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VITRUVIO REVISTO Flavio R. Kothe’ Resumo O tratado de Vitrivio foi decisive para a arquitetura clissica e renascentista, mas ele relevante também para a teoria estética, pois trata da conjungao do utilitario com o belo, algo que desde Kant tem sido questionado a medida que se quer ver o artista como um génio com plena liberdade de criar Palavras-chave: estética; arquiterura; Vitrivio Abstract The treaty of Vitruvius was decisive for the classical and renaissance architecture, but it is relevant also for the aesthetic theory, because it discusses the conjunction of the utility with the beautiful, something that since Kant has been questioned, because he wanted to see the artist as a genius with full freedom to create. Keywords: aesthetics; architecture; Vitruvius. Flavio R, Kothe é professor titular de Estética na FAU/UnB, autor de obras sobre o enone literdtio brasileizo, a narrativa trivial, a teoria literdria e a arte comparada, tradutor de Nietzsche, Marx, Kafka, Benjamin, Adomo, ‘Habermas ¢ outros, autor de poemas, contos e novelas. REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA | VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150| JAN/UN 2016 FLAVIOR. KOTHE 1, ESCRAVIDAO E IMPERIALISMO Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto do século I a.C, escreveu De architectura, em dez livros que seriam para nds hoje dez capitulos, mas como quem constr6i um palacio: cada livro tem um ditrio de entrada, oude ele recebe © leitor, coutando-Ihe uma histéria interessante ow fazendo um comentirio refinado e culto, antes de levé-lo a um setor determinado, em que vai mostrar algo sobre palicios, templos, fortalezas. Ele no esti preocupado em construir moradias populares nem em fazer saneamento bsico das cidades. Ele quer construir templos € prédios pilblicos nos quais se mostre a grandeza do César e do Império Romano. Para isso, estuda modelos gregos, como se os romanos tivessem de ser herdeiros do colonialismo grego e macedénio, o que eles estavam em vias de efetivamente ser César é para ele divino, Para galgar postos em Roma, era preciso fazer guerras de conquista, com ao menos 5.000 mortos do outro lado. Jilio César foi um genocida, mas contimia celebrado até hoje no més de julho, assim como em margo se celebra o deus da guerra, Marte. Seguramente a guerra nao € um rapagio bem sarado como os romanos apresentavam seu deus. Os grandes homens da historia foram maus. Os deuses greco-romanos sio prepotentes e caprichosos, com pouco amor aos humanos. No Olimpo néo havia um deus que representasse 0s pobres desamparados. A religido crista adora como divino um pai que deixa matar o filho e um filho que se deixa matar (quando poderia fiugir) para tomar o lugar do pai, Dificil é falar em “progresso” ai ‘Vitruvius tem trés nomes, o que indica que ele fazia pate do patriciado romano, isto é, aquela classe que posstiia escravos e propriedades, governava a cidade e o império. Ele adere plenamente 4 escravidio, ao imperialismo e ao belicismo romanos. Quando fala de uma escrava grivida, seu comentrio é apenas que ela come mais ¢ produz menos no trabalho: vale auenos por isso. Ele se orgulha de ser um homem livre, de viver do seu trabalho, mas ndo perde uma linha para defender os escravos, que exam obrigados a executar suas obras. Nao é um “cidadao modemo” Até hoje se mantém uma secreta divisto entre trabalho bragal, inferior, e trabalho intelectual, superior. Isso corresponde a crenga de que o homem se constitui de corpo e alma divisdo que sempre implica a superioridade de uma parte sobre a outra, por mais que a ciéneia demonstre que a “alma” seja cérebro em funcionamento, portanto, “matéria” nao “espirito”, Nas faculdades de arquitetura se formam arquitetos, no mestres de obra nem artesios, embora fagam mais falta no mercado de trabalho que os préprios arquitetos. A pergunta que REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO se coloca é se, embora tenha havido a metamorfose do escravo, sendo o assalariado sua versio moderna, se a divisio entre trabalho livre € escravo esta subjacente 4 divisio entre arte artesanato. Na universidade se reproduz a divisio antiga entre trabalho livre e trabalho eseravo: formam.-se profissdes liberais, no de escravos. Se 0 médico ganha mais que a enfermeira formada, isso tende a ser porque ele é visto como um especialista “melhior preparado”, que exerce uma atividade intelectual, nao bragal como a enfermagem. Como esto se formando muitas mulheres em medicina, talvez se tenha ai um processo de mudanca. Nao s6 0 cristianismo entende homem como constituide por corpo e alma, sendo a dimensio animica mais importante do que a corpérea, Essa divisio existe no espititismo. Os egipcios acreditavam na reencamacio dos espiritos em diferentes seres, 0 farad como sol encamado tinha a missao, depois da morte, de combater os deménios nas trevas. Os gregos também dividiam © homem numa dimensao corpérea e outra psiquica, tendendo a acreditar na metempsicose, algo parecido com o espititismo. Dai a importaneia de se ter uma boa morte ¢ ceriménias fimebres para evitar que o sujeito se tomasse uma alma penada, Platao, no texto tardio das Leis, trata da escraviddo s6 de passagem, sintomaticamente quando aborda a questao da mulher no casamento, Considera inconcebivel que alguém possa duvidar da validade da eseravidao, Para ele o problema é apenas saber como tratar o escravo: se apenas a pauladas ou como consultor e amigo. Considera as duas posturas inadequadas nao porque seja maldade bater no escravo, mas porque pode leva-lo a se vingar contra o dono: nao porque o escravo seja gente, a ser tratado com dignidade, mas porque se for tratado como gente acabaria perdendo a nogaio de que é escravo. Euripides, nas Trotanas, encenou um tremendo protesto contra a escravidkio, mas nao no sentido de que a escravidao seria algo injusto por si. Ela é injusta quando pessoas nobres ¢ que nasceram livres, como a rainha de Troia e suas damas da corte, so reduzidas a eseravas. Mais longe nao se podia ir. Em Aristéfames, um escravo aparece com vontade de se vingar contra o seu dono e se diz que 0s escravos gostam de falar mal dos patrdes. Indiretamente se pergunta se 0 escravo teria Ima”, ja que, nao tendo dinheiro nenhum, nao teria também um “dbolo” para pagar Caronte na hora de transportar stia alma sobre o Estige, para chegar aos Campos Elisios. O escravo estava assim coudenado a morrer definitivamente, enquanto a aristocracia achava que tinha ascendéncia divina e, portanto, algo da imortalidade e do poderio dos deuses. VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE Roma viveu varias revoltas de escravos, a maior foi liderada por Spartacus. A pena para o escravo rebelde era a crucificagio. Os escravos rebelados de Spartacus foram caucificados nus: s6 no século XX, na Riissia, surgin uma obra de arte, um balé, para glorificé-lo. O cristianismo inverteu a lei do patriciado romano, fazendo do degradado e derrotado uma divindade, colocando nele uma tanguinha e pregando-o pela palma das maos, erro que 0s romanos nao cometiam, pois sabiam que o réu despenearia: enfiavam 0 prego no pulso on entre os oss0s do antebrago. O cristianismo prometen alma e salvagao etema a todos, © que agradou aos escravos e as camadas mais baixas da populagao. Os primeiros grandes mértires nao eram pobres coitados: provinham do patriciado, que aderiram a “boa nova”, para entregar o Império a Igreja Catélica. Conta-se uma fibula dos primeiros tempos do Latium, em que os escravos teriam se recusado a continuar servindo ¢ se retirado da cidade. Um emissério do patriciado foi convencé-los contando uma fibula: uma vez, bragos e pemas se revoltaram contra 0 estémago, porque, diziam eles, ficavam o dia todo a corer para li e para ca, a fazer isso aquilo, para alimentar o estémago, que s6 queria ser servido, Nao se alimentando, 0 corpo foi definhando, para entrar em colapso total. Os escravos teriam entendido a mensagem e voltado 4 cidade e aos seus senhores. Se assim nao fosse, a fibula nio teria sido transmitida, Ela ensina que a fiego pode ser uma doutrinagao, Postula-se nessa fibula que é natural haver uma “classe ociosa”, que nao é obrigada a trabalhar para sobreviver, mas tem o direito natural de ser servida pelos escravos, em maior niimero, assim como pemas e bragos so maiores que 0 estmago. A analogia ai subjacente permite, porém, outras interpretagdes, que os escravos no puderam manifestar. O estomago também & um érgdo que trabalha, serve assim como é servido: como servidor, deveria ser controlado. © que comanda 0 corpo € o cérebro, no o estimago, mesmo que 0 cérebro seja movido pelas necessidades do est6mago. Supor que tms nascem para ser estomago € outros para pemnas ou cérebro é uma crenga que ndo tem DNA. Ha génios que nascem ente artesiios, assim como ha idiotas na aristocracia. Platao expés isso na Repiiblica, ao propor trés classes de homens, sendo que um homem de ouro poderia ser filho de um homem de ferro, assim como 0 filho dele poderia ser de ferro, Ao propor o governo do mérito, “esquecen” de definir © mérito, atribuindo-o ao milagre de alguém se livrar das cadeias que o prendem na caverna De qualquer maneira, 0 “filosofo”, 0 homem do poder, s6 poderia provir da classe ociosa, aquela que é servida por escravos, artistas e artesios, REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 127 Séfocles, que era sacerdote, propos a meritocracia no ciclo tebano. Edipo chega a0 poder nio por ser filho de um rei, mas porque, por sua inteligéncia e coragem, melhor age para o bem comum da coletividade. S6 que, no frigir dos ovos, somente um membro da aristocracia tem “mérito” suficiente para se tomar rei. A plebe esta exeluida, A Iareja Catélica se estruturou segundo a proposigao de Platio, o que foi facilitado pela doutrina de que os sacerdotes ¢ monges deveriam ser celibatirios, 0 que garantiu as herangas deles para a instinaigio, Durante sécutos ela tem sido dominada, no entanto, pela aristocracia italiana, Ter “anérito” é ai estar de acordo com a doutrina e os dogmas da instituigdo, sem que isso seja questionado. INTERMEZZO De architectura 0 maior tratado sobre arquitetura legado pela antiguidade clissica e foi igado ao mundo por Leon Alberti, como se fosse um navio naufragado, em meados do século XV, 0 que foi decisivo para o neoclassicismo renascentista e para a Igreja Catdlica construir templos que superassem os antigos. Na passagem de Vitnitvio a Alberti se coneretiza a tese de Hegel, na Filosofia da Histéria, de que a Igreja Catélica foi a grande herdeira ¢ sucessora do Império Romano, algo que para ele s6 se rompeu com Lutero. Alberti participa da reforma humanistica da Tgreja, para inovar, nao para romper com a institnigao, Quando De re aedificaroria de Alberti foi traduzida para o espanhol, 0 “Santo Oficio” proibiu a parte em que ele censurava os bispos que se preocupavam mais em construir palicios do que comungar as caréncias da commidade, repartindo os donativos. Vitrivio nao é cristo, mas Alberti, que era bispo e secretario do papa, nao fez reparos a isso, embora o cristianismo devesse significar uma mudanga no perfil das atividades do auquiteto e do urbanista, jé que reconlece alma e diteito de salvagio a todos os humanos. Alberti, que ditigia as coustrugdes do Vaticano, mio mostra preocupagiio em construir moradias para os pobres ¢ desamparados nem fazer reformas urbanisticas voltadas para os trabalhadores: eles que tratassem de imitar as mansdes nobres, para se sentirem elevados como os grandes. Ele achava que govemo devia ficar nas maos de comerciantes espertos, que tinham mostrado habilidade nos préprios negécios. Sua mentalidade esta proxima ao que era entio 0 govemo de comerciantes aristocratas em cidades como Florenga e Veneza, mas era um servidor de confianga do tinico monarca eleito, o papa. Ele achava que as pessoas deveriam ter mansbes representativas do VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE seu status social, pois © homem se sente melhor, mais dignificado, numa sala com bons quadros e boas decoragées. Se aos menos abonados restaria imitar, se pudessem, 0 que os ricos de bom gosto conseguiam, todos poderiam se exibir como criaturas divinas. A vida na Terra era para ser bem usufintida, nao para ser um “vale de Idgrimas”. Logo as colunas passaram a omar li mansdes particulares, elevando © homem ao céu, postuza humanista que no se apresentou no Brasil colonial e imperial. A teoria arquitet6nica costuma ser vista como algo ueutro, como se do houvesse wn posicionamento politico implicito, até mesmo onde ela parece ser apenas técnica. Ela comeca como transposigao do modelo da oratéria classiea para o Ambito da construgao. Vitnivio & sintomético disso. Ele tinha uma formagao retérica, que os arquitetos contemporaneos nao costumam mais ter. A divisio que ele faz da arquitetura em usilitas, firmitas € venustas & a transposigao de trés categorias basicas do discurso: inventio, dispositio e elocurio. Isso nfo ¢ apenas um modo de estruturar a teorizagdo arquiteténica, Significa que a obra é feita para ser o equivalente a um discurso, uma pega de oratéria, ou seja, um modo de convencer os receptores a terem a mesma visio que o autor, que o orador. A vontade de um & transposta pela obra para se tomar ventade de todos. Platio, no seu didlogo sobre a oratéria, 0 Gorgias, ja tinha visto a construgao arquiteténica como a explicitagao da estrutura da mente dle quem iria ocupar os seus espagos, Aristételes na Rerérica tomou o cuidado de insistir que a verdade, sozinha, & demasiado fragil para se conseguir, com ela, 0 bem comum e 0 justo. E preciso que ela seja armada com os instrumentos da oratéria, para cumprir suas fungdes. Por isso, ele estuda a psicologia das multiddes, para o orador saber com quem esta lidando e como deve conduzir sua fala para lograr as metas que deseja. Ora, ja nesse momento se est resvalando para uma concepgio em que se considera verdadeiro aquilo que esti de acordo com a vontade do sujeito, para ele conseguir, com a oratéria, a sua vontade sobre a vontade dos outros. O orador € 0 primeiro a acreditar que ¢ verdadeiro aquilo que ele diz. Mesmo que no inicio desconfie que nao seja, logo ele proprio se convence de que nio ha outra verdade se nao aquilo que ele esti dizendo Em suma, 0 que se sugere é a necessidade de uma postura desconfiada diante das grandes obras arquitetonicas. Do que seri que elas esto querendo nos convencer? Exatamente essa pergunta que nio costuma ser feita pela visio técnica on até historica. Outras ‘vezes se aceita uma resposta aparente, como “grandeur du roi”, perfeigao divina, amor do REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 129 marajé por sua preferida, © historiador acaba sendo alguém que endossa e faz endossar a historia havida como a melhor das historias possiveis, Nao por acaso, Vitrivio dedica sua obra a César, a quem reconhece o direito de comandar 0 mundo por inteligéneia e vontade divinas. Embora também estude mansdes particulares no campo e na cidade, ele se preocupa, sobretudo, com templos e prédios piblicos, propondo que se sigam os modelos gregos, 0 que acabou acontecendo. Nao por acaso, Washington € una capital coustruida segundo o modelo clissico. Nela se esconde 0 desejo de dominar o mundo, algo que os préprios gregos ja haviam tentado e que foi conseguido pelos macedénios com Alexandre O estilo arquitetonico revela um desejo de mando, um projeto histérico de dominagio. A arquitetura serve para consagrar a vontade de poder, apresentando-a como grandiosa ¢ admiravel. Hé uma identificagao arquiteténica — Atenas, Roma, Vaticano, Paris, Londres, Berlim, Washington ~ que revela a identificagdo de uma poténeia com pretensdes imperiais em relago As poténcias dominadoras que a antecederam. O mais importante da arquitetura nao acontece a partir da arquitetura, a sua histéria nfo se expliea apenas pela sucesso de recursos materiais. A rigor, 0 arquiteto enquanto técnico nio consegue entender a historia da arquitetuza e, nesse sentido, também nfo a propria arquitetura, Ele apenas repete a historia da dominagao pretérita, portanto, a versio dada pelos vencedores da historia. Karl Solger criticou Vitrivio dizendo que ele nao viu que a grande obra de arte, ¢ com *. Sim, o romano Vitrivio e o italiano Alberti nao ela a arquitetura, deve expressar uma “idei se dedicaram a debater as “ideias” que suas obras deveriam manifestar. Isso nao significa que nao haja “ideia” naquilo que eles propdem. Nela esta, alias, o ponto mais problematico do que propdem. itvivio queria manifestar pela arquitetura o carter divino do César ¢ a grandeza do império romano, que sua época, ainda nfo havia atingido seu apogeu, mas ja havia conquistado a Grécia e boa parte do Mediterraneo. Se o César precisava ser lembrado por un escravo, diz-se, numa procisséo triunfal, de que ele era apenas um homem, os que 0 celebravam viam nele um deus, inclusive o esclarecido Vitriivio. Para a perspectiva do conquistador — no se deve esquecer que “provincia” provém de “pro vineere”, a regio que havia sido conquistada e veucida -, o expausionismo bélico romano, que custou a tortura e a morte de milhdes de pessoas, a destruigdo de diversas linguas e culturas, era visto como algo grandiose. VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 130 Vitnivio acreditava que a Terra sustentava o universo inteiro sobre pilastras, fazendo as constelagdes, doze ~ nem mais nem menos ~ girarem em tomo dela para que se tivesse un ano. Ele acreditava em Jipiter no céu e César na Terra. Achava que o corpo humano devia ser modelo de todas as construgdes: é um narcisismo estético. Alberti acreditava que um dens sozinho tinha feito o universo inteiro a partir do nada e criado 0 homem para ser adorado através da Igreja, um deus tao grande, onipresente, mas que precisava de casas em que se abrigar, un deus que devia de estar em todos os lugares e ao mesmo tempo ser etemo, supratemporal, como se todas as coisas que existem, sendo dinamicas, nao tivessem nelas a temporalidade. O homem era visto por ele como 0 tinico ser dotado de alma imortal e que tudo existia para o seu proveito, embora quase tudo estivesse to longe que se tornava inalcangavel: é um narcisismo teolégico. Resta indagar se a arquitetura ergue monumentos imensos ao erro — quanto maior 0 e110, maior © monumento -, achando que resolve o exzo pelo tamanho da edifieagao, Alberti queria mostrar nas igrejas a grandeza de Deus, sem perceber que un deus com a pretensdio de ser infinito no poderia caber num templo e, sendo todo poderoso, no precisaria se abrigar numa “casa de Deus”. Ele estava preocupado com a “perfeigdo”, como aquilo em que nada se pode mudar, tirar ou acrescentar sem que piore. Mas e se todo for falso, imperfeito? A rigor, nao ha obra perfeita, ha apenas obras em que 0 autor cansou de trabalhar e deixa de lado. génio criativo sempre tem mais alguma coisa a acrescentar, a alterar, onde “a gente leiga” fica apenas embasbacada, Ele pode até cansar de uma obra, mandé-la para uma exposigdo ou editora, e depois fazer outta, para dizer 0 que nao conseguira na anterior. Cada obra de arte ¢ a negagao da perfei¢ao de qualquer uma delas. Quanto melhor ela for, mais se demonstra que ha algo que ainda nao se aleangou com ela (@ menos ainda com obras menores). Quanto mais artistica, tanto mais aponta para sua transcendéncia 3. DE ARCHITECTURA A teoria de Vitrivio costuma ser lida coujugando trés vetores na construgao — utilitas, Jfirmitas @ venustas, ow seja, utilidade, firmeza e beleza — e € um precioso legado de informagdes historicas, recomendagdes priticas e reflexdes teérieas, constituindo-se num dos mais relevantes textos antigos para a estética e historia da arte, Pode ser lida de varios modos, como fonte de informagao sobre modos € materiais de construgao, comércio internacional, REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO prineipios matematicos, ete. Considera parte da arquitetura o que hoje est na engenharia bélica, na construgdo de estradas, na engenharia de pontes, na decoragio, etc No livro I trata da figura do arquiteto, como um artista que precisa coujugar uma habilidade natural e instrugao e deve conhecer varios ramos de estudo, sendo seu conhecimento um filho da teoria e da pritica e mostrando destreza nos prineipios da proporgao. Vitnivio aponta onze qualidades que o arquiteto deve ter, sendo surpreendente, na atual era tecnologica, que a maioria delas & de formagao humanistica, a rigor apenas umas cinco sao téenicas. O arquiteto deve: 1) ser um homem educado; 2) saber desenhar; 3) couhecer geometria: 4) ter boa nogdo de dtica para cuidar da iluminagdo; 5) saber matematica: 6) ver a simetria por meio da geometria; 7) conhecer histéria para ver altemativas da fortuna; 8) conhecer filosofia, para ter a mente elevada, sem arrogancia, sendo justo € honesto sem avareza; 9) conhecer teatro, tanto como construgdo quanto como texto; 10) conhecer prineipios basicos de medicina para fazer edificagdes salubres; 11) conhecer filologia, nio como especialista, mas o suficiente para conseguir expor seus projetos Esse perfil ndo é mais realizado nos cursos de arquitetura atuais, que se tomaram cursos de formagio de técnicos em construgao, nio de humanistas nem de artistas. Vitrivio queria que o arquiteto fosse um homem culto, um cidadio do mundo, que se sentisse em casa em qualquer pais e fosse capaz de conversar com principes e poderosos que encomendassem suas obras. Ele proprio demonstra conhecer Plato, Aristételes, Euripides. Cita diversos tedricos, cujas obras ndo se preservaram. O meio ambiente s6 importava como um espago salutar para a coustrugao. Ele nao tinha maior preocupagio com sustentabilidade, discome sobre aquedutos, nao sobre esgotos. O centro da atengao era a representatividade do poder, a honra dos deuses e defesa da cidade com a construgao de muralhas e maquinas de guerra Em suma, a sobrevivéneia dos poderosos era vista como fundamental para a comunidade Para Vitnivio, a arquitetura dependia da ordem (medida dos membros de uma obra por si € concordancia nas proporgdes do todo), da disposigaio das partes, da eurritmia (beleza, adequagdo e ajuste das partes), da simetria (acordo entre os membros da obra), da propriedade (perfeigao do estilo com principios aprovados, adequagio das partes) e da economia (a obra estar de acordo com as suas finalidades). © plano bsico da obra envolvia o plano frontal, a perspectiva dos lados com 0 centro, a reflexdo sobre © plano e a inveng’o para resolver problemas intrincados ¢, se necessirio, descobrir novos principios. Se 0 arquiteto fosse VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 132 FLAVIOR. KOTHE construir uma muralha, deveria cuidar que ela fosse larga o bastante para que dois homens com armaduras pudessem passar um pelo outro. Ou seja, a “utilitas” determinava a estrutura, a obra deveria fncionar e ter resisténcia nos materiais e na construgao de modo a perdurar Havendo a execugao das metas com materiais adequados supunha-se que ela tenderia a ser bela. A beleza era vista por ele como “venustas”, palavra derivada de Vémus, a deusa da beleza, Nao usa o temo grego “kalias” (que aparece em caligrafia, a escrita bela) nem o termo latino “pulchritudo”, beleza, ou “pulcher”, bonito, “formosus”, formoso, ou “bellus”. belo. Implicitamente, quem tinha a falar sobre a boniteza da obra eram os homens, nao as mulheres. O livro IT discute os materiais de construgao: 0s tipos de tijolo, de cal, de paredes, de telhas. Por que os romanos nao inventaram o concreto armado se tinham os elementos que 0 constituem? Tinham o elemento mais raro, 0 ferro, suficiente para armar imensos exéreitos Faltou a centelha de alguém reunir os elementos. Vitrivio, ao falar dos materiais, comenta de Tepente que as escravas grividas eram vendidas por valor menor, pois o feto comeria suas forgas (em vez de valerem mais, por virem dois pelo prego de uma). Nao se pode esperar dele um protesto contra a escravidio, embora ele diga com orgulho que vive do proprio trabalho, nao sendo eseravo. Isso nao quer dizer que a maior parte do trabalho de construgao nao fosse feito por escravos. Na Idade Média, as guildas eram formadas por artesdos livres. O arquiteto era um profissional liberal 0 livro III se volta para os templos dedicados aos deuses imortais, ou seja, para a arquitetmza sacra piblica, mas comega falando de Sécrates, como 0 mais sabio dos homens, ¢ de escultores famosos por suas obras para reis e pessoas de alto nivel. Dai comenta nao devemis ficar surpresos se a exceléucia artistica ndo é conhecida ou reconhecida”. Diz que 0 desenho dos templos depende da simetria, que se deve & proporgao, a corespondéncia das medidas, assim como no homem ha proporgao entre as diversas partes do corpo. Dai ele entra num estudo sobre a relagio entre as proporgdes do corpo humano com as proporgdes em obras arquiteténicas como segredo de stia construgao. Os romanos nao conheciam 0 zero. Ele adota a opiniaio de mateméticos coevos, de que o seis seria o nimero perfeito, pois a partir dele seria possivel formar todos os miimeros: 1 = 1/6 de 6; 2 = 1/3 de 6: 3 = 1/2 de 6; 4 = 2/3 de 6; 5 = 5/6 de 6; 6 = 6/6, etc. Tendo medido muitos soldados, chega a REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO conclusio de que na face do homem: do queixo ao topo da testa = 1/10 do corpo inteiro; do queixo até as narinas = 1/3 da face; das narinas até o meio das pestanas = 1/3 da face; da metade das pestanas até a raiz dos cabelos = 1/3 da face. Do pulso até a ponta do dedo médio = 1/10 do corpo inteiro; do queixo até o topo do eranio = 1/8 do corpo inteiro: da base do pescogo até a raiz do cabelo = 1/6 do corpo. © comprimento do pé seria para ele 1/6 da altura do homem, como o antebrago ¢ o peito seriam cada um % da altura Por que essa proporgao do pé com a altura, fundamental para a projegio ua relagdo entre largura e altura das colunas, esta errada? Ela nao é de 1/6, e sim de 1/7 ou 1/8. Sera que os romanos eram patagdes? No primeiro capitulo do livro seguinte ele corrige essa anotagao dizendo que seria a relagao da altura com o pé no barro, ou seja, com a pegada deixada no barro. Caso fossem proporcionados como os homens de hoje, a opgio por 1/6 seria antes a projegao do desejo de ter 0 mimero dito perfeito 6 na relagao entre pé e altura, e dai entre base € comprimento da coluna, ¢ nao a medida objetiva. As colunas de 1:6 so, porém, atarracadas, sendo a historia da arquitetura um esforgo no sentido de alongar sua alttra, anmentando a resisténcia delas. Nesse livo, ha a proposta do que tem sido chamado, desde 0 desenho feito por Leonardo da Vinci, de homem vitruviano: centre-se o compasso no umbigo do homem, os dedos dos pés e das maos estendidos tocam a circunferéncia por ele descrita. A distancia da sola do pé ao topo da cabega é igual a distancia dos bragos estendidos. O principio de construgio do homem seria, entio geométrico e, portanto, ele teria na matemitica a sua esséncia explicativa. A medicina contemporinea avalia a saiide, que é uma qualidade, por pardmetros quantitativos Vitnivio esta descrevendo, no entanto, apenas o corpo do homem, a sua parte fisica (Kemper), nfo se esta deserevendo a sua dimensao animica, que nao é circunserita por stia pele, mas se estende até onde alcangam os seus sentidos, a sua imaginag’o, 0 seu conhecimento. Em Vitrivio ja se inicia um paradigma que & considerado tipico da modernidade: a redugao ao numérico e ao fisico. Arquitetura se torna espagamento projetado conforme proporges matemticas, como se os mimeros pudessem gerar as coisas. Essa doutrina pitagérica foi criticada por Aristételes na Metafisica, dizendo que nimeros so sempre mimeros de alguma coisa, eles proprios nao geram nada, assim como ideias num suposto mundo das ideias ndo geram nada por si: as nogdes que temos sio sempre uma reflexao, um reflexo de coisas da realidade em nossa mente. VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 134 Se as proporgdes nas grandes obras arquiteténicas so vistas como projegdes de proporgdes do corpo humano, entao fica implicito que o homem é modelo de beleza e passa a considerar belo s6 o que se parega com ele proprio. Isso é narcisismo, um modo de nao aceitar © que seja diferente. Nele ha um centramento em si, descartando a beleza de tudo o que nao seja ele ou, pior, o que ele imagina ser, a imagem que ele tem de si. Alberti preferia un cavalo a um homem, porque nada estaria sobrando nele, como bem sabiam os itélicos. A pergunta que no quer calar é 0 que esta, afinal, sobrando no homem, narcisismo italiano se mostra em Vitriivio, quando supée que a Italia € 0 melhor Iugar para viver, pois seria onde haver a melhor distancia média entre a Terra e 0 céu, Ele acha, alias, que a Terra é imével, enquanto o céu se move em tomo dela, sustentado por pilotis, devendo o ano ter doze meses para que os doze signos do zodiaco possam desfilar nos espagos siderais. Ele nao tem a menor nogao do céu no hemisfério sul ou que se possam ver ais constelagdes que as do zodiaco ou que © mais légico seria o més conesponder ao més Junar, num total de treze meses no ano. © homem poderia ser considerado belo ao ser proporcionado e simétrico, deixando de ser quando essas relagdes uo se cumprissem. Assim, a maioria das pessoas seria descartada, a no ser que pera e maga também fossem consideradas simétricas e proporcionadas. O belo acabaria sendo 0 mediano, a média do soldado romano. Um corpo pode cumprir todas as nommas de proporgao numérica e nao ser belo, O simétrico e proporcional nao é resttito ao ser humano, existe até em cristais. Vitrivio diz que mediu milhares de soldados romanos. Parece que gostava de fazer isso. Alberti vai dizer que 0 homem toma o cavalo por modelo arquiteténico, uo sentido de que nele nao ha nada sobrando nem faltando, cada parte tendo uma fimgao e utilidade. O que € bem proporeionado funciona melhor. Nao ha incompatibilidade entre atender fingdes, ser funcional, ter resisténcia, firmeza: e ser belo, Pelo contritio, esti implicito ai que a obra deve realizar de tal modo o plano de necessidades que tudo parega natural por estar onde esta, nada parega artificial, cada canto e recanto tendo uma fuugao, atendida do melhor modo possivel Com isso, a beleza da obra nao estaria tanto na decoragao, € sim principalmente em sua estrutura, Alberti achava que a unidade minima da arquitetura é 0 teto, para ele tudo aquilo que fica acima da cabega, pois o espaco construido surge da necessidade de se proteger, enquanto Vitnivio teria proposto a colina como unidade minima de referencia. A cohmata seria apenas REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO uma parede interrompida, Ora, Vitnivio falon bastante em colunas porque estava basicamente preocnpado em construir obras grandiosas, com cohmas, templos e palicios. A cohma une 0 céu a terra. Por ter uma divergéncia basica sobre qual seria a unidade basica da arquitetura ¢ que Alberti se vé no direito de escrever outro tratado, mas seguindo © modelo, de fazé-lo em “dez livros”, algo que Palladio também quis, tendo s6 escrito quatro. Vitrivio se mostra preoenpado com as colas & medida que se preocupa com a construgio de prédios piiblicos Inicos e sacros, deixando isso de lado quando se volta para residéncias particulares. Sintomatico é porém, que a casa grande das fazendas latifundiarias brasileiras nao tenha tido colunas, sendo estas reservadas @ construg4o de templos. Nao se seguit ai a linhagem, estabelecida na Ttélia, na Franga, na Inglaterra ¢ nos Estados Unidos, de fazer residéncias particulares em forma de palicios e palacetes, portanto usando colunas em sua estrutura, Apenas se fizeram pilares embutidos, como se 0 homem néo pudesse se erguer em sua extensio de pedra para o alto, Havia recursos financeiros suficientes nas grandes fazendas de agitcar e café para construir mansdes rurais com colmas. InformagGes a respeito desse tipo de construgao a oligarqnia também tinha, tanto pelos filhos que estudavam na Europa quanto por padres que circulavam por toda parte. Além disso, havia uma elite culta que sabia ler HA como que um interdito religioso no inconsciente colonial ¢ imperial brasileiro, proibindo ao homem se erguer como se fosse 0 deus de si mesmo, ficando a colina reservada aos templos catolicos. Igrejas luteranas nao podiam ter torres. Tais interditos tiveram vigéneia enquanto a Igreja Catdlica foi religiao oficial do Estado. Estranhamente, em outros paises catdlicos, como Itilia e Franga, e até mesmo em coldnias hispanoamericanas, esse interdito nio esteve presente, ou seja, no ha uma relagdo necessiria, absoluta, entre catolicismo e esse interdito, No tempo do império, na Quinta da Boa Vista, se fizeram colmas aparentes. A cruz é uma cohtna interrompida por uma trave horizontal. Esta nao era colocada a um palmo do topo e sim eneaixada no tronco vertical, que j4 estava fixada no local da execugio, O condenado nao carregava a cruz pela cidade, mas apenas tinha os bragos amarrados na trave menor. Essa trave representa o percurso da existéncia terrena. Sintomatico é, no entanto, que a coluna, de Vitrivio a Alberti e Palladio, representa 0 homem em postura ereta, olhando de frente o infinito. No templo, ela representa o divino aos homens, fazendo com que eles se sintam pequenos, inferiorizados diante da grandeza divina, que na antiguidade era mostrada também nos relevos que omavam o alto do templo. Na manséo particular que tenha colunas, 0 homem mostra a sua dignidade social, o respeito que VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 136 ele acha que merece, como alguém que tem algo divino em si, Ele se torna como que um deus de si mesmo e se apresenta repleno de dignidade ¢ grandeza. Quanto maior esse seu templo. menor parece, porém, 0 ocupante. Os reis franceses foram tirados dos palacios e levados em carrogas para a guilhotina, sendo suas residéncias transformadas em museus, enquanto os monarcas ingleses imperam até hoje. A arquitetura sozinha nao consegue explicar a histéria dda arquitetura A arquitetura modemista como expresso do capital multinacional fez questo de construir suas sedes com prédios tao altos que o homem se sente uma formiga diante deles Isso expressa a postura do capital diante do trabalho, O traballiador deve se sentir tio pequeno, to infimo, que nenhuma voz de protesto pode sair de sua boca. Ele deve se sentir intimidado, enquanto que 0s outros humanos ~ altos executivos, acionistas e proprietirios -, todos participando do poderio do capital, devem se sentir elevados pela altura do prédio. O novo pode nio ser do universo inteiro, mas ¢ globalizado, ou seja, ele atinge a totalidade do mundo percorrido pelo homem, ensaiando cada vez mais a proposta de poder domar os espagos siderais também. Ainda que coluuas tenham sido fundamentais em templos e prédios piblicos, ainda que 0 “teto” seja o elemento fundamental da construgdo arquiteténica e ainda que a parede seja mais relevante que a colunata, o sentido da construgao, stia unidade fandante, talvez nao seja a coluna, o teto, a parede, O homem constréi colunas, tetos, telhados, vigas, paredes: tudo, porém, para constnuir vazios, que devem ser preenchidos nao s6 pelo seu corpo e sim pela extensfio do seu olhar e de sua presenga, por seus movimentos € repousos, por sua vivéncia, por aquilo que o anima, algo que no € uma alma sem corpo, mas que niio se reduz a corporeidade fisica, ao corpo delimitado pela pele O nada é 0 centro da arquitetura, Tudo o que se mobiliza na construgao existe para gerar espagos vazios que possam ser ocupados pelo homem em sua vivéneia e convivéncia Ha um destocamento do corpo material da construgo para um nao corpo, algo imaterial, que est ai por nao estar como um estante concreto, e sim como um ente que existe enquanto auséneia. Assim como © ponto € um nao ser, 0 universo inteiro sendo encarado como constituido de pontos, tudo se finda e afunda no nao ser, na nada, Nietzsche chamou isso de nihilismo da tradigao metafisica Ainda no livro IIL, Vitriwvio cita Hermégenes como alguém que estabeleceu leis da simetria, No capitulo 5, a0 falar da ordem jonica, diz que a proporgao da coluna se deve & REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO resisténcia dos materiais, & carga a suportar e & simetria que leve & beleza, Como regra geral estabelece que todas as partes so mais belas quando sua projego é igual & sua altura No livro IV, a introdugdo se refere ao imperador ¢ faz uma ripida recapitulagao do que havia exposto nos trés livros iniciais, Ele se dedica entao as trés ordens de cohmas dérica, jénica e corintia. Para cada uma tem uma historia, Considera a primeira como a mais antiga, inventada por Dorus, filho de Heleno e da ninfa Pthia, ao fazer um templo em ftaca quando as leis da simetria ainda nao prevaleciam. Mais tarde, em obediéneia aos oriculos de Delfos, quando fon toma conta de 13 colénias na Asia Menor, ele importa 0 modelo dos dérios ¢ adapta-o aos noves templos, gerando a coluna jénia. Quando mais tarde se quis fazer um templo 4 deusa Diana, para expressar a elegincia das mulheres precisaram fazer uma colina mais delgada ¢ esbelta, gerando a cohina corintia, Esta teve o capitel, em que se distribuem as cargas, com omamentagdes lembrando folhagens, inspiradas numa histéria: havia falecido uma jovem e a sua ama colocou um cesto com coisas de que ela gostava sobre © tronco de uma Arvore cortada: nos lados do cesto brotaram folhagens, que sugerizam a decoragdo do capital, modelo seguido até hoje, embora as colunas tenham se alongado com a maior resisténcia do concreto, Vitnivio propde que a altura da colina dériea seja sete vezes sua largura; a jénica, nove vezes: 4 corintia, oito vezes. Para 0 gosto do concreto armado, isso parece atarracado, embora tenha sido, no neoclassicismo, regra dogmtica. No arquiteto romano, parece antes uma recomendagao pata, com os materiais entéo usados, se construir algo que fosse a0 mesmo tempo resisteute, digno e elegante. Ele estava transpondo medidas que havia aprendido na arquitetura grega como proposta para a arquitefura romana que ainda precisava set feita, No ano 100 a.C., os romanos invadiram e dominaram a Grécia, mas depois foram conquistados pela cultura grega, Por volta do ano 100 d.C, os cristdos tomaram a Grécia Vitnivio faz parte dessa admiragao e busca de fazer algo digno dos modelos antigos. Ele admira nao apenas os arquitetos, mas os filésofos ¢ dramaturgos, tendo preferéncia por nomes que perduram até hoje, como Platdo, Aristoteles e Euripides. Sobre este registra que visitou seu timulo na Macedénia, onde ele moreu no exilio, 0 que sugere que a propria intolerancia grega gerou a decadéucia de sua cultura, jé que perseguiu também Platio, Socrates e Aristoteles. Vitrivvio aparenta ter uma postura liberal, mas ele ndo chega a debate por que Euripides foi obrigado a fugir de Atenas VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 138 Este provavelmente se tomou suspeito 4 casta sacerdotal porque ~ na Ifigénia em Autis € Higénia em Téuris ~ mostrou ceriménias religiosas servindo para manipular multiddes conforme os interesses da aristocracia e das chefias militares. Milagres so ai manipulagdes ¢ truques. O dramaturgo se queixou amargamente do exilio, pois nao tinha mais piblico para 0 que escrevia em grego. Nao se pode esperar do educado Vitritvio, que ele tenha preocupagdes com a liberdade de opinido e de expressio, assim como nao revela preocupagio com habitagdes populares nem com as condigdes de vida da maioria da populagao. Como patricio, ele quer conviver com principes, aristocratas e pessoas gradas. Ele nao era cristo. O Sermo da Momanha ivia parecer-Ihe um disparate, uma inverséo de todos os valores. Nesse mesmo livro TV, Vitnivio se preocupa com os omamentos das diversas ordens, as proporgdes dos templos déricos (no 6 na relagiio entre grossura e altura das colunas, mas as partes do capitel, as proporgdes da arquitrave e do que estiver acima), o templo toscano, 0 templo circular e os altares. Ele nao tem o tom autoritirio de fazer disso um dogma, como aconteceu posteriormente. Sao antes sugestoes de como eram feitos os templos de modo a funcionar. Tem havido a redugao de “Vitrivio = cohna”, mas a cohmna era para ele relevante apenas na medida em que trata de prédios piblicos e sacros que possam usielas. Ele nfo se dedica apenas a ela, A Iateja Catélica adaptou templos ditos pagdos para o seu uso. A diferenga fundamental ¢ que os templos gregos tinham as colunas extemas abertas, sem paredes, podendo os cidadaos conversar sob o abrigo do teto, sendo fechada apenas uma parte central, a cela, onde ficava a estitua da divindade (por vezes tinha um espelho d’agua entre o crente ¢ ela, de maneira que a grande estitua se duplicasse, parecendo imensa). Os deuses eram basicamente forgas antropomérficas da natureza, que faziam parte do mesmo todo que os homens e outros seres. Um deus como Apolo estava evidente para eles no sol que fazia seu percurso de um canto a outro do horizonte. A estitua tinha de ser maximamente perfeita, ndo podia ser como as estituas de gesso catdlicas, geralmente grosseiras uo acabamento, Como os deuses gregos faziam parte do mesmo mundo que os homens ~ a “physis” -, nao precisando haver uma religagao do homem via igreja com um mundo transcendental, os gregos nao tinham “religiao”, religagao, no sentido cristao, cristianismo fechou com paredes a colunata externa do templo, de maneira que 0 cristo ficasse totalmente envolvido pelo espago do templo ¢ dominado pela agao ritual e pela REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO palavra do sacerdote, Padre e pastor ndo podem ser contestados no sermao, por mais disparates que declamem. Declarando-se monoteista (embora o catolicismo seja politeista na pratica), somente ha a verdade de um deus, nio podendo o cristio escolher entre deuses diversos conforme suas preferéncias. O politeismo pressupde que diversos deuses tenham verdades diversas, cada crente se identifica com © deus que the parece mais adequado. O monoteismo é um totalitarismo, o que nao impediu o politeismo ter sido tirania também. Nesse sentido, ao contuario do que ele proprio alardeia, o cristianismo foi antes uma regress da liberdade do que um avango. Quando ele entrou na Grécia, destruiu milhares de obras de arte, seguindo 0 que ordenado no Primeiro Mandamento da Lei de Moisés. Em Olimpia, por exemplo, o vencedor da corrida tinha diteito a uma estatua. Os comedores corriam desnudos. As olimpiadas eram feitas a cada quatro anos durante sete séeulos. Das 175 estituas sobraram os pés de uma, Uma belissima estétua do deus Hermes foi encontrada enterzada profindamente, fora de qualquer lugar em que ela pudesse ter caido: tudo indica que foi enterrada pelos sacerdotes gregos para proteger o deus dos ataques dos iconoclastas. Foi enterrada como objeto de culto ¢ ressuscitou no século XX como obra de arte. Pode ser vista em Olimpia No livro V, Vitnivio trata dos lugares piiblicos da cidade, mas comega falando de poesia (tum texto com versos métricos e arranjo refinado das palavras) e historia. Diz que um tratado de arquitetura precisa explicar termos técnicos obseuros ¢ diz que achou ser melhor escrever livros pequenos para o leitor entender melhor. Descreve o forum e a basilica (que nao tem ai o sentido de uma grande catedral, pois era um prédio laico, para homens de negécio se reunirem), bem como prédios a serem construidos perto do primeiro: 0 Tesouro, a Priso e 0 Senado, Sua atengdo se volta, porém, especialmente para o teatio como uma coustrugiio que deve ser feita em fumgao das leis da actistica. O som da voz e dos instrumentos deve chegar com clareza a0 piiblico. O Iatim erudito tinha declinagdes, Portanto, ouvir o final das palavras de modo distinto e claro era conditio sine qua non para a compreensio: pueri domus nio & igual a puer domi. A forma do teatro nao podia ser, portant, imposta de fora para dentro, como algo a priori e autoritirio (o que ocorre com a forma da pirimnide no Teatro Nacional de Brasilia no projeto de Niemeyer, como se miimias cantassem), e sim de dentro para fora VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 140 (como foi feita a Filanménica de Berlim por Hans Scharoun). O piblico busca assentos conforme a qualidade do som, evitando onde ele se tome embaralliado ou indistinto O som se propaga como as ondas que se formam na “gua quando um objeto emerge subitamente nela, em ondas eirculares erescentes. A voz precisa chegar ao topo do teatro, 0% assentos devem ser distribuidos segundo essas ondas de propagagio. Vitivio diz que os harménicos musieais s4o ainda um setor obscuro da ciéncia musical, prineipalmente para quem nio sabe grego. Ele queria que a construgio reforgasse a sonoridade, como acontece na caixa aciistica de um instrumento, mediante a colocagao de vasos circulares, de bronze ou cerimica, em nichos sob os assentos, para que o som emitido no paleo como centro se espalhasse e, batendo nas circunferéncias dos vasos, aumentasse a clareza formando uma nota unissona consigo mesma, Isso significa que o espago nio deveria ter paredes paralelas, em que 0 som, batendo de um lado € do outro, se choeasse no centro, anulando-se, Ele diz que é preciso “prestar atengao as leis da aciistica e da miisica para tomar perfeito 0 teatro do ponto de vista sonoro e dar prazer ao piiblico” No capitulo 8, ele volta a actistica. No teatro circunsonante, a voz se espallia ao redor e dai é forgada a voltar ao meio, onde bate coutra si e se dissolve: nao se escutando bem os verbos e as terminagdes dos casos nas declinagdes, fica indistinto o significado. No teatro Tessonante, © som em contato com algo sélido produz eco, tornando também ditbias as terminagdes dos casos. Assim se mostra o que deve ser evitado, para chegar a altemativa correta. O que vale para o teatro também ¢ vilido para as salas de concerto. Ele recomenda que os anfiteatros tenham um lugar em que o piblico possa se refuugiar em caso de chuva Ele diz que muitos teatros eram construidos em Roma, usando a madeira como caixa de ressonincia ou materiais sélidos como o marmore, a pedra, o tijolo, Ele propoe que no alto haja uma cohmata para que 0 som atinja os assentos mais distantes do palco, caleulando 0 desenho do teatro mediante tridngulos equiliteros a partir do centro do paleo. Alberti vai retomar essas questdes e propor a construgao de uma parede solida no alto do teatro, mas com entradas e saidas, para devolver plateia 0 som vindo do paleo. Isso permite que 0 artista tenha um retomo do som que ele produz, em vez de este cair no buraco negro de uma sala ingrata. As igrejas barrocas cheias de curvas ¢ reentrancias tendem a favorecer a actistica. A sala Tchaikovsky em Petersburgo é toda de mérmore, o que favorece a ressonancia, tem columas grossas que redistribuem o som e evita assentos estofados e paredes com feltro em que o som mergulhe e morra REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 11 Vitnivio diz que 0 arquiteto deve considerar até que ponto ele vai seguir o principio da simettia ou vai mudar isso para seguir a natureza do lugar e o tamanho da obra. Por a boa utilizagdo, ha coisas que precisam ser feitas do mesmo tamanho, quer estejam num teatro grande ou pequeno: degrans, assentos, parapeitos, passagens, escadas. O cenario do paleo era de tr8s tipos: tragico, com coluas, pérticos e estituas (a tragédia envolvia o poder piiblico & era resttito 4 nobreza na visio antiga, marcada pela aristocracia); cémico, com quartos privados, baledes e janelas; satirico, com drvores, cavemas, montanhas, objetos nisticos Vitrivio registra que, nos teatros gregos, essas leis de construgo nao eram seguidas em todos 08 aspectos. teatro é significative como um modelo em que a construgao, para que sirva bem as fungdes a que se destina, cumprindo a “utilitas”, deve ser estruturada modo adequado aos fins Isso nao é algo apenas formal, como pretendeu Kant ao definir 0 belo como “adequado a fins sem ter uma finalidade”. Os materiais utilizados devem atender aos requisitos da resistencia & ser adequados as finalidades propostas, cumprindo-se a “firmitas”. Assim jé se pretende ter mais que meio caminho andado para a “vemnstas”, que nao é apenas a omamentagao a ser acrescentada aos detalhes, mas ¢ algo estrutural, determinado na planta baixa da construgao. ‘Nao se coloca, portanto, contradigao entre a obra ser bela e ser titil e resistente. Vitnivio comenta ainda 0 modo de construir os banhos piblicos, cujo tamanho deve ser proporcional & populagdo a ser atendida, bem como a “palaestra”, um local onde os filésofos, retéricos e interessados tinham 0 prazer de sentar e conversar. Fala ainda da construgio de portos, quebra-mares e abrigos para barcos. Estas seriam também atividades do arquiteto, embora hoje sejam vistas antes como do engenheiro. 0 livro VI é voltado para a construgao de casas, mas inicia debatendo a figura do intelectual, como alguém que no é um estranho no estrangeiro, nfo fica sem amigos quando perde parentes e intimos, mas é um cidaddo do mundo capaz de enfientar os acidentes da fortuna, Para ele, 0 arquiteto deveria ser um intelectual, Dai Vitriwvio se dirige ao César, dizendo que jamais teve a ambigao de fazer fortuna com a sua arte, pois a boa reputagdo vale mais que a riqueza, € preciso acreditar mais na honra do patricio do que no acaso. Com a publicagdio desses “dez livros”, espera ser reconhecido ua posteridade. Depois de observar que o estilo das casas varia conforme © clima das regides, supde que a voz muda conforme as latitudes, sendo o céu mais baixo de um lado e mais alto de VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 142 FLAVIOR. KOTHE outro, fazendo com que no ponto médio, na bela Ttilia, as pessoas falem em tom médio, Ele nao tinha nogao de que a Terma é redonda e se move em tomo do sol. Achava que 0 céu estava sustentado sobre ela por imensos pilotis, o que faria de deus um grande arquiteto. Assim como 0 movimento das cobras varia conforme as temperaturas, sendo elas mais lentas no frio, “nfo é de se admirar que a inteligéncia do homem & mais aguda com o calor e mais idiota com © fio”. Ele poderia ter coneluido que o frio obriga as pessoas a serem mais precavidas, tendo de desenvolver meios para sobreviver no inferno, e que 0s afficanos da regio equatorial fossem mais inteligentes. Pelo contririo, diz que a Itdlia é a melhor regido para viver Pretende ser um cidadao do mundo, mas o que podia ser mundo era ditado por Roma e seus patricios. No capitulo 2, faz uma observago que teve grande fortuna critica em Descartes, Kant € Hegel, que nao o citaram, Ao discutir a simetria, diz que nem sempre os olhos dio uma impressao fiel, pois podem induzir a wn julgamento falso: as fileiras dos ramos de wn navio trirreme parecem quebrados na Agua do mar. A visio pode induzir a impressdes falsas, a realidade pode ter uma falsa aparéncia Descartes deu o exemplo de uma torre que, vista de louge, parece circular, mas que, vista de perto, se mostra retangular. Em vez de coneluir que os olhos cortigiram a primeira impresso ao terem visio mais nitida, ele afirma que é preciso confiar mais no conceito que 1a imagem Pascal procurou mostrar contradigdes em conceitos matemiticos e 0 poderio das imagens: um filésofo posto a caminhar sobre uma viga por cima do abismo, apds poucos passos ja fica tremendo e suando, para logo retornar ao ponto de partida, em vez de confiar na razio que Ihe diz que pisando direito ha de chegar ao outro lado. Ele afirma, no entanto. também que as imagens servem mnitas vezes para enganar: se © juiz fosse o principio da justiga e © médico o da satide, nenhum deles precisaria usar roupas especiais, linguajar rebuscado e se refugiar em prédios imponentes A observagao de Kant de que um Lapis colocado num copo d’agua parece quebrado e, portanto, as aparéueias enganam. Hegel observou que a vista registra ai a diferenga de grau de refiacao entre o ar e a agua, sendo que ela nos enganaria se nao registrasse essa diferenga. O erro no est em perceber o Lépis como que partido e sim no modo como se interpretam os dados, As aparéncias sA0 0 modo como coisas nos aparecem: a aparéncia é essencial a esséncia. Os sentidos nfo so um fosso entre o homem e a realidade, mas uma ponte. Kant munca disse, alids, que 05 sentidos nao seriam uma ponte, mas disse que aquilo que 0 sujeito tem ua mente nao ¢ idéntico & coisa real, “res ef intellectus” nao sao 0 mesino. Sugetiu, aliis, REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 3 143 que o sujeito tende a considerar verdadeiro aquilo que de sua percepsao the parece de acordo com a sua vontade, Vitnivio tem uma preocupagio bisica com a estética. Diz que é preciso manter a proporgao nos e entre os quartos prineipais. A sala de jantar deveria ter 0 dobro comprimento da largura, formando um retingulo, a galeria de pinturas deve ter proporgo generosa. As relagGes simétricas planejadas deveriam ser observaveis e visiveis. Os quartos de dormir ¢ a biblioteca deveriam ser expostos ao sol da mauha, cuidando-se que os livros nao fossem estragados por fimgos e insetos. Para fazendeiros € proprietérios, ele recomenda casas seguras contra roubos; para politicos e advogados, salas espagosas para acomodar reunides grandes: para homens de alto nivel social, com a obrigagio de oferecer recepgdes. a mansfo deveria ter entradas solenes, illa Atrios e peristilos espagosos, com plantas ¢ caminhos amplos. No capitulo 6, trata da rustica”, umna residéneia rural, mas que deve ter uma parte para fermentar o vinho, prensar vas e azeitonas, depésitos para azeite, banheiros perto da cozinha. Ele diz que a casa grega tinha dois patios internos abertos e se dividia em duas partes, uma para os homens, outta para as mulheres. Os jantares dos homens costumavam ser em quartos grandes nas casas, sem a participagao das mulheres. © Livro VIL comega discutindo direitos autorais. Diz que ha quem roube antigos registros e 0s apresente como proprios para a posteridade, o que merece reprovagao. Aqueles que em seus eseritos nao propdem ideias proprias, mas que por inveja prejudicam a obra de outros, mereceriam nao apenas ser censurados, e sim ser condenados & punigdo por seu perverso curso de vida, Vitrivio conta a historia de um coneurso literdrio, em que seis dos sete juizes deram © primeiro ¢ o segundo lugar aos autores que mais agradaram o piblico Aristéfanes, 0 comedidgrafo, mostrou como eles haviam se apossado de outros autores. Foram entdo punidos por roubo, tendo o prémio sido attibuido ao terceiro colocado. Na corte de Prolomen, Zoilus teria eriticado Homero: 0 monarea nada disse, embora considerasse injustas as afirmativas. Quem critica génios deve providenciar o proprio sustento. Ha diferentes versdes sobre a morte de Zoilus: crucificado, apedrejado, jogado vivo numa uma fimerdtia: “qualquer que tenha sido, foi una punigdo adequada e bem feita contra quem acusa a quem nao pode responder”. Como se vé, Vitriwvio nao era um arduo defensor da liberdade de opiniao. VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 144 Para ele, os livros deven ter a estrutura de um templo, seja ele dorico, jénico ou outro. Isso explica, por exemplo, o inicio de cada livro seu como um atrio, um local onde 0 autor recebe 0 leitor e Ihe conta wna historia interessante on faz uma ponderagio sabia. Significa ainda que © principio arquiteténico nao ¢ exclusivo da arquitetura, existe no ensaio, mas também em cada uma das artes, seja a obra grande ou pequena. Um haicai tem uma estrutura, um soneto tem outta, Dai o erro de Billington ao supor que “arte estrutural” seria apenas a construgio de grandes obras de engenharia, como a Tour Eifel, uma ponte ow um arranha-céu ‘Uma joia pequena também tem estrutura Vitnivio diz: “agradego infinitamente a todos 0s autores que providenciam abundante material de diferentes espécies”. Presta sua homenagem aos tratados sobre simetria de Nexacis, Theocides, Demofilo, Polis, Le6nidas, que no nos foram transmitidos. Declara, com certa coragem, mas de acordo com 0 que se passava entio em Roma: “reuni o que era itl, auuito dos gregos, pouco dos romanos.” $6 dai é que ele passa a tatar da construgao das casas, discutindo materiais para assoalhos, paredes, etc. A sua atengo se volta, porém, para a decoragao da casa, especialmente da sala de visitas, que é a parte ptiblica dela, como se fosse uma praga. No estuque nio completamente seco, pinta-se o afresco, o que demanda habilidade ¢ presteza. Na pintura, diz ele, deve-se representar uma coisa que realmente existe ou que pode existir. Para Atrios e peristilos, os antigos exigiam pinturas realistas, como casas ou navios, fachadas com cenas trégicas, cémicas ou satiricas (como no cenirio do teatro). Pinturas representavam portos, promontérios, praias, rios, fontes, estreitos maritimos, templos, cavemas, bandos de passaros, rebanhos. As pinturas de estilo elevado representavam deuses & episédios mitolégicos, cenas da batalha de Troia, das andangas de Odisseu, ete. A maior parte dessa pintura se perdeu, Pelas ruinas que nos chegaram nao se tem uma boa nogao do refinamento da cultura antiga Vitnivio entra, no capitulo 5, em uma polémica sintomatica, na qual ele nao tem razio. Afirma que ua sua época estava imperaudo © mau gosto, por causa de afrescos de monstruosidade e que ndo representavam coisas reais, bem definidas. Assim, cinulas de juncos eram colocadas no lugar de colunas, folhas onduladas no lugar de pérticos, candelabros sustentavam representagées de altares e momumentos, no alto de ramos apareciam figuras humanas sentadas sobre eles, em pediinculos de plantas apareciam meio corpos de homens e animais. Ele diz: “essas coisas nao existem, nfo podem existir, munca existiram, 0 nove gosto causa maus julgamentos, uma arte pobre que prevalece sobre a verdadeira REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO exceléncia artistic. Como € que um junco pode suportar um teto ou um candelabro um, frontal com seus omamentos? Como poderia um pedimculo ostentar uma figura humana” Radicalizando ainda mais, conta que num teatro de Tales a decoragio mostrava centanros sustentando arquitraves, gérgonas com cabesa de ledo, partes do prédio no teto. O efeito da cena era atraente até que Licinio, um matemitico, teria dito que, com essa demonstragao de falta de senso de adequagaio, eles seriam todos considerados nao inteligentes. Vitravio quer que haja uma adequagdo das estituas aos diferentes lugares, ufo se podendo pintar colunas, apices e frontais no teto, pois isso se poe no cho. Para acabar com essa “declaragao piiblica de bumrice”, Apaturius teria removido a cena do teatro e substituido-a por uma de acordo com a realidade. Vitrivio se diz espantado com o falso método prevalecer sobre a verdade. Por que Vitnivio esta ertado? Se ele estivesse certo, movimentos do século XX como surealismo, cubismo e abstracionismo seriam inadmissiveis. O que ele quer & que todas as artes obedegam aos principios da arquitetura, A arte nio deve ser o espago da imaginagio livre. Ele nao consegue admitir que o que nao é vidvel ua coustugdo de um prédio pode ser pintado numa tela ou numa parede, Um ledo nao cai quando pintado num pedimeulo; uma |jovem pintada na ponta de um ramo, no lugar de uma flor, também no cai, No filme Doutor Jivago, ha uma cena em que o poeta Tivago no exilio relembra a loira amada Lara e a vé em cada uma das flores amarelas espalhadas pelo campo. E uma antropomorfizagao. Todas as figuras de retéricas fogem a um “realismo” imediatista. Dizer “Aquiles é um ledo” pode ser uma metafora, como é uma comparago quando Homero diz que Aquiles atacava as hostes troiauas como um ledo ataca ovelhias. A rigor, Aquiles nfo é wn edo. Por outro lado, ha uma légica em dizer que Aquiles € um ledo, pois ele tem a forga, 0 poderio, a agressividade, a realeza de um lefo, Antes de animalizar o homem ha uma humanizagao do animal. Principalnente ha a busea do mesmo que os retme. Esse mesino é 0 fundamento, 0 ser que reiine os entes Nos sonhos e nas fantasias, imagens que “na realidade” nao sao possiveis, acabam aparecendo, como se fossem “verdadeiras”. E so. Ha uma verdade nelas que nto se reduz a0 mimético de uma cépia exata de um modelo extemo: a deformagao da figura é crucial para revelar as forgas afetivas do inconsciente, Vitrivio defende a arte como imitagdo, que ele considera exata, de modelos da natureza ou da mitologia. A rigor, ele nao poderia sequer admitir a pintura, pois ela transforma o modelo tridimensional em duas dimensdes e procura VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 146 ainda Ihe imprimir uma quaita, a do tempo, que perdhura naquilo que é registrado para transcender © momento de sua génese. Ele quer arte como imitagao de coisas da natureza & reprodugao da ideologia de sna classe, no quer arte que imite os processos criatives da natureza e que revele os conflitos sociais. Um leao pode representar a realeza ou as forgas armadas, mas nao é entdo um ledo da savana, Ele aparenta ser copia da natureza; seu sentido é, no entanto, simbolico. Centauros faziam paite do imaginévio religioso greco-romano, cavalos com trouco e cabega humanos, conjungao significativa para povos que usavam 0 cavalo para lidar com o gado, viajar ou guerrear. Podiam glorificar a forga bruta, Os centauros foram exterminados por Tesen Héreules como parte do proceso civilizatério. Resto Quiron, que era sébio © usava a violéneia para fazer o bem: dele deriva o termo cirurgiao Se Vitnitvio fosse levar a sério suas ponderagdes, teria de criticar ndo apenas a pintura da época, mas a religidio romana, que esta repleta de fantasias impossiveis aos homens, mas consideradas factiveis pelos deuses, como voar pelo céu ou ser imortal. Teria de criticar também souhos e fantasias, em que o sujeito expressa desejos incouscientes, como faz também a religido e fazem os quadrinhos. Do mesmo modo como os remos na agua nao esto quebrados, também as pinturas surreais precisam de uma interpretagao correta para 0 bom discernimento, O problema nao esta na pintura, ¢ sim na leitura. E estranho que um intelectual tao aberto quanto ele fosse tio fechado no gosto pictérico. A arquitetura era tudo para ele, & tudo tinha de ser arquitetura. Nos capitulos seguintes do livro VIL, ele mostra a origem dos varios pigmentos — ocre, vermelho, preto, azul, verde, pirpura ~ e revela quio extenso era o comércio mundial antes da era crista, com cores vinda de Atenas, da ilha de Melos, de Smima, da Arménia, da india, de Alexandria, Fala da obtengao de cores a partir de flores, de resinas, de minas, de vinagre no couro, De repente diz que 0 meretirio & capaz de suportar uma pedra imensa, como também serve para obter prata, ouro € cobre, Ou seja, sua obra é uma fonte grande de informagoes para dreas diversas, O livro VIE é dedicado a agua como um dos quatro elementos considerados basicos pela filosofia antiga, mas absolutamente necesséria para construges ¢ cidades. Fala de aiétodos de encontrar digua, por exemplo, observando arvores froudosas no campo, colocando um vaso de noite num buraco na terra para ver se esta timido pela manha. Nao cita, porém, 0 REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 147 uso de forquithas de gallios verdes. Alberti esta questio para dizer que a melhor égua é aquela cujo gosto é nao ter gosto nenhum. Disso se pode induzir que o melhor principio estético ¢ aquele em que na obra nfo parece ter havido qualquer attificio, estando tudo no seu devido Iugar, como se fosse natural. Vitnivio fala do rio Ganges, do Tigre, do Eufiates, do Nilo, do Daniibio, do Reno. Ele fala de aguas boas, aguas termais e Aguas sulfurosas. Fala de lagos salgados no Egito, e de lagos cheios de leo (petréleo?) ua Etidpia, na india, em Cartago, ua Babilduia, Neste tltimo, ele diz que ha asfalto na superficie. Diz que ha fontes tao acidas que podem dissolver a casca de um ovo, fontes que fazem perder os dentes e fontes tOxicas. Fala de filtrar a Agua passando- a pela areia, ensina a tirar o nivel e fazer com que a agua suba de nivel. Fala de aquedutos, encanamentos ¢ cistemas. Ensina como fazer tubulagdes com canos de barra queimado eneaixados uns nos outros. Nesse aspecto, os romanos se tommaram 0 povo mais civilizado de sua época, No livro IX ele fala das fases da lua e do universo, mas comega conversando sobre os jogos em Olimpia, Pitia, istmia, perguntando por que certos atletas eram imbativeis, mas ndo tem uma resposta clara. Dai se volta para o modo como Arquimedes calculow a densidade dos metais ao usar a gua como medida, fazendo réplicas em ouro e em prata de uma coroa que rei havia emprestado e que ele suspeitava ter sido devolvida uma falsificada. A metonimia de tais comentarios, que parecem marginais ao que ele vai expor a seguir, a proximidade deles sugere que sejam indices da necessidade de se desenvolver mais as cigncias: para uma ‘perguuta no se tem resposta; para outta, ja se encontrou uma. Ela nao, porém, ultrapassada, ¢ sim indicativa de problemas. Vitrivio supde que 0 céu esti colocado sobre piletis por um arquiteto que ¢ 0 poder da natureza, dando una volta sobre eles a cada ano, para passar pelos doze signos do zodiaco, razao pela qual se tem (ainda hoje) doze meses ao ano, em vez de treze, que seriam os meses Inmares de 28 dias, o que estaria de acordo com a contagem do ano e dos dias conforme fendmenos naturais como as andangas da Terra em tomo do Sol e de si. Para ele ¢ indubitavel que haja doze signos, concepsao corrente em sua época, mas que hoje parece absurda (ele iguora as coustelagdes do hemisfério sul): mais absurdo é, porém, que ua era da ciéncia todos ainda sigam a astrologia antiga. Ele no se pergunta se 0 zodiaco foi uma tentativa de VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 148 descrever tipos de personalidade, ndo se pergunta se outros signos poderiam ser imaginados na confusio estelar. Ao falar das fases da lua, diz claramente que o sol percorre os doze signos do zodiaco, que giram em tomo da Terra, Para ele, a Terra é 0 centro do universo, tudo gira em tomo dela Acredita que hi influéneia dos doze signos do zodiaco, do Sol e da Lua sobre a vida humana Para ele a Terra nao é redonda nem gira em torno do Sol. Ele também nao tem a nogao do zero, Diz que hipiter tem uma orbita entre Marte e Satumno. Naquela época, nao se iria fimdar uma cidade, construir um templo ou uma “villa” sem antes consultar wm éugure € um astrélogo. Seja por crenga, seja por conveniéneia, Vitrivio é © que hoje se consideraria atrasado e supersticioso. Por absurdo que seja esse livro, ele & sintomatico para a época AAté hoje continuamos homenageando o genocida e tirano Silio César em julho, celebrando Augusto em agosto, a guerra em margo com Marte, Chamamos 0 més nove de sete, setembro; 0 més dez, de oito, outubro; o més onze, novembro, de nove: 0 més doze dezembro, de dez. O tmico més com o mimero certo de dias é fevereiro, que para nds é andmalo, “errado”. Nao € muito objetiva a nossa era cientifica. O livro X ¢ dedicado as maquinas, aos implementos ¢ instrumentos necessérios para construir prédios, elementos que permitem movimentar, engenhos para levantar a Agua, rodas € moinhos de agua, parafusos de gua, bombas para erguer a gua, odémetros para medir a distincia percortida no mar, catapultas e escorpides, méquinas de assédio e cerco, técnicas de assalto a cidades, mruralhas, medidas de defesa. Isso seria hoje parte da engenharia hidréulica ¢ bélica, no da arquitetura. Vitrivio, como também Alberti, nao tem 0 menor pudor em fabricar maquinas destinadas a matar gente. Ele nao iria perder o sono por isso. 4. CONCLUSAO Toda conclusio é proviséria, una transigdo que finge acabar assim como todo inicio & © fingimento de que algo comega ai onde se diz que comera. Nietzsche, na sua fase final, tendia a escrever fragmentos em parigrafos sem maiiiscula inicial e sem ponto final, deixando tudo em aberto ou até enfatizando isso com tragos ¢ reticéncias. Nao ha verdades absolutas: nem mesmo esta, A interpretagdo no tem o direito, porém, de se tomar um bli-blé-bli REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA VITRUVIO REVISTO 149) incessante, Se este & a regio de partida, como aquilo que se ouve ao redor, ela s6 tem 0 direito de se manifestar se conseguir transcendé-lo Por que um arquiteto se preocuparia tanto em Roma com astrologia? O deus supremo para os romanos era Hipiter, cujo modelo era Zeus. O deus prineipal tinha mais poder que outros deuses, mas nao era todo poderoso. Ele no podia matar outros deuses, Nele se adorava, no entanto, o proprio poder. Era adoravel ter poder. Ter poder eta dominar escravos, auulueres, jovens, outros povos. Se o deus maior representava isso, por que nao exereé-lo? Zeus mio tinha o dom da antevisio, como tinha seu inmio Prometeu. Naquela época, a edificagao de um prédio maior ou de uma cidade era acompanhada antes pela consulta a un dugure. Sendo vantajoso prever o futuro, quanto maior o investimento tanto mais se precisa ter uma visio prévia do que possa acontecer. O pressagio vai além da previsio, ele se di como antevisio do que nao est na agenda, como uma adivinhagao obscura de algo que ainda haveria de acontecer. Vitrivio conseguiu adivinhar a expansio e consolidagdo do império romano. Sua obra consagra um projeto que iria consagré-lo. Como tedrico da arquitetura, faz parte de um projeto imperialista, que unificou as regides em tomo do Mediterrineo, cujas benesses maiores ficavam com Roma, mas que espalhou prineipios civilizatérios em regides relativamente atrasadas, Nao se pode esperar dele um cidadao modemo, Era um patricio antigo, escravagista e imperialista. Fez, no entanto, a valorizagao da arquitetura de uma regidio conquistada, nao para que ela fosse preservada e desenvolvida, mas para o beneficio de Roma A arquitetura nao existe em si nem por si. Ela depende de fatores que nio sio arquitetura, desde o poder do imperador, dos homens abastados e dos politicos até do curso dos eventos histéricos. Vitrivio nao era cristo, embora as suas propostas de templos tenham servido a Igreja Catolica e de palicios aos monarcas ditos cristaos. Ele via ua natureza como que um grande arquiteto do universo, Nao propuuha o arquiteto como wn deus na Terra, pois a divindade estava no César. Também nao mostrou preocupagao nesse texto com as condigdes de trabalho dos que construiam as obras. A filosofia opera sempre com trés instincias fimdamentais: como se concebe o homem, Deus € 0 universo. Sao trés concepedes interconectadas. As respostas ao longo do tempo tém sido diferentes. Sob a mesma palavra ha sentidos diversos. Qual é a nogao implicita disso em Vitrivio? VOLUME 6 | NUMERO 1 | P.123-150 | JANIJUN 2016 FLAVIOR. KOTHE 150 Ele nao tem a nogio de um deus crist@o, onisciente e onipotente. Se ele acteditava nos deuses antigos a ponto de Ihes propor templos, seu deus mais préximo € 0 proprio César, Se cxé haver uma imensa forga da natureza, que organiza tudo como um grande arquiteto, fica implicito que o arquiteto deve operar conforme a natureza. Ele nao Ihe di o nome de dens nem de forga da gravidade. © homem foi definido por ele como uma construgao modelar, no como uma eriatura divina, ndo como um ser que trabalha, um ser preocupado, um ente livre, um animal racional. Ele admirava, no entanto, a racionalidade dos grandes filésofos e a criatividade dos grandes dramaturgos. Se a sua concepeao parece ser proxima 4 astrologia, 0 destino do homem esta determinado pelos astros. Como arquiteto preocupado com questdes filoséficas, foi um pensador politico REVISTA ESTETICA E SEMIOTICA | BRASILIA

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