis o destino que eu cruzasse com ele. Quando ele foi escolhido como primeiro da lista, um professor da UFRJ
me pediu para falar por ele com o então Ministro da Educação, Aloizio Mercadante. Quando eu soube o que
aconteceu com ele, fui um dos primeiros a me pronunciar sobre a violência praticada.
Acho que a resposta que a sociedade brasileira tem que dar é a exigência do Estado democrático de direito, do
cumprimento da Constituição com todos os brasileiros.
E essa crueldade que foi cometida tem que resultar na aprovação desse projeto de lei, aqui batizado como Projeto
de Lei Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que pune o abuso de autoridade. Nenhuma autoridade está acima da lei.
E, hoje, o que nós vemos são autoridades que se colocam acima da lei. A iniciar por aquele juiz de direita,
chamado Moro, Sérgio Moro, no Paraná. Ele é o mestre desse momento, assim como aqueles promotores
da Lava Jato de Curitiba e alguns delegados de polícia do Paraná. Não é por acaso que quem cometeu
essa crueldade contra o Reitor Cancellier foi uma delegada originária da força-tarefa de Curitiba. Ali, está
a escola do Estado de Exceção que se liga aos grandes meios de comunicação, para fazer o péssimo jor-
nalismo que já existia contra os pobres, a partir das 17h ou 18h da tarde, que existem em todos os canais
de televisão, que depois se candidatam a Deputados, vereadores, prefeitos, Senadores da República. O que
eles querem é isso.
Recentemente, aconteceu um fato, Senador Requião, em que o juiz de direito que decretou a prisão desse
italiano, que é imigrante no Brasil, de quem se pede a extradição da Itália, no momento seguinte, deu uma
declaração, dizendo o seguinte: “Estou me aposentando, porque sou candidato”.
Enfim, o objetivo deles é o exercício da política a partir das suas funções. Se eles querem exercer a política,
eles têm que fazê-lo na política, disputando cargos políticos como candidatos e não praticando essas
crueldades, como as que foram praticadas contra o Reitor Cancellier.
Por isso, a nossa solidariedade aos seus colegas de faculdade, de universidade; minha solidariedade aos
seus familiares; e a minha solidariedade a todos os brasileiros que sofreram, e sofrem esse tipo de violên-
cia por parte do Estado policial que nós temos que enquadrá-lo e fazer cumprir a Constituição brasileira.

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