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O MEDICO VOLANTE PERSONAGENS VALERIO amante de Lucila SABINA prima de Lucila SGANARELLO criado de Valério GorciBus pai de Lucila RENE GORDO criado de Gorgibus LUcILA filha de Gorgibus O apvocabo Cerna I ulério, Sabina. VALERIO E entao, Sabina, que conselho vocé me daria? SABINA Na verdade, trago muitas noticias. Meu tio resolveu que mi- nha prima vai se casar com Virabrequim, e as negociag6es avan- caram tanto que achei que eles ja estariam casados hoje, se 0 se- nhor nao fosse amado; mas como a minha prima me confiou 0 segredo do amor que sente pelo senhor, e que nés nos vimos leva- das ao extremo por causa da avareza de meu tio horrendo, imagi- namos uma boa invencio para adiar o casamento. E que a minha prima, neste momento mesmo em que lhe falo, finge estar doen- te; eo velho, que é bastante crédulo, enviou-me & procura de um médico. Se o senhor pudesse mandar-lhe algum bom amigo seu, que estivesse combinado conosco, ele poderia aconselhar a doente a ir tomar os ares do campo. O pai, sem a menor dtivida, iré aco- modar minha prima no pavilhdo que fica na extremidade do nos- So jardim, e desse modo o senhor poderia vé-la mesmo contra a vontade do nosso velho, casar-se com ela e deixar que ele saia para beber o quanto queira com esse tal de Virabrequim. VALERIO Mas como eu Posso encontrar em t4o pouco tempo um médico na minha drea, ¢ que ainda se disponha a correr tan- 0 Moliére tos riscos ao meu servigo? Eu the digo francamente, nao sei de ninguém. SABINA Pensei uma coisa: ¢ se 6 scnhor mandasse seu criado vestir- se de médico? Nao existe ninguém mais ficil de enganar do que esse velho. VALERIO Mas cle é um palerma, que pode acabar estragando tudo; lo, por falta de outro. Adeus, vou & s6 que vamos ter de usé procura dele, Onde é que encontro agora esse cretino? Mas ele vem chegando, bem na hora certa. Cena II Valerio, Sganarello. VALERIO Ah, meu pobre Sganarello, quanta alegria em encontri-lo! Preciso de vocé num caso da maior responsabilidade; mas co- mo jamais consegui descobrir 0 que vocé sabe fazer... SGANARELLO O que eu sei fazer, meu senhor? O senhor sé deve me em- pregar nos casos da maior responsabilidade, em coisas impor- tantes: por exemplo, pode mandar-me ver que horas sao em algum relégio, quanto a manteiga esta custando no mercado, dar de beber a um cavalo; é entao que o senhor vai descobrir do que eu sou capaz. VALERIO Nao € isso: € que eu preciso que vocé se passe por médico. SGANARELLO Eu, médico, meu senhor? Estou pronto a fazer tudo 0 que © senhor quiser; mas para me passar por médico, eu, seu cr do, é melhor nem fazer nada; por onde eu comego, meu Deus? Pela minha fé, 0 senhor sé pode estar zombando de mim. VALERIO Se vocé aceitar, bem, eu Ihe darei dez moedas de ouro. 72 Molidre SGANARELLO Ah! Por dez moedas de ouro nao vou dizer que nao sou mé- veja bem, meu senhor, nao tenho 0 dico; pois pirito sutil a ponto de saber dizer a verdade; mas, quando eu for médico, aonde deverei ir? VALERIO Va até a casa de Gorgibus, ver a filha dele que esta doente; mas vocé € um palerma que, em vez de fazer tudo direito, po- de acabar... SGANARELLO Ora! Meu Deus! Meu senhor, nao fique alterado; garan- to que sou t4o capaz de fazer morrer uma pessoa quanto qual- quer outro médico da cidade. O provérbio conhecido geral- mente diz: Depois da morte, 0 médico; mas o senhor ha de ver que, depois que eu comegar, vao dizer: Depois do médico, 56 po- de ser a morte! Mas, pensando bem, é¢ dificil se passar por mé- dico; e se eu nao fizer nada direito...? VALERIO Nao existe coisa mais facil do que essa consulta; Gorgibus é um homem ignorante e grosseiro, que vai ficar tonto com o seu discurso, basta vocé falar em Hipécrates e Galeno e se mostrar um pouco pedante. SGANARELLO Quer dizer que preciso falar de filosofia e de matemitica. Deixe comigo; se ele é um homem facil como o senhor diz, eu garanto tudo; venha apenas me arranjar uns trajes de médico, acabar de me dar as instrugées e entregar meu diploma, que sao as dez moedas prometidas. Cerna III Gorgibus, René Gordo. GorciBus a aR . V4 depressa procurar um médico, porque minha filha esta muito doente, e depressa. RENE GORDO Mas também, que diabo! Por que resolveu entregar sua fi- lha a um velho? O senhor nao acha que a dessa doenga pode ser o desejo que ela tem de um homem jovem, que s trabalhar? O senhor nfo estd vendo a conexao que pode ex tir etc. (Improviso.) ba GorciBus VA depressa: estou vendo que essa doenga vai adiar mui- to as bodas. RENE GORDO ; E € isso que me dé raiva: eu ja tinha imaginado que ia for- rar minha barriga com um bom enchimento, mas agom nada pela boca. Vou procurar um médico para mim também, além da sua filha; vou precisar, de tao desesperado. Crna 1V sabina, Gorgibus, Sganarello, SABINA Vico feliz de té Jo encontrado, meu tia, porys sim posse Ihe dar uma boa noticia. Trago-the o melhor médico do mun- do, um homem que vem do estrangciro, que conhece os mais belos segredos ¢ que, sem diivida, h4 de curar minha prima. Foi uma sorte cle me ter sido indicado ¢ cu poder trazé-lo até o senhor. Ele é tio sabio que cu bem desejaria estar doente, pa- ra que pudesse me curar, Gorcisus E onde estd ele? SABINA Logo ali, me seguindo; pronto, ci-lo. Gorcinus Sou um humilde criado do senhor médico! Mandei cha- mé-lo por causa da minha filha, que estd doente; deposito to- da minha esperanga no senhor. SGANARELLO Diz Hipdcrates, e Galeno nos convence com os mais vivos @rgumentos, que, quando estd doente, a pessoa nao passa bem. O senhor tem 5: io de depositar suas esperangas em mims Pols sou o maior, o mi is douto médico que exis- is habil, o ma 76 Molitre teem toda a faculdade vegetativa, sensitiva ¢ mineral, Gorainus Ah, isto me deixa muito contente, SGANARFLLO E nao va pensar que sou um médico ordindrio, um médi- co comum. Todos os outros médicos, comparados a mim, nao passam de abortos da medicina. Tenho talentos especiais, te- nho meus segredos. Salamaleque, salamaleque.' “Rodrigo, tens coragem?” Signor, si; signor, no. Per omnia saecula saeculorum.® Mas entao vejamos. SABINA Ora! Mas nao é ele que est4 doente, é a filha. SGANARELLO Nao tem importancia; 0 sangue do pai € 0 mesmo da filha; ¢ pela alteracao do sangue do pai, posso descobrir que doenga a filha tem. Senhor Gorgibus, haveria algum meio de vermos a urina da enfermiga? GoreiBus Mas € claro; Sabina, v4 depressa pedir a urina da minha fi- Iha. Senhor doutor, estou com muito medo de que ela morra. SGANARELLO Ah! Ela que nao me faca uma coisa dessas! Nao pode se dar ao luxo de se deixar morrer sem receita médica! Ah, eis uma urina que assinala um calor intenso, uma grande inflamacio dos intestinos: ainda assim, ela nao estd tao mal. Gorcisus O qué? O senhor est4 bebendo? 1 Salameque: corruptela de um cumprimento arabe. 2. Senhor, sim; senhor, nao. Por todos os séculos dos séculos. O médico volante , SGANARELLO E.0 senhor nao tem razio de se espantar; os médicos co- urina com 0s olhos; mas eu, que sou um muns 36 examinam médico fora do comum, experimento, pois o sabor me per- nite discernir melhor a causa ¢ 0 desenvolvimento da doen- ga. Mas, para the dizer a verdade, era pouco demais para me permitir uma decisio bem tomada: mande a sua filha urinar mais um bocado. SABINA Mas jé foi muito dificil fazer com que ela urinasse. SGANARELLO Como assim? Essa é muito boa! Pois faga a moga mijar co- piosamente, copiosamente. Se todos os doentes urinassem as- sim, queria continuar médico até o fim da vida. SABINA Mas é tudo 0 que vamos conseguir: ela nao consegue urinar mais. SGANARELLO O qué? Senhor Gorgibus, sua filha s6 urina umas gotinhas! E péssima mijona, a sua filha; estou vendo que vou precisar re- ceitar um preparado mijatério. Nao haveria um modo de eu ver a doente? SABINA Ela estd de pé; se o senhor quiser, posso trazé-la aqui. CENA V Lucila, Sabina, Gorgibus, Sganarello. SGANARELLO Pois bem! Senhorita, estd doente? LuciLa Sim, senhor. SGANARELLO Ah, mau sinal! Indica que a senhorita nao est4 passando bem. Sente muitas dores de cabega, nas costas? LUCILA Sim, senhor. SGANARELLO Pois é muito bem feito. Sim, aquele grande médico, no ca- pitulo que dedica a natureza dos animais, diz... mil coisas in- teressantissimas; e mostra como os humores que tém conexao estéo muito relacionados entre si; por exemplo, como a me- lancolia € inimiga da felicidade, e como a bile que se espalha pelo corpo nos deixa amarelos € nao existe nada mais contré- io a satide do que a doenga, podemos dizer, acompanhando esse grande homem, que sua filha estd bastante doente. Preciso Ihe passar uma receita. Goraipus Depressa, uma mesa, papel, tinta. 80 Molitre SGANARELLO Alguém aqui sabe escrever? GoraiBus E o senhor nao sabe? SGANARELLO Ah! Tinha esquecido; é tanta coisa na minha cabega que acabo esquecendo a metade... - Minha opiniao é de que sua filha devia pegar ar fresco, ¢ se distrair no campo. Goreisus Nés temos um lindo jardim, e alguns quartos dao para ele; se o senhor acha bom, vou instalé-la num deles. SGANARELLO Entao vamos visitar 0 local. Crna VI O apvoGapo Ouvi dizer que a filha do senhor Gorgibus estava doen- te: preciso saber como vai a satide dela, ¢ oferecer-lhe meus servigos como amigo de toda a familia. Olé! Old! O senhor Gorgibus estd em casa? Crna VII Gorgibus, 0 Advogado. GorcIBus Senhor, seu muito humilde criado etc. O apvoGabo Soube da doenga da senhorita sua filha, e virn dizer-lhe 0 quanto isso me preocupa, e oferecer-lhe qualquer coisa que possa estar ao meu alcance. Gorcisus Eu estava 14 dentro com o mais sdbio dos homens. O ApvoGabo E nao haveria um meio de eu conversar um pouco com €! Cerna VIII Gorgibus, 0 Advogado, Sganarello. Goraipus Senhor, cis um amigo meu muito educado que gostaria de falar com o senhor. SGANARELLO Nao me sobra tempo, senhor Gorgibus: preciso ir ver meus doentes. Nao posso parar para cumprimenté-los. O apvocabo Meu senhor, depois do que me disse 0 senhor Gorgibus so- bre seus méritos e 0 seu saber, senti a maior vontade do mun- do de ter a honra de conhecé-lo, e tomo a liberdade de abor- dé-lo com essa finalidade: e acho que o senhor nao vai se ar- repender. Precisamos admitir que todos que se destacam em alguma ciéncia sao dignos de grande louvor, particularmente aqueles que se dedicam a profissao da medicina, tanto pela sua utilidade como porque ela contém em si varias outras ciénc © que torna seu perfeito conhecimento extremamente dificil; €écom muito acerto que diz Hipécrates em seu primeiro afo- risma: Vita brevis, ars vero longa, occasio autem pracceps, expert mentum periculosum, judicium difficile.’ — 3 A vida ¢ breve; a arte, em verdade, longa; a ocasiio por outro lado se Pre ‘expertmento é perigoso; 0 jutza, dificil. ‘pita; 0 86 Molitre SGANARELLO (A Gorgibus.) Ficile tantina pota baril cambustibuss O aDVOGADO O senhor nao é um desses médicos que s6 se dedicam \ me- dicina dita racional ou dogmatica, ¢ acredito que a exerca to- dos os dias com grande sucesso: experientia magistra rerum) Os primeiros homens que adotaram a profissio da medicina conquistaram tamanha admiragao pelo cultivo dessa bela cién- cia que acabaram inclufdos entre os deuses pelas belas curas que praticavam todo dia. Nao que se deva menosprezar um médico que tenha sido incapaz de devolver a satide a seu pa- ciente, pois isso nado depende apenas dos seus remédios e do seu saber: Interdum docta plus valet arte malum.® Senhor, nao queria importund-lo; despego-me do senhor, na esperanga de que, na primeira ocasiao, eu possa ter a honra de conversar com o senhor mais calmamente. Seu tempo deve ser precioso etc. (Sai.) GoraiBus Eo que lhe parece este homem? SGANARELLO Sabe alguma coisinha. Se tivesse ficado um pouco mais que fosse, eu abordaria com ele um tema sublime e elevado. No entanto, despego-me do senhor. (Gorgibus lhe entrega dinhei- ro.) Ora! O que o senhor est4 fazendo? GorciBus Sei bem o quanto lhe devo. 4. Frase totalmente macarronica. 5 A experiéncia é.a professora das circunstdncias, 6 Algumas vezes, o mal é mais forte do que a arte douta. O médico volante fT SGANARELLO S6 pode estar brincando, senhor Gorgibus. Nao vou acei- tar, nao sou um merceniirio, (Pega 0 dinheiro.) Seu criado mui- to humilde. (Sganarello vai embora, e Gorgibus torna a entrar na casa. ) Crna X Sganarello, Valério SGANARELLO Um prodigio depois do outro: ¢ tao bem feitos que Gorgibus me toma por um grande médico. Entrei na casa dele e acon- selhei muito ar puro para a filha, que agora ocupa um aparta- mento no fundo do jardim, de maneira que esta bem distante do velho, ¢ o senhor pode ir vé-la com toda a comodidade. VALERIO Ah! Que alegria vocé me da! Sem perda de tempo, vou ago- ra mesmo encontré-la. SGANARELLO Mas temos de admitir que 0 velho Gorgibus € um verda- deiro tolo de se deixar enganar assim (Percebendo Gorgibus.) Ah, pela minha fé! Estd tudo perdido: € assim que a medicina acaba fracassando, mas preciso engand-lo. CENA XI Sganarello, Gorgibus, Goraipus Bom dia. SGANARELLO Senhor, seu criado. Mas 0 senhor est4 vendo um jovem em desespero; por acaso conhece um médico chegado hd pouco a esta cidade, autor de curas admirdveis? Gorcisus Sim, conhego; ele acaba de sair da minha casa. SGANARELLO Sou irmo dele, meu senhor; somos gémeos e, como nos pa- Fecemos muito um com 0 outro, as vezes somos confundidos. Goreipus E verdade, e que o diabo me carte; ‘gue se eu prdéprio nao me confundi. E como é 0 seu nome? SGANARELLO Narciso, senhor, as suas ordens. Mas preciso lhe contar que, entrando um dia no gabinete dele, derramei dois frascos de essén- Cias que estavam em cima de uma mesa; na mesma hora ele foi tomado de uma furia tao terrivel contra mim que me expulsou de casa € nunca mais quis me ver, e agora virei um pobre rapaz sem apoio, sem sustento, sem ninguém conhecido no mundo. 4 9 Molidre GorciBus Entao vou fazer a paz entre os doi sou amigo dele, ¢ ga- ranto que vocés voltam a se dar. Falarei com ele assim que o encontrar. SGANARELLO E eu lhe ficarei muito grato, senhor Gorgibus. (Sganarello sai, mas volta em seguida com sua roupa de médico.) CENA XII Sganarello, Gorgibus. GANARELLO Mas somos forgados a admitir que, quando os doentes nao querem seguir 0 conselho médico e se entregam & dissipacao. GorciBus Senhor doutor, seu criado. Queria pedir-lhe um favor. SGANARELLO O que houve, senhor? Precisa dos meus servigos? GoraiBus Senhor, acabo de encontrar seu irm4o, que est4 muito abatido... SGANARELLO Ele € um tratante, senhor Gorgibus. Goreisus Mas eu lhe digo que ele esta tao arrependido de ter deixa- do o senhor furioso... SGANARELLO Ele € um beberrio, senhor Gorgibus. Gorcipus Ora, senhor, assim vai deixar 0 rapaz desesperado... 96 Molitte SGANARELLO Nao quero mais ouvir falar; mas ve 86 Como esse tratante éatrevido, procurar o senhor para fazer as paves em nome le; eu lhe pego que nao me fale t de- ais disso. GoraiBus Em nome de Deus, senhor doutor! E em nome da nossa amizade. Se eu puder lhe prestar qualquer outro servico, terci a maior boa vontade. Eu dei minha palavra, e SGANARELLO O senhor me pede com tanta insisténcia que, apesar de ter feito um juramento de nao perdod-lo jamais, pronto, to- que aqui: ele est4 perdoado. Mas lhe garanto que isso me cus- ta muito esforco, e s6 se deve a muita simpatia que tenho pe- lo senhor. Adeus, senhor Gorgibus. GorGIBUS Senhor, ao seu servigo; vou procurar 0 pobre rapaz para lhe dar a boa noticia. Cena XII Valerio, Sganarello. VALERIO Devo admitir que nunca imaginei que Sganarello fosse se sair tio bem de sua missao. (Entra Sganarello em trajes de criado.) Ah, meu pobre rapaz! Eu lhe devo tanto! Quanta ale- gria! E quanta... SGANARELLO Pela minha fé, o senhor est falando demais antes da ho- ra. Gorgibus me encontrou; € se eu nao tivesse arranjado uma invengao, toda a trama teria sido descoberta. Mas v4 embora, ele estd chegando. CENA XIV Gorgibus, Sganarello. GorcIBUS Venho procurando vocé por toda parte para lhe dizer que conversei com seu irm&o agora mesmo: ele me garantiu que lhe dava o perdao; mas, para ficar seguro, eu queria que vocés dois se abragassem na minha frente; entre na minha casa, que vou procurd-lo. SGANARELLO Ah, senhor Gorgibus, nao acredito que 0 senhor vd encon- tré-lo; e depois nfo vou ficar na sua casa; tenho medo da fi- ria dele. GorGIBUS Ah! Vai ficar, sim, porque eu vou trancé-lo. E agora vou a procura do seu irmao: nao tenha medo, garanto que ele nao est4 mais aborrecido. (Sai.) SGANARELLO (Da janela.) Pela minha fé, desta vez me pegaram; nao tenho mais jei- to de escapar. As nuvens esto engrossando e comego a achar que, quando elas se abrirem, vai cair um temporal de pauladas Nas minhas costas, ou que, por uma recomendagio mais for- te que a de qualquer médico, venham a me aplicar pelo me- 100 Molitre nos um ferro em brasa real no ombro. A coisa vai mal; mas por que perder a esperanga? J que eu cheguei até aqui, vamos le- vara farsa até o fim, Fu sei, eu sei, preciso s air de mais essa, € todos vio ver que Sganarello & 0 rei dos farsantes, (Pula da ja- nela e vai embora.) CENA XV René Gordo, Gorgibus, Sganarello. RENE GORDO Ah, vejam sé, que coisa engragada! Pulam muito das ja- nelas por aqui! Melhor eu ficar por perto e ver no que tu- do isso vai dar. GorcIBUS Nao consigo encontrar esse médico; nao sei onde diabos ele se escondeu. (Percebendo Sganarello que volta vestido de mé- dico.) Mas ele estd aqui! Senhor, nao basta ter perdoado seu ir- mao; eu lhe pego, para minha satisfacdo, que venha abracd- lo: ele est4 na minha casa, e eu estava procurando pelo senhor em toda parte para lhe pedir que faca as pazes com ele na mi- nha presenca. SGANARELLO Deve estar brincando, senhor Gorgibus: ja no basta eu perdoar? Nunca mais quero ver meu irmo. Gorcrus Mas, senhor, por mim. SGANARELLO Assim, nao tenho como recusar: diga a ele para descer. (En- quanto Gorgibus entra em casa pela porta, Sganarello entra pe- la janela.) 102 Molitre GorcIBus (Da janela.) O seu irmao est esperando por voce [4 embaixo: ele me prometeu que faria tudo 0 que cu quisesse. SGANARELLO (Da janela.) Senhor Gorgibus, queria que o senhor lhe pedisse para vir até aqui: gostaria de lhe pedir perdao em particular, por- que acho que ele me faria passar cem vergonhas e cem opré- brios diante de todo mundo. (Gorgibus sai da casa pela porta, e Sganarello pela janela.) GoraiBus Pode deixar, vou dizer a ele. Meu senhor, ele diz que esta com vergonha, e lhe pede para entrar, a fim de lhe pedir per- dao em particular. Tome a chave, pode entrar; por favor nao recuse 0 que eu lhe pego, e me dé essa satisfacao. SGANARELLO Nao hd nada que eu nfo faca para a sua satisfagao: o senhor vai ouvir de que maneira vou tratd-lo. (Da janela.) Ah! Vocé estd af, seu tratante! — Senhor meu irmao, eu lhe pego que me perdoe, garanto que nio foi por minha culpa. — Ah, entao nao foi por culpa sua, seu desregrado, patife! Pode deixar, que eu Ihe ensino a viver. E ainda tem a ousadia de importunar 0 se- nhor Gorgibus, de encher-lhe a paciéncia com as suas bestei- ras! — Mas senhor meu irmao... — Cale a boca, eu ja disse! ~ Mas eu garanto.... — Cale a boca, desgragado! RENE GoRDO. : fl : cS Mas quem diabos 0 senhor acha que esta na sua casa ne te momento? O médico volante ‘on GorciBus O medico ¢ Narciso, irmao dele; cles tinham um desenten- dimento, ¢ estio fazendo as paves. RENE GORDO Que os diabos me carreguem! Os dois io uma pessoa s6. SGANARELLO (Da janela.) Voce & um bébado, ¢ vou Ihe ensinar uma coisa. Como ele abaixa os olhos! Sabe bem que errou, 0 condenado. Ah, hipé- ctita, ¢ agora vem bancar 0 bom apéstolo! RENE GORDO Senhor, pe por favor a ele que mostre seu irmao na janela. Gorcisus Estd bem. Senhor médico, pode fazer seu irmao aparecer a janela? SGANARE! (Da janela.) Ele nao merece ser visto por gente honrada, e depois nao O suporto que ele fique perto de mim. Gorcipus Senhor, nio recuse esse meu pedido, depois de todos que jd me atendeu. SGANARELLO (Da janela.) A verdade, senhor Gorgibus, € que seu poder sobre mim € tamanho que 1 io tenho como the recusar nada. Aparega, ape Tega logo, tratante! (I Depois de desaparecer um momento, TesUMge 104 Molde com os trajes de criado.) — Senbor Gorgibus, eu the d YE ; . i (Desaparece de novo, e ressurge em seguida com a rou ame 4 ental i i eae co.) — E. entao? O senhor viu essa imagem da perdi . ea cao? RENE GORDO Pela mi Ssh Pela minha fé, so a mesma pessoa e, para lhe provar, di a ele que quer ver os dois juntos. 8 Gorcipus Mas faga-me o favor de fazer seu irmao aparecer com 0 se- nhor, e abragd-lo na minha frente af na janela. SGANARELLO (Da janela.) Se qualquer outro me pedisse a mesma coisa, eu recusaria: mas para lhe mostrar que estou disposto a fazer qualquer coisa 0 contrariado, mas antes quero lo o incémodo que lhe causou. eu lhe pego perdao por ter lhe perante 0 se- pela sua amizade, aceito, mesm: que ele lhe pega perdao por tod — E verdade, senhor Gorgibus, incomodado tanto, e lhe prometo, meu irmao, nhor Gorgibus aqui presente, comportar-me tao bem que vo- cé no terd mais motivo de queixa, ¢ lhe peco que esquega tu- do que passou. (Abraga 0 chapéue a gola frisada, que arrumou acima do cotovelo.) GorGIBUS E entao? Nao estao os dois ali? RENf. GORDO Ora, pela minha fé, ele € um feiticeiro! LO. SGANA (Saindo da casa, vestido de médico.) aqui estd a chave Ihe devol- , que Meu senhor, da sua ¢ O médico volante os yo; nao quis que aquele tratante descesse comigo, porque cle me dé vergonha: nao quis que ninguém nos visse juntos na ci- dade, onde tenho uma certa reputagao, O senhor pode dei- xé-lo sair quando quiser. Eu me despego, ¢ sou seu criado etc, (Finge ir embora e, depois de ter vestido suas roupas, entra na ca- sa pela janela.) Preciso ir soltar o pobre rapaz; na verdade, se ele foi perdoa- do, também foi muito maltratado. (Entra na casa, e sai dela com Sganarello vestido de criado.) SGANARELLO Senhor, eu Ihe agradeco 0 trabalho a que se deu e a bonda- de que teve comigo: eu lhe serei grato até o fim da vida. RENE GORDO E onde o senhor acha que 0 médico est agora? GorcIBus Foi embora. RENE GORDO (Que recolheu a roupa de Sganarello.) Pois est4 aqui, debaixo do meu brago. E este tratante que se passava por médico, ¢ enganou o senhor. Enquanto ele 0 en- gana e representa essa farsa na sua casa, Valério e sua filha es- to juntos, do jeito que o diabo gosta! GorciBus Ah, pobre de mim, infeliz! Mas vocé acaba na forca, men- Uroso, tratante! SGANARELLO Mas que idéia é essa de me enforcar, senhor? Escute um 106 Moliére pouco, por favor: é verdade que gragas 8 minh filh tei o senhor: € 0 partido certo para sua filha, tanto pela origem invengio meu ; mas ao servigo dele nao destespei- patrao esté com a su rem mim, r como pelos bens. Pode acredi 0 crie um tumul- to que resultaria numa confusio, ¢ mande para todos os dia- bos esse patife dai, com Virabrequim. Mas estao chegando os nossos namorados. ULTIMA CENA Valerio, Lucila, Gorgibus, Sganarello, SGANARELLO Nés nos atiramos a seus pés. GORGIBUS Perdéo a todos, e acho bom ter sido enganado por Sgana- rello, 0 que me valeu um genro téo bom. Vamos organizar 0 casamento e beber a satide de todos!

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