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Capitulo 12 )} ar nas narrativas didaticas ) | | ..somos fundamentalmente uma historia que vamos com- pondo a partir do que acontece, mas também a partir das va- rias histérias com as quais cruzamos ao longo da nossa vida: as contadas por outros, as que lemos ou as quais assistimos € que constituem um imenso patriménio das historias possiveis. Contardo Calligaris’ Qs livros didaticos sao portadores de um discurse peculiar, a marra- fiva histérica escolar, que é uma sintese resultante das apropriagGes realizadas pelos seus autores diante de demandas sociais. Para elabora- “los, so consultadas obras que apresentam conhecimentos histéricos produzidos por historiadores ¢ outros profissionais que fazem usos do passado, sao levadas em conta constricdes da tradicdo escolar, entre elas a distribuicdo e o tratamento dos contetidos curriculares nos tem- pos da escola, as demandas do pablico leitor — professores © alunos, € por extensdo seus familiares — com finalidades sociais que extrapolam as do conhecimento académico (Chervel, 1990). © curriculo da disciplina escolar histéria, base para a selegdo e orga- nizagao desses contetidos, responde as finalidades sociais de transmissao A pesquisa a que se refere o capitulo teve apoio da bolsa Jovem Cientista de Nosso Estalo Faperj e do Prociéncia Ueri/Faperj. Este capitulo é uma versio modificada do artigo publicado em Rocha (2015:97-120). 1 Een entrevista concedida ao site Mundoliveo: . Acesso em: 30 jul. 2014. 245 de um legado vinculado ao passado, pactuado socialmente como te dos conhecimentos e valores necessdrios 4 formagao de identid (Amezola, 2007:150-151; Carretero, 2010:47). Apesar de criticada ser uma pretensdo um tanto anacr6nica no que se refere 4 formagia. mana a partir de grandes narrativas,’ essa finalidade segue orientan constituigao do curriculo escolar e a formagao de professores de hist Atendendo a essa finalidade, a meméria ocupa lugar relevante definigdo curricular dos contetidos de historia, presente em difere! espagos e produgGes sociais, como na escola, na midia e seus produt eno trabalho sobre o passado dos historiadores. No curriculo escol, a narrativa se constitui em uma composigao da histéria e da mi inclusive escolar, que define o cénone a ser ensinado e aprendido = curriculo de histéria —, segundo as finalidades sociais almejadas. referéncia tanto para os professores, em sua explicagao sobre os dos na aula, como para os livros didaticos no seu processo de produg) rc A partir dessas consideragdes, pretendemos apresentar algumi tendéncias observadas na andlise comparativa entre as narrativas sentes em textos principais dos livros didaticos de histéria vol ao Ensino Fundamental do Brasil, pertencentes a colegdes aprovad; na avaliacao feita pelo Programa Nacional do Livro Didatico de 2011 (PNLD 2011). Ao tratar dessas grandes rendéncias, visamos a poten= cialidade das narrativas na constituigaéo de sentidos sobre o processo da ditadura militar no Brasil (1964-85). Para isso, nos valeremos de elementos de analise selecionados nos estudos do campo da linguagem, {_ além da prépria historiografia sobre o periodo. Até o presente momento, no Brasil, a grande maioria dos livros di- daticos de histéria apresenta um texto principal ou texto base que ini- cia as unidades ou capitulos, seguido ou paralelamente a textos ¢ docu- 2. Um exemplo de critica esta na resposta do pensador e psicanalista italiano Gon= tardo Calligaris, sobre o papel das narrativas na constituigao subjetiva: “No fundo, traduzido nos termos do que estou tentando dizer, existem cada vez menos, aparen= temente, grandes narrativas coletivas das quais a nossa faria parte. (...] E uma outra maneira de dizer que os grandes ideais do século XX estdo no minimo sonolentos, se nao feridos, senaio ainda mortos. Mas acho que a gente nao para de inventar, ape= sar de tudo, narrativas coletivas. Talvez elas nado tenham o mesmo carater universal, aquele sentido de que a narrativa de cada um poderia encontrar seu lugar em uma ¢5- pécie de Histéria do Mundo, 0 que é um sonho do fim do século XVIII que prossegue pelo século XIX inteiro ¢ um bom pedago do XX. Isso provavelmente acabou", Em entrevista concedida ao site Mundolivro: . Acesso em: 30 jul. 2014. 246 mentos complementares € exercicios. A narrativa presente nesse texto principal da inicio a realizagao de um conjunto de procedimentos esua leitura é a base principal, juntamente com a explicagao do professor, para a realizagao das atividades que visam © ensino € a aprendizagem. Gada um desses elementos interage com os demais, porém, tal como em. outras disciplinas, o texto principal concentra a massa de informagées relativas aos conteudos: curriculares, em forma narrativa. Apesar de reconhecer 0 importante papel dos demais elementos presentes no livro didatico, nossa escolha metodolégica nesta pesquisa foi a de analisar a linguagem. verbal do texto principal. Nao caberia no seu escopo a analise de todos esses elementos componentes de cada li- veo, j4 que nosso proposito era comparar objetos da mesma natureza: 0 texto principal de um livro com o do outro. Efetivamente, esses textos podem ser lidos em relagdio com cada elemento paratextual como ima- gens, yocabulario e infograficos, além de mapas ¢ boxes informativos; assim, a analise comparativa seria infindavel. Sabendo da importincia potencial desses elementos, trabalhamos com a ideia de que o professor e o aluno recorrem principalmente ao texto principal para acessar a narrativa sobre a historia ¢ para sanar dividas. Bem como sabemos que, aqui e ali, os professores destacam uma imagem ou um boxe para leitura ou andlise. Mas, como uma pesquisa comparativa, seria neces- sario restringir 0 escopo de analise. Trata-se de uma andlise das narrativas sobre a ditadura militar,endo ~) de como cada autor individual, em cada livro, aborda o tema. Assim, nos propomos a apresentar algumas tendéncias potencialmente presentes no conjunto de narrativas € relativas 4 produgao de sentidos ¢ nao, necessa- tu riamente, o que diz cada uma delas sobre o tema analisado.* J Entre a semethanca ea diferenga: 3 narrativa historica € 8 narrativa ficcional Quando nos referimos aos potenciais de sentido de uma narrativa, ¢s- tamos dialogando eletivamente com referenciais de campos de estuda ane J Aqui nos aproximamos da proposta tearica de formagdo discursiva, que responde pelo “sistema de regeas que funda a ‘inidade de um conjunto de enunciados s6cio- Mee onicamente circunscrito”. Ver Maingueneau (1998). 2AT relacionados com a linguagem: filosofia, linguistica, analise do di so e teoria da leitura, além da prépria historia. No caso da nari com finalidades didaticas, ha ainda a considerar a mediacao reall pelo professor, que surge como um leitor especifico, estabelecenda | limites pretendidos da leitura dos alunos. A partir de Ricoeur, entendemos que todo texto se estrutura a tir de aspectos internos ¢ externos. E também é uma proposta de do a ser compartilhada. Em uma narrativa histérica, o leitor eneont um texto expositivo de cardter factual e, ao mesmo tempo, um tral mento ao material factual, o que envolve uma perspectiva analitica, propostas de sentido da narrativa sobre a ditadura militar no Brasil volvem essas duas dimensGes que atuam potencialmente na forma: histérica dos alunos. Segundo Nicolazzi, a partir de Ricoeur, o tempo configurado em texto institui ainda a ponte que vai do autor para o leitor, rornando apto para “seguir a histéria”. Completamos, as formas linguisticas lhidas para sua composigo contribuem para essa aptiddo. A comy sao de uma histéria narrada depende, assim, de sua competéncia dise va para ser compreendida. “Compreender a historia é compreender © © por que os episédios sucessivos conduziram a essa conclusao, a qui longe de ser previsivel, deve finalmente ser aceitavel, como cong com 0s episédios reunidos” (Ricoeur, 1994:105), No caso da narrativa histérica, o investimento em sua escrita é fur to do compromisso em ampliar o conhecimento sobre os homens e1 sua relagdo com o tempo, especialmente o tempo passado, a partir da critica documental. As caracteristicas da constituigo de seu enredo — como a apresentagao de sujeitos especificos, datas, locais e acontes cimentos — produzem um efeito de realidade, propiciando a crenca de que se refere a coisas que aconteceram de certa forma e se tornaram importantes para coletividades. cr Uma diferenga importante entre a narrativa hist6rica escolar e aquela produzida por historiadores é que a narrativa historica escolar ¢ uma sintese didatica, visando contribuir para o ensinar e o aprender, Ou sejay mantém 0 compromisso de narrar o que aconteceu a partir de textos jal produzidos — textos da area de conhecimento sobre o tema ¢ fontes jor nalisticas (especialmente quando o tema esta vinculado a temas recentes) (_ — Para o ensino de histéria, realizado por alunos e professores. 248 Situando o problema; os sentidos sobre a ditadura militar no Brasil Visando situar a produgao didatica atual no percurso das narrativas so- ee bre a diradura militar no Brasil, realizamos breve pesquisa exploratéria | com livros publicados no periodo entre 1969 e 1978. Em um conjunta aleatério, selecionamos trés livros do periodo. Neles, nao ha a mengaio. i| 4 palavra ditadura ou é feita a referéncia ao golpe de Estado como tal. | Os titulos ¢ mengées ao acontecimento tratam o periodo como inte- grando a “Republica Nova”, iniciada em 1930 ou a partir de 1945, no \ livro de Ilmar Rohloff de Mattos e colaboradores, e no de Sérgio Buar- que de Hollanda ¢ colaboradores, respectivamente. A mengio ao golpe é feita como “Deposigio de Joao Goulart pelas Forgas Armadas” pelo primeiro e *O Movimento de 31 de margo de 1964” pelo segundo livro. ‘A obra de Armando Souto Maior apresenta o periodo militar no capi- tulo “A redemocratizacio do pais” e denomina o golpe de “Revolugdo i Gloriosa”. Vemos que a proximidade dos acontecimentos ¢ as interdi- | des postas pelo proprio regime de excegio desafiaram os autores quan- L to ao que e como falar (Orlandi, 1994:59). ‘A denominagao de ditadura militar para o proceso histérico trans- nt | corrido entre 1964 e 1985 passou a ser utilizada nos titulos e mengdes presentes nos livros didaticos de histéria a partir do reconhecimento tacito do periodo como ditadura e da possibilidade de sua enunciagao como tal’ As narrativas sobre a ditadura foram se transformando ao longo da década de 1980, & nesse momento que os livros didaticos co- megam a afirmar a existéncia de um periodo ditatorial e a mencionar 0 golpe militar, alguns deles de forma ainda timida. J Percebe-se, nessa breve pincelada em livros do proprio periodo, o movimento de estabelecer uma linha diviséria entre o presente e 0 pas- sado, deslocando para o passado a dolorosa ou ao menos desconfor- tavel experiéncia social da ditadura. Temos assim, em 2014, passados 50 anos do inicio e quase 30 de seu fim, um contexto instigante para a andlise do tratamento do tema da ditadura militar nos livros dida- ticos de historia. A partir da abertura politica, ocuparam o cargo de 4. As referencias dos livros citados, na ordem, sia: Mattos, Dottori e Silva (1975); Hollanda et al. (1972); Suto Maior (1969). 5, Entendemos enunciacao como Ducrot (1987:179}, como “o acontecimento consti- tuido pela aparigao de um enunciado”, 249 presidente da Republica pessoas que foram participantes ativas da vi politica naquele periodo, em posigdes diversas, do lado do poder con tituido e de sua oposigao. Processos atuais como o da abertura arquivos da ditadura e o funcionamento das comissées da verdade, qi trazem a piiblico o depoimento de participantes do acontecimento € Processo subsequente a ele e de suas repercussdes, mobilizam lembr: gas de outros tantos da mesma geragao dos depoentes, tendo vivide ditadura de formas semelhantes ou contrdrias (Fico, 2004). © tratamento desse tema se configura como um exemplo da hit téria recente, também denominada como histéria do tempo pres te (Dosse, 2012). Essa histéria apresenta implicagoes que funciona ‘como mecanismos externos na producao da narrativa sobre a ditadura militar. Os livros didaticos necessitam constituir uma_narrativa sintetize a histéria e inclua tal processo em sua narrativa maior sol a nagao. Nos parametros colocados para a produgao dessa histéria, ai narrativas tratam de um tema traumiatico e recente, construidas a pare tir de elementos da memoria social e da histéria. Tratam da experiéncia dos sujeitos, contada pela meméria, ¢ da reflexdo histérica sobre essa. experiéncia. Considerando esse contexto, na sequéncia apresentamos: algumas conclusées sobre sentidos oferecidos como propostas, a partir das narrativas dos livros didaticos de histéria do PNLD 2011. Anarrativa sobre a ditadura militar nos livros didaticos: o todo e suas partes A coeréncia, um dos mecanismos internos ao texto, diz respeito aos aspectos da organizagao e estabilizagio da experiéncia humana no tex to, conforme afirma Marcuschi (1986:28), Sua base é a continuidade de sentidos em meio ao conhecimento ativado pelas ideias do texto, Comegamos nossa analise com o reconhecimento da estrutura com- posicional da narrativa em cada um dos livros examinados, Em todos eles existe uma sequéncia que se inicia nos seus antecedentes, na Crise do governo Jodo Goulart, que teria provocado o golpe de Estado, se desenvolve com os diferentes momentos do periodo ditatorial e destaca os presidentes da Republica do periodo. A narrativa sobre a ditadura militar no Brasil também apresenta aspectos da economia e da politica 250 do periodo e termina com a posse de Tancredo Neves em 1985, eleito de forma indireta apés o movimento popular das “Diretas Ja”. Este € o resumo da histéria que ecoa em todos os 15 livros de histéria que apresentam a narrativa analisada. Em todas as colegées o tema é tratado no volume relativo ao nono ano do Ensino Fundamental, distribuido em sua progressao em capitu- los de forma diversa. A narrativa se desenvolve em apenas um capitulo ou em capitulos separados que encadeiam o seu desenvolvimento, ou alternados, com capitulos sobre a histéria mundial. Dos 15 volumes analisados, seis apresentam a ditadura em apenas um capitulo, cinco em capitulos encadeados e quatro integrados ou intercalados com a histéria mundial. Nos volumes em que essa narrativa ocorre em um capitulo, é enfati- zada uma abordagem especialmente politica ¢ aglutinadora da historia: periodo democratico que antecede a ditadura, ditadura e redemocrati- zagao. Nos cinco volumes que apresentam a narrativa encadeada, mas distribuida em mais de um capitulo, alguns subdividem o periodo da ditadura em seu momento inicial, os “Anos de Chumbo” e do “Milagre Econémico”, ¢ finalmente a abertura democratica, que algumas vezes é deslocada para o capitulo relativo 4 redemocratizagao ou Nova Re- publica. Essa distribuigdo contribui para a apresentagdo de subtemas, como a resisténcia, habitualmente tratada na forma de produgao cultu- ral e da luta armada. Em um grupo menor de livros a histéria mundial se intercala ou se integra com a hist6ria do Brasil em uma tendéncia atual das publicagdes de historia: a organiza¢ao integrada de temas da historia nacional com temas da historia mundial, ou ao menos intercalada, em capitulos diver- sos.* Nesses temas, apresentam a descolonizacao da Asia e da Africa e aspectos relacionados com a Guerra Fria como momento especifico do socialismo e do capitalismo mundial. Algumas coleges estabelecem ne- xo mais claros entre esses tépicos ¢ a ditadura militar e outras, nao. Um &. As colegdes de livros didaticos de histéria no Brasil durante algumas décadas ti- veram sua organizacio separada em histéria nacional (historia do Brasil) ¢ hist6- ria geral, com dois volumes para cada histéria. Desa maneira, quando o tema da ditadura militar no Brasil era tratado, sua narrativa possuia certa continuidade na historia nacional. Para mais detalhes sobre a arganizagio das colegdes de historia do PNLD 2011, ver Guia dos livros diddticos de historia: . 251 | GINTG) CINE. UG Stare. SS PUIG & herauves bom exemplo dessa alterndncia nos é oferecido pelo volume do % ano da colegio 1, que distribui o tema em sua relagdo com a histéria mundial;? Capitulo 11: O Golpe de 1964 Capitulo 12: A descolonizagao da Asia e da Africa Capitulo 13: A expansao ea crise do socialismo Capitulo 14: A reorganizagao e o apogeu do capitalismo Capitulo 15: Brasil: os anos repressivos do regime militar Capitulo 16: O final do governo militar no Brasil Capitulo 17: A Nova Republica no Brasil* Nesse livro observa-se que 0 desencadeador ou estopim do golpe ¢ 0 préprio golpe de Estado sdo apresentados no capitulo 11 e somente sao recuperados apés trés capitulos que tratam de temas com maior ou menor relagdo com a ditadura militar. No que se refere ao_potencial de produgao de sentidos, tal caracteristica desse e de outros livros —a separacdo em capitulos diversos, bem como algumas vezes a forma al- ternada entre a historia nacional e a histéria mundial — pode dificultar a compreensao do enredo, exigindo recapitulagées ¢ repetigdes, 0 que € realizado em parte nas narrativas das colegGes, especialmente nas. introdugées dos capitulos. O trabalho de leitura é um dos aspectos externos ao texto, envol- vendo a bagagem experiencial dos alunos — inclusive de leitura — para o estabelecimento de nexos entre os capitulos dedicados a histéria do Brasil e 4 mundial, bem como exige que o aluno recupere os nexos da narrativa interrompida sobre a ditadura. Quando essa exigéncia nao realiza, o leitor se vé diante de uma ditadura no Brasil que se inicia sem motivo algum, ¢ termina sem explicagées, além da vontade dos mil " res. Lembremos da adverténcia de Ricoeur sobre a necessdria apti do texto para ser compreendido. Assim, se a historia integrada res de a algumas necessidades de Ambito diditico e histérico, por out! 7. Seguindo a proposta apresentada, ndo denominaremos cada colegao a0 exemplos. Elas sio tratadas pelo nimero de identificacao. Para ver a relagao pleta das colegées mencionadas, ver Guia dos livros diddticos de histéria: . 8. Nesse capitulo é apresentado o final do periodo ditatorial. pode comprometer a compreensao na leitura da narrativa, o que exige \_ cuidados adicionais em sua producio. Na continuidade do artigo, trataremos as narrativas em sua unida- de composicional, abstraindo as separagGes ¢ alternancia entre essas segdes € os sentidos que propiciam, ou nao. O estopim da narrativa: a crise no governo Jango (7A situagdo que antecede o golpe de Estado que inicia a ditadura é de crise generalizada. E é a essa crise que as narrativas arribuem o de- sencadeamento do golpe de Estado. A forma de apresentar esse fator desencadeador é que difere um pouco entre as colegdes, especialmente no que se refere ao tratamento discursivo conferido 4s forgas sociais que agiram naquele momento. Essa forma diversa também constitui L_ Potenciais de sentidos diversos na construgdo do enredo. As narrativas constroem um percurso em que Jango é empossado apés a renincia de Jinio Quadros em um quadro de crise institucional, Mencionam que o presidente estava entre forgas antagonicas — algumas vezes denominadas claramente e outras ndo — e que, sem ajuda do par- lamento, buscou o apoio popular diretamente por meio da aproximagao com as camadas populares, em agdes como o muitas vezes citado comi- cio da Central do Brasil, semanas antes do Golpe. Arrolam algumas das agGes do governante que vieram a aprofundar a crise em suas dimensGes politica e econémica. Algumas mencionam reagées de grupos sociais que vieram em apoio, ou contra as agdes de Jango. Em algumas outras sdo mencionados nomes dos sujeitos individuais que atuaram mais fortemen- te no desenrolar dos acontecimentos. Em outras, ainda, ha referéncia a tendéncias ideolégicas expressas por correntes politicas ou econémicas, sem denominacio clara dos grupos ou personagens que fariam parte dessas correntes. Entre esses sujeitos ¢ suas agées, elementos macroestru- turais, como a inflacao e as relages internacionais. Como esses diferentes atores representam graus diversos de abstra- cao e generalizacao, e os alunos da escola basica, em principio, ainda nao conhecem as relagdes possiveis entre eles, percebe-se ai uma difi- culdade potencial para o trabalho de conferir sentido aos fatores que 353 Livros diddticos de historia: entre politicas e narrativas propiciaram o estabelecimento da ditadura, Em uma ponta, temos 6 sujeitos individuais, com Jodo Goulart, Carlos Lacerda e outros, outra, grupos de sujeitos coletivos, conformando uma corrente de p samento ou classe, como conservadores, direita, classes populares. profusao possivelmente se configura em mais uma dificuldade para estabelecimento de sentido na compreensao dos alunos. As narrativas presentes na maior parte dos livros apresentam um associacdo mais ou menos direta dos setores mais conservadores ou de direita da sociedade a um grupo de politicos ou de partidos, 4 Igreja Carélica, ao grande empresariado, aos militares e 4s camadas médi, da sociedade. E dos setores de vanguarda, ou de esquerda, apresent dos em algumas colegdes como os preocupados com a melhoria d condigdes de vida dos segmentos populares, outro grupo de politica ou de partidos, os estudantes, intelectuais, lideres sindicais e de trabar Thadores rurais.’ Em algumas narrativas, apenas esses segmentos pop lares sio mencionados como povo. As lacunas nessas articulagdes sdo preenchidas de forma heterogi nea pelas diferentes colegées, Parece estar claro para seus autores quet era quem e suas relagdes com grupos ou correntes. Para os remanescel tes do periodo, existe alguma clareza sobre quem foi Carlos Lacerda ou Leonel Brizola, sobre o papel do Partido Trabalhista Brasileiro (P ou do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no jogo politico ¢ na histé brasileira. Mas, para estudantes da faixa etdria de 14 anos, nascido em torno do ano 2000, muitas vezes esse movimento aparent te aleatério entre sujeitos individuais, coletivos ¢ correntes ideolégi que participaram daquela crise, em polos iguais ou opostos, mostra um possivel obstaculo para a compreensio dessa histéria. O po Um exemple esta na narrativa da colecao 9 (v .8, p. 185), que ass cia no segundo trecho “os mais diversos setores da sociedade” a b politica do presidente Jodo Goulart. Entretanto, os segmentos social mencionados nao sugerem explicitamente essa mobilizagdo generali da de toda a sociedade: 9, Fiorin (1997) apresenta uma critica a0 ensino escolar de substantivos con e abstratos, por ocorrer desarticulado da compreensao de textos. Sua observagaio pertinente ao ensino de historia, pais os sujeitas histéricas possuem diferentes g de concretude, o que é muitas vezes desconsiderado na construgao dessas narrativas, Fortalecido pelo apoio popular, Goulart articulou um plano econémi- co que previa o combate a inflagao [...] e a implementagao das chama- das reformas de base. A mais polémica delas era a reforma agraria, [...]. Essas propostas foram debatidas pelos mais diversos setores da sociedade. No campo, a campanha em defesa da reforma agraria era liderada pelos sindicatos e confederagées. Nos grandes centros urbanos, sindicalistas, intelectuais ¢ estudantes promoviam manifestagdes de apoio as reformas. Poucas obras apresentam uma denominagao para as forgas sociais € sua relacdo com os sujeitos individuais ou coletivos nessa polarizagao. Mencionam oposigio, mas nao fica claro quem faz parte da oposigao. Dessa maneira, existem lacunas de sentido a serem preenchidas pelo leitor, que nao discerne os movimentos realizados pelos protagonistas e antagonistas desse enredo e suas relagdes com 0 golpe. Como exemplo, 0 trecho: “|... A oposigao organizou em Sao Paulo a ‘Marcha da fami- lia com Deus pela Liberdade’, que mobilizou as camadas médias da po- pulago. A ala conservadora da Igreja Catélica apoiou essa marcha”... Ha divergéncias sobre esses antecedentes no Ambito da propria pro- dugao histérica. Hé explicagdes que passam pelos eventos politicos outras que remetem a fatores macroestruturais. Fico sintetiza a difi- culdade no 4mbito da historiografia: “A caréncia de andlises politico- -institucionais talvez se explique pela grande dificuldade tedrica de bem correlacionar os eventos da pequena politica aos condicionantes estruturais” (Fico, 2004:19). A narrativa escolar tenta sintetizar essas explicacdes divergentes de forma inteligivel para os alunos. Algumas colegdes investem em transi- tar entre o evento e a estrutura, se destacando por seu esforgo de expli- cagao ¢ correlagao entre os diferentes niveis, mais ou menos concretos ou abstratos de sujeitos. Um exemplo esta em uma das narrativas em que se fala sobre “forgas antagénicas”, so realizados com mais clareza 0s movimentos que pas- sam pela definicao do antagonismo entre elas e é claramente evidenciada a associagdo com sujeitos coletivos ou individuais que representam tais forcas. Vejamos essa construgao de sentidos na colegio 10 (v. 8, p. 197): 12 movimento: caracterizagao da existéncia de grupos: “A partir de 1963, as lutas politicas intensificaram-se no pais. Os diversos grupos mobilizaram-se para defender seus interesses”. 255 ee eS ee ee ee en ee eee ese ae 2° movimento: caracterizagio de um dos grupos: “Desde 1962, operdrios estavam organizados no Comando Geral dos Trabal (CGT). Quanto aos trabalhadores rurais, na década de 1950 haviam do as Ligas Camponesas [...]. Nas universidades, atuava a Uniao N: dos Estudantes, entidade bastante atuante na vida politica da época”, 3* movimento: Caracterizagao do grupo antagénico: “Contra posicionavam-se jornais da grande imprensa [...], um grande ni de empresdrios e fazendeiros, bem como setores importantes da cla média e da Igreja Catélica”. 4° movimento; Denominagdo de esquerda e direita para as antagénicas ¢ a posicao delicada de Joao Goulart: “Jodo Goulart -se numa situagao dificil, tendo de manobrar entre forgas antagénic: A esquerda queria mudangas imediatas e radicais [...]. A direita, sua vez, acusava Jango de estar conduzindo o pais para o comunismo Afora algumas colegdes que realizam um investimento discursivo pai a articulagao mencionada, vemos que, apesar de todas as narrativas aj sentarem a crise do governo Jango como o estopim da ditadura militar, forma de construgao do enredo ¢ seu desdobramento em muitas delas no contribui efetivamente para o estabelecimento de sentido para as partes em disputa, repercutindo na compreensao da sequéncia causal do golpe, Se nos voltarmos estritamente para os aspectos linguisticos, Fiorini (2004) propée a caracterizagao de palavras com sentidos concretos ou abstratos articuladas ao funcionamento dos textos. Considerando que essa oposi¢do constitui uma categoria da linguagem e nao da realida- de, define que concreto é 0 termo que remete a algo presente no mun- do natural, entendido como “os universos produzidos pelo discurso”, E abstrato é a palavra ou expressdo que nao se refere a algo efetivamen- te presente no mundo natural, mas exprime categorias que organizam os elementos ai existentes. Sua defini¢do contribui para que consideremos o desafio de ensinar histéria a alunos que ainda estao constituindo sua compreensao sobre o mundo social em sua discursividade e historicidade. O “politico”, por exemplo, que muitas vezes é traduzido como corrupto a partir da bagagem experiencial dos alunos, precisa ser problematizado e histori- cizado, para que se perceba sua filiacdo a ideias e correntes ideolégicas, Esquerda, direita, comunistas, comunismo, conservadores, Forgas Ar- 256 madas sao categorias que organizam os elementos presentes no mundo Jocial ou natural. Nao esto dados nesse mundo. Sua observacao é pertinente ao tema da nomeagao dos sujeitos histéricos que atuam como personagens na narrativa. Eles possuem diferentes graus de concretude, ou de insergio no mundo social, con- forme vimos no quadro anterior, o que é muitas vezes desconsiderado na construgdo de narrativas histéricas escolares. Tal desconsideragao pode propiciar uma compreensdo diversa da pretendida pela obra. Ou pior, a nao compreensao. Formas de contar a ditadura: os sujeitos e suas agoes O conjunto de narrativas trata do periodo que se inicia com golpe de Estado como agenciado principalmente pelas Forgas Armadas bra- sileiras. Poucas colegSes mencionam explicitamente a participagao da sociedade civil durante a ditadura, atribuindo a determinados repre- sentantes da elite uma alianga com os militares para o Golpe, como no trecho seguinte da colegao 2, volume do 9 ano (p. 208): Em 1964, setores civis e militares arquitetaram um golpe de Estado que derrubou 0 governe do presidente Joao Goulart e deu inicio ao periodo da ditadura militar no Brasil. As forgas que apoiaram o golpe de 1964 — formada pelos grupos mais conservadores da sociedade brasileira, incluindo partidos p icos, representantes das elites econdémicas na- cionais e internacionais — acreditavam que a implantagio de um go- verno forte, com base militar, seria capaz de promover [...]. Qs sujeitos elencados na confusa crise do governo Jodo Goulart sao sintetizados em uma “elite” econdmica e politica conservadora que se associa aos militares. Em muitas dessas narrativas, ocorre a apropria- cio do termo proposto por uma nova historiografia do periodo como “golpe civil-militar”.” Entretanto, apés esse Momento, Mesmo esscs apoiadores desapare- cem da narrativa, que passa a sé desenvolver em torno das ages dos To Eo caro do artigo de Daniel Aatio Reis, publicado no Jornal O Globo em 31 mar. 2012. 257 militares, representados na figura dos presidentes militares do do. Dessa maneira, se no momento da crise do governo Jodo ha uma profusio de setores, grupos ¢ individuos em luta, a pil implantagao da ditadura mencionam-se passeatas pontuais até apesar de ocorrerem com grande afluéncia de sujeitos especii tudantes, intelectuais e classe artistica, quando é baixado o mal lento ato institucional, o AI-5. De certa maneira, a narrativa ele manifestantes como representantes da presenga e participagio oposicao da sociedade civil durante a vigéncia da ditadura. Essa lacuna encontra correspondéncia nas referéncias utili ena producao historiografica. Muitos historiadores sustentam qi participacao civil ocorreu no momento do golpe e depois os mill ocuparam o Estado. Mas isso também nao esta dito nas narratl A esse apagamento dos outros sujeitos sociais e ao foco quase exel sivo nos militares na implantagao da ditadura segue-se, em po colegGes, uma justificativa para a tolerdncia social ao golpe milili “A expectativa era que ele apenas completasse o mandato de Jol Goulart [...] por isso, inicialmente, muitos setores nao se opuseram o novo governo. Porém, o governo militar se prolongou” (colegao 1 v. 92 ano, p. 196). A maioria das colegdes desenvolve sua narrativa sobre a ditadura partir da sucessao de presidentes, conforme a tradigao da histéria ese lar sobre o periodo republicano brasileiro. Seguindo o mesmo mode 9 conjunto de generais do periodo é apresentado com suas reali: especialmente no que se refere aos atos institucionais que contribui para a manutengio do regime de excegao, explicados em maior ou m nor detalhe nas diferentes colegdes, Algumas colegdes se valem de uma categorizacao criada na produ cao historiografica nacional e baseada na ciéncia politica, que relacio os militares e, por conseguinte, os presidentes a duas tendéncias dente do pensamento militar 4 época: a linha moderada, mais intelectualiz da, e a linha dura, que seria a principal responsdvel pela face violenta da ditadura."' Em algumas obras sdo apresentadas épocas dentro do. regime militar: “Anos de Chumbo”, “Milagre econémico”, “transigao” 11, Como exemplo dessa proposigio no Aambito da historiografia, ver Fausto (2012) Essa é uma das obras arroladas nas bibliografias de diversos livras didaticos analisados, 258 ou “abertura”, relacionadas com determinadas caractert to politico (repressdo, censura, mobilizagao social, resisténcia), econd- mico (desenvolvimento, empréstimos, obras monumentais, inflagao) ou ainda cultural (vitéria na Copa do Mundo, produgao artistica de resis- téncia, alienagao). Essas denominagées se combinam, caracterizando 0 periodo de governo de cada presidente militar. ‘Ao teferir-se 4 face mais sombria da ditadura, sintetizada na de- nominagao “Anos de Chumbo”, as colegées silenciam sobre o possivel consentimento social 4s agdes atribuidas a linha dura dos militares: pri- sdes, torturas, assassinatos, desaparecimentos inexplicados. A denomi nagao “poroes da ditadura”, utilizada por vezes, distancia tais atos da vida cotidiana ¢ da responsabilidade social pela sua ocorréncia. Uma das narrativas justifica que “as agdes dos militares dentro desses orgaos eram totalmente omitidas da populago, que, em razdo da censura, se mantinha desinformada das atrocidades cometidas pelo regime” (cole- cio 1, v. 9° ano, p. 197). Dessa maneira, é possivel perceber alguns movimentos da narrativa na incorporacdo da sociedade ¢ de seus segmentos ao longo do periodo. No primeiro momento, ja registrado, a sociedade civil é representada por artistas, intelectuais e estudantes que participam de passeatas con- tra o regime nos primeiros momentos da ditadura. Algumas liderangas politicas se interpGem e sio neutralizadas com o exilio. A seguir, diante do endurecimento do regime, cria-se e desaparece o movimento da luta armada, justificado por esse endurecimento. E uma parte da produgdo artistica € qualificada, da mesma forma que o movimento da luta ar- mada, como representante da resisténcia ao regime.'? Percebe-se assim que um mecanismo externo ao texto, sua Compo- sigo a partir da intertextualidade com a produgao historiografica, ela propria afetada pela vivéncia e necessidade de posicionamento diante dos acontecimentos, afeta diretamente o potencial de sentidos da nar- rativa sobre a ditadura. 12. Tal posicionamento, encontrado na maioria das narrativas analisadas, sc constitui em releitura de obras que clamam pela atuagio social de resisténcia durante a dita- dura, 0 que comeca a ser problematizado por historiadores do periodo (Rollemberg, 2006:81). 259 eal O desfecho da ditadura militar no Brasil © desfecho da ditadura transcorre com o gradual fortalecimento da sociedade civil como protagonista da histéria, no conjunto das narra- tivas analisadas. Mesmo nas obras cujos capitulos se organizam tendo como referéncia cada presidente e suas realizagdes, o nome do ultimo presidente, Joao Baptista Figueiredo, é pouco citado, sendo atribul- do protagonismo a segmentos sociais: sindicatos, Igreja, artistas, Con- Bresso, diversos politicos — muitos retornados do exilio € alguns ou- tros presentes na vida politica, como Dante de Oliveira, Ulisses Guima- raes e Tancredo Neves. No conjunto das narrativas, especialmente nas dimensées politica ¢ institucional, e no plano da expressao dos direitos civis, incluindo a liberdade de expressao, os militares foram recuando em suas medidas de excegdo e, a0 mesmo tempo, possibilitando a rea- bertura, como no caso da anistia, que trouxe de volta ao pais persona- gens exilados no inicio da ditadura. © momento mais marcante registrado pelas diferentes narrati- vas antes do desfecho, demonstrativo do fortalecimento da sociedade como sujeito histérico, é 0 movimento das “Diretas Ja”, quando mi- Ihares de pessoas foram as ruas em diferentes cidades para declarar o desejo de acabar com a ditadura por intermédio do fim das eleigdes indiretas para presidente. Afinal, o cargo de presidente da Repiiblica era ocupado por meio da eleicao em um colégio eleitoral que durante a ditadura propiciara a continuidade dos militares 4 frente do mais alto cargo do Executivo federal. O projeto de lei sobre as eleigées diretas foi derrotado, mas surgiu uma candidatura de consenso entre os partidos Para concorrer ao colé- gio cleitoral. Com um toque ti igico, houve a morte do presidente eleito na véspera de sua posse, dando-se prosseguimento ao rito de transmis~ sdo do poder ao vice-presidente, José Sarney. A partir desse governo re- sultante de um processo planejado de retirada do poder pelos militares, a democracia se restabeleceu no Brasil. Entretanto, mais uma vez, se por um lado todas as narrativas rela- tam esses acontecimentos, com os nomes dos personagens envolvidos, as datas ¢ os locais, uma parte dos livros ndo explicita esse momento de passagem claramente. Muitas narrativas nao deixam suficientemen- 260 A GRACUIS MIIKSr Nas Narrativds Gigdtite> te claro que a elei¢ao indireta dos primeiros civis, comprometida com uma carta de intengdes democratica que se consubstanciaria na consti- tuicao cidada, concretizou a retirada dos militares do poder, acabando com a ditadura que durara 21 anos. Vejamos um exemplo de desfecho pouco elucidativo na conclusdo da narrativa presente na colecdo 8, volume do 9° ano (p. 207-208): Passada a decepgao pela derrota da emenda Dante de Oliveira, orga- nizaram-se duas chapas que concorreram 4s eleigdes indiretas para a presidéncia da republica. Pelo PDS candidatou-se Paulo Maluf; da co- ligagio PMDB/PFL (Partido da Frente Liberal, criado por um grupo que se desmembrou do PDS), candidatou-se Tancredo Neves, que saiu vencedor no colégio eleitoral em janeiro de 1985. Leal José Sarney assumiu a presidéncia da Repiblica no mesmo dia da morte de Tancredo Neves, herdando dos governos anteriores uma grave crise caracterizada por divida externa, desemprego e arrocho salarial. Uma apreciagao comparativa entre José Sarney, o vice-presidente que acaba por ocupar a presidéncia, e os militares se constitui em uma Gltima e vaga referéncia aos militares no paragrafo seguinte: “Embora pertencendo a um partido conservador, o PFL, José Sarney [...] repre- sentou um consenso — melhor ele que os militares”. Dessa maneira, no momento da abertura os militares se retiram de cena do mesmo modo que desaparece a sociedade brasileira como sujeito historico durante boa parte da ditadura militar. Essa retirada silenciosa e silenciada concretiza o desejo do presidente Figueiredo, ci- tado em apenas uma das narrativas: “Que me esquegam!”. Conclui-se que existe descontinuidade no estabelecimento dos personagens sociedade civil e militares na narrativa sobre a ditadura civil-militar brasileira. Como visto no segmento anterior, existe uma tendéncia no conjunto das colegdes de apresentar a sociedade a época de Jango dividida entre concepgées ideoldgicas acerca de seu projeto. Durante a ditadura, os setores de vanguarda, ou de esquerda, perma- necem existindo ¢ agindo de diversas formas e os conservadores, ou de 261 direita, desaparecem da cena publica, nao sendo mais mencionados, On “militares” ¢ cada presidente em seu periodo passam a personalizar Pensamento € a agao conservadora. Em grande parte das colecées, no fim da década de 1970 e inicio da de 1980, no momento da abertura, toda a sociedade como que ressuscita — de forma coesa — participan: — do de passeatas e manifestagées puiblicas, fortalecendo movimentos so- ciais diversos, como sindicatos ¢ associagées, propondo e endossando agGes pelo fim da ditadura. cr Assim, as narrativas analisadas atribuem a sociedade brasileira como um todo a responsabilidade pelo enfraquecimento da ditadura, mesmo quando silencia ou se ausenta. Tal tendéncia sugere existir uma questéo — que sabemos extrapolar os livros didaticos — em torno de l quem é a sociedade brasileira, em sua diversidade e historicidade. A partir dos sujeitos coletivos apresentados no quadro anterior, uma parte das coleges sugere uma associa¢ao subliminar entre a so- ciedade, 0 povo e segmentos populares, estabelecendo uma dicotomia entre povo e elite, tal como se essa elite nao fizesse parte da sociedade em sua historicidade. lie Se, por um lado, uma narrativa de sintese como a do livro didatico possivelmente tera dificuldades para expor e trabalhar com a comple- xidade constitutiva dessas categorias organizadoras do mundo social, Por outro, a assungao de dicotomias que simplifiquem tais categorias pode nao habilitar o leitor a compreender de forma mais adequada tais narrativas. Afinal, se a narrativa é uma proposta de sentido ¢ entre esses sentidos esta o de sua perspectiva analitica, dessa forma podem se per- tL Ppetuar visGes simplificadas sobre as relacdes sociais nas novas Beragées. 0 senso historiografico e o consenso da narrativa escolar Beatriz Sarlo, em sua obra Tempo passado, diferencia historia e memé- ria, considerando o lugar social da meméria, mas, a0 mesmo tempo, defendendo a especificidade da histéria no enfrentamento do passado (Sarlo, 2007). Ela também diferencia, a partir dessas duas nogdes, os usos sociais da meméria ¢ da histéria, discernindo os compromissos de oficio na produgao do conhecimento histérico, a mobilizacao da 262 historia/memoria pelos meios de comunicagao segundo as regras do mercado cultural e as expectativas sociais quanto histéria escolar. A autora sustenta que, diferentemente da exigéncia critica da hist6- al ria de matiz académico, existe uma expectativa social de que a histéria escolar apresente aos alunos uma narrativa com principio, meio e fim, em que a sequéncia causal esteja clara para seu publico e os pontos de dissenso sejam superados em favor das finalidades sociais do seu ensino. Messe sentido, a historia e a memoria seriam mobilizadas diferentemen- te na instancia didatica ¢ a produgao de uma narrativa compreensivel pelo piiblico estudantil estaria no horizonte dos usos do passado pela escola. 4 ‘Ao analisar o tratamento do tema da ditadura militar no Brasil nas narrativas de livros didaticos de histéria do Ensino Fundamental, é possi- vel concluir que elas atendem A finalidade social de apresentacdo de uma histéria compreensivel 4s novas geragdes, porém com algumas lacunas € incongruéncias relativas a mecanismos internos € externos ao texto. Em relacdo aos aspectos internos ao texto, diversas narrativas pa- decem de poucos mecanismos coesivos, que conferem coeréncia, entre diferentes denominagdes relativas aos sujeitos historicos que atuaram no momento, necessitando atribuir maior clareza quanto as relagdes de pertencimento ou antagonismo entre correntes de pensamento a que se filiavam os segmentos sociais, bem como os individuos. Ainda como elementos internos, a narrativa nao contribui, seja pela separagao ¢ alternancia em capitulos sem remissao aos capitulos anteriores, seja por nao estabelecer nexos causais claros, entre os fatores propiciadores, desenvolvimento da ditadura e seu desfecho. A histéria tem principio, meio e fim, mas as relagGes entre essas partes no estdo suficientemente claras para o jovem leitor. Com isso, a proposta de sentidos da narrativa perde seu potencial de compreen- so, Passeia-se algumas vezes pelos acontecimentos em seus detalhes jornalisticos, lugar de existéncia plena dos sujeitos individuais, mais ou menos inseridos em grupos e correntes que atuam como sujeitos cole- tivos, sem explicitar suficientemente as relagdes existentes entre esses elementos para leitores de novas geragGes. Em relagdo aos mecanismos externos de constituicao do texto, con- siderando que qualquer texto dialoga com outros textos ¢ com a rea- 263 lidade social, destaca-se a apropriacao didatica de um conjunto hete- réclito de registros sobre acontecimentos recentes. A andlise realizada permite concluir que a narrativa escolar padece dos constrangimentos préprios da temporalidade em que ela ¢ escrita, a partir de outras escri- tas também constrangidas. Sao fontes produzidas no calor da hora, sob o impacto da meméria e dos deveres que se constréi em relagio a ela. Segundo Fico, a abordagem propriamente histérica sobre o golpe de 64 € o regime que o sucedeu é recente, em um movimento de incorpo- racao, pelos historiadores, de tematicas tratadas quase exclusivamente por cientistas politicos ¢ sociélogos e narradas pelos préprios participes até entio. O autor acrescenta que a literatura ficou marcada, em uma primeira fase, por dois importantes géneros. O primeiro, pela busca de caracteriza¢ao das crises militares de paises como o Brasil, amparados em especial pela ciéncia politica. O segundo género se caracteriza pela memorialistica, tendo surgido e crescido durante a abertura politica no governo Geisel. O autor afirma: “Foi essa memorialistica que consti- tuiu o primeiro conjunto de versdes sobre a ditadura militar, algumas das quais se revelariam mitos ou estereétipos” (Fico, 2004). Dessa maneira, os problemas da escrita da narrativa histérica es- colar se referem em parte a suas fontes, pois ela mobiliza a produgdo hist6rica sobre o periodo publicada entre 1986 e 2007, intensamente marcada pela historiografia do tempo presente em sua problematica, Em principio, a histéria acontecida recentemente repercute sobre a es- crita histérica e¢ jornalistica, a seguir, ou até quase simultaneamente, sobre a escrita diddtica e, depois, sobre a leirura escolar da narrativa sobre os acontecimentos narrados nessas histérias. Ao serem demandados a escrever sobre acontecimentos recentes, 08 autores de livros didaticos necessitam produzir uma sintese que, com- preendida pelo leitor, institua uma ponte no tempo para 0 leitor, tor~ nando este apto para “seguir a histéria”, conforme nos diz Nicolazzi. Completamos, as formas linguisticas escolhidas para sua composi¢ao contribuem para essa aptidao. Outro desafio para os autores de livros didaticos ao tratar com temas recentes é a auséncia de fontes; outro, é a abundancia de fontes jornalisticas ou memorialisticas. Diversas obras voltadas ao grande publico pretenderam contar-lhes “a historia que aconteceu”, como indica o livro cujo titulo é Brasil: 264 a histévia contada por quem vis, ou mobilizar a opiniao publica em um momento de inicio da democracia, na busca de resgate de aconte- cimentos velados. O livro Brasil, munca mais, citado em cinco obras das 15 analisadas como recomendagao de leitura complementar ou na bibliografia, é um dos que indicam o tamanho do desafio posto aos au- tores de livros didaticos para a produgdo dessa narrativa por sua carga necessdria de dentncia no final da ditadura."*® Se a produgao histérica sobre o periodo é recente, polémica e ainda impactada pela experiéncia da propria ditadura, o repertério de fontes utilizadas ¢ os mecanismos de producio da sintese narrativa escolar parecem repercutir os problemas encontrados na historiografia sobre © periodo. Com isso, se produz certo embagamento nos potenciais de sentido dessas narrativas, em suas escolhas sobre o que vale a pena ser contado e de que maneira. Os leitores poderao nao entender bem nem a narrativa em sua dimensao factual nem sua proposta analitica, fragi- lizada em uma sintese histérica pouco clara. Outro aspecto externo remete aos compromissos com as represen- tages sobre os sujeitos. A maioria delas alivia discursivamente a repre- sentagio da sociedade civil brasileira de seu papel nem sempre heroico durante a ditadura. A polarizacdo no momento da crise que antecede 4 implantagio da ditadura e durante a ditadura é sintomatica. Ela € retirada da cena da narrativa no momento em que se iniciam as acdes mais truculentas sobre os sujeitos, especialmente os filiados as corren- tes denominadas de esquerda, no momento de polarizagao ideolégica durante o governo Jango. 13. Organizamos 0s titulos citados nos 15 livros, em bibliografias finais, dirigidas ao professor, ou no final do capitulo, dirigidas aos alunos, apresentando aqui os que fo- ram mais citados, em trés, quatro, ou cinco colegdes. Citado em cinco obras: ARQUI- DIOCESE DE SAO PAULO. Brasil nunca mais. Petropolis; Vozes, 1985. Citadas em quatro obras: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getsilio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; GASPARI, Elio, A Ditadura derrotada, $30 Paulo: Companhia das Le- tras, 2003; BARROS, Edgard Luiz. Os governos militares. Sio Paulo: Contexto, s.d. Citados em trés obras: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Agao Politica, Poder e Golpe de Classe. Petropolis: Vozes, 1981; SKIDMORE, Thomas. Bra- sil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FAUSTO, Boris. Histéria do Brasil. 8. ed. Sao Paulo: Edusp, 2007; GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. Sia Paulo: Companhia das Letras, 2002; GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada, $40 Paulo: Companhia das letras, 2002; REIS, Daniel Aaro. Ditadtra militar, es- querda e sociedade, Rio de Janeiro: Zahar, 2000; CHIAVENATTO, Julio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. S40 Paulo: Moderna, 2004. 265 r A atribuigdo quase exclusiva de protagonismo aos militares dura 15 anos da ditadura silencia o lugar de seus antagonistas. O regi de resisténcia por parte de alguns grupos, tais como a luta armada uma parte da classe artistica, com sua produgao musical ou teatral, preenche 0 vazio deixado pela sociedade civil, mas propicia certo forto 4 leitura. O grande destaque para o ressurgimento dos movi tos sociais no momento em que a ditadura ja nao se sustentava mal ofuscando os militares que ainda estavam no poder, sugere um enredo ficcional em que essa sociedade estava em sono profundo € acordava, apés 15 anos, de um pesadelo. Dessa maneira, nas lacunas que deixam, seja sobre a sequéncia nar- rativa com suas relagGes causais, seja sobre o papel de determinados sujeitos, em especial sobre a sociedade brasileira como sujeito, as nar rativas que predominam nos livros didaticos enfraquecem sua proposta de sentidos sobre o periodo da ditadura militar no Brasil, podendo ter diminuida sua contribuigdo 4 formagao histérica de novas geragdes. Daniel Aarao Reis é um dos historiadores brasileiros que questionam a histéria-meméria que ainda prevalece sobre a ditadura civil-militar no Brasil. Ele menciona uma “interessada meméria” que contribui para o desconhecimento social sobre o passado recente. Trazemos para a esfera dos livros didaticos o que ele afirma em relacdo a produgao historiografi- ¢a sobre o periodo: “Enquanto tudo isso prevalecer, a Historia sera uma simples refém da meméria, e serao escassas as possibilidades de compre ensao das complexas relagdes entre sociedade e ditadura” (Reis, 2012). A inclusao de contetidos como a ditadura militar no Brasil nos livros didaticos, ou sua reformulagao através do tempo, ocorre a partir do reco- nhecimento de sua relevancia para a transmissdo de legados que, quando ganham sentido para os alunos, conformam potencialmente identidades, mais conscientes dos perigos da omissao que consente, bem como dos apoios velados que contribuem para 0 exercicio da violéncia. Ao final deste texto desejamos demonstrar que a tarefa dos livros didaticos na elaboragdo de sua narrativa sobre a histéria a ser conheci- da por novas geracées é complexa e nem sempre exitosa. Nao pela ab- soluta responsabilidade dos seus autores. Mas por fatores que incluem 0s Movimentos entre o que acontece como histéria € sua escrita para diferentes piblicos, nem sempre considerados. 266 [ Se, como afirmam Guyon ¢ € colaboradores, a meméria oculta os eventos que prejudicaram a coesao do grupo e legitima o presente, constituindo uma visdo ideal da sociedade, a historia recente, deman- dada a ser escrita com fins escolares, se mostra um terreno ainda mais delicado para os autores de livros didaticos por conta de diferentes expectativas sociais ¢, por vezes, contraditérias, em torno da narrativa (Me da historia (Guyon et al., 1994). Referéncias AMEZOLA, Gonzalo de. £ possivel necessdrio ensinar histria do tempo pre- sente na escola? Algumas reflexdes sobre o caso argentino. 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