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ZILÁ MARIA MUNIZ

A IMPROVISAÇÃO COMO UM ELEMENTO


TRANSFORMADOR DA FUNÇÃO DO COREÓGRAFO
NA DANÇA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro do Centro de
Artes da Universidade do Estado de
Santa Catarina, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor em
Teatro.

Orientador: Prof. Dr. André Carreira

FLORIANÓPOLIS – SC
2014
M966i Muniz, Zila Maria
A improvisação como um elemento transformador da função do
coreógrafo na dança / Zila Maria Muniz. - 2014.
259 p. : il. ; 21 cm

Orientador: André Antunes Netto Carreira


Bibliografia: p. 243-253
Tese (doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de
Artes, Programa de pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2014.

1. Coreografia. 2. Improvisação (Dança). 3. Dança contemporânea. I.


Carreira, André Antunes Netto. II. Universidade do Estado de Santa Catarina.
Programa de pós-graduação em Teatro. IV. Título.

CDD: 792.82 – 20.ed.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC


ZILÁ MARIA MUNIZ

A IMPROVISAÇÃO COMO UM ELEMENTO


TRANSFORMADOR DA FUNÇÃO DO COREÓGRAFO
NA DANÇA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro


de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Banca Examinadora

Orientador:
_________________________________________________________________

Prof. Dr. André Carreira


Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Membro:
_________________________________________________________________

Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro


Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Membro:
_________________________________________________________________

Prof. Dr. Stephan Baungartel


Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Membro externo:
_________________________________________________________________

Profª. Drª. Idamara Freire


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Membro externo:
_________________________________________________________________

Profª. Drª. Suzana Weber


Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Florianópolis, 28 de Julho de 2014.


Para Ninita e Alci,
por me ensinarem a amar arte.
AGRADECIMENTOS

Nesse momento tantos nomes surgem e percebo que,


durante a trajetória deste Doutorado, de uma forma ou de outra,
as pessoas que cruzaram o meu caminho me afetaram com
diferentes intensidades ou, ainda, com qualidades que
transformaram este processo. Obrigada por fazerem parte desta
caminhada.
Dida, Lui, André Carreira, Vicente Mahfuz, Karina
Degregório, Nastaja Brehsan, Egon Seidler, Paula Bitencourt,
Letícia Martins, Lena Muniz, Ana Pi, Marcos Klann, Claudia
Sachs, Ismael Sheffler, Marisa Naspolini, Pita Belli, Mayana
Marengo, Simone Fortes, Heloise Baurich Ouvidor, Nini
Beltrame, Edélcio Mostaço, Stephan Baumgärtel, Sandra
Bigelow, Mila, Erin Manning, Brian Massumi, Mayra Morales,
Toni Pape, Ronald Rose-Antoinette, Mahasti Mudd, Bianca
Scliar, Gerko Egert, Eleonora Diamanti, Katja Philipp, Gina
Muniz, Lucila Muniz, Gabriela Nunes, Dóris Schmitt, Abdon
Luiz Schmitt, José Cristiano Schmitt, Patrícia Galvão,
Maurício Muniz, Marcelo Muniz, Andréa Farley, Joshua
Farley, Lita Murphy, Bill Murphy, Diana Gilardenghi e Ivana
Bonomini.
RESUMO

MUNIZ, Z. A improvisação como um elemento


transformador da função do coreógrafo na dança. 259 p.
Tese (Doutorado em Teatro). Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em
Teatro, Florianópolis, 2014.

Esta tese discute a improvisação como elemento transformador


da função do coreógrafo na dança que reflete em processos
colaborativos de criação, que pressupõe a participação de todos
os envolvidos no trabalho de composição que a partir de suas
competências artísticas tem espaço legítimo para criação. A
pesquisa desenvolve uma trajetória teórica que atravessa
campos distintos, da filosofia para a pesquisa em dança para
ilustrar e compreender o papel da improvisação na formação do
sujeito e situá-lo no espaço da experiência. Para isso faz
referência à teoria da “ética da existência” e o “cuidado de si”
elaborados por Michel Foucault, e à Danielle Goldman, que
sugere a prática da improvisação como uma prática de
liberdade. A análise do processo de criação é considerada a
partir de várias instâncias e, para isso, este estudo faz um
mapeamento das experiências e dos dispositivos de
procedimentos e processos colaborativos de composição
propostas pelas vanguardas da década de 60 e suas implicações
na transformação da noção de dança. Reflete sobre o
fenômeno da improvisação como técnica de dança e como
causa da transformação e do fortalecimento dos coletivos e do
seu uso nos processos de criação, com a análise detalhada do
processo da improvisação. Os conceitos de “linguagem”,
“sentido” e “afecto” são discutidos para traçar um percurso que
delineia o meu pensamento enquanto coreógrafa e por onde se
dá a dramaturgia e a construção de sentido na dança nos
processos onde exerço a função de coreógrafa. Além disso,
considero em que estado a dança se apresenta a mim e afeta a
minha imaginação como ponto de partida para um processo de
invenção e de montagem. Busco, ainda, analisar as
transformações nos conceitos de coreografia, de coreógrafo e
alguns princípios e práticas pertencentes ao universo de
composição diante do panorama que se configura na criação.
Por fim, nesta mesma direção, porém com uma perspectiva
voltada para os processos de duas montagens do Ronda Grupo,
descrevo partes dos procedimentos das técnicas de criação e do
trabalho de construção de sentido nos espetáculos Socorro
(2008) e Lugar nenhum (2010). Para tanto, trago para a
discussão os conceitos de “Ritornelo” e “Fabulação” de
Deleuze e Guatarri como forma de problematizar a forma
criativa da improvisação, ou o movimento da criatividade.

Palavras-chave: Dança contemporânea. Dança pós-moderna.


Improvisação. Composição Coreográfica. Coreografia.
ABSTRACT

MUNIZ, Z. The improvisation as a transformative element


of the choreographer function in dance. 259 p. Thesis
(Doutorado em Teatro). Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em
Teatro, Florianópolis, 2014.

The thesis discusses improvisation as a transformative


element of the choreographer function, in dance, that reflects
on collaborative processes of creation, which implies the
participation of everyone involved in the work of composition,
and from their artistic skills have a legitimate space for
creation. The research develops a theoretical trajectory that
crosses different areas, from the philosophy to the study in
dance to illustrate and understand the improvisation role on the
individual formation, and locate him in the experience space.
Thus, it is possible to refer to the theory of "ethics of existence"
and "self-care" developed by Michel Foucault, and Danielle
Goldman, which suggests the improvisation practice as a
practice of freedom. An analysis of the creation process is
considered from multiple instances. In order to do that, this
study develops a mapping of experiments and devices of
procedures and collaborative processes of composition
proposed by the vanguards of the 1960s, and the implications
in the transformation of the concept of dance. It reflects on the
improvisation phenomenon as a dance technique, as a cause of
the transformation and strengthening of the collective, and its
use in the creation processes with detailed analysis of the
improvisation process. The concepts of language, meaning and
affect are discussed to chart a course that outlines the thoughts
as a choreographer, and where the dramaturgy and the meaning
construction in the dance happen, in the processes one
performs the choreographer function. Also, one considers in
which state the dance presents and affects the imagination as a
starting point for the process of invention and assembly. The
aim is also to analyze the changes in the concepts of
choreography, choreographer and some principles and
practices pertaining to the universe composition before the
panorama that is configured in the creation. Finally, in the
same direction; however, with a perspective turned to the
processes of two processes of assembly of Ronda Grupo, it is
possible to describe parts of the proceedings of creation
techniques, and the work of producing a sense, in the pieces
Socorro (2008) and Lugar Nenhum (2010). Therefore, one
brings for discussion the Deleuze and Guattarri’s concepts of
Ritornello and Fabulation as a way of questioning the creative
form of improvisation and the creativity movement.

Keywords: Contemporary dance. Post-modern dance.


Improvisation. Composition. Choreography.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Chorégraphie, ou l'art de d'écrire la danse ......... 174


Figura 2 – Chorégraphie, ou l'art de d'écrire la danse ......... 175
Figura 3 – Socorro, cena do banco | Egon Seidler e Paula
Bittencourt ............................................................................. 201
Figura 4 – Socorro, cena do “não” | Vicente Mahfuz, Karina
Degregório, Elisa Schmidt e Egon Seidler ............................ 201
Figura 5 – Socorro | Egon Seidler e o boneco ....................... 202
Figura 6 – Socorro, cena da boneca | Karina Degregório, Paula
Bittencourt, Egon Seidler e Vicente Mahfuz ........................ 204
Figura 7 – Socorro | Paula Bittencourt e o boneco................ 206
Figura 8 – Socorro | Vicente Mahfuz e Karina Degregório .. 210
Figura 9 – Lugar nenhum | Vicente Mahfuz ......................... 217
Figura 10 – Lugar nenhum | Nastaja Brehsan, Egon Seidler,
Vicente Mahfuz e Paula Bittencourt ..................................... 218
Figura 11 - Lugar nenhum | Letícia Martins e Karina
Degregório ............................................................................. 222
Figura 12 – Lugar nenhum | Vicente Mahfuz e Paula
Bittencourt ............................................................................. 225
Figura 13 – Lugar nenhum | Paula Bittencourt e Nastaja
Brehsan .................................................................................. 226
Figura 14 – Lugar nenhum | Karina Degregório, Egon Seidler,
Vicente Mahfuz e Letícia Martins ......................................... 228
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................... 17
1 LIBERDADE, LIBERDADE.................................... 33
1.1 A IMPROVISAÇÃO COMO PRÁTICA DE
LIBERDADE .......................................................................... 33
1.2 ESTAR NO ESPAÇO DA EXPERIÊNCIA ............... 41
2 PROCEDIMENTOS VETORES NA DANÇA PÓS-
MODERNA ............................................................................ 49
2.1 RUPTURAS ................................................................ 49
2.1.1 Merce Cunningham, nada por acaso ao acaso ........ 52
2.1.2 Anna Halprin, por uma autonomia do artista ........ 59
2.2 EMERGÊNCIA DE UM COLETIVO ........................ 64
2.2.1 Expandindo limites e jogando com o imprevisível . 64
2.2.2 Procedimentos e processos, inauguração como
experimento............................................................................ 67
2.2.3 Grand Union, Contato Improvisação, Six Viewpoints
e Viewpoints ............................................................................ 73
2.2.4 Um olhar que se transforma ..................................... 83
3 IMPROVISAÇÃO ..................................................... 89
3.1 DESCOBRIR CAMADA POR CAMADA,
VOCABULÁRIO E COLABORAÇÃO ................................. 89
3.2 INVENTANDO EVENTO, DO VIRTUAL AO
ATUAL ................................................................................... 96
3.3 FAZER ESCOLHAS NA CRIAÇÃO EM MEIO E
POR MEIO DA RESTRIÇÃO .............................................. 100
3.4 UMA DANÇA DE SENSAÇÃO .............................. 116
4 LINGUAGEM, SENTIDO E AFECTO ................ 123
4.1 A LINGUAGEM COMO METÁFORA ................... 123
4.2 O SENTIDO DE SENTIDO NA LÓGICA DO
AFECTO ............................................................................... 130
4.3 EM QUE ESTADO A DANÇA SE APRESENTA A
MIM E AFETA A MINHA IMAGINAÇÃO ....................... 151
5 MAPA DE POSSIBILIDADES NA PERSPECTIVA
DO COREÓGRAFO ...........................................................169
5.1 COREOGRAFIA E COREÓGRAFO........................170
5.2 TÉCNICA E TECNICIDADE ...................................190
5.3 DE-VAGAR PELA CENA DE SOCORRO ..............198
5.4 DO RITORNELO A LUGAR NENHUM .................214
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................235
REFERÊNCIAS ...................................................................243
ANEXOS ...............................................................................255
17

INTRODUÇÃO

Hoje são frequentes os procedimentos em montagens de


trabalhos de dança que envolvem processos colaborativos de
criação, nos quais todos os integrantes trabalham ativamente,
cada um inserido em suas competências profissionais. Como
consequência dessa forma de trabalho, a função do coreógrafo
se transformou, tornando interessante investigar alguns
aspectos deste fenômeno. A partir da improvisação como um
elemento que faz parte dos processos de pesquisa e de criação,
o coreógrafo representa a função de ativador da imaginação
entre os colaboradores de uma produção para a montagem de
um trabalho de dança. A proposta desta pesquisa não é
desenvolver uma metodologia de trabalho, mas sim, ser um
meio de explorar um universo ainda pouco investigado. Por se
tratar de um fato recorrente, pode-se afirmar que qualquer
iniciativa de investigação realizada com rigor neste campo
servirá de suporte para artistas e pesquisadores.
Ao longo de uma trajetória como artista, professora e
pesquisadora, a dança sempre foi o ponto de partida de minha
pesquisa. Entretanto, a Arquitetura e o Teatro objetivamente
fazem parte dos modos que vejo, penso e faço dança. A
graduação em Arquitetura me ensinou a olhar para o mundo
procurando no vazio, no cheio e nos volumes o ritmo do espaço
e a poética da relação entre arquitetura e homem, entre ser vivo
e seu habitat, ou seja, me fez focar no lugar do “entre”. Um
momento importante no percurso realizado como artista e
pesquisadora foi fazer a especialização em Dança Cênica no
CEART/UDESC, promovido por Sandra Meyer Nunes em
2000 por aglutinar pensadores, teóricos e artistas em uma
intensa convivência e um ambiente de efervescência que
contribuiu imensamente para a construção de um pensamento
em dança artístico/teórico. Por outro lado, na formação no
Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do
Estado de Santa Catarina (PPGT/UDESC), por meio do
18

aprofundado estudo sobre o campo do teatro nos cursos de


Mestrado e Doutorado, tornou-se inevitável que a apropriação
do olhar do teatro no meu trabalho artístico acontecesse
principalmente com a incorporação de princípios e técnicas do
teatro de formas animadas no trabalho do Ronda Grupo1.
Assim, o interesse pela pesquisa prática e teórica se ilumina,
também, através do trabalho de importantes coreógrafos e
diretores e os princípios desenvolvidos por cada um deles
mediante os procedimentos de criação.
Na minha dissertação de Mestrado, concluída em 2004,
a pesquisa tratou da improvisação como processo de
composição na dança contemporânea. A improvisação é um
fenômeno que continua a conduzir o meu trabalho e é parte da
pesquisa que desenvolvo na atuação no Ronda Grupo como
coreógrafa e bailarina, de 1999 a 2003, e como coreógrafa e
diretora desde 2003. Interessa-me pensar nos procedimentos de
criação em dança em um ambiente em que a improvisação e
seus desdobramentos se apresentam como técnica de
composição no processo colaborativo. Nos últimos anos tenho
questionado a função que exerço junto ao grupo e, ao avaliar a
experiência pela perspectiva das últimas montagens, percebo
que meu trabalho realizado como artista foi ao longo dos anos
se transformando.
Durante o percurso empreendido no Ronda Grupo é
nítido que, a partir do momento em que a improvisação
começou a fazer parte da pesquisa e entrou efetivamente como
uma prática e procedimento frequente nas montagens, as
estruturas dos processos de criação adquiriu outra maneira de
fazer dança. Consequentemente, a função que exerço se
deslocou e, por isso, as questões que aparecem estão em
relação a esse outro olhar sobre a dança que improvisa. Essa
inquietação, aos poucos, foi gerando o anseio de buscar uma
melhor compreensão sobre o lugar que ocupo dentro dos
1
Ronda Grupo de Dança e Teatro, companhia de dança contemporânea de
Florianópolis. Ver referência mais completa e o histórico no anexo.
19

procedimentos de criação e o Doutorado estende-se como


forma de aprofundar uma pesquisa que na prática já acontece.
Ao refletir sobre a função que exerço junto ao grupo e
sobre a experiência do trabalho didático com a improvisação,
acabei chegando a uma das questões que me instiga neste
momento de uma trajetória como artista e pesquisadora. A
investigação realizada neste estudo desenvolve uma operação
teórica para argumentar em favor da ideia da transformação da
função do coreógrafo a partir da incorporação da improvisação
como recurso técnico para a criação em processos
colaborativos na dança. Além disso, faço uma tentativa de
descobrir e examinar as técnicas que desenvolvemos e que
utilizamos nas montagens do Ronda Grupo dos espetáculos
Socorro (2008) e Lugar nenhum (2010).
Depois de diluídas as fronteiras entre campos artísticos
e a frequente apropriação de elementos e ferramentas de áreas
distintas, também as estruturas de criação se modificaram e a
organização tanto em relação aos processos como as funções
dos artistas envolvidos adquirem novas características. Ao
discutir a dança sob o ponto de vista do processo, dos
procedimentos de criação e sobre o papel da improvisação nas
estruturas dos núcleos criativos, esta pesquisa contribui com
um olhar sobre as mudanças que surgem na função do
coreógrafo e reflete sobre caminhos para a formação e suas
competências.
De acordo com Mônica Dantas (2005), a cena
contemporânea na dança borrou as fronteiras entre os campos
artísticos por meio de espetáculos, principalmente a partir da
década de 1990, mesclando elementos do teatro, da
performance, do cinema, da música e das artes visuais. Da
mesma forma, esses trabalhos trazem referências técnicas e
criativas de outros campos representacionais, tais como: o
tradicional, o moderno, o popular, o folclórico e a cultura de
massa. Consequentemente, o meio da dança passa a exigir do
bailarino maior disponibilidade técnica com uma formação que
20

envolva diferentes técnicas de dança, práticas de educação


somática e, finalmente, através da prática da improvisação, a
possibilidade de criar, de selecionar e desenvolver material
coreográfico. A incorporação destas práticas e dos diversos
procedimentos de criação desenvolvidos pelo movimento pós-
moderno americano e da nova dança na Europa modificaram as
funções do bailarino e do coreógrafo.
Se por um lado existe material sobre a função do
bailarino, por outro lado, não é comum discorrer acerca da
prática sob o ponto de vista do coreógrafo, ou sobre suas
competências, principalmente na dança que se produz em
processos colaborativos. É um campo ainda pouco explorado
nas pesquisas acadêmicas, principalmente no Brasil e o
conceito de coreógrafo, no sentido mais tradicional, não dá
conta de situar o criador neste contexto. Apesar de perceber um
número crescente de companhias e grupos, profissionais ou
não, que desenvolvem no processo de criação processos
colaborativos e têm na improvisação suporte para o
desenvolvimento de material, as transformações ocorridas na
função do coreógrafo ainda são pouco pesquisadas, ou pouco
registradas através de material teórico.
Para isso, uma parte desta pesquisa identifica
historicamente alguns momentos de rupturas que alteraram
radicalmente as noções de dança e aponta estes movimentos
como desencadeadores das mudanças nos processos de criação.
Mais especificamente a consolidação da função de direção que
é imprescindível para analisar as funções do coreógrafo na
dança que se produz hoje. Ao traçar um percurso das
abordagens e iniciativas realizadas, percebe-se que a cena da
dança se torna mais diversificada a partir do momento que a
improvisação começa a fazer parte do rol de ferramentas e se
dissemina como parte da formação de um bailarino. Também é
nesse momento que novas linguagens proliferam pelo mundo e
é quando processos colaborativos se tornam mais frequentes.
Nesse mapeamento de procedimentos e desenvolvimento de
21

técnicas improvisacionais, enfoco principalmente o movimento


pós-moderno americano como um vetor para pensarmos nas
transformações que ocorreram e impulsionaram a propagação
da improvisação nos processos colaborativos.
Como parte da ideia de que as experiências realizadas
no Brasil com a improvisação fazem parte deste fluxo de novas
contaminações que surgem a partir do movimento pós-
moderno americano e da nova dança europeia, não incluo neste
estudo tais eventos e não faço um mapeamento de tais
profissionais. Durante os anos que morei nos Estados Unidos,
entre 1992 e 1997, fui exposta às diversas manifestações e
técnicas da dança contemporânea, principalmente à
improvisação como processo de composição, à improvisação
de contato e à Release Technique2. Na volta ao Brasil, e até o
início da década de 1990, muitos outros profissionais
praticavam a improvisação e com técnicas de composição
advindas da dança pós-moderna. Alguns exemplos: Tica lemos
e Adriana Grechi, no Estudio Nova Dança em São Paulo; Beti

2
A técnica de Release é um conjunto de princípios e métodos de
treinamento usados na dança contemporânea. Esses princípios enfatizam a
liberação da tensão muscular quando os movimentos são realizados com o
objetivo de alcançar um uso eficaz da energia e da anatomia, de modo que
os movimentos são realizados com um esforço mínimo. Além disso,
trabalha para desenvolver a consciência e o alinhamento corporal,
respiração, mecanismo orgânico das articulações e distribuição do peso do
corpo, e ensina a usar a gravidade a seu favor em vez de usar a força
muscular. A partir dos anos 50, alguns bailarinos e professores de dança
começaram a procurar novas maneiras de treinamento para o corpo na
dança. Eles se voltaram para disciplinas orientais como Yoga, Tai Chi e
artes marciais e incorporaram o conhecimento de técnicas de educação
somática que já haviam sido desenvolvidas, como a Ideokinesis, a técnica
de Alexander e Feldenkrais. A Tecnica de Release não pode ser atribuída a
uma única pessoa, uma única disciplina ou um único período. É a soma de
um esforço coletivo que evoluiu ao longo de gerações no século XX.
Precursores e pioneiros são numerosos. Alguns dos mais influentes são:
Mabel Todd, Lulu Sweigard, Barbara Clark, Erick Hawkins e Irmgard
Bartenieff.
22

Gleber, David Iannitelli e Leda Muhana em Salvador, na


Universidade Federal da Bahia (UFBA); e a escola de Angel
Vianna, ainda antes de se tornar faculdade no Rio de Janeiro,
cujo trabalho envolvia uma vertente da improvisação na dança
trazida para o Brasil e desenvolvida por Klaus Vianna, e Eva
Shull no Paraná e Rio Grande do Sul.
A partir das realizações das vanguardas do século XX, e
mais especificamente na década de 1960 com a dança pós-
moderna, novas estruturas, técnicas e procedimentos de
composição surgiram. Nesse sentido, a dança pós-moderna foi
um importante marco para o que diz respeito aos processos de
criação e a expansão das possibilidades de trabalhos
colaborativos. O termo “dança pós-moderna” foi empregado
pela primeira vez na década de 1960 por Ivone Rayner,
bailarina, coreógrafa e cineasta americana, para descrever o
movimento de dança do coletivo Judson Church Theater.
Segundo Banes e Carroll (2006), dois movimentos foram
cruciais para as artes no século XX. O primeiro foi a vanguarda
modernista do inicio do século, cujo principal aspecto envolveu
isolar a arte de tudo o mais e extrair sua essência para então a
compreender. Dessa forma, cada campo artístico foi
reconhecido pelo seu meio constitutivo e a vanguarda
modernista se tornou comprometida com a arte pura.
Já o segundo movimento, que Banes e Carroll (2006)
denominam vanguarda “integracionista”, tem como aspecto
constitutivo borrar as fronteiras entre a vida e a arte. O ready
made3 dadaísta de Marcel Duchamp, por exemplo, é um gesto
concebido para complicar a separação entre arte e a existência
do cotidiano. Outro exemplo do trabalho dos “integracionistas”

3
O ready made nomeia a principal estratégia de fazer artístico de Marcel
Duchamp e é uma forma ainda mais radical da arte encontrada (ou objet
trouvé, no original francês). Essa estratégia se refere ao uso de objetos
industrializados no âmbito da arte, desprezando noções comuns à arte
histórica como estilo ou manufatura do objeto de arte, e referindo sua
produção primariamente à ideia.
23

é o construtivismo que usa a arte para implementar o cotidiano,


traz a arte para a vida, enquanto os dadaístas levam a vida para
a arte. Em 1960 os integracionistas floresciam em Nova York
com os trabalhos da Pop Art, influenciados pelos surrealistas e
dadaístas ao fazer um curto circuito entre cultura alta e cultura
vernácula comercial, o Fluxus e os Hapennings e em Paris com
os Situacionistas. Para Banes e Carroll (2006) é nessa
vanguarda que Marcel Duchamp, John Cage, e depois os pós-
modernos na dança pertencem. Nesse movimento, a
provocação acontece ao se emoldurar objetos, sons e
movimentos do cotidiano, e seus artistas redirecionaram o
olhar do espectador para aspectos negligenciados da existência
cotidiana para integrar arte e vida.
Para os pós-modernos na dança, ponto que será
detalhadamente descrito e analisado nesta pesquisa, o
movimento do cotidiano tem o mesmo sentido do ready made
de Duchamp e foi inserido nas danças de formas diferenciadas.
Algumas coreografias eram construídas inteiramente com
movimentos ou atividades do cotidiano ou ainda com tarefas,
outras danças faziam uma mescla entre movimentos de dança e
movimentos do cotidiano, causando estranhamento no início.
Os artistas desse movimento também construíram danças com
movimentos que não faziam parte do cotidiano nem da dança,
mas que notadamente se definiam a partir de estruturas de
jogos e de brincadeiras. Depois disso, surge uma modalidade
de movimento que quando apareceu foi difícil de identificar do
que se tratava, mas que possuiu qualidades de movimentos do
cotidiano, porém não eram reconhecidos como tal.
Esses movimentos, originados dos jogos ou
irreconhecíveis como de dança ou do cotidiano, prevaleceram
como foco de pesquisas diversas daqueles artistas e geraram
novos padrões energéticos para a dança, o que fez parte da
criação e do desenvolvimento de novas técnicas de dança.
Como exemplo, a Release Technique e toda a fundamentação
24

que deu suporte para a Educação Somática4. Portanto, existe


uma gama de técnicas que, principalmente ao longo dos
últimos cinquenta anos, vêm se especializando justamente na
busca por criar formas de trabalhar essas modalidades de
movimento no corpo. A improvisação é outro exemplo que
também se constituiu como uma importante ferramenta para
potencializar as possibilidades de movimento com estes novos
códigos energéticos.
A improvisação foi introduzida por Émile Jaques-
Dalcroze e Rudolf Laban na Dança Criativa na Europa, e por
Margareth O’Doubler e Anna Halprin nos Estados Unidos. É
um termo que abriga diversas manifestações e que não define
uma única prática. A Improvisação, como é hoje utilizada, foi
se sistematizando a partir do século XX e adquiriu um novo
caráter quando foi incorporada pelos artistas do movimento
pós-moderno americano. Inicialmente como forma de
experimentação, diversos artistas como Mary Overly, Simone
Forti, Steve Paxton, Trisha Brown, Meredith Monk, Bill T.
Jones, Lisa Nelson, William Forsyte, Anne Bogart e muitos
outros, incorporaram e sistematizaram a improvisação, gerando
diferentes formas de trabalho. A improvisação engloba diversas
técnicas e procedimentos de criação desenvolvidos,
reinventados ou adaptados para a dança, principalmente no
movimento pós-moderno, e foi disseminada pelo mundo com
desdobramentos e apropriações muito diversificadas.
Antes mesmo da década de 1960, o ideal de liberdade e
de comunidade se fortaleceu na dança a partir do uso da
improvisação por Margareth O’Doubler, educadora americana,
e Anna Halprin, coreógrafa e educadora americana. Seus
procedimentos de criação envolviam a improvisação na

4
A Educação Somática é o campo disciplinar que reúne um conjunto de
métodos que têm como principal foco o aprendizado da consciência do
corpo em movimento, sempre em sua relação com o ambiente. A
palavra soma, de origem grega, refere-se ao corpo como experiência vivida,
distinguindo-o da ideia de um corpo-matéria ou de um corpo-objeto.
25

estruturação dos jogos, tarefas e acontecimentos. Além disso, a


improvisação, como uma prática largamente disseminada,
desenvolve outra inteligência e consequentemente um “corpo
responsivo e inteligente” 5 na dança.
A improvisação como uma prática de dança e como
técnica de composição visa desenvolver no bailarino novas
competências para criar ou colaborar na criação. Portanto, é um
aspecto que soma e complementa a formação em dança, sem
excluir nenhuma outra técnica. A improvisação acentua a
forma própria de se mover e, por isso, valoriza as diferenças,
ressaltando ao invés de esconder as imperfeições e as
especificidades de cada corpo, de cada indivíduo, aspectos
esses amplamente valorizados por coreógrafos na dança
contemporânea.
Improvisar se tornou um dos pontos fundamentais das
experiências da dança pós-moderna na década de 1960, ganhou
impulso através da sua disseminação a partir das décadas de
1970, 1980 e adquire reconhecimento internacional nos anos
1990 ao alcançar um lugar indiscutível na formação de dança
como técnica de composição e criação e, ainda, como prática
de construção de um corpo apto e responsivo. Nesse novo
milênio, a partir da sua sistematização e das inúmeras
abordagens, desenvolve-se como uma modalidade técnica,
estendendo-se a espetáculos, oficinas, palestras, disciplinas em
escolas técnicas, formais e informais e universidades. Por meio
do Contato Improvisação e Viewpoints, a improvisação (e
ramificações) foi difundida no mundo todo. No teatro, a

5
“Corpo responsivo e inteligente” é um termo que serve para definir um
corpo que tem habilidade de improvisar, um corpo que responde
rapidamente às questões de improvisação, resolvendo problemas, achando
soluções e desmanchando hábitos. Para Damásio (1999), a inteligência se
relaciona à capacidade de manipular conhecimentos com tal êxito que
respostas inéditas possam ser planejadas e executadas. A improvisação pode
desenvolver essa capacidade no corpo e a consciência torna o organismo
ciente da maior esfera de conhecimento possível.
26

improvisação em dança também é amplamente utilizada e


adaptada por incontáveis artistas e diretores na formação do
ator e no processo de ensaio.
Conceitos como “liberdade” e “constituição do sujeito”,
inserido num coletivo, são centrais para compreendermos a
improvisação como um elemento incorporado pelos pós-
modernos e utilizada nos processos de ensaio e de
apresentação, em que a autoria criativa e diretorial reside no
grupo como um todo. Parte do estado de atenção e de energia
voltado para o processo de dinâmica de grupo se deu através da
participação de artistas instruídos em campos diversos, o que
consequentemente gerou uma variedade de perspectivas e
métodos de criação. A grande ruptura na estrutura de grupos e
companhias de dança aconteceu neste momento com a
invenção de modelos de organização de grupo priorizando o
indivíduo como criador dentro de um sistema coletivo de
tomada de decisões e de escolhas. Um aspecto importante de
salientar na improvisação é como o indivíduo toma decisões
sobre a obra e observa a si próprio em ação, que se associa à
possibilidade de uma ação individual através de colaboração,
dentro de um contexto de grupo, no coletivo.
A improvisação como técnica de dança tem como
princípio-chave a colaboração e a sintonia entre os
participantes para a criação conjunta. A realização do indivíduo
se dá dentro de um contexto de colaboração em uma atividade
em grupo, e não por competitividade, ao mesmo tempo em que
destaca as diferenças e as singularidades de cada um. Esse
enfoque é contrário ao de um sistema em que o ideal de
bailarino é o de executor de padrões, que aprende, repete e
executa sequências de movimento criadas e organizadas pelo
coreógrafo.
A estrutura do coreógrafo centralizador como criador,
mas, sobretudo como gerenciador de um repertório de
movimentos, que é um modelo muito frequente no balé e na
dança moderna, é o que imprimia a homogeneidade nos corpos
27

de bailes. A formação do bailarino geralmente acontecia em


escolas e academias estabelecidas, além de uma formação
direta com os coreógrafos. A tradição de aprender por meio da
repetição dos movimentos para depois executá-los, a exemplo
da dança clássica, é um procedimento próprio da dança. A
segunda geração da dança moderna se caracteriza pelo
desenvolvimento de linguagem submetido à subjetividade dos
coreógrafos que determinava padrões universais fundadores do
movimento. Essa característica pode ser observada nas
companhias e escolas com trabalho de codificação e
formalização técnica, tais como: Martha Graham Dance
Company, Doris Humphrey, José Limon Dance Company e
inclusive Merce Cunningham Dance Company, além das
companhias que se utilizam da técnica clássica como base e
gramática de seus movimentos. Cintia Novak afirma que a
estrutura dessas companhias tem no coreógrafo e diretor “a
fonte criadora do trabalho executado pelos bailarinos, é ele
quem dá a forma para a obra até que esta esteja pronta para ser
apresentada para uma plateia” (1990, p. 24).
Na dança moderna, o trabalho de formação do bailarino
se dá dentro de uma linhagem, como a exemplo dos bailarinos
de Martha Graham que, para dançar suas danças, precisavam
fazer a formação em sua escola ou em estúdios que ensinavam
sua técnica. Já na dança contemporânea, como afirma Louppe
(2000), a formação do bailarino passa por diversas correntes e
não apresenta uma referência corporal característica, resultado
da dissolução das linhagens. Todas essas operações de
aprendizado de diversas técnicas e as misturas que agencia
correm o risco de serem superficiais. O corpo precisa ser
“tocado” por estas informações, cada técnica é uma filosofia de
corpo, como explica Louppe (2000).
Por meio da minha experiência, tanto na criação de
espetáculos como em processos pedagógicos, como bailarina,
professora e diretora, observo que esse problema pode ser
contornado quando a improvisação fizer parte da formação e da
28

rotina de um bailarino. Nesse caso, sua prática constante faz


com que as informações aprendidas em workshops, por
exemplo, sejam ou não apropriadas por meio da improvisação.
Improvisar faz com que movimentos sejam retidos e
incorporados, de forma a reorganizar constantemente o
vocabulário corrente. O corpo que improvisa e dança resolve
sua questão de estar no mundo por meio de sua instabilidade,
deixando-se carregar pelo fluxo da vida. O uso consciente da
improvisação atua como importante meio para a inovação
(MARTINS, 1999; KATZ, 1999; NOVAK, 1990; AMORT,
1999; BENOIT, 1998; e MUNIZ, 2004).
Quais são as chances de se improvisar e desenvolver
material coreográfico? De acordo com Martins (1999), Blom e
Chaplin (1982), Smith Artaud (1992), Kaltenbrunner (1998),
Albright e Gere (2003), Muniz (2004) e Goldman (2010), mais
e mais criadores utilizam a improvisação como recurso em
composição coreográfica, num sistema de colaboração entre
coreógrafo e bailarinos no qual o trabalho parte de experiências
e improvisações e os bailarinos são colaboradores para a
criação conjunta. Observa-se que, para o processo de
montagem de um trabalho de dança, esse tipo de colaboração
potencializa o material coreográfico. Surgem novos acordos,
pois, proporcionalmente a todos os envolvidos, pensa-se nas
conexões e recombinações que podem vir a se potencializar na
configuração de cadeias associativas de movimento mais
complexas.
Nesse contexto da dança, o coreógrafo é aquele que
estimula a colaboração, ativa a imaginação dos envolvidos no
processo de criação, reconhece e potencializa o material
desenvolvido e apresentado. Nesta pesquisa, meu olhar se volta
para a figura do coreógrafo e para improvisação como um
elemento que provoca parte das transformações ocorridas na
maneira como um coreógrafo atua. O coreógrafo pode utilizar
diferentes esquemas de criação, imprime sua visão artística no
29

trabalho e colabora com os outros profissionais envolvidos na


montagem.
A questão que instiga esta pesquisa relaciona-se com a
função do coreógrafo que amarra uma criação coreográfica.
Acredito que o processo colaborativo, na dança, acontece a
partir da utilização da improvisação como ferramenta de
composição. Por meio da possibilidade de um corpo que
improvisa – dentro de padrões de rigor e desenvolvimento da
técnica – torna-se mais apto e capaz, um corpo criativo,
emancipado no processo de diversificação, que abre a
probabilidade de que criadores trabalhem com o bailarino
improvisador sem negligenciar seu papel criativo.
Qual a função do coreógrafo que atua na dança hoje?
Quais competências e habilidades ele deve desenvolver para
atuar em processos colaborativos de criação? Na forma mais
tradicional de criação em companhias de dança, o coreógrafo
representa a função de unificador e criador. Porém,
compartilhar o eixo conceitual de uma montagem significa uma
perda de especificidade do papel do coreógrafo? Ou, pelo
contrário, ao potencializar todas as vozes neste processo de
divisão de autorias, o diretor teria a função de ativador?
Como o eixo desta pesquisa é a análise da
transformação da função do coreógrafo no processo
colaborativo, o que pressupõe a participação ativa e criativa de
todos os envolvidos no trabalho de composição, pergunto-me:
esse tipo de procedimento se constitui numa forma de criação
em que os integrantes, partindo de suas competências artísticas,
possuem espaço legítimo para criar?
Nessa dinâmica de compartilhamento das autorias,
coreógrafo e coreografia tornam-se termos que sofreram
variações. Um dos pressupostos deste estudo é de estabelecer
claramente um cenário onde a função do coreógrafo na dança
se diferencia do papel do coreógrafo tradicional responsável
por todas as decisões relativas ao processo de ensaio e ao
trabalho final da obra. Historicamente a mudança no papel do
30

coreógrafo é paralela à do bailarino que, de executor, passa a


ser intérprete criador. Além disso, há a questão que permeia
esta forma de criação, pois o coreógrafo também compartilha a
autoria com os colaboradores. Acredito que este é um ponto em
que por vivermos em um tempo em que a questão da autoria é
amplamente discutida, neste contexto de compartilhamento de
autorias na dança existe um nó a ser evidenciado e
compreendido de uma maneira menos radical e tradicional.
No contexto aqui mapeado, algumas das questões que
emergiram conduziram o desenho estrutural da tese. Numa
visão panorâmica desse percurso, partiu-se de uma visão
reflexiva sobre alguns conceitos da filosofia; portanto,
proponho atravessar campos distintos para ilustrar e
compreender o papel da improvisação na formação do sujeito.
Sendo assim, faço referência aos escritos de Michel Foucault
sobre a “ética da existência” e o “cuidado de si”; à Danielle
Goldman (2010), autora do livro I Want to be Ready:
Improvised Dance as a Practice of Freedom, que sugere a
prática da improvisação como uma prática de liberdade; e ao
conceito de “experiência” de John Dewey para situar o sujeito
no cerne da experiência. Também trago estudos de Gilbert
Simondon para analisar processos de sujeição e individuação e
principalmente na criação como processo e como experiência
transindividual.
Ao traçar um breve panorama historiográfico e analítico
de alguns conceitos do movimento da dança pós-moderna e de
algumas experiências exemplares de coletivização que fizeram
parte da vanguarda da década de 1960 nos Estados Unidos,
identifico princípios e aspectos que foram fundamentais para a
forma de olhar para a dança desde então. Por se tratar de um
elemento-chave desta pesquisa, problematizo a improvisação e
como esta adquire características importantes a partir de sua
incorporação e sistematização pelo movimento pós-moderno
nos Estados Unidos e sua disseminação e ramificações no
mundo. Discuto a improvisação como uma técnica de
31

composição amplamente utilizada na dança contemporânea e


suas principais características que alteram a noção de dança, de
espaço, de tempo e de energia no movimento. Dentre os
elementos que compõem a improvisação como memória,
escolhas, tempo e restrições, traço um paralelo entre estes
elementos e conceitos como o virtual e atual, sensação e
percepção.
Os conceitos de “linguagem”, “sentido” e “afecto”6 são
discutidos para traçar um percurso que delineia o meu
pensamento enquanto coreógrafa e por onde se dá a
dramaturgia e a construção de sentido na dança nos processos
onde exerço a função de coreógrafa. Além disso, considero em
que estado a dança se apresenta a mim e afeta minha
imaginação como ponto de partida para um processo de
invenção e de montagem. Busco analisar por meio de
mapeamento e das transformações os conceitos “coreografia”,
“coreógrafo” e sua função, e alguns princípios e práticas
pertencentes ao universo de composição diante do panorama
que se configura na criação. Por fim, nessa mesma direção,
porém com uma perspectiva voltada para os processos de duas
montagens do Ronda Grupo, descrevo partes dos
procedimentos das técnicas de criação e do trabalho de
construção de sentido nos espetáculos Socorro (2008) e Lugar
nenhum (2010). Para tanto, trago para a discussão os conceitos
de “Ritornelo” e “Fabulação” de Deleuze e Guatarri para
exemplificar como estes conceitos problematizam a forma
criativa da improvisação, ou o movimento da criatividade.

6
Assim como outros pesquisadores brasileiros, escolhi afecto como a
tradução para o termo em inglês, affect.
32
33

1 LIBERDADE, LIBERDADE...

1.1 A IMPROVISAÇÃO COMO PRÁTICA DE


LIBERDADE

A improvisação faz parte de um rol de conceitos e


práticas que se estabelece como elemento fundamental da
dança contemporânea. Na bibliografia consultada para este
estudo, é recorrente a relação estabelecida por diversos autores
na referência entre improvisação e liberdade. Inicialmente essa
relação foi reconhecida principalmente em função da
incorporação das técnicas de improvisação e dos jogos
improvisacionais pela vanguarda americana da década de 1960.
Posteriormente, assim como o próprio conceito de liberdade
tem sido questionado, a improvisação parece encarnar a própria
provocação do conceito liberdade. Esgarça os limites do que é
permitido, questiona o sentido de risco e refuta a ideia de
instrumentalidade do corpo ao sugerir “formulações
alternativas de agenciamento individual e coletivo” (FOSTER,
2003, p.8).
Danielle Goldman (2010), autora do livro I Want to be
Ready: Improvised Dance as a Practice of Freedom, sugere
que a prática da improvisação – o treinamento que a
improvisação verdadeiramente exige – é uma rigorosa maneira
de se preparar para uma gama de situações em potencial. Exige
preparação e prática constantes para estar presente no momento
e, ao mesmo tempo, aberto para as possíveis ações e limitações
do próximo instante. A prática da improvisação, como define
Goldman (2010), é “politicamente poderosa” para o indivíduo
tornar-se predisposto, alerta e consciente de si e do lugar que o
situa no mundo. Portanto, é tanto um caminho como um
exercício contra reificações estáticas da liberdade.
A improvisação desenvolve dentre tantas outras
habilidades a criatividade. Dependendo da pesquisa, pode ser
34

sobre mover-se por onde o movimento normalmente não


acontece como possibilidade, ou de maneira que não seria
imaginado antes de acontecer. Goldman (2010) faz uma valiosa
referência aos escritos de Michel Foucault sobre a “estética da
existência” e o “cuidado de si”, ao refletir sobre a improvisação
como uma prática de liberdade. Por meio dessa referência, a
investigação que proponho aqui tenta atravessar campos
distintos, da filosofia para a pesquisa em dança com a função
de relacionar o papel da improvisação na formação do sujeito
e, consequentemente, de como este indivíduo pensa o coletivo.
Michel Foucault (2006), no fim dos anos 80, abre um
campo de discussão em torno da perspectiva ética, no qual o
principal material que produziu trata da produção de
subjetividade a partir da relação do sujeito consigo mesmo.
Segundo Foucault, os dois primeiros séculos de nossa era
representaram uma época de ouro para a cultura de si. Regras
que diziam respeito à escrita de si, ao exame de consciência,
aos procedimentos de aprovação e a uma constante
intensificação da vigilância em torno da conduta do sujeito,
acabaram por alterar a cultura de si num elemento de diversas
práticas sociais.
O tema da subjetividade sempre foi um importante
objeto de análise para Foucault, que começou por
problematizar o modo de como o sujeito se constituía e era
atravessado pelos “jogos de verdade” (2006a, p. 260). Nos seus
últimos anos de vida, por meio dos dois volumes da História
da Sexualidade e de seus cursos ministrados no College de
France, aparece um empenho em interpretar essa relação do
sujeito com os “jogos de verdade”, através de um minucioso
estudo da ética do “cuidado de si”, prática muito comum na
Grécia e na Roma Antiga7.

7
Períodos da História da Grécia Antiga: Pré-Homérico, entre 2000 e 1100
a.C.; Homérico, entre 1100 e 700 a.C.; Arcaico, entre 700 e 500 a.C.;
Clássico, entre 500 e 338 a.C.; e Helenístico, entre 338 e 146 a.C.
35

Os jogos de verdade se constituíam, na Grécia e Roma


Antiga, como exercícios que o indivíduo fazia sobre si mesmo,
tendo como objetivo final atingir um modo de ser ideal. No
mundo romano, só era possível cuidar de si mesmo se fosse
realizada uma série de regras e condutas que se apresentavam
como verdades para o sujeito. É por essa razão que Foucault,
em suas entrevistas publicadas no livro Ética, Sexualidade e
Política (2006a), afirma que o “cuidado de si” como uma
prática ética para uma estética da existacontece no âmbito da
racionalidade, pois o sujeito só poderia exercitar os
ensinamentos demarcados pelos romanos mediante uma
memorização e uma forte dedicação ao cumprimento dessas
verdades. Desse modo, para os gregos e romanos, o indivíduo,
ao ocupar-se de si, estava exercendo plenamente a sua
liberdade.
Para Foucault, todas as manifestações corporais são
resultados de constantes e meticulosas formas de poder sobre o
corpo. Refletir sobre maneiras de resistência quanto à
desvinculação e às práticas de construção de um corpo padrão,
aceito pela sociedade, torna-se uma tarefa impossível, pois uma
nova transformação já poderia estar relacionada a um novo
formato de ação do poder. As morais antigas eram
essencialmente uma prática, um estilo de liberdade.

A vontade de ser um sujeito moral e a procura


de uma ética da existência era principalmente,
na antiguidade, um esforço para afirmar a
própria liberdade. Dar à sua própria vida certa
forma na qual podia se reconhecer e ser
reconhecido por outros e onde a posteridade
mesma poderia encontrar como exemplo. A
elaboração da própria vida como uma obra de
arte (FOUCAULT, 2006a, p. 260).

Desse modo, o sujeito se compõe por meios de práticas


de sujeição, mais contundente, de uma maneira mais
36

independente, por meio das práticas de liberdade. Da mesma


forma, na antiguidade, gregos e romanos davam grande
importância à autonomia, a partir de certo número de regras,
estilos e convenções presentes no meio cultural. A isso
Foucault se refere como a “ética do cuidado de si” como
prática da liberdade: “É, portanto uma prática ascética, dando
ao ascetismo um sentido não de moral da renúncia e sim de um
exercício de si sobre si mesmo, através do qual um indivíduo
procura se elaborar, se transformar e atingir certo modo de ser”
(FOUCAULT, 2006a, p. 264).
Um indivíduo não pode modificar o seu modo de ser
sem mudar simultaneamente as relações consigo mesmo, com
os outros e a relação com a verdade. Na relação com a verdade,
a crítica leva à liberdade e o papel da liberdade para os
romanos era importante. O exercício de si sugeria a
responsabilidade do sujeito para com os outros e essa
responsabilidade, por sua vez, passava por mecanismos não
repressivos de poder, assim como o diálogo e a persuasão. O
problema da relação do sujeito com os outros está presente ao
longo do desenvolvimento do “cuidado de si”.
Para ser responsável por si é necessário exercer a
liberdade de forma racional. Isso sugere que a liberdade está
condicionada diretamente com a questão das relações de poder.
A liberdade, segundo Foucault (2006a), surge nesse contexto
moderno como um estado transitório no qual sujeitos
individuais ou coletivos têm diante de si um campo de
possibilidades de diversas condutas, diversas reações e diversos
modos de comportamento que podem acontecer.
Na estética da existência, o “cuidado de si” enfatiza as
práticas de liberdade sobre os processos de liberação. A prática
da liberação está sempre relacionada a algum mecanismo de
repressão. O exemplo que Foucault (2006a) nos oferece é o de
um povo colonizado que procura se libertar de seu colonizador.
Para o autor, é necessário perguntar-se mais sobre o problema
ético do sentido das práticas de liberdade no lugar da
37

“afirmação, um pouco repetitiva, que é preciso liberar a


sexualidade ou o desejo” (2006a, p. 265).
Essa afirmação pode sugerir que o autor está
menosprezando as práticas de liberação, o que não é o caso. As
lutas de liberação ocupam um lugar importante para a prática
da liberdade, principalmente se as relações de poder forem
avaliadas pelo prisma do estado de dominação caracterizado
pela rigidez e “imobilidade” das relações de poder exercidas
por instrumentos econômicos, políticos e militares: “É certo
que, em tal estado, as práticas de liberdade não existem ou
existem unilateralmente ou são, extremamente, restringidas e
limitadas” (FOUCAULT, 2006a, p. 265).
A questão colocada aqui é a da liberação como
necessária para uma prática de liberdade, embora a condição de
liberdade não resulte, automaticamente, de um ato de liberação.
Isso não é suficiente, segundo Foucault, para definir as práticas
de liberdade, capaz de definir formas aceitáveis e satisfatórias
da sua existência ou da sociedade política. Por isso ele insiste
nas práticas de liberdade, mais do que nos processos de
liberação, que sim, tem seu lugar, porém não pode definir todas
as formas práticas de liberdade.
A prática das virtudes, ou a prática de liberdade, dá
suporte para que o indivíduo esteja apto para enfrentar as
contingências da vida, tendendo a garantir uma subjetividade
formada por atividades criadoras de si. Assim sendo, é somente
através destas práticas de autocriação que o indivíduo é capaz
de trabalhar seu desejo como princípio ativo da vontade. Ao
mesmo tempo é capaz de discernir aquilo que é seu desejo
daquilo que lhe é induzido e formatado por instâncias externas.
Essa ética, segundo Foucault, tem por objetivo constituir uma
existência livre e prazerosa do sujeito, uma existência estética.
Acredito que a improvisação como prática de liberdade
ilustra a ideia de uma prática que é significantemente de
criação, numa atividade do corpo com poder e engajamento
crítico no mundo. É caracterizada pela maleabilidade e
38

disponibilidade e, sobretudo, como uma possibilidade de


resistência e de enfrentamento ante os modos de sujeição.
Trata-se, portanto, de analisar e de perceber no pensamento de
Foucault rotas de fuga do modo de constituição do sujeito que
permitam a existência de alternativas à concepção do ser
estático e padronizado, contrária a uma compreensão relativa à
interação e de coexistência do indivíduo com o mundo e vice-
versa. É possível, assim, vislumbrar a experiência de um corpo
transformacional que se opõe ao corpo capturado pelo
biopoder8.
Quando Foucault propõe alternativas de resistência ao
corpo capturado pelo biopoder, a improvisação é uma opção
concreta dessa ideia. É uma prática que incorpora o
pensamento sobre o “cuidado de si”, por meio da tomada de
decisões e demandas de escolhas de como se mover em relação
a um ambiente instável. Esse engajamento, envolvendo um
senso de responsabilidade, rigor e confiança, dentre muitas
possibilidades, é uma poderosa forma do corpo coexistir com o
mundo de forma autônoma e responsável, como indivíduo ou
como coletivo.
A questão do “sujeito” sempre foi um dos pontos mais
polêmicos do trabalho de Foucault, que recusa a ideia do
sujeito universal, portador de uma natureza atemporal, vítima
das relações de poder. Em seu lugar, descreve um sujeito que
se constitui tanto através das formas de assujeitamento como
por meio de escolhas éticas e políticas, num movimento não só
de defesa, senão de afirmação de suas opções. Nas formas de
assujeitamento ele afirma que o sujeito moderno foi inventado

8
“Biopoder” é um termo criado originalmente pelo filósofo francês Michel
Foucault para referir-se à prática dos estados modernos e sua regulação dos
que a ele estão sujeitos por meio de "uma explosão de técnicas numerosas e
diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações".
Foucault usou-o em seus cursos no Collège de France, mas ele apareceu
pela primeira vez em A vontade de saber, primeiro volume da História da
Sexualidade.
39

por uma lógica própria: a disciplina. Essa lógica disciplinar se


exerce com sutileza, com discrição, sem ser percebida e sem
violência explícita. Sua eficácia está na moldagem do corpo do
indivíduo moderno num processo que Foucault chama de
“fabricação de indivíduos-máquinas” (1987, p. 204). Esse
processo é realizado por meio de técnicas de assujeitamento do
indivíduo.
Para Foucault, a constituição do sujeito e de suas ações
supõe aceitar a diversidade e variabilidade, ou seja, pensar a
ética como criação de liberdade, e a partir da liberdade, é
pensar o sujeito como obra. A liberdade, como ele sugere,
surge nesse contexto moderno como um estado transitório no
qual sujeitos individuais ou coletivos têm perante de si um
campo de possibilidades de diferentes condutas, diversas
reações e diversos modelos de comportamento que podem
advir. Assim, é na relação do indivíduo consigo mesmo, em
relação ao outro e em relação com a verdade no mundo, que
existe a possibilidade de transformação.
Cuidar de si é munir-se dessas verdades. Nesse caso, a
ética se liga aos “jogos da verdade”, que se referem a um
conjunto de regras de produção da verdade, e da mudança das
regras que produzem tal verdade. Consistem num conjunto de
procedimentos que conduzem a certo resultado; este resultado
pode ser considerado válido ou não, dependendo de seus
princípios, regras e restrições. Dessa forma, a verdade é
instituída e destituída pelos sujeitos por meio de práticas.
A “estética da existência”, segundo Foucault, se
constrói na esfera da experiência. Assim, também como a
improvisação origina um desenho no qual algumas escolhas
são possíveis e outras não, dentro de princípios e limites que
não se dão completamente à consciência, posto que constituam
o impensado do pensamento. O indivíduo não pode mudar seu
modo de ser sem mudar simultaneamente as relações consigo
mesmo, as relações com os outros e as relações com a verdade.
40

A crítica e a experiência são características da “estética da


existência” e a crítica para Foucault leva à liberdade.
A liberdade, portanto, é um processo complexo
engendrado pela reflexão, pela crítica e pela prática. Portanto,
o exercício da liberdade se dá pela prática, “e o que é a ética
senão a prática da liberdade, a prática refletida da liberdade? A
liberdade é a condição ontológica da ética” (FOUCAULT,
2006a, p. 266). Foucault propõe basear a moral nas escolhas e
compreender o sujeito como forma que elabora, que trabalha e
que se constitui segundo critérios de estilo e de tecnologias. Ao
se afastar de uma visão essencialista do sujeito ou de uma
substancialização do eu, Foucault propõe, em vez de um sujeito
soberano, um sujeito com força criadora. Contrário à pretensão
de universalidade, ele propõe uma afirmação decisiva da
historicidade: um sujeito anônimo e inconclusivo.
Pensar sobre a improvisação com restrições como uma
prática de liberdade implica redefinir a própria noção de
liberdade como um processo em lugar de um objetivo. Além
disso, Goldman (2010) aponta para a concepção problemática
da liberdade nos discursos excepcionalistas americanos que são
o estoque e comércio de retórica política dos Estados Unidos.
Noções simplistas de liberdade, tais como uma meta a ser
atingida ou um espaço aberto apenas para ser atingido, somente
estimulam uma posição inflexível rumo a mudanças. Tais
concepções de liberdade subtraem as muitas formas
diferenciadas e historicamente contingentes de coação. Por
exemplo: poder tornar-se “livre” a partir de constrangimentos
diretos com base na raça, num momento especial, só para
descobrir que essas restrições se deslocaram ou modificaram
em vez de desaparecer. Para Goldman (2010), a noção mais
viável e flexível de liberdade mostra que é uma prática
contínua de negociação, não um destino final fantasiado.
Devemos nos referir a “práticas de liberdade”, hábil, ensaiada,
uma prova de interações com restrições em horários individuais
e lugares. Foucault enfatiza que estruturas que disciplinam os
41

corpos são impossíveis de ignorar na realidade da história, mas,


ele reconhece que a improvisação também permite o
movimento dentro dessas estruturas, ou senão, funciona como
uma derradeira fuga delas.

1.2 ESTAR NO ESPAÇO DA EXPERIÊNCIA

Colocar o sujeito no espaço da experiência é pensar na


improvisação e nos processos colaborativos de criação como
exemplos de prática para esse pensamento. Se a liberdade é a
condição ontológica da ética, e a ética é a prática da liberdade,
a experiência entra aqui como um conceito fundamental para
compreendermos a improvisação como prática da liberdade no
contexto da dança. A prática de abrir o ser psicofísico para o
desconhecido pode ser fundamentalmente pessoal e
politicamente profundo, porque a prática da improvisação é
uma experiência que cultiva o eu aberto a possibilidades e nos
desafia a viver num mundo imprevisível. Para Ann Cooper
Albright,

A improvisação é uma filosofia de vida, apesar


de não ser fundamentada em nenhuma doutrina
especifica, ou sistema de credos. Antes, é uma
forma de relacionar movimento e experiência: a
vontade, o desejo, de explorar um reino de
possibilidades, não para encontrar soluções
corretas, mas simplesmente para encontrar
(2003, p. 260).

Cada experiência de improvisar que cria um evento


abre-se para o momento como um processo de construção de
saberes, principalmente porque cada evento de improvisar é
uma experiência única. A experiência de improvisar e de criar,
dentro de alguns preceitos, é fundamentalmente regulada pelo
ambiente. Um dos princípios que se trabalha na maior parte das
42

vertentes da improvisação provenientes da dança pós-moderna


é o de desenvolver uma conexão abrindo o corpo perceptivo ao
espaço que nos rodeia. Isso envolve explorar as potencialidades
do espaço, se conectar e buscar um estado de corpo que integre
corpo e ambiente. Na pesquisa que desenvolvo por meio da
improvisação, procuro ressaltar a ideia de que o corpo é parte
deste espaço. O corpo nesse pensamento possui qualidades e
texturas que o colocam como parte das texturas e das
qualidades do todo, como forma de permanecer e se estender
ao ambiente, contrário à ideia de manipular e controlar o
espaço.
Logo, pensar sobre o conceito de experiência nos ajuda
a permear esses lugares inacessíveis do desconhecido da
improvisação e do processo de colaborar com o outro. Interessa
pensar que algumas tramas na articulação de um vocabulário
são poderosas e que suas fragilidades nos pegam de surpresa,
como quando nos contaminamos pelo tempo do todo e
inventamos um tempo outro; quando, de dentro da
improvisação, criamos outro espaço e outro tempo, por meio da
forma como incluímos ou nos contaminamos pelo material que
nos rodeia – a experiência nos transforma. Como dar
tratamento para essas questões sobre o corpo no espaço e a
construção de saberes e experiência como processo?
O conceito de experiência, em geral, se relaciona com o
conjunto dos sentidos (tato, audição, paladar, visão, olfato) e
que estes, por sua vez, interagem com a cognição de um
agente. Para John Dewey (2010), filósofo americano, essa
noção se expande para outro plano, colaborando com a
instauração ou manutenção de hábitos. Há uma continuidade
entre os eventos e os atos do cotidiano que, nessa perspectiva,
passam a ter relevância nas atividades de um agente no plano
da ação cotidiana.
No livro Arte como experiência (2010), já no primeiro
capítulo, está exposta a tese central de Dewey de que toda
criatura viva recebe e sofre a influência do meio, o que ele
43

chamou de experiência. Dewey argumenta que não vivemos


uma experiência simplesmente como “receptores passivos”,
pois essa é uma forma de atividade e, no sentido mais amplo, é
a interação de um organismo com o ambiente que o abriga. Na
experiência, para Dewey (2010), “o eu-atua [self-acts], bem
como sofre, e as suas impressões vividas não são marcadas
como uma cera inerte, mas dependem do modo como o
organismo reage e responde” (2010, p. 36). O organismo,
portanto, “é uma força, não uma transparência” (2010, p. 37).
Se o organismo ou indivíduo é uma força, em vez de
uma superfície de gravação passiva, pode-se dizer que cada
experiência é uma ficção, no sentido de que algo novo é
fabricado a partir da interação entre o organismo e o mundo. A
experiência é uma atividade do indivíduo; ao invés de ser algo
que acontece com o indivíduo, é um engajamento ativo e
experimental. É nesse sentido que a experiência de improvisar,
ou de ser capaz de dançar uma dança própria, nos diferencia
como sujeitos e contraria um sistema de aprendizado e de
criação de reprodução da dança de outro indivíduo (o
coreógrafo ou o professor). Porém, ser capaz de criar uma
dança própria, de certa forma, complexifica a configuração
como a experiência é apreendida, deslocada e incorporada com
tudo que dela faz parte.
Ora, estes elementos que constituem a experiência –
sequências de acontecimentos, combinações de ações ou
movimentos e assim por diante – interagem uns com os outros
e não somente fazem parte da experiência como é a
experiência. “Coisas interagindo de certas formas são a
experiência; elas são aquilo que é experienciado” (DEWEY,
2010, p. 11). Por consequência, há uma propriedade que
podemos extrair do conceito de experiência. Ao realizar a
exploração do evento de criação, por exemplo, atingindo em
profundidade seus limites, a experiência se amplia
indefinidamente, sendo assim, elástica. Para Dewey, a
elasticidade da experiência constitui suas inferências e também
44

possui abrangência para uma indefinida extensão elástica.


Estende-se (2010, p. 11). Cada objeto, som, textura, etc.,
apresentam-se como um todo sem começo nem fim, mas num
fluxo que é apreendido através de nossos sentidos em um
movimento de estabelecer e expandir certos padrões em suas
ações.
Se uma experiência é elástica, com fronteiras
indefinidas, não há erro em inferir que as experiências estão
vinculadas e dependentes de outras em uma “teia” de relações
imersas em um contexto. É nesse sentido que Dewey (2010)
propõe que voltemos a atenção à relação causal das ações
refletidas num meio, o que pode ser um caminho para orientar
as ações de maneira geral. Por isso, John Dewey (2010) propõe
uma alternativa razoável, segundo a qual a experiência agora é
intrinsecamente vinculada à cognição e as ações realizadas.
Essa é uma contribuição naturalista nos debates da atualidade,
nos quais a interação mente/corpo cede espaço para a interação
agente/meio, permitindo uma compreensão ampla das
dinâmicas cognitivas. O problema da interação entre duas
substâncias distintas é, então, substituído por uma atenção
voltada ao dinamismo da experiência de um agente e o
processo de seu conhecimento.
A liberdade como experiência, como prática que
transforma o mundo e a si mesmo. A experiência plena da
liberdade, nesse sentido, dá-se no encontro com o outro e com
o ambiente. Uma parte importante dessa noção é a ideia de que
a experiência – no sentido cotidiano do termo – é determinada
por formas de conhecimento entre o poder e a relação com o
eu. Além disso, pode-se acrescentar que essas formas, no seu
conjunto, constituem o que Foucault chama pensamento, isto é,
a história do pensamento crítico é simplesmente a história das
formas ou estruturas da nossa experiência. O pensamento, por
essa razão, é o que constitui o ser humano como sujeito.

Por "pensamento", quero dizer que os institutos,


em diversas formas possíveis, o jogo da
45

verdade e da falsidade e que, portanto, constitui


o ser como um sujeito do conhecimento
humano, o que funda a aceitação ou a recusa do
Estado e constitui o ser humano como sujeito
social e jurídico, que institui a relação a si
mesmo e aos outros, e que constitui o ser
humano como sujeito ético (FOUCAULT,
2006, p. 33).

O pensamento está, portanto, na base da constituição do


ser humano como sujeito nos três domínios: do conhecimento,
do poder e do ser humano, os três domínios fundamentais no
eixo da experiência. Claro que, por essa razão, o pensamento
não é algo a ser buscado exclusivamente nas formulações
teóricas da filosofia ou da ciência. Ele pode, sim, ser
encontrado em cada modo de falar, fazer e conduzir a si
mesmo. O pensamento pode ser considerado, como afirma
Foucault, “a própria forma de ação” em si (2006, p. 335).
Foucault (2006) trabalha com o conceito de
multicamadas de experiência, algo não acessível por meio da
consciência individual, mas sim, por uma análise de formas de
experiências “práticas”. Através de uma análise das práticas,
Foucault as compreende como “sistemas de ação habitados por
formas de pensamento” (2006, p. 335). Essas ideias instigam a
pensar na dança e nos procedimentos de criação como
processos que tecem muitas camadas de percepção e, por isso,
entornam uma enxurrada de possibilidades. Para onde me
desloco frente a essa situação? Tudo acontece no momento do
atravessar, entre uma ação e outra, entre um evento e outro. É
quando passado e futuro se fundem no presente.
Em uma de suas sugestões sobre o significado de
experiência, Foucault afirma: “[...] é qualquer coisa que se faz
sozinho, mas que só se pode fazê-la plenamente na medida em
que ela escape à pura subjetividade e a qual os outros poderão,
eu não digo exatamente repeti-la, mas pelo menos encontrá-la e
atravessá-la” (2006, p. 47). Foucault (2006) qualifica como
46

uma espécie de experiência-limite porque envolve uma


transformação na forma de subjetividade através da
constituição de um campo da verdade. No entanto, o que é
importante para Foucault é o que essa ideia revela e que ela se
apresenta como uma experiência que, à sua maneira, também é
uma experiência-limite. Assim, a experiência pela qual
conseguimos compreender certos mecanismos numa forma
inteligível (por exemplo: num processo de criação
colaborativo, em que lugar cada integrante se coloca) e a
maneira pela qual conseguimos separar-nos deles por percebê-
las de outra forma, devem ser uma e a mesma coisa.
O que se percebe, então, é que Foucault (2006) usa o
conceito de experiência-limite em, por assim dizer, ambos os
lados da análise: é o objeto da pesquisa histórica, e em um
sentido diferente do seu objetivo. Como ele admite: “É sempre
uma questão de experiência-limite e a história da verdade. Eu
estou preso, enredado nesse emaranhado de problemas” (2006,
p. 257). Juntamente com as muitas tentativas feitas por
Foucault para caracterizar seu próprio trabalho (em termos de
conhecimento, poder/conhecimento, ou saber-poder-sujeito), é
possível explicar isso como uma fórmula adicional e talvez
útil: sua obra se esforça continuamente para entender e separar
conexões entre formas de experiência e formas de
conhecimento, entre subjetividade e verdade.
Sendo assim, não há nada a nos impedir de manter
todos os níveis e camadas que a experiência nos fornece,
simultaneamente, de modo que o trabalho de modificar a
experiência pode, em diferentes momentos e de diferentes
maneiras, ser efetuada através da dança, através de resistência,
cuja fonte está no corpo. Através da reelaboração das relações
com o self é possível combinar a noção de experiência e a
possibilidade de transformação.
A improvisação como prática de liberdade, que trabalha
a criação no tempo real, é uma prática poderosa de resistência
como prática de criação, como processo de conhecimento e
47

como pensamento. Cargas de informação são transferidas,


expostas e lançadas para o espaço. Dança improvisação pode
ser visto como um sistema complexo, não linear e dinâmico de
alterações. O desenvolvimento de um estado corporal de
preparação pode ter lugar na improvisação individual, bem
como na improvisação de grupo. Para Raquel Gouvêa (2012) a
improvisação é uma prática que acumula em si diferentes
camadas da percepção e coloca aquele que a pratica em níveis
de consciência perfeitamente coordenados entre atividade
racional e afetiva.

A intensificação da presença do corpo na


consciência promovida pela práticada improvisação
de dança, também é uma maneira de
despotencializar a atividade
reflexiva descoordenada do corpo e, ao mesmo
tempo, de dinamizar a percepção direta do
movimento no improvisador. A consciência
preenchida de corpo é já uma consciência-corpo,
que provoca uma atitude, uma abertura para estar
na experiência, a qual revela a perfeita coordenação
entre corpo e pensamento. (GOUVÊA, 2012, p. 30)

Uma improvisação com restrições de grupo pode ser


analisada como um sistema de informação complexa de
agentes mais ou menos independentes, de modo que o corpo
pode ser pensado como um sistema dinâmico de vários agentes
autônomos que estão executando seus programas mais ou
menos independentemente um do outro, porém conectados e
sintonizados. Complexo movimento, nesse ponto de vista, é
uma propriedade emergente que surge quando esses programas
motores, cada um relativamente simples em si, começam a
reação de um com o outro.
48
49

2 PROCEDIMENTOS VETORES NA DANÇA PÓS-


MODERNA

2.1 RUPTURAS

Durante o século XX reconhecemos dois momentos


significativos do movimento de crítica às convenções da arte:
no início do século, com a vanguarda Russa que ofereceu um
inventário inexaurível de novidades, de extravagâncias e de
prodígios; e na França, com a figura de Marcel Duchamp9, o
responsável pelo conceito de ready made que é o objeto
deslocado da vida quotidiana, a priori não reconhecido como
artístico, para o campo das artes, trazendo à tona questões
conceituais em relação às funções da arte e borrando as
fronteiras entre vida e arte. Esse movimento teve duas
abordagens: a formal, que faz com que uma obra de arte seja
uma obra de arte, e a social, que pergunta qual a função
sociopolítica da arte.
O outro momento, com o qual por sinal Duchamp
também estava envolvido, foi a Segunda Vanguarda em Nova
York, na década de 1960. Na primeira fase da vanguarda do
começo do século XX, alguns artistas se debruçaram sobre
questões formais, sociopolíticas e artísticas em relação a
modelos estilizados e fixados da modernidade. A inauguração
da pós-modernidade se deu com a ruptura de modelos da
modernidade, a qual demandou uma tensão entre cultura culta e
cultura popular. O projeto modernista na dança, assim como
nas outras artes, entrou em crise.
Por diversas razões, a incorporação de parâmetros de
outras áreas e o caráter interdisciplinar nas obras de artistas da
vanguarda da década de 1960 fez surgir novas organizações,
sendo uma variação possível para um novo tipo de articulação

9
Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor, escultor e poeta francês
(cidadão norte-americano a partir de 1955), inventor dos ready made.
50

artística. Mesmo que os princípios não fossem os mesmos para


a maioria dos envolvidos, estando estes conscientes ou não, a
arte produzida naquele período foi utilizada como manifesto
artístico e social.
Nesse panorama da década de 1960 nos Estados
Unidos, a ideia de transgredir e corromper modelos existentes
da modernidade surgiu pelo cruzamento de cultura culta e
cultura popular, entre arte e vida. A incorporação da arte
popular e folk foi uma estratégia vital de alguns artistas da
época para democratizar a vanguarda, que em si invoca o valor
americano e tradicional da igualdade. A ampla difusão e a
acessibilidade intelectual das artes populares entraram em
conflito com os valores da elite. E com o advento dos meios de
comunicação de massa e o modo pelo qual estes se orientam,
corrompeu-se o contato dessas manifestações artísticas. O
crítico literário Fredric Jameson, no livro As marcas do visível,
explica:

Neste ponto estão as várias qualidades das


várias formas de atividade humana, seus “fins”
e valores únicos e distintos, foram efetivamente
suspensas pelo sistema de mercado, deixando
todas essas atividades passíveis de serem
implacavelmente reorganizadas em termos de
eficiência, como meros meios ou
instrumentalidade (1995, p. 14).

Das mudanças ocorridas na década de 1960, na dança e


no teatro, a intenção de negar e diluir os paradigmas da
modernidade surgiu, entre outros fatores, com a experiência de
rompimento entre o artificial e o real, entre o espaço da cena e
o espaço do espectador, entre o processo e a obra, entre o
cotidiano e a cena, entre representação e acontecimento e como
não poderia estar fora desta rede a concepção do criador e do
intérprete. A ideologia, como conjunto de convicções políticas
daquele grupo de indivíduos, era de desmistificar a obra e o
criador, de expor o processo artístico, de provocar a
51

participação do espectador e de integrar arte e vida. Sally


Banes, no livro Greenwich Village 1963: Avant-garde,
performance e o corpo efervescente, define:

A vanguarda da década de 60 em sua busca por


um meio de sanar as várias rupturas criadas
pela cultura do sistema – entre a mente e o
corpo, entre o artista e a plateia, entre a alta arte
e a baixa arte, entre a arte e a ciência, e entre a
arte e a vida, abriu caminho para as alternativas
(1999, p. 336).

O sonho americano de liberdade se tornou realidade,


um ambiente democrático que também foi forjado pela ação de
artistas e métodos libertadores, a exemplo das concepções de
arte de Marcel Duchamp e John Cage10. Como define Ivone
Rayner11 “o movimento Cage-Duchamp são duas correntes
significativas para a compreensão destas mudanças” (Banes
apud Novak, 1990, p. 55).
A relevância do movimento Cage-Duchamp é entendida
nas transformações que a vanguarda realizou. Por um lado,
para a aceitação da predestinação de uma ordem aleatória, do
acaso como técnica de composição muito usada por John Cage;
por outro lado, apresenta resistência às formas e estruturas
sociais estabelecidas. Quando Marcel Duchamp expõe um
objeto industrializado, os ready mades, representou, segundo o
filósofo José Gil em seu livro Movimento Total (2009), o ápice
lógico do processo de despojamento da forma artística.

10
John Cage, nascido Milton Cage Jr. (1912-1992), foi um compositor,
poeta, pintor, teórico musical experimentalista e escritor norte-americano. É
o compositor da famosa peça 4'33", pela qual ficou célebre. Composta em
1952, a peça consiste em 4 minutos e 33 segundos de música sem uma nota
sequer.
11
Ivonne Rainer (1934) é uma bailarina, coreógrafa e cineasta americana,
cujo trabalho nessas disciplinas é muitas vezes desafiador e experimental é
considerado minimalista.
52

Um novo ciclo se configurou na dança moderna a partir


da década de 1940, impulsionado pelas inovações de Merce
Cunningham12 em Nova York e Anna Halprin13 em São
Francisco, costas leste e oeste dos Estados Unidos. Ambos, de
maneiras diferentes, desenvolveram princípios, conceitos e
procedimentos na dança que refletiram realizações decisivas
para questões estruturais, políticas e filosóficas. Merce
Cunningham e Anna Halprin contribuíram significativamente
para estabelecer as bases para transformações que os artistas da
dança pós-moderna realizaram.

2.1.1 Merce Cunningham, nada por acaso ao acaso

Merce Cunningham, durante sua trajetória como artista,


desenvolveu uma atitude estética que sugere um
distanciamento de questões sociais e engajamento político. No
entanto, por vias contrárias, provocou transformações que
tocam na raiz da discussão sobre a representação e a
expressividade na dança. Tanto Halprin quanto Cunningham
exploraram ideias em termos de um foco eficiente do
movimento por si só, livre de relações de narrativa e
significado. Além disso, John Cage, Merce Cunningham e
Anna Halprin foram influenciados, assim como muitos artistas
experimentalistas desse período, pelos ideais e pela estética da
Bauhaus14 quando frequentaram cursos de verão com um

12
Merce Cunningham, nascido Mercier Philip Cunningham (1919- 2009),
foi um bailarino e coreógrafo norte-americano. Possuía como características
marcantes de sua dança o caráter experimental e o estilo vanguardista. Criou
mais de duzentas coreografias. Entre seus colaboradores figuram John
Cage, Jasper Johns, Andy Warhol e Robert Rauschenberg.
13
Anna Halprin, nascida Anna Schuman em 1920, foi pioneira na forma de
arte experimental conhecida como dança pós-moderna e refere a si mesma
como a interruptora da dança moderna.
14
Bauhaus foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de
vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A Bauhaus foi
53

importante integrante da Bauhaus, Josef Albers na Black


Mountain College, uma instituição americana de ensino
superior, focada sobretudo no ensino das artes. Durante a
década de 1930, devido à Segunda Guerra Mundial, houve um
grande deslocamento de artistas da Europa para os Estados
Unidos, que fundaram escolas como o Black Mountain
College, na Carolina do Norte, e impulsionaram outras
instituições, como Bennington College em Vermont. A escola
Black Mountain College, coordenada por Anni Albers, ex-
professora da Bauhaus, era uma instituição experimental que
atraia artistas de diferentes campos e que defendiam o
intercâmbio entre arte e ciência, difundindo ideias
artisticamente interdisciplinares que reagiam aos territórios
monodisciplinares ou fixos.
A influência exercida por Cunningham por meio das
obras criadas em colaboração com John Cage e Robert
Rauschenberg15 abrangeu as diversas linguagens artísticas na
vanguarda de 1960. Banes (1999) ressalta que as inovações
exercidas por Cunningham e Halprin vão além da dança,
atingindo outros campos. Além do modelo interdisciplinar, os
mapas aleatórios, as operações com o acaso e as estruturas de
jogo muito frequentes em seus trabalhos causou impacto nos
artistas mais jovens. Esta invenção de um modelo
interdisciplinar se tornou frequente e é presente nos
happenings, no cinema, no Fluxus16, na dança pós-moderna e

uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado


Modernismo no design e na arquitetura, sendo a primeira escola de design
do mundo.
15
Robert Rauschenberg (1925-2008) foi um artista do Expressionismo
abstrato e Pop art.
16
Fluxus (“fluxo” em latim) foi um movimento artístico caracterizado pela
mescla de diferentes artes, primordialmente das artes visuais e também da
música e literatura. Teve seu momento mais ativo entre a década de 1960 e
década de 1970, se declarando contra o objeto artístico tradicional como
mercadoria e se proclamou como a antiarte.
54

no novo teatro. No teatro, as estruturas de jogo foram


empregadas por Viola Spolin17 que, em 1963, publicou pela
primeira vez sua coleção de jogos de teatro, e pelo Open
Theatre18 que inventou seus próprios jogos com exercícios de
som e movimento de Nola Chilton. As estruturas de jogos,
quando introduzidas como técnica de criação e como referência
para a busca de um estado de corpo no jogo, desloca a noção de
estado ficcional e de estado representacional para presença.
Merce Cunningham, coreógrafo americano, foi um
propulsor das ideias artísticas que a vanguarda desenvolveu e o
seu pensamento foi uma inspiração para várias gerações de
artistas. Ele se sobressai pelo constante desejo de expandir as
fronteiras criativas e explorar novas ideias e suas criações, em
colaboração com artistas inovadores de todas as disciplinas
criativas, produziram um corpo inigualável de dança, música e
arte visual.
Cunningham pertenceu à linhagem de Martha
Graham19, porém sua evolução levou-o ao sentido oposto das
teorias nas quais foi formado, rebelando-se contra a dança de
Graham, na qual movimento tem um significado. Para José Gil
(2009), na dança moderna, considera-se que o corpo traduz as
emoções de um sujeito ou de um grupo, ou seja, o movimento é
a expressão da emoção, ela afirma a sublimidade do inteligível

17
Viola Spolin (1906-1994), autora e diretora de teatro, sistematizou os
Jogos Teatrais (Theater Games), metodologia de atuação e conhecimento da
prática teatral que está presente em todos os fundamentos da atual comédia
norte-americana, inclusive no stand-up comedy.
18
Open Theatre foi um grupo de teatro experimental de Nova York,
funcionou de 1963 a 1973. Fundado por um grupo de ex-alunos de atuação
de Nola Chilton e pelo diretor Joseph Chaikin, ex-integrante do The Living
Theatre, e Peter Feldman. A intenção do grupo era a de continuar a explorar
um “pós-método”, do teatro pós-absurdo de Nola Chilton, por meio de um
processo colaborativo e abrangente, que incluiu a exploração de questões
políticas, artísticas e sociais.
19
Martha Graham (1894-1991) foi uma bailarina e coreógrafa americana
que revolucionou a história da Dança Moderna.
55

sobre o sensível, e se constrói sobre o principio de que o corpo


ou o corpo de baile é um todo que se define como uma unidade
e os movimentos convergem para um fim. Isso se relaciona
diretamente com o seguinte pensamento de Cunningham:

Eu não quero um bailarino pensando que


determinado movimento significa algo. Porque
esta foi a razão pela qual eu não gostei de
trabalhar com Martha Graham – a ideia que foi
sempre trabalhada de que um movimento
específico tem um significado específico (apud
KALTENBRUNNER, 1998, p. 14).

Neste caso, Cunningham rejeitou os princípios da dança


moderna e assumiu que qualquer procedimento pode ser um
método de composição. A partir dessa afirmação, podemos
observar como o coreógrafo contemplou as operações com o
acaso20 em suas dance by chance21, no processo coreográfico
como um elemento que provocou novas combinações na
sequencialidade de movimentos e de novas organizações destes
movimentos no corpo. Considera-se que um novo pensamento,

20
“Operação com o Acaso” é um termo originado na Música, se relaciona
com a ideia de música aleatória encontrada nos trabalhos de John Cage que,
em parte, foi inspirado por seu amigo Morton Feldman, cujos experimentos
musicais ocorreram por volta de 1950. Cage usou o I Ching na composição
de sua música para introduzir um elemento de acaso sobre o qual ele não
poderia ter controle algum. A primeira vez que ele usou este método foi em
Music of Changes para piano solo em 1951, a fim de determinar a sequência
de notas ou grupos de notas que deveriam ser usadas e o momento preciso
de suas ocorrências. Um exemplo de procedimento comum da “música
aleatória” consiste em introduzir o fator acaso para determinar a ordem das
várias partes de uma peça musical por meio de lançamento de dados.
21
Dance by chance, termo que se refere às operações com o acaso para
determinar sequências e estruturas coreográficas a serem executadas. As
estruturas eram determinadas jogando-se moedas (cara ou coroa), ou
retirando cartas aleatoriamente. A dança dance by chance foi inventada por
Merce Cunningham.
56

um novo conceito, surge dessa forma de coreografar. Muitos


dos movimentos já existiam e têm suas raízes no balé; porém,
os procedimentos desses movimentos serem grudados faz com
que sejam desarticulados, e outra lógica de organização surge.
São séries não lineares que se desdobram. Citando Massumi,
“cada desdobramento é como uma potencial extensão
transformativa de si mesmo” (2002, p. 113).
Muitas vezes ele utilizou o método do acaso, o I Ching
ou o jogo de dados para determinar a ordem do movimento na
frase, a sequência de movimentos na dança, o espaço e o
tempo. Os dados eram lançados, ou o I Ching era tirado,
minutos antes das apresentações para determinar a ordem das
entradas dos bailarinos, o espaço a ser ocupado por cada um
para determinado trecho da coreografia, ou ainda a ordem dos
movimentos em determinadas sequências de movimento.
Assim, ele desconstruiu encadeamentos lógicos de movimento
e, se encontrava algum, queria logo rompê-lo e partir numa
outra direção. “[...] o desenvolvimento em larga extensão da
energia por parte de Cunningham refletiu uma sensibilidade
moderna e seu uso do acaso provocou um curto circuito na
lógica da expressão tradicional e na beleza da linha tradicional”
(BANES, 1999, p. 44).
A ideia de usar o acaso como procedimento de
composição foi sugestão de John Cage, parceiro e colaborador
musical de longo tempo de Cunningham. Isso esteve
relacionado com seu interesse pelas filosofias chinesa, japonesa
e indiana, que enfatizam as propriedades físicas de objetos e
cultivam um estado de alerta e de concentração necessárias
para comprometer-se em eventos imprevisíveis.
Cunningham e Cage eram particularmente interessados
na filosofia Zen como inspiração para buscar atenção e
concentração nos aspectos físicos e sonoros da performance.
Ao invés de delinear o movimento da dança e do som musical
para transmitir uma mensagem subjacente ou de propriedade
transcendental, como o belo, por exemplo, eles abriram os seus
57

respectivos meios artísticos a uma nova participação concreta


no fazer e olhar a arte. Cage adotou procedimentos do acaso
em sua música também como uma forma de remover a si
próprio das atividades dos sons produzidos por ele e como um
procedimento consciente para desmanchar hábitos musicais.
Cunningham, portanto, justamente combateu os
princípios da dança moderna com a adoção do acaso. A
consequência disso foi a desconstrução das sequências de
movimentos, desarticulando a lógica da sequencialidade onde o
motor para o movimento é primordialmente o centro do corpo,
como é o caso da técnica de Graham. Assim, desapareceu a
ideia de movimento intencional e o sujeito tendeu a se dissipar
porque não há mais o movimento que expressa emoções e
sentimentos como na dança moderna.
O acaso no trabalho de Cunningham quebrou os
códigos e padrões tradicionais de articulação do movimento,
exigindo do bailarino novas coordenações físicas e o
desenvolvimento da consciência para que estas novas
articulações do movimento aconteçam e se resolvam na
execução. Esta consciência e este estado de alerta, segundo Gil,
é que remove o significado simbólico da dança além de si
mesma. “É o corpo que desempenha o corpo desempenhando o
mundo” (CUNNINGHAM apud GIL, 2009, p. 45).
A crítica que Merce Cunningham fez em seu trabalho
reside no fato de que o referente não está condicionado por um
elemento exterior e que, todavia, preencha requisitos que fazem
dele um objeto “estético”. É o movimento que articula o
movimento dançado, e é o movimento a fonte de seu trabalho
enquanto maneira de desenvolvimento de um tema. “Assim
como, doravante o movimento que desencadeia o movimento, é
o movimento que orienta o movimento, é o movimento que dá
sentido ao movimento” (CUNNINGHAM apud GIL, 2009, p.
43).
Consequentemente ele criou unidades de linguagem
nova, sem outro referente que esteja além do movimento e do
58

corpo em cena. De tal modo, é necessário pensar que essa


unidade de movimento possa condensar nela todo o sentido;
que se organize como uma unidade de movimento dançado;
que a energia venha dos modelos incorporados por um
processo de desconstrução. A distinção mais relevante aqui é
que seu trabalho, como construção de uma linguagem, criou
uma nova topologia, e que o processo de chegar a uma forma
através da continua deformação do que era para o que se tornou
foi resultado de intensivas tentativas de desconstrução e de
transformação. O acaso foi um elemento que intensificou esse
processo, serviu como vetor ao invés de ponto de coordenada.
Um vetor em um processo de transformação é, para Massumi,
“transposicional: pontos que se movem-através” (2002, p. 184).
A consciência que se desenvolve por meio das
operações do acaso conduziu ao desenvolvimento de técnicas
e/ou novas formas e estruturas de métodos coreográficos para
Cunningham. Nesse caso, as soluções coreográficas surgiram
pela articulação de movimentos mapeados anteriormente no
corpo, mas conectados no presente pelo acaso. Cunningham
opta pela indeterminação. Seu interesse pelo acaso e pelo caos
influencia o tratamento que ele deu ao movimento como
matéria, o que originou a lógica da descontinuidade e da
simultaneidade na justaposição de frases. Como um processo
auto-organizativo, ele criou novas estruturas de composição e
inventou uma nova linguagem e outro corpo que dança.
A partir de procedimentos do acaso, o estado de
consciência e de alerta que se desenvolve no bailarino no
momento da dança é uma consciência do corpo, criada a partir
da repetição da execução dessa lógica. A experiência enquanto
motor para o movimento se esvazia de elementos
representativos ou emocionais, exigindo do bailarino a atenção
no movimento puro, ou seja, na “gramática”.
Para Cunningham, “a gramática é o sentido“ (apud GIL,
2009, p. 35) e é com todos os seus procedimentos inovadores –
dissociação entre dança e música; o acaso como uma técnica de
59

composição; a indeterminação como esquema de agenciamento


para a inovação do movimento; descentralização da cena em
focos múltiplos e a “desmultiplicação” dos movimentos – que
Cunningham descobriu um novo padrão energético do qual
surgiu um sistema de movimentos inéditos. Portanto, ele
desenvolveu estratégias de organização inteligentes, tanto no
movimento quanto na composição da cena. Trata-se, para Paul
Bourcier (2001), de explorar os elementos fornecidos pelo
acaso. A dança para Cunningham pode ser sobre qualquer
coisa, mas fundamental e primeiramente sobre o corpo e seus
movimentos; portanto, o uso descentralizado do espaço e a
sequencialidade não usual de movimentos.

2.1.2 Anna Halprin, por uma autonomia do artista

Além de Merce Cunningham, outro nome significativo


para o que veio a se configurar como uma propulsora para a
vanguarda da década de 1960 da dança é Anna Halprin. Seu
uso da improvisação e seus métodos didáticos fomentaram a
pesquisa experimental, o que foi imprescindível para os rumos
que a dança pós-moderna tomou.
Anna Halprin, coreógrafa americana, pesquisadora,
coreógrafa e professora na Dancers Workshop Foundation, em
São Francisco nos Estados Unidos, construiu sua história
distante da efervescência cultural que avassalava Nova York
nas décadas de 1950 e 1960. Seu interesse estava voltado ao
desenvolvimento de uma pedagogia que daria suporte para o
intérprete descobrir e criar sua própria linguagem e encontrar o
movimento através da consciência sinestésica. Sua abordagem,
por meio do sentido da percepção de movimento, peso,
resistência e posição do corpo, provocado por estímulos do
próprio organismo, trata conscientemente de uma forma
própria de se relacionar com o movimento.
60

Para Janice Ross (2003), Anna Halprin foi fortemente


influenciada pelo conjunto de ideias da Bauhaus assim como o
trabalho pedagógico de Margareth H’Doubler22. Halprin veio a
conhecer os princípios e a estética da Bauhaus por meio de seu
marido que cursava arquitetura na Harvard University e fez
cursos com Walter Gropius, fundador da Bauhaus. O conjunto
de concepções artísticas e de ideias ensinados por Gropius,
além de direcionar seu trabalho dentro do ativismo social na
década de 1960, foi o que começou a dar forma para as novas
articulações do movimento e originou um novo olhar sobre o
espaço na dança.
Um fator importante no desenvolvimento do trabalho de
Halprin, além dos ideais da Bauhaus, foi a pedagogia da
educadora Margaret H’Doubler na University of Wisconsin nos
Estados Unidos. Suas classes se baseavam no princípio de que
cada estudante deveria descobrir as simples verdades de seus
corpos por meio de exercícios de improvisação. A partir da
ideia da pedagogia formal da Bauhaus, com o trabalho artístico
baseado no princípio da colaboração, e de suas aulas com
Margaret H’Doubler, Halprin passou a desenvolver sua
pedagogia de dança, na qual instituiu uma nova relação entre
bailarino e coreografia, entre criação e execução, entre
movimento e espaço.
Através da improvisação, Halprin passou a vislumbrar
um corpo que explora e expande suas possibilidades mediante
a descoberta da ordem natural e harmônica de elementos
independentes, que constituem a composição em dança e que
se relacionam por caminhos imprevisíveis. Os procedimentos

22
Margaret Newell H'Doubler (1889-1982) foi coreógrafa e professora de
dança da Wisconsin University. Sua pedagogia da dança era uma mistura de
expressar emoções e descrição científica. Ela usou seu conhecimento sobre
o corpo para ajudar a criar o movimento que expressasse o que os bailarinos
sentiam. Escreveu cinco livros sobre sua pedagogia e sobre a importância da
dança na educação.
61

com o acaso em seu trabalho como coreógrafa e professora


incluíam investigar formas de criar e editar as descobertas de
seus bailarinos durante os ensaios com exercícios e jogos de
improvisação, a fim de desenvolver o senso crítico sobre o
próprio material. O exercício de jogar com a invenção de
parâmetros de movimento, organizar e reorganizar esse
material num trabalho muitas vezes acabado e pronto para
apresentação, torna o aluno/artista autônomo nas possibilidades
e potencialidades no campo da dança.
Anna Halprin aspirava por desenvolver, por meio de
suas aulas, não somente um vocabulário mais próprio – o
vocabulário codificado de Martha Graham ou Doris
Humphrey23 não lhe bastava – mas também procurava por um
ideal de bailarino menos vinculado a automatismos de uma
técnica codificada. Assim, ela apontou sua pesquisa em direção
ao desenvolvimento de uma pedagogia que formasse um
bailarino mais apto a se mover adentrando novos territórios,
arriscando-se a expor-se, revelar-se em cena, resolvendo no
corpo problemas da improvisação. Para isso, ela insistia que a
sensação e o instinto são importantes repositórios de reservas
emocionais que a improvisação poderia minar.
Além de utilizar a improvisação em dança, no formato
de exercícios e tarefas, um dos objetivos de Halprin,
principalmente como educadora, foi potencializar no bailarino
a capacidade de desenvolver material coreográfico e criar
repertório, ao invés de que cada bailarino se mantivesse
confinado a um vocabulário codificado de uma técnica
aprendida. A improvisação, segundo ela, serve como uma
ferramenta na sua busca por um novo sentido de fazer dança,
amplia a noção de subjetividade do modernismo, no momento
que cria corpos responsivos e inteligentes. Na improvisação e

23
Doris Humphrey Batcheller (1895-1958) foi uma bailarina e coreógrafa,
uma das pioneiras da segunda geração de dança moderna em explorar o uso
da respiração e desenvolvimento de técnicas ensinadas até hoje.
62

tudo que acarreta daquela experiência, o bailarino explora e


investiga sua própria subjetividade. Antes de Halprin, a
improvisação, normalmente, se restringia a um uso como
ferramenta ao criador, principalmente na vertente da dança
moderna americana, porque no movimento da Alemanha o uso
da improvisação é tradicionalmente sistematizado,
principalmente a partir do trabalho de Rudolph Laban24.
Outro aspecto fundamental, não somente para Halprin,
mas para diferentes artistas que ao longo dos anos
incorporaram a improvisação como técnica, foi a busca pelo
equilíbrio entre a estrutura e a liberdade, assim como a ideia de
comportamento espontâneo e rigor. Para Banes, “O paradoxo
fundamental dos jogos que pareciam dar poder a esses artistas
era sua capacidade de criar reinos de liberdade dentro das
censuras dos códigos normais” (1999, p. 191).
Segundo Ross (2003), Halprin constantemente buscou
estabelecer o equilíbrio entre estrutura e liberdade, entre
procedimento espontâneo e rigorosa disciplina. Propostas,
jogos ou tarefas de improvisação normalmente possuem uma
estrutura, que pode ser uma estrutura espacial delimitando uma
trajetória, ou uma estrutura de tempo, ou qualquer outra forma
de estrutura que deve ser definida previamente. A questão de
encontrar o equilíbrio entre estrutura e liberdade é um dos
desafios de quem improvisa, principalmente porque a estrutura
não pode anular a liberdade e nem a liberdade anular a
estrutura. Ou seja, a estrutura não pode ser esquecida e nem a
liberdade pode ser tolhida, pois é no equilíbrio entre uma e
outra que a invenção acontece.
Provocar a participação do espectador foi também um
aspecto que influenciou as improvisações direcionadas e

24
Rudolf (nascido Jean-Baptiste Attila) Laban, também conhecido como
Rudolf Von Laban (1879-1958). Bailarino, coreógrafo, considerado o maior
teórico da dança do século XX e o “pai da dança-teatro”. Dedicou sua vida
ao estudo e sistematização da linguagem do movimento em seus diversos
aspectos: criação, notação, apreciação e educação.
63

estruturadas, extrapolando, desta maneira, a noção de


espectador e bailarino. A intenção de Halprin, de acordo com
Cynthia Novak (1990), foi deslocar o processo de criação para
a cena no momento em que a improvisação é tratada como
performance. Esse é um aspecto importante, pois é um ponto
de mudança que se tornaria um dos princípios da dança pós-
moderna e da dança contemporânea. A improvisação como
performance foca no acontecimento como experiência e, dessa
maneira, inclui o espectador no processo e constrói visões
renovadoras de um mesmo acontecimento. As experimentações
de seu grupo de adultos tomavam diferentes formas, conforme
seu depoimento: “Nós buscávamos um caminho para que o
espectador não fosse tão passivo” (apud ROSS, 2003, p. 49).
As ações do cotidiano e a natureza inspiraram o fascínio
de Halprin pelo movimento, o que muitas vezes deu forma às
suas propostas de improvisação. A celebração e o
compartilhamento, tudo isso somado ao seu interesse por
aspectos terapêuticos do movimento, e o desenvolvimento de
uma consciência sinestésica, foram temas levantados e
discutidos por ela. Mas o mais importante é que esses aspectos
foram abordados nas experimentações práticas que realizou
com seus alunos e com o seu grupo, o que gerou, assim como
no trabalho de Merce Cunningham, outros padrões energéticos
do movimento e da forma como se organizam os movimentos.
Além disso, o trabalho na fronteira entre exploração
interpessoal na dança através da conexão com um grupo de
pessoas e o respeito e cooperação para com os que estão à sua
volta é crucial. Para Halprin, o ordinário, o radical, o outro e a
força da educação pela dança são celebrados dentro da
estrutura do movimento como arte e o processo de
amadurecimento do artista/pedagogo é escolher com o que
trabalhar e como trabalhar. A dança como um entretenimento
não elitizado e a dança-educação, foram áreas não muito
exploradas à época, mas que Halprin de forma inovadora se
dedica e constrói um legado que influenciou diversos artistas.
64

Com a combinação de métodos de improvisação e a


concepção de um movimento com base “natural”, de acordo
com Novak (1990) e Ross (2003), Anna Halprin contribuiu
para um conceito de dança baseado no qual a voz individual do
artista se expande. Para Halprin, “Afrouxar os laços da
invenção do movimento implica num voo mais arriscado,
adentrando reinos mais viscerais de descoberta e de expressão”
(apud ROSS, 203, p. 49). O resultado do trabalho que
desenvolveu no ensino da dança para crianças contribuiu em
sua investigação com o grupo de adultos, o que resultou numa
forma de dança que é um ritual para uma nova democracia,
uma democracia do corpo.

2.2 EMERGÊNCIA DE UM COLETIVO

2.2.1 Expandindo limites e jogando com o imprevisível

O Judson Dance Theater faz parte da vanguarda da


década de 1960 em Nova York, mais precisamente no
Greenwich Village, um grupo interdisciplinar de artistas que se
autodenominou pós-moderno. De caráter de negação aos
preceitos da dança moderna, fizeram parte da Judson Dance
Theater não só pessoas da área da dança, como também artistas
plásticos, músicos, escritores e cineastas.
A formação deste grupo de artistas deu-se a partir do
workshop de composição ministrado por Robert Dunn25 na
sede da escola e da companhia de Merce Cunningham, mesmo
prédio também da sede do Living Theater26, importante grupo

25
Robert Ellis Dunn (1928-1996) foi um músico norte-americano que
ministrou aulas de composição em dança, contribuindo para o nascimento
de dança pós-moderna na década de 1960 em Nova York.
26
O Living Theatre é uma companhia de teatro americana fundada em 1947
e sediada em Nova York. É o mais antigo grupo de teatro experimental
65

teatral americano. Robert Dunn, compositor, trabalhou como


acompanhador no estúdio de Cunningham, estudou música
experimental e foi aluno e colaborador de John Cage. No
workshop de composição que ofereceu, Dunn traduziu para o
mundo da dança tanto as ideias, especialmente as técnicas do
acaso, quanto o pensamento de Cage de que tudo é possível.
De fato, Cage foi uma inspiração para as aulas ministradas por
Dunn.
A atmosfera permissiva, o comprometimento com o
movimento de ruptura da cena artística no Greenwich Village,
bairro boêmio e cultural em Nova York que concentrou grande
parte das atividades da vanguarda da década de 1960, e o
repúdio às abordagens composicionais da dança moderna
acadêmica, foram decisivos para a irrupção e a busca de novos
movimentos em todos os sentidos e em todos os planos. Os
participantes dos encontros advinham de diversas áreas da arte,
atores, artistas visuais, performers, cineastas, escritores e
bailarinos (alguns formados por Anna Halprin e alguns da
Companhia de Merce Cunningham). A interdisciplinaridade, já
um modelo de trabalho colaborativo muito disseminado por
Cunningham, Cage e Rauschenberg, a exemplo do evento
multimídia proposto por John Cage em 1952, onde
Cunningham improvisava uma dança, um filme estava sendo
projetado, Cage pronunciava uma conferencia, David Tudor
tocava piano, M. C. Richards e Charles Olson liam seus
poemas, Robert Rauschenberg mostrava suas pinturas e tocava
gravações de sua voz em um velho gramofone – tudo dentro de
parênteses de tempo rigorosos. Esta apresentação criou um
paradigma não somente para o Happening, mas também para
uma geração inteira da vanguarda pelos próximos vinte anos.
Assim como no evento de 1952, os concertos do Judson
Dance Theatre incluíram artistas de diferentes campos.

ainda existente nos Estados Unidos. Seus fundadores foram a atriz Judith
Malina e pintor/poeta Julian Beck.
66

Segundo Banes, a informalidade e a flexibilidade no ambiente


das aulas ministradas por Robert Dunn permitiam a
participação de não bailarinos nas coreografias, assim como
também de coreógrafos sem formação em dança. Estes
encontros foram importantes porque essa explosão de ideias
provenientes de campos distintos possibilitou novas atitudes e
probabilidades sobre a noção de dança.
Este coletivo de artista diferiu, significativamente, de
outras formas de organização em dança. Por dois anos os
encontros seguiram e o final do segundo ano, 1963, culminou
com a apresentação de Concert of Dance #1: vinte e três
danças, de quatorze coreógrafos na Judson Memorial Church,
em Greenwich Village, sendo esta a razão pela qual este grupo
de artistas ficou denominado de Judson Dance Theater. Dele
fizeram parte Simoni Forti, Yvone Rainer, Steve Paxton, Judith
Dunn, Ruth Emerson, Trisha Brown, David Gordon, Alex Hay
Debora Hay, Elaine Summers, Lucinda Childs, Fred Herko, Al
Kurchin, Dick Levine, Gretchen MacLane, entre outros
colaboradores.
Segundo Banes (2001), um aspecto importante desses
encontros e da abordagem de Dunn foi a constante
experimentação e criação de novos métodos e procedimentos
de criação em dança. Esse foi um momento de transformação e
de ruptura, com propagação e ressonância intensas no mundo
das artes e que historicamente definiu percursos que outras
gerações ainda percorreriam.

As experiências e aventuras do Judson Dance


Theater e suas ramificações preparam o
caminho para uma estética pós-moderna da
dança que se expandiu desafiando uma grande
variedade de propósitos, materiais, motivações,
estruturas e estilos da dança. É uma estética que
continua a informar os trabalhos de dança mais
interessantes da atualidade (BANES, 1980, p.
24).
67

Logo, esse movimento foi permeado com elementos de


outras áreas artísticas e estabeleceu uma arena de criatividade,
antes mesmo da questão da invenção do movimento, tendo em
conta que os procedimentos de criação coletiva estavam na
base do movimento. O senso de comunidade e coletivo faz
parte da mesma ideia de provocar a noção de autoria e de
desmistificar a arte e o artista.

2.2.2 Procedimentos e processos, inauguração como


experimento

Alguns dos procedimentos desenvolvidos na base para a


abordagem de Robert Dunn para o workshop de composição,
de acordo com Banes (2001), foram as estruturas de tempo da
música aleatória, emprestadas de compositores
contemporâneos como Cage, Stockhausen, Boulez e outros. O
principal procedimento explorado foi o acaso, além de alguns
métodos de indeterminação, de tarefas e de regras, a
improvisação e a colagem. Dunn afirmava que a dança, ou a
coreografia, é uma escritura física e que, ao planejar e criar
uma dança como escrita, se tem um efeito de clareza e
eficiência das suas possibilidades.
O acaso tem papel fundamental e foi introduzido por
influência de Cunningham e Cage, que o utilizavam em seus
trabalhos. Além de ampliar as possibilidades de articulação do
movimento ou como na música a articulação dos sons, o acaso
funciona também como fator psicológico ao forçar o
coreógrafo a se desvincular do controle sobre o processo de
criação, e como uma ferramenta para evitar as estruturas
hierárquicas e de desviar-se de hábitos.
A colagem como procedimento técnico tem uma
história antiga, mas sua incorporação na arte do século XX,
com o cubismo, pelos dadaístas e por Marcel Duchamp
representa um ponto de inflexão na medida em que liberta o
68

artista do jugo da superfície. Ao abrigar no espaço do quadro


elementos retirados da realidade – pedaços de jornal e papéis
de todo tipo, tecido, madeira, objeto e outros – a pintura passa
a ser concebida como construção sobre um suporte, o que
dificulta o estabelecimento de fronteiras rígidas entre pintura e
escultura. A técnica é largamente empregada em diferentes
escolas e movimentos artísticos, com sentidos muito variados.
Os princípios de composição inaugurados pelas
colagens encontram seguidores em todo o mundo, o que não
significa falar em generalização uniforme, mas em
interpretações distintas de um mesmo procedimento. A
colagem muito explorada pelos experimentalistas da dança
define-se como a técnica que substitui o acaso como o recurso-
chave de estrutura coreográfica na dança pós-moderna. A
colagem como forma de estruturação na dança resulta na
fragmentação e na superposição de cenas, em lugar da narrativa
de desenvolvimento linear da dança moderna. Para Banes
(1999), a colagem sugere as múltiplas possibilidades de uma
visão concreta do mundo pós-moderno.
A retórica do igualitarismo, posto que nada possua mais
importância do que outra coisa, serve como metáfora para o
principio da colagem e da fragmentação. É na edição
fragmentada que a cena se despoja da narrativa e do significado
linear. Por exemplo: para os surrealistas, a estrutura
compartimentada, fragmentada, tem sentido nos diferentes
níveis da consciência e na estrutura das cidades modernas do
século XX. Tudo tem a mesma importância, de maneira
igualitária, ou cada habitante é que escolhe o que é importante
para si.
A colagem faz parte de uma gama de técnicas
niveladoras quanto à hierarquia, também de efeito político
igualador. “A estrutura compartimentada criou um sentido de
abertura e oportunidade, que soou metaforicamente
democrático. Nenhuma lógica hierárquica de perspectiva, de
trama ou desenvolvimento de personagem ditava as escolhas
69

artísticas” (BANES, 1999, p. 179). E as estruturas


coreográficas criadas para cada trabalho se resolveram naquilo
que estruturaram e o espectador é que gera graus de
importância para o que vê e de acordo com seu olhar para a
cena.
A improvisação é outra técnica de composição que a
dança pós-moderna incorpora nas suas coreografias. A
improvisação como um de seus elementos mais
transformadores se enquadra perfeitamente com os ideais de
subversão política, de liberdade e de autenticidade e
conectividade da construção de uma comunidade. Banes
(1999), acredita que a improvisação foi disseminada e se
conectou com outras tendências da contracultura, incluindo as
questões de gênero, igualdade, força da mulher e sensibilidade
do homem. Simone Forti27 estudou com Anna Halprin e
participou de suas experiências com a improvisação,
compartilhando os métodos de improvisação que eram
chamados de “coreografia indeterminada”, ou “in situ
composition”. Consequentemente, o interesse de Forti pelos
jogos e estruturas de improvisação foi compartilhado com o
grupo do Judson Dance Theatre.
A improvisação se encontra dentro de fronteiras
assentadas, isto é, como o princípio por detrás do Jazz, segundo
o qual os músicos improvisam com restrições. “Se a
improvisação levava em conta a liberdade de escolha e de ação,
não obstante era qualquer coisa, menos anárquica” (BANES,
1999, p. 279). Portanto, quase sempre a improvisação acontecia
a partir de uma proposta previamente definida, ou seja, suas
demarcações possibilitavam um tipo de situação ou
movimentação. Dessa maneira, esse tipo de improvisação
serviu para que aqueles artistas aprofundassem pesquisas
relacionadas com esse contexto. A improvisação conveio ainda

27
Simone Forti (1935), americana, coreógrafa e música, integra o
movimento pós-moderno.
70

como forma de esgotar possibilidades de movimento e também


como instrumento de resolução de problemas. Para os pós-
modernos, a improvisação é parte de uma ideia de que a
experiência é o foco das apresentações, sugerindo, dessa forma,
que é um fim em si mesma. Para aqueles artistas, o pensamento
que engloba a improvisação é que a principal experiência de
improvisar é a experiência de improvisar.
Investigando as formas de dilatar a criatividade, a
informalidade e a ação coletiva na produção e performance de
dança, o Judson Dance Theater subverteu preceitos estéticos,
caracterizado pela experimentação do movimento e por novas
possibilidades coreográficas. Segundo Ann Daly (1992, p. 6),
“o legado mais importante deixado pelo Judson foi o impulso
para desnudar completamente tudo que fosse estranho à
natureza implícita da dança”.
A partir do concerto na Judson Memorial Church, em
1963, alguns integrantes dos workshops ministrados por Robert
Dunn continuaram se reunindo regularmente por mais dois
anos consecutivos. O Judson Dance Theatre desenvolveu
modelos do coletivo para tomadas de decisões, tanto artísticas
quanto institucionais, foi uma “Instituição coletiva de
coreógrafos livremente organizada” (BANES, 1999, p. 94).
Como coletivo, priorizou a unidade do grupo, criou-se um
processo colaborativo de dinâmica que funcionou com eficácia
e que, nesse período, produziu cerca de 200 trabalhos.
Historicamente, temos dois momentos em que a
improvisação foi fundamental como um dos agentes de ruptura
de modelos pré-existentes na dança. No início do século XX,
com as experiências de Isadora Duncan, Louie Fuller, Ruth St.
Dennis e Martha Graham nos Estados Unidos, e Mary Wigman
and Rudolf Laban na Alemanha – alguns dos importantes
artistas que modificaram a dança naquele período. No segundo
momento, nos Estados Unidos, principalmente a partir dos
trabalhos de Anna Halprin e Merce Cunningham com a
apropriação do acaso como técnica de criação. Isso culminou
71

com as experiências do Judson Church Theater no movimento


de vanguarda pós-moderno. Pode-se estabelecer o movimento
pós-moderno como um marco, definindo na improvisação um
elemento transformador e impulsionador para desencadear
novas estruturas e organizações em dança.
Na dança a improvisação sempre foi utilizada. Porém, é
a partir das experiências dos artistas pós-modernos, nas
décadas de 1950 e 1960, e da apropriação dos princípios do
Jazz, é que se observa maior disseminação e sistematização do
seu uso. As principais mudanças que a improvisação gera
acontecem nos processos tanto de criação como na lógica que
rege fatores como o uso do espaço, do tempo e da energia do
movimento.
Para cada década podemos identificar aspectos que
definem a improvisação e seu papel na dança. Para Sally Banes
(1999) e Danielle Goldman (2010), no contexto da década de
1960, por exemplo, a liberdade se consolidou com um forte
símbolo que se manifestou no mundo da arte de vanguarda,
tanto nos Estados Unidos como na Europa. Diversas práticas de
liberdade surgiam, transformando em arenas de criação as
manifestações, como a exemplo do movimento dos direitos
civis na relação entre o exercício da liberdade política,
econômica, artística e pessoal, desafiando as leis de censura e
provando os limites da livre expressão. Para Banes (1999,
2003), a arte como prática de liberdade através da diversão foi
um aspecto que incorporou a improvisação com procedimento
do jogo e da brincadeira como parte integrante da ideia de
comunidade. Artistas de diversos campos manifestavam que é
através da arte que a visão não alienada podia realizar-se,
ligada a concepções liberais, e mesmo subversiva das relações
sociais e de grupo. Nesse sentido, muitas formas de diversão e
de jogo foram modelos emancipadores para a arte.
Ocupados tanto com a liberdade como com a
autenticidade, estes artistas apropriaram-se da improvisação
como um poderoso símbolo de liberdade. Na dança e no teatro,
72

apareceu no uso das estruturas do jogo – uma forma específica


de diversão que envolve regras – inclusive as que se utilizam
de operações com o acaso. Como é o caso dos mapas aleatórios
e métodos de resolver problemas de John Cage e de outros
compositores ou nas estruturas criadas por Simone Forti e
Anna Halprin nas improvisações a partir de partituras e
sistemas preestabelecidos, jogos de regras e tarefas e
improvisações originadas de padrões retirados das brincadeiras
infantis.
Alguns bailarinos, músicos e artistas que frequentaram
as oficinas de Anna Halprin na costa oeste dos Estados Unidos
ou que colaboraram com ela, como Simone Forti, Robert
Morris, Ivonne Rainer, Trisha Brown e La Monte Yong,
aprenderam sua abordagem da lição do jogo na improvisação
para gerar movimento. Simone Forti, por exemplo, criou várias
“construções de dança” com base em jogos e atividades dos
pátios e recreios das crianças. Segundo Banes (2003), Anna
Halprin e Simone Forti estavam comprometidas com métodos
de improvisação que podiam ser chamados de “coreografia
indeterminada”, ou “coreografia aberta” (oposto à coreografia
fechada ou fixada), ou ainda, “situation-response-method” ou
“in situ composition”.
A improvisação, como prática, constrói uma
corporalidade aliada à singularidade de cada um e encarna
primeiramente o ideal de liberdade, e depois desenvolve a
autonomia criativa do bailarino. Em contraste com a
formulação de decisões predeterminadas e racionais e diretivas
do coreógrafo, a improvisação potencializa as possibilidades de
criação e de auto-expressão. A prática da improvisação pode
provocar no indivíduo o poder de decisões sobre os rumos da
dança ali improvisada e observar-se a si próprio em ação. Este
fator associa-se à possibilidade de uma ação individual do
bailarino transversal a tomada de decisões do coreógrafo
através de colaboração no coletivo. Aspecto fundamental para
as inúmeras variações ocorridas nas estruturas organizacionais
73

no processo de criação de espetáculos de dança e na noção de


coreografia. Os elementos de cooperação e colaboração,
princípios da improvisação, se apresentam como uma forma de
valorizar o indivíduo dentro de um sistema de igualdade. A
realização do indivíduo se dá dentro de um contexto que
encontra modelos para tomadas de decisões de grupo, numa
atividade que se constrói em grupo e pelo grupo, e não por
competitividade, contrário aos modelos da dança clássica, por
exemplo, com corpos de baile e solistas.
Muitos eventos foram verdadeiros acontecimentos,
como é o caso do Concerto #4 do Judson Dance Theater, em
abril de 1964, incluindo sete solos criados por diferentes
artistas e uma dança de grupo de 25 minutos. O destaque dessa
apresentação, para Banes (2003, p.78), é a contribuição de
Simone Forti com “Some Thougts of Improvisation”, que tem
como trilha sonora um texto teórico escrito e lido por ela sobre
“situation-response-method”.
Trabalhando para redefinir o self a partir de um corpo
responsivo e inteligente, um grande número de iniciativas
durante o fim da década de 1960 e começo de 1970, nas áreas
da dança, teatro, terapias, e esporte, desenvolveram-se nesse
sentido. Na década de 1970, podemos destacar algumas destas
iniciativas de maior importância para a questão da
improvisação: o Grand Union, o Contato Improvisação e o
sistema Six Viewpoints de Mary Overly. Todos contribuíram
para criar um conjunto de valores interconectados de
autonomia, inventividade, brincadeiras, liberdade,
autenticidade e comunidade.

2.2.3 Grand Union, Contato Improvisação, Six Viewpoints


e Viewpoints

Dentre as iniciativas desse período, algumas são


fundamentais para compreendermos a incorporação e a
74

sistematização da improvisação ao longo dos anos. Logo de


início destaco o Grand Union (1970-1976), um grupo de
artistas comprometidos com o trabalho improvisacional para
performance e com “in situ choreography”. Dele fizeram parte
Steve Paxton, Ivone Rainer, David Gordon, Trisha Brown,
Douglas Dunn, Barbara Dilley, Lincoln Scott e Nancy Lewis.
A seguir, o Contato Improvisação, uma forma de dança
desenvolvida por Steve Paxton e colaboradores, que começou
com experimentos e pesquisas com homens dançando. Se por
um lado o Contato Improvisação também se acerca da
composição da “situação-resposta” ou “situation-response-
method” como um processo continuo fora do espaço teatral e
somente ocasionalmente com espectador, como afirma Banes
(2003), as apresentações improvisadas realizadas pelo Grand
Union aconteciam somente com a presença do espectador. Por
fim, destaco um sistema desenvolvido por Mary Overly
nomeado Six Viewpoints, concebido para revelar a estrutura
que vemos através dos pontos de vista que se constitui de seis
janelas básicas de percepção que são usadas para criação. Ao
trabalhar diretamente com os Viewpoints, o artista começa a
aprender e a desempenhar através do trabalho essencial da
percepção como uma inteligência independente.
Grand Union foi um grupo de improvisação que se
originou a partir dos experimentos de Ivone Rainer em sua
dança “Continuous Project-Altered Daily”, na qual ela dava
permissão para os bailarinos improvisar blocos de material que
continuamente se transformavam durante as apresentações.
Seus integrantes orgulhavam-se de nunca se encontrarem fora
do palco para ensaiar. Naquele momento o comprometimento
com o processo e com as questões do movimento político
ativista da década de 1970 eram parte do movimento artístico.
O grande número de apresentações de danças
totalmente improvisadas e criadas pelo Grand Union e a
exposição à crítica do espectador que fazia parte da rotina
desenvolveu no grupo uma dinâmica de trabalho que ampliou,
75

ao mesmo tempo, uma sintonia entre os artistas, um senso


crítico sobre o processo de composição, sobre a dança sendo
improvisada e ainda, sobre o espectador.
As formas de abordar e de explorar os temas nas
apresentações eram feitas de diversas maneiras: ficcional,
dramático, meta-teatral e cotidiano. O material era
desenvolvido, aprendido, incorporado, manipulado de diversas
maneiras e apresentado sem chegar num estado de acabamento,
mesmo porque era essa a ideia, em que o processo e
inventividade são o fim. O interesse e o foco eram dirigidos ao
processo em si, tanto como experiência e como acontecimento.
Durante as apresentações, as estruturas eram criadas,
desenvolvidas, inventadas, repetidas e desconstruídas. Tudo era
comentado, conversado, analisado, ironizado e, de acordo com
Banes (2003), existia ali uma atmosfera comparável às
experiências do “vaudeville surrealista”. Os artistas do Grand
Union cantavam, dançavam, se revezavam, cuidavam uns dos
outros, tocavam música, trocavam de parceiros, trocavam de
figurinos, dançavam solos e criavam imagens com objetos.
Dentro dessa coesão, criavam a sensação de que o espaço de
apresentação é o lugar onde tudo é possível de ser
experimentado e realizado.
O Grand Union, assim como o Judson Dance Theater,
maximizou e investigou formas e dinâmicas de situação de
grupo que foram experimentadas direto com a presença do
espectador. Durante as apresentações incorporaram-se tanto
comentários meta-teatrais como métodos e técnicas de
composição, gerando nessa produção uma proliferação de
textos e imagens “in situ choreography”. Os procedimentos e
métodos compositivos realizados ali desnudaram e revelaram o
processo de criação, desmistificando-o nesse caminho, e mais
do que nunca popularizou o termo “improvisação” por meio de
suas performances.
Steve Paxton, ex-bailarino de Cunningham, fez parte do
movimento de vanguarda da década de 1960 como membro do
76

Judson Dance Theater e na década de 1970 fez parte do Grand


Union. Originalmente, Paxton direcionou sua pesquisa para o
movimento do cotidiano, o movimento de não dança, que por
sua vez abriu uma área de exploração, enriquecendo e
expandindo o vocabulário de dança, além de provocar o
próprio conceito de dança. “Contato improvisação, atualmente
está presente em todos os lugares, desde no balé
contemporâneo, ao mundo do teatro e até em uma sala de aula
de flamenco” (GERE, 2003, p. xix).
Em 1972, após dez anos pesquisando movimentos de
pedestres, Paxton mudou o foco de sua pesquisa para o
problema da improvisação. Neste mesmo ano, ainda com o
Grand Union, participou de uma residência no Oberlin
College. Como resultado da pesquisa, na sua aula para homens,
apresentou o que chamou de “os extremos da desorientação”.
Seguindo essa investigação, em junho de 1972 no John Weber
Gallery, em Nova York, no projeto de residência de duas
semanas, concebeu e dirigiu uma série de performances com
alunos e colaboradores, incluindo Tim Butler, Laura Chapman,
Barbara Dilley, Leon Felder, Mary Fulkerson, Tom Hast,
Daniel Lepkoff, Nita Little, Alice Lusterman, Mark Peterson,
Curt Siddall, Emily Siege, Nancy Stark Smith, Nancy Topf, e
David Woodberry. Imagens dessas performances estão
disponíveis em dois documentários narrados por Paxton, Chute
(1979) e Fall After Newton (1987), produzido por Videoda.
A performance intitulada Magnesium, de acordo com
Novak (1990), Banes (2003) e Stark Smith (2003), é
considerada a inauguração da pesquisa do Contato
Improvisação (CI). O tema proposto para a pesquisa na
improvisação foi a colisão de corpos e quedas. Como
linguagem estética e como técnica, o Contato Improvisação,
desde sua origem, em 1972, até os dias de hoje, se modificou e
se desenvolveu, refinando e evoluindo para performances cada
vez mais habilidosas e até mesmo virtuosas.
77

Durante os trabalhos e as apresentações de Magnesium,


Paxton trabalhava na pesquisa de “small dance” e “extremes of
desorientation” (SMITH, 2003, p. 154), e provavelmente
foram aspectos dessa pesquisa que conduziram às questões que
iriam dar forma à técnica. Para os artistas envolvidos, o
impacto desse período de experimentação foi culminante para
manter o interesse em continuar a desenvolver e explorar os
princípios da pesquisa por muito tempo, eu diria que até os dias
de hoje. Nancy Stark Smith (2003) lembra:

Após esta primeira imersão em Weber, eu


definitivamente sai transformada. Eu gostei
tanto que não parei mais. Esta dança é um
paradoxo entre a unidade e a separação e
depois, ainda, de cada uma de todas as danças,
eu sinto amor e admiração em tal reunião pura,
assim maravilhosamente estabelecida contra a
crueza de tal atividade física. Essa reunião
física e energética parece tocar a alma
juntamente com o corpo. Não admira que tantos
de nós continuamos (2003, p. 155).

Segundo Novak (1990), muitos dos primeiros


participantes, como a própria Nancy Stark Smith, contribuíram
tanto para o desenvolvimento quanto para difundir o Contato
Improvisação. Entretanto, os membros da plateia e críticos
acreditam que a estrutura dessa forma de dança literalmente
incorpora ideologias sociais da década de 1970, ideologias que
rejeitam padrões tradicionais de gênero e hierarquia social.
Outro aspecto que se destaca é que a maior parte do
Contato Improvisação acontece em ambientes não teatrais, em
jams com bailarinos e não bailarinos. Portanto, faz parte de um
ambiente informal, assim como no período inicial, geralmente,
aconteceram em espaços do cotidiano, e não numa situação de
espetáculo. O enfoque está nos movimentos gerados para
manter os corpos em contato. Segundo Novak (1990), somente
alguns anos mais tarde, por volta dos anos 1980, é que surgem
78

improvisações que começam a se orientar por conceitos


coreográficos ou teatrais. Nesse caso, há certo controle sobre a
formação de material desenvolvido pelos participantes das
improvisações, e mesmo quando acontece em teatros, se
mantém o comportamento da jam, muito similar ao que ocorre
quando não há o espectador.
Os princípios do Contato Improvisação se
fundamentam, além da dança, no Aikido, no Tai Chi e no Yoga
que fizeram parte da formação de Steve Paxton. Além disso,
alguns elementos da acrobacia, da Técnica de Release e do
Body-mind-centering foram adaptados à medida que a técnica
foi se estruturando. A sua prática encontra nas artes marciais,
na luta livre, na capoeira, na ginástica e nas danças sociais uma
similaridade na maneira em que se disseminou como um
evento social. Os princípios físicos e sociais se integram no
corpo, tanto para gerar movimento quanto na atitude, na
conexão dos corpos. Como ideologia, o senso de coletivo, a
igualdade e a liberdade são conceitos impregnados nas raízes
do movimento de vanguarda de 1960 e aparecem mais
amadurecidos no processo de desenvolvimento da técnica do
Contato Improvisação.
A principal marca, de acordo com Smith-Autard (1992)
e Banes (2010), é como os duos encontram outros tipos de
organização, abrindo um leque de novas possibilidades em
relação a padrões rígidos e tradicionais do balé e da dança
moderna. No final da década de 1970, o Contato Improvisação
ficou associado com tendências da contracultura alternativa,
incluindo questões de gênero de igualdade, da resistência da
mulher e da sensibilidade masculina.
Os princípios técnicos trabalhados no Contato
Improvisação são: dar e receber peso usando momentum e
gravidade; gerar movimentos a partir da mudança de pontos
entre corpos sem planejamento prévio; comunicação por
contaminação de energia, por contato físico direto ou indireto;
o cuidado e a responsabilidade consigo e com o outro através
79

da consciência corporal, da percepção e da observação dos


limites físicos; a generosidade; a autonomia e a liberdade; a
inclusão; e a cooperação. Portanto, é através destes princípios
que o Contato Improvisação se firma pelo valor de seus
códigos de comportamento e, assim, se estabelece como uma
prática socializadora, popular, agregativa, democrática e
cooperativa.
A partir da década de 1980, a Improvisação e o Contato
Improvisação ganharam muitos adeptos e uma rede de
praticantes se estabeleceu pelo mundo, organizados e
conectados por publicações como a revista Contact Quartely,
principal difusora do Contato Improvisação, além de festivais,
workshops, apresentações, jam sessions, sites e blogs. Sua
prática alcança o âmbito artístico, educacional e terapêutico.
Vários formatos e sistemas ao longo dos anos foram
organizados, tanto em formas de linguagem didática e
institucional quanto artística, mais dirigida para criadores. Uma
maior produção de material bibliográfico está à disposição com
materiais que refletem sobre a improvisação, alguns de
exercícios, além de jornais e revistas com artigos que pensam e
divulgam maneiras de trabalhar com a improvisação. Portanto,
percebe-se uma grande diversidade, principalmente a partir da
década de 1990.
Como exemplo, o DanceAbility Internacional, uma
organização que foi fundada por Alito Alessi, tem como
missão encorajar a evolução de habilidades mistas na dança,
cultivando um terreno comum para a expressão criativa
acessível a todos. É realizada através de programas de
desempenho educacional, formação de professores e
workshops. O trabalho que envolve o DanceAbility
Internacional contribui para diminuir preconceitos e equívocos
sobre a diversidade no campo da dança e, por extensão, na
sociedade. É uma proposta que reconfigura a dança para que
qualquer pessoa possa dançar, é uma importante expressão de
política de identidade e de empoderamento. Susan Sygall
80

(2011), diretora executiva da organização, acredita que


“DanceAbility vai além da exploração do movimento e é, para
muitas pessoas, a primeira oportunidade para indivíduos
definirem-se em seus próprios termos e ver que esta forma de
dança, como suas vidas, tem muitas opções e possibilidades”.
Através da Improvisação e do Contato Improvisação
amplia-se a consciência corporal, trabalhando o alinhamento
postural, o controle de energia, o equilíbrio, a organização de
tempo e espaço e o aprender a se mover tendo como estímulo o
corpo do outro. Desafia-se constantemente os conceitos de
hierarquia e liderança, cria-se autonomia criativa e de auto-
expressão. Cria-se um ambiente sem competitividade e movido
pela colaboração. A improvisação é eficiente quando os corpos
envolvidos estão em perfeita sintonia, numa criação conjunta.
Por se tratar de uma dança experimental na sua origem,
e posteriormente na forma como se organiza em rede e a sua
disseminação pelo mundo, é inevitável que seus princípios
comecem a permear a dança em geral. Para Novak (1990), na
medida em que a improvisação e sua informação começam a
aparecer nos trabalhos de inúmeros coreógrafos e diretores,
mais precisamente a partir da década de 1990, a prática de
improvisação e o Contato Improvisação passam a fazer parte
do rol de ferramentas de composição coreográfica, tanto no
âmbito experimental como no eixo tradicional da dança
contemporânea.
Para Banes (2010), a questão que diferencia as gerações
de artistas nestes dois períodos – anos 1960 e 1970, e anos
1980 e 1990 – é o conteúdo da dança direcionada a um estado
político explicito de identidade, de gênero, de preferência
sexual, de raça e de etnia. Na improvisação, a motivação e o
sentido divergem. Antes das questões de composição “in situ
choreography” e sobre “situation-response-method”, os
desenhos e estruturas improvisacionais indicavam um caminho
pela busca de uma “autenticidade do self” e da própria
improvisação como linguagem. Porém, na cultura pós-moderna
81

dos anos 80 e 90, fica evidente que não existe a “singularidade


autêntica do self”, mas sim, a multiplicidade fragmentada do
deslocamento da identidade. Para os artistas das décadas de
1960 e 1970, a improvisação é parte fundamental dos conceitos
essenciais desse período, liberdade e comunidade, enquanto
nas décadas de 1980 e 1990 se questiona profundamente o
sentido de liberdade e de comunidade.
Segundo Banes (2010), o Contato Improvisação e o
Grand Union – cada um à sua própria maneira – incorporam
um ethos de investigação e exploração do movimento, de
abundância do corpo e uma política coletiva ou cooperativa
que floresceu na década de 1970, num momento de recessão
econômica e de passividade política (em termos de
movimentos políticos de massa). No entanto, permaneceu
enraizada artística e sociopoliticamente na década de 1980,
para então deslanchar e aparecer nos meios mais tradicionais
da dança, tais como escolas e universidades, a partir da década
de 1990.
Ao pensar sobre as questões da improvisação na década
de 1970 é fundamental abordar o trabalho de fundamentação e
sistematização da técnica de composição e de construção de
um corpo físico/sensório, o Six Viewpoints, de Mary Overly.
Six Viewpoints constitui-se como um sistema, possui uma
lógica própria para criar um diálogo fluido entre corpos,
respeita a desconstrução e se configura como uma ferramenta
para desenvolver a criatividade.
Mary Overly construiu uma carreira longa e respeitada
como performer, coreógrafa, professora e colaboradora de
dança e de teatro, trabalhando exaustivamente, tanto nos
Estados Unidos como na Europa. É uma das fundadoras do
Danspace na St. Mark's Church em Nova Iorque, uma
organização de dança e teatro; membro da Movement
Research, uma cooperativa de dança, agora em seu vigésimo
sexto ano de operação. Mary Overly trabalha também na The
Experimental Theatre Wing, um estúdio no departamento de
82

Graduação em Drama da Tisch School of the Arts, todos em


Nova York. Atualmente está lecionando e trabalhando em um
livro sobre Six Viewpoints e projetando um programa de
certificação para o sistema.
Desde 1978, Six Viewpoints é uma articulação
conceitual para performance pós-moderna e um sistema de
ensino que é aplicável na direção, na coreografia, na dança, na
atuação e na crítica. O sistema foi adotado como base para o
currículo na New York University. Em janeiro de 1998, houve
uma conferência nacional sobre os Viewpoints realizada em
Nova York, patrocinada pela New York University e Pace
University and Stage Directors and Choreographer
Foundation. O corpo teórico para Six Viewpoints foi concluído
em 2003.
Mary Overly atribuiu suas inovações às
experimentações do Judson Dance Theatre e produziu um
método próprio de estruturar improvisação em dança no tempo
e no espaço, que originou o Six Viewpoints. Overly, além de
utilizar os Six Viewpoints em seu trabalho como coreógrafa,
aplicou o método também em suas aulas. Consequentemente,
seu trabalho com os Viewpoints tem influenciado várias
gerações de artistas, tanto da dança como do teatro. Anne
Bogart foi sua aluna na University of New York em 1979, onde
se familiarizou com os Viewpoints e reconheceu no sistema a
eficiência e aplicabilidade do método para gerar movimento
para o teatro e criar momentos viscerais com atores e outros
colaboradores. Segundo Bogart:

Por mais de vinte anos, o treinamento com


Viewpoints tem despertado a imaginação de
coreógrafos, atores, diretores, designers,
dramaturgos e escritores. Viewpoints é
ensinado no mundo todo e utilizado por
incontáveis artistas do teatro no processo de
ensaio, no entanto sua teoria e aplicabilidade
não têm sido documentadas e é relativamente
nova (BOGART, 2005, p. 6).
83

Portanto é através da disseminação, principalmente


depois da publicação de livro Viewpoints (2005), de Anne
Bogart e Tina Landau, e também o nome dado para o método
adaptado por Bogart, que esse sistema tem sido mais
conhecido, principalmente no campo teatral, onde a tradição
pós-moderna da improvisação com restrições foi menos
apresentada. O Six Viewpoints como a ideia embrião de um
procedimento e método de improvisação que deu origem a
outros, alguns mais evidentes, como é o caso de Viewpoints
articulado por Anne Bogart e Tina Landau.
O Viewpoints é uma técnica de composição por meio da
improvisação que cresceu a partir do mundo da dança pós-
moderna. Em sua estrutura, quebrou em seis categorias as duas
questões dominantes com as quais artistas lidam diariamente, o
tempo e espaço. Anne Bogart e Tina Landau expandiram de
seis para doze os viewpoints e os adaptaram para o trabalho no
teatro, no qual os atores em grupo e num processo colaborativo
improvisam com restrições para compor e desenvolver material
para a cena. Viewpoints é também muito utilizado como
treinamento, de uma forma em que o trabalho se concentra no
uso e na observação do tempo e do espaço como premissas
básicas do novo jogo teatral. Como treinamento, é um recurso
para o ator na busca para encontrar os estados de prontidão
exigidos pelo jogo cênico, tanto no teatro como na dança. Anne
Bogart pensou no Viewpoints como um sistema que têm como
objetivo ativar a construção do estado de prontidão do ator em
cena, pressupondo ampliar a consciência e agir na vontade,
conciliando disponibilidade, criatividade e disciplina.

2.2.4 Um olhar que se transforma

A partir da produção dos trabalhos do Judson Dance


Theatre se percebe a consolidação das propostas que afirmam o
fim da “beleza”, da “forma”, do valor supremo e sublime da
84

dança como arte. Esse grupo desarticulou a dança ao atacar a


própria definição de dança, revelou o que lhe foi estranho até
então, utilizou de todas as possibilidades para considerá-la
poética sob todos os ângulos, entregando-se a sucessivas
impressões e as traduzindo todas ao mesmo tempo.
A dança pós-moderna não apresenta um momento de
organização, uma lógica cartesiana ou um centro; a concepção
e a criação se dão na experimentação, e não antes dela. Um
desejo de liberdade estética, de liberdade no corpo, representou
o fim da imposição de um estilo artístico e foi o fim do
engessamento estético e técnico da dança. A dança pós-
moderna não exatamente deixou um estilo, mas sim, provocou
transformações no cerne da própria noção de dança.
De acordo com Novak (1990), o pensamento de que
qualquer movimento do corpo pode ser considerado
“movimento de dança” provou ser um conceito muito forte
para jovens artistas engajados em ideais de comunidade e
igualdade social. Para tais artistas da dança pós-moderna, o
movimento é expressivo e o desafio foi a busca por uma
aproximação da realidade em ações, gestos e figurinos, com o
movimento relaxado, mais próximo daquele realizado pelo
corpo fora do palco. A dança pós-moderna nega o corpo
impostado e treinado tecnicamente em balé ou técnicas
modernas como de Martha Graham, Doris Humprey e até
mesmo de Merce Cunningham, assumindo um comportamento
“natural” e evitando, ainda, movimentos que provêm de
técnicas tradicionais de dança.
A questão do corpo e de como ele se apresenta em cena
foi repensada a partir, principalmente, de Cunningham e
Halprin. Para Cunningham, qualquer movimento podia ser um
movimento de dança e a lógica de organização é a do
cotidiano, do acaso. Porém, os artistas da dança pós-moderna
foram além e o cotidiano estava na lógica da articulação do
movimento no corpo e na cena. Enquanto, para Cunningham, o
tratamento para o movimento de pedestres era virtuoso, para os
85

pós-modernos, os saltos virtuosos foram tratados como


movimento de pedestres. Novak (1990) destaca que, para
Cunningham, as pessoas se comportam como indivíduos se
apresentando em cena; já nos trabalhos da dança pós-moderna,
principalmente nas pesquisas de Steve Paxton, Ivone Rayner e
Simone Forti, os bailarinos estavam em cena como pessoas no
ambiente do cotidiano. Logo, para esses artistas, Cunningham
deixou de ser libertador e sua dança era até limitadora, no
sentido que ainda representava uma estética elitizada, apesar de
ter libertado a dança de alguns paradigmas; porém, apenas no
contexto artístico, ainda representava um estilo elegante, puro e
sublime quanto ao primor técnico exigido de seus bailarinos.
Segundo Gil (2009), Cunningham conservou o
“quadro”, fazendo aqui uma analogia com a arte pictórica – a
cena, a técnica, o estilo dançado, o espetáculo, o glamour, a
companhia (enquanto grupo) – ao mesmo tempo em que
quebrou alguns modelos tradicionais da organização de
movimento, na cena e no corpo. Ao contrário de Cunningham,
seus discípulos do movimento da dança pós-moderna atacaram
o “quadro”, enquanto dispositivo essencial que ligava a dança à
ideia de instituição, pois acreditavam que este – o “quadro” –
condiciona o conteúdo das obras. Steve Paxton, Yvone Rayner
e o grupo de artistas do Judson Dance Theatre ansiavam por
libertar os corpos, quebrando todas as regras que definiam a
dança, atacando tudo que constituía, no fundo, o suporte
institucional dessa arte.
Para a dança pós-moderna, não havia a preocupação
com traduções temáticas conceituais. Pelo contrário, eles
davam valor artístico à banalidade, ao comum e ao cotidiano. A
dança pós-moderna buscou a fusão da arte com a vida
diretamente em experimentação, estilizando ou reproduzindo o
cotidiano. O importante é o gesto, a experiência e o processo
criativo, não a obra. Ao desestabilizar o mito do criador,
coloca-se em questão a obra como um produto de consumo e a
questão da autoria abre-se a discussão.
86

A participação de não bailarinos nos programas do


Judson Dance Theatre, segundo Banes (1999), se deu por
motivos diversos: primeiramente pela disponibilidade daquelas
pessoas que orbitavam por ali; depois, por razões políticas e
morais de não discriminação; e, finalmente, porque, para os
artistas da vanguarda, aqueles corpos tinham algo que o corpo
do bailarino construído por alguma técnica de dança havia
perdido, ou seja, o corpo não treinado como antítese teatral.
Quanto ao movimento dançado, a concepção de dança
inaugurada por esses artistas implica na ideia de que dança
consiste primordialmente nos movimentos do corpo. Nesse
sentido, os movimentos articulados para atingir este
posicionamento eram realmente nada mais que movimentos
corporais, sem tratamento técnico em princípio. Os corpos
foram despojados de todos os artifícios que os tornavam corpos
idealizados. Algumas coreografias eram construídas
inteiramente com movimentos ou atividades do cotidiano ou
ainda com tarefas; outras danças faziam uma mescla entre
movimentos de dança e movimentos do cotidiano. Além dessas
modalidades de movimento surge um tipo de movimento que
não se identifica com o movimento do cotidiano e nem da
dança, mas que notadamente os movimentos originados por
meio de estruturas de jogo e de brincadeiras apresentam novos
fluxos energéticos.
Finalmente, surge uma modalidade de movimento que
quando apareceu foi difícil de identificar o que era, mas que
possui qualidades de movimentos do cotidiano, porém não
reconhecidos como tal. Essas duas últimas modalidades de
movimentos, os movimentos originados dos jogos e os
irreconhecíveis como de dança ou do cotidiano, prevaleceram
como foco de pesquisa daqueles artistas e das gerações
posteriores.
Foi assim que o Judson Dance Theater se tornou uma
metacomunidade de características várias, na qual os grupos
que giravam em torno de distintas disciplinas das artes se
87

fundiram e consequentemente a imaginação interdisciplinar


floresceu. A dança produzida pelo coletivo Judson Dance
Theatre criou uma estética difusa e transgressora, como um de
seus mais significantes propósitos. Fazendo parte da celebração
do corpo, artistas se voltaram para o corpo físico como a última
verdade. Acentuando o coletivo e a celebração, o coletivo
reafirmou o caráter de resgate da cerimônia e do ritual. Assim,
tornou muitas das apresentações verdadeiros acontecimentos
coletivos com a participação ativa da plateia, o que reforçou o
reajuste social e a tentativa de coesão. Aconteceu como um
evento onde a experiência é compartilhada entre artistas e
plateia, e o mais importante aqui é o processo que se torna
manifestação em detrimento da significação – o palpável é a
energia.
Assim como se modificou a forma de fazer dança, o
olhar acompanhou esse movimento. A percepção simultânea e
multifocal substitui a linear-sucessiva, as quebras cênicas
buscam uma referência à vida, que não é lógica, nem
pragmática na dispersão, e a coesão de uma narrativa linear e
uniforme é substituída por signos e alegorias voltados para a
experiência da percepção e da sensação.
88
89

3 IMPROVISAÇÃO

3.1 DESCOBRIR CAMADA POR CAMADA,


VOCABULÁRIO E COLABORAÇÃO

Como visto até aqui, a improvisação se tornou um


elemento fundamental para refletir sobre processos de criação e
composição na dança contemporânea, bem como sobre as
funções do bailarino e do coreógrafo nas estruturas de
organização das companhias e grupos de dança. Além disso, a
improvisação possibilita novos modelos de configuração
energética para gerar, organizar e perceber o movimento.
Acima de tudo, é uma das práticas corporais que desenvolve a
consciência interna dos movimentos e, consequentemente,
potencializa no indivíduo a prática constante e a consciência
sobre o espaço e o tempo.
A observação de si mesmo na dança imprime nova
percepção sobre o dançar e, segundo o filósofo José Gil,
produz dois efeitos: primeiro, amplia a consciência da escala
do movimento; depois, a própria consciência se transforma,
deixando de se manifestar como um olhar externo para
incorporar-se dele. “A consciência torna-se a consciência do
corpo, os seus movimentos enquanto movimento de
consciência adquirem as características dos movimentos
corporais” (GIL, 2005, p. 109).
Improvisação por si é um conceito abrangente e abarca
uma série de procedimentos. Porém, essencialmente, é o
processo espontâneo para criar movimento e a pesquisa que
possibilita o desenvolvimento de material. É ainda facilitado
por meio de uma variedade de explorações criativas. Para
Smith-Artaud, autora do livro Dance Composition, “Improvisar
é a prática da criatividade ao integrar criação e execução, o
bailarino, simultaneamente origina e executa movimentos sem
planejamento prévio” (1996, p. 80).
90

A improvisação como um elemento da cultura afro-


americana foi particularmente utilizada na música,
principalmente no Jazz, e foi amplamente explorada por
artistas da vanguarda da década de 1960 nos Estados Unidos e
na Europa. A improvisação foi um fenômeno do Jazz, trazida e
inserida no trabalho de dança pelos pós-modernos americanos
com uma singularidade própria, diferentemente do uso que se
fazia na Europa com a linhagem da dança moderna alemã,
disseminada como Dança Criativa por Rudolf Laban.
De acordo com Banes, “a tradição afro-americana da
improvisação musical foi traduzida para o teatro, a dança e
outras práticas artísticas da vanguarda branca” (1999, p. 111).
Existem muitas tradições improvisatórias de dança e de música
enraizadas em culturas não ocidentais. Para Goldman (2010), a
história evidencia o preconceito incrustado na ideia da falta de
rigor nessas tradições, ou que equaciona as habilidades
improvisacionais como instinto oposto ao intelecto. Mesmo
com a improvisação sendo incorporada pelos bailarinos pós-
modernos em performances que, frequentemente,
evidenciavam a influência da filosofia Zen, ou das artes
marciais asiáticas, eles também amiúde falharam em
reconhecer a importância do Jazz e da dança social tradicional
dos negros para suas tão aclamadas inovações. A improvisação
é parte de muitas danças de diversas culturas, porém, não
tratarei desses contextos nesta pesquisa.
Ao longo dos últimos cinquenta anos na dança pós-
moderna, na nova dança, na dança contemporânea, na
performance e na dança-teatro, o termo “improvisação” pôde
ser aplicado a diferentes modos de trabalho de criação. Isso
ocorre especialmente porque as maneiras de apropriação são
diversas e com enfoques e abordagens muito particulares.
Além disso, a improvisação pode ser utilizada de muitas
formas: como técnica de construção de um corpo com atenção
no presente e inteligente; como uma técnica de criação; como
processo de composição em performance; e em composição
91

instantânea, composição no momento ou, ainda, composição


em tempo real.
Noutros casos, determinado tempo de uma coreografia é
reservado para a improvisação dentro de um trabalho quase
totalmente fixado. E, ainda, ocorre como exemplo na obra de
Merce Cunningham a “chance dance”, em que os dados são
jogados antes de iniciar a apresentação para definir
possibilidades, seja a ordem do movimento na frase, a ordem
das frases de movimento na coreografia, o uso do espaço ou
das direções ou, ainda, quem dança determinado material.
A improvisação, dependendo de como é praticada, é um
poderoso recurso para formar bailarinos mais aptos a
desenvolver e organizar material coreográfico. Esse é um
aspecto que transformou radicalmente a relação entre intérprete
e criador, entre bailarino e coreógrafo, dando origem a uma
geração de intérpretes criadores. “O coreógrafo que buscava
um novo estatuto para a dança do século XX, passou a exigir
mais de seus bailarinos, pois, a tradição do novo demandava
que todo bailarino deveria ser um coreógrafo em potencial”
(BANES, 1980, p.5).
O termo “intérprete criador” tem sido utilizado no
contexto da dança contemporânea e é um fenômeno que
aparece, principalmente, a partir da década de 1990. De acordo
com Dantas (2005), a cena contemporânea na dança derrubou
fronteiras entre os campos artísticos com espetáculos,
principalmente a partir da década de 1990, mesclando
elementos do teatro, da performance, do cinema, da música e
das artes visuais. Da mesma forma, esses trabalhos trazem
referências técnicas e criativas de outros campos
representacionais, como o tradicional, o moderno, o popular, o
folclórico e a cultura de massa. Consequentemente, o meio da
dança passa a exigir do bailarino uma disponibilidade técnica
diferenciada, de profissionais com formação que envolva
diferentes técnicas de dança, práticas de educação somática e,
92

finalmente, a prática da improvisação como meio de criar, de


selecionar e de desenvolver material coreográfico.
De acordo com Martins (1999), Blom e Chaplin (1982),
Smith Artaud (1992), Kaltenbrunner (1998), Banes (2003),
Muniz (2004) e Goldman (2010), mais e mais criadores
utilizam a improvisação como técnica de composição em
processos de colaboração. No processo exploratório entra a
participação ativa e criadora dos bailarinos. O que surge nesse
processo colaborativo pode ou não ser selecionado e utilizado
no trabalho. De qualquer forma, as decisões para que tipo de
direcionamento é dado para a improvisação e que material deve
ser utilizado na coreografia, habitualmente, vêm do
pensamento do coreógrafo/diretor, de um processo de criação
coletiva ou, ainda, de uma combinação dos dois.
Observa-se que, durante o processo de montagem, o
trabalho coletivo permite uma maior possibilidade de criação
de material coreográfico, pois, proporcionalmente a todos os
envolvidos, pensa-se nas conexões e recombinações que podem
vir a se potencializar na configuração de uma cadeia
associativa mais complexa, abrigando subjetividades diversas.
Portanto, a improvisação, seja como pesquisa de vocabulário
no processo exploratório, como técnica de composição ou
como método de desenvolvimento de jogo, e
consequentemente de cenas, aparece como um procedimento
sistematizado de experimentação, de seleção e de escolhas.

Além disso, tem a finalidade de criar situações


onde surgem novas associações de movimentos,
explorando um vocabulário diferenciado ou
fazendo surgir novas conexões para um
vocabulário já existente. Durante a
improvisação, o bailarino executa movimentos
em sequências de seu repertório corrente de
habilidades. Uma pré-disponibilidade em algum
momento faz com que uma quebra dessas
cadeias habituais aconteça, o que permite que
93

novas cadeias associativas surjam, ampliando o


repertório (MUNIZ, 2004, p. 57).

Do mesmo modo, afirma Banes, “O acaso subverte


hábitos e permite novas combinações” (1980, p. 16). A
improvisação, nesse sentido, cria possibilidades para a
descoberta de novos caminhos e formas de resolver problemas
dentro de cada evento. A constante atenção exige um estado de
alerta que amplia a consciência do corpo, o que torna possível
a observação sobre si mesmo.

É alongar a própria consciência para observar a


experiência de uma fração de segundos de
entrar na “gap” – que constitui o que eu penso
como o espaço em que mudamos nossas
respostas habituais, assim expandindo a
possibilidade de estar no mundo (ALBRIGHT,
2003, p. 259).

Essa “gap” para Albright é um estado existencial, um


momento de suspensão de pontos de referência que propicia
novas experiências. Acredito que o estado improvisacional
exige um corpo alerta, no qual o bailarino conscientemente
analisa, seleciona, resgata e reflete sobre o material que está
gerando. Esse estado é algo entre o desperto e o atento: o
bailarino não está apenas acordado, mas com uma visível
inclinação a perceber e agir. Raquel Gouvêa explica:

Compor é saber mudar o ritmo pessoal para o ritmo


das relações com os outros no tempo dos
agenciamentos. Mas para estar no plano das
relações com o outro é preciso investigar em si
mesmo as relações que compõem o seu próprio
corpo, implicando individuação. Este aprendizado
sobre os poderes individuais do corpo permite que
o improvisador alcance uma compreensão corporal
refinada de suas próprias potencialidades, podendo
94

explorá-las com segurança e ousadia. Para


conhecer os ritmos internos é preciso deslocar o
olhar para o movimento muito pequeno agindo no
espaço interior, este aprendizado do mínimo
facilita que o improvisador perceba como a dança
se compõe em seu corpo; aprendizado que lhe
ajuda nas experimentações criativas tanto em solos
como em composições coletivas. (GOUVÊA,
2012, p.72)

A consciência desloca-se do eu para a relação com o


grupo; do corpo em relação ao corpo do outro; do movimento
em relação ao tempo e ao espaço; do passado em relação ao
presente, pré-articulando o futuro; e do fragmento em relação à
criação do todo, simultaneamente à antecipação do próximo
momento.
Hougée (1999), assim como Foster (2003) e Albright
(2003), faz uma analogia dessas situações de improvisação.
Para ele, em alguns momentos a improvisação é adentrar num
território conhecido e desconhecido, ao se mover entre o
familiar e que nos é estranho, e também é como seguir os altos
e baixos de uma onda. Permite esgotar um repertório usual de
movimentos e sintonizar-se com camadas mais profundas da
memória corporal. É quando os movimentos isolados ou
sequências novas para aquele corpo surgem.

A improvisação praticada com atenção,


suspensa a intencionalidade e utilizando-se da
observação, como uma prática consciente,
proporciona uma movimentação que expõe e
desvenda a dança daquele que a produz. Faz
surgir no corpo um tipo de movimentação em
que a lógica da sequencialidade de movimento
acontece de formas diferentes da lógica da
sequencialidade de movimento do corpo, que
reproduz sequências aprendidas e planejadas
(MUNIZ, 2004, p. 59).
95

O movimento no corpo que improvisa pode percorrer


caminhos não usuais e promove também a articulação
diferenciada do próprio movimento. Como explica Katz em
relação ao movimento e ao aprendizado de sequências de
movimento que tornam a voltar como sequência: “[...] o corpo
se habitua a conectá-los porque estes lhe são dados como
determinado cardápio de sucessão. A presença de um como que
anuncia a presença de outros” (1999, p. 19).
Porém, com a prática da improvisação, essas sequências
lógicas não se definem como modo usual de encadeamento,
pois a cada improvisação elas são embaralhadas para se
tornarem outras. Como é um processo contínuo de desmanchar
hábitos, a improvisação tende a desestabilizar constantemente o
repertório de quem a pratica e, ao desmanchar hábitos, recriam-
se novos padrões de movimentos; a repetição faz aparecer
novos hábitos, que novamente irão ou poderão se desmanchar.
Para improvisadores, o repertório de cada bailarino é um
sistema. Se o bailarino se acomoda, sem conscientemente
ampliar e reorganizar seu repertório, o sistema se torna
fechado, sem possibilidades de vitalidade e de expansão dos
limites da criação.
O processo de recombinação e reorganização de
repertório, portanto, é constante e deve ser consciente. Se a
consciência influencia no processo de escolha, podemos
encontrar na força do hábito o fator que conduz “a escolha”
para o movimento conhecido, para a repetição, ou seja, para a
insistência em realizar certo tipo de movimento ou
combinações de movimentos. Daí a necessidade de improvisar,
isto é, de se aprender a realizar estas “desautomatizações”, uma
vez que elas não acontecem no corpo apenas por acionamento
de uma vontade de que aconteçam. “O domínio da arte de
improvisar leva anos para ser conseguido, tal qual o domínio
de toda e qualquer habilidade técnica” (MARTINS, 1999, p.
85).
96

Atualmente, a potência das práticas improvisacionais


reside menos na ampliação de vocabulário e repertório e mais
no entendimento entre acontecimento e experiência, entre o
paradoxo de estar ao mesmo tempo interna e externamente
consciente de si, do ambiente e da ação de estabelecer relações
durante a improvisação.

3.2 INVENTANDO EVENTO, DO VIRTUAL AO ATUAL

Improvisar é imaginar e inventar eventos que


acontecem naquele instante efêmero, deformador, relacional e
transindividual28. Uma maneira de problematizar como esses
eventos se configuram em composições que tomam formas
múltiplas e inéditas é justamente pensar num corpo que
atravessa o tempo todo entre o atual e o virtual. Atual e Virtual
são conceitos explorados por Deleuze na teoria das
multiplicidades. Toda multiplicidade implica elementos atuais
e elementos virtuais.

Não há objeto puramente atual. Todo atual


rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais.
Essa névoa eleva-se de circuitos coexistentes
mais ou menos extensos, sobre os quais se
distribuem e correm as imagens virtuais. É
assim que uma partícula atual emite e absorve
virtuais mais ou menos próximos, de diferentes
ordens. Eles são ditos virtuais à medida que sua
emissão e absorção, sua criação e destruição
acontecem num tempo menor do que o mínimo
de tempo contínuo pensável, e à medida que
essa brevidade os mantém, consequentemente,
sob um princípio de incerteza ou de

28
Relação transindividual é aquela que ocorre entre realidades pré-
individuais e coletivas e não entre indivíduos constituídos (SIMONDON,
1964).
97

indeterminação. Todo atual rodeia-se de


círculos sempre renovados de virtualidades,
cada um deles emitindo outro, e todos rodeando
e reagindo sobre o atual (DELEUZE, 1996, p.
49).

O virtual é um “não-presencial” presente, existente, que


produz efeitos. O virtual não é uma não-realidade. Não se
define em oposição àquilo que é real. Antes, ele se opõe ao
atual, à atualização. O virtual é co-pertencente ao real e tem
pouco a ver com o irreal, pois ele é “[...] um modo de ser
fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação,
abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da
presença física imediata” (LÉVY, 1996, p. 12). Trata-se, então,
de evitar contrapor o real ao virtual. O virtual é um
acontecimento na ordem dos incorporais; ele é força produtiva,
efetiva, é real na sua dinâmica e dimensão própria.

A palavra virtual vem do latim medieval


virtualis, derivado por sua vez de virtus, força,
potência. Na filosofia escolástica, é virtual o
que existe em potência, e não, em ato. O virtual
tende a atualizar-se, sem ter passado, no
entanto, à concretização efetiva ou formal. A
árvore está virtualmente presente na semente.
Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual
não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e
atualidade são apenas duas maneiras de ser,
diferentes (LÉVY, 1996, p. 15).

O evento de improvisação de dança é experiência de um


tempo situado sob o signo de seus elementos de curvatura, de
declinação, de inflexão, de bifurcação criadora. Quando o aqui
e agora, do virtual ao atual, da atualização do atual pelas
diversas virtualizações, não indicam mais do que uma ordem
de superposições e, por conseguinte, se é levado a considerar,
no ponto de uma imagem do pensamento. Portanto, é co-
composição.
98

O circuito entre o virtual e o atual corresponde à


ruptura mais fundamental do tempo, como tempo-potência
contrário a um estado-lugar, estável, cronológico, linear. Ele
estabelece uma relação de imanência do virtual com sua
atualização, isto é, uma forma de “cristalização” entre o virtual
e o atual, quando não existe mais limite identificável entre os
dois e os círculos do virtual em volta do atual quase se
sobrepõem uns ao outros. Então, é quando surge a imagem
cristal, o “cristal de tempo” descoberto por Deleuze no cerne
da criação.
A cristalização do tempo no evento de dança, seja ele
um processo de montagem, de apresentação ou de ensaio, no
qual, de dentro do evento coreográfico, podemos ter a sensação
de controle e de ser controlado simultaneamente pelo tempo e
pelo espaço, talvez seja a atualização do virtual em tempo
impensável. Quando o corpo é devir corporificado, é
“consciência do corpo” (GIL, 2009), é “platitude da presença
física imediata” (LÉVY, 1996, p.12). O atual passou por
processo de atualização que é a resolução de um problema, este
sim, virtual. “A atualização é criação, invenção de uma forma a
partir de uma configuração dinâmica de forças e de
finalidades” (LÉVY, 1996, p. 16). A atualização é a invenção
de uma solução exigida por um complexo problemático. A
virtualização é dinâmica e não um modo de ser simples. Assim,
pode ser definida como o movimento inverso da atualização:
“consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma
‘elevação à potência’ da entidade considerada” (LÉVY, 1996,
p. 17).
Logo, alega Lévy, muda o “centro de gravidade da
organização”; esta “[...] não é mais um conjunto de
departamentos, de postos de trabalho e de livros de ponto, mas
um processo de coordenação que redistribui sempre
diferentemente as coordenadas espaços-temporais da
coletividade de trabalho e de cada um de seus membros em
99

função de diversas exigências” (LÉVY, 1996, p. 18). A


virtualização é uma problematização de certo atual.
Segundo Lévy, a atualização se desloca de certo
problema a uma solução. A virtualização passa de uma solução
dada a um (outro) problema. “Ela implica a mesma quantidade
de irreversibilidade em seus efeitos, de indeterminação em seu
processo e de invenção em seu esforço quanto à atualização. A
virtualização é um dos principais vetores da criação de
realidade” (1996, p. 18). Por um lado, uma entidade carrega e
produz suas virtualidades; vamos tomar como exemplo um
acontecimento de dança que reorganiza
uma problemática anterior e é suscetível de receber
interpretações variadas. Por outro lado, o virtual constitui a
entidade; as virtualidades inerentes a um ser, sua problemática,
o nó de tensões, de coerções e de projetos que o animam e
as questões que o movem são parte essencial de sua
determinação.
A criação na improvisação de eventos de dança, nada
mais que a atualização de situações que são dadas, é a todo o
momento resolução de problemas, de charadas de quebra-
cabeças, de encontrar a coerência entre a restrição e a
liberdade, entre criação e eficácia. Encontrar esses lugares do
outro e ao mesmo tempo próprios é o desafio. As regras e
restrições que são dadas fazem parte desse desafio, de buscar
na experiência a reunião das percepções distintas. Devemos
reconhecer que as relações não derivam da experiência; elas
são o efeito dos princípios de associação que, na experiência,
constituem um sujeito capaz de ultrapassar a experiência, de
ultrapassar neste sentido as restrições e as regras. Imaginar e
inventar.
A criação e execução são percebidas como um fluxo
intensivo da consciência em um movimento de subjetivação,
cujo agenciamento de material, fora de qualquer transcendência
(do sujeito ou do objeto), é de ajuste da imanência em relação
ao devir. Como um continuum de intensidades que compõem o
100

fluxo intensivo da corrente de consciência no movimento


dançado e remetem à intensidade da ideia na corrente de
pensamento, simultaneamente.
A virtualização fluidifica as distinções instituídas e
aumenta os graus de liberdade, cava um vazio motor na
questão do novo pela noção do virtual. Experimentar trata
precisamente de tornar inesgotáveis os ‘aqui’ e os ‘agora’
sempre novos, diversamente distribuídos, pois a igualdade
entre o ser e a diferença só será exata se diferença for
diferenciação, isto é, processo e criação, individuação como
processo; e se, a partir de um virtual que, sem ser atual, possui
enquanto tal uma realidade intensiva dotada de uma potência
de singularização para atingir-se a essência pura de um tempo
não cronológico.

3.3 FAZER ESCOLHAS NA CRIAÇÃO EM MEIO E POR


MEIO DA RESTRIÇÃO

Para Lehmann (2007) e Guénoun (2004), grande parte


das atividades produzidas pelo indivíduo na nossa sociedade
são racionais, exigem mais das funções da mente. Para estes
autores, o teatro, e digo as artes em geral, é uma forma de
trabalhar e desenvolver mais atividades ligadas à afetividade.
Lehmann define que de alguma forma este desprezo pelos
estímulos espontâneos em favor de uma racionalidade de
objetivos e metas já nos levou a desastres.

À luz dessa observação o declínio progressivo


da reação afetiva imediata, ganha importância
crescente em uma cultura dos afetos, o
“treinamento” de uma emocionalidade não
atrelada a considerações racionais prévias. Cada
vez mais será uma tarefa das “práticas” teatrais,
no sentido mais abrangente, produzir situações
lúdicas em que a afetividade seja liberada
(LEHMANN, 2007, p. 426).
101

Considero que o pensamento de Lehmann se relaciona


com a improvisação, uma prática que trabalha exatamente este
estado de “intuição criativa” que provoca no indivíduo o
equilíbrio entre a afetividade a racionalidade, entre o pensar e o
agir, entre a intuição e o conhecimento, entre o hábito e o risco.
Para Susan L. Foster (2003), improvisar é compor
extemporaneamente no impulso do momento e situa o bailarino
entre o conhecido e o desconhecido, entre o familiar e o
imprevisível. O conhecido é o espaço, um conjunto de regras
pré-estabelecidas, um repertório de movimentos selecionado e
a gramática de uma técnica aprendida e incorporada pelo
bailarino. O desconhecido é tudo que é conhecido e mais o que
não foi pensado previamente. Tratar de visitar o desconhecido
alarga os limites do conhecido, é o que nos força a ser pegos de
surpresa. O encontro entre a improvisação e o desconhecido
nunca poderia acontecer sem os elementos conhecidos.
Ann Cooper Albright (2003), em relação ao impulso
que nos leva em busca do desconhecido, da aventura de
adentrar territórios e camadas não usuais de nosso repertório,
expressa o seguinte:

Eu acredito que a potência das práticas


improvisacionais, hoje, reside menos na
possibilidade de mais opções de movimento
(deslocamento através do espaço, digo, com
quatro membros ao invés de dois como é mais
usual), mas sim na compreensão de como
encorajar o anseio de atravessar para territórios
desconfortáveis, para mover-se em face do
medo do que é desconhecido. Este anseio só é
possível pela simples paradoxalidade, no
entanto sofisticada habilidade de estar ao
mesmo tempo interna e externamente, ambas
abertas e intensamente fundamentadas na
consciência de uma experiência em andamento,
em curso (2003, p. 260).
102

Kent De Spain (2003) descreve a improvisação como


outra forma de pensamento. Improvisar seria produzir ideias
impossíveis ou pouco prováveis de serem concebidas na
quietude ou no planejamento prévio do movimento. Em outras
palavras, improvisar amplia as possibilidades dos processos de
criação onde a imaginação é desencadeada por um
procedimento físico. As formulações realizadas pelo corpo em
ação transgridem para o estado de consciência do corpo do aqui
e agora.
Para Ruth Zaporah (2003), quando falamos em mente e
corpo como separados, o que se separa de fato é nossa atenção,
e a prática da improvisação desenvolve a esta atenção
precisamente. Para Aat Hougée (1999), improvisar requer um
estado improvisacional no qual o bailarino se predispõe a
desconectar-se de padrões familiares de referências, na
tentativa de adentrar territórios desconhecidos.
Danielle Goldman conceitua a improvisação como
“aceleração, imaginativa negociação expressiva com restrição”
(2010, p. 27). Toda improvisação, ela argumenta, tem algum
limite que é justo, frouxo, definido ou vago, e todos os artistas
procuram alargar ou esticar os limites na improvisação. Além
disso, Goldman argumenta que a improvisação exige
preparação, ensaio e treinamento, de modo que o bailarino
pode estar pronto para mover-se com uma diversidade de
movimentos em uma paisagem que constantemente se
transforma, somando-se a uma contínua interação com os
outros bailarinos. A prática constante, que é o que desenvolve a
inteligência do corpo, ensina o improvisador a fazer suas
escolhas no momento ao tomar decisões em frações de
segundo.
Improvisação não é uma maneira de conquistar a
liberdade da restrição ou de quebrar todos os limites; é, de fato,
desenvolver a capacidade de reconhecer as limitações e
explorar as possibilidades de movimento dentro destas
103

limitações. Goldman descreve improvisação como um


fenômeno “ao vivo e urgente, que lida com o jogo, é inteligente
e trabalha interações espontâneas com restrição” (2010, p. 54).
O modelo de Goldman para a improvisação social como
práticas de liberdade está aberto para o movimento dinâmico
do espetáculo de dança, mas se aplica a muitos tipos de
movimentação, tais como o andado, o falado, o atuado, ou o
tocado (instrumento). Isso se aplica a qualquer pessoa que se
“move” através da sociedade e interage com outras pessoas e
instituições. O indivíduo encontra nessas relações distintas
restrições históricas de raça, gênero, sexualidade, classe, e
habilidade, dentre outras possibilidades.
Se a improvisação é uma prática de liberdade com
restrições, então essas restrições podem ser consideradas
“espaços apertados” (GOLDMAN, 2010, p. 64), termo
emprestado por Goldman do estudioso literário Houston Baker
que ela utiliza para denotar o conjunto de técnicas aprendidas
de movimento. Esses não são apenas estilos e movimentos de
dança específicos, mas também estão incluídos como parte do
repertório de cada indivíduo, as corporalidades impressas por
normas de comportamento social.
Enfatizo aqui que tais movimentos são aprendidos
culturalmente e reproduzidos como condições históricas nas
relações sociais de tempo e espaço particulares, como é o caso
de certos comportamentos corporais no ambiente da rua que
são retidos, assim como se aprende determinado estilo de
dança. Essas corporalidades que fazem parte de um contexto
sociocultural se constituem como “espaços apertados”, que
podem funcionar como restrição e oferecem, portanto, a
possibilidade da quebra de padrões para o movimento
diferente.
Ademais, os bailarinos, ao se dirigirem a um espaço
onde irão dançar, não deixam seus corpos fora antes de
entrarem. O corpo que improvisa e dança é o corpo que
atravessa a rua, é o corpo que corre na praia, é o corpo que
104

mergulha, é o corpo que realiza todas as ações do cotidiano. As


normas que ditam padrões próprios de movimento corporal se
relacionam com aspectos da identidade de cada
indivíduo/bailarino, incluindo raça, sexo, idade e sexualidade.
“Mas um improvisador habilidoso vai estar intimamente
familiarizado com os modos habituais de movimento, bem
como com as mudanças dos movimentos sociais a que dão
significado” (GOLDMAN, 2010, p. 10). Justamente este
aspecto, interessante a tantos coreógrafos na dança
contemporânea, implica que a diversidade é um fator que gera
no campo da dança um ambiente mais rico e complexo. A
exploração dos limites de cada corpo e sua corporalidade é um
desafio que a consciência do artista desenvolve para descobrir
como se mover e inventar dentro desses “espaços apertados”,
caracterizando a improvisação.
Numa improvisação de dança o bailarino é confrontado
com um número muito grande de opções que se apresentam no
momento de dançar. O processo de recombinação e
reorganização de repertório – a composição – é constante e
deve ser consciente. Se a consciência influencia no processo de
escolha, podemos encontrar na força do hábito o fator que
conduz “a escolha” para o movimento conhecido, para a
repetição, ou seja, para a insistência em realizar certo tipo de
movimento ou combinações de movimentos. Daí a necessidade
de improvisar e de aprender a realizar estas desautomatizações,
uma vez que elas não acontecem no corpo apenas por
acionamento de uma vontade de que aconteçam. “O domínio
da arte de improvisar leva anos para ser conseguido, tal qual o
domínio de toda e qualquer habilidade técnica” (MARTINS,
1999, p. 85).
Para Katie Duck (1997), a improvisação significa
escolha. Escolha dá sentido ao tempo, espaço e movimento. Ao
escolher, o improvisador cria um novo espaço com novas
opções, não necessariamente inéditos, porém novos para aquele
evento ou para aquele indivíduo; ao mesmo tempo, deixa para
105

trás um conjunto de opções invisíveis que não foram


selecionadas. Na improvisação tudo pode acontecer, as opções
se encontram em todos os lugares do espaço, mas o fato é que
apenas uma coisa acontece em um dado momento. As escolhas
moldam e estruturam a improvisação. Um bailarino precisa
estar consciente das escolhas que estão disponíveis no tempo e
no espaço. Se o improvisador não fizer uma escolha
rapidamente, ele é pego numa armadilha de tempo e espaço.
Quase imperceptível é a sensação de que o tempo não é mais
sentido ou registrado, ele é percebido em termos das ações que
se desenrolam, dos movimentos que se conectam e do fluxo
que resulta disso. A memória é como um esboço de eventos
relacionados e unidos pela imaginação, de tal forma que se
torna um diagrama de construção de forças. O diagrama
explicado no livro Francis Bacon – Lógica da Sensação de
Gilles Deleuze (2007) seria uma máquina abstrata, a
emergência de outro mundo, a possibilidade do evento, não o
evento em si. Por essa ótica, o diagrama como vir-a-ser é
prévio a qualquer objeto, coisa ou evento e por isso não o
representa, mas se constitui como a sua possibilidade.
Numa análise cognitiva da improvisação na dança é
importante distinguir entre o voluntário e involuntário, entre o
conhecido e o desconhecido, o que também diz respeito às
escolhas, à habilidade de discernimento e de seleção, ao acaso
e a tomada de decisões. É uma questão de decidir para onde ou
como me desloco no espaço, em que posição eu direciono
minha cabeça e consequentemente o foco de meu olhar, ou em
que tempo eu mudo de comando de um movimento ou em que
momento eu acelero ou mudo o ritmo de um movimento
repetitivo. O controle sobre cada parte de meu corpo é
absolutamente central para a tomada de decisão de uma ação
física que se origina de uma vontade.
Este é o poder da vontade, por exemplo, ao tomar uma
decisão voluntária de mover-se no espaço, ou de não mover-se
e de pausar. Vários fatores afetam esta escolha: a configuração
106

espacial, um dado momento, a própria posição do corpo, as


forças gravitacionais e de fricção e um conjunto de opções
invisíveis na superfície do espaço de atuação. A decisão
voluntária é um ato intencional, consciente, deliberativo. A
escolha está intimamente relacionada aos atos voluntários
intencionais. As escolhas são feitas sob o escrutínio cortical.
Um movimento só pode ser totalmente intencional e consciente
quando for resultado da vontade, quando estiver registrado
como imagem corporal29.

O cérebro nos parece um instrumento de análise


com relação ao movimento recolhido e um
instrumento de seleção com relação ao
movimento executado. Mas, num caso como no
outro, seu papel limita-se a transmitir e a
repartir movimento. E, tanto nos centros
superiores do córtex quanto na medula, os
elementos nervosos não trabalham com vistas
ao conhecimento: apenas esboçam de repente
uma pluralidade de ações possíveis, ou
organizam uma delas (BERGSON, 1999, p.
27).

29
Segundo Damásio (2000), padrão neural não é o mesmo que imagem
mental, uma vez que esta é uma experiência privada, única, pertencente
apenas ao sujeito que a vivencia. Imagem não denota exatamente o padrão
de atividades neurais que pode ser encontrado em córtices sensoriais
ativados. Nosso padrão neural, mesmo entendido por nós mesmos, seria
uma perspectiva em terceira pessoa. Como um padrão neural se torna ou
forma uma imagem é uma questão que a neurobiologia ainda não resolveu.
As imagens são a moeda corrente de nossa mente. São construídas quando
mobilizamos objetos ou quando reconstruímos objetos a partir da memória.
Nem todas as imagens que o cérebro constrói se tornam conscientes. O
cérebro é um sistema criativo. Cada cérebro constrói mapas do ambiente
usando seus próprios parâmetros e sua própria estrutura interna, criando
assim um modo único para cada pessoa. A produção de imagens nunca
cessa enquanto estamos acordados e continua mesmo durante parte de nosso
sono, quando sonhamos. O pensamento é esse fluxo de imagens.
107

O movimento desloca o corpo em suas relações internas


e externas. Cada movimento integra impressões e expressões a
todo instante. Cada movimento transforma nossa imagem
corporal de forma específica. Nessa perspectiva, os
movimentos que realizamos, em termos de sensação e forma,
traçam o caminho de nossas transformações, desenhando novas
imagens do mundo a partir de renovação da imagem corporal
que nos conduzirão a outros movimentos e assim por diante.
Mas então o que fazer com todos os movimentos
gerados pelo sistema sinestésico, proprioceptivo e sensorial do
esquema corporal30? O movimento não é liderado por uma
ideia fixa ou plana, uma vez que a referência cortical foi
substituída pelo conhecimento proprioceptivo do corpo; é o
momento precioso, quando o “corpo toma conta”
(FORSYTHE, 1999). A propriocepção é a sensibilidade
própria dos músculos e ligamentos, distinta da sensibilidade
tátil (exteroceptiva) e da sensibilidade visceral (interoceptiva).

Os músculos e ligamentos registram as


condições do movimento que a pele internaliza
como qualidades: a rigidez do piso que se apoia
quando um indivíduo se olha no espelho,
dureza que se torna resistência possibilitando a
posição e o movimento; a maciez da pele de um
gato se torna lubrificante de um movimento das
mãos. Propriocepção traduz o esforço e facilita
os encontros do corpo com objetos em memória
muscular de relacionalidade. Esta é uma

30
O esquema corporal é a representação das relações espaciais entre as
partes do corpo percebidas cinestesicamente e proprioceptivamente, uma
interação neuromotora que permite ao indivíduo estar consciente do seu
corpo no tempo e espaço. Trata-se de um fator biologicamente determinado
e diretamente relacionado com a organização neurológica e com o
homúnculo cortical (FREITAS, 2004). Le Boulch (1984) classifica o
esquema corporal como o reconhecimento imediato do nosso corpo em
função da inter-relação das suas partes, com o espaço e com os objetos que
o rodeiam, tanto no estado de repouso como de movimento.
108

memória cumulativa de habilidades, hábitos e


postura. A propriocepção afeta duplamente a
tradução do sujeito e do objeto no corpo, a uma
profundidade média em que o corpo é apenas
corpo, não tendo nada da suposta profundidade
do eu nem da superficialidade do encontro
externo (MASSUMI, 2002, p. 59).

Portanto, é preciso perguntar-se: até que ponto uma


escolha é totalmente intencional? Quanto de corporal é o
processo de tomada de decisão? Bem, como na improvisação,
espaço e tempo são preenchidos com escolhas e as opções
estão no “ar”. Ao improvisar deve-se reconhecer que, assim
que se entra no espaço (espaço de improvisação), faço parte de
um evento de tempo/espaço. Sou também responsável pela
forma como o espaço se organiza e como o tempo é alongado
ou contido. Nesse instante, só pode haver uma chance quando
se aceita as possibilidades de escolha.
As escolhas, porém, podem ser feitas em dois níveis.
Primeiro, ao considerar a escolha como um ato totalmente
voluntário da vontade, o conjunto de opções faz parte da
consciência e qualquer decisão é consciente. Esse primeiro
nível de tomada de decisão é fundamental para a improvisação.
O crucial é o caso de o bailarino estar consciente de que pode
influenciar ou moldar o espaço improvisado. Portanto, assim
que o improvisador entra no espaço, ele é co-responsável pelo
desenrolar do acontecimento no tempo/espaço e, nesse ponto, o
desafio é encontrar o equilíbrio entre a criação do
tempo/espaço e de ser conformado pelo tempo/espaço. Isso
significa uma mudança contínua e um “redeslocamento” que
acontece a cada momento, porque cada um é responsável pelas
escolhas que faz, mas, simultaneamente, é também importante
que a escolha possa agir sobre si mesmo. Se vários indivíduos
fazem parte do evento de improvisação, então as escolhas
surgem do coletivo. Assim, há uma responsabilidade partilhada
na prática da improvisação; esse é o segundo nível quanto à
questão sobre escolhas. Desde que não se sabe exatamente
109

quais as intenções dos outros bailarinos, pode-se apenas fazer


suposições ou entrar num estado aberto para a escuta e pronto
para o inesperado. Essa é uma instância de co-composição, na
qual a criação do todo resulta do coletivo e o estado de ser
também surge das relações que se constroem a partir das
escolhas do grupo.
Quanto ao aspecto do coletivo na improvisação,
podemos pensar na ideia de que não apenas os traços
individuais da memória fazem parte deste processo, mas entra
também o conceito de “memória coletiva”. Memória coletiva
se refere aos processos e estruturas de que o material de
memória subjetiva pessoal é trocado entre indivíduos e
disponibilizados numa base intersubjetiva. Do ponto de vista
subjetivo, é o “corpo instrução”, pelo qual um indivíduo tem
como referência, apreende ou, ainda, participa com o conteúdo
da memória de outro(s) indivíduo(s), mesmo sem contato
pessoal direto. A memória coletiva para Damásio (1999) é
fundamentada na carne, é intersubjetiva e criada pela
comunicação entre os organismos, nesse caso os bailarinos.
Toda a comunicação entre organismos ocorre por meio de
algum meio e o meio mais comum é o corpo. Tomando com
exemplo um evento de dança, onde não há armazenamento de
material possível, não é o meio físico do ar, luz ou som, entre o
emissor e o receptor. Uma distinção deve ser feita entre sistema
de memória coletiva estrutural temporária. Um sistema de
memória estrutural é construído ao longo de uma vida. Em
termos de improvisação na dança, considero que seja o
conhecimento geral construído dentro de um grupo de
bailarinos durante o processo de conhecer e reconhecer um ao
outro na dança. Pode ser um conjunto de acordos, de regras, de
opiniões e crenças, de estratégias de movimento e de imagens
de movimento que certamente são construídos em experiências
coletivas anteriores. Memória coletiva estrutural compartilhada
corporalmente é, portanto, um conhecimento decorrente de
experiências coletivas anteriores. O que interessa pensarmos
110

aqui é que existe ainda outro aspecto da memória coletiva que


é temporária e diz respeito a um conhecimento corporal
compartilhado e construído durante o evento no presente.
Os sistemas de memória coletiva estrutural e
temporário influenciam um ao outro. Imaginemos um grupo de
bailarinos que têm trabalhado em conjunto durante um período
de um ano ou mais. Ao longo desse período, o grupo constrói e
se mantém consciente de um conjunto de regras, crenças e
estratégias de movimento e de criação que se dão por meio das
relações que se estabelecem nas muitas formas de improvisar e
de criar um evento. Ao mesmo tempo, uma memória
temporária coletiva vai sendo construída.
Desse modo, o espaço se constitui de inúmeras camadas
de traços de memória que pertencem tanto ao coletivo como ao
individual. Esses traços de memória geram pontos de
referência que podem ser considerados como gatilhos
invisíveis que relacionam o movimento ao tempo e espaço para
aquele grupo de artistas. Acredito que essas relações são
significativas quando evoluem no momento em que os
acontecimentos passados se fundem ao presente para criar
novos acontecimentos. Em termos do movimento, a presença e
o estado de atenção que a improvisação exige são mais para
escolher o conjunto potencial de opções de movimento
invisíveis para um movimento que se faz visível e presente.
Como a dança é efêmera, no momento em que o
movimento é realizado ele desaparece e se dissolve no espaço,
deixando para trás traços de memória, tanto individual como
coletiva. Esses traços podem ser lembrados como imagens de
uma configuração corporal, seja uma posição ou uma postura,
uma composição espacial como um ponto, uma trajetória ou
padrão no espaço ou, ainda, um tempo de duração do evento,
uma dinâmica, um momento específico. Sempre existe a
possibilidade de se optar por escolher um traço de memória e
torná-lo físico novamente, ou pode-se optar por não fazê-lo. O
que torna rico um processo de criação por meio da
111

improvisação é justamente encontrar nas tentativas a


possibilidade da experimentação e, conscientemente,
desenvolver o eu dentro do grupo. No evento onde existe um
grupo de bailarinos improvisadores, o trabalho e o desafio se
encontram em fortalecer a unidade do coletivo sem perder a
vontade do eu. O inverso também deriva quando os bailarinos
têm na potência de suas individualidades o enfraquecimento do
grupo como um todo; é nesse momento que a fragilidade do
evento transparece.
Desenvolver a percepção sobre o esquema corporal
auxilia a encontrar o estado de preparação e de alerta que a
improvisação exige. Muitas vezes as escolhas acontecem tão
rápido que é simplesmente impossível pensar sobre elas, além
de não sermos capazes de registrar todas essas escolhas e seus
possíveis resultados em tão alta velocidade. Um aspecto
importante é que pensar ou planejar atrapalha quando você
precisa tomar decisões rapidamente, porque não há tempo para
tal operação.
A informação neuromuscular necessita viajar todo o
caminho até o cérebro e, assim que for tomada uma decisão
conscientemente, a informação cortical tem de percorrer todo o
caminho de volta para os músculos. O tempo necessário para
essa operação não corresponde ao tempo necessário para uma
resposta rápida a um dado momento ou problema que surge na
improvisação. Desde que o corpo é capaz de tomar decisões
corporais, pelo menos em algum nível intencional, ele contém
a capacidade de agir ou reagir em um sentido mais intuitivo.
Com isso, no evento de improvisação as soluções para os
problemas que surgem acontecem rapidamente. Steve Paxton
(2003) define essa atividade como “reflexo”. Ele afirma que a
consciência pode viajar por dentro do corpo com os sentidos
abertos e é como focalizar os olhos na imagem externa do
mundo. Também é semelhante a imagem periférica que
trabalha a consciência de todo o corpo e dos sentidos.
112

Entretanto, saber dessas formas de olhar e estar no mundo é


uma coisa e praticá-las é outra.

Nós temos que decidir o que praticar. Uma


escolha pode ser os pequenos movimentos que
o corpo faz enquanto está de pé, por exemplo.
Eu sinto que estes movimentos são como uma
ação reflexo. Eles não são direcionados por
uma consciência que observa. Observar pode
treinar a consciência a entender esse rápido
reflexo sem passar por uma experiência
emergencial, que é quando nós estamos mais
frequentemente conscientes de nossos reflexos
(PAXTON, 2003, p. 177).

O “reflexo” a que Paxton se refere é a operação em que


o tempo de reação é curto, porque as decisões corporais
ocorrem perto dos músculos. O esquema corporal só permite
um curto tempo de reação, no qual as decisões são tomadas de
forma mais intuitiva. As escolhas totalmente intencionais são
substituídas pelas escolhas parcialmente intencionais. Neste
último caso, o corpo segue a sua própria física intrínseca, ou
seja, o corpo conhece. Tampouco é possível excluir totalmente
a decisão consciente. O que normalmente se percebe é um nó
no nível da tomada de decisão consciente, bem como sobre o
nível de atos corporais intencionais.
Na improvisação, é possível estar no espaço
improvisacional com ideias previamente fixadas do que irá
acontecer se essas ideias servirem como “restrições”. Porém, se
essas ideias forem determinantes para o que vir a acontecer, no
sentido de controle, é inviável e até contra a natureza da
improvisação: ‘primeiro eu vou rolar no chão por um
determinado tempo, depois eu corro e ando perto da parede
para pular nas costas do outro bailarino, após saltar por um
tempo seguirei a primeira pessoa que olhar para mim até que
juntos deixaremos o espaço’. Isso porque a escolha e
probabilidade constantemente jogam um com o outro. Mas há
113

mais em jogo. Se uma escolha for feita, você não tem como
prever exatamente o possível resultado da sua ação. Isso tem a
ver com o fato de que a escolha é manipulada pelo
tempo/evento de uma forma imprevisível. Não se pode pensar
em todas as consequências de um movimento, da mesma forma
não há como calcular exatamente tudo que irá acontecer em
uma improvisação, principalmente porque esse não é o objetivo
dessa forma de dança. É justamente na imprevisibilidade que se
define o desafio de improvisar. Claro que essa não é uma regra
e não é correto generalizar, tampouco existe apenas uma
maneira de pensar e praticar a improvisação. No entanto, cada
núcleo criativo que utiliza a improvisação define suas próprias
regras. Mesmo assim, um dos aspectos fundamentais da
improvisação com restrições é conhecer que, de dentro da
estrutura, é impossível o controle sobre o todo, seja como
resultado ou como resolução.
Na improvisação, escolha significa oportunidade.
Improvisação é sobre o presente, sobre o aqui e agora. Talvez
em alguns momentos haja um forte desejo de controlar os
eventos futuros, mas um improvisador só pode criar ou ser
levado pelo momento presente – perceber-se, situar-se no
espaço e começar a desencadear ações que se conectam e criam
pontes entre cada corpo, objeto ou sujeito. Isso se dá entre cada
um dos elementos que compõem o espaço, as linhas de tensão
que se criam para reforçar o tempo do aqui e agora, para cada
ação uma percepção que toma forma de sensação para ressoar
em outra ação e assim, simultaneamente, transbordar as
possibilidades de estar, dilatar e potencializar o momento,
experiência do presente.
A fim de fazer escolhas, a memória entra como
elemento indissociável da inteligência do corpo. Memória está
intimamente relacionada à percepção e à ação. A memória é
uma reencenação da percepção. Esta afirmação é suportada por
resultados fenomenológicos da investigação que a atividade
neural associada com a memória ocorre de acordo com
114

Antonio Damásio (1996) nos mesmos córtices sensoriais


iniciais onde os padrões de disparo correspondentes às
representações perceptivas ocorreram uma vez. Percepção é
fundamentada no corpo e, uma vez que percepção e memória
ocorrem nos mesmos córtices iniciais, pode-se afirmar que a
memória é um processo corporal. Uma vez que “eu sou o
corpo”, qualquer pensamento, plano, ideia, imagem ou
memória estão situados no meu corpo e são originários do meu
corpo. Somos, portanto, um corpo de memória que funciona no
espaço da improvisação. Para Bergson, a sensação é
protagonista da memória e do corpo que se aciona, que age.

Ora, o passado imediato, enquanto percebido, é,


como veremos, sensação, já que toda sensação
traduz uma sucessão muito longa de estímulos
elementares; e o futuro imediato, enquanto
determinando-se, é ação ou movimento. Meu
presente portanto é sensação e movimento ao
mesmo tempo; e, já que meu presente forma um
todo indiviso, esse movimento deve estar ligado
a essa sensação, deve prolongá-la em ação.
Donde concluo que meu presente consiste num
sistema combinado de sensações e movimentos.
Meu presente é, por essência, sensório-motor
(BERGSON, 1999, p. 160).

O corpo é o centro da ação. O corpo da memória é um


sistema sensório-motor, organizado por padrões e hábitos; isso
é chamado de memória de procedimento. É uma memória
quase instantânea que diz respeito principalmente ao
movimento corporificado. A memória processual contém
também o potencial de ação, a possibilidade de ações que ainda
não se comprometeram. Anteriormente mencionei que escolha
molda tempo, mas talvez seja melhor afirmar que em estruturas
de tempo uma escolha torna o presente visível. Eventos
passados e futuros emergem, são atualizados nesse momento
presente. Tempo é contado em termos de ações: é uma
115

sequência linear e não linear de eventos relacionados, unidos


por nossa imaginação. O improvisador e o observador
entendem um movimento atual em termos de o que aconteceu
antes e o que vai acontecer a seguir. É a nossa maneira de dar
sentido a um evento.
Na dança, como citado anteriormente, o movimento
realizado deixa traços na memória (no espaço, no corpo do
bailarino, no corpo do observador). Esses traços de memória
são como pontos de referência: um movimento é removido,
uma construção espacial é reconstruída, o tempo é
reformulado. A partir do momento em que o evento de dança
começa, experimentamos e reexperienciamos. Assim, um
quadro de referências é definido (e do início de um evento de
improvisação é o principal ponto de ancoragem), nossos corpos
co-compõem cada momento. Esses traços de memória podem
ser pegos e colocados novamente em uma constelação de
espaço-tempo diferente.
Quando assisto um evento em dança, aprecio quando
um bailarino obviamente relaciona seus movimentos a algo que
passou antes, aprecio porque reconheço algo. Durante uma
improvisação, ações e movimentos são executados e para cada
uma dessas ações ou movimentos pode haver ressonâncias no
todo. Um exemplo: uma bailarina realiza uma sequência de
ações repetidamente por um tempo. Mais uma vez, outra
bailarina observa e não reage a esse momento. Muito mais
tarde, esta bailarina que ficou lá a observar executa a sua
versão daquela sequência de ações, porém, nos remete
claramente à sequência anterior realizada pela primeira
bailarina. Esses movimentos ou pequenas sequências que
aparecem e se repetem manipulam o tempo, porque traços
daquelas ações iniciais são revividos e materializam-se
novamente. O mesmo vale para os padrões de composição que
são traços de memória do espaço.
Nesse sentido, a memória está relacionada com a
experiência sensório-motora. Um traço de memória é
116

materializado e realizado no corpo e cria sensações corporais


(no espaço, no próprio corpo e nos corpos dos outros bailarinos
e espectadores). A memória da sensação é a própria sensação
em seu estado de devir quando a progressão da memória se
materializa. Um traço de memória que se torna real é um
processo natural; uma vez memória-imagem, já é, em parte,
uma sensação.

3.4 UMA DANÇA DE SENSAÇÃO

Gilles Deleuze, em seu livro Francis Bacon – Lógica


da Sensação (2007) discute o conceito de sensação, que
permeia toda a sua filosofia e ocupa uma posição singular e
interessante. De um lado, Deleuze admite que a arte possui
estrutura e realidade próprias. Assim sendo, a realidade da arte
seria ontológica, revelando o seu próprio ser. Contudo, o
próprio Deleuze nega a existência do ser como universal, como
essência imutável. A realidade da arte estaria ao lado do vir-a-
ser, num permanente nomadismo. Numa obra de arte existe
uma tensão interna pela qual se materializam forças não
sensíveis, é sobre tensão e força. Como consequência, essa
tensão situa a arte como potencialmente capaz de provocar
sensação. Para Deleuze, a arte é autônoma, com realidade
própria e independente do espectador, mas potencialmente com
a capacidade de provocar sensação, cujo resultado seria novas
conexões no cérebro num permanente devir, ou seja, num
permanente vivenciar de outras realidades.
Para Deleuze: “Cada sensação está em diversos níveis,
em diferentes ordens ou em vários domínios. De modo que não
há sensação de diferentes ordens, mas diferentes ordens de uma
mesma sensação” (2007, p. 44). Ele explica os níveis de
sensação, remetendo-os aos diferentes órgãos dos sentidos,
como uma cor, um gosto, um toque, um odor, um ruído, um
peso, que existem como uma comunicação existencial que
117

configura o momento “não representativo” da sensação.


Entretanto, não podemos substancializar esta hipótese e
conceber uma unidade que exista anteriormente à própria
sensação. Para que essa unidade ocorra, é necessário que cada
um dos níveis – auditivo, visual, tátil – esteja tomado por uma
potência vital que transborde os limites dos domínios,
atravesse-os, para que a unidade sintética seja então realizada.
Deleuze chamará “ritmo” a essa potência. Essa força chamada
“ritmo” serve para explicar o caráter sintético da sensação. No
caso da pintura de Francis Bacon, é o ritmo que a atravessa,
percorrendo como se fosse uma música. “O ritmo é a
coexistência de todos os movimentos no quadro” (Deleuze,
2007, p. 41). O “ritmo” é o mesmo que a “duração” para
Bergson, sendo o movimento e a sensação atualizações e cortes
desse devir maior.
O ritmo aloca a sensação em termos de devir,
deslocamento e movimento vital. As séries de sensação são
desencadeadas devido ao ritmo que impede estabilidades e
identidades de fundamento, bem como rejeita a noção de
experiência como algo cristalizado, monolítico. No ritmo, o
que está em jogo é a questão da fixidez do centro, o qual na
filosofia ocidental é representado pela noção de Ser. Na
contramão, a noção de devir engendra as diferenças criativas.
O Ser, com sua fixidez, conduz à não-mutação; no entanto,
estamos dentro desse terreno de fluxos descodificados,
desmaterialização dos corpos, ou corpo sem órgãos. O devir
desterritorializa, é a força que movimenta, é tornar-se humano.
A improvisação no evento de criação em fluxo
desencadeia séries de sensações por meio do ritmo. É preciso
deixar fazer-se livremente dentro das restrições e compor no
gatilho contínuo que a torna sempre atualização. A sensação
como devir conduz à dimensão estética do inacabado. O evento
de improvisar não é, portanto, um algo acabado, mas sim, um
convite à sensação e à experiência, sem outra direção além do
movimento da linha inventada, do traçado ritmado, da cor e da
118

textura presentificada. A sensação é estreitamente relacionada


com a memória e com a percepção. Improvisar é ativar o tempo
toda essa composição de sensação, percepção e memória e
ação/movimento. A percepção que temos em relação a um
evento é construída a partir de imagens corporais que se
relacionam e se modificam em meu corpo. Para Bergson, a
nossa percepção de um todo não corresponde à materialidade
daquele evento; no entanto, a percepção que temos sobre esse
mesmo evento é infinitamente variável.

Há um sistema de imagens que chamo minha


percepção do universo, e que se conturba de
alto a baixo por leves variações de uma certa
imagem privilegiada, meu corpo. Esta imagem
ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as
outras; a cada um de seus movimentos tudo
muda como se girássemos um caleidoscópio.
Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas
relacionadas cada uma a si mesma, umas
certamente influindo sobre as outras, mas de
maneira que o efeito permanece sempre
proporcional à causa: é o que chamo de
universo. Como explicar que esses dois
sistemas coexistam, e que as mesmas imagens
sejam relativamente invariáveis no universo,
infinitamente variáveis na percepção?
(BERGSON, 1999, p. 20).

Este pensamento é inteiramente compatível com a ideia


de que improvisar é explorar justamente esse universo
infinitamente variável da percepção, no qual o movimento se
articula através de um labirinto de possibilidades, despertado
pela sensação que desencadeia e pela forma que a percepção
atua no discernimento consciente, ou reflexo, para selecionar
cada possibilidade em cada momento.
A percepção nunca está dada por terminada, assim
como as nossas perspectivas nos remetem a explicar e pensar
num mundo que as englobe, as ultrapasse e anuncie-se por
119

formas sensíveis fulgurantes como uma palavra, um arabesco,


uma dobra, um movimento. Nesse sentido, é preciso que nossa
expressão de mundo seja sensação, isto é, que desperte e
reinvoque por inteiro o nosso puro poder de expressar, para
além das coisas já vistas. A pintura de Francis Bacon e as
reflexões de Gilles Deleuze nos defrontam com o problema de
comunicar-se sem o amparo dos clichês estabelecidos e das
formas preestabelecidas, abrindo o sentido.
A arte é autônoma e possui suas próprias leis, cujas
relações internas a conduzem para o eterno devir e, por isso
mesmo, é capaz de provocar uma(s) profunda(s) sensação(ões)
em quem a desfruta-fazendo-olhando-escutando-dançando-
percebendo. A arte é potência pura de produzir choque, de
desestabilizar temporariamente os processos perceptivos.
Deleuze (2007), ao refletir sobre a obra de Francis Bacon, nos
fornece um modelo estético imerso na experiência, coloca a
arte na esfera da sensação e revitaliza seu poder de expressar e
desestabilizar, obrigando uma desterritorialização conceitual e
existencial.
Para Massumi (2003), sensação se relaciona com um
campo potência. “A sensação é uma canalização de um campo
potência em uma ação local, a partir da qual é novamente
transdução para uma reconfiguração global do campo potência.
A sensação é o modo em que a potência está presente no corpo
que percebe” (2003, p. 75). A percepção é um processo de se
tornar consciente de alguma coisa, de conhecer, refere-se à
capacidade de diferenciar a informação que está no mundo.
Esse processo de compreensão e de entender as informações
que estão no mundo é mediado pela experiência e requer o uso
dos sentidos para processar dados. Por exemplo: para uma
sensação ser percebida ela precisa passar pelo corpo através de
um dos órgãos sensoriais. Interpretar uma sensação é o que
conhecemos como percepção, porém não em sentido
cronológico, mas como um emaranhado, sem início nem fim.
Esse “campo potência” que se apresenta quando improvisamos
120

exige que aconteça o reconhecimento de certos dispositivos


para que o evento se desenvolva e assim, dentro das restrições,
a articulação da dramaturgia se realize.
Thomas Reid, autor do livro Essays on Intellectual
Powers of Man in Perception (2004), explora as teorias do
imediatismo e sua relação com a percepção. Para Reid (p. 24),
na atividade de perceber um fenômeno acontecem três coisas:
primeiro, nos vem alguma noção ou concepção do que é
percebido; segundo, uma forte e irresistível convicção da
presente existência daquilo; por último, essa convicção é
imediata e não é resultado de uma atividade racional. O
imediato se relaciona a uma concepção a priori, que está dada.
Para John Dewey (2010, p. 12), a percepção não é somente o
que nós vemos, nem é o que nós entendemos que vemos, mas é
o equilíbrio entre o que vemos e o que entendemos
simultaneamente. “O fazer é artístico quando o resultado
percebido é de tal natureza que suas qualidades como
percebidos tem controlado a questão da produção. O ato de
produzir, que é dirigido pela intenção de produzir algo, que é
apreciado na experiência imediata de perceber tem qualidades
que uma atividade espontânea ou descontrolada não tem”
(DEWEY, 2010, p. 13).
A percepção não representa algo que é fixo ou
constante, mas tem elementos que são fixos num sistema de
elementos em constante transformação. Há um imediatismo no
que percebemos, mas o que percebemos raramente é sem
mediação. Nossas experiências e a cultura estabelecida são os
“espaços apertados” que influenciam nossos pensamentos, mas,
sem eles, não teríamos nenhuma opção na tentativa de
entendimento. O que está dado é simultâneo ao que é originado
no momento. Aparentemente, a percepção é um amálgama do
consciente e do inconsciente que possui um papel ativo e
passivo. Massumi (2003, p. 90) acredita que a percepção está
estreitamente relacionada com a ação sobre o que é percebido.
As propriedades da coisa percebida são também propriedades
121

da ação, mais do que da coisa em si. Não que isso signifique


que as propriedades são subjetivas para quem percebe; pelo
contrário, são sinais de que aquele que percebe e que é
percebido está incluído no mundo de cada um. A percepção se
situa entre quem percebe e do que é percebido.

As percepções de um indivíduo são suas ações


– no seu estado latente. Percepção é possível
ação. Percepção e ação pertencem a duas
ordens simultaneamente: A ordem da
substituição (uma conjunção retransmitida por
outra: ação) e uma ordem de sobreposição (a
presença latente da próxima conjunção em um
atual que irá retransmitir: antecipação). Estas
duas ordens são reais e expressam uma
necessidade material (alimento) (MASSUMI,
2003, p. 91).

Nem todas as ações possíveis são presentes como


percepção do mesmo nível, afirma Brian Massumi (2003).
Todas as permutações que compõem uma combinatória não são
ação-hábil presente no mesmo nível de toda percepção. Cada
percepção está rodeada de uma margem de improbabilidade, de
uma impalpável possibilidade.
A percepção na improvisação é essa ideia de
movimento/ação que tem a sensação como dispositivo; o tempo
em que essas operações acontecem sobrepõe-se sobre a
memória entre passado, presente e futuro e sobre como são
percebidas a cada atualização. O que se desencadeia no
processo de co-composição é um redemoinho de pré-
articulação de ações e movimentos, disponibilizados e
escolhidos tanto intuitivamente como pensados. Para Manning,
“a over-articulação é o que vem a ser a força de afluência do
desdobramento em potencial de um movimento” (2013, p. 39).
Ela nos pede para pensar numa espiral como exemplo, uma
espiral como tal não pode ser dançada, é mais duração do que
forma. Fazer uma espiral na dança é dançar o futuro de um
122

movimento espirando. É dançar a over-articulação do presente


passando.
Essa é uma singularidade da improvisação. Ela enfatiza
o momento em si passando, visto que qualquer momento pode
criar novas escolhas, oportunidades e novos desdobramentos
para certos hábitos. O tempo é vivido de uma forma não linear,
de forma descontínua. Muitos começos e fins podem ocorrer
num único evento de improvisação.
123

4 LINGUAGEM, SENTIDO E AFECTO

4.1 A LINGUAGEM COMO METÁFORA

Quando danço, experimento sensação sinestésica,


visual, tátil e auditiva. A experiência sensorial de dançar
implica na organização inteligente do movimento. Enquanto
me movimento, sinto as mudanças de transferência de peso e
das formas do corpo no espaço. Observo o ambiente, sinto o ar
deslocando em minha pele ao atravessar o espaço. Escuto e
sinto o som percussivo de meu corpo tocando o solo.
Experiência corpórea sensorial se combina para criar imagens e
associações pessoais, tanto para mim como para o espectador,
experiência partilhada e conectora que se aloja no corpo.
Quando no processo de criação, na função de
coreógrafa ao fazer o outro dançar, provoco, estimulo e desafio
os bailarinos a exporem camadas de memória e de movimentos
que não estão na superfície. Busco criar desvios de percepção
para desorganizar lógicas estabelecidas de se mover, e incitar
uma consciência sobre as sensações para desvirtuar e
desorganizar noções, desmanchar hábitos.
Enquanto o coreógrafo cria e faz criar no outro, o que
acontece? Vou aos poucos tentar responder a esta questão,
quem sabe consigo... Fico entre espectadora e criadora? Posso
acessar o que produzo? E de que lugar? Como compreendo a
dança? Como compreendo a partir das imagens que se
produzem simultaneamente para mim e as tentativas de
atualização dessas imagens, dessas sensações? Enquanto crio
existe uma performance semelhante à performance do
espectador? Essa performance se situa entre o lugar de
espectador e bailarino?
Para buscar algumas respostas para essas questões,
construirei uma trajetória teórica que passeará por alguns
conceitos-chave do campo filosófico contemporâneo como um
meio para articulações possíveis sobre dança. Tais conceitos
124

auxiliam a dar referência a encontros entre criação, estímulo


para criação, edição de material e construção de uma
dramaturgia. A maneira que as escolhas foram e são feitas
durante os processos de criação nos trabalhos de montagem do
Ronda Grupo de certa maneira dão sentido às escolhas feitas no
processo de escrita desta pesquisa. Diria até que o texto vem
sendo coreografado e que segue a mesma lógica do trabalho
coreográfico que faço junto ao Ronda Grupo. Sendo assim, ao
construir uma lógica que faça essa pesquisa fluir, busco
explicitar a forma de trabalho que realizo. Também me
interessa refletir e descobrir técnicas e procedimentos que
desenvolvo para as montagens.
Primeiramente, me pergunto de que maneira a dança
como um campo artístico, amplo e que abriga diversas formas
de articulação, se dá? Uma forma de se compreender a dança é
a partir da realidade própria das tensões corporais e da
modulação de energia e de fluxos que ela trabalha. Quando
utilizo o termo “dança”, normalmente o faço como referência à
dança contemporânea, foco da discussão desta pesquisa; além
disso, meu trabalho como coreógrafa traz muitas características
que identifico com a dança contemporânea.
Como exemplo de alguns desses aspectos, a dança
contemporânea trabalha com focos simultâneos de percepção
da cena e geralmente possui estrutura fragmentada, na qual o
movimento não acontece para representar algo externo ao
corpo, o movimento é o que é. Uma dança de estados. O
sentido está circunscrito na experiência e o processo se dá no
corpo. O corpo dialoga com o próprio corpo, os gestos
decompõem o corpo: “É o corpo que se caracteriza por sua
presença e não por algo como sua capacidade de significar. Sua
presença é a pausa de significar” (Lehmann, 2007, p. 336).
Evento de percepção como o de observar a minha
própria dança, ou de observar a dança do outro, ou, ainda, de
incitar a criação de dança no outro, são sempre convocados
através da compreensão, retirados da expressão do plano
125

duracional da experiência. A compreensão inicial cria


parâmetros para a formação do espaço-tempo no contexto de
uma experiência distinta. Sendo assim, para cada experiência
de uma ação repetida a compreensão daquela experiência é
reveladora do que virá a ser, o devir atual da experiência.
“Quando um corpo está em movimento ele não coincide
consigo mesmo, ele coincide com sua própria transição: com
sua própria variação” (Massumi, 2002, p. 4).
Interessa aqui a noção de forma subjetiva da
experiência do filósofo e matemático britânico Alfred North
Whitehead (1967), em que ele emprega uma ocasião de
experiência como uma atividade, analisável nos modos de
funcionamento no qual junto constitui-se no processo de devir.
Whitehead afirma o seguinte:

Objeto e sujeito são termos relativos. Uma


ocasião de experiência é um evento em que
existe um sujeito que está em relação à uma
atividade especial que diz respeito ao objeto.
Qualquer coisa, neste sentido, é um objeto em
relação à sua suscitação de alguma atividade
especial no sujeito (1967, p. 176).

Esse modo de atividade, para Whitehead, denomina-se


apreensão (prehension) e envolve três aspectos: primeiro, em
uma ocasião da experiência a apreensão é um detalhe da
atividade; segundo, existe um datum que provoca o surgimento
ou o início desta apreensão; e, por fim, este datum é o objeto
apreendido ou assimilado.
Segundo o pensamento de Whitehead (1967), existe a
forma subjetiva que é o tom afetivo determinando a efetividade
da apreensão naquela ocasião da experiência. Nesse sentido, a
experiência se constitui dependendo da complexidade da forma
subjetiva. O que se apreende é definido como aquisição de
informação e condicionamento de habilidades específicas. Na
imagem da apreensão, o processo de conhecimento é recíproco,
126

em que sujeito e objeto são transformados. Por exemplo:


quando olho para um objeto, a compreensão que tenho desse
objeto diz respeito às relações que meu corpo tem ou teve com
ele. Estaria circunscrito entre o movimento e o conceito de
“cadeira”, por exemplo, como um objeto polo da ocasião atual.
Uma vez que a atual ocasião assuma forma, ela perece, culmina
a marca que se abre para futuras experiências relacionais
coloridas pelas possibilidades do sentar.
Um evento é sempre singular, completamente absorvido
por sua repetição particular. Para Erin Manning (2009, p. 8),
em um vocabulário de movimento é possível compreender
melhor essa relação ao colocarmos em xeque a diferença entre
pré-aceleração e deslocamento. Na pré-aceleração de um passo,
por exemplo, qualquer coisa é possível. Porém, assim que o
passo começa a se atualizar, não há muito potencial deixado
para divergências: o pé irá aterrissar onde aterrissa. Incipiência,
nesse caso, é a abertura para o desconhecido, seguida de
concrescência que fecha a experiência nela mesma. Claro que
esse fechamento é sempre a reabertura em direção à próxima
ação incipiente, afirma Manning. No movimento incipiente ou
que se desenvolve como pensamento pré-articulado, o novo se
situa no processo.
Quando o movimento converge para a sua formação, ou
quando o pensamento converge para a palavra, resta pouco
potencial de expressão criativa. Isso sugere que a linguagem
não se expressa criativamente. Segundo Manning, para a
linguagem se tornar pós-iterativa, ou seja, o procedimento em
que uma sequência de repetição de operações de produtividade
resulta sucessivamente mais perto de um resultado pretendido,
ela deve continuar a expressar-se no domínio em que o
pensamento permanece pré-articulado e que o conceito
continua a operar. Devemos conceber a linguagem como um
eterno retorno da expressão no fazer.
Tomemos a dança como linguagem, no sentido
metafórico do termo. Como a organização de movimento no
127

espaço/tempo, ela possui um nexo que está em si, ou seja,


possui uma lógica que se constitui, acima de qualquer coisa, no
movimento e em suas regras de composição. Como afirma Gil:
“não há dança sem um nexo”. Portanto, a dança se situa no
domínio pleno do sentido, imediatamente seus gestos fazendo
sentido, sem passarem pela linguagem. É certo que gestos
tendem a se constituir como signos, mas que, por si próprios,
nunca o conseguem por completo. Os gestos dançados, como
“quase-signos sobrearticulados” e de imediato dotados de
sentido, ordenam-se numa coreografia cujo nexo apresenta um
sentido, não significações (GIL, 2005, p. 92).
Portanto, o que é então o nexo na dança? Parto do
pressuposto que na criação em dança, normalmente, se
constroem partituras e sequências coreográficas através da
experimentação de fluxos de energia que se originam de
estímulos e escolhas elaboradas pelo coreógrafo ou diretor.
Nessa experimentação de fluxos, a organização dos
movimentos acontece por uma lógica de energia e continuidade
que, trabalhada, seleciona sequencialidades de movimentos.
Para qualquer possibilidade existe a quebra de regras ou a
lógica inversa, mas sempre a partir de uma lógica de criação
que gera o fluxo que gera sequências, e assim por diante.
Durante o processo de criação são feitas escolhas; estas,
sempre, dependem do destino a ser dado para a energia,
combinando e criando células de movimentos que são
modulados através da intensidade do impulso, da aceleração,
da velocidade e da força do movimento. Portanto, como coloca
Gil (2005), o nexo dado é resultado da “continuidade de fundo
de circulação” da energia, tanto no sentido da combinação ou
da descombinação, ou, ainda, da quebra de fluxos e
descontinuidades. A composição adquire uma lógica própria de
cada criador, com múltiplas possibilidades de agenciamento do
material resultante da experimentação, tanto dos pequenos
organismos e células de movimentos quanto de cenas e
sequências organizadas e manipuladas. Para Cunningham, uma
128

dança é “uma coisa que é justamente uma coisa que aqui está”
(apud GIL, 2005, p. 71). Nesse ponto, deparamo-nos com uma
questão que vem sendo discutida por vários autores que
trabalham com dança: se esta é ou não linguagem.
Para José Gil (2005) e Sparshot (1995), o que não
permite à dança ser tratada como linguagem diz respeito à
“quase-articulação” do corpo em relação ao esqueleto e sua
constituição anatômica. Em primeiro lugar, o que se articula no
corpo não são unidades de movimento, mas zonas inteiras do
espaço, zonas que se interpõem e que, portanto, impossibilitam
traçar os limites entre os movimentos numa sequência, ou
sequências.
A segunda questão da “quase-articulação” do corpo diz
respeito às limitações anatômicas que impedem certos
movimentos de serem executados pelo corpo devido à sua
constituição anatômica. Esse repertório inacessível de
movimentos estabelece um determinado tipo de gestos e de
sequências, assim como impossibilita outros, ainda dentro de
um repertório de indeterminação. O simples movimento de
levantar um braço pode ser realizado de muitas maneiras se
pensarmos nas possibilidades de modulação do corpo ao
executar essa tarefa, porém, ainda adequado a um esquema
limitado na “quase-articulação” do corpo.

É a sobreposição dos movimentos e a quase-


articulação do corpo que explicam esta
multiplicação do gesto, porque o equilíbrio
produtor de movimento (equilíbrio meta
estável) se apoia na sobreposição, criadora de
tensão e de instabilidades microscópicas” (GIL,
2005, p. 76).

Desta “quase-articulação” obtemos uma fragmentação,


que implica na quantidade de inúmeros pequenos gestos que
compõem um movimento e suas microunidades de
movimentos, ademais, que se compõem de outras unidades
129

menores e assim por diante. Para Gil (2005, p. 78), é a


“sobrefragmentação” a partir da “quase-articulação” do gesto
comum que impede a codificação e a constituição desta como
linguagem. Em suma, como a dança transforma o gesto comum
em gesto dançado? Como a dança transforma o corpo para o
campo do signo e da linguagem verbal ou para o corpo
singular, incodificável?
Um movimento que se instala no corpo pode ser
recortado de diferentes maneiras, então onde está o limite entre
movimentos? Onde termina um movimento e onde começa o
outro? Além disso, a expressividade de um corpo contribui
para a construção de sentido, ou seja, um conjunto de
movimentos múltiplos que é definido pelo corpo que dança
trabalha subjetivamente na elaboração da expressividade. No
sentido de presença cênica, da maneira como o corpo trabalha
expressivamente o material coreográfico. A expressividade do
corpo que dança é potencialmente diferente da linguagem
verbal. Sparshot (1995) afirma que a palavra “linguagem” não
pode ser aplicada à dança em decorrência de que a linguagem é
potencialmente articulada e codificada, ou seja, é um sistema
de signos.
Ora, se o movimento dançado ganha na amplitude da
“sobrefragmentação” da “quase-articulação” do gesto a
possibilidade de encarnar sentido (GIL, 2005, p. 78), a dança,
portanto, obedece a uma gramática semântica própria e é
interessante ressaltar que é uma gramática não-verbal e que
tampouco obedece as regras de formulação da linguagem.
Sendo assim, quando utilizamos o termo “linguagem” para o
campo da dança é no sentido metafórico do termo que
operamos.
130

4.2 O SENTIDO DE SENTIDO NA LÓGICA DO AFECTO

Sparshot (1995) e Gil (2005) concordam que a palavra


“linguagem” aplicada à dança possui sentido metafórico,
servindo-nos como uma referência, pois o corpo na dança é
preenchido de sentido. Portanto, a palavra linguagem não é
apropriada, principalmente porque não dá conta do que a dança
abarca na sua totalidade e, principalmente, porque não é
possível codificá-la. O movimento do bailarino não indica
significações, não significa coisas e não simboliza algo, pois o
sentido está encarnado no corpo em movimento, no corpo que
dança.
Contrário à ideia de que exista um pressuposto de um
sentido originário que deve ser encontrado pelo espectador,
Deleuze (2002) afirma que existe a produção do novo para
cada espectador. A ideia de que a dança como um enunciado
ou um conjunto de enunciados tenha um sentido verdadeiro,
aguardando para ser descoberto ou encontrado, é negada tanto
por Foucault (2000) como por Deleuze (2002). Está implícito
um sentido que preexiste e que é independente do espectador,
aguardando para ser captado. O sentido é aí um início (ponto
de partida do artista), mas é também um fim (ponto de chegada
do espectador). E, de todo modo, é alguma coisa pressuposta,
preexistente, que precisa ser reabilitada. É uma origem a ser
reencontrada. Para Deleuze, “[...] a noção de sentido é
instrumento de uma contestação absoluta, de uma crítica
absoluta, e também de uma criação determinada: o sentido não
é de modo algum um reservatório, nem um princípio ou uma
origem, nem mesmo um fim: é um afecto, um afecto
produzido, do qual é preciso descobrir as leis de produção”
(2002, p. 189).
O que é o sentido no campo da dança? É algo que o
enunciado contém, guarda em si, ou dentro de si, como um
arquivo de intenções ao qual o espectador deve acessar? O
sentido está no enunciado, pertence a ele e é algo da ordem do
131

que o enunciado “quer dizer” ou quer comunicar? O que o


autor quer expressar com isso? É como se o sentido fosse algo
que previamente já estava lá no enunciado e abarcado por ele.
Há um sentido que preexiste à recepção e que está contido no
enunciado de modo pronto, acabado e fixo. Entende-se que
essa é uma maneira de conceber ou uma forma de pensar sobre
o sentido na dança ou nas artes em geral, como se o sentido
estivesse mais ou menos oculto, cabendo ao espectador
desvendá-lo.
O espectador deveria desvendar o sentido como se ele
fosse um evento preexistente que deu origem à obra; o sentido
verdadeiro que, contido na obra, aguarda para ser encontrado.
Na expressão “ah, entendi” está implícito um sentido que
preexiste à experiência, aguardando para ser captado, como
uma espécie de reservatório que o mesmo carrega. O sentido
tem um início, do ponto de vista do artista, mas também tem
um fim, do ponto de vista do espectador. Essa concepção
implica necessariamente numa perda. Ela é insuficiente porque
nunca vai conseguir compor o sentido originário. Não existe
acesso integral a todas as referências que o artista ou artistas
envolvidos acessaram, tampouco a todo o contexto histórico
em que eles estavam imersos.
O espectador está em um lugar de contemplação de um
sentido original inalcançável. Mesmo que se diga que acontece
na forma de ver, que depende das referências do espectador ou
de seu repertório, de sua competência para reconhecer as
referências, existe um reencontro, uma reapresentação de algo
que se entende como o sentido correto, e essa reapresentação
nunca é a “coisa em si”. A leitura crítica pensada nesse
paradigma do sentido fica, portanto, nos devendo, torna-se
refém de uma concepção do sentido como algo preexistente,
fixo, escondido. Isso acontece ainda que se afirme que o
sentido é algo múltiplo. O problema reside numa pluralidade
que é sempre desdobramento de um sentido certo, preso àquilo
que já existiria de antemão.
132

O deslocamento que Gilles Deleuze opera no conceito


de sentido difere fundamentalmente da concepção descrita
anteriormente, faz-nos refletir sobre suas implicações para a
maneira como olhamos para uma obra de arte ou, mais
especificamente, para o que interessa aqui, a dança. Serve para
pensar como forma de nos introduzir num contexto de
formulação de sentido. Como artista, é se colocar em uma
posição que dá um reverse, é como se fosse o avesso do
desencadeamento da construção de sentido. Na pesquisa do
artista, essa imagem de que não existe um sentido previamente
determinado a ser revelado, ao mesmo tempo, complementa e
estimula a reflexão sobre a lógica de formulação e composição,
tanto do ponto de vista do artista como do ponto de vista do
espectador, ou ainda, dos artistas envolvidos no processo de
criação.
Deleuze não está sozinho nesse deslocamento sobre a
produção de sentido que também é parte dos estudos da
Linguística. Entretanto, de modo amplo, se acompanharmos a
visão de Michel Foucault (2000) sobre as técnicas de
interpretação em Nietzsche, Freud, Marx, incluídas na tradução
em Ditos e Escritos Vol. II, diríamos que o que se pode chamar
de Hermenêutica Moderna, as mais variadas técnicas de
interpretação desenvolvidas a partir da modernidade, tem como
ponto de convergência libertar o sentido da ideia de origem.
Para Foucault (2000), o deslocamento do sentido na
hermenêutica moderna é resultado de uma ruptura fundamental
na cultura ocidental da qual Nietzsche, Freud e Marx foram os
responsáveis. Eles foram os pensadores que, segundo Foucault,
libertaram o sentido do plano representacional.

Eu me pergunto se não seria possível dizer que


Freud, Nietzsche e Marx nos envolveram em
uma tarefa de interpretação que sempre se
reflete sobre si mesmas, constituíram à nossa
volta, e para nós, esses espelhos, de onde nos
são enviadas as imagens, cujas feridas
133

inesgotáveis formam nosso narcisismo atual.


Em todo caso - e é sobre isso que eu gostaria de
dar algumas sugestões - não me parece que, de
qualquer forma, Marx, Nietzsche e Freud
tenham multiplicado os signos no mundo
ocidental. Eles não deram um sentido novo a
coisas que não tinham sentido. Na realidade,
eles mudaram a natureza do signo e
modificaram a maneira pela qual o signo em
geral podia ser interpretado (FOUCAULT,
2008, p. 43).

Resulta que não se pode discutir em termos de verdades


absolutas. Foucault (2000) acredita que, na leitura de uma obra,
o sujeito na posição de espectador está aberto a um campo de
possibilidades ilimitadas, infinitas. O inacabado da
interpretação se mantém em suspenso no limite dela mesma.
Fazer uma leitura ou interpretar se torna uma atividade na qual
o sujeito está implicado. Se não há “uma” verdade, se não há o
absolutismo da verdade, o que temos são versões da verdade.
São pontos de vista que estão ligados ao sujeito e a uma
determinada perspectiva sobre a vida (de quem lê).
Para Deleuze (2002), o sujeito intérprete/criador não
tem como estar excluído dessa construção. Se não há uma
pureza ideal do sentido, não temos como separá-lo de quem
recebe o enunciado. O sentido não está apenas no enunciado,
na dança, no texto, mas ele é algo que depende do interlocutor,
depende daquele que assiste, lê, ouve ou usufrui.
Portanto, o sentido depende do interlocutor, não na
direção do que foi dito anteriormente. Não se trata mais de
afirmar que cada sujeito interpreta uma dança a seu modo, de
que o sentido pode se desdobrar de acordo com a competência
de cada um. O deslocamento acontece porque o sentido passa a
ser uma construção que, por sua vez, não preexiste ao
interlocutor – a quem Foucault (2000) denomina de
“intérprete”.
134

Conhecer o sentido de um discurso, seja ele um texto ou


uma dança, passa a ser um trabalho de produção do novo e não
mais uma descoberta de algo que já estava lá. Esse paradigma
não é aquele em que necessariamente toda a linguística
construiu suas bases. Teorias da linguagem no ocidente
trabalharam com a ideia de restituição do sentido e
conceberam, ainda, a equivalência entre sentido e significado,
outro nó em que Deleuze também se debruça. Dentro desse
paradigma do sentido como criação, vale resgatar uma frase de
Deleuze em que ele expressa claramente o que parece lhe ser
caro em pensadores como Nietzsche e Freud:

Para Freud e Nietzsche a noção de sentido é


instrumento de uma contestação absoluta, de
uma crítica absoluta, e também de uma criação
determinada: o sentido não é de modo algum
um reservatório, nem um princípio ou uma
origem, nem mesmo um fim: é um “efeito”
produzido, do qual é preciso descobrir as leis de
produção (2002, p. 189).

Deleuze liberta o conceito de sentido das dimensões


estritamente linguísticas do plano da representação. O sentido
como uma criação especifica é, para Deleuze (2002), a criação
de afecto (affect). Essa criação não tem um caráter voluntário,
ativo, é o resultado de um encontro entre a relação com um
objeto. É algo que se dá involuntariamente, é disparado e
acontece. O sentido é da ordem da criação. Sendo assim, não
podemos ser levados a crer numa criação voluntária, feita por
um sujeito que decide criar tal ou tal sentido diante de um
enunciado ou de um objeto.
Deleuze marca simultaneamente o caráter de criação e
de passividade do elemento que ele tenta chamar de sentido
como um afecto produzido. O sentido é disparado no momento
em que o afecto acontece nos encontros entre obra de arte e
espectador. O deslocamento conceitual que Deleuze cria sobre
o conceito de sentido se dá aqui: o sentido não tem uma origem
135

que deve ser reencontrado ou resgatado; logo, ele não preexiste


no enunciado, ou seja, não preexiste à situação de enunciação.
Desse modo, ele não existe independentemente do intérprete ou
do interlocutor. No caso de um texto, por exemplo, ele não
existe independentemente do leitor ou, no caso da dança, ela
não existe sem o acontecimento que coloca o espetáculo e o
espectador juntos em situação de apresentação.
O sentido, então, é um afecto disparado nos encontros.
Na dança, o que se constrói como sentido a partir desta
relação? O primeiro aspecto a ser analisado é que há um
encontro importante. O encontro que se dá entre espectador e a
dança é o encontro da leitura, da comunicação. No momento
desse encontro é que um afecto se dá, antes mesmo do sujeito-
espectador poder se dar conta conscientemente disso. O afecto
que se desencadeia no momento em que acontece o encontro
entre a dança e o espectador depende da linguagem, mas a
extrapola, se dá para além dela. O afecto faz uma espécie de
link entre a dança, os signos que apresenta e os corpos, ele faz
com que o signo afete o corpo de quem assiste. O afecto faz
com que o espectador seja, de alguma forma, afetado.
A comunicação que se efetua nesse encontro, desse
modo, conforma uma superfície de contato, ou seja, uma
superfície em comum que abarca elementos sensíveis dos
corpos que a compõem. Por elementos sensíveis não se
diferenciam, para citar Bergson (1999), do livro Matéria e
Memória, tanto o espírito como os objetos do mundo exterior
têm potencialidades de afetar e de ser afetado e, por isso
mesmo, de comunicar. “Quando um corpo ‘encontra’ outro
corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas
relações se compõem para formar um todo mais potente”
(DELEUZE, 2002, p. 25).
A comunicação, no âmbito dessa superfície, trata
sujeito e objeto como entidades que agem uns sobre os outros,
por meio de afecções e afectos. “As afecções são os estados de
um corpo sofrendo a ação de outro corpo” (DELEUZE, 1978)
136

e, os afectos, as transições entre um e outro estado. É certo que


o afecto supõe uma imagem ou uma ideia (afecção) da qual
deriva da sua causa. No entanto, não se reduz a ela e possui
outra natureza, de caráter transitivo e não indicativo ou
representativo, é experimentado numa duração vivida que
abarca a diferença entre dois estados.

Quando falo de uma força de existir maior ou


menor que antes, não entendo que o espírito
compara o estado presente do corpo com o
passado, mas que a ideia que constitui a forma
do afecto afirma do corpo algo que envolve
mais ou menos realidade que antes (DELEUZE,
2002, p. 25).

O afecto é a duração que conecta os estados do corpo e,


portanto, é transitivo, uma vez que faz os corpos
permanecerem em processo constante e interdependente, num
plano de puro movimento. Contudo, para acessar essa
transitividade que lhe é própria, é necessário um estado de
suspensão que, consequentemente, não implica em sair dessa
superfície de forças. É, logo, uma interrupção temporária desse
movimento constante, de modo a evidenciar as forças, as
linhas, que compõe esse espaço onde a comunicação acontece,
isto é, ressaltar o que suspende essa suspensão. Esse plano que
parecia apenas abrigar respostas únicas se revela como o lugar
da diferença. O afecto, suspenso, se revela em sua forma mais
elementar. O espaço comunicacional, à medida que são
analisados os afectos que nele se manifestam, se revela.
O que implica refletir sobre a dança e analisar a
potência de afecto desses encontros? Como artista, é
fundamental questionar a própria maneira de produzir e criar;
porém, quais aspectos analisar para questionar? A noção de
afecto serve como suporte para pensar em maneiras de
atualizar a própria noção de fazer arte. Serve como base para
refletir sobre as maneiras que o trabalho ou cada apresentação
137

se conecta com o espectador. Por fim, transforma o lugar do


criador, rizomando a forma como as relações se constroem no
processo de criação, nos ensaios e em cada uma das
apresentações.
O poder de ser afetado, diz Deleuze, “não significa
passividade, mas afetividade, sensibilidade, sensação”. As
forças que se afetam estão em constante dinâmica, ativando e
reativando qualidades, potências de força em eterno devir.
Como artista e pesquisadora, a potencialização da sensibilidade
vem com as práticas de criação, com o trabalho constante de
composição e com tudo que vem como consequência,
principalmente a maneira de olhar o mundo. Esse lugar de
“entres” nos coloca diante das partículas dos corpos em
vizinhança, num percurso estético onde as durações se
conectam, afetando e se deixando afetar. O sentido que o artista
trabalha é vinculado à experiência de afetar-se. Mesmo assim,
os sentidos são afectos que aconteceram ali, num determinado
encontro, provocados e agenciados pelo coreógrafo de certo
trabalho de dança, de certo momento de ensaio e criação, no
encontro entre as várias subjetividades de cada colaborador de
um processo, ou ainda, com certo espectador, numa dada época
de uma determinada cultura e assim por diante.
O afecto é disparado por uma malha de coisas, um
cruzamento de inúmeras e mais variadas espécies de sensações,
histórias de vida, memórias, modos de perceber, maneiras de
ler, preocupações de cada um, ritmos, culturas, épocas, lugares,
formação, repertório, o momento de vida, etc. É uma rede de
variados fatores e seria impossível mapearmos todos. Também
seria complicado e ineficiente analisar qual fator estaria
atuando mais fortemente no afecto que aquele trabalho
especificamente disparou em cada um dos artistas envolvidos e
nos espectadores.
Porém, sob o ponto de vista de criadora compreendo a
possibilidades de situar e desvendar as intenções do coreógrafo
que povoam cada situação de composição. Na maneira como os
138

materiais vão tomando forma e em como os encadeamentos e


técnicas provocam e disparam determinada cena, ou ainda,
como os jogos se configuram a partir de referências
apresentadas e problematizadas pelo coreógrafo. Por exemplo,
se existe a possibilidade de trabalhar a ideia de disputa de
poder entre um homem e uma mulher que tipo de qualidade de
jogo pode problematizar e discutir esta questão? Como pensar
nos limites entre significado e sentido, o que interessa
incorporar como ideia e como conceito na produção de
relações que se identifica com os materiais que se cria?
Da mesma forma, é possível relacionar sentido com a
“situação de enunciação”. Há sempre uma situação que
envolve cada enunciado, um contexto amplo em que ele se dá.
Pode-se pensar assim, contanto que seja considerado tudo o
que essa situação envolve e não apenas o cenário atual,
empírico, aquele que está diante de nossos olhos, mas tudo o
que está ali, presente e real, embora não plenamente visível,
sensível ou formalizável. Na perspectiva de criar situações que
se tornam dispositivos para a criação e desencadear uma
organização em que enuncia e incorpora questões que se
apresentam, o coreógrafo agencia as perspectivas dos
colaboradores.
A história de cada um, o modo como experimentamos
determinadas palavras, fatos que nos fazem optar por um
determinado campo semântico e não outro, por certas texturas,
por certas sonoridades, todas as nossas relações cotidianas,
nosso campo cultural, nossos lugares e paisagens de convívio,
nossos campos de atuação, nossos hábitos, etc. Tudo isso faz
parte do que somos feitos, embora não atualmente visível e
explícito e, principalmente, nunca somos um estado acabado,
mas sim um estado de ser em processo de devir. Nesse sentido,
a compreensão sobre o que se cria, ou ainda, de como
desenvolvemos um processo de criação, atua nos sentidos de
forma a articular essa metaestabilidade entre estados
inacabados de estar no mundo.
139

Gilbert Simondon (1964), na teoria da individuação,


desenvolveu uma concepção na qual a noção do corpo como
forma é inserida numa rede conceitual que comporta noções
como metaestabilidade, transdução, campo de intensidade,
energia potencial e informação. Em tal concepção, a forma é
refletida não como princípio de individuação, que age de cima
ou do exterior, mas como informação, como troca significativa
e irreversível, como a própria operação transdutiva de tomada
de forma que caracteriza todo processo de individuação.
Processo através do qual se dá a emergência dos indivíduos a
partir de um fundo pré-individual, operando uma defasagem do
ser entre o indivíduo e o meio.
A invenção foi definida como resultado de uma relação
transindividual, efeito de agenciamentos coletivos entre
homem e matéria, entre homem e mundo. Simondon espera
efetuar uma reversão na investigação do princípio de
individuação, de tal modo que a operação de individuação
possa esclarecer como o indivíduo vem a existir, ao mesmo
tempo em que lança luz sobre todo o desdobramento do
processo de individuação. O indivíduo passa a ser tomado
como uma realidade relativa, uma dada fase do ser, dependente
da realidade pré-individual anterior a ele. Mesmo após sua
individuação, uma pessoa não existe só, pois o processo de
individuação não esgota todos os potenciais da realidade pré-
individual de uma só vez.
Aquilo que a individuação faz surgir para além do
indivíduo é o par indivíduo-meio. O meio não é
necessariamente constante e homogêneo. Como sugere
Simondon: “[...] o meio é atravessado por uma tensão entre
duas ordens de grandeza que mediatiza o indivíduo quando ele
vem a ser” (SIMONDON, 1964, p. 4). Desse modo, o
indivíduo, que não é o ser em sua totalidade, é tão somente o
resultado relativo de um estado do ser no qual não existia antes,
nem como indivíduo, nem como princípio de individuação.
140

A individuação só pode ser definida como ontogenética


quando é operação de individuar o ser em sua totalidade.
Quando a individuação se manifesta num sistema que envolve
potencial e é incompatível com certas forças de tensão e de
interação entre termos extremos das dimensões, ela deve ser
avaliada como resolução parcial e relativa.
Para Simondon, a relação ser-devir expressa a diferença
do ser em relação a si próprio e sua resolução provisória numa
determinada fase. No ser pré-individual não há fases. Contudo,
no ser em que se dá uma operação de individuar há resolução
provisória nas consecutivas fases que a resolução faz surgir
entre as partições. O devir é uma dimensão do ser, dimensão do
modo de resolução de potencialidades e de suas
incompatibilidades iniciais. A individuação é o surgimento de
fases no indivíduo. Ela não é uma consequência do devir e que
se isola, mas a própria operação como efetuação.
Dessa forma, a ideia do ser para Simondon não reside
sobre a unidade de identidade, mas antes, sobre a unidade
transdutora. Isso quer dizer que o ser pode se defasar nele
mesmo, transbordar-se de um lado e de outro de seu centro. O
que é chamado de relação ou dualidade de princípios são
escalas ou graus do ser, que é mais que unidade e identidade.
Simondon afirma: “o devir é uma dimensão do ser, não o que
lhe advém consoante uma sucessão que seria sofrida por um ser
primitivamente dado e substancial” (SIMONDON, 1964, p.
16).
A individuação é devir do ser e não modelo do ser que
esgotaria sua significação. O ser individuado não é nem todo o
ser, nem o ser primeiro, nem o último. Simondon propõe-nos
apreender o ser individuado a partir do princípio de
individuação e a individuação segundo o ser pré-individual ao
invés de apreender a individuação a partir do ser individuado.
Simondon explica a operação de transdução:

Por transdução entendemos uma operação


física, biológica, mental, social, pela qual uma
141

atividade se propaga gradativamente no interior


de um domínio, fundando esta propagação
sobre a estruturação do domínio operado de
região em região: cada região de estrutura
constituída serve de princípio de constituição à
região seguinte, de modo que uma modificação
se estende progressivamente ao mesmo tempo
em que esta operação é estruturante (1964, p.
18).

A operação transdutora não é linear, tampouco


homogênea. A individuação é uma operação em
desenvolvimento e, portanto, é constituída de fases, é um
processo contínuo que se desdobra e sobrepõe-se. Sobre o
corpo e o processo de individuação, Erin Manning afirma:

Um corpo é um nó de processo relacional, não


é uma forma de per si. Um corpo é ativado
complexadamente por fases em colisão e
coniventes. Este deslocamento entre fases, de
dentro e de fora de processos de individuação
se transformam – transduzidas – para criar
novas iterações não do que um corpo é, mas o
que um corpo pode fazer. O que nós tendemos a
chamar de “corpo” e o que é experimentado
como a totalidade de uma forma é
simplesmente um ponto extraordinário, uma
instância da conivente materialização como isto
ou aquilo (2013, p. 19).

Por certo é um cruzamento específico de elementos que


são trazidos por cada um dos participantes do encontro entre
colaboradores de um processo de criação. Nesse caso, de um
lado os corpos que dançam e de outro o do coreógrafo, ou
ainda, do espectador. De que é feito e assimilado, quais
técnicas são utilizadas e inventadas? Como se constroem essas
redes de relações, nas quais de um lado a dança é revelada e,
do outro, a percepção atualizada? Cada um destes aspectos em
si é um cruzamento de muitas tramas. Seria improvável mapear
142

todas as interferências que atuam desse encontro, mas se


pressupõe que cada leitura será construída por diferentes
fatores e combinações. O efeito desse encontro é relacional, é
completamente dependente deste cruzamento específico, em
que os elementos mais diversos são combinados.
O efeito desses encontros entre colaboradores no
processo de montagem de dança é imponderável, inesperado e
imprevisível; portanto, é resultante de vários aspectos que se
intermodulam e se conectam para formular o sentido ou um
nexo para a dança. Como consequência, o coreógrafo e os
bailarinos não têm como prever precisamente o sentido que
será construído por espectadores que encontrarão durante as
apresentações. De certa forma, a combinação e o evento de
criação, por ser coletivo em processo colaborativo, também
carregam essa mesma ideia, segundo a qual para cada artista
envolvido na criação de um trabalho existem diversos aspectos
que se combinam para produzir um efeito que também é até
certo ponto imprevisível. Nesse sentido, o papel do coreógrafo
é tentar produzir um campo de tensões para alargar as
possibilidades de formulações, a fim de existir conceitualmente
uma coerência interna daquele trabalho. O sentido é uma
dimensão que fica entre o movimento e as coisas, na dança
entre movimento e os corpos. A dramaturgia na dança, portanto
trabalha nesse lugar.
Na dança, a dramaturgia é entendida na base de toda
operação de criação. Pode-se dizer que Jean-George Nouverre
foi o primeiro dramaturgo da dança, pois seus Balés não eram
estruturados como uma coletânea de várias danças, ele
submeteu a virtuosidade às necessidades da obra na sua
integralidade. Além disso, foi Noverre quem liberou a dança da
sua dependência da música. Portanto, a ideia de uma
dramaturgia da dança sempre existiu e, na história da dança, na
maior parte dos casos, o coreógrafo é o próprio dramaturgo. O
coreógrafo em colaboração com o dramaturgo e uma criação é
um fenômeno novo que surgiu em meados da década de 1980
143

entre a coreógrafa Pina Bausch e o dramaturgo Raimund


Hoghe. Desde então, tem havido um número crescente de
coreógrafos que escolheram ou foram aconselhados a trabalhar
em colaboração com um dramaturgo. A dramaturgia se tornou
uma prática consciente, inclusive em alguns países como
Bélgica e Holanda, onde o financiamento para uma criação de
dança está vinculado à participação de um dramaturgo no
processo de criação. “A dramaturgia é uma consciência e uma
prática” (DORT, 1997).
Dramaturgia na dança, por se tratar de um conceito
relativamente novo e por sua definição estar vinculada
principalmente com a prática e consequentemente relaciona-se
com o processo de composição, é portanto, um conceito que se
aplica à prática do fazer dança. Por um lado sobre a função e
tarefas do dramaturgo (ou seja, quais são as suas/seus métodos,
materiais, responsabilidades, etc.) existe uma sensação de
instabilidade e intriga sobre a paisagem de dança. Para
deLahunta (2000), muitas questões surgem a partir do esforço
de compreender o que é a dramaturga na dança.

As perguntas são muitas. Quem está qualificado


para desempenhar este papel e por quê? Qual é
o impacto sobre o que e como coreógrafo faz?
É interferência ou intrusão ou está preenchendo
onde um espaço que está com algum tipo de
defasagem? Será que realiza uma necessidade
para o mercado de dança? É o dramaturgo um
tradutor, interrogador, um provador, intérprete
ou provocador? Será que a função dramaturgia
funciona como suporte no ato solitário do
coreógrafo ou será que divide o corpo do
coreógrafo em dois? (2000, p. 25).

O que chama atenção sobre tais questões é que,


aparentemente, algumas competências do coreógrafo passam a
ser compartilhadas com o dramaturgo. Além disso, na maior
parte dos casos o coreógrafo é o próprio dramaturgo, o que
144

acontece também de este papel ser compartilhado em processos


nos quais os bailarinos são responsáveis por parte do material
desenvolvido. A dramaturgia na dança se relaciona com a
noção de processo, em que os materiais escolhidos para
trabalhar podem vir de origens diversas, tais como: textos,
imagens, movimentos, filmes, objetos e ideias. A decisão, por
exemplo, de um coreógrafo de seleção dos bailarinos que irão
integrar o elenco de um espetáculo, não deixa de ser parte do
processo de dramaturgia. Entende-se que, na dança, o corpo é
um fator determinante da dramaturgia, pois certo corpo define,
em termos de corporeidade, a dança que ali se produz. Sendo
assim, a dramaturgia é o que pensa o corpo e o que o designa
como sendo o lugar de emergência do sentido.
Apesar do entrelaçamento de sentidos, um corpo
singular excede o espaço e o tempo do campo cênico. Ele
desvenda e se dá e se retoma num movimento, revela e esconde
sua importância. O corpo, com sua história única, nos assegura
que o encadeamento de sentido não é uma simples exposição
semântica; pelo contrário, enuncia e reflete o indivíduo, enfim,
que é um “eu” que dança e não um “não importa quem”, como
define Charlotte Dubray (1999) em seu depoimento no Dossier
Danse et Dramaturgie.
Em sua qualidade física o corpo é dotado de
morfologia, de peso, de plasticidade, de mobilidade, de
volume. Matéria, forma, o corpo é fisicalidade, é energia, é
fluxo de vitalidade, é individuação. Interessa-me como
coreógrafa pensar em um corpo que na dança prioriza a
descontinuidade, a assimetria, a dança eleva os membros do
corpo acima da sua totalidade constitutiva. Renunciar ao corpo
ideal, ou mais ainda, ao se festejar a diversidade de corpos, de
técnicas e de culturas, o singular surge como aspecto
diferenciador. Nessa relação, elementos como peso, carga, dor
e violência se antepõem a harmonia, tão preciosa à tradição da
dança. “O corpo é exposto como sua própria mensagem e ao
145

mesmo tempo como um elemento profundamente estranho a si


mesmo” (LEHMANN, 2007, p. 340).
Ao trabalhar com diferentes materiais, durante o
processo de criação, podemos perceber como estes se
transformam e se reorganizam para se desenvolver e aos
poucos, quase sempre no final desse processo, surge
lentamente um pensamento, um conceito ou uma estrutura. No
entanto, essa estrutura não necessariamente é totalmente
conhecida desde o início, insisto que geralmente não é. A
dramaturgia na dança trabalha com movimentos e sons dos
quais não se pode suspeitar a significação, pois esta é a maneira
de se entender que o corpo na dança já carrega significados,
além do potencial das diversas variações gestuais possíveis do
mecanismo corporal articulado.
Assim, a dramaturgia sempre tem relação com uma
estrutura. Trata-se de controlar e refletir sobre o todo e as
partes, com as tensões e mecanismos de relacionamento e
deslocamentos e sobreposições, trata-se de composição. A
dramaturgia, como define Kerkhov (1997) em depoimento para
o Dossier Danse et Dramaturgie, “é o que faz respirar o todo”.
Uma estrutura pode ser portadora de emoção e de significação,
mas não no mesmo sentido que as palavras, uma vez que a
narrativa lhe é estranha. Na dança, a lógica de construção de
sentido até pode tentar ser narrativa, porém é uma qualidade
que lhe escapa.
A dramaturgia é o que ordena a cena em fases de
intensidade e que define zonas de apreensão ou de precisão em
relação às questões escolhidas para se trabalhar; é o fio
condutor e ao longo da obra permeia essa questão e suas
derivações. Portanto, antes, é o que fixa as estruturas parciais e,
consequentemente, as estruturas globais. Ao insistir no
processo de compreender como a lógica interna sobre a qual a
articulação do todo se desenvolve, em como está imbricada
com o tempo, o tempo de digestão, a articulação e
desdobramento, mas também o tempo que continua em fases,
146

que vai e que vem, que permanece como a experiência que


gruda no corpo, o espetáculo é uma combinação tanto do
material como de uma paisagem conceitual. “A lógica interna e
o lugar do sentido são temporários e instáveis, nunca se
cristalizam como uma obra fixa e ideal” (PEETERS, 2010, p.
20).
Uma questão aberta é a chave para a leitura e para a
seleção, articulação e desenvolvimento de materiais; porém, a
dramaturgia está relacionada à pesquisa temática que exige,
sim, um tema, um conceito. Pistas de leitura podem ser em
parte intrínsecas ao material, mas mesmo assim serão
combinados com os interesses temáticos e formais do processo.
Por isso, o material também possui autonomia própria, o que
nos dá, talvez, dicas sobre o que é peculiar à forma como dança
e coreografia pode funcionar dramaturgicamente. A palavra
“material” não corresponde à construção de um argumento,
mas é o que constitui a dramaturgia. É o conceito
compartilhado como um amálgama das imagens ou
movimentos específicos. Reconhecer a potência dos materiais e
criar técnicas e procedimentos que os tornam dispositivos para
a construção das cenas é parte do processo de dramaturgia.
Um trabalho de dança quando se apresenta ao
espectador é um evento social, no qual a imaginação e a
produção de sentido estão em processo de se tornar, porém sem
nunca chegar a um estado acabado. A responsabilidade
compartilhada torna este um empreendimento coletivo e
constituído das múltiplas visões que existe na colaboração. E
tudo isso faz com que o espectador ativo seja co-produtor, que
faz acordos com o mundo do sentido ao assumir a sua parte de
responsabilidade, ao invés de passivamente desfrutar de um
espetáculo ideal.
Aqui vale voltar à concepção de sentido para Deleuze
(1969) que toca num ponto que talvez seja um dos mais
notáveis no deslocamento operado por ele: emancipar o sentido
das dimensões estritamente linguísticas do enunciado. O
147

sentido aparece como uma dimensão do enunciado que não


está restrita à linguagem. Ele define o sentido como uma
“tênue película no limite das coisas e das palavras” (1969, p.
34). É um efeito que se produz na fronteira dos estados de
coisas e das proposições, na fronteira dos corpos e das
palavras. No caso, aqui, se estamos nos referindo à dança,
substitui-se a ideia de palavra por movimento? Ou configura-se
como uma metáfora para o todo na dança, movimento, corpo e
elementos cênicos, pois o que resulta desta combinação é a
dança em si. Portanto, esse efeito é expresso pela linguagem,
no enunciado, e se atribui aos corpos, mas não se confunde
nem com o enunciado e nem com os estados de coisas. O
sentido insiste nas palavras, mas se refere às coisas – é a ponte
que liga a linguagem e os corpos.
O sentido é, então, uma ponte, uma fronteira, pois ele
não seria explicável apenas nessa dinâmica de representação da
linguagem. Entre linguagem e estados de coisas é preciso haver
algo que desencadeie essa relação a “acontecer”. Ou seja, se o
sentido é a fronteira, é porque é essencial que algo aconteça
para que as coisas se colem e façam sentido em uma
determinada cena, ou que a dança faça sentido no corpo de
quem a faz (o coreógrafo e bailarinos) e de quem a assista
(espectador) simultaneamente. Todavia, o lugar de quem a faz
não está separado de quem a assiste, pois ao mesmo tempo em
que se faz se assiste e ao mesmo tempo em que se assiste se
faz. A construção do sentido requer também uma performance
e, por isso mesmo, é uma atividade criadora e é desencadeada a
partir do afecto.
Como uma dança afeta um corpo? Como uma imagem
que se apresenta pode nos fazer chorar, pode nos fazer sorrir,
pode nos deixar reflexivos ou incomodados? Cada espetáculo
trabalha diferentes gatilhos na percepção que irá desencadear a
construção do sentido. Como a imagem da dança, o movimento
dançado, ou ainda a cena de um trabalho de dança tem esse
poder de mudar o estado de um corpo e fazê-lo mudar de
148

estado? O sentido, nesse contexto, é a inevitável intromissão da


linguagem na sensação para produzir afecto. Em que posição se
encontra o coreógrafo?
Como o coreógrafo vive um processo de criação, há em
seu desempenho uma mistura entre elementos de ordem
linguística e outros de outras tantas naturezas: sensação,
história, memória, hábito, ritmo, som, relações cotidianas,
paisagens, imagens, cultura, formação, etc. E há o quanto o
efeito da performance do corpo que cria e o sentido que ela
produzirá dependem do cruzamento dessas coisas todas, que
são de naturezas diversas. O sentido é construído a partir de um
conjunto de aspectos, no qual a dança não se desgruda de
vários outros elementos que, junto com elas, constituem uma
enunciação. Ou seja, o sentido passa pela linguagem, mas não
está restrito a ela. O sentido é o nó, o entrelaçamento da cena
com aquilo que não é cena.
A discussão que se constrói aqui é a de um sentido que
é liberto da ordem do discurso. No entanto, ele não existe sem
a linguagem e a linguagem não existe sem ele. Como visto
anteriormente, a dança como linguagem é uma metáfora, a
dança se abstém das regras da linguagem. A questão é que o
sentido da dança não se restringe a ela. O sentido passa pela
linguagem, ou ainda: ele a torna possível. Afirma Deleuze
(1969): “instalamo-nos logo, de saída em pleno sentido. O
sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as
designações possíveis e mesmo para pensar suas condições”
(1969, p. 31). Portanto, o sentido é a condição de toda
linguagem, ainda que de uma natureza diferente da dela, de
uma natureza evanescente, quase inapreensível, incorporal,
como ele afirma em diversas passagens no livro Lógica do
Sentido (2009).
Para Deleuze (2009), sentido não equivale a
significado, uma distinção importante de ser remarcada uma
vez que, no senso comum, tendemos a igualar sentido e
significado/significação que cotidianamente nos soam como
149

sinônimos. O conceito de significado é de ordem estritamente


linguística, diz respeito ao código e a uma convenção, sem a
qual não participo ativamente de um idioma. Precisaríamos de
algum tradutor se alguém tentasse manter uma conversa num
idioma que desconhecemos, como o russo. O tradutor, como
bom conhecedor dos significados desses sons, traduz essa
sequência de sons encadeados que passam a significar algo. Na
tentativa de ler um texto em russo, como não conheço as
significações e os códigos do idioma, ele não passa de tinta
sobre papel, um desenho que não produz significados para
mim.
O sentido, no entanto, é uma espécie de “amálgama”
que liga a imagem – seus significados e designações – ao meu
corpo. Sentido é o que faz com que o texto deixe de ser apenas
tinta sobre papel e se transforme em discurso, permitindo isso
que entendemos por função representativa da linguagem.
Aparentemente entramos aqui num campo um pouco
mais fluído, menos palpável do que aquele das formas e
funções definidas, dos objetos formados, das palavras
constituídas, dos corpos, da materialidade das coisas, dos
significados. Estamos num campo de forças. E a força é o quê?
É algo que atua e que sabemos que existe, mas que não
podemos propriamente pegar com as mãos, nem ver; podemos
apenas captar o efeito de uma força. A força da gravidade, por
exemplo. Ela está presente, mas como podemos pegá-la?
Podemos apenas tentar demonstrá-la a partir de seus efeitos.
Quando ela não atua, sabemos que os corpos flutuam. A força é
algo de certo modo incorporal, incorpóreo, mas ela se atribui
aos corpos. É nos corpos que se consegue notar o efeito de uma
força. A impulsão, a retração, o peso, a gravidade, a pressão. A
força é o que confere movimento aos corpos. Como
poderíamos pegar o movimento?
Para Deleuze, o conceito de sentido se aproxima muito
desse campo de forças e daquilo que move os corpos. Também
se refere a um plano que não é o da representação, no qual já
150

temos formas e funções definidas, sujeitos, objetos,


significados, significantes. No livro Lógica do Sentido (2009),
Deleuze trabalha circulando na ideia de que o sentido aparece
como um efeito incorporal, algo mais próximo da natureza das
forças. É dos estoicos que Deleuze constrói a ideia de um efeito
de ordem incorporal. Este efeito incorporal se dá nos corpos, se
atribui a eles, mas não se localiza nem neles nem na
linguagem. Como vimos, o sentido é essa fronteira, essa ponte
que liga palavras e coisas, uma “tênue película”, um “vapor
incorporal” que se eleva das palavras (2009, p. 6). O sentido
como incorpóreo extrapola o plano de representação da
linguagem. Ele insiste no enunciado, mas não está apenas nele,
ele se atribui às coisas, mas também não se localiza nelas, pois
ele é uma força.
De todas essas ideias, acho que vale assinalar uma,
principalmente porque se relaciona com certo hábito que
criamos. Uma espécie de hábito da significação e também um
hábito da nomeação e da tradução que se relaciona com o
problema da representação. Fazemos parte de uma cultura que
se habituou à ideia de que podemos traduzir quase tudo por
palavras, de que podemos nomear qualquer coisa, explicar e
encapsular qualquer fenômeno na linguagem. Estamos
acostumados a tomar como sinônimos os conceitos de sentido e
de significação, e mesmo achar que o sentido se restringe aos
significados do que dizemos.
Acredito, depois de me familiarizar com os escritos de
Deleuze, Foucault e outros autores, que o sentido seja algo um
pouco mais fluído e indomável. Talvez até seja de uma
natureza um pouco mais impalpável, menos controlável, menos
pura do que gostaríamos. Fez sentido a alguns pensadores,
como Nietzsche, Foucault e Deleuze, para ficar naqueles
citados aqui, voltar o olhar para esse lado da arte que nos
escapa facilmente quando caímos em velhos hábitos de
interpretação e encontrar novas performances como artistas e
151

como espectadores, e ainda, como ativamente encontrar novas


formas de olhar/fazer a arte.
Como coreógrafa em cada processo de montagem ou
em cada evento coreográfico que faço parte importa pensar em
como se dá a construção de sentido na forma que vamos dando
ao material que emerge no processo. Para tanto, o olhar sobre o
que produzimos ou como eu agenciadora de afectos estimulo as
situações de criação sempre ressoam as questões que
problematizamos. Se partirmos de um conceito, de uma
sensação, ou ainda da relação entre elementos quaisquer,
procuro destrinchar, multifacetar, calcular intuitivamente todas
as possibilidades cabíveis de olhar para aquilo. Reviramos do
avesso, exageramos, contrastamos, dividimos elevamos para a
sensação ou racionalizamos, dependendo da forma que emerge.
Criamos situações em que o território se define como sendo
daquele conceito, ou daquela sensação. Sempre que
adentramos um processo de criação nos abrimos para como
este território pode ser incorporado. Portanto, a dramaturgia
como prática passa a ser orientada pelo corpo que se apropria e
incorpora o ambiente em que nós criamos. Um
ambiente/território inventado e incorporado e que é a dança
que constrói sentidos.

4.3 EM QUE ESTADO A DANÇA SE APRESENTA A


MIM E AFETA A MINHA IMAGINAÇÃO

A dança trabalha com todos os meios de construção de


sentido, tais como a palavra, a imagem, a narrativa ou o gesto
nele mesmo. O que dá o sentido, ou o que trabalha na dança o
sentido, é a integração destes elementos. Por essa razão, o
sentido está na própria dança, na imanência do sentido na
dança dos corpos. O movimento no corpo de um bailarino está
encarnado de sentido que se dissolve e se desmancha, o
movimento aparece como pura sinestesia do verbal, ou seja,
152

“transforma as palavras e os gestos articulados pela linguagem


do sentido agudo pelo movimento” (GIL, 2005, p. 79).
O gesto comum torna-se sentido, está na maneira de
construção e organização da dança que opera como um sistema
de apropriação que encarna o sentido, o que a diverge, por
exemplo, da linguagem verbal. Portanto, é através da
modulação das intensidades de energia que a dança não
exprime ou representa o sentido, ela é o sentido. “A dança é
radicalmente caracterizada por aquilo que se aplicam ao teatro
pós-dramático em geral: ela não formula sentido, mas articula
energia; não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo
nela é gesto” (LEHMANN, 2007. p. 339). Este pensamento
não nos reporta para um sistema de signos, cada gesto se
encontra ligado a um sentido. Para Gil, a dança pode exprimir
a infinidade do sentido e da experiência humana e, ao fazê-lo,
recorre a um número infinito de gestos que se constroem a
partir de um número limitado de movimentos.
Utilizando um termo mais apropriado e empregado por
Gil, gramática semântica – a palavra “gramática” serve
também como analogia – dentro de uma zona híbrida de
sentido que tende a se significar em signos, e onde os quase
signos se apagam para deixar transpassar o sentido. Portanto, a
dança não se organiza a partir de regras de disposição dos
signos, mas de acordo com a modulação de energia que, por
sua vez, irá regular a formação de sentido. “O corpo dançado
torna-se sistema em que a quase-articulação sintática se resolve
numa gramática semântica. Esta gramática tem como léxico
micro-unidades gestuais indefinidas e como sintaxe trajetos de
energia” (GIL, 2005, p. 77).
Segundo Sparshot (1995), para a dança ser a versão de
um original, o original deveria conter todos os sentidos que a
dança carrega. A dança é dançada, a sua natureza não é
codificada por uma linguagem prévia ou por códigos prévios já
existentes. O que a dança faz é intensificar a manipulação e
fragmentação do vocabulário, reforçando o potencial das
153

inúmeras possibilidades de gestuais no mecanismo corporal


articulado.
Pode-se afirmar que as notações de dança não
representam a dança como ela acontece. O mais conhecido dos
sistemas de notação, por exemplo, é o Sistema Laban de
Notação do Movimento, o Labanotation que se originou das
pesquisas de movimento realizadas por Rudolf Laban no
período entre as duas grandes guerras mundiais do século XX.
O Labanotation é sistematicamente aplicável ao movimento,
portanto, sua aplicabilidade é evidência de uma estrutura pré-
existente, possível de se codificar e, de alguma forma, inerente
ao próprio movimento. O movimento tem lógica própria, a
linguagem natural da dança brota do próprio movimento, da
sintaxe física, da intenção do movimento e da forma que a
intenção toma. A dança é algo que quem dança o faz, portanto
não é uma abstração. O que se apresenta esta lá, é corpo.
Ao buscar refletir sobre a dança que se apresenta a
mim, durante os ensaios e em cada apresentação do Ronda
Grupo, encontro articulações entre recepção e composição.
Faço isso para tentar nomear e, então, encontrar de que maneira
integro a prática enquanto criadora de um processo de
composição e, por mais que tento me desvincular deste papel, a
de espectadora (que observa) de uma dança que deixa de ser
própria e da articulação que consequentemente acontece na
produção de algo que escapa ao controle, porque a forma de
trabalho propõe justamente criar campos de potência.
Processo de territorialização e desterritorialização.
Porém, primeiramente se trata da maneira com que desloco o
olhar para um lugar de espectadora, para então voltar a
encontrar o lugar de criação. Digamos que esse deslocamento
acontece centenas de vezes durante um processo de montagem
e circulação de cada espetáculo que me envolvo como
coreógrafa. Interessa-me passear por esses lugares de
espectadora e criadora, porém, sem separá-los totalmente. Para
154

Jerzy Grotowski, diretor de teatro polonês, o trabalho do


diretor é o de um “espectador de profissão”:

É evidente para mim que o trabalho do diretor é


ser espectador de profissão. É um ofício muito
preciso. Porque, por exemplo, certos grandes
atores são péssimos diretores – no sentido do
trabalho com os outros atores, não da
encenação espetacular? Isso acontece porque a
relação do ator com o espectador é bem
específica. O ator não é espectador e o trabalho
do diretor é ser espectador (2001, p. 212).

Para refletir sobre esse lugar de ativador/observador e


descobrir o olhar que desvelo sobre a dança que produzo, é
fundamental construir uma lógica que venha a ser encarnada na
atuação como coreógrafa e que se baseia na forma como
trabalho. Que olhar é esse exigido pela dança? Com que
particularidade e em que detalhes esse olhar se fixa? Como
acontece a construção de sentido e como se dá o
desenvolvimento da dramaturgia?
Enfim, a dança que se produz nesse início do século
XXI exige outros olhares e é preciso ter em conta que, somente
suspendendo a pergunta pela intencionalidade, somente
desprendendo-se do “querer dizer” de cada ação contemplada,
é que será possível recuperar a multiplicidade de uma
experiência cênica que transborda rizomaticamente, para
empregar uma expressão deleuziana, toda possível percepção
que é frequentada pelo conhecimento virtual, resultante da
acumulação memorial do corpo.
Tecer a compreensão e, afirma-se, não o entendimento,
sobre dança, é definitivamente construir o delicado equilíbrio
entre o polo do encadeamento e da simultaneidade no olhar
sobre a dança. Recepção, de acordo com Zunthor, é um termo
de compreensão histórica que implica numa duração que pode
ser longa ou não, que se identifica com a existência real de um
texto no corpo do artista e do espectador. A performance, na
155

recepção, mede a extensão corporal e espacial na qual a obra é


conhecida e em que produziu efeitos.
A dança, conforme visto anteriormente, é um sistema
não codificável. Assim, a resposta do artista e do espectador
não pode ser analisada, unicamente, dentro de uma
decodificação parcial, mesmo que alguns códigos sejam
reconhecidos durante a execução da coreografia, códigos estes
operados por uma lógica própria ou desenvolvidos durante a
montagem do espetáculo, também seguindo um
direcionamento dado pela dramaturgia. Portanto, é muitas
vezes parte da estrutura definir a maneira como estes códigos
são organizados.
Num primeiro momento, gostaria de esclarecer que este
estudo não abrange todas as formas de dança. Não nego a
existência de outros critérios poéticos, porém é a perspectiva da
dança contemporânea que se faz refletir neste estudo. Não é um
novo olhar, pois os autores aqui discutidos trazem, em alguns
casos, referências a formas antigas de recepção; portanto, é
evidenciar esse tipo de olhar, ou chamar a atenção sobre alguns
aspectos de como ele acontece. Incluo aqui alguns conceitos
discutidos por Schechner, como o termo “conduta restaurada”,
ou sobre a ideia de performance do espectador que Paul
Zunthor (2007) esclarece em seu livro Performance, Recepção
e Leitura, a fim de melhor fundamentar esta reflexão.
Performance é um termo de compreensão antropológica
relativo às condições de expressão e da percepção. Por outro
lado, “Performance designa um ato de comunicação como tal;
refere-se a um momento tomado como presente. A palavra
implica participantes de maneira imediata. A Performance faz
o que autores alemães, a propósito da recepção chamam de
concretização” (ZUNTHOR, 2007, p. 30).
Para Zunthor, o espectador realiza a performance da
recepção, o que implica na ideia de que o corpo existe como
relação e que a todo instante ele é recriado, reorganizado, pois
novas relações se sucedem, do eu ao ser físico, é portanto que
156

estas modificações aconteçam da ordem do pessoal. Essa noção


de performance diz respeito aos elementos que se cristalizam
em torno da lembrança de uma presença, sendo que é por meio
das vias concretas de percepção e do desencadeamento de
estados psíquicos que o corpo mergulha na energia poética.
A performance no espectador, por exemplo, é o
momento privilegiado em que a obra é realmente recebida.
Wolfgang Iser (1999) parte da ideia de que a maneira como um
texto literário é lido lhe confere seu estatuto estético. Dessa
forma, a leitura se define, ao mesmo tempo, como absorção e
criação e é um processo de trocas dinâmicas que constituem a
obra na consciência do leitor. É a partir de um “horizonte de
expectativa”, termo empregado por Hans Robert Jauss (1982,
p. 39), acordo que desencadeia o surgimento de um sentido
apropriável ao espectador e à concretização que introduz na
ordem sensorial os efeitos semânticos. Só então a
transformação do espectador se manifesta como uma vibração
pura.
Esta ideia de vibração pura remete à ideia de vitalidade
no contexto de criação, ou de potência. Ademais, como define
Zunthor, existe uma condição necessária à emergência de uma
teatralidade performancial, ou seja, a identificação de outro
espaço, do espaço onde a obra se instala e da percepção de uma
alteridade espacial marcando a obra. Isso implica numa ruptura
com o “real” ambiente, uma fissura pela qual se introduz essa
alteridade.
A tomada de posse cognitiva no momento de criação
para a dança tem o processo de reconhecimento superado pelo
contínuo jogo de associações. Situa-se normalmente no não
ordenamento lógico de construção de sentido e mais, impele o
artista para fora das vias habituais de percepção. Há um
desencadeamento do rastreamento de conexões que trabalha
conjuntamente com a livre associação, a concentração e o
desvendamento de pistas oferecidas e, através da experiência,
surgem texturas de percepção, à medida que os sentidos
157

respondem aos estímulos. A experiência corpórea sensorial, ao


mesmo tempo, procura acumular conscientemente associações
que são conectoras, tanto na eliminação, no reconhecimento, na
decepção e na redescoberta.
A decomposição das densidades e texturas atua na
percepção e na maneira como os procedimentos são orientados
como desencadeadores de camadas de sentido. Assim, as
texturas que surgem, segundo Lehmann, são “como tecido, de
fios, por isso a significação de todos os elementos individuais
depende, no final das contas da ‘Iluminação geral’, em vez de
ser produzida como que por adição” (LEHMANN, 2008, p.
145). A percepção sobre a obra se torna profundamente mais
presença do que uma representação. Além de suscitar a
presença, acontece como um evento ou uma ocasião em que a
experiência é partilhada, mais do que algo a ser comunicado.
Mais importante aqui é o processo, não tanto o resultado, que
se torna manifestação em detrimento da significação; o
palpável é a energia e não a informação.
A compreensão em relação ao que se cria nesse jogo de
colaboração não acontece imediatamente e também não é uma
compreensão racional. Na maior parte dos casos, a dança exige
um tempo de assimilação no qual as vias de percepção
permanecem abertas para que as conexões e correspondências
se manifestem e, aos poucos, o sentido se incorpora também
como conhecimento apreendido. Os sentidos, na dança, ficam
em suspenso para que a qualquer momento sejam iluminados.
Por assim dizer as associações são conectadas na relação entre
tempo e construção de sentido, nesta via de criação também é o
mesmo.
Observamos no cotidiano o bombardeio de imagens e
informações, e a dança muitas vezes trabalha com a recusa
dessa lógica da extravagância e superabundância de signos.
Nesse viés, muitos artistas trabalham com a economia de
informação através da repetição e duração da imagem. Esse
tempo muitas vezes dilatado provoca no espectador a atividade,
158

com base numa matéria-prima exígua, a ausência, a redução e o


vazio; de acordo com Lehmann, é o que fundamenta o teatro
ativador. O processo de conceber o tempo e o ritmo das cenas
muitas vezes é um jogo que o coreógrafo ou diretor propõe ao
espectador para desafiar o lugar que ocupa, desvirtuando
posições, provocando reações, instigando um olhar que
transborda o racional em que as relações se constroem por
associações.
Outro aspecto relevante é como o corpo é o
protagonista da cena, não como portador de sentido, mas como
sua constituição física e a gesticulação e movimentação, uma
corporeidade exposta em suas intensidades gestuais em toda
sua potencialidade, na presença cênica e em suas tensões é o
“corpo absoluto”31, termo emprestado de Banes. O corpo não
expõe nada além dele mesmo, nega a significação e a
destituição de sentidos que se revelam como, por assim dizer,
um pesado fardo que devolve a uma significação a toda
existência.

É pelo corpo que o sentido é aí percebido. O


mundo tal como existe fora de mim não é em si
mesmo intocável, ele é sempre, de maneira
primordial, da ordem do sensível: do visível, do
audível, do tangível. O mundo que me significa
o texto poético é necessariamente dessa ordem;
ele é muito mais que o objeto de um discurso
informativo (ZUNTHOR, 2007, p. 78).

A multiplicidade de signos e de informações, muitas


vezes nas obras de foco múltiplo, requer a atenção ao mesmo
tempo tanto no particular quanto no todo. Consequentemente,
esse tipo de estrutura cria uma percepção de caráter
fragmentário expressamente consciente que ao mesmo tempo é
negada ao espectador. Por exemplo: a condição de ser

31
Termo problematizado por Sally Banes em seu livro Greenwich Village
1963: Avant-garde, performance e o corpo efervescente (1999).
159

orientado e encaminhado através da obra, exigindo que o


espectador faça suas próprias escolhas quanto ao ordenamento
do material, as associações e imagens que lhe surgem. É nesse
momento que o conhecimento, o reconhecimento e as
associações acontecem pelo corpo, ademais é conhecimento do
corpo.
O que seria então, para este contexto, o conhecimento
do corpo? O que trabalha no corpo a arte? É afetar e afetar-se,
reside na troca, nessa via de duas mãos, mas que pode ter
várias bifurcações porque é relacional. Como no jogo de
espelhos em que nem sempre o que se vê é dado a ser visto, ou
que se vê não é o que foi mostrado, porém está transformado,
deformado ou disfarçado. Nesse sentido, interessam-me as
provocações e estímulos que tencionam problematizar como o
coreógrafo relaciona-se com a própria dança, de que maneira
ele possui certo controle sobre o que se produz. Afetar é um
conceito chave nessas relações, não necessariamente para
responder a essa questão, mas sim, como uma tentativa de
construir um percurso capaz de acompanhar os caminhos que
percorro ao criar dança.
Derivado do latim affectus, afecto é frequentemente,
mas não exclusivamente, usado como sinônimo de paixão,
sentimento, humor, sentimento ou emoção. A maior parte da
discussão sobre afecto na teoria da mídia e estética gira em
torno de questões de produção e transmissão de afecto. Como
pode (e como deve) a arte produzir e transmitir afecto? Qual é
a relação entre a mídia e a produção de afecto? Devido à
amplitude das derivações que esse conceito sugere nos meios
de forma geral, este estudo vai se concentrar em uma das
tradições especialmente influentes no entendimento sobre o
conceito que aponta para a concepção de afecto que insiste na
inter-relação entre afecto e cognição.
Spinoza, sobre a origem e a natureza dos afectos, define
no livro A Ética: “Por afecto compreendo as afecções do corpo,
pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
160

estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas


afecções” (2007, p.166). Sobre essa linha melódica de variação
contínua constituída pelo afecto, Spinoza irá determinar dois
polos, alegria-tristeza, para ele as paixões fundamentais.
A tristeza será toda paixão, não importa qual, que
envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a alegria
será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de
agir. A potência de agir para Spinoza é como as ideias afetam
um corpo. Por exemplo, quando caminho na rua e vejo uma
criança segurando balões coloridos flutuando, isto me afeta de
forma a aumentar a minha potência de agir, porque gosto de
balões, ou da imagem que compõe a criança com os balões
flutuando em um céu azul com nuvens. Logo mais em minha
caminhada encontro um monte de lixo espalhado pelo chão, o
que por sua vez diminui a minha potência de agir porque me
desagrada o lixo no chão, ou o que o lixo no chão desencadeia
em termos de pensamento crítico em relação a como o lixo foi
parar ali. Como a experiência de caminhar na rua pode
estimular um estado de um corpo sofrendo a ação de outro
corpo (no caso a criança e os balões ou o lixo), a isso Spinoza
define como afecção.
Apesar de sentimento e afecto serem rotineiramente
usados como sinônimos, é importante ressaltar que afecto,
sentimentos e emoções tem diferentes significados. Massumi
(2002) explica que afecto não é um sentimento pessoal.
Sentimentos são pessoais e biográficos, emoções são sociais, e
afecto é pré-pessoal. O sentimento é uma sensação que foi
verificada em relação às experiências anteriores e nomeada. É
pessoal e biográfica, porque cada indivíduo possui um conjunto
distinto de sensações anteriores que servem como base ao
interpretar e identificar seus sentimentos. Uma criança não
experimenta sentimentos, porque carece de linguagem e de
biografia. No entanto, quase todos os pais irão afirmar
inequivocamente que o seu filho tem sentimentos e os expressa
regularmente.
161

Uma emoção é a projeção ou exibição de um


sentimento. Ao contrário de sentimentos, a demonstração de
emoção pode ser verdadeira ou dissimulada. Nós transmitimos
emoção para o mundo que por ocasião é uma expressão de
nosso estado interno e, outras vezes, ele é planejado a fim de
satisfazer as expectativas e condutas sociais. Crianças exibem
emoções, embora não possuam ainda as habilidades de
linguagem e nem uma biografia para experimentá-las como
sentimentos. As emoções de um bebê são expressões diretas de
afecto.
Afecto é uma experiência não consciente de
intensidade, é um momento de potencial sem forma e não
estruturado. Dos três termos – sentimento, emoção e afecto –
afecto é o mais abstrato pelo fato de que não pode ser
inteiramente realizado na linguagem e porque acontece a priori
ou fora da consciência (MASSUMI, 2002). Afecto é a maneira
do corpo se preparar para a ação em uma determinada
circunstância, adicionando uma dimensão quantitativa de
intensidade para a qualidade de uma experiência. O corpo tem
uma gramática própria, que não pode ser totalmente capturado
pela linguagem, pois “não apenas absorve pulsos ou estímulos
discretos; ele desdobra contextos, desdobra volições e
cognições que não são nada se não situados” (MASSUMI,
2002, p. 30).
Segundo Massumi (2002, p. 29), afecto sempre precede
a vontade e a consciência, afeto é intensidade, é puro potencial.
Para Silvan Tompkins (1995), afecto tem o poder de
influenciar a consciência, amplificando a consciência de nosso
estado biológico. Sem afecto os sentimentos não “sentem”,
pois não há intensidade, e sem sentimentos a tomada de
decisão racional torna-se problemática (DAMÁSIO, 1994, p.
204). Em suma, afecto desempenha um papel importante na
determinação da relação entre os corpos, o meio ambiente e
outros, bem como a experiência subjetiva que
sentimos/pensamos como afecto se dissolve em experiência.
162

Toda a atividade humana, incluindo a cognição, produz


e é produzida por afecto que, por sua vez, conecta o desejo com
a razão. A linguagem, portanto, assume uma poderosa cadência
quando comunica uma emoção profundamente sentida.
Nietzsche utiliza afecto como uma base para sensação em seu
entendimento sobre o eterno retorno e o desejo de poder. A
linguagem, realmente, é poderosa quando combinada com as
formas na qual as repetições do tempo e das energias do desejo
conduzem a vida de um indivíduo. Henri Bergson, no livro
Matéria e Memória (1999), relaciona afecto com as
concepções de “durre” e de “elan vital”, nas quais a linguagem
está impregnada de diversas nuances sutis na continuidade do
tempo, da memória e da criatividade, que por si constituem-se
de poder. Ele define afecto como “a parte ou aspecto do
interior de nossos corpos que se mistura com a imagem de
organismos externos” (1999, p. 59). Essa “parte ou aspecto” é
necessariamente produzido por qualquer percepção e, portanto,
para Bergson, “não há percepção sem afecto” (1999, p. 60).
Em O que é Filosofia (1991), Deleuze e Guatarri
trabalham a concepção de afecto no desenvolvimento do
sentido da estética, em que a arte é “Um bloco de sensações,
isto é, um composto de perceptos e afectos” (1991, p. 213).
Aqui, o afecto é encarnado e ligado com a consciência. Para os
autores, o artista pode e deve inventar novos afectos: “Um
grande romancista é, antes de tudo, um artista que inventa
afectos não conhecidos ou desconhecidos, e os faz vir à luz do
dia, como o devir de seus personagens” (1991, p. 226).
Gilles Deleuze nos mostra que o afecto não é a
descoberta de um a priori que já estava lá, mas sim, a produção
de um novo a priori ou de uma forma de sensibilidade, um
encontro entre dois corpos e como estes se afetam. A chave
aqui diz respeito às três sínteses do tempo que representam o
movimento que sai da sensibilidade para a memória do
pensamento. A síntese passiva nos dirige da imaginação para a
representação, as duas primeiras sínteses não necessariamente
163

requerem a representação de um objeto. A representação ou


conhecimento sobre um objeto transforma a síntese passiva em
síntese ativa. A primeira síntese apreende o que foi dada na
sensibilidade pela imaginação. A segunda síntese reproduz a
primeira e memoriza o que foi dado em sensibilidade. A
terceira síntese passiva reconhece a primeira e a segunda
síntese ou o que foi apreendido e reproduz em pensamento. O
que acontece é a dinâmica da criação da imaginação para a
memória e pensamento. Estes novos a priori são então
produzidos a partir dessas sínteses passivas. É por isso que são
tanto artísticos como são formas de sensibilidade.
Por que chamar essas formas de sensibilidade a priori?
Utilizando o exemplo que Deleuze propõe, considere a
diferença entre a minha percepção de uma maçã e uma forma
de sensibilidade. No primeiro caso, eu simplesmente reproduzo
a minha imagem da maçã na memória quando me lembro dela.
Com uma forma genuína de sensibilidade, no entanto, sou
capaz de manipular a estrutura da intuição em todos os tipos de
formas, atraindo mais inferências a partir da estrutura
independente da experiência. Isso é o mesmo que se faz na
topologia da matemática quando imaginamos uma figura
geométrica sofrer variações. A estrutura que emerge através da
atividade de síntese tem sua própria lógica ou campo de
infinitas possibilidades que podem ser exploradas no
pensamento, independente da experiência. Há uma estrutura
para a forma de sensibilidade que abre um campo de
inferências a priori.
Quando Deleuze reflete sobre a obra de um artista são
essas formas de a priori que ele está explorando. Quando ele
afirma que o artista inventa afectos e perceptos, não faz
referência a uma percepção ou uma afeição, mas sim, sobre
algo que precede qualquer afecto ou percepto e que as
estrutura. O que ele investiga é a maneira como essas formas
são desdobradas em todo o corpo da obra de um artista. Pode-
se dizer que ele está investigando a “estrutura profunda” da
164

obra do artista, com a ressalva que estas estruturas são o


resultado de uma gênese ou invenção.
Voltando ao tema da síntese, Deleuze observa no início
de Diferença e Repetição (2006) que aprendemos a nadar por
conjugar os pontos singulares do nosso corpo com os pontos
singulares da onda. Os pontos singulares do corpo e da onda
são sintetizados em conjunto para aprender a nadar, formando
o que Deleuze se refere como uma ideia ou multiplicidade.
Aqui, a ideia seria a capacidade de afetar, ou ato de ser afetado.
Essas ideias ou multiplicidades são estruturas que, por sua vez,
podem ser manipuladas ou variadas, como no caso da topologia
da matemática. O que emerge da ideia ou do afecto pode-se
jogar, variando, agindo de maneiras diferentes, produzindo
formas de atividade que, em primeiro lugar, não foram eles
mesmos assimilados com a experiência, para depois encontrar
novas variações no ambiente que não foram anteriormente
encontradas em termos de estrutura ou de ideia.
Para Deleuze, aprender não significa que reconhecemos
(a maçã, por exemplo) o que havíamos percebido antes, mas é
desenvolver o afecto que é uma forma de sensibilidade em
meio às estruturas de como nós vivenciamos um ambiente e
que age (afeta) na maneira que somos capazes de estar nesse
meio. Deleuze afirma, por exemplo, que o artista não
representa, mas sim, cria novas formas de sentimento e
experiência. Não é só a arte que trabalha em si a
desterritorialização, mas também tem a possibilidade de
desterritorializar o espectador através de uma espécie de
“migração” do afecto, ou seja, o afecto a ser internalizado e
explorado/vivido pelo espectador.
A imaginação com a função de criar sistemas e de
encontraras variações para o que já está no mundo é um
conceito que atravessa este percurso que elaboro como um
aspecto que serve para pensarmos em como lidar e dar
tratamento para as imagens que povoam o imaginário do
artista. Interessa revisar esse conceito e incorporá-lo na leitura
165

da pesquisa como um conceito-chave no desenvolvimento de


técnicas e procedimentos de criação, na qual a percepção de
mundo se conecta com o fazer dança.
Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim
imago-ginis. A palavra imagem significa a representação de
um objeto ou a reprodução mental de uma sensação na
ausência da causa que a produziu. Essa representação mental,
consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças
e percepções passadas e passíveis de serem modificadas por
novas experiências. Para Durand, o imaginário é o “conjunto
das imagens e das relações de imagens que constitui o capital
pensado, o grande e fundamental denominador onde se
encaixam todos os procedimentos do pensamento humano”
(1997, p. 14).
Deleuze, contrapondo estas ideias, lança suas dúvidas
sobre o imaginário. É útil considerar, inicialmente, seu
pensamento a respeito da imagem no cinema, a imagem-
movimento. Para ele, as coisas mesmas são imagens e estas não
estão no cérebro; o cérebro é uma imagem entre outras.
Imagens, coisas e movimento não se diferenciam. Ele remete
este pensamento a Bergson de que o cinema é como produtor
de uma identidade entre movimento e tempo, esse tempo como
sendo a coexistência de todos os níveis de duração. É o tempo
do cinema moderno que, rompendo com a narração, “expõe
situações sensório-motoras” (DELEUZE, 1995, p. 73). Essas
situações estão calcadas sobre a imagem, que está
permanentemente em relação com outras imagens.
No cinema, a imagem compõe mais do que algo visível,
assim como um diagrama, porque há o que ver na imagem e o
que está além da imagem. A imagem se torna, então,
pensamento. O olho faz parte da imagem, é a visibilidade dela,
e o cinema é produtor de realidade. Aqui, ele compara a
narração no cinema com o imaginário, os dois aparecendo
como uma consequência muito indireta, que decorre do
movimento e do tempo, não o inverso. Tal relação faz mais
166

clara posição de Deleuze sobre o imaginário, quando ele diz


que essa é uma noção imprecisa (1992, p. 88). Ele percebe uma
relação entre imagem e conceito quando sugere que as ideias se
realizam ora em um, ora em outro. O signo é que efetua a ideia
e as imagens no cinema são, para ele, signos que não se
definem por representar universalmente, mas pelas suas
singularidades internas.
Quando se refere ao imaginário, Deleuze recusa
atribuir-lhe irrealidade, mas o vê como um conjunto de trocas
entre uma imagem real e uma virtual, como uma
indiscernibilidade entre o atual e o virtual. Ir além do
imaginário se daria em direção a um tempo puro, dissociado do
movimento, só possível como imagem-cristal, imagem-tempo.
O cinema atinge a imagem-tempo. O imaginário seria a
potência do falso e o tempo substituiria o verdadeiro pela
potência do devir. Para Massumi (2002), a imaginação é o
mútuo embaralhamento entre pensamento e sensação quando
estes se dão antes da atualização, fora de qualquer sentido
dado.

A imaginação é o modo de pensamento mais


precisamente adequado para a imprecisão do
virtual. Só a imaginação gerencia o diagrama
sem estilizá-lo. Imaginação também pode ser
intuição: um sentimento de pensamento. Não
sentindo alguma coisa. Sentindo o pensamento
- como tal, em seu movimento, como processo,
na chegada, ainda impensado - fora e não
expressado, pos-instrumental e pré-operacional
(MASSUMI, 2002, p. 134).

Uma característica que Deleuze aponta em seus estudos


sobre Hume, no livro Empirismo e Subjetividade (2001), é que
o objeto não é o fundamento da experiência, “mas produzido
no nível da prática, como um efeito de síntese” (1991, p. 92).
Mente, bem como a matéria, é um atributo da vida e não uma
substância separada da qual o mundo é o pensamento. O
167

cérebro se conecta com outras partes do corpo e com o mundo


e forma imagens/percepções. Uma dessas imagens é a da
mente. O seu estatuto de fundação é apenas uma ilusão e que
responde a uma ontologia relacional: algo está ou consegue ser
apenas como resposta. Existem termos reais, “mente” por um
lado e “mundo” por outro, o que cria potencial para a relação.
As relações, segundo Deleuze são mais bem descritas como
“imagens”.
Imaginação, Deleuze sugere, é uma síntese do tempo, e
sua leitura de Hume resultou na ideia de que com base na
diferença que a mente chama de repetição (o eu é este desenho
de diferença), a imaginação antecipa e cria o futuro. A
fabulação seria, então, essa expressão narrativa de tendência
criadora de vida para produzir imagens e futuros. As imagens
em movimento e as pessoas podem ser descritas como
articulando sobre como se pode libertá-los de depositar em
imagens e representações, isto é, se a decodificação pode
ocorrer. Fabulação, na apropriação de Deleuze do conceito e
acrescentando-lhe uma dimensão política, exerce também o
poder de nos libertar dos limites do presente. Imaginação é o
modo de pensamento que representa uma pequena crise na
tentativa de a uma teoria disjuntiva das faculdades e como
temos de lidar com o poder do pensamento, e não como um
poder de representação da razão, mas como um poder inventivo
apresentando imagens de um mundo por vir.
A imaginação transgride, assim, a unidade da razão
num salto que brota da experiência sensível. “A imaginação
não organiza a nossa experiência, mas vai além dela, desafia
seus limites atuais” (COLEBROOK, 2002, p. 81). Deleuze
encontra na imaginação mais precisamente o que parece
apontar para uma faculdade, que nos faz verdadeiramente
criativos, movendo-nos para além dos limites atuais. Afecto
tem essa função, produz suspensão, como uma pausa na qual
estamos ligados na nossa receptividade, sem quebra, de modo
que a capacidade de influenciar os outros aumenta. Vamos
168

chamar esse tempo de tempo da paixão. A imaginação então


desempenha um papel crucial em provocar esse tempo de
paixão. Na arte, a Fabulação é descrita por Bogue como uma
criatividade que:

[...] cumpre suas extremidades, criando ficções


alucinatórias - vivas, assombrando imagens que
imitam percepção e induzem a ação, e, assim,
neutralizam as operações de julgamento e
razão. Fabulação, então emerge no choque de
um evento, um momento vertiginoso de
desorientação em que as imagens ignoram a
razão e trabalham diretamente sobre os sentidos
para induzir a ação (2006, p. 207).

Para Deleuze (1995), a função fabulativa é a função


adequada para a arte, que projeta as imagens no mundo tão
intensas que estas assumem “vida própria” (p. 264). Fabulação
é sentida visceralmente, as intensidades são registradas à
medida que são movidas em suspense. A receptividade que está
na capacidade de poder de ser afetado e a espontaneidade da
capacidade do poder de afetar (DELEUZE, 1988, p. 71). A
imaginação é fundamental nessa relação, uma vez que é o que
cria a ruptura com a continuidade da razão que, por sua vez,
fornece material para a fabulação. Compreendo que encontrar
maneiras de produzir afectos e perceptos, como artista é
mover-se entre possibilidades do sensível ao projetar imagens
do mundo de forma que estas criem vida própria. Desvendar e
descobrir, inventar e realizar são ações que trazem para o
trabalho do coreógrafo basicamente as funções de composição.
Ao pensarmos sobre o trabalho do coreógrafo sob a luz dos
conceitos de afecto, imaginação e sentido, como visto até aqui,
pode-se definir o coreografo como agenciador de afectos e
ativador da imaginação.
169

5 MAPA DE POSSIBILIDADES NA PERSPECTIVA


DO COREÓGRAFO

Coreografia é manifesto, é imagem,


é sensação, é corpo imóvel, é objeto
em movimento, é relação.
Coreografia é encontro, é repetição,
é diálogo, é confusão, é boneco que
dança, é corpo em transe, é
negociação.
Coreografia são penas flutuando, é
tijolo voando, é folha amassada, é
bolha de sabão, é aviãozinho de
papel, é escorregar e beijar.
Coreografia é chuva molhando, é
areia escorrendo, é menina no
balanço, é homem pulando, é fuga
pela lateral.
Coreografia é andar de patins, é cair
sempre no mesmo lugar, é farinha
pelo chão, é imagem parada, é
acumulação.
Coreografia é tempo vazio, é
desconforto do nada, é ritmo
marcado, é pulsação, é letra de
música, é luz na cara, é escuridão.
Coreografia é corpo se atirando, é
corpo desaparecendo, é corpo em
pedaço, é corpo sem pernas, é corpo
instrução, é manipulação.
Coreografia é jogar tênis, é se
beijar, é bela adormecida, é salto de
bruços, é giro de cabeça, é deitar se
levantando, é fazer escolhas.
Coreografia é brincar de boneca, é
passar por cima da cabeça, é deitar
e rolar, é fazer de conta, é virar de
costas, é dizer não, é solucionar.
Coreografia é criar um lugar, é se
esconder, é negar um corpo, é
inventar outro corpo, é sentir o
170

tempo passando, é fazer o tempo


passar.
Coreografia é pular de quatro, é
correr pra não chegar, é procurar e
não achar, é imagem grudada, é
tudo ou nada, é sentar e... olhar.
Coreografia é se agarrar, é se
abraçar, é rejeitar, é trocar de lugar,
é dar um chute, é pausar, é mover
apenas os braços, é controlar.
Coreografia é negar, é afirmar, é
resgatar, é escutar pelas costas,
ficar nas pontas dos pés, é não se
mexer, é seguir o outro, é jogar.
Coreografia é contrapor, é
contrastar, é sincronizar, é se
conectar, é se contagiar, é não se
deixar levar, é contar estória, é não
querer dizer nada, é mostrar.

5.1 COREOGRAFIA E COREÓGRAFO

No momento em que a ações que envolvem um


processo de composição em dança são disparados existem
possibilidades diversas para o encaminhamento que irá ser
dado. Porém, é de extrema importância levar em conta que
qualquer decisão emergente leva a uma possibilidade
concrescente, ou talvez seja apropriado dizer que as cartas
foram lançadas. Um plano de orquestração pode indicar uma
multiplicidade de possibilidades e maneiras de ser realizado.
Assim como, múltiplas perspectivas de olhar o mundo são
relacionadas com a maneira de estar no mundo. Interrogar e
problematizar são parte do trabalho do coreógrafo. Coreografia
e coreógrafo são conceitos que necessitam de atualização e
importa aqui pensar nesta rede de ações para situar o lugar de
que faço parte. Principalmente para problematizar a função que
ocupo enquanto artista e acima de tudo para desafiar os modos
e procedimentos que passam a acomodar-se. Portanto é de certa
171

forma para sacudir hábitos e transpor barreiras, é


desterritorializar e refletir sobre as técnicas e dispositivos que
se desdobram nos processos colaborativos que ao longo de uma
trajetória como artista coleciono. Para isso, irei fazer um
mapeamento de como o conceito de coreógrafo e coreografia
se configuram a partir das transformações que fizeram com que
as funções e noções de dança se modificaram.
O termo coreografia engloba uma série de atividades e
descreve diversos fenômenos na sociedade contemporânea.
Coreografia é o movimento de coletivos de animais como os
pássaros e os peixes, ou a movimentação de tropas das forças
armadas, ou ainda, o fluxo coordenado do tráfico nas estradas
que sugere a ideia de um plano de orquestração de corpos em
movimento. O que diferencia os planos de orquestração,
aplicados em campos distintos em diversos fenômenos, está na
raiz da forma de implementação e das habilidades necessárias
para a sua execução. Quais são as regras de organização do
plano de orquestração da movimentação de tropas militares na
Praça das Armas em Lima no Peru, que acontece todos os dias
em determinada hora, e como ela se diferencia, por exemplo,
da movimentação do voo de bandos de pássaros? O que se
aplica à estruturação de movimento em diversas ocasiões, no
entanto, exige certa ordenação, um tipo de organização que
regula como os corpos se movem no espaço ou o que rege
aquele evento como uma ocorrência.
O termo coreografia e, consequentemente, a função do
coreógrafo, passaram por transformações ao longo dos séculos
XX e XXI, principalmente quanto às técnicas de composição e
proliferação de metodologias e da diversidade no que diz
respeito às formulações e orquestrações na criação de dança.
As técnicas que foram desenvolvidas ao longo do século XX
embaralharam a noção de dança e as novas corporalidades
foram trabalhadas. Como processos de invenção e descoberta, a
função de cada artista envolvido nos processos de criação e
sistematização foi também se modificando ao longo deste
172

período. Como não podia ser diferente, a função do coreógrafo


sofre profunda reestruturação e o que lhe é exigido como
competência artística profissional muitas vezes coloca seu
papel em crise. Tampouco existe uma concepção absoluta em
termos de metodologias de trabalho ou do que constitui
exatamente a função do coreógrafo ou do que é uma
coreografia. O que existe é uma diversidade de maneiras de
conceber uma dança e, consequentemente, o que faz o
coreógrafo em cada processo de trabalho. Portanto, a partir
desse ponto, o foco deste trabalho intencionalmente trilha um
emaranhado de suposições em volta da minha experiência
prática, de forma que ilustra processos de montagem de dois
espetáculos do Ronda Grupo, Socorro (2008) e Lugar nenhum
(2010). Estes espetáculos exemplificam duas concepções
inteiramente distintas, no entanto são dois processos que
utilizam a improvisação de forma colaborativa na criação da
cena.
Um termo que pode ser substituído pelo de coreógrafo é
o de diretor, por exemplo, ou ainda de coordenador ou
organizador de uma dança. Porém, acredito que os termos se
modificaram e as técnicas e procedimentos que foram
inventados e sistematizados imprimem uma necessidade de nos
fazer olhar para a dança como um fenômeno dinâmico, em
constante transformação. Os conceitos pedem atualizações.
Para Deleuze, a repetição deixa de ser repetição e é diferença
quando outro conceito é criado. Portanto por mais que a dança
tenha se modificado e incorporado elementos de campos
distintos, ainda é dança. Problematizo aqui trabalhos que ainda
obedecem a certos princípios e critérios da dança ou, se
quisermos encontrar desdobramentos de um conceito, é
possível apontar outras possibilidades, ou “compossibilidades”
(MANNING, 2013).
A palavra coreografia deriva de duas palavras gregas:
choreia, síntese da dança, ritmo e a harmonia vocal que se
manifesta do Chorus Grego; e graph, o ato de escrever. O
173

primeiro uso do termo, no entanto, coincide com outras duas


raízes gregas: orches, o lugar entre o palco e a plateia onde o
chorus atua; e chord, uma noção mais geral de espaço.
Enquanto choreia descreve um processo de integração do
movimento, ritmo e voz, ambos os termos orches e choreia
nomeiam lugares e sempre foram associados à dança.
O termo coreografia, segundo Foster (2011) e Paixão
(2003), é relacionado à dança pela primeira vez em 1700, na
corte de Luís XIV, para definir um sistema de signos gráficos,
notação da dança capaz de transpor para o papel o repertório de
movimentos do balé daquela época. O sistema de Feuillet,
como ficou conhecido, foi um instrumento de reprodução em
larga escala das danças criadas pela corte francesa. Raoul
Feuillet é responsável e lembrado pela divulgação do sistema
de notação gráfica de coreografia, desenvolvido por Pierre
Beauchamp na obra Chorégraphie, ou l'art de d'écrire la
danse (1701)32, um manual que detalha um sistema de notação
que revolucionou o mundo da dança.

32
Veja mais em: [http://publicdomainreview.org/2012/05/01/choregraphie-
1701/#sthash.ma4LJkil]. Acesso em: 06/07/2014.
174

Figura 1 – Chorégraphie, ou l'art de d'écrire la danse


Fonte: [http://publicdomainreview.org/2012/05/01/choregraphie-

1701/#sthash.ma4LJkil].
175

Figura 2 – Chorégraphie, ou l'art de d'écrire la danse

Fonte: [http://publicdomainreview.org/2012/05/01/choregraphie-
1701/#sthash.ma4LJkil].
176

O sistema de notação indica o posicionamento dos pés e


seis movimentos básicos da perna: plié, releveé, sauté,
cabriolé, tombé e glissé. Mudanças de direção do corpo e
inúmeras posições e movimentos das pernas e braços também
são parte do sistema, baseado em desenhos de zonas que
traçam o padrão da dança. Além disso, as linhas de barra na
pontuação da dança correspondem às linhas de barra na
partitura musical. Sinais escritos sobre o lado direito ou
esquerdo da zona do desenho indicam os passos. Voltaire
classificou a invenção como uma das “realizações do seu
tempo” e Denis Diderot dedicou dez páginas ao assunto em seu
Encylopdédie. O livro foi traduzido para o Inglês por John
Weaver em 1706 sob o título Orchesography, Or The Art of
dance. A obra se tornou muito influente, sendo precursora do
processo de teorização da dança francesa.
O leitor do manual, ciente do mecanismo de “leitura”
(tradução dos signos gráficos em movimentos), era capaz de
reconstituir as danças realizadas por corpos da nobreza e por
ilustres bailarinos da Academia Real de Balé. Como uma
máquina de fazer cópias de danças, a Chorégraphie, ou l'art de
d'écrire la danse se espalhou pela Europa, sendo traduzida
para o inglês, alemão, espanhol, italiano e português. Durante
vinte e dois anos, Feuillet, em parceria com seu discípulo
Dezais, publicou cerca de trinta coleções de danças, cada uma
com até cinco danças; estas, somadas a publicações feitas por
diversos outros autores, elevam muito esse número.
O sistema notacional veio a ser conhecido
como Notação Beauchamp-Feuillet. Ao registrar repertório e
padrões de movimento, o sistema acabou por imprimir certos
critérios de execução no corpo treinado a adquirir um nível
técnico apurado e preciso. Essa característica das
consequências deixadas pelo fenômeno da notação e da sua
abrangente disseminação, principalmente na Europa, propicia
que os padrões e vocabulários de movimento sejam até certo
ponto codificados e nomeados. Paulo Paixão (2003) discute
177

essa ideia quando afirma que a codificação se deu porque a


escrita da dança não permitiu outra possibilidade senão a de
que os movimentos fossem reproduzíveis. Tal aspecto criou
uma forma para o movimento com ênfase na reprodutibilidade
daqueles movimentos, o que possibilitou a sobrevivência do
sistema.

A utilização do corpo na dança como elemento


retórico, um longo processo de codificação de
movimentos culminado com a
institucionalização de um léxico próprio como
base para a criação das danças, a facilidade com
que se aprendia o método coreografia e o
constante diálogo estabelecido pelo autor com
seus leitores, através dos prefácios de seus
livros foram alguns elementos e referências
presentes naquele ambiente, ofereceram
condições propicias para a implementação e
sobrevivência desse sistema por mais de um
século (PAIXÃO, 2003).

Portanto, o conceito coreografia surgiu a partir do


fenômeno da notação em dança que distinguia o fazer a dança,
o executar a dança e o aprender a dançar. Os critérios utilizados
como forma de generalização foram estabelecidos para as
habilidades técnicas e o virtuosismo na dança.
Consequentemente, o termo desenvolveu as bases para a
categorização e compartimentação de danças feitas no mundo.
O coreógrafo passa a ser o profissional que possui habilidades
para desencadear um processo de criação da dança.
Segundo Susan Foster (2011), os termos “coreografia” e
“coreógrafo” foram provisoriamente omitidos no século XIX.
A principal razão disso é o fato de que o status de “maitre de
balé” e depois o de “maitre de danse” criou uma relação entre
o fazer, ensinar e criar que era o que ditava a regra no meio da
dança naquele período. No século XX, o termo “coreografia”
foi resgatado e se tornou presente nos discursos de criadores,
178

críticos e teóricos como um processo individual de expressão


por meio do movimento. Desde então, a noção de coreografia e
a função do coreógrafo vêm sendo desafiados, transformados e
expandidos. Sua aplicação como conceito continua a
estabelecer tipologias de danças com valor artístico e social.
A partir do século XX, o termo coreografia se propaga e
sugere um novo uso ao nomear especificamente o ato de fazer
dança. Esse fenômeno coincide com o surgimento de um novo
gênero denominado “dança moderna”. Inicialmente, o termo
não estava vinculado a esse movimento da dança e sim às
inovações introduzidas no balé por Nijinski e Fokine nos Balés
Russos, quando a companhia se apresentou na Europa, Estados
Unidos e América do Sul. Nijinski, em suas obras para os
Balés Russos, inspirou o uso do termo coreografia para
denominar novas combinações, ou um novo tipo de
organização, nas sequências coreográficas que utilizavam
movimentos conhecidos do balé misturados a movimentos de
outras fontes. Logo, sua aplicação ou matriz ainda se
relacionava com o mundo do balé, mas instituiu uma nova
maneira de organização incorporando movimentos que não
faziam parte do repertório do balé.
Para Foster (2011, p. 44), coreógrafos como Nijinski
que integraram movimentos do balé com material de outras
fontes, como a exemplo de movimentos provenientes da
cultura oriental, se diferem do trabalho da coreógrafa Ruth St.
Dennis que se caracterizou mais pela assimilação de formas e
movimentações de novas matrizes de movimento. Por essa
razão, suas danças, naquele período, não obtiveram crédito de
inovação. O termo coreografia, originalmente aliado ao
“maitre de danse”, identifica um trabalho que inovou dentro
do sistema do Balé e ressurgiu, revigorando sua conexão com o
mesmo, especificando uma nova função.
Por volta de 1920, os termos “coreografia” e
“coreógrafo” abrangem um uso mais amplo ao definir as
contribuições do movimento orquestrado e organizado em uma
179

grande variedade de gêneros. Desse contexto fazem parte os


musicais e os termos aparecem frequentemente em críticas de
jornais e nos programas dos espetáculos. Coreografia e
coreógrafo passam a especificar o processo singular através do
qual um artista arranja e inventa modos do corpo se mover no
espaço. Além disso, propõem moldar emoção e movimento
como um pensamento que seguiu os moldes da dança moderna.
O alargamento dessas noções é consequência também
do surgimento de uma nova pedagogia de dança educação
introduzida nas universidades nos Estados Unidos. Margareth
H’Doubler, membro docente do departamento de Educação
Física Feminina na Universidade de Wisconsin, foi admitida
nessa universidade para desenvolver um curso em Estudos da
Dança em 1917. Ela defendia que a dança é uma forma de
tradução da experiência emocional individual em relação à
subjetividade de cada artista ou bailarino. H’Doubler criou um
currículo para o curso cujo objetivo principal foi desenvolver a
capacidade de resposta do corpo como um mecanismo físico
que poderia ser manipulado. Ela desenvolveu uma pedagogia
que buscou ampliar a compreensão do corpo como um suporte
técnico fundamental para a possibilidade de traduzir o
sentimento na dança e, ainda, para potencializar a propensão
deste deslocamento para o movimento dançado.
H’Doubler frequentemente trabalhou com seus alunos
propostas que iriam justamente desenvolver e explorar estas
possibilidades de ampliar a compreensão da experiência
emocional ao traduzi-las para o movimento. Algumas dessas
propostas consistiam em improvisações com os olhos vendados
para explorar movimentos das articulações baseados nos
estudos da estrutura óssea. Sua abordagem foi baseada em dar
espaço ao impulso para a criação dos próprios movimentos
pelo bailarino, como outra possibilidade em relação à noção de
execução de movimentos de um professor ou coreógrafo.
Propiciar esse espaço de criação cria um caminho para o
bailarino produzir e é uma maneira de desenvolver a
180

compreensão do fazer dança. Além disso, ela acreditava que


cada indivíduo, nesse tipo de formação, é habilitado a
conscientemente investigar os impulsos próprios que o levam a
se mover e quais as propensões anatômicas que o direcionam a
realizar esses impulsos. Tais ideias estão na base do
entendimento sobre o próprio corpo que implica na
possibilidade de avaliação inteligente para a aplicação de força
e esforço.
Foster (2011) argumenta que duas linhas distintas se
configuram a partir da pesquisa de H’Doubler. A primeira
tradição vem da linhagem de Raoul Feuillet e das
consequências da disseminação do método de notação em
dança; a segunda linha parte da abordagem de H’Doubler, uma
iniciativa que ampliou as probabilidades para a criação de
outras formas de dança. Na segunda linha, a relação entre ideia
e ação informou todo um repertório de investigação e o
potencial para essas questões abriu caminho para novas
formulações que, por sinal, são as bases para uma pedagogia
que por décadas ocupou e, ainda informa, um espaço
importante na maneira como a dança foi pensada desde então.
Estas duas linhagens diferem na sua relação com a
consciência sinestésica do que propulsiona o movimento e na
forma de concepção de material e sequências de movimento. A
ênfase dada à execução de um movimento com forma já
apresentada trabalha muito mais a consciência sobre a forma
do corpo no espaço do que sobre a consciência interna e da
criação do movimento a partir de impulsos internos. Dessa
maneira, desenvolve um modo distinto de consciência que Gil
(2003) define como “consciência do corpo”. Um exemplo claro
disso é o uso do espelho tanto em aulas como em processos de
ensaio. Na relação com o espelho o bailarino desenvolve um
olhar externo o que imprime um foco na forma do corpo, pois o
olhar é exterior e a consciência, portanto, está na forma. Já
quando não há o espelho existe outro olhar interno sobre o
corpo, e as sensações e impulsos que geram o movimento estão
181

mais em evidência; consequentemente, a consciência está no


corpo.
Em 1956, o Bennington College no estado de Vermont
nos Estados Unidos acrescentou um programa em coreografia
como um curso independente, dirigido a alunos de nível
avançado. Nesse curso, cada aluno apresentava duas
composições e, de certa forma, esse sistema de uma escola para
coreógrafos reafirma a concepção de que compor não é uma
atividade que pode ser trabalhada por qualquer estudante. O
enfoque do curso era dimensionar o processo e personalizar as
composições que evidenciava o indivíduo como o originador
do movimento, como autor do processo criativo e como o
artesão do desenvolvimento da obra.
Nesse sistema, a coreografia é o resultado do processo
criativo e concebida como propriedade do artista, não mais
uma organização de passos e movimentos compartilhados por
um coletivo de artistas, como era o caso no sistema de notação
de Feuillet. A figura do coreógrafo adquire um novo status: é
ele que sintetiza o conhecimento de composição com uma
visão inspiradamente singular, que replica e reforça a
concepção de uma dança que funde questões pessoais e
universais. Essa noção relaciona a figura do coreógrafo como o
autor da dança e se diferencia de várias práticas ao redor do
mundo em que geralmente a dança possui caráter coletivo e
tampouco se identifica a pessoa do criador, como é o caso das
danças indianas ou ainda nas danças folclóricas.
Vários dos artistas coreógrafos da dança moderna,
como Ruth St. Dennis e Martha Graham emprestavam
extensivamente material de diversas formas folclóricas dos
nativos americanos e dos povos orientais. Pela originalidade,
foram aclamados por terem desenvolvido vocabulários próprios
e novos, nos quais a articulação dos movimentos emprestados,
integrados a vocabulários aprendidos ou próprios, fez surgir
novos padrões e gramáticas singulares. É também um esforço
que acontece por meio de sistematização de procedimentos que
182

foi se construindo durante a trajetória artística destes


coreógrafos. Percebe-se que, além do comprometimento do
coreógrafo, existe um corpo de pessoas e artistas da dança que
fazem parte desse processo e que de certa forma são afetados e
afetam a forma como o sistema é articulado e construído, a
exemplo de Martha Graham, Doris Humphey, Erick Hawkings,
Jose Limon e outros.
Segundo Susan Foster (2011, p. 57), muitos artistas
foram, até certo ponto, se especializar nas danças tradicionais
do mundo ao estudar e experimentar essas formas de
movimento e foram denominados artistas “etnológicos”. Uma
das características que os diferenciam é justamente a reflexão
sobre essas formas de dança como danças imutáveis e
praticadas por pessoas de todas as classes, de um lugar
específico e de uma raça. É justamente o que distingue essas
formas da forma do balé, um produto originado de uma elite
internacional; e também, até certo ponto, as distingue da dança
moderna, reconhecida como o produto da genialidade de
alguns artistas e, dessa forma, também fruto de uma elite de
criadores. O que importa é como foram originadas e,
logicamente, entende-se que a disseminação destes sistemas –
Balé e dança moderna – foi amplamente democratizada no
mundo em escolas, academias, instituições públicas e
universidades.
Por volta dos anos 1950 e 1960, nos Estados Unidos e
Europa, os termos “coreografia” e “coreógrafo” sofreram nova
transformação na natureza do processo de composição e
apresentação da dança. Tais mudanças ocorreram
principalmente pela proliferação de companhias de diferentes
partes do mundo que participavam de festivais e concursos
internacionais. Fizeram parte desses circuitos companhias de
balé, grupos de danças folclóricas da Hungria, México e
Polônia e companhias de dança nacionais como do Senegal,
Marrocos e Guiné. A participação nesses eventos divulgou
amplamente a diplomacia cultural e estimulou o intercâmbio
183

cultural. Além disso, foi uma maneira de apresentar e expor ao


mundo a diversidade de formas e estilos de vida e suas
corporalidades. Acima de tudo, essas danças exemplificam
uma noção de coreografia que surge das tradições, passadas de
geração em geração. Geralmente esse trabalho de montagem e
criação constitui-se de formas coletivas de fazer dança e que
integram dança, música e costumes.
Nesse mesmo período, a parceria de Merce
Cunningham e John Cage criou novas relações entre música e
dança nos procedimentos de composição e na forma em que os
seus eventos se organizavam. Anna Halprin e Daniel Nagrin,
por sua vez, iniciaram um trabalho com improvisação que deu
continuidade aos procedimentos e à pedagogia de Margareth
H’Doubler, em que o material de cada interprete é aberto para
que em cada apresentação aconteciam resultados diferentes.
Neste processo, essa visão legitimou a ativa participação
criativa dos bailarinos e abriu a possibilidade para a ação
coletiva. Normalmente nesse sistema os responsáveis pela
coordenação do processo se autodenominaram diretores e não
coreógrafos.
No movimento da dança pós-moderna, os
experimentalistas do Judson Dance Theatre, através dos
processos coletivos de criação, voltaram seus interesses para as
atividades e movimentos do cotidiano e provocaram a
descentralização do modelo do artista como gênio autoral.
Novas técnicas e métodos de organização e criação no
desenvolvimento de material muitas vezes foram emprestadas
de outros meios artísticos como a escultura, o filme, o slide e a
palavra, elementos explorados numa variedade de recursos de
vocabulário de movimento. Como resultado das experiências
entre outros meios artísticos, o termo “coreógrafo” é
substituído por “concebido por”, “dirigido por” ou, ainda,
“organizado por”.
Para Foster (2011, p. 60), a descentralização e a
desmistificação do criador ou do coreógrafo resultaram num
184

novo status para o artista que passa a ser considerado como um


trabalhador, e o trabalho do coreógrafo como um ofício,
contrário à noção de um criador dirigido por uma inspiração
divina, uma visão muito comum principalmente até a primeira
metade do século XX. O termo “fazer dança” vem a significar
uma decisão de trabalho, de construção de padrões e
sequências de movimentos provenientes de modelos existentes
de atividades do cotidiano. O termo “coreógrafo” passa a
identificar o artista como trabalhador e um colaborador, sua
função está aliada ao processo no qual é realizado.
Um dos momentos mais importantes, relacionado à
transformação da noção de coreografia e uma iniciativa de
Merce Cunningham, se dá com o workshop de composição
dirigido por Robert Dunn, no qual produziu os concertos
apresentados pelos experimentalistas do Judson Church
Theater. Dunn elaborou vários exercícios para desenvolver e
criar material combinando o trabalho com partes do corpo,
duração, lugares no espaço, as direções do corpo em relação ao
espaço e outros estímulos como combinações entre movimento
e a palavra, conforme descrito no Segundo Capítulo deste
estudo.
Um dos critérios de discussão em relação às questões de
composição apresentadas pelos participantes dos workshops de
Robert Dunn foi distinguir entre avaliação e percepção. Sua
abordagem buscava eliminar ou dar menos importância ao
julgamento de valores para, assim, possibilitar a contemplação
das relações entre o processo composicional e os resultados
que possivelmente pudessem ocorrer. Dessa forma, tudo pode
ser ou pode gerar dança, abrindo espaço para a inovação,
principalmente porque não havia regras que não fossem
quebradas, formas que não fossem desconstruídas e lógicas que
não fossem desmanchadas. Dunn instigou, provocou e
desmanchou as noções sobre arte, composição e dança e seu
papel foi fundamental para incentivar a interdisciplinaridade
nas artes, além do fato de sempre haver reflexão sobre a
185

produção das danças criadas ali. “O que você viu o que você
fez, o que aconteceu, como é que você pensou na construção e
na ordenação. Quais são os materiais, quando você encontrou
ou como é que você deu forma a eles, etc.” (DUNN apud
FOSTER, 2011, p. 97).
Para os coreógrafos da vanguarda americana da década
de 1960, a técnica cultiva o potencial do corpo para articular e
demonstrar uma variedade de possibilidades do movimento.
Como consequência desse processo de articulação e
desarticulação, o coreógrafo não é mais o criador visionário de
uma dança; até mesmo no papel de diretor, tornou-se a pessoa
que organiza e preside sobre a colaboração. Contrários à ideia
de focar na criação de uma visão individual artista e singular,
ou ainda em criar metodologias rigorosas para inventar
sequências e gramáticas de movimento, os artistas
contemporâneos embarcaram em colaborações direcionadas
por projetos e por processos de criação coletiva. É comum que
cada projeto exija uma variedade de habilidades e repertórios
específicos de movimento ou de determinada técnica ou campo
artístico.
Na dança contemporânea, é comum que o coreógrafo
trabalhe com bailarinos provenientes de uma diversidade em
termos de cultura, formação e experiência. Percebe-se que a
experiência corporal desses artistas também engloba conjuntos
de habilidades de variadas técnicas, tais como: técnicas de
dança; técnicas circenses; técnicas de teatro; habilidades
específicas, como o skate; ginásticas; e danças populares,
incluindo o Hip Hop, salsa, danças de salão, etc. O que resulta
desta característica é que se formam grupos de bailarinos
heterogêneos. A dança contemporânea se inspira basicamente
por uma crescente consciência das diferenças e das qualidades
e deficiências de cada corpo, o que imprime a promoção de
uma afirmação não hierárquica das fisicalidades e sua
diversidade.
186

A improvisação, após entrar nos currículos de cursos de


formação de diferentes níveis, tanto nas academias, workshops,
cursos técnicos, no ambiente escolar e nas universidades, fez
com que gerações de bailarinos possuam a habilidade de
improvisar e de criar. Esse fato acabou por interferir na
estrutura das companhias e grupos de dança e na forma como
trabalham no processo de montagem e de criação. Esses
projetos de montagem passam a incorporar a possibilidade de
desenvolvimento de material por bailarinos supervisionados
pela figura do coreógrafo. Os níveis de controle sobre o
material desenvolvido variam amplamente. É fundamental
ressaltar que existem diversas maneiras de trabalho, porém,
definitivamente a improvisação afetou e imprimiu um novo
padrão “dinâmico relacional” (ARAÚJO, 2008, p. 88) no
ambiente de grupo ou de coletivos. O processo colaborativo
institui um modo de operação que emerge da pluralidade e da
multiplicidade como uma ecologia de criação.
Como parte desse aspecto, percebe-se na valorização
das diferenças que o interesse não é tanto pela forma de se
mover destes bailarinos ou na articulação física necessária para
executar as ações. O olhar se volta para as ressonâncias
culturais que essas ações evocam. Coreógrafos começam a se
perguntar como essas ações definem e significam identidade e
que tipo de millieu cultural esses corpos representam. Esses
corpos como transindividuação, como afirma Manning: “O
corpo como transindividuação, o corpo como materialidade
ressonante, o corpo como um campo metainstável antes de
tomar esta ou aquela forma. O corpo, sempre mais de um,
repleto com a força da vida” (2013, p. 30).
Pense neste corpo como transindividuação, como uma
ecologia de operações que atravessa a carne de sua matéria e a
ambientação de sua tomada múltipla de formas, sem nunca ser,
é um corpo devir. Agora pense em um evento coreográfico, em
que corpo e ambiente co-compõem, como um principio de
atividade potencial de uma força formativa. Para Manning
187

(2013), o evento coreográfico é como uma técnica que dá


suporte para repensarmos um processo criativo que aciona
todas as condições para sua emergência como evento. Porém,
isso depende de dar origem a uma constelação de movimentos
que irá reativar uma modalidade singular de encontro. As
noções de coreografia e coreógrafo nos últimos dez anos
abrangem uma gama de processos e formas diversificados e
refletem como cada um trabalha seu modo de olhar para o
mundo. Jonathan Burrows descreve o que é coreografia para
ele:

Coreografia pode ser sobre fazer escolhas,


inclusive a escolha de não fazer escolhas. Ou
talvez coreografia seja organizar objetos numa
certa ordem que faz com que o todo seja melhor
do que a soma das partes. Ou ainda, o sentido
ou a lógica que se chega quando se aproxima
algumas coisas entre si que se acumula em algo
que faz sentido para o publico. Esta alguma
coisa que se acumula parece inevitável, quase
indiscutível. O que se parece com uma estória,
mesmo quando nem sequer há estória (2010, p.
40).

Como conceitos, os termos “coreografia” e


“coreógrafo” abarcam muito mais os processos que
representam do que uma definição universal ou uma descrição
única e final. Para cada momento da história da dança, como
vimos anteriormente numa breve revisão dos termos, estes
encarnam aspectos das danças produzidas em cada período e ao
mesmo tempo dão forma às mesmas. O campo da dança, por se
tratar de um fenômeno que a cada momento sofre
transformações e reformulação, define múltiplas possibilidades
criativas para os termos “coreógrafo”, “coreografia” e “dança”;
sendo assim, estes termos estão permanentemente em processo
de atualização.
188

William Forsythe discute a noção de coreografia no


artigo Choreographic Objects:

Não há coreografia, ao menos não como deve


ser entendido como uma ocorrência singular
que representa um padrão universal para o
termo. [...} Coreografia é o termo que preside
uma classe de ideias: uma ideia é, talvez, neste
caso, um pensamento ou uma proposta a
respeito de um possível curso de ação. Proibir
ou restringir a substituição ou a mobilização
dos termos dentro desse domínio é contra-
intuitivo. A introdução e análise do efeito das
substituições terminológicas que revelam
facetas anteriormente invisíveis da prática é a
chave para o desenvolvimento de estratégias
processuais. Coreografia provoca ação sobre a
ação: um ambiente de regra gramatical regido
pela exceção, a contradição de uma prova
absolutamente visível de acordo com a
demonstração de seu próprio fracasso.
Encarnações múltiplas de coreografia é uma
ecologia perfeita de ideias-lógica, que não
insistem em um único caminho para formar-
pensamento e persistir na esperança de uma
existência sem duração (2012, p. 201).

Portanto, parto da ideia de que o coreógrafo e


coreografia são conceitos maleáveis e que funcionam mais no
sentido de caber na prática de certos artistas. É possível
inclusive afirmar que alguns desses artistas não
necessariamente vêm do campo da dança, o que é diferente da
noção de que existem procedimentos e formas de criação que
são determinados por estes conceitos. A influência para o fazer
dança alcança inúmeras probabilidades e sincronicidades
múltiplas, existem tantos processos quantos produtos. O
fundamental é que a forma que cada artista encontra para
produzir e para comunicar suas ideias e a articulação do
material coreográfico é resultado de uma teia de relações que
189

se constroem a partir de uma constelação mutável e dinâmica.


As situações que emergem de um processo geralmente dizem
respeito ao tempo em que ele acontece. Por mais que existam
elementos que estão dados, a forma como se organizam é do
momento.
Para Erin Manning (2013), “coreografia está em todos
os lugares” (p. 91). Isso diz respeito às formas de criação de
espaço relacionadas com o tipo de movimento que esta
arrumação irá imprimir. Por exemplo, a distribuição do
mobiliário em um cômodo que é pensado no conforto e no
prazer que aquele ambiente irá proporcionar envolve a “criação
de uma constelação de movimentos” (MANNING, 2013, p.
91). Ao mesmo tempo, esse ambiente convida para certos
padrões de movimento que surgem com a repetição que o
cotidiano provoca e que adquirem o status de hábitos. Para que
exista a possibilidade de encontrar a diferença no uso desse
mesmo espaço, é possível explorar outras formas de se mover
nele e de desconstruir hábitos. O que relaciona o corpo com o
meio são as ações que o espaço exige pela arquitetura do
espaço e que o corpo precisa realizar para se adaptar, o que
torna essa relação de natureza dinâmica. Arakawa e Gins
(2002, p. 51) propõem que a arquitetura não existe para quem a
habita, mas preferivelmente para o corpo-em-ação que a habita,
e o espaço arquitetônico não pode ser definido separadamente
das ações que compõem e vice-versa. Por essa razão há a
proposta de quebrar hábitos como forma de desafiar o
estabelecimento de sistemas (o que deve acontecer
frequentemente, porque somos impelidos a formar sistemas de
hábitos).
Coreografia pode ser pensada dentro dessa perspectiva.
Oportunidades criativas autônomas são mais prováveis de
acontecer quando se altera o uso entre os recursos utilizados no
fazer, como espaço e tempo. Desmanchar hábitos é
desconstruir lógicas, mesmo que a lógica seja desmanchar
hábitos. No caso da coreografia, existem alternativas múltiplas
190

que servem para refletir sobre essa questão. Por exemplo:


alterar e quebrar os hábitos por meio da forma de se mover,
pelas relações entre tempo e corpo, entre objeto e corpo, entre
movimento e não movimento, entre lugar e espaço atemporal,
entre imagem e desconforto, etc.
Manning (2013, p. 76) reflete sobre o conceito de
coreografia, não como um princípio de organização de corpos
pré-constituídos, mas sim, como uma técnica para acionar e
desencadear a modelagem expressiva de uma atividade
incipiente em direção à definição de um evento de movimento.
“Coreografia é um verbo – a atividade de organizar relações
entre corpos” (KLIEN, VALK e GORMLEY apud
MANNING, 2013, p. 76). Isso sugere que a coreografia
trabalha as relações entre corpos e que ela não se define como
uma prática feita pelo homem para o homem, mas sim, uma
prática que se fundamenta em como o evento por si próprio se
conecta com um “milieu relacional que excede o ser humano
ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
(MANNING, 2013, p. 76). Um evento coreográfico se constrói
a partir das relações que surgem entre todos os elementos que o
constituem; é, portanto no “entre”, como um campo de forças
que se conectam para dar sentido.

5.2 TÉCNICA E TECNICIDADE

Coreografia se relaciona com negociação e interfere


com um conjunto de forças para fazer com que um evento seja
colocado em movimento e que aconteça. Para que um evento
esteja sintonizado e que dispare, que aconteça, são necessárias
técnicas que podem ser desenvolvidas e geradas a partir de uma
série de dispositivos. De qualquer forma, para que o evento
coreográfico seja uma prática auto-generativa, devemos nos
perguntar como as regras e tarefas se tornaram proposicionais,
como que a ecologia se tornou mais do que um habilitador das
191

restrições que fez o evento entrar em movimento. Proposição,


para Whitehead (1967, p. 264), é quando é ativada a qualidade
que altera a maneira com que um corpo ecologia se move. A
técnica é o que permite com que a ecologia do movimento se
abra para um potencial generativo. Portanto, uma tarefa ou uma
restrição se torna proposição precisamente quando é capaz de
superar e ir além da técnica.
Mais do que o domínio da técnica em especial, é a
capacidade de transposição de um determinado tipo de
organização para outro que deve ser priorizado. Não mais a
técnica pela técnica, pelo domínio de um padrão de movimento
específico ou pela perfeição da forma, mas a técnica como
possibilidade de explorar a diversidade do movimento ou da
flexibilidade adaptativa a padrões pré-determinados, bem como
os diferentes contextos ou, ainda, desenvolver lógicas cada vez
mais inusitadas (inusitadas ao menos para aqueles indivíduos
envolvidos no processo).
O objeto técnico adquire dois estatutos: o primeiro é o
de ser suporte e símbolo da relação transindividual, uma vez
que traz consigo algo de quem o inventou, uma natureza
humana anterior à humanidade constituída no corpo. Ao inven-
tar, todo homem emprega uma dimensão pré-individual e
coletiva que, embora ligada a cada ser individual, não lhe
pertence. O segundo estatuto, destacado por Simondon (1989),
é o de portador e mensageiro de informação e sentido. Isso
implica em uma formulação anterior relativa à noção de
matéria: a de que a matéria informa, não só porque transmite e
veicula informação, mas porque a forma está presente na
própria matéria e decorre de sua tecnicidade, ou seja, de suas
propriedades, da natureza de seus elementos, como a
propriedade singular de ligação e conexão na improvisação de
grupo. Resulta que todo ato de invenção deixa de ser algo
abstrato, operação intelectual do homem ou formatação da
matéria pelo espírito/forma, para ser inserido em um regime de
virtualidades da própria matéria, entendido como o que há de
192

mais concreto, e como relação de agenciamento, acoplamento


ou composição entre duas formas.

Pense no corpo como uma ecologia de


operações que atravessa a carne de sua matéria
e a ambientalidade de sua forma múltipla. De
tal ambientalidade retenha a ideia de técnica.
Pense técnica não como um adendo para um
corpo em forma pré-existente, mas como um
processo de encarnar. Pense técnica como uma
in-formação de um corpo em mutação porque é
através dela que este corpo pré-articula novas
experiências. O corpo como um campo de
relações, em vez de estabilidade, como um
campo de força, em vez de simplesmente um
esquema acabado, como uma potencia de
existir no lugar de seguir um curso programado.
Pense em técnica como o modo através do qual
um corpo pode expressar alinhando nesta
expressão qualidades que encarnam (aspectos
de suas tendências motoras ou os aspectos de
sua matriz experimental existente). A ideia de
técnica não como algo que se soma a um corpo
pré-existente, mas como um processo de
incorporação (MANNING, 2013, p. 31).

O como usar a técnica é o como se apropriar do recurso,


é o pensamento que se atravessa e vai para o mundo. Uma
técnica é normalmente gerada de uma restrição de habilitação
que se abre como um processo para o seu potencial. Ao fazer
isso, inventa a própria duração. Uma atividade normalmente
vem com uma duração e coletividades emergentes que por si
resultam de atividades nascidas de técnicas. Para a concepção
do evento coreográfico, é mais interessante pensar em criar as
condições que animam o limiar de uma atividade potencial em
vez de definir as dimensões da própria atividade. Quando uma
atividade nasce da potencialização de uma técnica, ela traz
consigo tanto a técnica quanto a restrição de habilitação (em
potência), o que permite que, na melhor das condições, vá
193

evoluir para além da técnica, para o que Manning define como


tecnicidade (2013, p. 33).
Tecnicidade, portanto, é o processo que se estende além
da técnica, é o que se dá quando a técnica é superada e faz com
que o evento adquira qualidades próprias, é o campo onde, por
exemplo, o “movimento é dançado” (MANNING, 2013, p. 33).
A tecnicidade é o desdobramento da técnica quando esta
alcança um lugar mais além do que se propõe. Percebe-se
assim que o uso que cada artista faz da técnica e sua aplicação
é resultado de uma trama relacional, tampouco serve como um
procedimento que nos leva sempre para o mesmo ponto. A
tecnicidade é a qualidade que surge a partir das maneiras como
a técnica é aplicada e do tratamento dado ao material que dali
resulta. Neste sentido, o mapeamento de atividades ativadas
pela técnica permite a descoberta de formas diversas de se
deixar ser atravessado pelas restrições habilitadas.
Por não mapear a atividade com antecedência, existe
uma oportunidade maior para um processo emergente evoluir
do coletivo. Para Arakawa e Gins, a interação do corpo com a
criação se dá dentro de um sistema de invenção de técnicas que
é um “saber procedural” (2002, p. 52), termo que cobre tanto as
sequências instintivas quanto um saber já codificado e
sistematizado como padrões habituais de atividade – perceber,
caminhar, conversar, comer, esperar o ônibus, levantar a mão
para chamar um táxi, correr da chuva, etc. Adquirir uma
habilidade envolve integrar todos os passos necessários para
realizar eficientemente uma tarefa que, quando incorporada
como conhecimento e plausível de repetição, torna-se um
procedimento. O procedimento para Arakawa e Gins (2002)
inventa e reinventa no momento, são estratégias que surgem a
partir de ações disparadas que são espaço/temporal, porque
acontecem em colaboração entre o corpo que se move num
tático entorno a que se situa, ou seja, a estratégia do ambiente
ou ainda da ecologia do espaço.
194

Inventar procedimentos nos processos de criação e de


montagem de dança é parte de um repertório de ações que
habilita restrições que permitam desencadear condições de
emergência para acionar e ativar o potencial de auto-
organização daquele processo. Essa maneira de trabalho é,
obviamente, muito diferente de dar instruções que propõem
uma interação; porém, as instruções podem ser também
restrições de habilitação. Talvez um “processo” possa ser
pensado a partir de uma proposição que inclui instruções entre
suas restrições de habilitação. Um dos problemas que surge
muitas vezes nas experiências de composição em colaborações
é como usar as instruções no sentido de proposição e não de
enquadramento, ou de estrutura previamente fixada de uma
interação. Uma linha de fuga pode ser pensar em modos de
colocar a instrução como uma forma de auxiliar a desencadear
um movimento relacional, o que pode ser encarado como uma
instrução que é mais precisamente uma restrição de habilitação.
Por exemplo, ao imaginar que num evento de
improvisação para um grupo, durante a duração do evento
existe uma linha imaginária que conecta um bailarino a todos
os outros, sendo assim cada momento que alguém se move irá
rearranjar o todo. Tanto em termos de espaço como de energia
da informação que circula naqueles corpos e, talvez, dos níveis
que cada um se coloca em relação ao chão e assim por diante.
Para tanto, se pensarmos na linha que conecta cada integrante
daquele grupo a todos os outros como um dispositivo de
criação de estados que irão gerar o acontecimento, o “entre”
um e outro é o que irá definir as relações que irão surgir a partir
das forças conectoras. O movimento ou as ações que emergem
são desencadeados e trabalhados pelo grupo.
De fato, as restrições possibilitam criar um campo de
relação que efetivamente permite e orienta a atividade sem
governar como ela se desenrola ou predeterminar sua forma ou
conteúdo específico. Outro exemplo, o chão é uma restrição
propícia para a dança, mas a dança não é enquadrada e nem
195

estruturada pelo chão. Em vez disso, a dança converte o que é


previsível como as demandas inescapáveis do tratamento que
se dá ao corpo em contato com o chão em uma força criativa
para a sua própria formação.
Habilitar restrições é estabelecer as condições para a
emergência do evento dança. O surgimento tangencialmente
ultrapassa a moldura e se auto-estrutura de uma forma que com
seu próprio movimento se dobra, desdobra e torna-se série. Ao
ativar as restrições no trabalho composicional, estas devem ser
levadas em conta verdadeiramente como restrições, isto é,
como não opcional, assim como o chão está para a dança, por
exemplo. Acredito que o desafio na criação em que as
restrições são verdadeiramente tratadas como limites e que
sejam tomadas diretamente pelo grupo como tal e que
imediatamente possam dar condições de liberdade é emergente
e está na escolha e seleção como maneira de dar forma.
Portanto, habilitar restrições define o lugar de um campo de
relação rigorosa que orienta determinados tipos de potencial e
desencadeia um movimento de auto-organização que inventa
os seus próprios parâmetros.
Proponho pensar a partir dessas ideias algumas questões
que fazem parte da prática no processo colaborativo e
interdisciplinar de criação. Questões estas que discuti
extensivamente durante o período do estágio doutoral, junto ao
grupo de pesquisa The SenseLab em Montreal coordenado pela
Prof.ª Dr.ª Erin Manning. Questões que correspondem
diretamente às situações que também surgiram durante o
percurso junto ao Ronda Grupo, nos últimos anos antes de
Montreal, e que com a pesquisa e reflexão sobre os modos de
operar um processo de criação estes conceitos em consonância
com o período em Montreal foram se estruturando. Nesse
sentido, estes parâmetros e procedimentos que, portanto, são
conceitos explorados e praticados por nós (The SenseLab e
Ronda Grupo) e se juntam para esclarecer os modos de fazer
196

dança e do trabalho de natureza colaborativa que tenho


trabalhado nos últimos anos.
As pesquisas de ambos os grupos buscam ativar e
habilitar restrição contrária à ideia de Estrutura. Iniciar um
processo carrega a ideia de um sujeito preexistente, cujas
intenções são realizadas mesmo que o sujeito seja um grupo
como um corpo e as decisões aconteçam coletivamente. As
intenções do grupo, neste sentido, são um aspecto da
intencionalidade como um fator limitante pela simples razão de
que tende a delinear o que surge para o que pode ser
considerado como pré-pensamento. No entanto, a ideia de
ativação catalisa um movimento que é compelido a tomar uma
forma mais rigorosa pela maneira como o campo da relação é
condicionada. O movimento se dá em como ela se desenrola de
forma eficaz. É o seu próprio tema emergente. O arco de seus
desdobramentos é dinâmico, é o pensamento encarnado de suas
condições de emergência. O resultado, sendo emergente,
sempre surpreende (o que ultrapassa qualquer intenção inicial
que pode ter contribuído como catalisador). Isso é o que
Manning (2013) define como uma “coletividade emergente”. É
coletiva porque o que acontece não dá para afirmar que tenha
sido causado ou organizado por qualquer fator possível de
separação dos outros, mas que trabalha de forma dinâmica
entre eles.
Outra questão bastante discutida em nossos encontros
diz respeito ao movimento relacional contrário à ideia de
participação ou interação. A ideia de participação praticamente
já configura e destaca um fator individual e interpreta os
fatores relevantes como indivíduos humanos. A participação
define lugar de uma forma pré-existente para a interação entre
indivíduos em um grupo em processo colaborativo. Esta pré-
subjetivização que previamente formaliza uma interação pode
acontecer, por exemplo, projetando-se no quadro de certas
funções de estímulo-resposta. Um projeto participativo chega
transversalmente sempre orientado para a tarefa. Os
197

participantes começam por receber instruções e investigam o


que é esperado deles e quais são os parâmetros funcionais que
sua tarefa tem para o todo a partir de um pensamento
individual.
Movimento relacional, por outro lado, inclui os fatores
criativos (qualidades e limitações), permitindo elementos não
humanos como a gravidade, a água pixels, aparatos
tecnológicos, as condições do local, materiais de cena,
bonecos, etc. Acredito que não é interessante pensar nestes
elementos em termos de função ou de estímulo/resposta ou
ação/reação. O movimento relacional começa por conquistar
em lugar de permitir que as restrições sejam traduzidas
imediatamente em movimento. A tarefa não é orientada, mas
imediatamente se move (em todos os sentidos da palavra) e não
há necessidade de reflexão antes de mergulhar na ação.
Partindo desses conceitos e colocando-os em prática é
evidente que o que resulta possui qualidades distintas. Até
certo ponto são distinções sutis, porém imprimem de saída
caminhos singulares, e particulares de articulação e de
desencadeamento de ações. Não faço aqui julgamento de
valores, principalmente porque a percepção sobre, por
exemplo, as restrições dadas em uma proposta de improvisação
que irá gerar material para a cena é potência para que diversos
caminhos possam surgir, depende de tantos fatores e de como
os artistas incorporam estas restrições. O importante nesse
processo é justamente encontrar maneiras de co-composição do
evento emergente e de como reconhecer as forças virtuais do
campo de ação para que se desencadeie o procedimento de
criar cada vez algo novo. Novo no sentido de atualizações de
um virtual e de como a imaginação projeta imagens para o
mundo através da dança.
198

5.3 DE-VAGAR PELA CENA DE SOCORRO

[...] descobrir a palavra socorro


através do labirinto de um grande
número de frases e palavras, [...] elas
exprimem foneticamente a
necessidade de socorro, fora de toda
situação determinada, real.
(Peter Handke)

As questões até aqui apresentadas colaboram para


refletir sobre o processo de criação do espetáculo de dança
contemporânea Socorro que dirigi no ano de 2008, em
Florianópolis. Essa reflexão é uma maneira de aplicar o estudo
teórico e todos os conceitos que venho trabalhando para pensar
sobre o modo de eu fazer dança. Socorro, com duração de 60
minutos, é baseado livremente na obra/texto do autor alemão
Peter Handke, Gritos de Socorro (Hilferufe). O espetáculo
realizou o intercâmbio entre a dança contemporânea e o teatro
de formas animadas, numa construção híbrida que
experimentou o encontro entre as linguagens.
A produção da montagem é do Ronda Grupo de Dança
e Teatro com concepção e direção minhas em colaboração com
os intérpretes-criadores Egon Seidler, Elisa Schmidt, Karina
Degregório, Letícia Martins, Paula Bittencourt e Vicente
Mahfuz, além da consultoria em formas animadas de Valmor
Nini Beltrame e cenário de Fernando Marés. A estreia
aconteceu nos dias 31 de outubro, 1, 2, 7, 8 e 9 de novembro de
2008, no Teatro da UBRO – União Beneficente Recreativa
Operária, em Florianópolis (SC).
O principal desafio nessa montagem foi trazer o teatro
de formas animadas como um recurso, mas que ao final se
tornou mais que isso. Socorro foi criado para um corpo que se
movimenta em diálogo com a ação e tece com a palavra uma
dramaturgia para a dança. Socorro se dá no entre, no encontro
da dança com o teatro de formas animadas, na cena, uma obra
199

que primordialmente “interroga o ser-no-mundo”. O lugar de


partida é a dança e isso importa para melhor compreender os
caminhos que traçamos entre a dança e o teatro de formas
animadas. Pensar e realizar o intercâmbio entre estas duas
linguagens cênicas, a principio, foi um desafio que aos poucos
se tornou um deleite...
A composição e a orquestração do material
desenvolvido e utilizado no espetáculo foram originadas a
partir da presença do corpo, tanto em suas tensões internas
como nas tensões transmitidas para o exterior, tanto no
bailarino como no boneco, nas relações entre bailarinos e
bonecos e nos elementos que constituem a cena. O nosso
desejo sempre foi criar para a cena uma poética de imagens que
se estruturaram e se complementaram ao longo do processo de
montagem. Para isso, ao combinar as imagens, Socorro se
dobra e desdobra por meio de uma dramaturgia visual, por
princípio uma dramaturgia em que a imagem desencadeia a
construção de sentido. Como estrutura, não há uma
sequencialidade linear ou narrativa na apresentação das cenas e
o que se mostra ao olhar é um poema que ganha forma nas
metáforas ali apresentadas.
Como principal referência no trabalho de criação de
material – e que originou parte dos jogos – utilizamos o texto
Gritos de Socorro (1969) do autor austríaco Peter Handke.
Buscamos definir o espaço como espaço artificial, um lugar de
contos, um lugar imaginário esquecido e abandonado, como se
ali a imaginação não mais fosse acessada, relegada ao
esquecimento. Nós reconhecemos que essa qualidade de espaço
imaginário abandonado nos serviu como metáfora para o
mundo racional em que vivemos. Socorro, portanto, recorre à
afetividade como maneira de provocar uma lógica das
sensações, antes de, somente, um entendimento lógico e
racional sobre o mundo. Deleuze (2002) argumenta no livro
Francis Bacon – Lógica da Sensação que a “Figura”, a
sensação para Cézanne, assim como a forma sensível, “age
200

imediatamente sobre o sistema nervoso, que é carne, enquanto


a Forma abstrata se dirige ao cérebro, mais próximo do osso”
(DELEUZE, 2002, p. 42). Para isso, as propostas e
improvisações para a criação de material serviram como uma
abordagem que fez emergir um trabalho mais voltado a uma
“lógica da sensação”.
Também decidimos definir que as cenas não seriam
interpretações para o texto de Peter Handke, o que em nossa
opinião reduziria o campo de possibilidades e, portanto, da
liberdade de criação e de quais referências poderíamos trazer
em combinação com o texto. Dessa forma, as referências que
integramos ao processo de composição situam, divergem e
muitas vezes contrastam entre si. É através delas que as cenas
se constroem e ao mesmo tempo adquirem autonomia.
Na pesquisa de corpo desenvolvida para a criação da
cena do espetáculo, o texto Gritos de Socorro provocou e ao
mesmo tempo originou um estado de ser de urgência, confusão
e de atropelo. Contrapomos esse estado com o mundo dos
comandos e das instruções, o que, para nós, remeteu tão
simplesmente à manipulação, nos impulsionou a aprofundar na
pesquisa de movimento o termo “corpo-instrução”, criado por
nós para inventar jogos que pudessem se desenvolver em
cenas. Como exemplos, cito a cena do banco, na qual acontece
uma disputa territorial entre Paula e Egon em clima de
brincadeira que aos poucos se torna mais violenta; e a cena do
“não”, quando Vicente impede os movimentos de Karina em
um sentido de opressão para não se mexer, até que a prende ao
chão imóvel. O corpo dos bailarinos está o tempo todo
submetido a comandos e instruções para resolver e criar
material, formulando e reformulando a noção de coisificação
que tanto nos fascina.
201

Figura 4 – Socorro, cena do banco | Egon Seidler e Paula Bittencourt

Foto: Isabelle Neri Vicentini

Figura 3 – Socorro, cena do “não” | Vicente Mahfuz, Karina Degregório,


Elisa Schmidt e Egon Seidler

Foto: Cristiano Prim


202

Também foi a partir deste viés que pensamos no boneco


como possibilidade de trabalhar tal ideia, intensificando e
deslocando impulsos de movimentos e gestos corporais,
fazendo-nos incorporar uma realidade outra para o corpo do
bailarino e para o corpo do boneco. Isso restituiu, na relação
entre bailarinos e bonecos, possibilidades latentes e retidas da
corporeidade de um e de outro. Esse aspecto gera certo
embaralhamento de como a relação entre sujeito/objeto e
bailarino/boneco se inscreve nos corpos, o que nos remete de
volta ao mundo das coisas do teatro de formas animadas.

Figura 5 – Socorro | Egon Seidler e o boneco

Foto: Isabelle Neri Vicentini

O boneco, por sua vez, resgatou uma porção de


conteúdos que eu tinha sobre formas animadas
e o jogo preciso e precioso entre impulso e
movimento. A resposta acontece na medida em
que é exigida. Ele era quase uma necessidade
maior do que o próprio corpo do bailarino nesse
203

trabalho. O boneco se tornou síntese do que o


autor gritava em seu texto, contaminou os
corpos e foi contaminado. Passar manhãs
criando, tateando e observando-o tornou
palpável a coisificação do corpo no caminho
inverso pela da humanização do objeto (Egon
Seidler em depoimento, fevereiro de 2014).

Outro exemplo disso é a cena em que Karina é


manipulada como boneca, utilizando técnicas de manipulação
de bonecos por Paula, Egon e Vicente. A qualidade dos
movimentos ali desencadeados tem um tratamento do
movimento do boneco, desarticulado e ao mesmo tempo sendo
articulado pelo manipulador. Toda a cena foi realizada com
essa ideia de criar um corpo-boneco. Esse é um momento em
que a relação entre humano e boneco se confunde e se mistura
para nos situar no limiar entre sujeito/coisa/objeto. Nessa
simples referência, nessa metáfora, reconhecemos sim um
lugar que definitivamente já visitamos no cotidiano de nossas
vidas e que nos impulsionou a definir tal cena.
204

Figura 6 – Socorro, cena da boneca | Karina Degregório,


Paula Bittencourt, Egon Seidler e Vicente Mahfuz

Foto: Cristiano Prim

Durante o processo de montagem, a corporeidade


desenvolvida para o corpo que dança em Socorro atravessou de
205

um a outro as instâncias ‘estar humano’ e ‘estar boneco’. Ali,


nem sempre boneco é boneco e bailarino é humano, ou seja, o
sujeito torna-se objeto e o objeto torna-se sujeito. “A
desconstrução da imagem do sujeito para objeto provoca a
sensação de que nós mesmos, em contrapartida, não seriamos
simplesmente sujeitos vivos, mas, em parte, coisas”
(LEHMANN, 2007, p. 349).
Outro elemento que trabalha a corporalidade de um e de
outro, boneco e humano, é a razão pela qual os bonecos foram
confeccionados em tamanho natural, sem roupas, destituídos de
personalidade, de rostos e de gênero. Essas formas/objetos
criaram vida ao se movimentarem e são manipulados, ora com
delicadeza, ora com negligência, em contraste a uma
movimentação mais intensa e até mesmo violenta nas
sequências de ações e movimentos dos bailarinos. O que
importa é exatamente o tempo para cada ação, para cada
movimento executado pelos bonecos e pelos
manipuladores/bailarinos em que a precisão desses contrastes
desvenda o que realmente queremos. Na cena, a simultaneidade
das relações acontece para reforçar a relação de igualdade entre
os corpos (boneco e humano) que propomos como uma linha
de fuga para o que encontramos e, portanto, ressaltamos na
imagem do boneco.
206

Figura 7 – Socorro | Paula Bittencourt e o boneco

Foto: Cristiano Prim

Os corpos, humano e boneco, ocupam o ponto central.


São os portadores de sentido, tanto ao se apresentarem em suas
substâncias físicas, gesticulação e movimentação, quanto na
manipulação que propositalmente reverbera durante toda a
duração do trabalho. Consequentemente, ao encontrar
energeticamente este estado “coisa” e construir uma
corporeidade que se define para esse trabalho, revelaram-se as
potencialidades e intensidades gestuais na dança de cada um e
na cena como um todo. Ao criarmos uma moldura temporal
onde tudo acontece sem uma estrutura racional de espaço-
tempo autônomo, permite-se a contemplação do acontecimento
como, talvez, uma realidade muitas vezes enigmática e que não
vem a representar nenhuma outra, senão sua existência própria.
Da palavra ao movimento, o início, a fase de
desenvolvimento de material se originou de estímulos como
perguntas, palavras, imagens, propostas e jogos de
improvisação sugeridos aos bailarinos por mim. Ou seja,
iniciamos com um processo de comunicação verbal e de
reflexão subjetiva entre bailarinos e direção. Nessa etapa,
207

trabalhamos diversas sentenças e ideias do texto de Peter


Handke sobre as quais as imagens densas e carregadas de
sentido foram derivadas do encontro e amontoamento de
experiências e, ainda do que surgia neste processo entre boneco
e o corpo dos bailarinos.
Nunca foi nossa intenção traduzir ou interpretar as
palavras do texto, por movimentos e gestos, nem tampouco
limitar as palavras faladas por uma sincronicidade nas cenas,
principalmente pela grande carga de experiência pessoal que
encerram. Parece-me que essa tentativa poderia empobrecer e
roubar da experiência corpórea as possibilidades de percepção
do todo, em que a carga pessoal de memória amplia como cada
um constrói sentido e, acima de tudo, é como treinamento de
uma emocionalidade não atrelada às considerações racionais
prévias.
Depois de transformadas, acumuladas, condensadas, as
palavras se tornaram irreconhecíveis, foram esmagadas pelos
corpos e pelos movimentos que estes traçavam. Estavam ali e
poderiam expandir-se em múltiplas direções. As palavras, no
início, evocavam a ação e o movimento e garantiram, para este
processo, uma imagem carregada de experiência. A palavra,
nesse caso, não foi ilustrativa, usamo-la como comando e
verbo para a ação. O movimento que dali derivou estava
encarnando de sentido e encerrando conflitos não resolvidos da
memória daqueles corpos. Nesse sentido, a palavra não se
constituiu como uma forma dramática, nem tampouco como
ponto de partida, mas foi articulada junto às noções e
referências que fomos dia a dia construindo, manipulando,
selecionando e fixando. O texto de Peter Handke ativou certas
qualidades e certos jogos como elementos fundamentais para
integrar a dramaturgia.

O texto foi um presente. Ele veio cheio de


ações, verbos e uma narrativa que despertou
meu imaginário na criação de imagens sem um
apelo ou lógica linear. Deste modo a resposta
208

passava pelo corpo e propôs o confronto, a


busca por um território e o mergulho nas
situações que o texto trazia. Estas relações se
davam comigo mesmo, com o outro corpo que
dançava comigo e com os elementos que foram
criados pelos outros artistas que compuseram o
núcleo criativo do trabalho. O tempo em
“Socorro” dizia respeito a um tempo da
narrativa, da palavra, do texto, da ação. Durante
o processo criativo tivemos a liberdade de
explorar e selecionar qualidades de movimento
que serviam de resposta ao nosso imaginário.
Esse imaginário era instigado por trechos do
texto de Handke, um texto muito rico em ritmo
e que impõe uma musicalidade. Encontrar o
tempo e casá-lo com uma trilha minimalista foi
um processo quase natural a nossos ouvidos e
olhos atentos ao nos depararmos com aquela
infinidade de frases e “nãos” (Egon Seidler em
depoimento, fevereiro de 2014).

Como demonstra o depoimento de Egon Seidler, a


partir do texto os jogos foram se configurando e se
intensificando, padrões de movimento foram expandidos e
colecionados. As sequências foram fixadas e trabalhadas de
acordo com qualidades próprias de cada bailarino e de suas
proposições em relação àquele material.
Ao experimentar no corpo os jogos de poder elaborados
e precisamente colocados como restrições, fundamentados
sobre como são formulados na experiência cotidiana, surgiram
impressões que atravessavam a observação da vida diária para
a criação de situações lúdicas nas quais a afetividade era
liberada em estados de composição cênica. Esses jogos
situaram a cena entre o contraste e a precisão, sempre em
referência e em volta às restrições impostas, porém, indo além
ao criar qualidades próprias com impressões que se desdobram
e tornam-se desnorteantes.
A fase de composição normalmente é acumulativa e por
composição se entende a criação, a seleção e o arranjo final dos
209

materiais. Nisso entra também a improvisação como elemento


a ser orquestrado juntamente com o restante do material. A
maneira como se organiza o material acontece por ordem de
apresentação em relação às imagens e o entrelaçamento dos
diversos eventos e ações desenvolvidos, o que correspondeu ao
critério pessoal meu em consonância com os bailarinos e os
outros colaboradores. Tal desencadeamento seguiu a lógica
interna que a dramaturgia foi desenhando, de forma a integrar
as várias noções e anseios dos colaboradores.
Como o trabalho surgiu dos jogos estimulados
principalmente pelas palavras/comandos, ao final do processo
foi impossível voltar a elas (as palavras). Os corpos escreviam
um texto que resistiu ao aprisionamento de seu significado.
Nesse processo de composição e idealização do espaço, ou
ainda, na seleção e edição da trilha sonora que se caracterizou
como um elemento de conexão entre espaço e corpos, criaram-
se momentos de pura tensão e a cena foi se fortalecendo. Aqui
fica a impressão de justeza, nos resulta como a montagem de
um quebra-cabeça em que, ao final, há uma estrutura que não
necessita alteração alguma. Está tudo lá.
O mundo dos sonhos e as qualidades do mundo onírico
foram incorporados na dramaturgia de Socorro na construção
dos espaços, tanto pela ambientação como pela aparição de
determinados elementos plásticos e objetos de cena. O tempo
dos sonhos e os corpos (humano/boneco) são os sobreviventes
das catástrofes dos contos, a melancolia que os envolve é
resultado do tempo do sonho através do filtro da memória. A
acumulação de pequenos esquemas de movimentos, gestos e
palavras se repetem muitas vezes, com delicadas e sutis
variações segundo avançam as sequências e que derivam em
(ou se cruzam com) outras minissequências, incluindo gestos,
palavras ou ações singulares.
210

Figura 8 – Socorro | Vicente Mahfuz e Karina Degregório

Foto: Cristiano Prim

Uma das propostas mais importantes


de Socorro foi a absorção do nosso imaginário
infantil, porém escondido, antagônico, trazido à
tona por meio de histórias pessoais de
abandono. Ao longo do trabalho criativo,
sentimentos de fatalidade e urgência dessas
histórias se transformaram em sensações
poderosas de aprisionamento, comando e apelo,
fortalecidas pelo texto de Peter Handke e
utilizadas ativamente na construção de cada
movimento e cena. Essa proposta também se
traduziu na caracterização dos dançarinos,
inspiradas em imagens de brinquedos
211

abandonados – bonecos antigos e personagens


de contos de fadas, porém esquecidos,
manchados, torcidos, guardados nos baús do
nosso imaginário. A sequência de apresentações
nos permitiu encontrar um tempo diferenciado
para o movimento do espetáculo, um tempo
onírico que ajudou a desvelar diversos
elementos do nosso imaginário, criando (ou
recriando) um mundo de sonho no ato cênico
(Vicente Mahfuz em depoimento, fevereiro de
2014).

No trabalho de composição das cenas, já com material


para edição, nos deixamos afetar por um tempo de sonho ou de
contemplação para aquelas imagens que íamos construindo. A
trilha sonora composta por músicas de Steve Reich, conhecido
por seu estilo minimalista, contribui para criar um estado de
tensão que relaciona a ambientação com a movimentação. Na
montagem e edição do material, realizamos um trabalho
minucioso e detalhado de repetição, aceleração e com
variações sutis na fragmentação das sequências, o uso da
imagem parada se contrapondo à velocidade e aceleração para
dar ritmo e estrutura às transições das cenas.
Durante a montagem de Socorro nos preocupamos em
criar, no desenrolar do espetáculo, estados de tensão como
modos de contraste para uma alusão mais fantástica de criação
e contraposição como derivação associativa. Momentos de
passagem entre pequenos eventos dentro da cena como um
todo e transições sutis, com componentes de referência a cenas
anteriores, para ativar e reativar a memória e o reconhecimento
de cada uma das referências. Dessa forma, a dramaturgia
trabalhou aspectos da memória como possibilidade de gerar
coerência e sutileza para alguns dos temas abordados como a
negligência, o abandono e a solidão.
Finalmente, os fragmentos acumulados foram
submetidos a uma ordenação em termos de cenas para restituir
ao espectador a realidade tal como é na vida ou, ainda, na
212

lógica do sonho, contrapondo um e outro. Nesse sentido,


nenhum dos elementos que intervêm na composição das cenas
atua como centro de articulação, mas a composição se sustenta
para ilustrar o olhar sobre o mundo. É como se a presença de
um dos elementos, visto aqui também das cenas, reclama pela
outra, como um recurso associativo que demonstra a
justaposição de materiais de naturezas distintas. “O Jogo com a
ambiguidade do real e fictício, a transgressão entre os limites
do privado e do público” (SANCHEZ, 2002, p. 20). O jogo que
revela, esconde e provoca quase chegando ao limite, brincando
com possibilidades que atravessam da ficção para o real, em
atualizações que são construídas em cada espectador pelo viés
da sensação.
Ao conectar as minissequências ou pequenas estruturas,
os materiais de base mais ou menos estáveis, também se
experimenta e se arredonda com precisão a grande estrutura. O
momento de improvisação se situa sobretudo nos numerosos
ensaios de combinações cada vez distintos, na reorganização
diferenciada das primeiras tentativas. Até que a forma alcança
uma justeza e se estabiliza mais ou menos numa organização
que é a estrutura do todo.
Para o espetáculo Socorro, propositadamente, várias
cenas trabalham com focos múltiplos e em simultaneidade e a
experiência do acumulo das impressões pode causar o
parcelamento da percepção. Ao romper esquemas de
movimentos previsíveis, com padrões improvisados para
responder ao jogo e suas restrições, também se obtém os
efeitos de simultaneidade. A partir do momento em que o gesto
foi segmentado, escolhemos alguns fragmentos e os dilatamos;
assim, definimos os ritmos que queríamos para cada cena.
Dessa maneira, chega-se a um equivalente da ação real através
do que Richard Schechner (2000, p. 53) define como
“comportamento restaurado”, constituído por partituras e
sequências de movimentos e gestos que existem à parte de
quem as realiza. Esses comportamentos podem ser guardados,
213

transmitidos, manipulados e transformados e, ao entrar em


contato com quem os executa, são restaurados.
Na concepção da dramaturgia que trabalhamos durante
o processo de montagem de Socorro, a dispersão e
complexidade do todo estabeleceu linhas de tensão e campos
de força para situar cada cena numa estrutura fragmentada.
Portanto, a construção do sentido pelo espectador se configura
a partir da compreensão do todo para, então, voltar a cada cena
e ali encontrar por onde se conectar. A densidade da imagem
associada à memória com a multiplicação ou justaposição dos
focos de energia resulta da atomização dos materiais. O
desencadeamento de imagens e associações ocorre em
contraponto com a sonoridade, cuja superposição surge como
uma criação polifônica em que todos os elementos funcionam
fragmentando-se entre si, de modo que o espectador possa
desfrutar na sua totalidade os elementos que compõe o todo.
Seria como apresentar imagens não visíveis, dilatadas pelo
microscópio.
Os significados não aparecem diretamente, o espaço
funciona como uma caixa de ressonância para a dança.
Energia, tensão, linhas de força e variação de intensidade. As
imagens que surgem não criam uma imagem, pois estas são as
imagens. Assim, o sentido é mais compreendido do que
entendido. O sentido é assimilado através das metáforas, nos
interessa justamente o que tem como principal obstáculo, a
estrutura fechada da obra de arte e que exige, portanto, uma
necessidade de contaminação, de inter-relação e de impureza.
Uma dramaturgia que ordena o espetáculo em fases de
intensidade e que define zonas de ocupação tais com a relação
entre corpo, objeto e boneco.
214

5.4 DO RITORNELO A LUGAR NENHUM

Do lugar onde estou já fui embora...


(Manuel de Barros)

Uma criança no escuro, tomada de


medo, tranquiliza-se cantarolando.
Ela anda, ela para, ao sabor de sua
canção. Perdida, ela se abriga como
pode, ou se orienta bem ou mal com
sua cançãozinha. Esta é como o
esboço de um centro estável e calmo,
estabilizador e calmante, no seio do
caos. Pode acontecer que a criança
salte ao mesmo tempo que canta, ela
acelera ou diminui seu passo; mas a
própria canção já é um salto: a
canção salta do caos a um começo
de ordem no caos, ela arrisca
também deslocar-se a cada instante.
Há sempre uma sonoridade no fio de
Ariadne. Ou o canto de Orfeu
(DELEUZE E GUATARRI, 1997, p.
115).

Foi a partir do conceito “Ritornelo” de Deleuze e


Guattarri, citado nos livros Mil Platôs (1997) e O que é a
filosofia? (1993), que encontrei uma maneira de “racionalizar”,
ou seja, o Ritornelo me serviu como metáfora para pensar a
improvisação como uma experiência de estar no mundo
presente na criação. Encontrei também no conceito de
Ritornelo suporte para refletir sobre as costuras e a articulação
do material desenvolvido ao longo dos ensaios na montagem
do espetáculo Lugar nenhum. O Ritornelo direcionou de forma
precisa a forma como os colaboradores e eu lidamos com a
sensação, a percepção e a memória, aspectos que foram
fundamentais no desenvolvimento do trabalho de composição
desse trabalho.
215

Com duração de 60 minutos, Lugar nenhum foi


produzido pelo Ronda Grupo em 2010 por meio do Prêmio
Funarte de Dança Klauss Vianna 2009. A direção e a
concepção do trabalho foram minhas e a criação foi em
colaboração entre o núcleo criativo do grupo: os bailarinos
Egon Seidler, Karina Degregório, Letícia Martins, Nastaja
Brehsan, Paula Bittencourt e Vicente Mahfuz; cenário e objetos
de cena de Ana Pi; iluminação de Marcos Klann; e design
gráfico de Lena Muniz. A trilha sonora é de Marcelo Muniz
(músicas do repertório de Cartola), convidado a fazer parte
desse projeto. A estreia do espetáculo aconteceu em Setembro
de 2010 em Florianópolis (SC).
Lugar nenhum trabalha com a ideia de que uma
possibilidade de vida se avalia nela mesma pelos movimentos
que ela traça e pelas intensidades que ela cria. Interessou-nos
pesquisar como um corpo encontra diferentes estados ao
improvisar e como se dá, durante o improviso, o
desencadeamento de sensações e impressões, a criação de
imagens e a dissipação dessas imagens para dar lugar a outras
sensações que desencadearão outras impressões e assim por
diante. Tudo isso ocorre numa zona de tensão que permanece o
tempo todo para, assim, intensificar os momentos de
exploração dos estados. As sensações que evocam esses
estados constituem a afirmação nostálgica da memória. Lugar
nenhum nos aconteceu como um desafio no sentido de que nós
nos propusemos a colecionar um repertório de movimentos,
ações e gestos, para então desenvolver padrões e pequenos
eventos que seriam definidos para cada cena e improvisados
durante a cena, sem uma sequência ou ordenação de
coreografia fixada.
A movimentação que desenvolvemos e dançamos em
Lugar nenhum consiste em padrões de movimento,
movimentos isolados e gestos que colecionamos ao longo do
processo. Esse material surgiu por meio da exploração de
histórias e de sensações que a memória trazia de cada cena e de
216

cada intérprete – quatro intérpretes para quatro cenas. Essas


histórias pessoais foram visitadas inúmeras vezes, tanto pelo
movimento que as sensações estimularam no corpo de cada um
ou, ainda, pela maneira que as coleções de movimentos, gestos
e ações se transformavam em eventos entre dois ou mais
bailarinos. No entanto, as visitas às histórias pessoais não se
dão no plano figurativo e também ocorrem sem uma narrativa
linear. Além do material próprio de cada bailarino existe o
material que foi incorporado, originado dos outros três. É
interessante pensar em como se deu e se dá, em cada
apresentação, essa apropriação e como se desenvolvem as
relações entre esse material que, por assimilação, é
transformado e se apresenta para o outro conectado no todo.
217

Figura 9 – Lugar nenhum | Vicente Mahfuz

Foto: Cristiano Prim

O Ritornelo provoca as noções sobre os modos em que


os procedimentos de criação de material foram se
desencadeando, o que inicialmente não estava claro. O que
fazer com aquele repertório de gestos e com as coleções de
movimentos? Para onde esse material nos direcionava? No
218

momento em que nos demos conta de como as sensações


provenientes das histórias e compartilhadas geravam uma
dinâmica de relações, o Ritornelo se tornou a chave para
compreender e reconhecer os procedimentos que estávamos
originando e, consequentemente, dar sentido para como as
relações se transformavam em evento coreográfico.
Portanto, o que é o Ritornelo? O conceito de Ritornelo,
para Deleuze e Guattarri (1993), se constitui a partir de duas
éticas: “a ética da experimentação” e a “ética da prudência
necessária”. A tensão entre estas faz com que se possa pensar
num terceiro ethos, característica comum a um grupo de
indivíduos pertencentes a uma mesma sociedade que é “a ética
do improviso” que, ao incorporar a experimentação e a
prudência necessária, improvisa continuamente outra
modalidade de existência.

Figura 10 – Lugar nenhum | Nastaja Brehsan, Egon Seidler, Vicente Mahfuz


e Paula Bittencourt

Foto: Cristiano Prim


219

É possível pensarmos na improvisação como processo


de composição em forma contínua de existência e fenômeno
processual e que, por conseguinte, congrega a ética da
improvisação frente a uma plateia. A ética do improviso passa
a ser a própria experimentação criativa, o uso, a prática, a
pragmática propriamente dita. A ética, portanto comporta a
própria experimentação do abandono, daquilo que tenciona a
fuga, fazendo da filosofia uma pragmática de dispersão
contínua e da forma-dança outro eixo de experimentação. De
acordo com Deleuze e Guatarri, o Ritornelo está totalmente
ligado ao problema do território, da saída ou da entrada no
território, se relaciona ao problema da territorialização e da
desterritorialização. É a articulação entre os elementos
conhecidos e os aspectos desconhecidos de um repertório ou de
espaços estranhos, entrar e sair da zona de conforto, vislumbrar
as possibilidades de criação inéditas e surpreendentes por meio
da experiência pura de estar no momento. Da mesma forma,
vislumbramos as possibilidades de circular pelas sensações,
entrando e saindo de sensações e do que estas fazem com o
movimento no momento que é dançado.
Segundo Deleuze e Guattari (1997), um Ritornelo está
sempre em relação com outros Ritornelos. O que o define,
primeiramente, é que parte do caos em busca de um território,
de um plano de imanência a um agenciamento territorial, como
um componente direcional, para então se organizar esse
agenciamento e se traçar um território em torno do ponto do
centro, ou seja, em torno de um eixo, como um componente
dimensional.
Ao improvisar, Lugar nenhum se relaciona à percepção
que evoca a memória sobre situações em que o protagonista da
forma-dança é a sensação, é ela que faz o corpo dançar em
relação também ao corpo do outro e as conexões se constroem.
Durante toda a apresentação do espetáculo os quatro bailarinos
nunca deixam o espaço de cena, a presença é constante e as
linhas de tensão que são criadas fazem com que cada pequeno
220

movimento que aconteça seja percebido por todos. Sair e entrar


na sensação, pelo movimento ou por meio da memória, e na
potência do momento presente o agenciamento territorial se
estabelece. No caso desse trabalho, são as sensações que as
histórias engatilharam no dançarino desde a sua concepção, em
direção a outros agenciamentos que são as sensações das
histórias dos outros. Essa é a operação das linhas de fuga que
partem em direção a outros territórios e colocam o território
como uma instância provisória. Um território que é transitório,
onde se dão os agenciamentos como um componente de
passagem, de fuga. O depoimento abaixo expõe aspectos do
processo de criação de Lugar nenhum:

Primeiro através da memória, no resgate das


histórias. Acessar uma informação vivida é pra
mim vive-la novamente de outra forma, com
outro olhar e recorte, um resgate de estados
latentes no corpo. A segunda etapa teve a ver
com o desdobramento destes estados, em
movimento e dança. Estes movimentos
sequenciados, não contavam a narrativa, mas
produziam forças, tensões, ritmos, que geravam
novas leituras. Entretanto toda a cena era
estruturada também levando a história de cada
um como base. Na minha cena, eu passava mais
da metade do tempo de costas, trazendo para
cena um estado de “ofuscamento” em que eu
vivi na infância, entretanto, não dizia isso…
tudo é muito subjetivo e explicito ao mesmo
tempo… Eu me sentia rasgando o corpo nos
estados em que cada cena me colocava, mas o
que chegava para o publico eram as relações
que os corpos geravam, as interações, as
tensões, a leveza, a maldade, a briga, o
julgamento… enfim… conceitos, estados,
emoções, tudo estava ali sem ser dito em
palavras, mas em vivência (Nastaja Brehsan em
depoimento, fevereiro de 2014).
221

Enquanto estávamos no processo de criação, buscamos


sempre aplicar o conceito de Ritornelo que, segundo Deleuze e
Guatarri, implica na coexistência de três componentes,
dinamismos ou etapas que acontecem simultaneamente: em
primeiro lugar existe o componente direcional, da ordem do
ponto como uma primeira manifestação frente ao caos; num
segundo momento há o componente dimensional, quando se
busca o território e sua consolidação; por fim, há o componente
de passagem ou de fuga que faz com que o território esteja
sempre em variação. A partir dessa concepção, no processo de
criação o que propus como o eixo foi a sensação que nos
remete prontamente à memória, como que envolvendo esse
eixo e traçando um território, e finalmente as linhas de fuga
que são as percepções que nos fazem criar impressões e que
nos conduzem a outras sensações. Lugar nenhum é um trabalho
que se distingue por seu caráter de improvisação sem a
marcação de tempo ou espaço definida e fixada, o material
desenvolvido para cada cena se apresenta por meio do
desencadeamento de eventos, o que pode se repetir ou não na
próxima apresentação ou ensaio. Portanto, é possível
experimentar durante as apresentações e criar novos eventos
que podem vir a ser incorporados ou não posteriormente.
Na “ética da experimentação”, o Ritornelo apresenta o
movimento circular operado por seus três aspectos. Segundo
Deleuze e Guatarri (1997), isso aponta sempre na possibilidade
de fuga do risco da improvisação, da territorialização e da
desterritorialização, dos riscos que tal movimento implica.
Acredito nos elementos do Ritornelo como uma forma de fazer
referência aos elementos conhecidos e desconhecidos da
improvisação, nas linhas de fuga como movimento de
passagem e de transitoriedade. Isso ocorre na invenção que a
todo instante conduz por territórios desconhecidos e,
fundamentalmente, remete à ideia de processo característica da
improvisação.
222

A “ética da prudência necessária”, de Deleuze e


Guatarri (1997), diz respeito à formação de uma política, de
uma prática em que a relação do indivíduo com si mesmo se dá
sem a necessidade de recorrer a verdades interiores, pré-
concebidas e programadas, em que as linhas de fuga são as
grandes condutoras do movimento. Uma prática que busca
encontrar alternativas às formas de assujeitamento, apontando
para o campo dos processos criativos, daquilo que
insistentemente se desprende e dita outra composição possível.
É seguida de um componente estético, numa estética que é a
prática de novos estilos de vida, escapando aos regimes de
poder e saber. Dessa forma, cria novas maneiras de ver e estar
no mundo, de se relacionar com a instabilidade, consciente das
possibilidades dessa interdependência entre o eu e o mundo.

Figura 11 - Lugar nenhum | Letícia Martins e Karina Degregório

Foto: Cristiano Prim

Com a improvisação é possível desenvolver um senso


de responsabilidade por meio da habilidade de estar presente
no mundo e estar presente em si mesmo. Com isso, as
possibilidades de criar e executar, passear por lugares onde já
223

pertencemos e algumas vezes inauguramos, mas que, de acordo


com a “teoria do eterno retorno” de Nietzsche, coloca a
existência estética como a mais elevada necessidade. “Esta
vida, tal qual a vives atualmente, é preciso que a revivas ainda
uma vez e uma quantidade inumerável de vezes”
(NIETZSCHE, 2002, aforismo 341, p. 223). Nesse sentido, no
exercício de composição para Lugar nenhum, pergunto: o que
faz com que a verdade que ativamos no corpo, quando
intencionalmente revisitamos as sensações de cada um,
aconteça como dança? Para Bergson a sensação é realidade:

Quando meus olhos me dão a sensação de um


movimento, esta sensação é uma realidade, e
algo se passa efetivamente, seja que um objeto
se desloque ante meus olhos, seja que meus
olhos se movam diante do objeto. Com mais
razão ainda estou seguro da realidade do
movimento quando o produzo após ter desejado
produzi-lo, e o sentido muscular me
proporciona a consciência dele. Vale dizer que
toco a realidade do movimento quando ele me
aparece, interiormente a mim, como uma
mudança de estado ou de qualidade
(BERGSON, 1999, p. 230).

Um dos desafios durante a montagem de Lugar nenhum


foi encontrar um modo de provocar em cada um dos bailarinos
estados de imersão na própria memória e nas experiências
vividas por meio da sensação e como encontrar os dispositivos
para tal acontecer a cada ensaio ou apresentação. O movimento
que surge a partir das sensações “toca a realidade” por meio da
consciência, passo a passo. Como fazer esse mergulho sem
volta? De pronto eu propus que as histórias que fôssemos
lembrar tivessem acontecido quando por volta dos nove anos
224

de idade de cada um de nós. Na Antroposofia33 existe uma


metáfora que me interessou logo no início da concepção de
Lugar nenhum e pensei nas histórias como um gatilho
interessante para desenvolver material.
De acordo com essa metáfora antroposófica, quando
uma criança nasce é trazida para a terra por um anjo e, com o
passar do tempo, a mão que coloca a criança na terra se conecta
através de um fio de linha. Ao longo dos anos essa linha vai
aumentando a distância entre o anjo e a criança, até que por
volta dos nove anos de idade ela se rompe totalmente e, com
isso, se desmancha o véu da imaginação que povoa o mundo da
criança até então. A partir desse momento a criança passa a ver
o mundo somente sem o véu da imaginação e adquire um olhar
mais próximo da realidade; é nesse momento que a fantasia
perde potência e um olhar mais crítico se constrói. Essa
imagem me interessou porque eu queria que as histórias
contivessem um aspecto de primeiras experiências de quando
nos situamos no mundo de forma mais crítica e mais consciente
do meio que nos envolve.

33
Antroposofia é uma filosofia que serve como um caminho de
conhecimento para guiar o espiritual do ser humano ao espiritual do
universo. O objetivo do antropósofo é tornar-se mais humano, ao aumentar
sua consciência e deliberar sobre seus pensamentos e ações; ou seja, tornar-
se um ser espiritualmente livre. Rudolf Steiner (1861-1925), austríaco, é o
fundador da Antroposofia.
225

Figura 12 – Lugar nenhum | Vicente Mahfuz e Paula Bittencourt

Foto: Cristiano Prim

Com as histórias surgiram sensações que a memória


daquelas situações evocava, sempre que voltávamos a elas.
Quando as sensações encarnam, geram novas sensações,
porque a cada instante atualizações das sensações originais são
feitas assim como na relação com os outros corpos as
impressões se constroem. Assim, a estética passa a ser a
226

própria experimentação da vida como arte, quando a vida se


torna, enfim, uma obra de arte como diz Foucault. Quer dizer
um jogo que é sempre experimentado no sentido de seus
limites; estará sempre em vias de transgredir e inverter a
regularidade que aceita e com a qual se movimenta; a dança na
improvisação de Lugar nenhum se desenrola como um jogo
que vai infalivelmente além de suas regras e passa assim para
fora no outro. É nesse desvio e mergulho nas sensações que
toda a dramaturgia foi se construindo e as imagens,
primordialmente internas ao longo do processo de criação,
transbordaram para a cena. Fogem de sua origem e encontram
novas metáforas que se desenvolvem e transformam-se em
outras impressões ou imagens e assim por diante.

Figura 13 – Lugar nenhum | Paula Bittencourt e Nastaja Brehsan

Foto: Cristiano Prim

Minhas histórias viraram uma recordação de


sensações. Hoje elas falam diretamente com o
registro dessas sensações em meu corpo,
227

respondendo em imagens, qualidades e padrões


de movimento. Quando acesso esses lugares, na
cena e com os outros, já não trato mais daquele
período, mas revisito em mim, amparado pelo
diálogo com o outro, onde e como esses
registros reverberam e respondem naquele
momento. As histórias foram o ponto chave
para as coleções de movimento, junto a padrões
que pesquisamos sobre o “eu” (dentro) e o “tu”
(fora). Essas fontes são muito ricas por tratarem
com a enormidade de sensações, imagens e
‘estados’ que o ser humano tem. Selecionar
movimentos parecia reduzir demais esse
potencial. Ao mesmo tempo, não selecionar
poderia nos levar ao abismo da falta de registro,
desenho, consciência dos movimentos. Deste
modo, optamos por encontrar coleções de
movimento, que se mantivessem abertos
independente e que servissem de mote para que
o corpo encontrasse e se mantivesse num
padrão que respondesse a determinada
sensação, história e cena, servindo como base
ao improviso nesse território. A partir disto, os
encontros surgiram como necessidades desses
padrões, como apoio às narrativas, como
contribuição estética da diretora e,
principalmente, como diálogo, oportunizando
tanto opções/aberturas a leitura do espectador
sobre a obra quanto recurso criativo e
dramatúrgico aos bailarinos (Egon Seidler em
depoimento, fevereiro de 2014).

Como pesquisadora e artista, percebo que ao apropriar-


me de conceitos e aplicá-los no processo de montagem como
uma ferramenta ou como referência para a invenção de
técnicas, confronto-me com o risco. Porém, nesse caso,
entendo como o Ritornelo me comunica exatamente o que
concebo em relação à improvisação como aspecto fundamental
para o desenvolvimento de pesquisa de movimento em que a
sensação é o foco da consciência. Interessa também a partir
228

disso aprofundar questões como a de adentrar territórios


desconhecidos e desestabilizar-se de repertórios confortáveis.
Um conceito pode provocar, pode originar movimento e pode
assim ser transformado em criação; ademais, o Ritornelo e a
improvisação fazem parte da mesma rede de ideias, cada um à
sua maneira ou em seu campo, no entanto complementares.
Não se esgotam e ainda produzem ressonâncias. O Ritornelo é
uma espécie de “motivo”, aquilo que se repete e se transforma,
que sempre retorna e traça um “território” que é já expressão
do ritmo de uma variação criadora, de um agenciamento.
Figura 14 – Lugar nenhum | Karina Degregório, Egon Seidler,
Vicente Mahfuz e Letícia Martins

Foto: Cristiano Prim

Em princípio, Lugar nenhum é sobre afecto e memória


e como na dança o evento associa experiências de vida ou,
então, sobre como cultivar a lembrança de fatos que se deram
num passado que para nós não terminou. O trabalho não foca
tanto nas histórias que expressam as lembranças de um vivido,
mas sim nas intensidades e nos devires disso que são guardados
229

na lembrança e que, ao serem transformados em dança, se


tornam matérias expressivas.
Primeiramente, nos preocupou a capacidade de invocar
ou provocar sensações e intensidades e de encarná-las em
dança. Depois, a capacidade de “criar repetindo” e de produzir
assim um lugar de enunciação singular através de repetições e
variações. É, portanto, realizar essa operação tão comum de
ativar fragmentos do mundo e da experiência do outro e fazê-
los tornarem-se dança.
O pensamento de Deleuze e Guattari nos forneceu
pistas valiosas. Como afirmam esses autores ao tratar do que
eles chamaram de “afectos” e “perceptos”, aquilo que persiste
(uma dor, uma tristeza, uma saudade, uma alegria, uma culpa,
uma vergonha, e um momento de abandono) não persiste por
causa do cultivo da lembrança. O que perdura são os “blocos
de sensações” de dor, de saudade, de perda, de amor, de
rejeição, de vergonha que se colariam a uma lembrança que se
expressa na forma de história e que permitem essas sensações
retornarem sempre como um “motivo”. Exatamente porque,
como coloca Bergson ao tratar dos modos de funcionamento da
memória e de reconhecimento das imagens, a lembrança é já
uma forma de representação e, como tal, é uma ação (1999, p.
87).
Acredito que a singularidade de Lugar nenhum reside
na forma como trabalhamos as lembranças das histórias pela
via das sensações que, por si, impregnaram as narrativas dessas
experiências. São tais sensações que são tomadas como um
“presente” revivido e refeito a partir, primeiramente, do que
Bergson (1999, p. 88) chamou de “imagens-lembranças” –
formas primeiras de um registro de memória. No entanto, como
afirma Bergson, há também um segundo tipo de memória que
se produz a partir da fixação e do alinhamento de uma
lembrança no presente. Esse aspecto de continuidade implica
uma transformação como outra disponibilidade para a ação
sugerida no ato da rememoração. É essa segunda experiência
230

de memória que parece povoar o universo de Lugar nenhum. É


exatamente por permitir ver o trabalho realizado com essa
segunda forma de memória, atravessada pelos elementos e
pelas circunstâncias que a fazem emergir e ser revivida e
“agida”, como diz Bergson, é que vão ser mobilizados como
matéria expressiva e como o “motivo”.
Ritornelo, então, como uma espécie de “motivo”, aquilo
que se repete e muda, que sempre retorna e demarca um
“território” que é já expressão do ritmo de uma variação
criadora, de um agenciamento. Por sua vez, essa perspectiva
coincide com o princípio de “instabilidade do homogêneo” em
Gabriel Tarde. Na sua sociologia do infinitesimal, Tarde (2007)
se refere a uma “transitividade intrínseca do mundo” como
princípio da diferença. Para Tarde, só existem diferença e
variação da diferença, sendo que o homogêneo seria apenas um
momento dessa variação.
Encontro similaridades no conceito de “transdução” de
Simondon, no qual a questão da variação aparece mais clara.
Para Simondon (1964, p. 18), a partir da transdução, “operação
física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se
propaga gradativamente no interior de um domínio”, seria
possível produzir passagens de um estado a outro, de um meio
a outro, constituindo um novo plano.

No domínio físico, a transdução se efetua sob a


forma de repetição progressiva, mas em
domínios mais complexos como o vital, por
exemplo. Em razão da metaestabilidade, a
operação transdutora adquire constante
variação, estendendo-se a domínios
heterogêneos (SIMONDON, 1964, p. 18).

Ao relacionar e cruzar esses conceitos para analisar o


processo de criação de Lugar nenhum, penso que esse processo
se inscreve naquilo que Deleuze e Guattari (1992) chamaram
de uma função fabuladora, na qual o que importa não é tanto o
que se conta, mas as intensidades que surgem do que é
231

contado. O fundamental é um tornar-se outro na narrativa que


não é linear. Na fabulação há como que um ultrapassamento,
algo que atinge uma qualidade singular, em que uma sensação
se torna gesto e o gesto explode aos olhos do espectador como
portador de sentido. Segundo Deleuze e Guattarri, isso
acontece porque na arte o trabalho intensivo com as formas
expressivas permite ao artista “exceder os estados perceptivos e
as passagens do vivido”, estado esses que eles vão chamar de
“perceptos” (1992, p. 222-223).
A fabulação, operação em que o ato de narrar é parte da
produção de um “percepto”, o objeto do dispositivo-invenção
como um dispositivo fabulador ao mesmo tempo cria as
condições da narrativa, mas também as deixa livres para
irradiar intensidades através das dinâmicas com as matérias
expressivas que mobiliza. No processo de montagem de Lugar
nenhum, partimos de uma narrativa que foram as histórias
sendo contadas; porém, o que permaneceu como estruturante
de todo o trabalho foram as sensações que essas histórias
evocaram nos corpos, que por sua vez foram fisicamente
manifestadas por meio do repertório e das coleções de
movimentos.
Vislumbrar todas as maquinações que nos permitem
investir na forma que é dança de nosso trabalho nos traz um
frescor e uma intensidade que se faz no instante, em cada
ensaio ou em cada apresentação. É também por fazer perceber
o que é constitutivo da poética e do potencial estético da
pesquisa em seu universo de sentido e de valor que ela
funciona como uma espécie de “máquina estética”. Para
Deleuze e Guattari, o conceito de “agenciamento” envolve
modos coletivos de enunciação e, ao mesmo tempo,
agenciamentos “maquínicos” de desejo (1977, p. 118). O
agenciamento é uma espécie de conjunto de engrenagens
conectivas que permite a formalização de lógicas sociais e
discursivas em torno das quais se organizam coisas, pessoas e
ações. É com essa natureza “maquínica” do agenciamento,
232

própria dessa concepção de dispositivo, que os modos e


procedimentos de criação do Ronda Grupo e o espetáculo
Lugar nenhum se inserem. Para Deleuze e Guattari,
pertencemos a certos dispositivos e neles agimos. Com base
nesse princípio, penso que é parte de um dispositivo o que
podemos definir aqui, nos modos de composição do trabalho,
como dispositivo fabulador.
Lugar nenhum é enunciado de agenciamentos de
invenção, se inscreve e faz entrar também seus procedimentos,
suas técnicas de composição, as coleções e repertórios de
movimento, já engrenagens desse agenciamento. As
lembranças acionam esse reviver do passado que, por sua vez,
se agencia com a função fabuladora através das formas-dança e
das formas-história como um “território subjetivo”.
Ao longo do processo de montagem, ia ficando claro,
ao menos para mim, que o que acontecia ali já não era uma
simples reprodução do passado por meio da improvisação do
material desenvolvido. O que se produziu é algo que já não se
confunde com o passado nem se resume a ele, embora exista
nele. Se há rememoração, esta se dá mais por meio da
convocação e da percepção do vivido, como afirmam Deleuze
e Guattari (1992, p. 218). É algo que carrega traços desse
vivido, mas que já está para além dele ou que dele independe,
os seus “afectos” e “perceptos”. Se, por um lado, a memória
involuntária quando confrontam as duas sensações separadas
no tempo, uma sensação atual e uma sensação passada, mais do
que revela a singularidade entre ambas, revela sua natureza ao
tornar o antigo contexto inseparável da sensação presente. Ou
seja, tornar visível uma afinidade de proximidade que só existe
na relação e que, portanto, não está nem na sensação presente
nem na sensação passada. É, portanto, a fabulação e não a
lembrança que conserva e ao mesmo tempo faz retornar essa
sensação como um “motivo”. É o Ritornelo que define esse
“conjunto de matérias de expressão que traçam um território e
que se desenvolvem em motivos territoriais, em paisagens
233

territoriais” (DELEUZE; GUATARRI, 1980, p. 397). É por


causa da fabulação, mas também da composição de motivos ou
paisagens que o repertório para cada cena e suas lembranças
adquire uma dimensão particular que intensifica suas
potencialidades e os torna tão reais. É assim que cada cena se
investe de uma qualidade intensiva que se expressa na forma
que é a dança. O que constitui a fabulação são as maquinações,
as estratégias de improvisação do repertório e da invenção de
novos eventos e materiais em cada apresentação. Toda a cena
está estruturada e arredondada por meio de restrições
previamente estabelecidas e que se inscrevem nesse território
de invenção como ética estabelecida pelo dispositivo fabulador.
É o Ritornelo que exprime essa relação nesse “território” que
se repete e se cria, no qual se produzem variações e ritmos,
motivos, passagens de coisas de um estado a outro.
234
235

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Coreógrafo como Ativador da imaginação

Instruções...
Imagine que estamos nos deslocando em linhas pelo
espaço da cidade e que a cada passo a atenção se desloca das
sensações que o corpo atravessa para o espaço ao redor, do
vulto que o movimento deixa no tempo para o olhar de
encontro que você troca com alguém que curioso te olha, te
julga, media, pergunta e se vai.
Imagine que as ações que você evidencia são destinadas
a dialogar com o tic-tac dos relógios na calçada sendo vendidos
por um ambulante e cada movimento é sentido pelo tempo
passando e o momento é experimentado, é dilatado, enquanto
um novo movimento em suspensão está para aterrissar.
Imagine que neste passeio de janelas abertas em que a
percepção faz explodir os sentidos e que tudo ao seu redor
possui a mesma importância: pedra rolando, criança chorando,
bolsa pendurada, árvore de muletas, poste rachado, carro
vermelho, vitrine de joias brilhantes, banco de madeira, céu
azul com nuvens, pombo magrinho, gente correndo, cadeira
com dono, janela fechada, flor na mão, menino parado...
olhando. Nesse jogo de percepção, sensação e memória, porém
o que conta é o que é captado pela sua atenção, que acontece
em planos, em camadas, em níveis, por perspectivas, por
ressonância, por contaminação.
Imagine que ao caminhar para trás algo toca as costas e
você percebe que são mãos que estão ali para conter o
movimento num jogo disparador de vontades. A vontade de
compor, de co-composição em flashes ativa tudo ao redor.
Todos os sentidos desvendam e busca reconhecimento na
memória para situar a sensação e prontamente encontra um
lugar de encaixe para cada imagem que provoca a ação.
236

Imagine que o tempo se contrai e as possibilidades se


multiplicam, mas há uma escolha e uma possibilidade
concrescente que faz acontecer a próxima ação ou o próximo
movimento. As suas percepções/imagens se conectam com as
percepções/imagens do outro, dos outros para que em um
movimento duplo, triplo se crie imagens que irão provocar
sensações em intensidades que se transformam, tornam-se e
transformam-se.

Em estruturas de tempo, uma escolha torna o presente


visível, audível, palpável e passando. Eventos passados e
futuros emergem, são atualizados neste momento aqui e agora.
O tempo é percebido em termos de ações como uma sequência
linear e não linear de eventos relacionados, conectados e
provocados pela imaginação. A compreensão envolve um
movimento atual em termos de o que aconteceu antes e o que
vai acontecer a seguir.
A dança possui suas próprias regras, cujas relações
internas a conduzem para o eterno devir e, por isso mesmo, é
capaz de provocar profundas sensações em quem a desfruta-
fazendo-olhando-escutando-dançando-percebendo. A dança é
potência pura de produzir choque, de desestabilizar
temporariamente os processos perceptivos. Deleuze (2007) nos
fornece um modelo estético imerso na experiência e, assim,
coloca a arte na esfera da sensação, revitaliza seu poder de
expressar e desestabilizar, obrigando uma desterritorialização
simultaneamente conceitual e existencial.
Estar coreógrafa me coloca no lugar de agenciadora de
afectos, ao instigar situações de encontros entre o aqui e agora
de cada um e o aqui e agora do coletivo. É perceber e
reconhecer potência, é assentar técnicas, é projetar situações
para acionar o campo potência e reconhecer as qualidades e
intensidades dos materiais. Ativar por meio da sensação a
aterrissagem da próxima ação, de um e de outro e sedimentar
as bases para que um processo de criação dispare.
237

Para Massumi, a sensação se relaciona com um campo


potência. “A sensação é uma canalização de um campo
potência em uma ação local, a partir da qual é novamente
transdução para uma reconfiguração global do campo potência.
A sensação é o modo em que a potência está presente no corpo
que percebe” (2003, p. 75). A percepção é um processo de se
tornar consciente de alguma coisa, de conhecer, refere-se à
capacidade de diferenciar a informação que está no mundo.
Assim para o coreógrafo o processo de compreensão e
de entender as informações que estão no mundo é mediado pela
experiência e requer o uso dos sentidos para processar dados.
Por exemplo: para uma sensação ser percebida, precisa passar
pelo corpo através de um dos órgãos sensoriais. Interpretar uma
sensação é o que conhecemos como percepção, porém, não em
sentido cronológico, mas como um emaranhado, sem inicio
nem fim. Esse “campo potência” que se apresenta quando o
coreógrafo habilita restrições exige que aconteça o
reconhecimento de certos dispositivos para que o evento se
desenvolva e, assim, dentro das restrições, a articulação da
dramaturgia se realize.
O campo é o que é comum para o potencial de criação,
é o que atualiza o jogo, também são versões deste que
coexistem com o atual e com suas subsequentes evoluções; ou
seja, não pode ser considerado como forma, mesmo que se
desdobre em estados de forma embrião. Nesse sentido, o
campo potência é analisado como um campo que forma
entidades de diferentes topologias e de diversas ordens causais
a partir dos indivíduos e do espaço que se origina e da forma
que retorna. Para Massumi (2002, p. 34), esse estado germinal
não deve ser considerado uma estrutura implícita ou uma
forma, mas deve ser entendido como um feixe de potenciais.
Para cada momento de atualização no movimento da
criatividade existe a possibilidade emergente de surgir uma
forma ou uma estrutura, porém esta se dissolve e se desloca em
238

relação ao próximo momento e agrega nesse processo


elementos com os quais está em tensão.
Erin Manning (2013) pensa sobre o conceito de
coreografia, não como um princípio de organização de corpos
pré-constituídos, mas sim, uma técnica para acionar e
desencadear a modelagem expressiva de uma atividade
incipiente em direção à definição de um evento de movimento.
Acredito que neste sentido o coreógrafo cria técnicas que
acionam o desencadeamento de formação do evento, ou da
situação que provoca as relações entre as relações que se
configuram e que se reconfiguram. Técnicas que irão definir-se
e definir as necessidades de cada processo.
Vimos antes que “coreografia é um verbo – a atividade
de organizar relações entre corpos” (KLIEN, VALK e
GORMLEY apud MANNING, 2013, p. 76). Isso sugere que a
coreografia trabalha as relações entre corpos e que não se
define como uma prática feita pelo homem para o homem, mas
sim como uma prática que se fundamenta em como o evento
por si próprio se conecta com um “milieu relacional que excede
o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que
indivíduo” (MANNING, 2013, p. 76). A maneira como um
evento coreográfico se constrói parte das relações que surgem
entre todos os elementos que o constituem; é, portanto no
“entre” que num campo de forças os elementos se conectam
para dar sentido.
A função do coreógrafo na composição em colaboração
parte de um campo de possibilidades de emergência co-
compositivas como o princípio de agenciamento disparador das
ações executadas e criadas. O coreógrafo neste processo
inventa possibilidades para ativar a imaginação dos envolvidos
e colaboradores. Ao fazer parte de um processo de criação
como coreógrafa, eu busco compreender todos os elementos
que compõem o evento e atuam na sua formação como uma
ecologia, tanto em ensaios como em apresentações, ou, ainda,
em eventos em tempo real. A criação acontece no encontro e
239

sobre o efeito dos afectos que nos incorrem. O que desencadeia


o evento pode ser qualquer um dos elementos que constitui
essa ecologia e está circunscrito nas relações entre as relações.
Portanto, o desafio no movimento da criatividade é criar
“linhas de fuga” e articular. É agir no sentido de captar a
oportunidade, reconhecer as potências que cada material que
envolve o processo pode conter evidenciar e criar relações.
Inventar e desenvolver oportunidades para que técnicas sejam
aplicadas e adaptadas para cada situação em questão. Nesse
sentido, as técnicas servem de dispositivos para aprofundar e
desdobrar imagens que, por vizinhança, inventam e reinventam
no momento. São estratégias que surgem a partir de ações
disparadas que são espaço/temporal porque acontecem em
colaboração entre o corpo que se move num tático entorno a
que se situa, ou seja, a estratégia do ambiente ou, ainda, a
ecologia do espaço direcionado e ativado pelo coreógrafo.
As questões que foram surgindo ao longo deste estudo,
até certo ponto foram causadas por desvios e incorreções, tudo
que possa ser sugerido por qualquer dos conceitos escolhidos
fazem parte de uma mesma rede. Conectam-se através do
emaranhado de possibilidades que se abrem a todo instante.
Muito similar com o processo de composição, em que cada
escolha, cada restrição e as técnicas e dispositivos para
habilitar as restrições formam o todo e que emergem da
sensação de completude. O que de certa forma se relaciona
com procedimentos em que os materiais e as referencias que
são apontados ou que surgem. O que constitui o ponto de
partida, no fazer dança é pensar sobre o mecanismo de sua
constituição e suas possibilidades. Para então desvirtuar lógicas
e ir mais além para adentrar o desconhecido e quebrar hábitos.
Por onde e como extrapolar, desvendar, desarticular, torcer,
quebrar, desviar as possibilidades que se apresentam?
De acordo com Cornago Bernal (2008, p. 22), é aqui
que reside a ideia de “anti-sistema”, de renovação e
constituição de novas versões da realidade. São visões de
240

mundo que se traduzem como um mecanismo de linha de fuga,


que percorrem transversais pelos espaços de poder numa
estranheza radical do que é próprio e do que é do outro. Por
outro lado, na mesma medida em que se constituem como
alteridade e presente – e não homogeneidade e passado –
abrem-se possibilidades infindáveis de novas combinações e
maneiras de articulação. Se pensarmos no processo
colaborativo em que vários “eus” dão forma para o trabalho
esta rede se torna mais complexa na forma como cada um se
relaciona com os materiais e ainda como se dá a produção de
sentido.
Tudo começa com a sensibilidade, a maneira como o
mundo se apresenta, bem como o papel da imaginação que é
juntar ou “contrair”, “diferença” ou “descontínua matéria” que
habita a repetição. No relato de Deleuze, a sensibilidade e a
imaginação são exemplos contemporâneos “inconscientes”
para nós. Esse ponto de partida produz uma dimensão temporal
de presente ou da vida presente. A imaginação “contrai” o
passado em “presente vivo”, em direção ao futuro. Ela se inicia
com uma forma vazia de intuição que apreende um espaço e
um tempo como uma condição necessária qualquer e
“experiência possível” universal. A imaginação é uma
faculdade “ativa” que sintetiza o que é dado em sensibilidades.
Quando o meu corpo está expressando intensidades,
nesse contexto de sintetizar as sensibilidades, uma sensação é
desdobrada em outra. Por ressonância com a intensidade dos
outros artistas envolvidos no processo e principalmente com o
ambiente. Refletir sobre as questões do poder de afetar reside
no fato de que afecto não tem forma, é pura abstração que torna
transmissível de forma que os sentimentos e as emoções não
são e, por ser transmissível, é potencialmente uma poderosa
força.
Uma diversidade de maneiras de trabalho dá margem
para a sistematização e renovação no que diz respeito à
invenção de novos contextos e de realidades outras. Proliferam
241

os modos de produção em que o espectador estabelece a


relação com a obra e outros procedimentos que antes eram
convencionais e ocultos. Tudo se torna objeto de análise e o
processo de composição é o que se apresenta como prática
efetiva.
A dança que produzimos hoje está inscrita em outro
lugar que pode ser também importância crescente de uma
cultura dos afectos, o “treinamento” de uma emocionalidade
não atrelada a considerações racionais prévias. Reside nesse
ponto a questão fundamental que deslocou o papel do artista da
cena para o lugar que se define como “presença”, impõe uma
maior compatibilidade com estados de alerta e percepções
aguçadas para se colocar como agenciador da cena, como
negociador do jogo que se estabelece e como presença que
encarna o ambiente.
Como percebemos e como atuamos em cada processo
de composição ou em cada apresentação, ou ainda como
espectadores de um evento de dança nos imprime uma
experiência, uma experiência encarnada. Afecto é a maneira do
corpo se preparar para a ação em uma determinada
circunstância, adicionando uma dimensão quantitativa de
intensidade para a qualidade de uma experiência. Uma
desterritorialização para o domínio do afectos, que se configura
na relação entre experiência, intensidade e afecto. É imanente
porque é na experiência e não da experiência, esta nela e não a
partir dela ou fora dela. A dança como acredito neste momento
é explorar as possibilidades de devir, de estar no mundo, é mais
sobre experiência e sobre alargar as fronteiras do que pode ser
experimentado e finalmente cada momento vivido por meio da
dança são atualizações de possibilidades de vida.
242
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254
255

ANEXO A – BREVE HISTÓRICO DO RONDA GRUPO

O Ronda Grupo foi criado em 1993, na cidade de


Florianópolis/SC, por iniciativa de Diana Gilardengui e Diana
Solari. Desde 2002, sob a direção de Zilá Muniz vem
desenvolvendo um trabalho de pesquisa e investigação em
dança contemporânea e participando de eventos, mostras e
festivais.
Em 1997, o grupo ganhou um Prêmio de Incentivo à
Dança, da Fundação Catarinense de Cultura. Em 1999, Zilá
Muniz e Ivana Bonomini passaram a integrar o grupo
juntamente com Diana Gilardengui, o que marca uma série de
trabalhos desenvolvidos em parceria. Em 1999, com
Desassossego, de Zilá Muniz e participação de Luciana
Cesconetto, o grupo participou de eventos em Florianópolis/SC
256

e apresentou no evento Terças em Dança do Estúdio Nova


Dança de São Paulo/SP.
Em 2000, já com a proposta de concepção e criação em
colaboração, Diana Gilardengui, Ivana Bonomini e Zilá Muniz
montaram Mãos de Prata, apresentando-o na Mostra de Dança
de Florianópolis/SC. Nesse ano, o solo Crosta, de Diana
Gilardengui, e o duo Sobre uma Caixa de Ressonância, de
Zilá Muniz e Ivana Bonomini, também foram selecionados
pelo Projeto Rumos Dança Itaú Cultural.
Em 2001, recebeu o Prêmio de Incentivo à Criação e
Montagem para Dança da Fundação Catarinense de Cultura
com o projeto Sobre uma Caixa de Ressonância, formato trio
com Diana Gilardengui, Ivana Bonomini e Zilá Muniz.
Em 2003, recebeu o Prêmio de Incentivo à Criação e
Montagem para Dança da Fundação Catarinense de Cultura
com o projeto Estar Vivo, com Ivana Bonomini e Zilá Muniz.
E, sob direção de Zilá Muniz, montou Para quem sonha
colorido, com Ana Paula Gonçalvez e Andreza Martins,
apresentado-o no Conexão Sul - Encontro de Artistas de Dança
Contemporânea do Sul, em Florianópolis/SC.
Em 2005, sob a coordenação de Zilá Muniz, formou-se
o grupo de pesquisa e criação em dança contemporânea
Mergulho no Corpo. Um grupo de pesquisa prática e teórica
em improvisação, desenvolvendo as últimas montagens do
grupo.
Em 2006, Zilá Muniz concebeu e dirigiu o espetáculo
Movimento para 6, em colaboração com os intérpretes
criadores Egon Seidler, Elisa Schmidt, Karina Degregório,
Letícia Martins, Paula Bittencourt e Vicente Mahfuz,
realizando duas temporadas no Centro de Artes da UDESC, em
Florianópolis/SC.
Em 2007, sob a direção de Zilá Muniz, o grupo
apresentou a pesquisa Corpo Lugar, um processo em
colaboração com Egon Seidler, Elisa Schmidt, Karina
Degregório, Letícia Martins, Paula Bittencourt e Vicente
257

Mahfuz. O grupo participou do Festival de Inverno do


CEART/UDESC no Museu de Arte de Santa Catarina, em
Florianópolis/SC, e do Conexão Sul 2007 - Encontro de
Artistas Contemporâneos de Dança da Região Sul, em
Curitiba/PR.
Ao longo dos anos de 2006 e 2007, o grupo produziu a
Série Mergulho no Palco, de concepção de Zilá Muniz, no
palco do Teatro Ademir Rosa - CIC, em Florianópolis/SC. O
projeto consistiu na apresentação de obras que trabalhavam
com linguagens híbridas do teatro, da dança e da performance,
evidenciando o corpo e a proximidade com o público, num
total de seis edições.
Em 2008, em parceria com o SENAC/SC, Zilá Muniz
dirigiu o vídeo-dança Siga o Risco, em colaboração com os
intérpretes criadores Egon Seidler, Elisa Schmidt, Karina
Degregório, Letícia Martins, Paula Bittencourt e convidados.
Ainda neste ano, o grupo recebeu o prêmio do Concurso de
Artes Cênicas n. 001/FCFFC/2008, da Fundação Cultural de
Florianópolis Franklin Cascaes com o projeto Socorro. O
espetáculo foi concebido e dirigido por Zilá Muniz, em
colaboração com os intérpretes criadores Egon Seidler, Elisa
Schmidt, Karina Degregório, Letícia Martins, Paula Bittencourt
e Vicente Mahfuz. O trabalho foi selecionado para
apresentações no SESC Prainha em Florianópolis/SC (2009),
no 3º FITAFLORIPA – Festival Internacional de Teatro de
Animação de Florianópolis/SC (2009), no Circuito Cênico
2009 de Rio do Sul/SC, na Mostra 30 anos do Teatro da UFSC
em Florianópolis/SC (2009) e no VII Festival Palco Giratório
SESC/SC em Florianópolis/SC (2010).
Em 2010, o grupo realizou a montagem de dois novos
trabalhos. Por meio do Edital Elisabete Anderle de Estímulo à
Cultura – FCC/SC montou Cuida de Mim – direção e
concepção de Zilá Muniz em colaboração com os intérpretes
criadores Egon Seidler, Karina Degregório, Lara Matos,
Vicente Mahfuz e Paula Bittencourt (assistente de direção). Por
258

meio do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2009 montou


Lugar Nenhum – direção e concepção de Zilá Muniz em
colaboração com os intérpretes criadores Egon Seidler, Karina
Degregório, Letícia Martins e Vicente Mahfuz.
Em 2011, com o trabalho Socorro circulou pela região
centro-oeste do país por meio do Prêmio Funarte de Dança
Klauss Vianna 2010 (Cuiabá/MT, Gama/DF, Goiânia/GO e
Campo Grande/MS), pelo estado de Santa Catarina por meio do
projeto Rede SESC de Teatros (Chapecó, Lages, Criciúma,
Florianópolis, Jaraguá do Sul e Joinville), integrou a
programação do Teatro da CAIXA – CAIXA Cultural
Curitiba/SC e fez breve temporada no Teatro da Universidade
Federal de Santa Catarina (Florianópolis/SC). Com o trabalho
Lugar Nenhum integrou a programação do SESC Prainha
(Florianóplis/SC) e a programação do Festival Palco Giratório
Santa Catarina 2011 (Florianópolis/SC).
Em 2012, com Lugar nenhum, integrou a programação
da Maratona Cultural 2012 de Florianópolis/SC (março). O
espetáculo Cuida de mim, reestreou no SESC Prainha em
Florianópolis/SC (agosto) e integrou a programação das
Aldeias Palco Giratório do SESC Joinville/SC e SESC Jaraguá
do Sul/SC (setembro). Deu início a uma circulação pela região
Sul do país (projeto Lugar Nenhum – circulação), por meio do
Prêmio Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro 2010,
passando pelas cidades de Curitiba/PR, Joinville/SC, Jaraguá
do Sul/SC, Porto Alegre/RS e Caxias do Sul/RS com oficinas,
apresentações e conversas (setembro a novembro). E, por meio
do Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis - Edital de
Apoio às Culturas n. 003/2012 - Dança, o grupo promoveu o
projeto de pesquisa e criação Formação para
Estratégia (outubro a dezembro).
Em 2013, continuou a circulação por meio do projeto
Prêmio Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro 2010,
com oficinas sobre o processo de montagem, apresentações do
espetáculo Lugar Nenhum e conversas nas cidades de Campo
259

Mourão/PR, Florianópolis/SC, Lages/SC, Londrina/PR,


Maringá/PR, Passo Fundo/RS e Santa Maria/RS (março a
abril). E, com Formação para Estratégia, integrou a
programação da Maratona Cultural 2013 (março) e do Festival
Múltipla Dança (maio), ambos em Florianópolis/SC.
Em 2014, continua com a pesquisa e apresentações de
Estratégia: integrou a programação do Projeto Território das
Artes da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes
(março) e do Festival de Teatro Isnard Azevedo também da
Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes
(outubro).

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