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Ulianov Reisdorfer Um Momento Perigoso: Jung e o Nazismo Dissertagdo de Mestrado apresentada ao Departamento de Ciéncia Politica do Instituto de Filosofia e Cigncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientag&o da Profa. Dra. Amnéris Angela Maroni. Este exemplar corresponde a redagao final da Dissertagdo defendida e aprovada pela Comisséo Julgadora em 06/08/2003 abohed ona UNICAMP Fowioape _ | Ne chaseanh FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP [R277m Reisdorfer, Ulianov ‘Um momento perigoso : Jung e 0 nazismo / Ulianoy Reisdorfer - Campinas, SP : [s.n.], 2003. Orientador: Amnéris Angela Maroni. Dissertagio (mestrado) ~ Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1, Jung, C. G. (Carl Gustav), 1875-1961. 2. Nazismo. LMaroni, Amnéris Angela. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. IIL.Titulo. RESUMO O envolvimento de Jung com 0 Nazismo na década de 30 é um tema que nao encontra respostas definitivas. Numa tentativa de interpretagio desta relagio, no que diz respeito aos aspectos teéricos da psicologia junguiana, procuraremos analisar uma possivel conexiio teérica entre a psicologia analitica e a ideologia nazista. Para tal fim, analisaremos © que acreditamos ser uma dupla filiago filoséfica dos aspectos da psicologia junguiana que se referem a relagdo entre individuo sociedade: filiam-se por um lado aos fildsofos romanticos alemdes, e por outro lado a Nietzsche. Cremos que uma andlise desta relagfio nos forneceri elementos suficientes para compararmos teoricamente Jung e a ideologia nazista, A relago organica entre individuo e comunidade presente na teoria psicoldgica de Jung (expressa em idéias como “participagtio mistica”, libido familiar e relagio mente- corpo-terra) constitui-se em um trago romantico de seu pensamento; mas acreditamos que esta tendéncia, que poderia vinculé-lo, de certa forma, ao Nazismo, é contrabalangada por uma tendéncia ainda mais forte de diferenciagao do individuo em relag&io ao todo social (Seja familia, nagdo, Estado, povo, ete.), a qual manifesta-se por meio de um processo de autodesenvolvimento e auto-educagdo denominado processo de individuagdo (e aqui Jung recebe influéncias de Nietzsche) CHRCULANTF ABSTRACT Jung's involvement with the Nazism in the Thirties is a theme that doesn't find conclusive answers. In an attempt to interpret this relation, concerning the theoretical aspects of the jungian psychology, we will try to analyze a possible theoretical connection between the analytical psychology and the Nazi ideology. For such an end, we are going to analyze what was believed to be a double philosophical filiations of the jungian psychology aspects which make reference to the relationship between individual and society: both join the German romantic philosophers at one hand, and to Nietzsche on the other. We believe an analysis of this relationship will supply us with enough elements to compare theoretically the jungian psychology and the Nazi ideology. ‘The organic relationship between individual and community presents in Jung's psychological theory (expressed in ideas as "mystic participation”, family libido and relationship mind-body-earth) is a romantic line of his thought; but we believe that this tendency, that could link him, in a certain way, to the Nazism, is counterbalanced by a tendency still stronger of the individual's differentiation in relation to the social whole (family, nation, State, people, etc.), which is shown as a self development and self educational process called individuation process (and at this point Jung is influenced by Nietzsche). Para minha mae Agradecimentos Agradego aos meus pais pela educagio que me proporcionaram. Seus carinhos e cuidados formaram a base sobre a qual todo o meu desenvolvimento pessoal pide se processar Agradeco a professora. Amnéris Maroni pela orientagao ¢ amizade. Sua dedicacao ‘aos meus estudos sobre psicologia analitica, desde o projeto de Iniciagdio Cientifica, foi de fundamental importancia para a reslizag3o deste trabatho, Agradego aos professores Oswaldo Giacdia Ninior ¢ Valeriano Mendes Ferreira Costa pelas observagdes € corregdes da dissertapdo realizadas no Exame de Qualificapgo. Seus consethos me ajudaram a delimitar melhor o objeto de estudo ¢ a formar a “espinha dorsal” do texto, tomnando-o mais coerente, Agradego ao professor Omar Ribeiro Tomaz por aceitar prontamente o meu convite para participar da banca, mesmo sem nunca ter tomado contato com meu trabalho anteriormente, Por fim, agradego & FAPESP, que vem financiando minhas pesquisas desde meu trabalho de Iniciag: Cientifica. Sem o precioso auxilio da instituigao o presente trabalho jamais seria realizado. cw cw4 cws CWé cw7 cws cCw9, II CW 10 cwis cw 16 cwi7 cwis8 Abreviaturas C. G. Jung, The Collected Works, traduzido para o inglés por R. F. C. Hull, editado por H. Read, M. Fordham, G. Adler, W. McGuire, Bollingen Series XX, vols. 1-20 (Princenton: Princenton University Press e Londres: Routledge & Kegan Paul, 1953ss.), paragrafos numerados.* Freud e a Psicanalise Simbolos da Transformagao (Andlise dos preliidios de uma esquizofrenia) Tipos Psicologicos Estudos sobre Psicologia Analitica A Dinamica do Inconsciente Aion — Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Civilizacdo em Transigio O Espirito na Arte ¢ na Ciéneia A Pratica da Psicoterapia © Desenvolvimento da Personalidade ‘Vida Simbélica (Escritos diversos) * Serdo especificados em notas e referéncias bibliograficas os artigos inseridos nos volumes acima relacionados. Os artigos citados serao seguidos do n° do paragrafo [pr.]: (CW.....Pr....) Wu indice IntrodugHo - Langando Olbares para a Pessoa ea Obra de Jung Abertura — Individualismo versus Holismo: no debate moderno .......... Capitulo 1 — Diferencas Necessdrias: ideologia nacional-socialista, Hitler e 0 pensamento valkISch ........... 35 Nazismo e hitlerismo ...... Hitler e o principio de lideranga Hitler idedlogo 48 Holismo ¢ individualismo na ideologia nazista .. .50 Ideologia nazista e soberania nacional .. 54 Ideologia nazista e dominio mundial .............0-0-0--ss0 Totalitarismo e individuo ... Hitler ¢ 0 pensamento vOIKISCH ns sssnsnnennennsne mene 64 Capitulo 2 - Jung e o Romantismo Alemao: C. G. Carus, F. W. J. Schelling, Eduard 73 75 woes 89 von Hartmann ..... Jung e romantismo . Romantismo € nazismo ............ Capitulo 3 - Jung e Nietzsche ‘Natureza e antinatureza .. 112 119 122 Nietzsche como pensador politico . Bildung como autodesenvolvimento . Nietzsche e o individualismo liberal Jung e Nietzsche Capitulo 4 — Comparagio Teérica . Jung ¢ a psicologia das nagées .. Jung ¢ 0 principio de lideranga : 137 A formagao da personalidade .. Concepeio de individualidade Individualidade e relagdes sociais ..... ‘Natureza versus Natureza . O antiromantismo de Jung .... ‘Conclusio ...... : . 183 Bibliografia INTRODUCAO: LANCANDO OLHARES PARA A PESSOA E A OBRA DE JUNG Ao relacionarmos Jung ¢ teoria politica ¢ quase inevitével tratarmos de sua relagdo com o nazismo na década de 30. Questéo fundamental para que possamos dar 0 devido valor as contribuigdes deste autor no ambito da psicologia do inconsciente, pois, como observa Andrew Samuels, as acusagdes de colaborago com os nazistas e 0 anti-semitismo, ambas negadas por Jung, atuam como pré-julgamentos que impedem de anteméio uma compreensdo positiva de suas idéias, fazendo com “que a psicandlise ¢ outras disciplinas intelectuais continuem a ignorar a natureza pioneira das contribuigdes de Jung e, portanto, a pl obra dos psicélogos analiticos pés-junguianos”!. As acusagdes referem-se tanto as suas agGes em relagdo ao regime nazista quanto as formulagées tedricas que o abonassem, podendo ser classificadas como praticas de oportunismo, simpatia politica e/ou teérica ou colaboragao com os nazistas. Alguns autores trataram recentemente (década de 90) da relagéo de Jung com o nazismo, fornecendo diferentes interpretagdes para este acontecimento. Falaremos rapidamente de trés destas interpretagdes, elaboradas por Andrew Samuels, Frank McLynn e Richard Noll. © psicélogo junguiano judeu Andrew Samuels, em seu livro A Psique Politica, procura no analisar a questo segundo a psicologia pessoal de Jung, atendo-se aos aspectos tedricos que poderiam relaciond-lo ao nazismo. O autor se pergunta: “(...) ha algo na estrutura fundamental do pensamento de Jung sobre os judeus, em seu cere ou esséncia, * SAMUELS, Andrew. “Jung, anti-semitismo e os nazistas" in: A Psique Politica , Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 327. 15 que tome o anti-semitismo inevitavel”, levando-o a aproximar-se perigosamente da mesma moldura ideolégica nazista anti-semita? A resposta do autor ¢ afirmativa. Samuels nos diz que a tentativa de Jung de elaborar uma psicologia das nagdes com base em diferengas psicoldgicas inatas entre as mesmas tornou-o um psicdlogo que emprestou sua autoridade ao nacionalismo, ¢ mais especificamente ao nacional-socialismo. A diferenga entre psicologia judaica e psicologia ariana endossaria certas afirmagGes de Hitler em relagdo ao mesmo tema: “Ha um inquietante eco de Hitler na concepedo de Jung de que cada nao tem uma psicologia nacional propria, diferente ¢ identificavel que ¢, de alguma misteriosa maneira, um fator inato”’. Além disso, 0 lugar dos judeus na “ecologia mental” de Jung ocupa posigio similar ao lugar dos judeus elaborado por Hitler. No pensamento de Hitler, segundo Samuels, 0s judeus representam um movimento internacional (capitalismo intemacional ¢ comunismo intemacional) que procura dominar 0 mundo por meio de uma desnacionalizagao dos Estados existentes, impondo um cardter homogéneo “judeu” neles, ameagando a luta saudavel das diferentes nagdes pelo dominio do mundo. Similarmente, Jung identifica os judeus como um grupo (psicandlise freudiana) que promove uma corrente de desnacionalizagao psicologica, nivelando todas as diferengas psicoldgicas nacionais. O que Jung expressa em termos psicolégicos, Hitler expressa em termos econémicos e politicos. Mas esta aproximago nfo faz de Jung um colaborador ou simpatizante nazista; segundo Samuels, “(...) 0 equivoco de Jung foi expandir seu papel de psicélogo a um ponto em que ele poderia parecer estar considerando a naco como um fato exclusivamente ? tbidem, p. 326. * tbidem, p. 356. 16 psicolégico (...)"*. Este reducionismo psicolégico relacionaria perigosamente Jung ao nazismo. Além dessas expressdes tedricas, as agdes de Jung como presidente da Sociedade Médica Geral para Psicoterapia e como editor do Zentralblatt fiir Psychotherapie, a publicagdo cientifica da Sociedade, geraram suspeitas de simpatia e colaboracionismo com © regime nazista. A publicagio de ensaios e editoriais de Jung contendo generalizagdes inquietantes sobre a psicologia judaica poderia ser mal-interpretada como apoio a ideologia racial nazista, assim como a passividade de Jung em relagdo a publicagao de artigos de outros autores com conteiido claramente anti-semita e pré-nazista. Samuels relaciona estas atitudes com a questo do desenvolvimento da psicologia analitica na Alemanha ¢ a lideranga de Jung neste processo: “(...) Freud escrevera_ uma vez a Jung, dizendo que a psicandlise nunca encontraria seu verdadeiro status até que fosse aceita na Alemanha. A conquista da Alemanha era a meta do conquistador psicanalitico. A Histéria, ¢ Hitler, puseram esta meta ao alcance de Jung (...)”. Jung teria agido como um oportunista, aproveitando a situagdo politica para fortalecer a psicologia analitica na Alemanha. Frank McLynn, na mais recente biografia escrita sobre Jung®, parece absolver Jung em relago a um possivel envolvimento tedrico com a ideologia nazista anti-semita, O autor observa que, de um ponto de vista tedrico, Jung apresenta uma apreciagao negativa dos regimes totalitarios. A énfase de Jung na autonomia individual e na influéncia opressora da individualidade por parte das grandes organizages coletivas e Estados se contrapée diretamente a uma possivel simpatia te6rica pelo regime nazista. O Estado seria o representante contemporineo da indesejavel sociedade de massas, contribuindo para a * thidem, p. 362. * tbidem, p. 336. * McLYNN, Frank . Car! Gustav Jung: uma biografia , Rio de Janeiro, Record, 1998. 17 formagdo do homem massificado e projegao dos arquétipos do inconsciente coletivo, Para Jung, segundo McLynn: “O homem massificado era perigoso por nfo pensar, por seu conformismo e uniformidade, e sobretudo por abdicar da personalidade, permitindo aos deménios que jaziam adormecidos em todo ser humano vir a tona”” fato de Jung atacar diretamente apenas o regime totalitario comunista, sendo condescendente com 0 nazismo € © fascismo italiano, explica-se pelas opinides politicas direitistas do mesmo (sendo anticomunista ferrenho) e pelo fato destes regimes representarem um baluarte contra o “bolchevismo ateu”. Neste sentido, Jung era antes anticomunista do que pré-nazista. Outro fator que, segundo McLymn, acarreta certo interesse de Jung em relag&o ao nazismo seria 0 fato deste comprovar certos aspectos da teoria psicolégica do mesmo (notadamente aqueles referentes ao itrompimento de arquétipos do inconsciente coletivo na vida dos povos e nagdes); foi sob este Angulo que Jung teria analisado 0 fenémeno politico e social do nazismo, como o despertar do arquétipo Wotan presente no inconsciente alemao. “De fato, Jung escreveu em termos triunfalistas sobre a ascensio de Wotan emanando do inconsciente, imaginando que sua teoria estava ampla e profundamente confirmada por Hitler ¢ pelo nazismo, o que justificava a defesa dos arquétipos contra todos os céticos e desdenhosos”*, Mas, se do ponto de vista teérico, contrariamente ao que diz Samuels, Jung pode ser considerado seguramente antinazista, o mesmo no se pode dizer de suas agdes em relagiio aos judeus. Aqui, segundo McLynn, as atitudes de Jung so no minimo ambiguas e imprudentes. A resposta para seu comportamento aproxima-se daquela fomecida por Samuels: Jung visava a conquista da Alemanha pela psicologia analitica. Mas Melynn J lbidem, p. 369. * Ibidem, p. 376. 18 apresenta um aspecto complementar, referente a psicologia pessoal de Jung (fator este nao analisado por Samuels). Jung ainda no havia se recuperado do rompimento desastroso com Freud, nutrindo um édio secreto contra este. Identificando a psicologia judaica com a psicologia freudiana, diz “judaico”, querendo dizer “Freud”. “Apesar de no ser realmente anti-semita, permitiu que 0 édio a Freud envenenasse sua mente, contaminando suas concepgées (...)”. A imprudéncia de Jung se deve ao fato de enfocar a psicologia judaica durante os anos 30, na mesma época em que os nazistas levantavam a “questo judaica”. Em suma, a resposta mais geral para a postura de Jung em relago ao nazismo nos anos 30 relaciona-se com um perigoso oportunismo, utilizando 0 momento politico para depreciar a psicanilise freudiana e favorecer a hegemonia da psicologia analitica na Alemanha. Por fim, 0 psicélogo junguiano Richard Noll procura estabelecer uma ligagdo teorica e pessoal mais profunda e ampla de Jung com a ideologia nazista”, diferindo de Samuels (que estabelece uma ligago tedrica referente a um aspecto restrito da psicologia junguiana: a psicologia das nagdes) ¢ McLynn (que nao estabelece ligagbes tedricas entre Jung ¢ a ideologia nazista). Noll pretende analisar Jung no contexto histérico e ideolégico do fim do século XIX ¢ inicio do século XX; 0 periodo fin de siecle (fim de século) seria uma época de agitagio e conflito de geragdes, propicia ao desmoronamento de velhas atitudes e concepgdes de mundo ¢ o surgimento de novas. Havia um clima de “renovagio” cultural, politica, fisica e espiritual, e Jung, influenciado por este clima, elabora um culto- mistério de renovagao espiritual e transformagao da personalidade, prometendo aos iniciados a revitalizagao através do contato com o estrato pré-cristio e pagio do inconsciente, Este culto seria essencialmente anticristéo e portador de uma ideologia ® Ibidem, p. 382. ™ NOLL, Richard. O Culto de Jung: Origens de um movimento carismético , Sao Paulo, Editora Atica, 1996. 19 vélkisch, contendo também elementos de uma aristocracia nietzschiana pseudolibertaria; segundo Noll, estes fatores (nietzschianismo e misticismo véltisch) aproximam a psicologia junguiana e o nacional-socialismo, Este autor descreve o movimento valkisch como grupos nacionalistas que estavam unidos por uma identidade étmica e cultural comum e queriam o retorno politico e cultural a um passado idealizado, na Alemanha estando associado a valorizag’o do mito e da simbologia germénica de supostos ancestrais arianos. Caracteristicas comuns de todos estes. movimentos vélkisch seriam: repiidio ao cristianismo, em favor de uma ligago mistica do Volk com os antigos povos arianos; culto da natureza; estudo das raizes de simbolos ocultistas; a preferéncia a intuigo sobre o juizo racional; técnicas para vivenciar Deus diretamente; anti-semitismo — todos elementos presentes, segundo o autor, nas concepgdes teéricas de Jung. Para Noll, um fator fundamental para a compreensdo do pensamento e da personalidade de Jung diz respeito a identificag4o orgulhosa deste (cultural ¢ biologicamente) com suas raizes germanicas: “Como se evidencia nos escritos e cartas dos primeiros sessenta anos da vida de Jung, ele indubitavelmente se sentia parte da comunidade do Volk germanico (...)"''. Idéias como “participagdo mistica”, libido familiar ¢ relagdo entre psique-corpo-terra, todas evocando uma ligasdo orgénica do homem com seu entomo social e fisico numa acepedo romantica, seriam subprodutos desta identificagdo do autor com o Volk, derivados do misticismo vélkisch. O culto de Jung seria, entéio, uma promessa de renascimento para o Volk germanico, possivel apenas para os arianos. A psicologia junguiana seria a face espiritualizada do movimento politico nazista. Com relagao ao nietzscheanismo da psicologia junguiana, Noll sugere uma aproximagio do homem individuado de Jung com o Ubermensch (além-do-homem) de Nietzsche, ambos se " Ibidem, p. 24. 20 constituindo numa elite espiritual que almeja o poder politico e “(...) um retomo a uma comunidade dionisiaca irracional e orginica (...)""; Jung e Nietzsche, neste sentido, expressariam 0 dominio espiritual (e politico) de uma “raga de senhores” (arianos, supostamente). Quanto as acusagdes de oportunismo e agdes ambiguas em relagdo ao regime nazista, como expressdes de um interesse no desenvolvimento da psicologia analitica na Alemanha, podemos consideré-las dotadas de algum fundamento, Mas quanto as acusagdes de simpatia ou relagdo tedrica entre a psicologia junguiana e a ideologia nazista, ¢ aqui comegam a se delinear os objetivos deste trabalho, acreditamos que séo imprudentes € baseiam-se em uma falsa interpretagdo das idéias de Jung no que se refere & dialética entre individuo e coletividade. Este trabalho se propée, neste sentido, a interpretar a teoria junguiana (especificamente os aspectos referentes & relag&o individuo/sociedade) como uma proposta de desenvolvimento do individuo em sua totalidade (singular) em detrimento de uma unio organica do mesmo a um corpo coletivo (seja nagdo, familia, povo, tribo, etc.), Seguimos aqui a sugestio de Amnéris Maroni sobre o mesmo tema, identificando na relagdo individuo/sociedade elaborada por Jung uma dupla filiago filos6fica: de um lado & filosofia romantica alema do século XIX, ¢ de outro A filosofia de Nietzsche. “Jung recebe, pois, influéncia dos romanticos e de Nietzsche. Inscreveu no centro de suas preocupagdes, a maneira romantica, as antinomias individuo/sociedade, homem/espécie. Recusava, porém, 0 ideal de domesticacio que a assimilag&io do individuo 4 espécie, a sociedade pressupoe. E possivel, entdo, perscrutar a influéncia de Nietzsche nessa questo”. O estudo desta dupla 7 ipidem, p. 285. ' MARONI, Amnéris. Jung: individuagao e coletividade , So Paulo, Modema, 1998, p.56. 21 filiagdo filoséfica nos permitira abordar a possibilidade de relagao_tedrica da psicologia Junguiana com a ideologia nazista. O carter puramente teérico da pesquisa exige um esclarecimento metodolégico fundamental. Analisaremos uma possivel relagdo tedrica entre a psicologia junguiana e a ideologia nazista, no nos cabendo discutir se houve algum envolvimento pritico e pessoal de Jung com o regime nazista. Neste sentido, concentraremos nossa atengio em seus estudos teéricos, utilizando dados pessoais de sua vida apenas de forma secundaria. A abordagem teérica nos coloca diante de um procedimento inevitével, principalmente por se tratar de uma teoria complexa como a de Jung: toda tentativa de elaboragdo tedrica nao passa de uma interpretacdo dos fatos, e este é um limite que no podemos ultrapassar. Néo pretendemos, portanto, estabelecer uma resposta definitiva para a questdo da relagdio entre Jung ¢ 0 nazismo, constituindo assim uma verdade sobre este tema. Principalmente no que se refere a teoria psicolégica de Jung, que muitas vezes apresenta enorme complexidade, claboragdes confuses © mesmo contraditérias, 0 que a toma altamente propicia a inimeras imterpretagdes e perspectivas de andlise. Primeiramente, faremos uma breve abertura para a exposigiio da relago entre individu e sociedade no pensamento ocidental modemo. Visto que abordaremos uma Possivel conexdo entre ideologia nazista e psicologia analitica por meio dessa relagio, acreditamos ser adequado fornecer um breve esbogo do assunto. Poderemos observar, deste modo, 0 desenvolvimento histérico da questi, culminando na oposigio entre individualismo e holismo. Esta exposic&o nos possibilitaré compreender a sentido histérico- cultural da psicologia junguiana, ponto de encontro entre o holismo romantico e a valorizagao do individuo. No Capitulo 1 faremos a exposigio da ideologia nazista, abordando elementos que nos serGo iiteis para a comparagao final entre a mesma e a 22 psicologia analitica. Mais especificamente, abordaremos a relagdo entre individuo e sociedade na perspectiva totalitéria, assim como faremos as diferenciagdes necessarias entre hitlerismo, nacional-socialismo e pensamento valkisch. No Capitulo 2 observaremos a influéncia roméntica sofrida por Jung, indicando a origem do holismo presente em seu pensamento, Também faremos uma breve exposigéo da controvertida relagdo entre romantismo ¢ nazismo. No Capitulo 3 abordaremos a outra perspectiva filosofica (Nietzsche) que influenciou a visio junguiana da relago entre individuo e sociedade, perspectiva esta que contrabalanga e supera a tendéncia holista da psicologia analitica. Por fim, no Capitulo 4 faremos a comparagio teérica entre a psicologia junguiana e a ideologia nazista, Somente aqui sero compreendidos o alcance e o significado dos elementos apenas enunciados nos capitulos anteriores. Abordaremos com vagar a relagdo entre individuo sociedade no pensamento de Jung, visando entender o sentido do holismo (roméntico) e da valorizagao do individuo (Nietzsche) na perspectiva junguiana. Concluiremos retomando os fios da pesquisa e a pergunta que Ihe deu origem: UNICAMP i CENTRAL 23 24 ABERTURA: INDIVIDUALISMO VERSUS HOLISMO: NO DEBATE MODERNO- antropélogo Louis Dumont define o “individualismo” como o valor fundamental das sociedades modernas'*, Podemos, neste sentido, estabelecer como trago essencial da modemidade 0 surgimento e desenvolvimento de uma certa concepgao de individuo, contraposta a uma visio tradicional do mesmo, Dumont nos fomece as _causas para esta contraposigiio entre uma nogo modema e uma nogdo tradicional de individuo: referem-se a uma disposigdo (fomentada pelo cristianismo) de contraposig&o do individuo em relagio ao todo social a que pertence, o que Dumont denomina de “individuo-fora-do-mundo”, Este movimento de separag&o do individuo em relag3o a0 meio social a que pertence diz respeito, segundo este autor, ao processo de transigHo de uma sociedade “holista” para uma sociedade “individualista”. A sociedade holista pode ser definida pelo conceito de universitas, isto €, “(...) do corpo social como um todo em que os homens vivos nada mais sfio do que as partes’, fazendo parte de uma unidade organica e submetides aos valores do ‘grupo (possuem vontade ¢ liberdade limitadas, nfo auténomas). Por outro lado, a sociedade individualista se desenvolve como expresso do conceito de societas , este se referindo a uma associac&o pura e simples (evoca a idéia de um contrato pelo qual os individuos componentes se “associaram” numa sociedade, implicando em um sujeito preexistente a0 meio social, dotado de uma vontade livre e auténoma). Esta tendéncia de se considerar o surgimento do individuo modemo como expresso de um desligamento deste em relagdo a0 todo social de que faz parte também pode ser ** DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropolégica da ideolagia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985. "SIbidem, p. 76. observada nas obras do historiador suigo Jacob Burckhardt. Para este autor 0 individuo moderno surge pela primeira vez no Renascimento"®, como resultado de condigées politicas € sociais da Itdlia do século XII ¢ XIV. De modo geral, segundo Burckhardt, 0 homem, antes do Renascimento, “(...) s6 estava consciente de si proprio como membro de uma raga, de um povo, de um partido, de uma familia ou corporagio — somente através de uma categoria geral””. O desenvolvimento do individuo se dard por meio de um desligamento deste em relagdo as tradigdes ¢ regras coletivas. O Renascimento pode ser identificado como um primeiro momento de constituigfio de uma consciéncia da individualidade. Agnes Heller, em seu livro O Homem do Renascimento™, retrata muito bem a atmosfera social € ideolégica em que vivia 0 homem renascentista. Com o Renascimento surge um conceito dindmico do homem (este possui intmeras possibilidades de transformagao de si proprio, da sociedade e da natureza; sua liberdade ultrapassa os condicionamentos da natureza e da submissdo a um Deus metafisico que tudo determina), em oposicao a um conceito estitico presente na antigdidade (a potencialidade do ser humano era limitada tanto na vida social como na vida individual, o mesmo fazendo parte de uma hierarquia social predeterminada). A énfase na liberdade individual em relagao ao meio coletivo e natural produziu 0 culto do hhomem que possui um poder ilimitado de autocriagio e transformagio da natureza ¢ da sociedade —o homem cria a sua prépria vida e o seu proprio mundo. Enfim, o homem cria uma “segunda natureza”, emancipada em relago a uma primeira, a qual tolhe a sua liberdade ¢ capacidade de transformagto, Este conceito dinamico do homem é acompanhado por um processo de secularizagao. A consciéncia do poder autocriativo do "© BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na itélia (Um Ensaio), S30 Paulo, Companhia das Letras, 1991. Ihidem, p. 81 ** HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento, Lisboa, Ed. Assirio & Alvim, 1989. 26 homem leva-o a adotar formas ativas de atuagdo no mundo ¢ transformaggo do mesmo (social ou natural), Os Deuses ndo mais intervém nos assuntos do mundo; os homens so cada vez mais responsaveis pelas suas agdes e pelo destino de suas vidas (desaparecimento da crenga na providéncia divina), Neste sentido, uma ética de afastamento do mundo (como a pregada pela Igreja na Idade Média: 0 homem deveria suportar os sofrimentos do mundo para obter uma vida plena somente apés a morte; a passividade frente as determinagdes divinas era considerada uma virtude dos santos e dos escolhidos por Deus) deixa de existir. Como movimento complementar ao Renascimento, no sentido de ser um fenémeno responsével pela proliferagao desta consciéncia do homem enquanto individuo que cria a si proprio, as grandes navegagdes do século XV também tém grande importancia para a formagao da concepgdo moderna do individuo"’, Esta significativa importancia das grandes navegagGes esta vinculada ao desenvolvimento do comércio, o qual se intensifica com 0 inicio das mesmas. Esta proliferagao de relagdes comerciais com outros povos propicia um contato crescente com culturas ¢ formas de pensamento diversificadas, criando classes de homens “cosmopolitas”, imbufdos de um espirito empreendedor. Forma-se, neste sentido, um movimento de desvinculagao do homem a uma cultura especifica, uma ampliagao dos horizontes mentais em relagdo a um modo de vida provinciano, ligado a tradigdes quase imutaveis. As experiéncias podem ser encaradas como uma aquisigao individual, no estando ligadas a um corpo coletivo que determina ¢ limita demasiadamente a existéncia destas. O individuo em grande parte ndo seré mais visto como uma “pega” orgdnica de um mecanismo coletivo, a sua identidade nao estara necessariamente referida a uma identidade grupal, e sim a uma identidade singular formada a partir de experiéncias individuais. B *® FIGUEIREDO, Luis Cléudio Mendonga. A Invengaéo do Psicolégico: quatro séculos de ‘subjetivago (1500 - 1900), Sao Paulo, Educ/Escuta, 1982. 27 claro que este movimento no ocorreu de um momento para outro ¢ nem adquiriu um alcance total em relag&o aos modos de vida dos diversos grupos e culturas inseridos neste. Mas podemos afirmar que esta tendéncia influenciou definitivamente a formagio do conceito de individuo no pensamento ocidental moderno. No plano social ¢ politico podemos observar 0 desenvolvimento de formas de organizago © pensamento que tém como base ideolégica o individualismo. O surgimento do Direito Natural moderno rompe com a visio clissica do Direito Natural, enfatizando a origem individual do direito dos cidadios. Segundo Dumont: “Para os antigos — a excegdo dos estdicos—o homem é um ser social, a natureza é uma ordem, e 0 que se pode vislumbrar, para além das convengdes de cada polis, como constituindo a base ideal ou natural do direito, é uma ordem social em conformidade com a natureza. Para os modernos, sob influéncia do individualismo cristdo e estdico, aquilo a que se chama direito natural no trata de seres sociais mas de individuos (...) Dai resulta que, na concepgdo dos juristas, em primeiro lugar, os principios fundamentais da constituigéio do Estado (e da sociedade) devem ser extraidos das propriedades ¢ qualidades inerentes ao homem, considerado como um ser auténomo, independente de todo e qualquer vinculo social ou politico”. Concebe-se um estado de natureza (composto de individuos isolados) que antecede a vida social e politica, base dos pensadores contratualistas (Hobbes, Rousseau, Locke). Mas € com o desenvolvimento do pensamento politico liberal nos séculos XVII, XVIII € XIX que podemos identificar a consolidagdio do individualism como principio de organizago econémica ¢ politica. John Locke concebe um individuo naturalmente racional, ® DUMONT, Louis. 0 individualismo: uma perspectiva antropolégica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocca, 1985, p. 87, 28 no qual o interesse proprio ¢ um principio de racionalidade ¢ promotor da vida social. O Estado é concebido como uma garantia das leis, dos deveres e dos direitos naturais de cada individu (direito 4 vida, a liberdade, a propriedade); no cabe ao Estado intervir e administrar a vida particular dos individuos, devendo-se estabelecer instrumentos de controle para limitar 0 alcance dos poderes do mesmo (divisdo de poderes — Bxecutivo, Legislativo e Federativo —, por exemplo). O pensamento politico liberal criou o terreno favoravel para o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, em que os agentes econémicos se encontravam e se deixavam articular uns com os outros nos espagos livres dos mercados. O individualismo aparece aqui como um elemento ideolégico que se relaciona com o aumento do poder econémico da burguesia comercial ¢ a sua reivindicagao por uma representago politica que propicie a manutengdo deste poder. Podemos notar claramente esta relag3o ao observarmos as idéias de um pensador politico liberal como Benjamin Constant. Constant vincula a liberdade exigida pelos cidadaos modemnos a constitui¢éo de uma esfera privada que corresponda as necessidades ¢ desejos destes cidadaos, liberdade esta contraposta a liberdade dos povos antigos (vinculada ao ‘campo da participago em uma esfera publica). Esta liberdade moderna proporcionaria o desenvolvimento de um individuo n&o controlado por uma esfera publica, nao estando sujeito a uma ordem coletiva que determina minuciosamente seus valores € agdes. Pode-se dizer que esta formulagio de uma liberdade individual que condiz com os desejos € aspiragdes dos individuos modemos esta diretamente ligada ao desenvolvimento do comércio, fato este ressaltado pelo préprio Constant. Segundo este pensador, 0 desenvolvimento do comércio propicia a cada individuo oportunidades de satisfagaio de suas necessidades e desejos sem a participagdo da autoridade. Ha uma apologia da 29 realizago de empreendimentos individuais, empreendimentos que fornegam aos individuos meios para a obtengdo de sua felicidade individual. A intervengao da autoridade ¢ vista como sendo incémoda e no vantajosa para o maximo desenvolvimento ¢ eficécia dos empreendimentos comerciais. A propria garantia de participagao dos cidadaos na esfera publica deve conceder preferéncia a uma liberdade privada, no interferindo e prejudicando os empreendimentos econdmicos de cada cidadao, E neste sentido que Constant concebe 0 sistema representative como 0 mais propicio para a satisfago das exigéncias de uma preponderancia da esfera privada na vida de todo individuo. Nas palavras do autor: “O sistema representativo néo é mais que a organizagdo com a ajuda da qual uma nago confia a alguns individuos o que ela no pode ou n&o quer fazer. Os pobres fazem eles mesmos os seus negdcios, os homens ricos contratam administradores. Ea histéria das nagdes antigas e das nagdes modemas. O sistema representativo é uma procuraco dada a um certo nimero de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e nio tem, no entanto, tempo para defendé-los sozinho”” A construgao do status de cidadania nos séculos XVI e XVIII é profundamente influenciada pelo individualismo burgués. Segundo T. H. Marshall”, 0 desenvolvimento do status de cidadania na Inglaterra (séculos XVII ¢ XVIII) esteve associado essencialmente a0s direitos civis (direitos necessérios a liberdade individual — liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, 0 direito 4 propriedade ¢ de concluir contratos validos). Os direitos civis eram indispensaveis a uma economia de mercado competitive. “Davam a cada homem, como parte de seu status individual, 0 poder de participar, como * CONSTANT, Benjamin, “Da liberdade dos antigos comparada & dos modemos’, in: Filosofia Politica , LaPM, 1985, p.23. ? MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status , Rio de Janeiro, Zahar, 1967. 30 uma unidade independente, na concorténcia econémica(...)”*. A liberdade individual é a base do direito burgués para livre contrato e usufruto da propriedade privada. A nogao de individuo associa-se, no ambito do pensamento politico liberal, a uma autonomia ¢ racionalidade, dotando 0 individuo de uma vontade independente ¢ capacidade de célculo utilitario que garante sua propria felicidade. Mas o século XIX presenciou uma teag%io holista ao desenvolvimento do individualismo. Podemos observar isso no surgimento da sociologia ¢ na revolta romantica contra os valores modemos. Segundo Dumont, a orientagdo geral dos autores do periodo posterior Revolug&o Francesa (triunfo do individualismo ¢ do iluminismo), sejam eles positivistas, conservadores, romanticos ou socialistas, caracteriza-se como uma “reagdo antiindividualista”™. Com relag&o ao surgimento da sociologia, Carlos Benedito Martins” afirma que a mesma € 0 resultado das crises geradas pelo desenvolvimento do capitalismo, o qual encontra sua expresso econdmica e social na Revolugdo Industrial ¢ sua expresso politica na Revolugo Francesa, Influenciados parcialmente por pensadores conservadores — Edmund Burke (1729-1797), Louis de Bonald (1754-1840) e Joseph de Maistre (1754- 1821) —, pensadores positivistas como Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte (1798- 1857) ¢ Emile Durkheim (1858- 1917) se preocuparam com as crises sociais oriundas da dupla revolugdo™, pensando-as a partir da necessidade de reordemamento social, visando a superagio do estado de “desordem” existente — em seus trabalhos, utilizardio expressbes como “anarquia”, “perturbacio”, “crise”, “desordem”, “anomia”, para julgar a nova 2 Ibidem, p.79. 2 DUMONT, L. Op. cit. p. 115. 25 MARTINS, Carlos Benedito, O Que E Sociologia, So Paulo: Brasiliense, 1994. 8 Os dois primeiros se prenderam as conseqiéncias da Revolugao Francesa e o ultimo as consequéncias da industrializagao. 31 realidade provocada pela dupla revolugdo. Sendo assim, a sociologia, em seu periodo inicial, revestiu-se de um indisfargével contettdo estabilizador, ligando-se aos movimentos. de reforma conservadora da sociedade. Neste contexto, o individualismo liberal é encarado negativamente, devendo dar lugar a uma reintegragao do individuo no todo social de que faz parte. “Enquanto resposta intelectual a ‘crise social’ de seu tempo, os primeiros socidlogos iro revalorizar determinadas instituigdes que segundo eles desempenham papéis fundamentais na integrag&io ¢ na coesdo da vida social. A jovem ciéncia assumia como tarefa intelectual repensar o problema da ordem social, enfatizando a importancia de instituig6es como a autoridade, a familia, a hierarquia social (...)”"’. Desta forma, a sociologia levou certos pensadores a considerar o homem como ser social, a insistir nos fatores sociais que constituem a matéria-prima da personalidade, e explicam, em ultima instincia, que a sociedade nfo é redutivel a uma construg&o artificial na base de individuos”*. Do lado roméntico encontramos a critica ao individuo burgués e seu isolamento na esfera privada, simples étomo egoista em busca de lucros. O holismo romantico, segundo Dumont, foi mais fortemente sentido no romantismo alemio. Caracteristica especifica da cultura alem&, onde o homem é reconhecido imediatamente como ser social, onde a subordinag&o € geralmente reconhecida como normal, necesséria, em sociedade — a necessidade de emancipacdo do individuo é menos fortemente sentida do que a necessidade de enquadramento e de comunhdo™. Ocorreu assim uma transformagio profunda da concepgio do homem na modernidade: em vez do individuo abstrato, representante da espécie humana, 0 romantismo afirma o homem das particularidades culturais, fruto de uma 7 ibidem, p. 30, 2° DUMONT, L. Op. cit, p. 119. Ipidem, p. 139. 32 comunidade cultural determinada, nfo sendo concebido como individuo auténomo, independente do meio social em que vive. O marxismo também elabora uma critica ao individualismo liberal. Segundo Carlos Benedito Martins, uma das principais criticas que Marx dirigia aos economistas classicos (Adam Smith, David Ricardo) dizia respeito ao fato destes suporem que a produgiio dos bens materiais da sociedade era obra de homens isolados, que perseguiam egoisticamente seus interesses particulares. Argumentando contra essa concep¢io individualista, Marx procura assinalar que o homem era um animal essencialmente social”, inserido em um complexo de relagées sociais e econdmicas que determinam sua constituigao. Para Stuart Hall”’, o marxismo representa uma das matrizes tedricas que possibilitou a desconstrugo do sujeito modemo (racional, consciente ¢ auténomo). Com rela¢do a Marx, Hall afirma, baseando-se na verso estruturalista de Louis Althusser sobre os escritos de Marx, que “(...) ao colocar no centro de seu sistema teérico as relagdes sociais (modos de produgdo, explorago da forga de trabalho, os circuitos do capital), ao invés de uma nog&o abstrata de Homem, Marx teria deslocado duas proposigdes chaves da filosofia moderna: 1) a da existéncia de uma esséncia universal de homem; 2) a de que essa esséncia ¢ 0 atributo de “cada individuo particular’, que é seu sujeito real”, Os individuos passam a ser concebidos como 0 resultado de relagdes sociais baseadas nas condigdes materiais de existéncia, nio podendo ser os “autores” ou agentes da historia, uma vez que somente podem agir com base nas condigdes historicas dadas por outros (geragdes precedentes) ¢ nas quais eles nasceram, condigées estas que ultrapassam o limite de sua vontade “racional e aut6noma”, ® MARTINS, C. B. Op. cit, pp.57-58. * Stuart Hall, “A Quest&o da Identidade Cultural", in: Textos Didéticos, n° 18, Campinas, IFCH — UNICAMP, 1998. * tbidem, p. 28. 33 Enfim, podemos afirmar que a modemidade apresenta uma mescla de individualismo holismo, presente em diferentes graus em diversas tendéncias de pensamento, A relag&o entre individuo e sociedade é uma questo recorrente e de importéncia central se quisermos compreender as implicagdes politicas e sociais do pensamento de qualquer autor modemo. Neste sentido, analisaremos as consequiéncias politicas do pensamento de Jung tendo em vista esta relagio, observando sua dupla filiago filosofica no que diz respeito a este tema: romantismo alemao e Nietzsche. 34 CAPITULO 1: DIFERENCAS NECESSARIAS: IDEOLOGIA NACIONAL-SOCIALISTA, HITLER E PENSAMENTO VOLKISCH Analisaremos uma possivel conexio tedrica entre a psicologia analitica ¢ a ideologia nazista, nao nos cabendo discutir se houve algum envolvimento pratico e pessoal de Jung com o regime nazistaTrata-se de uma hipétese no nosso trabalho. Como vimos, para Richard Noll, essa hipétese se transforma desde as primeiras paginas de seu livro em certeza. De inicio se opdem a nds algumas objegdes sobre a validade deste tipo de abordagem. Pode-se afirmar que a comparagdo entre um conjunto de elementos ¢ proposigdes tedricas concatenadas em uma teoria coerente (psicologia analitica) e uma ideologia que serve a fins politicos ¢ falha em principio. Se compreendermos a ideologia como mascara (no sentido marxista), como um conjunto de idéias que visam encobrir interesses econémicos ou interesses outros que os anunciados na ideologia, a falha é evidente; esta viséo apenas apresentaria a ideologia como embuste ou propaganda, como instrumento de fins politicos ou econémicos, ou seja, como um fator secundério. Como primeiro passo para contomar esta objego devemos negar a importncia secundaria da ideologia no nazismo, afirmando a mesma como fator primario ¢ indispensavel, como uma Weltanschauung (visio de mundo) que serve de guia para a ago politica, e ndo 0 contrario. E neste sentido que Emst Nolte poe em duvida a natureza instrumental ¢ secundaria da ideologia no fascismo”, afirmando que, se podemos ter Nolte localiza o nazismo em um movimento politico e social conservador mais amplo (movimento anti-bolchevique, militarista e nacionalista), 0 quai incluiria também 0 fascismo italiano e a a¢do divvidas em relagéio a importincia da ideologia para o fascismo italiano, ndo podemos duvidar da sua importancia para o nacional-socialismo; é inegavel, para o autor, que a motivagao mais poderosa para a implementago da politica nazista, no caso de Hitler, foi a existéncia de certos conceitos bisicos, de certos principios imutaveis ¢ coerentemente estruturados, fazendo com que a pratica politica fosse a realizagio de uma idéia’*. No mesmo sentido argumenta Hannah Arendt sobre a importncia da ideologia para os governos totalitarios (nazismo e socialismo sob Stalin); o cardter no utilitério da ideologia contrastaria com a viséo marxista sobre a mesma, constituindo-se num elemento de perplexidade ¢ incerteza na politica contempordnea. Segundo a autora: “Exatamente porque se supunha que as ideologias tivessem um natural contetdo utilitirio, a conduta antiutilitaria dos governos totalitérios e a sua completa indiferenga pelo interesse da massa causaram um choque tao profundo. Essa conduta introduziu na politica contempordnea um. elemento de imprevisibilidade até entéo desconhecido”*’, © cariter inovador (sut generis) do nazismo foi o primado da idéia sobre a realidade, da fé inabalével em um mundo ideolégico ficticio sobre interesses de poder ¢ interesses econdmicos™. Neste contexto, a ideologia funciona sob a légica férrea de um ideal coerente e abstrato, desconsiderando os fatos e as experiéncias histéricas. Os fatos so casuais, incontrolaveis, imprevisiveis, A ideologia, como concepgo de mundo que se pretende detentora da chave da historia, subordinando o funcionamento “oculto” do Universo a principios restritos”, procura oferecer um supersentido a natureza ¢ a historia, buscando adaptar a realidade a logica de francesa. Neste sentido, o autor no equipara o nazismo ao socialismo stalinista, evitando reuni- los sob 0 conceito de totalitarismo. ** NOLTE, Emst. Three Faces of Fascism: action francaise, italian fascism, national socialism, New York: Holt, Rinehart and Winston, 1968, pp. 24-25. 3, ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, S80 Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 396. ® Ibidem, pp. 467-469. * Ibidem, p. 189. 36 seus principios. Sobre isto, Arendt nos diz: “Uma ideologia ¢ bem literalmente 0 que seu nome indica: é a légica de uma idéia. O seu objeto de estudo ¢ a historia, & qual a “idéia’ é aplicada [...] A ideologia trata o curso dos acontecimentos como se seguisse a mesma ‘lei’ adotada na exposicao légica da sua ‘idéia’”™*. A agressividade e o expansionismo mundial do totalitarismo, nesta visio, naio advém do desejo de poder ou de Iucro, mas apenas de motivos ideolégicos: para tomar o mundo coerente, para subordinar os fatos a légica de sua idéia, para provar que o seu supersentido estava certo”. Desta perspectiva, a ideologia nio mero instrumento ou mascara, mas 0 motor e 0 fundamento da ago politica. Cremos que a posigao privilegiada da ideologia no regime nazista, como visto acima, nos oferece uma base sOlida para a comparagio dos dois conjuntos tedricos (psicologia analitica e ideologia nazista) que analisaremos e, neste sentido, uma vinculagdo 0u no vinculago teérica de Jung com o nazismo nfo assume carter secundario. NAZISMO E HITLERISMO 0 objeto de estudo “ideologia nazista” pode se apresentar de modo demasiado vago para os nossos objetivos Visto que nos deteremos na andlise da visio de mundo de Hitler seré propicia uma delimitagdo do mesmo. Esta delimitag&o se faz necesséria porque 0 nazismo comportou pelo menos trés diferentes tendéncias de pensamento em rela a0 desenvolvimento de uma nova sociedade ou nova organizagao estatal. Se em Ultima instancia a tendéncia hitlerista dominou a partir de 1934, isto no retira a importancia das outras duas, pois elas forneceram ao NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Ibidem, p. 521 * Ibidem, p. 509. Ver também pp. 521-524 37 Trabalhadores Alemaes) um caréter ambiguo, atraindo para 0 mesmo o apoio de elementos revolucionarios e conservadores, elementos de “esquerda” e de “direita”. Uma das tendéncias se desenvolveu com os irmfos Otto e Gregor Strasser. Concebiam um sistema semicorporativista ¢ semi-socialista. © primeiro no sentido de que a sociedade seria organizada de acordo com profissdes e interesses; 0 segundo porque previa a diviséo da propriedade privada. Objetivavam a implementagdo do socialismo alemfo, ou socialismo nacionalista (0 nome do partido — Nacional Socialista — ja continha esta possibilidade), 0 qual valorizava o papel dos trabalhadores no reerguimento da nagiio alema, assim como uma aproximagao com a URSS, para formarem uma alianga contra 0 capitalismo ocidental ¢ seu internacionalismo destruidor das especificidades nacionais. Neste contexto se aproximaram dos Nacional-Revoluciondrios alemaes, os quais viam no socialismo sob Stélin 0 desenvolvimento de um regime essencialmente nacionalista, yalorizando ¢ conservando os elementos originais russos (uma volta aos czares € seu imperialismo guerreiro). Os inmaos Strasser também enfatizavam a necessidade da conservagio ¢ do redespertar cultural dos elementos especificamente germénicos"”. Atrairam para 0 NSDAP elementos nacionalistas antiburgueses, preocupando os meios conservadores ¢ industriais, os quais viam no nazismo a possibilidade de superagao do capitalismo ¢ implementacao do bolchevismo. O strasserismo ganhou predomindncia no NSDAP apés a pristio de Hitler em 1923, act! conquistando um vasto espago na esquerda e nas massas alemas"’. Foi gracas aos irméos Strasser que o NSDAP deixou de ser um pequeno grupo de conspiradores em Munique e se ® A tendéncia nacionalista-volkisch é um elemento comum a todo Movimento Nacional alemao (movimento de oposigao ao sistema democratico e pariamentar da republica de Weimar). "FAYE, Jean Pierre. Langages Totalitaires: la raison critique de leconomie narrative, Paris Hermann, 1980. p. 130. tomou um partido de amplitude nacional, expandido-se para o norte mais industrializado se voltando para os trabalhadores. Mas suas tendéncias anticapitalistas os colocaram em oposig&o direta a Hitler, visto pelos circulos revolucionarios do Movimento Nacional como um conservador, mantendo boas relagdes com industriais (fontes de financiamento do partido), Otto Strasser rompe com o NSDAP em julho de 1930, formando com ex-membros da SA” do norte e Walter Stennes (ex-chefe da SA do nordeste) o “Fronte Negro” Meses antes as posigdes inconciliaveis de Hitler e Otto Strasser se enfrentaram por ocasidio da greve dos metalirgicos na Saxe; Strasser afirmou que o partido devia apoiar a greve, mas Hitler no concordou, por pressio dos industriais. Jean Pierre Faye reproduz um didlogo entre ambos nessa ocasiao™: Strasser: Hitler quer estrangular a revolugiio, aproximando-se da direita; o mesmo nio ¢ anticapitalista, mas conservador. © Hitler: O socialismo de Strasser ¢ marxismo integral. Nao se pode conquistar as massas com ideais, mas com pao e circo; a massa ndo importa como elemento governante —— é preciso selecionar uma nova camada de mestres (elitismo), baseada em critérios raciais, Deve-se visar uma revolugao racial ¢ nao uma revolugao social. Aos olhos das tendéncias revolucionarias a revolugao racial de Hitler era uma revolugo conservadora, objetivando apenas a superagao do sistema democratico- parlamentar de Weimar, mas mantendo a ordem econémica capitalista. Com a saida de Otto Strasser o hitlerismo ¢ seu conservadorismo ganharam proeminéncia, expressando-se diretamente na alianga NSDAP-DNVP (partido conservador) nas eleigdes de 1933. Mas o “fantasma” do strasserismo permaneceu sobre 0 partido, ® Corpo paramilitar destinado a proteger os discursos do NSDAP antes da ascensao ao poder. © Ibidem, p. 138. “ Ibidem, p.136. 39 atraindo para si os anseios de uma parte da ala esquerda do Movimento Nacional (com 0 seu sonhado socialismo nacional e possivel aproximag4o com a URSS), pois o hitlerismo em toda a sua forga ¢ crueza se manifestou somente durante a guerra, para deceppao de amplas camadas que 0 apoiaram na década de 30, Em suma, antes da guerra ¢ da quebra do pacto de n&o agressio germano-soviético o nazismo ainda atraia parcelas nio conservadoras da sociedade alema. Outra tendéncia se desenvolveu com Emst Réhm, lider da SA. Segundo Nolte, Rohm pretendia substituir 0 Reichswekr (Exército) e seu quadro de oficiais reacionarios pelo Exército popular nacional-socialista formado a partir da SA‘’. Ligado a este anseio pessoal estava a chamada “Segunda Revolugao”, na qual os elementos mais progressistas do partido visavam superar a Revolugio Conservadora de Hitler, a qual nio expressava tendéncias anticapitalistas (“

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