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FENOMENOLOGIA E SEMIOTICA DE PEIRCE: METODOS PARA A CIENCIA JURIDICA Peircean phenomenology and semiotics:methods for legal science Clarice Von Oertzen de Araujo SUMARIO 1. Introducao ao pensamento de Peirce. 2. O Direito como categoria fenomenoldgica RESUMO: 3. A linguagem da constituigéo como um supersigno. 4. O Objeto, o intérprete ¢ a dinamica social. 5. A semiética como uma metodologia de investigacto. 6. Conclusio, Bibliografa Peirce forniulou uma proposta propria de fenomenologia como a ciéncia daquilo que aparece a experiéncia e surge como fenomeno para uma mente que o interprete, Numa concepcao ontol6gica, a fe jologia peirceana vincula ‘da realidade, dividindo todos os fendmenos em trés categorias por ele denominadas_ “‘cenopitagoricas’. A divisdo categorial de Peirce influencia todas as areas de sua pro- dugao, inclusive a semiotica. Nao se trata, portanto, de uma semistica que examina apenas os signos linguisticos. As categorias de Peirce classificam todos os fendmenos do universo, i sndepenstensemene de estarem localizados dentro ou fora da mente. A de aplicagao, rcionam uma continuidade entre ‘ser’ e mente estudados de forma dissociada. ser", extratos ontolégicos tradicional- ABSTRACT: Peirce made his own proposal of phenomenology as the science of what appears to experience and emerges as a phenomenon to a mind that can interpret it. In an ontological conception, peircean phenomenology is linked to the mode of being of reality dividing all phenomena into three categories by him called ‘cenopythagorean’ ‘The categorical division of Peirce influences all areas of his production, including semiotics. [tis not, therefore, a semiotics that examines only the linguistic sighs. The categories of Peirce classify all phenomena of the universe, whether located inside or outside the mind. The convenience of applying these matrices to research the law is to provide a continuity between ‘being’ and ‘must-be’, ontological extracts traditionally studied in dissociated form. Palayras-chaves: Direito, Fenomenologia. Peirce. Semiotica Keywords: Law Phenomenology: Peirce. Semiotics. 1. INTRODUCAO AO PENSAMENTO DE PEIRCE O que se pretende no presente artigo é conceber a fenomenologia e a semid- tica de Peirce como possiveis métodos de investigacao do Direito. Sendo a semiética a sua aplicaco como técnica de investigacio do universo juridico revela-se. como. empor heuris excelente e c ciencia das linguagens que estuda todas as formas de manifestagao da cultura, 10 Clarice von Oertzen de Araujo A semiética com a qual estaremos trabalhando é a ciéncia dos signos conce- bida pelo légico € fildsofo americano Charles Sanders Peirce. A premissa desta pro- posta é a de uma pansemidtica segundo a qual os signos nao sao uma classe de objetos nem se referem apenas a linguagem, mas permeiam todo,o universo. A semidtica de Peirce nao se assenta exclusivamente sobre a lingua como um sistema se signos, a sua estrutura observa uma concepeao fenomenolégica em que todo e qualquer fenémeno do mundo, interno ou externo 4 mente, pode ser concebido como um signo e classificado como integrante de apenas trés categorias universais ontolégicas, denominadas por Peirce de ‘categorias cenopitagéricas’. As categorias fenomenologi- ¢ so denominadas Primeiridade (Firstness), Secundidade (Secondness) ¢ “Terceiridade (Third dicao de uma investigacao fenomenolégic ra estabelecer a pertinéncia do fenor exclusivamente a uma categoria, o que se busca € a identificacao da cate- ‘goria predominante. A terceiridade se apresenta como a categoria mais geral. Assim, ‘se houver a predominancia da categoria da terceiridade também estarao presentes segundidade ea primeiridade. Ali onde se encontrar a secundidade predominante, a_primeiridade também estar implicada. Isso porque as categorias se degeneram, perdem generalidade, mas nao se excluem. A terceiridade, na condicao de categoria de maxima generalidade, inclui a secundidade e a-primeiridade; e a secundidade contém a primeiridade, conforme a configuracdo abaixo: 2. O DIREITO COMO CATEGORIA FENOMENOLOGICA Para Peirce, todo o conhecimento, todas as ideias, sao entidades semisti- cas, pois nao podemos pensar sem signos. Além disso, 0 légico e filosofo americano acredita que “o pensamento é uma espécie de conduta que se acha em larga escala ser ¢ dever ser, ou entre conduta e pensamento. Com efeito, Peirce ¢ absolutamente Fenomenologia e semidtica de Peirce: métodos para a ciéncia Juridica an submetido ao autocontole” (CP 5.419)!. A premissa sobre a qual se assenta a possibi- lidade de adocao da fenomenologia e da semistica como metodologias juridicas é a de que o Direito possui a natureza de um fendmeno universal (ubi societas, ibi ius)? e cultural que se manifesta como fenomeno no mundo, como conduta, linguagem e pensamento. Na medida em que se revela como cultura, 0 Direito possui a natureza de -um_objeto semistico e a categoria fenomenologica na qual se insere ¢ a categoria. da terceiridade. Ser um objeto da cultura significa que o Direito € o produto de um_ le viver e de pensar cultivado pela civilizacao. A cultura, que inclui o ireito entre as suas formas de manifestacao, significa um conjunto de modos de vida importante inovagdo que se agrega a adocdo da semidtica como método de investigacao do juridico ao se adotar a andlise fenomenologica proporcionada pe- las categorias cenopitagéricas concebidas por Peirce €a nao separacio absoluta entre_ _peremptorio quanto a essa continuidade, conforme a seguir se revela: 04. Terceiridade € a caracteristica de um objeto que encamna em si—o-ser-entre ou Mediagao em sua forma mais simples e rudimentar (..) 105. Terceiridade ¢ para mim apenas um sinonimo de Representacdo; prefiro-o porque suas sugestdes sdo menos estreitas. Pode-se agora dizer que um princi- pio geral operatdrio no mundo real tem natureza de Representacao e Simbolo porque o seu modus operandi é 0 mesmo pelo qual as palavras produzem efei- tos fisicos. (...) 106. As palavras provocam mesmo efeitos fisicos. EF tolice nega-lo. A propria negacdo envolve crenca nesses efeitos (...). Mas como é que produzem esses efeitos? Nao atuam diretamente na matéria Como simbolos, sua agdo € meramente légica. Nao € sequer psicol6gica’ Ll 431, Nao apenas os gerais podem ser reais como também podem ser fisicamen- te eficientes, nao em todo sentido metafisico, mas na acepgao do senso comum na qual os propésitos humanos sto fisicamente eficientes. Agora o absurdo Traducao colhida em BACHA, Maria de Lourdes. A teoria da investigacdo em C. S. Peirce. Sao Paulo, CenaUn, 1998, p. 39. COING, Helmut, Elementos fundamentais de filosofia do direito. Traducao da 5* edicao alema por Eli- sete Antoniuk, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 174. * ABBAGNANO, Nicola, Diciondrio de filosofia. Traducao Alfredo Bosi. 2. ed., Sao Paulo, Martins Fon- tes, 1998. Traducao colhida em PEIRCE, Charles Sanders, Escritos coligidos. Selecao de Armando Mora D’Oliveira. Traducao de Armando Mora D’Oliveira e Sergio Pomerangblum. 1. ed., Sao Paulo, Abril S. A. Cultural € Industrial, 1974, p. 37. a2 Clarice Von Oertzen de Araujo metafisico, nenhum homem sadio duvida que se estou sentindo que o ar em meu escritorio esta abafado, esse pensamento pode fazer com que a janela seja aberta. Meu pensamento, aceitemo-lo, foi um evento individual. Mas aquilo que o levou a assumir a determinacdo particular que assumiu foi em parte o fato geral de que o ar abafado € prejudicial. (...) Destarte, quando minha janela foi aberta, em virtude da verdade de que o ar abafado nao é sadio, um esforco fisico foi criado pela eficiéncia de uma verdade geral e nao existente?. Apresentar um conceito de direito € tarefa complexa e sempre incompleta, imperfeita, Um conceito deve se referir a um objeto o qual denota. Quando se trata de definir o conceito de direito, a circunscrigéo do objeto referido pelo signo traz uma série de questdes. O objeto do conceito de direito abarca tanto as normas ju- ridicas como um conjunto de leis, pertencentes a categoria da terceiridade, como a conduta intersubjetiva e socialmente considerada que o direito representa e regula. O “status fenomenolégico da conduta e das n é nd na categoria da secundidade e as leis na categoria da terceiridade. Assim, apresentar uum conceito que compreenda todas essas dimensdes demanda uma metodologia que Em nivel epistemoldgico, por sua vez, as diversas acepcoes do vocabulo “direito” revelam que 0 emprego deste signo também nao mas, muito ao contrario, apresenta uma plu- rivocidade de acepgoes e universos de referéncia que afetam o préprio conceito de direito. O vocabulo “Direito” € expresso ambigua®. Somente em sua concepcio de fendmeno juridico, a ele podemos atribuir diversas significacdes, as quais passaremos a associar‘as respectivas categorias cenopitagoricas: a) 0 que é justo e conforme com a lei e a justica — trata-se de um predicado qualidade abstrata que pertence a primeiridade; b) faculdade legal de praticar ou ndo praticar um ato - em se tratando de uma faculdade que um sujeito tem concretamente, na condicao de um direito subjeti- vo: categoria da secundidade; ¢) ciéncia das normas obrigatérias que disciplinam as relagdes dos homens numa sociedade: categoria da terceiridade; ) jurisprudéncia — como conjunto de decisdes judiciais concretas: categoria da secundidade; 5 Traduglo colhida em PEIRCE, Charles Sanders. Semiética. 3. ed., Traducdo: José Teixeira Coelho Neto. Sao Paulo, Perspectiva, 1999, p. 370. Para Pontes de Miranda, igualmente, para a ciéncia do direito, 0 que importa é 0 ‘Sein’, 0 ser, ¢ nao o ‘Sollen’. Sistema de Ciéncia Positiva do Direito. Tomo 2. Campinas, Bookseller, 2000, p. 231. © Diciondrio Houaiss da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Fenomenologia e semistica de Peirce: métodos para a Ciencia Juridica e) conjunto das leis reguladoras dos atos judiciérios: na condicéo de um ordenamento juridico ou instituigao: categoria da terceiridade. Quando Peirce concebe as leis inseridas na categoria da terceiridade, men- cionando as leis naturais, a concep¢ao fenomenolégica nao discrepa da acep¢ao de lei como as leis juridicas, conforme explica SANTAELLA: ( O que é uma lei? Uma lei é uma abstracdo, mas uma abstracdo que € operativa. \ Ela opera téo logo encontre um caso singular sobre o qual agir. A acao da lei é fazer com que o singular se conforme, se amolde a sua generalidade. E fazer \ com que, surgindo uma determinada situacao, as coisas ocorram de acordo | com aquilo que a lei prescreve. Se nao fosse pela lei, as ocorréncias seriam brutas e cegas. E por isso que também falamos em leis da natureza. Quando algo tem a propriedade da lei, recebe na semiotica o note de legi-signo e 0 caso singular que se conforma a generalidade da lei € chamado de réplica, Assim | funcionam as palavras, assim funcionam todas as convengdes sécio-culturais, assim também funcionam as leis do direito”. 3. A LINGUAGEM DA CONSTITUICAO COMO UM SUPERSIGNO nga_na_continuidade das leis naturais e juridicas também é adotada -por Pontes de Miranda, que professa a identidade entre a lei juridica e a cientifica®. A Constituic¢ao-ou_lei constitucional seria o mais importante legissigno das ordens juridicas contemporaneas. Para proceder a investigacao de seu conceito, concebemos 9 Direito como um sistema semistico, pertencendo eminentemente a categoria da ter ceiridade, cuja linguagem é artificialmente elaborada’, procurando demonstrar como s fendmenos juridicos podem ser estudados na condicao de fenomenos semisticos. Normas constitucionais nao sao derivadas de outras que lhes fornecam um. fundamento de validade. © exame da lei constitucional evidencia que ela possui uma peculiaridade: é a matriz da linguagem jurfdica prescritiva do direito positivo. Possui, portanto, na condicao de categoria da terceiridade, o estatuto de legissigno inaugural 7 SANTAELLA, Liicia. Semidtica aplicada. Sao Paulo, Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 13 * PONTES DE MIRANDA, Sistema de Ciencia Positiva do Direito. Tomo 2. Campinas, Bookseller, 2000, p.231 ®” Eco trata a linguagem juridica como um léxico especializado ou convencao lingiistica particular. Leia- -se: “Serd preferivel indicar como os objetivos da pesquisa semiologica se especificam em direcao aos lexicos e subcddigos: dos esteredtipos da linguagem a todo o sistema retorico, a que ja dedicamos alguns capitulos deste livro, e pouco a pouco até as convencoes lingtisticas particulares —léxicos especializados (politicos, juridicos, — todo um setor de grande importancia para o estudo das comunicacies de mo até 1 a i crete des ‘ausente, Sao Paulo, Perspectiva, 1997 (7. ed.) p. 402 (grifos da autora), a4 ice von Oertzen de Araujo da ordem juridica positiva, ao qual todas as leis infraconstitucionais deverao se con- _formar, desde que recepcionadas e revitalizadas pela nova lei constitucional. A recep- Ao constitucional da legislacao anterior, ilustrando o que se conhece por principio da continuidade da ordem juridica, revela mais uma vez a adequacao de uma andlise fenomenologica de matriz jo universo juridico, pois a adap- 10, 0 crescimento e a continuidade sab_predicados ou. ira categoria cenopitagoric: Em uma andlise semidtica verifica-se que 0 corpus constitucional, ao veicular enunciados portadores de principios € regras situados em diversos topos semanticos de diferenciada densidade semantica e axiolégica, constitui um verdadeiro supersig- no. Os supersignos, na concepcao de Max Bense, so o resultado de uma majoracdo ou superizacdo de signos em estruturas de signos ou em configuracées signicas mais elevadas ou complexas, correspondendo, naturalmente, as novas referéncias de obje- toe de interpretante e na formacio de hierarquias”. O grafico abaixo ilustra a configuragao de um supersigno™ 1© BENSE, Max. Pequena Estética. 3. ed., Sao Paulo, Perspectiva, 2003, p. 55. 1 PONTES DE MIRANDA, Sistema de Ciencia Positiva do Direito. Tomo 2. Campinas, Bookseller, 2000, p. 231. on Fenomenologia e semistica de Peirce: métodos para a ciéncia Juridica as 4. O OBJETO, O INTERPRETE E A DINAMICA SOCIAL Ao tratar das funcdes signicas Elisabeth Walter-Bense esclarece a constante relacao entre signo e repertorio. Uma vez que o signo implica uma relacao triédica ao estabelecer uma mediacdo entre um objeto e um interpretante, nao € possivel reco- nhecer um signo isolado. © proprio reconhecimento de algo como sendo um signo ‘implica em identificar a sua pertinéncia a um repertorio. Confira-se: Por nao poder existir um signo tinico ou isolado € que um signo sempre aparece junto a outros signos, formando assim conexdes de signos, isto é, sistemas de signos, para cuja produgio também sao necessarias, além das fungdes mencionadas, certas operacoes. Destas as mais importantes sto: a substituicao ou troca; em seguida, as operacées internas de geracdo ou degeneracao e, por ultimo, as operacdes externas de adjuncdo, ou alinhamento, de superizacdo ou formagao de supersignos, ¢ de iteracdo, isto é, do desenvolvimento completo de um sistema de signos a partir de seus signos iniciais ou dos meios do seu repertorio.(...] Cada supersigno, isto é, cada reunido de signos numa nova unidade ou totalidade, ¢ sempre um signo de grau superior, isto é, de repertorio superior. E novo signo de uma nova telacio ttiédica." [...] Uma superizagto se signos é sempre também uma formacao de hierarquia de signos, de que ainda nos ocuparemos em relacao aos sistemas signicos."* Em sua maneira de representar 0 objeto, as qualidades (primeiridade)_evi- ymas_constitucionais seriam_a_supremacia, mnculante, idad ralor da supremaci: es : efeito permanente que deve ser considerado pela hermenéutica coi icional. Esta supremacia deriva da qualidade da soberania estatal, outra caracteristica fenomeno- logica de(primeiridade ‘das normas constitucionais que contamina e se reflete em toda a ordem legal inaugurada por elas. As normas constitucionais determinam um. ‘parametro de atribuicao para os significados normativos. O emprego da forca deve estar a servico da imposicao de significadlos que asseguram os valores posit utros, sob pena de abuso de poder, desvio de finalidades, ‘responsabilidade administrativa € criminal, responsabilidade civil, etc. ‘A dinamica social que permeia a regulagao da conduta aparece como uma rede intrincada de troca e permuta entre os entendimentos parciais ou completos, em graus diferenciados de complexidade. © Direito como sistema comunica aos seus 12 \WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Perspectiva, 2000, p. 57. 139 WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Perspectiva, 2000, p. 62. \4 WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Perspectiva, 2000, p. 62 416 Clarice Von Oertzen de Araujo destinatarios/usudrios padroes de conduta social. Tais pautas de comportamento uti- lizam a linguagem (signos) e o pensamento de uma forma hegemonica. Em se tratan- do de ordenamentos juridicos derivados da civil law, os sistemas juridicos utilizam a linguagem natural (lingua, verndculo) como verdadeira substancia de sua constitui- Ao, estabelecendo leis gerais, legissignos, os quais descrevem classes de fatos tipicos, regulam relacdes juridicas, enunciam principios, objetivos e finalidades que a ordem juridica deve perseguir . Trata-se de um sistema simbélico. Para qualquer fenémeno ingressar dentro do sistema normativo ele deve estar expresso em algum tipo de linguagem. A cia de uma representacao simbdlica dos fatos ¢ comportamentos caracteriza a lacuna, que deve ser colmatada mediante a adocao da analogia, dos cos- tumes e dos principios gerais de direito (Art. 4° da LINDB). O meio expressio das leis juridicas € essencialmente semidtico, simbdl -O ordenamento juridico brasileiro refere-se ao direito de uma forma pre- dominantemente nominalista. A Lei de Introdugao as Normas do Direito Brasileiro refere-se sempre a lei e no as normas ou ao direito. Quando a legislacao brasileira se refere ao direito, a alusao é predominantemente aos direitos subjetivos. Nesta acep- S40, acompanhando uma observacao de Arthur Kaufmann", 0 diteito nao ‘existe’, mas € simplesmente um termo, uma denominagao que compreende o conjunto das leis, a ordem legal positiva. A lei é real e o direito nao existe em seu sentido ontol6- gico, na medida em que nao se associa ao direito uma substancia ou materialidade, o contetido € sentido de uma norma individual e concreta associa-se mais a0 poder de seu editor do que a um sentido material e superior de justica Pontes de Miranda, em sua concepcao realista, também se refere ao proble- ma e 4 impropriedade de se identificar direito somente com legislagao, a evidenciar a realidade do direito. Leia-se- Um dos motivos para o erro de somente considerarmos fenomenos juridicos 6s elaborados pela linguagem, pela aplicagao da regra juridica mediante a iuris dictio oral ow escrita, esta na ignorancia da integridade da vida psiquica e no vulgar verbalismo da logica. Como se hio de aplicar regras juridicas, se juizes, funcionarios, ou pélo menos, as proprias partes ndo as observam? Se quiséssemos evitar a discussao, dirfamos apenas: nos fatos. Realmente: a continuidade da vida doméstica, com todos os incidentes diérios e as minimas acoes © omissies, é série imensa de fendmenos do direito, realizados sem palavras ¢ sem autoridade, ~ € se compararmos a soma de tais aplicagdes de normas com a imposigao oficial de uma dezena de artigos de lei, com diminuta média de observancia, a nossa perplexidade logo se impors a seguinte proposicéo: ha outro direito que se realiza na vida social e independe da acao e da coagao. '° KAUFMANN, Arthur, Filosofia do direito. Lisboa, Fundacao Calouste Gulbenkian, 2007, p. 201. Fenomenologia mmistica de Peirce: métodos para a Ciencia Juridica ar Mas seria exagerada a conclusio: o que existe € 0 direito concreto, efetivo, que as vezes excede, outras € menor e outras coincide com a legislagao, de modo que tem que ser pesquisado indutivamente, como a moral, os costumes, etc. A maneira pela qual podemos simbolizar tais exteriorizacdes da matéria juridica 6a mesma pela qual se exprimem as demais regras. Na psicologia, n4o ha negar a existéncia de julgamentos sem palavras, como os da crianga que ainda nao fala, e 0 modo de investigar e conhecer a forga executada pelo direito € dar expressao verbal a tinta psiquica que existe, difusa, na realidade da vida social: reduzir a julgamentos com palavras, a elementos l6gicos, 0 que se encontra sob forma dinamica, E entao que se apresenta, em toda a plenitude, o problema da Epistemologia juridica’® O ser do direito é de natureza essencialmente relacional. Os signos legais se re- ferem tanto aos enunciados prescritivos como & conduta que Tesponde a estas mesmas normas, € que constitui o objeto de representagao e também de regulacao do direito, A “conduta e 0 contexto social que configura o ambiente em que relagdes humanas aconte- cem, ao se adotar uma perspectiva semistica de viés peirceano, consubstanciam 0 objeto dinamico das leis e se encontram na categoria fenomenologica da secundidade. A condu- ta humana participa da condicdo.de-objeto-dinamico.mas também serd considerada na continuidade das operagdes semidticas, que serdo caracterizadas pela incidéncia e pela aplicagao das normas, ocasionando a geracao de interpretantes que os signos legais pre- tendem produzir a partir do marco inicial da vigencia das leis em direcdo ao futuro. O infcio da vigencia das leis, sua obediéncia e aplicagio, so fatos enquadrados na_segunda ‘categoria cenopitagorica, porque plenamente concretos e existentes. Ou seja, o Direito também existe na experiencia, Na categoria da secundidade, ligada aos predicados do que € existente, concreto, dos fatos brutos, acdo e reacdo. No mundo do ser, temos intimeros fenomenos juridicos. Como exemplo vivo da segunda categoria fenomenoldgica temos, na esfera constitucional, inaugural da ordem juridica, o referente da Constituig0. © objeto ao qual este supersigno ou supersimbolo se refere esta o Estado como 0 objeto que a Constituicao, como legissigno de maxima hierarquia, dotado da supremacia constitucional, conforma” 5. A SEMIOTICA COMO UMA METODOLOGIA DE INVESTIGACAO Aevolucao do direito reflete a mtitua evolucao das condutas sociais e das normas legais, numa crescente busca de ajustamento reciproco. Q direito, em sua evolugao, criow 16 MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciéncia positiva do direito. Tomo 2. Campinas, Bookseller, 2000, p. 122 17 CANOTILHO, J.J. Gomes. Di Coimbra, Portugal, 2003, p. 87-9. Constitucional ¢ Teoria da Constituigao. 7. ed., 4* Reimpress a 48 Clarice von Oertzen de Araujo também instituigoes que indubitavelmente existem e sao reais. Neste sentido, a adogao na semistica como uma metodologia de investigagdo para o problema do conceito de-direito revelard a sua adequacao para a solugao do problema de referencia aos diferentes niveis das relagdes investigadas — niveis de primeiridade (qualidades), secundidade (relacdes fatos) ¢ terceiridade (leis, mediagdes, representacoes) — uma vez que a natureza semidtica pode ser perfeitamente atribuida ao modo de manifestacao ontolégica do direito, en- quanto fenémeno investigado e denominado por um conceito. A conveniéncia da feno- menologia e da semidtica de Peirce como meétodos de investigagaa do direita se justifica na medida em que nao se estabelece uma separacao absoluta entre o sujeito ¢.o objeto. também entre ser ¢ dever-ser'®. pe la portanto, na condigao de uma espécie de linguagem técnica que carac-_ teriza uma‘ mediga0 ¢ como representacéo € regu: lagdo, s4o signos que prescrevem tipos -de conduta, exigem dos cidadaos prestacbes consistente em acdes cuja natureza seja dar, agir ou inibir a pritica de certos atos. A solicitacdo da tutela jurisdicional visa assegurar 0 exercicio dos direitos subjetivos violados ¢/ou solicita a reparacdo decorrente de violacdes sofridas. No trajeto percorrido pelas partes litigantes, caracterizado por uma sequéncia de linguagem, de signos que revelam operacdes de semioses legais, o desfecho term com uma _decisao judicial irrecorrivel caracterizando o que Peirce denomina_de inter. pretante final’®. A prestacao da tutela jurisdicional reflete a produgdo de uma linguagem técnica, prescritiva de condutas, e nao cientifica e descritiva, A sua natureza € dialogica, argumentativa, com o fim de estabelecer uma opinio final que decide 0 conflito social, mas que nao esta essencialmente.comprometida em refletir-uma verdade empiricamente pwurclu s A demonstravel ou logicamente deduzida A concepcao das leis como signos im que cotresponde as leis gerais, Estamos examinando as leis em sentido estrito, das no interior das Casas Legislativas das entidades federadas, em obediéncia ao_processo legislativo constitucionalmente estabelecido. Estas tém um carater genuinamente simbslico,. Os simbolos sto signos, legissignos, que representam 0s objetos em virtude de uma conven¢ao. O reconhecimento da associacao simbdlica que remete do signo ao ob- jeto € 0 efeito pretendido na qualidade de seu interpretante. Nas democracias, 0 caréter convencional da imperatividade juridica reside justamente no teor do correlato principio democratico, © qual prescréve que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos®. O respeito as eleicées legitima e confere carater imperativo 18 Neste sentido vide Kaufman, Filosofia do direito, cit., p. 423: “Uma separacao geral e abstrata, dentro do espirito do esquema sujeito/objeto nao pode existir no dominio do nao substancial, sto é, no ambito do relacional e pessoal”. '® Sobre a andlise semidtica do direito vide ARAUJO, Clarice von Oertzen. Semidtica do Direito. Sao Pau- lo, Quartier Latin, 2005. ° Artigo 1° , Parégrafo tinico da Constituicdo Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por e semistica de Peirce: métodos para a Ciéncia Juridica 419 para as leis produzidas e aprovadas pelo Poder Legislativo. A convencaorpretende conse- guir dos destinatérios uma obediéncia voluntaria e consciente. O que naofetira do Direito (0 Seti Cardter coercitivo. A coercibilidade juridica decorre da delegacao que o povo faz a0 Estado. O monopélio do exercicio da forca € outra convencao que marca as leis juridicas, como signos simbélicos. Este é o seu interpretante energético* genuinamente juridico, ‘que nao encontramos nem nos signos morais e nem nos éticos. A manifestagao da forca bruta contra os cidadiios, salvo expressas excegdes, somente pode ser exercida apés auto- rizacdo proveniente do Poder Judiciario, decorridos os tramites que asseguram aos des- tinatarios da ordem legal todos os meios de defesa previstos pelo ordenamento vigente”* Ha ainda uma terceira convencio deflagrada pelos signos juridicos em sua condicao de simbolos: é a proibicio da ignorancia, A ninguém é permitido desobedecer as leis alegan. do que nao as Conhecem. Sao conven¢6es operacionais para o exercicio da coercibilidade. A interpretagao dos signos juridicos, seja potencial (interpretante imediato) ou efetiva (interpretante dinamico), passa necessariamente por tais associagdes A questo dos interpretantes produzidos pelos signos juridicos € um pouco mais complexa, pois um signo est apto a produzir diversos tipos de interpretantes. A aptidao pata produzir interpretantes, alias, j4 se constitui um tipo.de interpretante (interpretante imediato, de primeiridade). Aqueles efetivamente produzidos (interpretantes de secundi- ‘dade) so interpretantes dinamicos e sio.conhecidos; pois a comunicagao € intersubjetiva “e sem comunicacao nao ha conhecimento. Os signos séo também _capazes.de pretender a consecugdo de uma finalidade (interpretante final), provocar sentimentos, juizos axio- logicos (interpretantes emocionais, de primeiridade), esforgos fisicos ou.mentais_(inter- Preiantes energéticos, de secundidade), conceitos l6gicos ¢ prinefpios de interpretaca (interpretantes logicos, de terceiridade). O Direito, em sua condi¢ao semistica é capaz de_ produzir todos esses tipos de interpretantes. A semidtica de vies peirceano adota trés diferentes modalidades de signo, os ico- _nes, indices e simbolos, com as correspondéncias que a fundacdo na fenomenologia e nas trés categorias cenopitagoricas exerceram por todas as Areas sobre as quais se estenderam as teorias de Peirce. Assim, esta semidtica nao trata apenas de lidar com os signos verbais e suas formas de constituicao e acdo. Nao ha um conceito de signo que se refira a uma qualidade essencial, trata-se de um conceito relacional, o signo é uma fungao triddica. Segundo Peirce: meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termoa desta Constituigio” 21 Esforcos fisicos e mentais envolvidos na manifestacao dos efeitos de um signo. 22 Com eleito, o uso nao institucionalizado da forca bruta configura infracao criminal, prevista pelo artigo 345 do Codigo Penal, o qual dispoe: An. 345. Fazer justica pelas proprias maos, para satisfazer pretens4o, embora legitima, salvo quando a lei o permite: Pena: detencao, de quinze dias a um més, ou multa, além da pena correspondente & violencia. 420 ertzen de Araujo Ora a fungéo representativa de um signo nao reside em sua qualidade material, nem em sua aplicacdo demonstrativa pura, porque ¢ algo que o signo é, ndo em si ‘mesmo ou numa relagdo real com seu objeto, mas ¢ para um pensamento, enquanto que ambos os caractetes reoém definidos pertencem 2o signo independentemente de se dirigitem a qualquer pensamento”> 6. CONCLUSAO A expectativa das novidades proporcionadas pela adocao de metodologia que assuma os parametros peirceanos de investigacdo € prestigiada por Arthur Kauf- man ao combater uma metafisica juridica substancialista, conforme se depreende do exame do seguinte trecho de sua Filosofia do Direito: Em primeiro lugar, deve ficar assente que os discursos normativos ndo tem um objeto substancial. E no entanto errado inferir dai que tais discursos néo se refiram, ainda, que de modo apenas fragmentario, a algo existente fora do discurso. (..) © objecto das ciéncias normativas — ética, teoria das normas, ciéncia juridica ~ nunca séo substancias, mas sim situacdes, relacoes, O grande passo que Peirce deu para a logica dos predicados de relacao — superando assim a logica aristotélica € kantiana que apenas conheciam os predicados de qualidade — esta ainda por dar na teoria e na filosofia do direito™. Nesse sentido, a conduta humana que esta em vista quando se trata de defi- nir um conceito de direito é aquela conduta que busque adequar-se a um conceito de justica socialmente compartilhado, Esta dialogia e compartilhamento que se estabe- lece para a legitimacao dos conceitos € uma possibilidade virtual e podera ser sempre questionada, o que faz com que o conceito de Direito tenha que se comprometer também com o de ordem, seguranca ¢ previsibilidade. As qualidades ou predicados historicamente considerados na definicao de um conceito de direito nem sempre foram os mesmos. O conceito de direito, sua condicao simbdlica e cultural, nao esca- pou dos processos de evolucao., Na cultura a historia se faz presente, contaminando um determinado inter- pretante, que passa a revelar o objeto do signo (0 objeto do signo ou objeto imediato & apenas uma parcela da multiplicidade de aspectos do objeto real oti objeto dinamico) A complexidade de um conjunto de interpretantes nunca nega a diversidade do ob- jeto; este se instala numa dimensto de alteridade. ® Semidtica, cit., p. 271 * KAUFMAN, Arthur, Filosofia do direito, 2. ed., Lisboa, Fundacao Calouste Gulbenkian, 2007, p. 431 ¢ 432. Fenomenologia e semistica de Peirce: métodos para a Ciéncia Juridica 4a Apresentando-se como um objeto cultural o direito_positivo se_constitui como um sistema simbélico. Na medida em que o significado dos simbolos cresce,_ conforme evolui o direito ¢ a cultura em seu entorno, a interpretacao das normas, a construcao de suas significacdes e a propria concepcao que se tem do Direito nao_ pode supor nenhum do_de_andlise que se sustente_em_premissas_unicamen- te deterministas, A fenomenologia, a semiética e 0 pragmaticismo peirceano n&o negam as regularidades e os aspectos logicos dos sistemas de signos; mas acrescentam a esta dimensao uma outra, que confere espaco a uma margem de erro, acaso e imprevisibilidade nas interacdes, Uma tentativa ontologica de definicéo do conceito de direito, portanto, nao € capaz de lidar com todas as contingéncias ¢ flutuacdes culturais apresentadas pelo objeto que deve estar referido por este conceito. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABBAGNANO, Nicola. Diciondrio de filosofia. Traducdo Alfredo Bosi. 2. ed., Sao Paulo, Martins Fontes, 1998, ARAUJO, Clarice von Oertzen. Semistica do Direito. Sao Paulo, Quartier Latin, 2005. 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