You are on page 1of 10

EDUCAÇÃO, TRABALHO E SUBJETIVIDADES: DO TRABALHADOR DISCIPLINADO

AO MORTO DE FOME ENDIVIDADO


Karla Saraiva

A organização do trabalho e a forma escolar encontram-se imbricadas desde o surgimento da


escola pública na Europa do século XIX. O corpo do operário era forjado nos bancos escolares, que
produzia corpos dóceis e bem adaptados às rotinas disciplinares. Desde finais do século XX, estamos
vivenciando profundas e rápidas transformações na organização do trabalho, nas quais as tecnologias
digitais têm um papel importante. Ainda que não determinem essas transformações, elas são uma
condição de possibilidade para sua emergência e fortalecimento. Neste capítulo, apresento um breve
panorama dessas transformações da organização do trabalho e traço algumas relações com discursos
e acontecimentos educacionais contemporâneos, focalizando o desenvolvimento de competências
socioemocionais.
Na seção seguinte, faço um resgate sucinto das relações escola-trabalho no contexto de uma
sociedade disciplinar. A seguir, discuto as novas formas de organização do trabalho que emergem a
partir do final do século XX. Finalizo tratando das relações com as competências socioemocionais.

Capitalismo industrial e escola disciplinar


A Revolução Industrial teve início em meados do século XVIII, na Inglaterra, expandindo-se
para o restante da Europa e aportando nos EUA no século XIX. As fábricas que surgiram nesse
processo estavam orientadas por uma ordem que Foucault (1999) denominou disciplinar: rígido
controle do tempo e corpos fixos em postos de trabalho, colocando todos e cada um sob vigilância e
instituindo sanções para quem infringisse os regulamentos. Os operários dos primeiros anos da
Revolução Industrial eram oriundos da zona rural, não estando habituados com essas rotinas. Isso
resultava em elevado absenteísmo e problemas de adaptação.
De acordo com Varela e Alvarez-Uría (1992), havia a percepção de que esses problemas
poderiam ser superados pela escolarização. Isso pode ser observado na citação que fazem de Estrada
(1852 apud VARELA; ALVAREZ-URÍA 1992, p. 240): “A educação dos trabalhadores é o único
meio seguro de precaver as agitações tormentosas”. A escola moderna, uma invenção do século XVII,
instituiu-se como escola pública no século XIX, dando condições para o avanço e consolidação do
capitalismo industrial. A organização disciplinar da escola, análoga à da fábrica, produz corpos dóceis
e úteis, capazes de aceitarem as rotinas fabris com maior facilidade. O corpo do operário era forjado
nos bancos escolares.
No Brasil, tanto a industrialização, quanto a criação de escolas públicas, é bem posterior ao
movimento que se observa na Europa, além de avançar em outro ritmo. Getúlio Vargas chega ao
poder em 1930 com um projeto desenvolvimentista de industrialização para o país. Tal projeto
ganhará mais força no governo de Juscelino Kubitschek e será levado adiante pelos governos
militares. A participação da indústria de transformação no PIB alcança seu máximo nos anos 1970-
1980, quando representava cerca de um quarto do valor total. Em 2018, a participação da indústria de
transformação era de apenas 11,3%, tendo decaído ainda mais depois disso (MORCEIRO, 2019).
Atualmente, o setor com mais pessoas atuando é o setor de serviços, considerado aquele com maior
precarização do trabalho. 45% dos trabalhadores brasileiros estão nesse setor contra 22% no comércio
e 13% na indústria (IEDI, 2019).
Reportagem publicado no periódico El País (OLIVEIRA, 2021) indica que a pandemia
acentuou o processo de desindustrialização. O entrevistado Fausto Augusto Jr., diretor técnico do
DIEESE, comenta que isso também vem ocorrendo em países desenvolvidos, porém por outros
motivos. Enquanto lá, a indústria de transformação vem sendo substituída por atividades ligadas às
tecnologias de ponta, que vem sendo chamada de indústria 4.0, aqui sua substituição vem sendo pelo
agronegócio e pelo extrativismo. Ainda segundo a matéria, existe uma política do atual Governo,
presidido por Jair Bolsonaro, de incentivo a esse processo.
Getúlio Vargas não apenas se preocupou com a industrialização do país, como foi o primeiro
governante a criar políticas nacionais para a educação nos anos 1930 e 1940. Já em 1930, criou o
Ministério da Educação e da Saúde Pública, sob o comando do escolanovista Francisco Campos, que
regulamentou o ensino secundário e o ensino superior. Porém, uma forte crítica, foi não ter dado
qualquer atenção à escola fundamental. Ainda sob o Governo Vargas, entre 1942 e 1946, aconteceu
a chamada Reforma Capanema, que é assim denominada por ter sido realizada pelo então Ministro
da Educação, Gustavo Capanema. Essa reforma regulamentou o ensino fundamental e criou o
SENAC e o SENAI. Contudo, não houve uma efetiva expansão da escolarização para as classes
populares.
A Constituição de 1946 reconheceu a educação como um direito e determinou a que deveria
ser desenvolvida a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Sua discussão durou 15
anos, sendo aprovada em 1961. Ela previa a obrigatoriedade do ensino primário, o que não ocorreu
efetivamente, tendo em vista o grande número de isenções previstas (NASCIMENTO, 2012). O
governo militar reformou a LDB em 1971, instituindo compulsoriamente o ensino profissionalizante
no segundo grau, pretendendo com isso contribuir com o desenvolvimento do país. Embora a
escolarização obrigatória só tenha acontecido com a LDB de 1996, é possível perceber uma relação
entre políticas educacionais e os projetos desenvolvimentistas voltados para a industrialização.
Tecnologias digitais e capitalismo de plataforma
A organização disciplinar-fordista do trabalho que havia se instituído na Europa e EUA ao
longo do século XX proporcionou um alto nível de estabilidade e segurança para seus trabalhadores
nos anos 1970. Segundo Chamayou (2020), essa situação levava a crescentes demandas pelos
operários nas fábricas, com recusas que se caracterizariam como indisciplinas: absenteísmo,
demissões voluntárias, resistência ao aumento de produtividade. Nesse momento, as empresas
começaram a se mobilizar para restituir a disciplina para o ambiente de trabalho.
Em um primeiro momento, tentaram endurecer as sanções, intensificando a disciplinarização,
mas isso apenas acarretou uma maior resistência por parte dos trabalhadores. Para Chamayou (2020,
p. 41). “opera-se assim uma mudança nas teorias da revolta. Por que nos insurgimos? Diziam: por
necessidade. Dirão: porque podemos nos dar ao luxo”. O patronato constatava que as revoltas eram
possíveis, pois a bonança da situação econômica permitia que os trabalhadores não temessem as
consequências. O pleno emprego estava na raiz da indisciplina. Chamayou (2020, p. 53) transcreve
parte de uma matéria publicada na Newsweek, em 1970: “para domar esse bando de inconsequentes,
esse país [EUA] precisa de uma boa depressão”. Porém, não basta ameaças ao emprego, sendo
mantidas as políticas de bem-estar. Era necessário, além da depressão econômica, reduzir as proteções
sociais.
Nesta época, começava a se consolidar a racionalidade neoliberal. Embora os princípios do
neoliberalismo já viessem sendo estabelecidos por teóricos desde meados do século XX, sua
transformação em racionalidade política disseminada pelo tecido social aconteceu a partir dos anos
1970. O primeiro, digamos, laboratório foi o Chile de Pinochet, o que mostra que desde sempre os
neoliberais não tinham grande apreço pela democracia (LAZZARATO, 2019). Porém, o
neoliberalismo ganhou visibilidade com os governos de Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA.
Foucault (2008), no Curso Nascimento da biopolítica, trata o neoliberalismo como uma forma de
governamentalidade, ou seja, como uma racionalidade que é assumida de modo cada vez mais
naturalizado para a condução das condutas. Nesse sentido, o neoliberalismo gradativamente tornou-
se um modo de vida, que orienta visões de mundo, valores e comportamentos. Na esteira do filósofo,
Brown (2016) aponta que, mais do que políticas explicitamente neoliberais, é necessário atentar a
uma racionalidade neoliberal difusa que se aloja até mesmo nas práticas daqueles que querem
combater o neoliberalismo.
Para Foucault (2008), o princípio de inteligibilidade do neoliberalismo é a concorrência. Uma
concorrência que atravessa a sociedade em todos os seus níveis e em todas as esferas. Concorrência
entre empresas, mas também entre indivíduos. Concorrência no âmbito dos assuntos econômicos,
mas também daqueles que estariam fora do estrito campo da economia. O neoliberalismo estende a
noção de Homo œconomicus e de mercado para além dos domínios econômicos, fazendo com que a
ideia de mercado recubra todos os domínios da vida.
Outros conceitos articulam-se com o de concorrência no âmbito da governamentalidade
neoliberal, dentre os quais destaco dois que serão importantes para desenvolver este capítulo. O
primeiro deles é o conceito de inovação, que foi apropriado pelos neoliberais a partir da obra de
Schumpeter, Teoria do desenvolvimento econômico, de 1911 (apud DARDOT; LAVAL, 2016). Para
esse autor, a inovação é a principal arma para vencer a concorrência.
O segundo é o de empreendedor, que é um sujeito que deve gerir sua vida como uma empresa.
Ou, conforme Foucault (2008), que deve se conduzir como um empresário de si. O conceito de
liberdade é central para as teorias liberais e neoliberais, com matizes distintos. Ainda segundo
Foucault, enquanto a liberdade para os liberais era da ordem do natural, para os neoliberais, a
liberdade deve ser produzida. Nesse sentido, o empreendedorismo torna-se um imperativo e é
valorizado como uma prática de liberdade, que emancipa o sujeito dos laços de servidão. Incentivar
o empreendedorismo, fazer dele um tema presente no currículo, é produzir liberdade.
Entendo que essas sejam condições de possibilidade para as transformações da organização
do trabalho, que vão se acelerar por meio do uso das tecnologias digitais. Assim, é necessário
compreender que essas tecnologias não estão na origem das transformações, mas surgem como
ferramentas que se acoplam a um movimento que lhe antecede, contribuindo para sua consolidação e
aceleração.
Com popularização das tecnologias digitais e da conexão em rede desde o final do século XX,
houve uma profunda reconfiguração dos modos de vida das sociedades em que elas se fizeram mais
presente. Em relação aos modos de produção, autores ligados ao operaísmo italiano produziram o
conceito de capitalismo cognitivo nos primeiros anos do século XXI. Para Corsani (2003, p.17), a
inovação trata-se de um “processo de produção de conhecimentos por conhecimentos”. Para a autora,
se a inovação se fazia presente como exceção no capitalismo industrial, no capitalismo cognitivo, ela
torna-se rotina. Agora, o que importa é ser disruptivo, mais um dos vocábulos da novilíngua do
neoliberalismo avançado da terceira década do século XXI.
A partir dessa análise, entendo que a temporalidade linear da reprodução infinita do
capitalismo industrial dá lugar para uma temporalidade pontilhista (MAFFESOLLI, 2003), em que
as inovações incessantes rompem a continuidade do tempo, tornando-o uma sucessão de instantes
fracamente conectados e ordenados.
Nesse cenário, a produção já não encontra seu lugar de destaque no chão de fábrica (ainda que
continue a necessitar dele), mas nos escritórios de design, de projeto, de pesquisa, de
desenvolvimento, de marketing. Contudo, ainda que nesses lugares se catalisem os processos
inventivos, a produção que acontece como invenção se dá em redes que são espacial e temporalmente
ilimitadas. Por essa razão, a inovação é acelerada com o uso das tecnologias digitais, capazes de
colocar uma multidão de cérebros em cooperação (LAZZARATO, 2006).
Na mesma época em que foi criado o conceito de capitalismo cognitivo, Lazzarato e Negri
(2001) trouxeram o conceito de trabalho imaterial. Uma forma de trabalho que requer um uso mínimo
das forças do corpo, apoiando-se sobre o uso do intelecto. A associação do trabalho imaterial com o
capitalismo cognitivo foi discutida por Cocco, Silva e Galvão (2003).
A hipótese do capitalismo cognitivo e de sua associação com o trabalho imaterial foi assumida
por mim em outros artigos (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009 e SARAIVA, 2013). Nesses trabalhos,
produzi críticas a essa forma de produção e de organização do trabalho, indicando seu potencial para
estender a atividade laboral de modo ilimitado, com capacidade de recobrir todo o tempo da vida,
bem como para promover a precarização do trabalho, por facilitar processos de terceirização e
pejotização, além de uma extração de valor ilimitada de uma criação que excede os limites da
empresa. Além disso, considerava o capitalismo cognitivo altamente excludente, pois tendia a gerar
um número limitado de postos de trabalho.
Contudo, nos últimos anos, podemos observar, por um lado, a popularização das tecnologias
digitais móveis e, por outro, um enorme espraiamento das chamadas plataformas. Esses
acontecimentos promovem novas transformações nos modos de vida, o que inclui os processos
produtivos e a organização do trabalho. Nas sociedades em que o acesso à internet já está
razoavelmente disseminado, um número crescente de atividades passa pelo uso de plataformas. Redes
sociais; serviços bancários e financeiros; serviços de comunicação instantânea; streaming de música
e vídeo, serviços públicos variados (Cadastro Único, SUS, Imposto de Renda, ...); plataformas de
compras online são algumas das plataformas que estão presentes na vida cotidiana daqueles que têm
um mínimo de inclusão digital. Também usamos plataformas para pedir comida, solicitar transporte,
fazer cursos online, buscar prestadores de serviços domésticos, entre outras demandas.
Frente a isso, considero que a ideia de capitalismo cognitivo já não seja a mais adequada para
o quadro atual. Diversos autores vêm indicando outras formas de nomear o estágio atual do
capitalismo. Neste momento, acredito que a proposta de Srnicek (2017) seja a mais adequada:
capitalismo de plataforma. Parece-me que seja possível afirmar que o capitalismo de plataforma está
para a sociedade de controle, conforme Deleuze (1992), assim como o capitalismo industrial está para
a sociedade disciplinar. Para Lazzarato (2006), as relações de poder na sociedade de controle se
utilizam de tecnologias eletrônicas avançadas, que potencializam a ação de mentes sobre mentes a
distância. Nas sociedades disciplinares passava-se de uma instituição para outra em sequência: da
escola para a fábrica, para o exército (DELEUZE, 1992). Entendo que, nas sociedades de controle,
passamos de uma plataforma a outra, sem que haja uma sequência, pois todas se comprimem na
mesma tela. Nunca acabamos a relação com uma delas e estamos sempre prontos a iniciar uma nova.
E é no âmbito do capitalismo de plataforma que podemos perceber a emergência de um outro
tipo de trabalho imaterial, que volta a demandar as forças do corpo e é organizado diretamente por
plataformas, mediando a ligação entre prestadores de serviço e consumidores. Abílio (2020), assim
como outros autores, vem denominando a isso de uberização do trabalho, em referência ao aplicativo
de transporte individual mais conhecido em 2021. Entretanto, assim como Grohmann (2020), entendo
que é preferível denominar de plataformização do trabalho, tendo em vista que existe um número
crescente de plataformas voltadas para esse fim.
A plataformização do trabalho, associada ao crescimento de postos de trabalho na área de
serviços, começa a ser percebida com a chegada do Uber ao país em 2014. Para trabalhar para a
empresa, os chamados motoristas parceiros devem dispor de veículo próprio, arcando com todas as
despesas, sem reconhecimento de direitos trabalhistas. A empresa fica com uma porcentagem variável
da corrida, que pode chegar a 40% (CARVALHO, 2021). Não há transparência em relação a essa
taxa, trazendo insegurança para os trabalhadores. A tarifa para os consumidores também é variável
com a demanda. Outras empresas também atuam nesse ramo, como a 99. Tornar-se motorista de
aplicativo constitui-se como alternativa tanto para desempregados, quanto para a complementação de
renda de quem tem alguma outra ocupação profissional.
Porém, não são apenas aplicativos de transporte individual que surgem como opção
plataformizada de trabalho. Entregas de comida, utilizando motocicletas ou bicicletas, são ainda mais
populares, por necessitarem menor investimento no meio de transporte. E, evidentemente, remuneram
ainda pior os parceiros. Outro segmento que vem ganhando adeptos são os entregadores a serviço de
empresas de logística voltadas para a área de e-commerce. Existem, ainda, aplicativos para
contratação de serviços tão diversos quanto encanador, manicure, professor particular ou advogado.
Além desses, é necessário mencionar as plataformas para oferta de cursos, como a Udemy. Ainda
pouco conhecidas no Brasil, estão em expansão nos EUA plataformas de crowdsourcing, ou, em livre
tradução, de colaboração coletiva. Elas remuneram indivíduos que realizam tarefas online, na maioria
das vezes de muito curto prazo.
Esse quadro, aprofunda a precarização do trabalho. De acordo com Standing (2020), isso
significa uma existência caracterizada por uma permanente falta de garantia de continuidade do
trabalho e de renda. O tempo pontilhista da invenção é também o tempo pontilhista da precarização,
em que o futuro se apresenta completamente opaco e a possibilidade de traçar planos se liquefaz.
Porém, o tempo pontilhista da precarização é também ilimitado, principalmente no trabalho
plataformizado, que exige uma disponibilidade permanente.
Ainda segundo Standing (2020), isso vem constituindo uma classe que ele chama de
precariado. São trabalhadores privados de uma identidade profissional e com os laços de
solidariedade fragilizados. O tempo do trabalho plataformizado é um tempo sem memória, pois as
trajetórias profissionais perdem significado, quando o que conta é o próximo job que permita fazer
um troquinho. “É preciso que, sem parar e de qualquer ponto de vista, estejamos sempre contando.
Que o temor de ‘perder uma oportunidade’ seja o estimulante da vida” (COMITÊ INVISÍVEL, 2018,
p. 116-117).
Srnicek (2017) traz o conceito de gig economy, que seria, em uma tradução livre, uma
economia de bicos. O precariado está imerso na gig economy, vivendo em um estado de acirrada
competição permanente por tarefas que possam render alguma remuneração, ou seja, que possam
monetizar, palavra de ordem para quem vive de bicos. “À majestosa figura do Trabalhador sucede
outra, raquítica, do Morto de Fome – pois, para que o dinheiro e o controle possam se infiltrar por
tudo, é preciso que o dinheiro falte em toda parte” (COMITÊ INVISÍVEL, 2018, p. 115). Muitas
vezes os trabalhadores precarizados são saudados como empreendedores. Para Abílio (2021), isso é
apenas gestão da sobrevivência recoberta por uma versão edulcorada de empreendedorismo.
Muitas das tarefas decorrentes da plataformização não requerem competências cognitivas
muito desenvolvida. Para dirigir um automóvel, uma motocicleta ou uma bicicleta não é necessária
uma formação sólida. Para ingressar nesse tipo de tarefa basta dispor do veículo e de licença para
conduzir o veículo. Já a permanência é condicionada às avaliações que o trabalhador recebe. Sendo
mal avaliado, poderá ser suspenso e até banido do sistema (embora uma das queixas seja justamente
a falta de transparência com as punições). Mesmo nos casos em que as competências técnicas estão
em jogo, como a contratação de um professor, a avaliação permanece sendo central para que possa
permanecer e captar novos serviços. Essa avaliação passa pelo conhecimento, mas talvez até mais
pelas questões relacionais.
Isso mostra que a vida do precariado é uma vida gamificada, pautada na concorrência e
perseguindo likes e estrelas para que possa sobreviver. Nesse mercado da avaliação, entendo que o
capital humano sofre um deslocamento: sua ligação com capacidades técnicas é enfraquecida e a com
competências socioemocionais reforçadas.

Educação e o capitalismo de plataforma


A governamentalidade neoliberal tem como um de seus princípios o conceito de capital
humano. Theodore Schultz (1973) é quem vai ser o percussor nas discussões sobre o tema, com seu
livro O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Para o autor, cada indivíduo possui
um certo capital humano, envolvendo características inatas e outras adquiridas, que condiciona as
possibilidades de rentabilizar seu trabalho. Ele destaca a importância da educação para fazer crescer
o capital humano, por desenvolver competências úteis para a economia.
Assim, a educação é algo a ser valorizado dentro de uma racionalidade neoliberal, ainda que
orientada para produzir sujeitos alinhados com seus pressupostos. Isso faz com que cada vez mais os
especialistas em educação provenham da economia ou da administração. Internacionalmente, é
possível perceber uma atuação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) mais pronunciada na área do que a UNESCO. Nesse mesmo sentido, nos últimos anos
surgiram no Brasil diversas organizações financiadas por capital privado voltadas para a educação,
que visam redirecionar as discussões para orientar as escolas públicas de modo a melhor atender o
projeto neoliberal. Destaco, entre outras, Fundação Airton Senna, Todos pela Educação, Fundação
Lemann, Fundação Bradesco, Fundação Telefônica e Instituto Península.
Conforme a seção anterior, está havendo uma reestruturação da atividade econômica por meio
da plataformização, baseada em processos de avaliação gamificados que priorizam aspectos afetivos
do trabalhador. Assumo que o conceito de capital humano também vem se transformando, para
melhor atender as novas demandas. Embora haja diversas direções possíveis para conduzir essa
discussão, irei tratar das chamadas competências socioemocionais crescentemente inseridas nos
currículos escolares.
Um marco na valorização das competências socioemocionais na educação é a fundação, em
1994 nos EUA, da organização Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning
(CASEL). Entre seus fundadores, está o psicólogo Daniel Goleman, conhecido pelo seu conceito de
inteligência emocional (CASEL, 2007). Esse é considerado até o presente o principal centro de
estudos sobre o tema Social and Emotional Learning (SEL), considerado “chave para o sucesso das
crianças na escola e na vida” (CASEL, 2007, p. 1). Foi essa organização que construiu o modelo das
cinco macrocompetências socioemocionais (chamadas em inglês de big five), que são detalhadas e
discutidas pelo Instituto Ayrton Senna (2021): autogestão, engajamento com os outros, amabilidade,
resiliência emocional e abertura ao novo. Cada macrocompetência é formada por um conjunto de
outras competência. O site ainda as relaciona com a BNCC.
A partir da discussão que empreendi na seção anterior sobre o capitalismo de plataforma,
acredito que seja possível relacionar as macrocompetências socioemocionais com as novas formas de
organização do trabalho. Centrarei minha discussão nas plataformas de transporte individual e de
entregas de alimentos, mas acredito que isso possa ser expandido para outras áreas.
Para os trabalhadores ligados a essas tarefas, a autogestão é imprescindível. Precisam ter
responsabilidade, uma das componentes dessa macrocompetência, pois cancelamentos ou atrasos são
passíveis de punição. Precisam ser persistentes, organizados e determinados, também componentes
da autogestão, para não desanimarem frente às dificuldades.
Isso nos leva à necessidade de resiliência emocional. Longas jornadas, sem que as empresas
ofereçam qualquer tipo de suporte, resultando em ganhos muito modestos requerem trabalhadores
com tolerância ao estresse e à frustração. A tolerância à frustração também é importante para superar
as avaliações ruins que porventura aconteçam.
Porém, para ser bem avaliado, não basta ser responsável. E aí temos a macrocompetência da
amabilidade. Os parceiros devem tratar os clientes com empatia, respeito e transmitir confiança. As
plataformas vão gerir o trabalho, mas necessitam que cada um dos trabalhadores tenha engajamento
social, agindo com iniciativa e entusiasmo. Por fim, captar sujeitos para trabalhar em um sistema até
há pouco desconhecido exige abertura ao novo, com interesse por aprender.
A escola, em especial a pública, parece estar sendo instada a abandonar seu papel de apresentar
o mundo aos recém chegados para se transformar em uma fábrica de subjetividades flexíveis e bem
ajustadas às lógicas de um mercado de trabalho precarizado, em que o conhecimento perde espaço
para uma servidão por meio da liberdade.

Referências
ABÍLIO, Ludmila. “O trabalhador inserido na uberização está longe de achar que a moto dele é uma
microempresa”: entrevista especial com Ludmila Costhek Abílio. Entrevistador: Igor Natusch.
Democracia e mundo do trabalho, 01 dez. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/2cy3bxrx.
Acesso em: 13 dez. 2021.
ABÍLIO, Ludmila. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos avançados, n. 34, v. 98,
p. 11-126, jan./abr. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008. Acesso
em: 13 dez. 2021.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no
ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia, 2019.
CARVALHO, Isadora. Em meio a ‘greve’ de motoristas, taxa da Uber em corridas supera os 40%.
Quatro Rodas, 22 set. 2021. Disponível em: https://quatrorodas.abril.com.br/noticias/em-meio-a-
greve-de-motoristas-taxa-da-uber-em-corridas-supera-os-40/. Acesso em: 13 dez. 2021.
CASEL. Background on Social and Emotional Learning (SEL). Publicado em dez. 2007.
Disponível em: https://files.eric.ed.gov/fulltext/ED505362.pdf. Acesso em: 13 dez. 2021.
CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São
Paulo: Ubu Editora, 2020.
COMITÊ INVISÍVEL. Motim e destituição agora. São Paulo: n-1, 2018.
CORSANI, Antonella. Elementos de uma ruptura: a hipótese do capitalismo cognitivo. In: COCCO,
Giuseppe.; GALVÃO, Alexander Patez.; SILVA, Gerardo (Orgs.). Capitalismo cognitivo:
trabalho, redes e inovação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Chritian. Neoliberalismo e subjetivação capitalista. Revista O Olho da
História, n. 22, p. 1-15, abr. 2016. Disponível em: http://oolhodahistoria.ufba.br/wp-
content/uploads/2016/04/dlneoliberalismo.pdf. Acesso em: 13 dez. 2021.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
OLIVEIRA, Regiane. “Vamos virar uma grande fazenda”: Brasil vive acelerada desindustrialização.
El País, 07 dez. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/2p9a8chs. Acesso em: 13 dez. 2021.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.
GALVÃO, Alexander; SILVA, Gerardo; COCCO, Giuseppe (Org.). Capitalismo cognitivo. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES,
Ricardo. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.
IEDI. O emprego na indústria brasileira na recente crise econômica. Carta IEDI, n. 935. Disponível
em: https://www.iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_935.html. Acesso em: 13 dez. 2021.
INSTITUTO AYRTON SENNA. Competências socioemocionais para contextos de crise.
Disponível em: https://tinyurl.com/5h95amsm. Acesso em: 13 dez. 2021.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.
LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São
Paulo: n-1, 2019.
LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MAFFESOLI, M. O instante eterno. Porto Alegre: Zouk, 2003.
MORCEIRO, Paulo. Desindustrialização segue intensa em 2018. Disponível em:
https://tinyurl.com/ywx85uy9. Acesso em: 13 dez. 2021.
NASCIMENTO, Manoel Nelito M. Educação e nacional desenvolvimentismo no Brasil. Navegando
pela História da Educação Brasileira, 2006. Disponível em: https://tinyurl.com/3e5vjc9w. Acesso
em: 13 dez. 2021.
OLIVEIRA, Regiane. Vamos virar uma grande fazenda”: Brasil vive acelerada desindustrialização.
El País, 07 dez. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/2p9a8chs. Acesso em: 13 dez. 2021.
SARAIVA, Karla. A aliança biopolítica educação-trabalho. Pro-posições, v. 25, n. 2 (74), p. 139-
156, mai/ago. 2014.
SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Capitalismo cognitivo, modernidade líquida e educação.
Educação & Realidade, v. 34, n.2, p. 187-201, maio-ago. 2009.
SCHULTZ, Theodore. O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1973.
SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
STANDING, Guy. O precariado. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
VARELA, Julia; ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria & Educação, n 6,
p.225-246, 1992.

You might also like