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(Os dois textos incluidos neste volume intitulam-se, no original MAX WEBER slemdo, Wissenschaft Als Brufe Polk als Bera Copyright 1967 1968 Dunker & Hunblos. Berlim CIENCIA E POLITICA Duas Vocacdes Prefécio de ‘Manos. T. BeRuinck rofesor-Adjunto de Sociologia da Escola de Administragio ~ (Pee Empress de §. Paul ta Fandao Geto Verge} Trento d : Leontpas Hecenpers ¢ Octany Stiverra pa Mora Edigfo primero nines ema inca fo, a hic, ‘Ano = —__ deachn Apna src eoenser a Tonoaciais ‘seen a ebgi i (00-01-02.03.08-05-06 Direitos de tradugao para a lingua portuguesa adguiidos com exclusividae pela EDITORA CULTRIX LTDA, Rua Dr Mario Vicente, 374 04270-000 ~ Sto Paulo, SP Fone: 272-1399 ~ Fax: 272-4770, Esmail: pensamento@eultrix.eom br hip ve penarent cule com ue se aeva a propiedade ars det aio EDITORA CULTRIX SRO PAULO Inpresso em nossasoficinas gréfcas EsTA CONFERENCIA, que os senhores me pediram para fa- zer, decepcionaté necessariamente ¢ por miltiplas razées. Numa palestra que tem por titulo a vocagéo politica, os senhores hio de es amente, ‘blemas da’ atulidade, Ora, a tais problema: ia atividade politica no conjunto da : que politica devemos adotar? ou que conted- levemos emprestar a nossa atividade politica? Com efeito, indagacdes desia ordem nada tém a ver com o problema geral {que me proponho examinar nesta oportunidade, ou seja: que é a vocagio politica e qual © sentido que pode ela revestir? Pas~ semos 20 assunto. > O conceite € extra: Falase da p le divisas aco, da politica de descontos do Retchsbank, da politica adotada por um sindicato durante uma greve; e é também cabivel falar da politi ca escolar de uma comunidade urbana ou rural, da politica da diretoria que esta a testa de uma associagio e, até, da politica de uma esposa hébil, que procura governar seu matic sia mos esta noite. Mas, que é um agrupamento “politico”, do ponto de vista de um socidlogo? O que ¢ um Estado? Sociologicamente, 0 59 Estado nao se deixa definir por seus fins. Em verdade, quase que nio existe uma tarefa de que um agrupamento politico qual- quer nio se haja ocupado alguma vez; de-outro lado, nio é possivel referir tarefas das quais se possa dizer que tenham sem- pre sido atribufdas, com exclusividade, aos agrupamentos polt- ticos hoje chamados Estados ou que se constituiram, historica- mente, nos precursores do Estado moderno. Sociologicamente, 2 Estado nao se deixa definir a nio ser pelo especifico meio que Theé peculiar, tal como € peculiar a todo outro sgrupaniento politico, ou seja, 0 uso da coacio fisica. + "Todo Estado se funda na forga”, Brest-Lit disse um dia Trotsky a .. A violéncia , evidentemente, ii instrumento espectfico. -t. Em nossa época, entretanto, conceber 0 Estado contemporineo como uma comunidade hh mana a ca os es pic de determinado territério — a no- — seivindica 0 monopdlio do uso legitimo da violéncia fisice, E, com efeito, préprio de nossa época 0 nao reconhecer, em relagio a qualquer outro grupo o1 aos individuns, 0 diteito de fazer uso da violéncia, a nio ser nos casos em que o Estado ° tolere: o Es tado se transforma, portanto, na tinica fonte do leit” 4 violencia. “Por politica entendezemos, conseqiiente- mente, 0 conjunto.de esforgos feitos com vistas a patticipar do oder ou a influenciar a divisio do poder, seja entte Estados, seja no interior de um tinico Estado, Ep termes, ges, eu defnigo coresponde 20 wo cor uando de uma questo se diz que é “po- Iitica”, quando se diz de um ministro ou funcionétio que sio “po- Iiticos”, quando se diz de uma decisio que foi determinada pela politica”, € preciso entender, no primeizo caso, que os interes: 56 ses de divisio, conservagio ou transferéncia do poder sio fa- tores essenciais para que se possa esclarecet aquela questio; no segundo caso, impde-se entender que aqueles mesmos fatores condicionam a esfera de atividade do funcionétio em causa, as- sim como, no tiltimo caso, determinam a decisio. ‘Todo homem, que seentrega a politica, aspita ao poder — seja porque 0 con- sidete como instrumento a servigo da consecugio de outros fins, ideais ou egoistas, seja porque deseje o poder “pelo poder”, para gozar do sentimento de prestigio que ele confere. Tal como todos os agrupamentos politicos que historica- mente o precederam, 0 Estado consiste em uma relagio de do- ‘minagao do homem’ sobre o homem, fundada no instrumento da violéncia legitima (isto é, da violéncia considerada como le- gitima). O Estado s6 pode existir, portanto, sob condigao de que os homens dominados se submetam a autoridade continua- mente reivindicada pelos dominadores. Colocam-se, em conse- iitncia, as indagagdes seguintes: Em que condigies se ==] tem eles e por qué? Em que justificagdes internas e em que meios externos se apéia essa dominagio? Existem em principio — e comesaremos por aqui — trés razses internas que justificam a dominagio, existindo, conse- Glientemente,'teés {undamentos da legitimidade} Antes de tudo, autotidade do “passado eterno”, isto &, dos costumes santifi- cados pela velidez imemorial ¢ pelo hébito, entaizado nos ho- mens, de respeitilos. Tal é 0 “poder tradicional”, que 0 patri- arca ou o senhor de terras, outrora, exercia. Existe, em segun- do lugar, @ autotidade que se funda em dons pessoais ¢ extraor- dindtios de um individuo (carisma) — devogao e confianga es- tritamente pessnais depositadas em alguém que se singulariza por qualidades prodigiosas, por herofsmo ou por outras quali- dades exemplares que dele fazem o chefe. Tal é o poder “catis- mitico”, exercido pelo profeta ou — no dominio politico — pelo ditigente guerreito eleito, pelo soberano escolhido através de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo dirigente de um partido politico. Existe, por fim, a_autoridade que se impoe em razio da “legalidade”, em razio validez de.um estatuto legal ¢ de uma’ “competénci iva, fundada_em regras racionalmente estabelecidas ou, em outros termos, a auto ridade fundada na obediéncia, que reconhece obrigagées confor- 57 mes 90 estatuto estabelecido. Tal € o poder, como o exerce © “servidor do Estado” em nossos dias e como o exercem todos os detemtores do poder que dele se aproximam sob esse aspecto. E dispensavel dizer que, na realidade concreta, a obedign- cia dos siiditos é condicionada por motivos extremamente pode- rosos, ditados_pelo medo ou pela esperanga — seja_pelo_medo de uma vinganga das poténcias mégicas ou dos detentores do poder, seja a esperanca de uma recompensa nesta terra ou em outro mundo. /A obediéncia pode, igualmente, ser condicionada or outros interesses © muito variados, A tal assunto voltare- mos dentro em pouco. Seja como for, cada vez que se propde interrogacéo acerca dos fundamentos que “legitimam” a obe- diéncia, encontram-se, sempre € sem qualquer contestagio, essas trés formas “putas” que acabamos de indicar, Essas repiésentacdes, bem’ como sua justificagio interna, revestem-se de grande importancia para compreender a estru- tura da dominacéo. Certo € que, na realidade, s6 muito rar mente se encontram esses tipos puros. Hoje, contudo, nao nos sera possivel expor, em pormenor, as variedades, ttansigées ¢ combinagdes extremamente complexas que esses tipos assumem; estudo dessa ordem entra no quadro de uma “teoria geral do Estado”. No momento, voltaremos a atencio, © segundo tipo de Tegitimidade, ou seja, articularmente, para Esse tipo nos conduz, com efeito, a fonte de vocagio, onde encontramos seus tracos mais caracteristicos. Se algumas pessoas se abando- nam a0 carisma do profeta, do chefe de tempo de guerra, do grande demagogo que opera no seio da ecclesia ou do Parlamento, quer isso dizer que E, se esses homens forem mai presuncosos aproveitadores do momento, viverio para seu tra- balho ¢ procurario realizar uma obra, de seus disef- pulos, dos seguidores, dos militantes , entretanto, © agpecto. de duss figuras ? . Proprio do Ocidente € entretanto — ¢ nos interessa mais especialmente — a figura do livre “de- magogo”. Este s6 triunfou no Ocidente, em meio as cidades dependentes e, em especial, nas regides de civilizagio mediter- rinea, Em nossos dias, esse tipo se apresenta sob o aspecto do ““chefe de um partido parlamentar”; continua a s6 ser encontra- do no Ocidente, que € 0 ambito dos Estados constitucionais. Esse_tipo_de_homem, politico. “por_vocacio",.no_sentido préprio do termo, nfo constitui de maneira alguma, em_pais algum, a tinica figura determinante do empreendimento politico e da luta pelo poder. Toda empresa de dominagio que reclame continuidade ad ministrativa exige, de um lado, que a atividade dos sididos se oriente em fungio da obediéncia devida aos senhores que pre- tendem ser os detentores da forca legitima e exige, de outro lado e em virtude daquela obediéncia, controle dos bens, mate- riais que, em dado caso, se tornem necessérios pata aplicagio De uma parte, a homenagem dos vassalos, a prebenda dos dignitétios, os vencimentos dos atuais servidotes pblicos ¢, de outra parte, a honta do cavaleiro, os privilégios das ordens e a dignidade do servidor constituem a recompensa esperada; ¢ 0 temor de perder o conjunto dessas vantagens & a razio decisiva da solidariedade que liga o estado-maior admi- 39. do poder. Eo mesmo ocotre nos ca- “sos de domitiagio catismatica: esta proporciona, aos soldados fiis, a gloria guerreira e as riquezas conquistadas e propotcions, aos seguidores do demagogo, os “despojos”, isto é a exploracio dos administrados gracas 20 monopélio dos tributos, as peque- nnas vantagens da atividade politica e as recompensas da vaidade. , de cles proprios, 0, instrumentos esses que podem set tecursos inanceitos, edificios, material de g d cutivo a servidores ligados a sua pessoa, a empregados que ad- ii favoritos familiares que no sto proprietérios, isto Daremos o nome de agrupamento organizado_“segundo_o principio das ordens” a0 agrupamento politico no qual os meios materiais de gestio sZo, total ou parcialmente, propriedade do estado-maior administrativo. Na sociedade feudal, por exemplo, © vassalo pagava, com seus préprios recursos, as despesas de administracio € de aplicacio da justica no territério. que Ihe havia sido confiado tinha a obrigacio de equipar-se e apro- visionar-se, em caso de guerra. E da mesma forma procediam os vassalos que a ele estavam subordinados. Essa situagio tinha alguns efeitos no que se refere a0 exercfcio do poder pelo suze- ano, de vez que 0 poder deste fundava-se apenas no juramento pessoal de fidelidade © na circunstincia de que a “legitimida- 60 de” da posse de um feudo ¢ honra social do vassalo derivavam do suzerano. Cravos, a servos, a protegidos, a favoritos ou a pessoas a quem cle assegura vantagens em dinheiro ou em espécie. O chefe en- frenta as despesas administrativas langando mao de seus préprios. bens ou distribuindo as rendas que seu patriménio proporcione € cria um exército que depende exclusivamente de sua autori- dade pessoal, pois que € equipado e suprido por suas colheitas, armazéns € arsenais. No primeiro caso, no caso de um agru- pamento estruturado em “Estados”, o soberano s6 consegtie g0- vernar com 0 auxllio de uma aristocracia independente e, em razio disso, com ela partitha do poder. No segundo caso, 0. governante busca apoia.em pessoas dele diretamente dependen- tes ou em plebeus, isto é, em camadas sociais desprovidas de fortuna e de honra’social propria. Conseqiientemente, estes i timos, do porto de vista material, dependem inteiramente do chefe'e, principalmente, ndo encontram apoio em nenhuma_ou- tra espécie de poder capaz de contrapor-se ao do soberano.. To- dos os tipos de poder patriarcal e patrimonial, bem como o des. potismo de um sultio e os Estados de estrutura buroctética fi- liam-se a essa tiltima espéie — e insisto muito particularmente no Estado burocritico por set ele o que melhor caracterizao.de- senvolvimento racional do Estado modern... De modo geral, o desenvolvimento do Estado moderno tem por ponto de partida o desejo de 0 principe expropriar os pode. tes “privados” independentes que, a par do seu, detém forca administrativa, isto é, todos os proprietétios de meios de ges- tio, de recursos financeiros, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens suscetiveis de utilizagio para fins de caréter politico. Esse process se desenvolve em paralelo perfeito com o desenvolvimento da empresa capitalista que do ina, a pouco € pouco, os produtores independentes. E nota-se enfim que, no Estado 'moderno, o poder que dispée da totali- dade dos meios politicos de gestio tende a reunir-se sob mio nica. Funciondrio algum permanece como proprietério pes- 61 = ! soal do dinheiro que ele manipula ou dos edificios, reservas € méquinas de guerta que ele controla, O Estado moderna e isto € de importincia no plano dos conceitos — conseguiu, pottanto, e de mancira integral, “privar” a diteco admini va, 0s funcionérios e trabalhadores burocréticos de quaisquer meios de gestio. Nota-se, a essa altura, o surgimento de um Processo inédito, que se desentola a nossos olhos ¢ que ameacd exproptiar do expropriador os meios politicos de que ele di. pSe € o sett poder politico. Tal é, a0 menos aparentemente, a conseqiiéncia da revolucéo (alema de 1918), na medida em que novos chefes substituiram as autoridades estabelecidas, em que se apossaram, por usurpacéo ou elei¢io, do poder que controla © conjunto administrative e de bens matetiais ¢ na medida em que fazem derivar — pouco importa com que diteito — a legi- timidade de seu poder da vontade dos governados. Cabe, en- tretanto, indagat se esse primeito éxito — ao menos aparente — permitiré que a revolucio alcance 0 dominio do aparelho econ6mico do capitalismo, cuja atividade se orienta, essenci mente, de conformidade com leis inteitamente diversas das que regem a administtacéo politica. Tendo em vista meu objetivo, limitar-meei a registrar esta constatacio de ordem puramente conceitual: 0 Estado moderno é um agrupamento de dominacio que apresenta carter institucional e que procuroi’ (com éxito) monopolizar, nos limites de um territério, violencia fisica Iegitima como instrumento de dom! je tg ioe que, tendo esse obje- os dos ditigentes os meios materiais de ges- “a dizer que 0 Estado moderno expropriou todos os funcionérios que, segundo 0 principio dos “Estados™ dispunham outrora, por direito préprio, de meios de gestio, substituindo-se a tais funciondrios, inclusive no topo da hierarquia. Sem embargo, ao longo desse processo de expropriagao que se desenvolveu, com &xito maior ou menor, em todos os pafses do gloho, nota-se 0 aparecimento de uma nova espécie de “‘po- Mticos profissionais”. Trata-se, no caso, de uma categotia nava, ‘que permite definir.o segundo sentido dessa expressio. Vemo. -los, de inicio, tvigo dos principes. Nio tinham a ambicio dos chefes carismdticos e no buscavam_transformat- -se_em_senhores, -mas_empenhav: ita_politica para_se colocarem a disposi¢ao_de um principe, na_gestio_de cujos. in- tetesses politicos encontravam ganha-pio e conteédo moral para 62 suas vidas. Uma vez mais, € 6 no Ocidente que encontramos essa categoria nova de politicos profissionais a servigo de pode- tes outros que nao o dos principes. Nao obstante, foram eles, em tempos passados, 0 instrumento mais importante do poder dos principes e da expropriagio politica que, em beneficio des- tes, se processava. ‘Antes de entrar em pormenores, tentemos compreender claramente, sem equivocos € sob todos os aspectos, a significa. o do aparecimento dessa nova espécie de ‘Deeg as Sto possiveis miltiplas formas de dedicagio 4 poltica — ¢ ¢o mesmo dart que € pose, de muitas mane tas, exererinfluénia sobre a cvsio do poder entre formagiey liticas diversas ou no interior de cada qual delas- Peso in re na esfeta da ativi- exatamé ara ao exprimir- ‘mos nossa vontade de maneita semelhante, como, por exemplo, manifestando desaprovagio ou acorde no cutso de uma rcuniso “politica”, pronunciando um discurso “politico” etc. Alids, para rnumerosas pessoas, 0 contacto com a politica se reduz a esse conselhos istado ou de outros étgios consultivos, que sé exetcem atividades quando provocados. Tal é, ainda, 0 caso de hnumerosfssimos parlamentares que sé exercem atividade politica durante o periodo de sessdes.* ‘otdens", indicamos 0s que, por direito pessoal, eram proprietétios dos meios materiais de esto, fossem de carter administrative ou militar, ou os be- neficiérios de privilégios pessoais.e Ora, grande parte dos mem- bros dessas “ordens”” estava longe de consagrar totalmente, ou mesmo precipuamente, a vida 2 politica; sncaravam suas pretrogativas seno 3 } = como forma de assegurar rendas ou vantagem pessoal. No in- terior de seus proprios agrupamentos, 55 desenvolviam ativida- de politica nas ocasioes em que seus suzeranos ou seus pares lhes dirigiam solicitasio expressa. Eo mesmo se dava com relacio @ uma importante frasio das forgas auxiliares que o principe colocava a seu servigo, para transformé-la em instrumento na luta que ele travava com 0 tito de constituir uma organizagio. poli- tica a ele pessoalmente devotada. Os “conselheiros privados” integravamse essa categotia, bem como a ela também se in- tegrava, remontando no tempo, grande parte dos conselheiros que se assentavam nas curias ou em outros drgios consultivos 2 servigo do principe. Evidentemente, entretanto, esses auxi- liares que s6 ocasionalmente se dedicavam a politica ou que nela viam tiosomente uma atividade secundéria estavam longe de bastar ao principe. Nao Ihe restava, portanto, outta alterna. tiva senio a de buscar rodear-se de um corpo de colaboradores inteira ¢ exclusivamente dedicados a sua pessoa e que fizessem da atividade politica sua principal ocupacio. #Naturalmente que a estrutura da organizagio politica da dinastia nascente, assim como @ fisionomia da civilizagéo examinada, dependeré’ muito, ‘em todos 05 casos, da camada social onde o principe v4 recrutat seus agentes. Eo mesmo cabe dizer, com mais forte razio, dos agrupamentos politicos que, apds a abolicéo completa ou a li mitagio considerivel de poder senhorial se constituam politi cemente em comunas “livres” — livres no no sentido de fuga 20 dominio através de recursos a violéncia, mas no sentido de ‘auséncia de um poder senhorial ligitimado pela tradicio e, muito freqiientemente, consagrado pela religiio e considerado como fonte tinica de qualquer autoridade. Historicamente, essas co- munas 66 se desenvolveram no mundo ocidental, sob a forma primitiva da cidade etigida em agrupamento politico, tal como ‘a vemos surgir, pela primeira vez, no ambito da civilizago me- diterrines. * de exclusive. Muito a0 contrari outra coisa 20 mesmo tempo, tanto idealmente quanto na pré- tica. Quem-vive ‘para’ a-politica a transforma, no sentido 64 mais profundo do termo, em “fim de sua vida", seja porque encontra forma de gozo na simples posse do poder, seja porque © exercicio dessa atividade the permite achat equilibrio interno ¢ exprimir valor pessoal, colocando-se a servigo de uma “causa” que dé significagio a sua vida, Neste sentido profundo, todo hhomem sério, que vive para uma causa, vive também dela. ‘Nossa distingao assenta-se, portanto, num aspecto extremamente impor- tante da condigio do homem politico, ou seja, 0 aspecto econd- Sob regime que se funde lade privada, € necessdtio que se retinam certas con- lero considerar tri para que, cionado, um homem possa viver “para” a polf nte das vantagens que a le polit the possa proporcionar. Quer isso dizer que Ihe & indispensével possuir fortuna pessoal ou ter, no ambito da vida privada, si- tuacio suscetivel de lhe assegurar ganhos suficientes. Assim deve ser, pelo menos em condigdes normais, pois que os se dores do chefe guetreiro dio to pouca importincia as con ges de uma economia normel quanto os companheiros do agita. dor revolucionatio. Em ambos os casos, vive-se apenas da pre- sa, dos roubos, dos confiscos, do curso forcado de bénus de pa. gamento despidos de qualquer valor — pois que tudo isso é, no fundo, a mesma coisa. Tais situacées sio, entretanto, necessa. tiamente excepcionais; na vida econdmica de todos os dias, $6 Ora, em tal sentido, seja_ porque, 1 dos grandes proprie- trios e da alta nobreza de hoje, ele as aufere da exploragio imo bilidria — na Antigiiidade e na Idade Média, também os escra: ¥v0s € servos tepresentavam fontes da renda —, seja porque as aufere em razio de titulos ou de outras fontes andlogas, Nem © operério, nem muito menos — e isso deve ser patticularmen- 65 te sublinhado — 9 moderno homem de negécios ¢, sobretudo, © grande homem de negécios so disponiveis no sentido men- cionado. O homem de negécios esté ligado a sua empresa ¢, Portanto, nfo se encontra dispontvel e muito menos disponivel estd 0 que se dedica a atividades industriais do que 0 dedicado a atividades agricolas, pois que este € beneficiado pelo cardter sazonal da agricultura, Na maioria das vezes, 0 homem de ne- gécios tem dificuldade para deixar-se substituir, ainda que tem- porariamente. O mesmo ocotre com relagio ao médico, tanto ‘menos disponivel quanto mais eminente e mais consultado. Por motivos de pura técnica profissional, as dificuldades jé se mos- tram menores no caso do advogado, 0 que explica a circunstan- cia de ele ter_desempenhado, como homem politico profissio- nal, papel incomparavelmente maior e, com freqiiéncia, prepon- derante. Nao se faz necessétio, entretanto, estender ainda mais esta casuistica; mais conveniente é deixar claras algumas conse- __qligncias do que se acabou de expor. Fazendo essa asser¢io, no pretendemos, de manei- ra alguma, dizer que a direcio plutocrética no busque tirar van- tagem de sua situagio dominante, com o objetivo de também viver “da” politica, explorando essa posigio em beneficio de seus intereses econdmicos. Claro que isso ocorre. Nao hi ca- madas ditigentes que nfo tenham sido levadas a essa explora- io, de uma ou de outra maneira. Nossa assercio significa sim- plesmente que os homens politicos profissionais nem sempre se véem compelidos a reclamar pagamento pelos servicas que em tal condigio prestam, a0 passo que o individuo desprovido de fortuna esta sempre obrigado a tomar esse aspecto em considera- so. De outra parte, nao é de nossa intenglo insinuat que os ho- ‘mens politicos desprovidos de fortuna tenham como tinica preo- cupasio, durante 0 curso da atividade politica, obter, exclusiva mente ou mesmo principalmente, vantagens econémicas ¢ que eles no se preocupem ou nio considerem, em primeiro lugar, a causa a gue se dedicaram. Nenhuma afirmacio setia mais falsa que a feita em tal sentido. Sabe-se, por experiéncia, que a pteocupagio com a ‘“seguranca”econdmica-<,-com-efeito — de 66 maneira consciente ou nfo — 0 ponto cardial na orientagio da vida de um homem que jé possui fortuna, icado, se nfo exclusivamente, ao menos © que se nota especialmente em perlodos excepcionais, revolucionatios. Tudo que nos interessa realcar é entretanto © seguinte: o recru- tamento nfo plutocratico do pessoal politico, sejam chefes ou seguidores, envolve, necessariamente, a condicéo de a organiza. lo politica assegurarthe ganhos regulares ¢ garantidos. Nunca existem, portanto, mais de duas possibilidades. Ou a ativida- de politica se exetce “honorificamente” e, nessa hipétese, so- mente pode set exercida por pessoas que sejam, como se cos- tuma dizer, “independentes”, isto é, por pessoas que gozam de fortuna pessoal, traduzida, especialmente, em termos de rendi- mentos; ou as’avenidas do poder sio abertas a pessoas.sem fortuna, caso em que a atividade politica exige remunerasio. O homem politico. profissional, que vive “da” politica, pode set um puro “beneficiério” ou’ um.“funcionério” remunerado. Em outras palavras, ele receberd rendas, que sio honorétios ou ‘emolumentos por servicos determinados — nio passando a gor- jeta de uma forma desnaturada, irregular e formalmente ilegal dessa espécie de renda — ou que assumem a forma de remune- ragio fixada em dinheiro ou espécie ou em ambos a0 mesmo tempo. O politico pode revestir, portanto, a figura de um “em- preendedot”, & maneita do condottiere, do meciro ou do com- prador de carga ou revestir o aspecto de boss norte-americano que encara suas despesas como investimentos de capital, que dle transforma em fonte de lucros, mercé da exploragio de sua influéncia politica; ou pode ocdrrer que ele simplesmente rece- ba uma remuneracio fixa, tal como se dé com 0 redator ou se- crétatio de um partido, com © ministro ou funcionétio politico modernos. "A compensacio tipica outrora outorgada pelos prin- cipes, pelos conquistadores vitoriosos ou pelos. chefes de_par- tido, quando triunfantes, consistia em feudos, doacio de terras, prebendas de todo tipo e, com o desenvolvimento da economia financeira, traduziu-se, mais particularmente, em gratificagdes. Em nossos dias, sio empregos de toda espécie, em partidos, em 67 jornais, em cooperativas, em _organizagSes_de_ seguro social, em municipalidades ou na administracio do Estado — distributdos pelos chefes de partido a seus partidérios, pelos bons ¢ leais ser- vicos prestados. As Iutas partidérias no so, portanto, apenas lutas para consecugio de metas objetivas, mas so, a par disso, ¢ sobretudo, rivalidades para controlar a distribuigdo de empregos. Na Alemanha, todas as lutas entre as tendéncias particula- ristas e as tendéncias centralistas giram, também e ptincipalmen- te, em torno dese ponto. Que poderes irio controlar a dis- tribuigdo de empregos — os de Berlim ou, 20 contrério, os de Munich, de Dresde? s. Na Franca, um mo rento municipal, fundado nas forcas respectivas dos partidos politicos, sempre foi considerado perturbago mais importante do que uma alteragdo no programa governamental e, com efeito, suscitava agita¢io maior no pafs, dado que, geralmente, 0 pro: grama de governo tinha significagio apenas verbal. Numerosos partidos politicos, notadamente nos Estados Unidos da América do Norte, transformaram-se, depois do desaparecimento das ve- Ihas divergéncias a propésito de interpretagio da Constituicio, em organizacées que 6 se dedicam & caca aos empregos e que modificam seu programa concreto em funcio dos votos que haja por captar. Na Espanha, pelo menos até os tltimos anos, 08 dois partidos se sucediam no poder, segundo um principio de alterniincia consentida, sob a cobertura de eleigSes “‘pré-fabri das” pelas altas direg6es, com o fim de permitir que os partidé- tios dessas duas organizagdes se beneficiassem, alternadamente, das vantagens propiciadas pelos postos administrativos. Nos ter- ritérios das antigas coldnias espanholas, as ditas “eleigdes” € as ditas “revolugdes” nfo tiveram outro objetivo se nao o de dis- por da vasitha de manteiga de que os vencedores esperavam servitse. Na Sufca, os partidos pacificamente repartem. entre si os empregos, segundo o principio da distribuigio proporcio nal. Alifs, mesmo na_Alemanba, certos projetos de constitui- Go ditos “revolucionfrios” como, por exemplo, 0 primeiro pro- jeto elaborado em Baden, propéiem estender o sistema sulco a distribuigio dos cargos ministeriais e, conseqiientemente, consi- deram 0 Estado © 0s postos administrativos como instituigdes destinadas @ simplesmente proporcionar prebendas. Foi espe- 68 Gialmente © partido do Centro que se entusiasmou com proje- tos desse tipo e, em Baden, chegou a inscrever em seu progra ma_a aplicagio.do principio de distribuicéo proporcional de car- ‘gos segundo as confissoes religiosas, sem se_preocupar com a capacidade politica dos futuros dirigentes. Tendéncia idéntica ‘se manifestou em todos os demais partidos, com 0 aumento crescente do mimero de cargos administrativos que se deu em conseqiiéncia da generalizada burocratizagio, mas_também_se dew por causa da ambigio crescente ‘de cidadios atrafdos por uma sinecura administrativa que, hoje em dia, se tornou espé- cie de seguro especifico para o futuro. Dessa forma, aos olhos de seus aderentes, os partidos aparecem, cada vez mais, como uma espécie de trampolim que thes petmitiré atingir este obje- tivo essencial: garantir 0 futuro. A essa tendéncia opdese, entretanto, o desenvolvimento moderno da fungio publica que, em nossa época, exige um cor- po de trabalhadores intelectuais especializados, altamente quali- ficados e que se preparam, ao longo de anos, para o desempe- ho de sua tarefa profissional, estando animados pot um sen- timento muito desenvolvido de honra_corporativa, onde se acen- tua o capitulo da integridade. Se_tal sentimento.de-honta. nao existisse entre os funciondtios, estariamos ameagados_por- uma. corrupgio assustadora e no escapariamos a0 dominio dos i teus, Estatia em grande perigo, a0 mesmo tempo, o simples rendimento técnico do aparelhamento estatal, cuja importancia econémica se acentua crescentementé € ard de crescer, sobretudo se consideradas as tendéncias atuais no sentido de so- ializagio. Mesmo nos Estados Unidos da América do Norte, conde, em €pocas passadas, se desconhecia a figura do funcioné- tio de carreira ¢ onde o diletantismo administrativo dos politicos deformados permitia que, em funcio do acaso de uma ele presidencial, fossem substituidas varias centenas de milhares de funcionétios, mesmo nos Estados Unidos da América do Notte, repitamos, 2 antiga forma de recrutamento foi, de hé muito, superada pela Civil Service Reform. Na otigem dessa evolugio, encontram-se exigéncias imperio- sas, de ordem técnica exclusiva. Na Europa, a funcio publica, organizada segundo 0 principio da divisio do trabalho, desen: volveu-se progressivamente, ao longo de processo que se esten- 69 gio, privad i ismiti - fes. , ‘piste aetna ataoksmilgpeiaoplengfecterly ne momento, nao divisamos, no seio dos partidos alemaes, outra coisa que nio © dominio dos politicos. A perpetuacio desse estado de coisas pelo menos no Estado Federal, seré favorecido, antes de tudo, pelo fato de que, sem diivida, ressurgité o Conse Iho Federal. Tal situagio encontrar terreno ainda mais favorivel para desenvolver-se no sistema de representagio pro- porcional, considerados os termos em que ele é hoje conhecido. Tal sistema ¢, com efeito, do Reich, sob condigéo de que sua eleigio se fizesse por plebis- cito e nio pelo Parlamento, poderia transformar-se em valvula de seguranga face a caréncia de chefes. Nao ser possivel que os chefes surjam e que a selecio entre eles se opere, se nfo hou- ver meio de comprovarthes a capacidade, expondo-os, inicial- mente, ao crivo de uma gesto municipal, onde lhes seja deixado o direito de escolher os préprios auxiliares, como ocorre nos Estados Unidos da América, quando se projeta em cena um per- ito plebiscitério, decidido a langar-se contra a corrupeéo. Esse, ial, © resultado que se podria esperar, se os partidos fossem organizados em funcio de elei¢io desse tipo. Entretanto, a hostilidade pequeno-burguesa em relacio aos chefes, hostilidade, que anima todos 0s partidos, inclusive € sobretudo a social-de- mocracia, deixa imprecisa a natureza da futura organizacio dos partidos, bem como incertas as possibilidades que acabamos de referir. * Essa a razio por que, hoje em dia, nfo é absolutamente possivel prever qual o contorno exterior que vird a assumir a 104 atividede politica entendida como “‘vocagio”, tanto mais que nao se vé meio de oferecer aos bem-dotados para a politica opor- tunidade de se devotarem a uma tarefa satisfatdria, “Aquele que, fem razio de sua situacio econémica, se vit obtigado a viver da" politica, nfo escaparé alternativa seguinte: ou se voltard pata 0 jotnalismo © para os encargos burocriticos nos partidos ou tentaré conseguir um posto numa associagdo que se encarre- gue da defesa de certos interesses, como € 0 ¢as0 dos sindicatos, das cimaras da comércio, das associagdes rurais, das agéncias de colocagio etc. ou, ainda, buscari_pasigao_conveniente—junto—a rma municipalidade...Neda mats se pode dizer s respeito desse aspecto exterior da profissio politica, a nfo ser que o funcio- nério de um partido politico partilha com o jornalista do odium que se levanta contra o déclassé. Eles se verio sempre cha. mados, embora apenas pelas costas, de “‘escriba salatiado” ¢ de “orador salatiado”, Quem seja incapaz de, em seu foro inte- riot, enfrentar essas injarias ¢ dar-lhes resposta, agitia melhor se nfo se otientasse para aquelas carreiras que, além de tenta- ‘des penosas, 36 Ihe poderio oferecer decepgSes contfnuas. Quais so, agora, as alegrias intimas que a carreira poli tica pode proporcionar a quem a ela se entrega e que prévias condigées seria preciso supor? * Bem, ela concede, antes de tudo, que 6 ocupa modesta posicio, acima da tidiana, Coloca-se, porém, a esse propésito, a seguinte pergunta: quais sfo as qualidades que Ihe permitem esperar situar-se & al- tura do poder que exerce (por pequeno que seja) ¢, conseqiien- temente, & altura da responsabilidade que esse poder Ihe impie? Essa indagagio nos conduz a esfera dos problemas éticos. E, com efeito, dentro desse plano de idéias que se coloca a questio: 105 ¢, devo 20 deus ou a0 deménio que @ inspira. Isso nada tem a ver com a conduta puramente interior que meu pranteado amigo George Simmel tinha 0 costu- me de denominar “excitagao estéril”, forma de agit propria de ‘uma certa casta de intelectuais, particularmente russos (nem to- dos, é claro) ¢ que, athalmente causa furor em nossos meios intelectuais obnubilados por esse carnaval a que se concede 0 nome poriposo de “revolucio”. Tudo isso nao passa de “ro- mantismo do que ¢ intelectualmente interessante”, de que est ausente © sentimento objetivo de responsabilidade e que gira no vario. Com efeito, a paixio a nio rm Se inculegssemos na jovem Beracio de intelectusis 0 desprezo pelo recolhimento indispen- sdvel, nés a condenariamos & impoténcia politica. Surge, a essa altura, 0 problema seguinte: como é possivel fazer convive- tem, no mesmo individuo, a paixdo ard senso de proporcio? partes do coma or la, se fo a uma cau: aie ti algo diverso de um frivolo jogo de intelectual, constituindo-se em atividade sinceramente desenvolvida, essa devocio ha de tera baixiio como fonte necessétia e deverd nutrir-se de Paixio, Todavia, o poder de subiugar energicamente a alma, poder que caracteriza 0 homem politico apaixonado e o distingue do sim- ples diletante inchado de excitacio estéril, 56 tem sentido sob a condicéo de ele adquirir o habito do recolhimento — em todos os sentidos da palavra, O que se chama “forca” de uma per. = ie politica indica, antes de tudo, que ela possui essa 106 Pode-se dizer que ha trés qualidades determinantes do ho- > ‘A vaidade € um trago comum ¢, talver, nao haja pessoa alguma que dela estcja inteiramente isenta, Ns meios cienti- ficos ¢ universitatios, ela chega a constituir-se numa espécie de moléstia protissional. Contudo, quando se manitesta no cien- tista, por mais antipatia que provoque, mostra-se relativamente inofensiva, no sentido de que, via de regta, nao lhe perturba a atividade cientifica. Coisa inteiramente diversa ocorre, quando se trata do politico. O desejo do poder € algo que o move ine- vitavelmente, “instinto de poder” — como habitualmente se diz — 6, com efeito, uma de suas qualidades normais. O pe- cado contra © Espirito Santo de sua vocacéo consiste num dese: jo de poder, que, sem qualquer objetivo, em vez de se colo- ‘ar exclusivamente ao servigo de uma “causa”, nfo consegue passar de pretexto de exaltagio pessoal. Em verdade e em tilti- ma anélise, existem apenas duas espécies de pecado mortal em politica: nio defen io ter sentiment de responsabilidade — duas coisas que, repetidamente, embora no necessatiamente, séo idénticas. A vaidade ou, em outras pa- lavras, a necessidade de se colocar pessoalmente, da maneira a mais clara possivel, em primeiro plano, induz freqiientemente o homem politico & tentagio de cometer um ou outro desses peca- dos ou os dois simultaneamente. O demagogo & obrigado a contar com 0 “o efeito que faz" — razio por que sempre corre o perigo de desempenhar o papel de um histrio ou de assumir, com demasiada leviandade, a responsabilidade pelas conseqiién. cias de seus atos, pois que esta preocupado continuamente com 4 impressio que pode causar sobre os outros. De uma parte, a recusa de se colocar a servigo de uma causa 0 conduz a buscar a aparéncia e 0 brilho do poder, em vez do poder real; de outra parte, a auséncia do senso de responsabilidade 0 leva a s6 gozar do poder pelo poder, sem deixar-se animar por qualquer propé- sito positive. Com’ efeito, uma vez que, ou melhor, porque © poder € 0 instrumento inevitivel da politica, sendo 0 desejo do poder, conseqiientemente, uma de suas forcas motrizes, a mais ridicula caricatura da politica € 0 mata-mouros que se di causa elguma e 107 verte com o poder como um noverico ou como um Narciso vaidoso de seu poder, em suma, como adorador do poder pelo poder. Por certo que o simples politiqueiro do poder, objeto, também entre nds, de um culto cheio de fervor, pode alcangar grandes efeitos, mas tudo se perde no vazio e no absurdo. Os ‘que criticam a “politica do poder” tém, nesse ponto, inteira ra- 280. A stibita derrocada moral de certos representantes t{picos dessa atitude permitiu que fossemos testemunhas da fraqueza € da impoténcia que se dissimulam por detrdés de certos gestos cheios de arrogincia, mas inteiramente intteis. Politica dessa cordem nao passa jamais de produto de um espfrito embotado, soberanamente superficial e mediocre, incapaz de aprender qual. quer significagio da atividade humana, Nada, aliés, esté mais afastado da consciéncia do tragico, de que se penetra toda aco, e, em especial, toda agao politica do que essa mentalidade. ___Incontestével e constituindo elemento essencial da Histé: ria, a0 qual nfo fazemos justica sos dias, é 0 fato seguii Cabe mesmo afirmar que muito raramente corresponde e que, freqiientemente, a relagio entre 0 resultado final ¢ a intengio primeira é simplesmente pa- radoxal. ona Quanto a natureza da causa em nome da qual o homem politico procura e utiliza 0 poder, nada podemos adiantar: ela depende das convicgdes pessoais de cada um. O homem politico pode dedicar-se a0 servico de fins nacionais ou humanitétios, sociais, &ticos ou culturais, profanos ou religiosos. Pode também estar apoiado em sélida crenca no “progresso’ — nos diferentes sen- tidos dessa palavra — ou afastar totalmente essa crenga; pode pretender servir uma “idéia” ou, por principio, recusar valor a quaisquer idéias, para apenas cultuar fins materiais da vida co- tidiana, renga qualquer PIAS NAL ysf2_ © que ficou exposto jé nos orienta para a discussio do Gltimo problema de que nos ocuparemos esta noite, o problema do ethos da politica, enquanto “causa” a defender. Qual é, independentemente de seus fins préprios, a missio que a po- pode desempenhar na economia global da conduta na vida? Qual 6, por assim dizer, 0 lugar ético em que ela reside? Nesse onto, as mais opostas concepges do mundo chocam-se umas com as outras, impondo-se escolher entre elas. Ataquemos, pois, resolutamente, esse problema, que recentemente se pds em foco, mas, segundo creio, de maneira infeliz. Livremo-nos, antes de tudo, de uma contrafacsio vulgar. A ética pode, por vezes, desempenhar um papel extremamente de- sograddvel. Alguns exemplos. Nao raro é que o homem que abandona sua esposa por outra mulher experimente a necessi- dade de justificar-se perante a prépria consciéncia, usando o pre- texto de que ela nio era digna de seu amor, de que o havia en- ganaclo ou invocando outras razdes desse género, que nunca dei- xam de existit. Trata-se, da parte desse homem, de uma falta de cortesia, que, nio querendo limitarse 4 simples constatagio de que nao mais ama sua esposa, procura — no momento em que ela se encontra na posigio de vitima — fabricar uma des- culpa com 0 propésito de “justificar” a atitude tomada: arroga- sse, dessa maneita, um diteito que se baseia em langar & esposa todas as culpas, além da infidelidade de que ele se queixa. O vencedor dessa rivalidade erdtica procede nesses termos: enten- de que seu infeliz adversério deve ser 0 menos digno, pois que foi derrotado, Nao hé nenhuma diferenca entre essa’atitude ado vencedor que, apés triunfar no campo de batalha, pro- clama com pretensio despreafvel: “Venci porque a razio estava comigo”. © mesmo acotre com 0 homem que, 9 vista das atro- Cidades da guerra, entra em derrocada moral e que — em vez de dizer simplesmente “era demasiado, no pude suportar mais” — experimenta a necessidade de justificar-se perante a prépria consciéncia, substituindo aquele sentimento de cansago diante dda guetra pot um outro ¢ dizendo: “Eu nfo podia mais supor- tar aquilo, porque me obrigavam a combater por uma causa moralmente injusta”. Coisa semelhante pode ser dita a respeito daquele que € vencido; em ver de se comprazer na atitude de velha comadre & procura de um “responsivel” — pois que é sempre a estrutura mesma da sociedade que engendra os con- 109 flitos —, melhor faria ele se adotasse uma atitude vitil e dig- nna, dizendo ao inimigo: “*Perdemos a guerra e vocés triunfa- ram. Esquegamos 0 passado e discutamos as conseqiiéncias que se impée retirar da nova situagio, tendo em conta os interesses materiais que estavam em jogo € — ponto essencial — consi- derando a responsabilidade perante 0 futuro, que pesa, em pri- meiro lugar, sobre o vencedor”. Toda outra maneira de rea denota simplesmente auséncia de dignidade e terd de ser paga mais cedo ou mais tarde. Uma nagio sempre perdoa os pre- jufzos materiais que Ihe séo impostos, mas no perdoa uma afronta sua honra, sobretudo quando se age A maneira de um predicador, que pretende ter razio a qualquer prego. Documen- tos novos trazidos a conhecimento piblico dezenas de anos apds © término de um conflito s6 podem ter como resultado o desper- tar clamores injustificados, célera e édio, quando melhor seria esquecet a guerra, moralmente 20 menos, depois de ela termi- nada. Tal atitude s6 & possivel, entretanto, quando se tem 0 senso da realidade, 0 senso cavalheiresco e, acima de tudo, 0 senso da dignidade. E essa atitude impede que se adote uma ““ética” que, em verdade, sempre € testemunho de uma falta de dignidade de ambos os lados. Esta tiltima espécie de ética sé se preocupa com a culpabilidade no passado, questio estéril do ponto de vista politico, porque insoliivel; e nfo chega a preo- ‘cupar-se com 0 que se constitui no interesse préptio do homem politico, ou seja, o futuro e a responsabilidade diante do fu- turo. Se existem crimes politicos, um deles é essa maneira de proceder. Além disso, uma tal atitude tem o inconveniente adi- cional de nos impedit de perceber até que ponto o problema todo é inevitavelmente falseado por interesses matetiais: inte- resse do vencedor de tirar 0 maior proveito possivel da vitéria alcancada — trate-se de interesse material ou moral —, espe- ranca do vencido de trocar 0 reconhecimento de culpabilidade por certas vantagens. Se hi no mundo alguma coisa de “abje- to”, € exatamente isso. Eis o que resulta, quando se pretende utilizar a ética para ter sempre razio. Como se coloca, entio, o problema das verdadeiras rela- Ses entre a ética e a politica? Serd certo, como jé se afirmou, que nfo hé qualquer relacio entre essas duas esferas? Ou se- tia mais acertado afirmar, pelo contrério, que a mesma ética é valida pata a aco politica’e para qualquer outro género de acio? 110 Jise acreditou que exista oposigao absoluta entre as duas teses: Seria exata uma ou a outra. Cabe, entretanto, indagar se exis- te uma ética que possa impor, no que se refere a0 contetido, obrigagdes idénticas aplicdveis is relagdes sexuais, comerciais, privadas ¢ piblicas, as relagées de um homem com sua esposa, Sua quitandeita, seu filho, seu concorrente, seu amigo ¢ seu ini- rmigo. Pode-se, realmente, acreditar que as exigéncias éticas permanesam indiferentes a0 fato de que toda politica utiliza como instrumento especifieo a forca, por tras da qual se per- filha a violencia? Nio nos € dado constatar que, exttamente por haverem recortido a violéncia, os teéricos do bolchevismo do espartaquismo chegam ao mesmo resultado a que chegam todos 0s outros ditadores militares? Em que se distingue 0 do- minio dos “Conselhos de trabalhadores ¢ soldados” do dominio de no importa que organismo detentor do poder no antigo re- gime imperial — sendo pelo fato de que os atuais manipulado- tes do poder sio simples diletantes? Em que a arenga da maio- tia dos defensores da pretensa ética nova — mesmo quando les criticam a dos adversérios — difere da de um outro dema- gogo qualquer? Dir-se-4 que pela nobreza da intengio. Muito bem, Contudo, 0 que, no caso, se discute & 0 meio, pois os adversdrios reiveindicam exatamente da mesma forma, com a mesma e completa sincetidade subjetiva, a nobteza de suas pré= prias intengdes tltimas. “Quem recorre & espada, morrerd pela espada” e, pot toda a parte, a luta é a luta. E entio? ‘A ética do Sermo da Montanha? O Sermio da Montana — onde se traduz, segundo entendo, a ética absoluta do Evan- gelho — € algo muito mais sério do que imaginam os que, em rossos dias, citam, com leveza, seus mandamentos, A leveza no cabe. O que se’ disse a propdsito de causalidade em cigncia aplicase também a ética: nio se trata de um veiculo que se pos- sa deter & vontade, para descer ou subir. A menos que ali 36 se enxergue um repositério de trivialidades, a ética do Evange- Iho & uma ética do “tudo ou nada”. A. paribola do jovem rico nos diz, por exemplo: “E ele se foi de coragio triste, porque possufa’ muitos bens”. © mandamento do Evangelho € incon- icional e unfvoco: dé tudo 0 que possuas — absolutamente tudo, sem reservas, © politico diré que esse mandamento néo passa de uma exigéncia social irrealizével e absurda, que nio se aplica a todos. Em conseqiiéncia, o politico proporé a supres- 111 so da propriedade por taxacio, imposigo, confisco — em suma, congo € a regulamentacio dirigida contra todos. O mandamen. to ético no se preocupa, entretanto, com isso ¢ essa despreo- cupagio é sua esséncia. “Ele ordena ainda: “‘Oferega a outra face!” Imediatamente ¢ sem indagar por que 0 outro se acha com direito de ferit. Dir-se-d que uma ética sem dignidade. im — exceto para o santo. E exatamente isso: € preciso ser ‘um santo ou, pelo menos desejar sé-lo e viver como Jesus, como 05 Apéstolos, como Sio Francisco de Assis e seus companheiros, para que a ética adquita sentido e exprima uma dignidade. Caso contrdtio, nfo a teré. Conseqiientemente, se a ética a- -césmica do amor nos diz: “Nao resistas ao mal pela forca”, © politico, ao contrétio, dit: “Deves opor-te ao mal pela forga ou serés responsével pelo triunfo que ele alcance.” Aquele que deseja agir de acordo com a ética do Evangelho deve renunciar a fazer greve — a greve € uma coagio — e nao lhe testaré so- Juco outra que no a de filiar-se a um sindicato amarelo*. E deve, acima de tudo, abster-se de falar de “‘revolugio”. Com efeito, a ética do Evangelho nao deseja ensinar que s6 a guetta civil seria uma guerra legitima. © pacifista que age de confor- midade com as regras do Evangelho deporé as armas ou as lan. gard longe em respeito ao dever ético, tal como se recomendou na Alemanha, para pér fim nfo s6 a guetta como a todas as guerras. O politico, ao contrério, dir4: “O tinico meio se- guro de desacreditar a guerra para’ todo o futuro previstvel te- tia sido uma paz imediata, fundada sobre o status quo. Com efeito, nessa hipstese, os povos ter-seiam perguntado: de que nos serviu a guerra? Eo absurdo da guerra ter-seia posto em evidéncia — solugio que j4 nio é mais possivel adotar. A guer- ta serd, com efcito, pollticamente vantajosa para os vencedores ou, pelo menos, para uma parte deles. A responsabilidade por tal situacio cabe a atitude que nos privou de toda a possibil dade dessa resisténcia. Dentro em pouco, entretanto — quando ultrapassado 0 periodo de cansago — estaré desacrediteda a paz € nio a guerra: conseqiiéncia da ética absoluta. Hi, por fim, o dever da verdade, Tf também ele incondi- cional, do ponto de vista da ética absoluta. Daf se retirou a Sindicato desvirtuado de suas finalidades de defese de classe, NT. 112 conclusio de que se impunha publicar todos os documentos, principalmente os que humilham 0 préprio pais, para pér em evidéncia, a luz dessas testemunbas insuborndveis, 0 reconhe- cimento de uma culpabilidade unilateral, incondicional e que se despreocupa das conseqiitncias. O politico entenderé que essa maneira de agir, a julgar pelos resultados, longe de langar luz sobre a verdade, iré obscurect-la, pelos abusos e pelo desenca deamento de paixdes que provocari. Sabe o politico que 36 a elaboracéo metédica dos fatos, procedida imparcialmente, pode- rd produzir frutos, a0 passo que qualquer outro método’acarre- tard, para a nagio que o emptegue, conseqiiéncias que, talvez, exijam anos para deixarem de manifestar-se. Para dizer a ver. dade, se existe um problema de que a ética absoluta no se cocupa, esse é 0 problema das conseqiién: Desembocamos, assim, na questio decisiva. Impde-se que nos demos claramente conta do fato seguinte: toda a atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas méximas inteiramente diversas ¢ irredutivelmente opostas. Pode orien- tar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da conviegio. sso nfo quer dizer que a ética da conviecio equivalha a auséncia de responsabilidade e a ética da responsal lidade, a auséncia de convicgio. Nao se trata disso, evidente- mente. Nio obstante, hi oposi¢io profunda entre a atitude de quem se conforma as maximas da ética da conviegio — ditfa- mos, em linguagem religiosa, “O cristio cumpre seu dever e, quanto aos resultedos da ago, confia em Deus” — e a atitude de quem se orienta pela ética da responsabilidade, que diz: “Devemos responder pelas previsiveis conseqiiéncias de nossos stos”. Perderé tempo quem busque mostrar, da maneira a mais persuasiva possivel, a um sindicalista apegado 4 verdade da ética da conviccio, que sua atitude nio terd outro efeito sendo o de fazer aumentarem as possibilidades de reacio, de re- tardar a ascensio de sua classe e de rebaixé-la ainda mais — 0 sindicalista no acreditaré. Quando as conseqiiéncias de um ato praticado por pura convicgio se revelam desagradéveis, 0 partidério de tal ética nfo atribuird responsabilidade 20 agente, mas 20 mundo, & tolice dos homens ou A vontade de Deus, que assim criou os homens. O partidério da ética da responsabili- dade, 20 contrério, contaré com as fraquezas comuns do homem (pois, como dizia’ muito procedentemente Fichte, nfo temos 0 113 direito de pressupor a bondade e a perfeicio do homem) e en- tenderé que no pode langar a ombros alheios as conseqiiéncias previsiveis de sua prdpria ago. Dird, portanto: ““Essas con- seqtigncias sio imputaveis A minha prépria agio”. O partidario da ética da convicgio s6 se sentiré “responsavel” pela necessi- dade de velar em favor da chama da doutrina pura, a fim de que cla nfo se extinga, de velar, por exemplo, para’ que se man- tenha a chama que anima o protesto contra a injustiga social. Seus ato%, que s6 podem € s6 devem ter valor exemplar, mas que, considerados do ponto de vista do objetivo essencial, apa- ecem como totalmente irracionais, visam apenas aquele’ fim: estimular perpetuamente a chama da prépria convicca Esta andlise nfo esgota, entretanto, a matéria. A nenhu- ma ética € dado ignorar o ‘seguinte ponto: para alcansar fins “bons”, vemo-nos, com freqiiéncia, compelidos a recotrer, de tuma parte, a meios desonestos ou, pelo menos, perigosos, ¢ com- pelidos, de outra parte, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de conseqiiéncias desagradaveis. E inenhuma ética pode dizer-nos a que momento ¢ em que medida um fim moral- mente bom justifica os meios e as conseqiiéncias moralmente perigosos., Q instrumento decisivo da politica é a violencia, Pode-se ter idéia de até onde estender, do ponto de vista ético, a tensio entre meios ¢ fim, quando se considera a bem conhecida atitude dos socialistas revoluciondrios da corrente Zimmerwald. Jé du- ante a guetta, eles se haviam declarado favoriveis a um prin- cipio que se pode exprimir, de maneira‘contundente, nos ter- mos seguintes: ‘“Postos a escolher entre mais alguns anos de guerra seguidos de uma revolucia ¢ a paz imediata nao seguida de uma revolugao, escolhemos a primeira alternativa: mais. al- guns anos de guerra! A pergunta — que pode proporcionar essa revolugio?, todo socialista que raciocine cientificamente, con- formando-se aos principios de sua doutrina sé pode oferecer uma resposta: no momento, nao se pode falar de passagem pera ‘uma economia que se poderia chamar socialista, no sentido pré- prio do termo; uma economia de tipo burgués ressurgiria, ape- nas despida de vestigios de feudalismo e de elementos dindsti- cos. E, portanto, para alcancar esse modesto resultado que se aceitariam “mais alguns anos de guerra”. Seria desejavel poder 114 acreditar que mesmo uma robusta convicgdo socialista rejeitasse um objetivo que requer tais meios, O ‘problema nfo assume iversa no caso do bolchevismo, do espartaquismo e, de modo geral, no caso de qualquer outra espécie de socialismo re- volucionério, pois € perfeitamente ridiculo, da parte dos revo- lucionérios, condenar em nome da moral 2 “politica de forga” praticada pelos homens do antigo regime, quando, afinal de con- tas, eles se utilizam exatamente desse meio — por mais justi cada que seja a posicio que adotam quando repelem os objeti- vos de seus adversitios. Parece, portanto, que € 0 problema da justificagéo dos meios pelo fim que, em getal, coloca em cheque a ética da convicgao De fato, nao Ihe resta, logicamente, outra possibilidade senio a de condenar qualquer acio que faca apelo a meios moralmente perigosos. E importa acentuar: logicamente. Com efeito, no mundo das realidades, constatamos, por experiéncia incessante, que o pattidério da ética da convicgéo torna-se, bruscamente, tum profeta milenarista ¢ que os mesmos individuos que, alguns minutos antes, haviam pregado a doutrina do “amor oposto & violéncia” fazem, alguns instantes depois, apelo a essa mesma forga — & forca viltima que levard A destruigio de toda violén- ia —, & semelhanga dos chefes militares alemies que, por oca- io de cada ofensiva, proclamavam: € a siltima, a que nos con- duziré a vitdria € nos traré a paz. O partiddrio da ética da con- viesio nio pode suportar a irracionalidade ética do mundo. Ele € um racionalista ‘‘cosmo-ético”.Aqueles que, dentre os senho- res, conhecem Dostoiewski podero, a esta altura, evocar a cena do Grande Inguisidor onde esse problema é exposto de maneita adequada. Nao € possivel conciliar a ética da conviegio © a tica da tesponsabilidade, assim como nio € possivel, se jama se fizer qualquer concessio ao principio segundo o qual o justifica os meios, decretar, em nome da moral, qual © fim que justifica um meio determinado. Meu colega, F. W. Foerster, por quem tenho alta estima, fem razio da incontestavel sinceridade de suas convicgdes, mas ‘a quem recuso inteitamente a qualidade de homem politico, acre- dita poder contornar essa dificuldade preconizando, num dos li- ‘yros que escreveu, a tese seguinte: o bem s6 pode engendrat ‘bem eo mal s6 pode engendrar o mal, Se assim fosse, 0 pro- us blema deixaria de existir. E verdadeiramente espantoso que tese semelhante haja podido merecer publicidade, dois mil anos depois dos Upanishades. © contrétio nos é dito nio s6 por toda a Historia universal, mas também pelo imparcial exame da experiéncia cotidiana. O desenvolvimento de todas as re- ligides do mundo se fez a partir da verdade da opiniéo oposta. © antigiifssimo problema da teodicéia enfrenta exatamente a questo de saber como pode dar-se que um poder, apresentado, 20 mesmo tempo, como onipotente e bom, haja criado este mun- do itracional, povoado de sofrimentos imerecidos, de injusticas no castigadas e de incorrigivel estupidez. Ou’ esse poder é onipotente ¢ bom, ou nao o é, ou nossa vida é governada por prin- cipios inteiramente diversos de recompensa ¢ de sangio, princt- pios que s6 € posfvel interpretar por via metafisica, se € que no escapam inteiramente A nossa capacidade de compreensio. Esse problema, a experiéncia da irracionalidade do mundo, foi a forga motriz do desenvolvimento de todas as religides. A dou: trina hindu do karma, a do duslismo persa, a do pecado original, a da predestinacio e do Deus absconditus’nasceram todas dessa experiencia. Também os primeiros cristios sabiam perfeitamen- te que © mundo estava dominado por demdnios e que o indivi- duo que se comprometesse com a politica, isto é, com os instru- mentos do poder e da violéncia estava concluindo um pacto com poténcias diabdlicas; sabiam aqueles cristios no ser verdade que © bem gerasse unicamente o bem, e 0 mal unicamente o mal: constata-se, antes € com muita freqiiéncia, o fendmeno inverso. Quem nio'o veja é, politicamente falando, uma erianga. A ética religiosa acomodou-se de diversas maneitas a esse fundamental estado de coisas, que nos leva a situar-nos em di- ferentes regimes de vida, subordinados, por sua vez, a leis igual- mente diversas. O politefsmo helénico sacrificava, a0 mesmo tempo a Afrodite ¢ a Hera, a Apolo e a Dioniso, sabendo que esses deuses freqiientemente se combatem, sistema hindu fazia de cada uma das profissbes 0 objeto de uma lei ética pat- ticular, de um drama, estabelecendo entre elas uma separacio definitiva, por castas que, em seguida, integrava numa hierat- quia imutivel. O individuo nascido numa casta nfo tinha pos- sibilidade alguma de libertar-se dela, a nio set por reencarnacio, em vida futura, Cada profissio encontrava-se, conseqiientemente, a uma disténcia diferente da salvagio suprema. Estabeleceu-se, 116 dessa forma, 0 darma de cada uma das castas, desde os ascetas ¢ brimanes até os vis e os périas, no interior de uma hierarquia que se conformava as leis imanentes, préprias de cada profissio. Guerra e politica encontraram, nesse esquema, 0 seu lugar. Que a guerra faca parte integrante da vida & coisa que se verifica endo na Bhagavad Gita a conversa que mantém Krishna e Arjuna. “Age como necessirio”, isto & o dever que te é imposto pelo dar- ima da casta dos guerteiros e observa as prescrigées que a regem ou, em suma, realiza a “obra” objetivamente necesséria que cor- responde & finalidade de tua casta, ou seja, guerrear, Nos ter- mos dessa crenga, cumprir 0 destino de guerreiro estava longe de constituir ameaca para a salvagio da alma, constituindo-se, 20 contrério, em seu sustenticulo. O guerreiro hindu estava sem- pre tio certo de que, apés morte herdica, alcancatia 0 céu do Indra quanto 0 guerreiro germénico de ser recebido no Walhal- Ja; sem divida, 0 guerreito hindu desdenharia o nirvana tanto quanto 0 guerreiro germinico desdenharia 0 paraiso cristo com seus coros de anjos. Essa especializagio da ética permitiu que a moral hindu fizesse da arte real da politica uma atividade pet- feitamente conseqiiente, subordinada a suas préprios leis ¢ sem- pre mais consciente de si mesma. A literatura hindu chega a oferecer-nos uma exposicio cléssica do “maquiavelismo” radical, no sentido popular de maquiavelismo; basta ler o Arthacastra, de Kautilys, escrito muito antes da era cristd, provavelmente quando governava Chandragupta. Comparado a esse documento, O Principe de Maquiavel, é um livro inofensivo. Sabese que na ética do catolicismo, da qual, alids, 0 professor Foerster tanto se aproxima, os consilia evangelica constituem uma moral espe- cial, reservada para aqueles que possuem o privilégio do caris- ma da santidade. Ali sc encontta, ao lado do monge, a quem & defeso derramar sangue ow buscar vantagens econdmicas, 0 cava- leiro 0 burgués piedosos que tém o direito, o primeiro de der- ramat sangue eo segundo de enriquecer-se.. Nao ha diivida de que a diferenciagio da ética e sua integracio num sistema de sal- vacio apresentam-se, af, menos conseqiientes do que na {ndia; no obstante, em razio dos pressupostos da £6 crista, assim podia ¢ mesmo devia ser. O doutrina da corrupeio do'mundo pelo pecado original permitia, com relativa facilidade, integrar a vio- Téncia na ética, enquanto meio, para combater 0 pecado e as he resias.que se etigem, precisamente, em perigos para a alma. Nio 17 obstante, as exigéncias a-césmicas do Sermio da Montanha, sob forma de uma pura ética de conviceéo, e 0 direito natural cris- tao, compreendido como exigéncia absoluta fundada naquela dou- trina, conservaram seu poder revolucionério e vieram & tona, com todo o furor, em quase todos os periodos de perturbagio social. Deram, em particular, nascimento a seitas que profes- sam um pacifismo radical; uma delas tentou erigir, na Pensil- vania, um Estado que se propunha a nao utilizar a forga em suas relages exteriores — expetiéncia que se revelou, alids, trégica, na medida em que, quando da Guerra da Independéncia norte. ~ americana, impediu os Quakers de intervirem, de armas na mio, num conflito cujo objetivo era, entretanto, a defesa de ideais idénticos aos por eles cultivados. Em posi¢io oposta, 0 protes- tantismo comum reconhece, em geral, o Estado como valido e, conseqiientemente, 0 recurso a violencia como uma instituigao divina; justifica, muito particularmente, 0 Estado autoritétio legitinio. Lutero retirou do individuo a responsabilidade ética pela guerra e a atribuiu a autoridade politica, de sorte que obe- decet as autotidades em matérias outras que nao as de f€ jamais poderia implicar culpa. O calvinismo também admitia a forga como um dos meios para a defesa da fé e legitimava, conseqiien- temente, as guertas de religio, Sabe-se que essas guerras santas sempre foram elemento vital para o islamismo. Vése, portanto, que nao foi, de modo algum, a descrenga moderna, brotada do culto que a Renascenga dedicou aos herdis, que levantou 0 pro- Blom» da éica politica, ‘Todas as religides, com maior ou menor éxito, enfrentaram esse problema € a exposicio feita deve tet bastado para mostrar que nfo poderia ter sido de outro modo. A otiginalidade propria dos problemas éticos no campo da polf- tica reside, pois, em sua relacio com o instrumento especifico da violéncia legitima, instrumento de que dispdem os agrupamen- tos humanos. Seja qual for o objetivo das ages que pratica, todo homem gue pactua com aquele instramento — ¢ 0 homem politico faz necessariamente — se expe 4s conseqiiéncias que ele acar- isso € particularmente verdadeito para o individuo que combate por suas convicgdes, trate-se de militante religioso ou de militante revoluciondrio. Atrevidamente, tomemos como exemplo 2 época atual. Quem quer que, utilizando a forca, de- seje instaurar a justiga social sobre a Terra sentird a necessidade 118 de contat com seguidores, isto é, com uma organiza¢io humana. ‘Ora, essa organizagio no atua, a menos que se the faca entrever indispensdveis recompensas psicoldgicas ou materiais, sejam_ter- restres ou celestes. Acima de tudo, as recompensas psicoldgicas: nas modernas condigSes de luta de classes, tais recompensas se traduzem pela satisfacio dos édios, dos desejos de vinganga, dos ressentimentos e, principalmente, da tendéncia pseudo-ética de ter razio a qualquer preco, saciando, por conseqiiéncia, a neces- fidade de difamat 0 adversirio ¢ de acusé-lo de heresia. Apare- cem, em seguida, as recompensas de caréter material: aventura, vitéria, presa, poder e vantagens. O éxito do chefe depende, por completo, do funcionamento da organizagao com que ele con- te. Por esse motivo, cle depende também dos sentimentos que inspirem seus partidarios e nao apenas dos sentimentos que pes- soalmente o inspitem. Seu futuro depende, portanto, da possi- bilidade de assegurar, de maneira durdvel, todas essas tecompen- sas aos pattidtios de que nio pode prescindir, trate-se da guat- da vermelha, de espioes ou de agitadores. O chefe nfo & senhor absoluto dos resultados de sua atividade, devendo curvar-se tam- bém as exigéncias de seus partidarios, exigéncias que podem ser moralmente baixas. Ele terd seus partidétios sob dominio en- quanto fé sincera em sua pessoa e na causa que defende seja depositada pelo menos por uma fra¢io desses pattidirios, pois, jamais ocorteu que sentimentos idénticos inspirem sequer a maio- ria de um grupo humano, Aquelas convicgdes, mesmo quando subjetivamente as mais sinceras, nfo servem, em realidade e na maioria das vezes, sendo para’ “justificar” moralmente os de- sejos de vinganca, de poder, de lucros e de vantagens. A. este respeito, nfo permitiremos que nos contem fébulas, pois a in- terpretacio materialista da Histéria nfo ¢ vefculo em que pos- samos subir & nossa vontade ¢ que se detenha diante dos pto- motores da tevolucio. E importa, sobretudo, nfo esquecer que & revolugio animada de entusiasmo sucederd sempre a rotina cotidiana de uma tradi¢éo e que, nesse momento, o herdi da: fé abdicaré e a prdpria f€ perderé em vigor ou se transformaré — esse 0 mais cruel destino que pode ter — em elemento da fra- seologia convencional dos pedantes e dos técnicos da politica Essa evolucio ocorre de maneira particularmente tépida quan- do se trata de lutas ideolégicas, simplesmente porque esse ge- neto de lutas é, via de regra, dirigido ou inspirado por chefes 119 auténticos, 05 profetas da revolucio, Nesse caso, com efeito, como, em’ geral, em toda atividade que reclama uma organiza. gio devotada a0 chefe, uma das condigdes para que se alcance éxito é a despersonalizacao ¢ 0 estabelecimento de uma rotina, em suma, @ proletarizacéo spiritual, no interesse da discipli- na, Essa a razio por que os partidirios vitoriosos de um chefe que luta por suas convicgées entram — e, de ordindrio, rapida- mente — em processo de degeneracio, transformando-se em massa de vulgares aproveitadores. 7 * Quem deseje dedicarse a politica e, principalmente, quem deseje dedicar-se a politica em termos de vocagio deve tomar conscigncia desses paradoxos éticos e da responsabilidade quanto Aquilo em que cle proprio poder transformar-se sob pressio daqueles paradoxos. Repito que ele se compromete com potén- cias diabolicas que atuam com toda a violencia. Os grandes virtuosos do amor ¢ da bondade a-césmica do homem, venham eles de Nazaré, de Assis ou de reais castelos indianos nao opera- ram com 0 instrumento politico da violéncie. O reino que pre- gavam no era “deste mundo” ¢, entretanto, eles tiveram e con tinuam a exercer influéncia neste mundo, As figuras de Pla... Karatajev e dos santos de Dostoiewski sio, por certo, as mais figis reconstituigdes desse género de homens. Quem deseja a salvacio da prdpria alma ou de almas alheias deve, portanto, evitar os caminhos da politica que, por vocagao, procura rea. lizar tarefas muito diferentes, que no podem ser concretizadas sem violéncia, O génio, ou deménio da politica vive em estado de tensio extrema com o Deus do amor e também com o Deus dos cristios, tal como este se manifesta nas instituigées da Ipreja, Essa tensGo pode, a qualquer tempo, explodir em con- flito insolivel. Isso os homens jé sabiam, mesmo ao tempo em que a Tgreja dominava. Repetidamente 0 interdito papal ati gia Florenga — e, naquela época pressio tal pesava muito mais fortemente sobre os homens € muito mais thes ameacava a sal- vacio da alma do que a “fria aprovacio” (como diz Fichte) do jufzo moral kantiano — e, entretanto, os habitantes da cidade continuavam a mover guerra aos Estados papais. Em bela pas- sagem de sues Histérias Florentinas, se exata minha lembranga, 120 Maquiavel alude a tal situagio e pée na boca de um dos herdis de Hlorenga, que rende homenagem a seus concidadios, as se- guintes palavras: “Eles preferiram a grandeza da cidade a sal- vagio de suas almas”. Se, em vez de cidade natal ou de “patria”, palavras que, em nossos dias, jé ndo tém uma significacio univoca, falarmos em “futuro do socialismo” ou em “paz internacional” estaremos empregando expresses que correspondem maneita moderna de colocar 0 problema. Com eteito, todos esses objetivos que nio é possivel atingir a nao ser através da atividade politica — onde necessariamente se faz apelo a meios violentos © se acolhem os caminhos da ética da responsabilidade — colocam em perigo a “‘salvagio da alma”. E caso se procure atingir esses objetivos ao longo de um combate ideol6gico orientado por uuma ética da convicgio, hé riseo de provocar danos grandes ¢ descrédito, cujas repercussdes se fardo sentir durante geragdes varias, porque nfo existe responsabilidade pelas conseqiiéncia Nesse caso, em verdade, o agente no tem consciéneia dos dia: bolicos poderes que entram em jogo. Ora, esses poderes sio ine- xordveis e, se o individuo no os percebe, serd arrastado a uma sétie de conseqiiéncias e a elas, sem mercé, entregue; € as re- percussdes se fario sentir no apenas em sua forma de atuar, mas também no fundo de sua alma. ““O diabo € velho”. E quan- doo poeta actescenta “envelhecei para entendélo”, por certo que nao se est referindo a idade em termos cronoldgicos, Pes- soalmente, jamais admiti que, 20 longo de uma discussio, se pro- curasse garantir vantagem exibindo a certidio de nascimento. O simples fato de que um de meus interlocutores tem vinte anos, quando eu ja passo dos cingjienta, no pode, afinal de contas, autorizar-me a pensar que isso constitua uma conquista diante da qual se imponha uma respeitosa inclinagio. Nao importa a ida- de, mas sim a soberana competéncia do olhar, que sabe ver as realidades da vida, e a forca de alma que é capaz de suporté-las € de elevarse & altura delas. Gerto que a politica se faz com o cérebro, mas indiscutivel, também, que ela nao se faz exclusivamente com’o cérebto. Quan- to a esse ponto, razio cabe aos partidérios da ética da convic- io. Nao cabe recomendar a ninguém que atue segundo a ética da convicgo ou segundo a ética da responsabilidade, assim como no cabe dizet-lhe quando observar uma e quando observar outra. 121 $6 cabe dizer-Ihe uma coisa: quando, hoje em dia, num tempo de excitasio que, a seu ver, nao é estéril — saiba, entretan- to, que a excitagio nao é sempre e nem mesmo genuinamente uma paixéo auténtica — vemos subitamente surgir, de toda par- te, homens politicos animados pelo espftito da ética da con- visio ¢ proclamando: “Nao eu, mas 0 mundo é que é es- nipido © vulgar; a responsabilidade pelas conseqiiéncias no cabe a mim, porém aqueles a cujo servico estou; néo obstan- te, esperem um pouco e eu saberei destruir essa estupidez © essa vulgaridade” — diante de tal situagio, confesso que, an- tes do mais, procuro informarme acerca do equilibrio interior desses partidérios da ética da convicgo. Tenho a impressio de que, nove vezes em dez, estarei diante de baldes cheios de vento, sem consciéncia das responsabilidades que assumem ¢ cembriagados de sensagdes rominticas. De um ponto de vista humano, isso nao me interessa muito, nem me comove absolutamente. Perturbo.me, 20. contrétio, muito profunda- mente, diante da atitude de um homem maduro — seja velho ou jovem — que se sente, de fato e com toda a alma, responsé- vel pelas conseqiiéncias de seus atos e que, praticando a ética da responsabilidade, chega, em certo momento, a declarar: “Nao posso agir de outro modo; detenho-me aqui”. Tal atitude € au- ténticamente humana e € comovedora, Cada um de nés, que néo tenha ainda a alma completamente morta, poderd vir a encon- trar-se em tal situagao. Vemos assim que a ética da convicgio € a Gtica da responsabilidade nfo se contrapdem, mas se completam €, em conjunto, formam o homem auténtico, isto é um homem que pode aspirar 4 “vocacio polftica Meus catos ouvintes, dentro de dez anos, teremos, talvez, oportunidade de voltat a falar deste assunto. ‘Naquela ocasito, receio que, infelizmente € por mitiplas razdes, a Reagdo ja nos terd, de hd muito, dominado. E provivel que pouco do que 0s senhores almejaram esperaram e do que também esperei se haja realizado. Muito pouco, segundo tudo leva a acreditar — para nfo dizer que absolutamente nada. Isso nfo me abaterd, mas confesso-lhes que pesa como um fardo intimo sobre quem tem consciéncia da situacio. Eu gostaria de saber em que se terfo transformado, dentro de dez anos, aqueles dentre os se- nhores que, presentemente, guardam o sentimento de serem verdadeiros “politicos por convicsio” e que participam do entu- 122 siasmo despertado pela atual revolugio — eu gostaria de saber em que se terfo transformado interiormente. Muito agradével setia, sem diivida, que as coisas pudessem passarse como em Shakespeare, soneto 102; Nosso jovem amor atravessava a primavera Quando, em seu louvor, cantos eu erguia; Também Filomel, sendo verao, cantava E detinha canto em oportuno dia Tal no é, porém, 0 caso. Pouco importa quais sejam os grupos politicos a quem a vitéria tocard: nfo nos espera a floragio do estio, mas, antes, uma noite polar, glacial, sombria e rude. Com feito, quando nada existe, nio somente 0 imperador, mas tam- bém o proletitio tem perdidos os seus direitos. E quando essa noite se houver lentamente dissipado, quantos, daqueles que vi veram a atual e opulenta primavera, estario ainda vivos? Em que se terio transformado no seu foro interior? Nao thes res- tard mais que amargor e grandilogiiéncia? Ou simples aceita- io resignada do mundo ¢ da profissio? Ou tero adotado uma liltima solugio que ndo é a menos comum: renéincia mistica 20 mundo por todos quantos dotados para isso ou — como, infe- lizmente, acontece com freqiiéncia — por todos quantos a tan- to se sentem compelidos pela moda. Em qualquer desses casos, cu tirarei a seguinte conclusio: no estavam 3 altura da tarefa que Ihes incumbia, néo tinham dimefisio para se medir com 16 mundo tal como ele € ¢ tal como ordinariamente se apresenta; ‘em nenhum caso possuiam, nem objetiva, nem positivamente, no sentido profundo do tetmo, a vocagio para a politica que, entretanto, julgavam possuit. Melhor teriam feito, se cultivas- sem modestamente a fraternidade de homem para homem e, quanto 20 resto, se entregassem, com simplicidade, a0 trabalho cotidiano. A politica é um esforco tenaz ¢ enérgico para atravessar sgrossas vigas de madeira. Tal esforco exige, a um tempo, pai- xio e senso de proporgées. E perfeitamente exato dizer — e toda a experiéncia historica 0 confirma — que nao se teria ja- mais atingido o possivel, se nao se houvesse tentado 0 imposst- vel. Contudo, 0 homem capaz de semelhante esforgo deve ser um chefe e nfo apenas um chefe, mas um heréi, no mais sim- 123 ples sentido da palavra, E mesmo os que nfo sejam uma coisa hem outra devem armar-se da forga de alma que Ihes permita vencer 0 naufrigio de todas as suas esperancas. Importa, en- tretanto, que se armem desde 0 presente momento, pois de ou- tra forma nfo virio a alcangar nem mesmo o que hoje & possi- vel. Aquele que esteja convencido de que nio se abateré nem mesmo que 0 mundo, julgado de seu ponto de vista, se revele demasiado estiipido ou demasiado mesquinho para merecet 0 que ele pretende oferecerthe, aguele que permaneca capaz_de dizer ‘a despeito de tudo!”, aquele $6 aquele tem a “vocacio” a politica. 124

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