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Proposta do MEC para

ensino de história mata a


temporalidade
DEMÉTRIO MAGNOLI
ELAINE SENISE BARBOSA

08/11/2015 02h03

RESUMO Este texto critica a visão de


história da Base Nacional Comum
Curricular proposta pelo Ministério da
Educação. Ao abandonar a temporalidade
em prol de certa noção de cultura, a BNC
bane a ideia de história em construção e
apaga dos livros didáticos as páginas
consagradas à formação das modernas
sociedades ocidentais.

O ensino de história deve se basear "em


ensinamento crítico, mas sem descambar
para ideologia". A recomendação
apareceu no Facebook do já então ex-
ministro da Educação Renato Janine
Ribeiro, como uma crítica explícita à Base
Nacional Comum Curricular (BNC) de
história, divulgada quando ele ainda
chefiava a pasta.

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Por uma dessas extraordinárias


coincidências, Janine pronunciou-se
horas depois da publicação de artigo de
nossa autoria sobre o mesmo assunto
("História sem tempo", "O Globo", 8/10).
E, casualmente, ele repetiu um argumento
nuclear daquele artigo. "Não havia, na
proposta, uma história do mundo",
escreveu, cutucando a ferida de um
programa que ignorava "quase por
completo o que não fosse Brasil e África".

Janine tem razão quando enquadra o


debate na moldura dos direitos dos
estudantes e enfatiza o tema, tão
esquecido, da pluralidade. "É direito de
todo jovem saber o trajeto histórico do
mundo. Precisa saber sobre a
Renascença, as revoluções, muita coisa.
Mas não há uma interpretação única de
nenhum desses fenômenos. E é esta
diversidade que a educação democrática
e de qualidade deve garantir." Aloizio
Mercadante, novo titular do ministério,
parece igualmente convencido de que há
algo de fundamentalmente errado num
documento com "muita África e história
indígena e pouca história ocidental".

As críticas de Janine e Mercadante têm


peso político suficiente para provocar
algum tipo de reforma na BNC, mas
apenas roçam a superfície do problema:
atrás da abolição da "história ocidental"
encontra-se a supressão do próprio
sentido temporal que define a disciplina.

Marc Bloch disse que "a história é a


ciência dos homens no tempo". Na
direção oposta, os autores (anônimos e,
assim, "especialistas") do documento do
MEC investiram numa sociologia do
multiculturalismo que esvazia a
temporalidade e, com ela, a gramática da
historiografia. De fato, se aplicada, a
proposta oficial significará o
cancelamento do ensino de história. A
narrativa histórica canônica estrutura-se
sobre um esquema temporal clássico:
Antiguidade, Idade Média, Idade
Moderna, Idade Contemporânea. De
acordo com a BNC, alunos do 6º ano do
ensino fundamental, com 11 ou 12 anos de
idade, devem aprender a "problematizar"
o "modelo quadripartite francês". Dali em
diante, até o fim do ensino médio, o
"modelo" nunca mais aparece.

Junto com ele, desintegra-se o ensino da


Grécia clássica, do medievo das
catedrais, do comércio e das cidades e,
ainda, das rupturas filosóficas, culturais e
religiosas que anunciaram a modernidade.

No lugar disso, segundo o documento do


MEC, o ensino médio é chamado a se
concentrar no estudo dos "mundos
ameríndios, africanos e afro-brasileiros"
(1º ano), dos "mundos americanos" (2º
ano) e dos "mundos europeus e
asiáticos" (3º ano). Assim, expulsa da
escola, a temporalidade é substituída por
supostos atores coletivos, construídos a
partir de uma tosca noção de cultura.

TEMPORALIDADE

A história entrou na escola pelas mãos do


Estado-Nação europeu, no século 19.
Inexiste novidade na crítica ao paradigma
temporal clássico, impregnado de
positivismo, evolucionismo e
eurocentrismo. Contudo superá-lo não
implica suprimir a gramática da
temporalidade.

O programa (mal) camuflado da BNC não


é incorporar a África, a Ásia e a América
pré-colombiana ao ensino de história,
mas recortar dos livros didáticos as
páginas consagradas à formação das
modernas sociedades ocidentais,
erguidas sobre o princípio da igualdade
dos indivíduos perante a lei.

Numa primeira versão da proposta,


informa Janine, os autores orientavam o
estudo de revoltas coloniais com a
participação de escravos ou índios, mas
"deixavam de lado a Inconfidência
Mineira". Seria um equívoco concluir daí
que a exclusão decorria, principalmente,
da ausência de escravos ou índios no
movimento dos inconfidentes. O alvo da
censura situa-se mais abaixo: na
presença das ideias iluministas que
conectam Tiradentes às revoluções
Americana e Francesa.

Há método no caos da BNC. Sem a ágora


grega, praça de mercado e praça pública,
os estudantes ignorarão as origens do
individualismo e da democracia –e a
relação que existe entre ambos. Sem a
Idade Média europeia, jamais entenderão
a importância das religiões monoteístas
na formação de sociedades que, pela
primeira vez, englobaram grupos
geográfica e culturalmente diversos por
meio de valores éticos universalistas. Sem
o Antigo Regime, não serão apresentados
à filosofia das Luzes, base do contrato
político da cidadania e fonte da ideia de
que as pessoas são donas de suas
escolhas e seus destinos. Sem a
contestação socialista ao liberalismo, que
emergiu na Europa novecentista, não
compreenderão a trajetória de afirmação
dos direitos sociais e trabalhistas.

O vácuo dessas múltiplas ausências será


preenchido pelo ensino de histórias
paralelas de povos separados pela
intransponível muralha da "cultura".

A "história ocidental" mencionada por


Mercadante converteu-se, num certo
ponto, em história universal, pois a
expansão dos Estados europeus –um
percurso balizado pelas navegações, pela
Revolução Industrial e pelo imperialismo–
entrelaçou o mundo inteiro. O paradigma
temporal clássico refletia a idealização
desse processo. Uma educação
democrática tem o dever de narrá-lo na
sua inteireza, evidenciando suas luzes e
suas sombras.

A herança ocidental abrange tanto a


liberdade quanto a opressão: o habeas
corpus e o tráfico escravista, a soberania
popular e a tirania, a independência
nacional e o colonialismo, a igualdade
política e o racismo, os direitos humanos
e o totalitarismo, a vacinação e a morte
radioativa. A educação escolar tem o
desafio de investigar tais complexidades e
contradições. Mas, à abordagem dos
educadores, a BNC contrapõe o método
típico dos doutrinadores, fornecendo uma
narrativa sobre mocinhos e bandidos que
infantiliza professores e estudantes.

Quando Bloch define a história pela


dimensão temporal, ele quer enfatizar seu
caráter cronológico: o sentido de
"processo", isto é, as relações e
interações que promovem constantes
mutações sociais.

A "história em construção" é
precisamente aquilo que os formuladores
da BNC pretendem dissolver, de modo a
fabricar sujeitos a-históricos: grupos
étnicos ou raciais identificados por
supostas essências culturais e, portanto,
impermeáveis à mudança. Eles não
querem, como alegam, conferir
visibilidade à história da África, da Ásia ou
da América pré-colombiana, mas fabricar
a "história dos africanos", a "história dos
ameríndios" e a "história dos asiáticos",
numa cartolina que incluiria, ainda, a
"história dos europeus".

FETICHIZAÇÃO

Seria um equívoco interpretar a BNC


como uma revolta contra o
"ocidentalismo". De fato, não há nada
mais "ocidental" que a fetichização da
cultura. O essencialismo cultural deita
raízes na "ciência das raças", elaborada à
sombra do imperialismo, que falava do
"fardo do homem branco" e produzia
quadros descritivos sobre os "negros"
(africanos), os "amarelos" (asiáticos) e os
"vermelhos" (ameríndios). Atualmente,
sob o mesmo registro operativo, difunde-
se a tese neoconservadora do "choque
de civilizações". Os autores convocados
pelo MEC usam a linguagem e os
conceitos do "choque de civilizações",
fabricando uma cópia invertida da célebre
narrativa sobre a "missão civilizatória"
dos europeus.

A escritura da história segue caminhos


diversos. A historiografia liberal enfatiza a
política e o indivíduo. Os historiadores
marxistas colocam os holofotes sobre as
classes sociais e a economia. Mais
recentemente, a nova história alargou e
fragmentou o campo de investigação,
abordando as mentalidades, ou seja, as
representações sociais. A BNC, contudo,
rejeita em bloco todo esse variado
repertório, pois recusa a temporalidade.
Nesse passo, acende uma fogueira
destinada a consumir as obras
consagradas e a melhor produção
historiográfica acadêmica.

Para que serve o ensino de história? Na


sua origem, a história escolar servia para
inscrever a pátria no mármore da
eternidade. A antiga visão utilitária
reaparece, sob roupagem atualizada, na
BNC.

Reagindo à crítica tardia de Janine, a


professora Márcia Elisa Ramos, da
Universidade Estadual de Londrina,
defendeu a proposta do MEC recorrendo
a uma alegação orwelliana de aparência
banal: "O ensino de história deve não
apenas estudar as diferenças mas
compreender para respeitar. O currículo
apenas contempla os objetivos do ensino
de história, que são respeito à
diversidade, pluralidades étnico-raciais,
religiosa, de gênero etc.".

Não se ensina biologia para que os jovens


aprendam regras de saúde e higiene. Não
se ensina química para evitar a ingestão
de substâncias tóxicas pelos alunos. Não
se ensina física para alertar sobre o
perigo de saltar da janela do edifício. Não
se ensina português para treinar a
habilidade de redigir solicitações de
emprego. Não se ensina matemática para
calcular os rendimentos da poupança.
Tudo isso, bem como a aversão a
preconceitos étnicos, raciais, religiosos
ou de gênero, são subprodutos úteis da
educação escolar. Mas o conhecimento
serve a si mesmo: é um passaporte que
garante acesso ao diálogo do mundo.

Diferentes indivíduos leem o mundo de


formas diversas. Escola não é igreja: não
é lugar de pregação, de tutela ou de
retificação de mentes "desviantes".

A história, como as outras disciplinas,


serve para acender a chama da
curiosidade intelectual, ensinar os
fundamentos do pensamento científico,
habilitar os jovens para investigar,
interpretar e refletir. Nossos
doutrinadores de plantão, sábios
"especialistas" que não declinam seus
nomes, jamais concordarão com isso.

DEMÉTRIO MAGNOLI, 57, sociólogo e


doutor em geografia humana, é colunista
da Folha.

ELAINE SENISE BARBOSA, 50, é


professora de história, autora de "História
das Guerras" (Contexto).

Edição impressa
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