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Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 1 A FORMALIZACAO EM LINGUISTICA Antoine CULIOLL Artigo traduzido por Marcia Romero a partir da publicagao em PLE Il Cahiers pour ‘analyse, 9, 1968. Paris : Seuil, 106-117. 05 set 2021 Logo de saida, importa delimitar 0 escopo desse artigo, a fim de evitar os mal-entendidos e assegurar 0 raciocinio do leitor por meio de um conjunto variado de reflexdes epistemolégicas e metodolégicas, de sobrevoos ou de esquematizagées que supdem um bom conhecimento da linguistica, enfim, de incursGes rdpidas no préprio campo da pratica linguistica Isso significa que as linhas que se seguem nao buscam apresentar um problema técnico ("Como formalizar tal dominio, tal questo, tal texto”) ou fazer um inventério fundamentado de procedimentos formalizantes. No essencial, busca-se aqui levantar questdes sobre o que 0 linguista entende e 0 que faz quando fala de formalizacao das linguas ditas naturais, pois nao é certo que escuta o que fala, tal é a forma como se vé frequentemente enredado num empirismo ingénuo (ou deve-se dizer espontaneo?) que oculta os problemas teéricos. Nesse sentido, o presente artigo é uma adverténcia: nao se trata aqui de questionar a formalizacao em linguistica, mas de marcar os perigos de ser pego num embalo fascinante, de raizes miltiplas, que rapidamente corre o risco de ter efeitos nocivos: esperanca de que a maquina’ forneca uma comodidade expeditiva na andlise da linguagem (enquanto o computador s6 pode verificar a adequacdo de uma teoria verificando a pertinéncia e a consisténcia de um jogo de descritores, sem jamais ter como economizar o trabalho teérico); ilusdo de que uma simbolizagao estenogréfica permita “ver mais claramente” e, sendo assim, estabelecer sem muitos custos uma tipologia paralela de classes de condutas e classes de discursos (que se trate, por exemplo, de patologia ou producio literéria); incoeréncia no ‘emprego dos modelos, facilitada pelo desejo de ser interdisciplinar, pela apropriacao de conceitos mateméticos mal assimilados e por um reflexio insuficiente sobre o que é, legalmente, o tema da ciéncia linguistica: a linguagem apreendida através das linguas naturals. E assim que no momento em que a linguistica redescobre a linguagem, em lugar de construir seu objeto, ela o cliva em pesquisas com diferentes intencdes, que implicam modelos por vezes incompativeis: a consequéncia, inevitdvel, é uma redugo da linguagem, por razoes técnicas das quais no se tem frequentemente consciéncia. Em particular, aparece claramente que a formalizacao irresponsavel - ou a recusa tdo irresponsavel quanto de levantar 0 problema teérico da formalizago em linguistica - impede de bem marcar a relacdo dialética entre a linguagem e as linguas. O discurso do linguistica se fecha facilmente nos jogos de reescrita que, diferentemente da matemética, no séo nem rigorosos, nem fecundos?, ou se bloqueia na descrigao das linguas particulares, ditas irredutivelmente especificas. Nesse Ultimo caso, uma lingua individual € considerada 8s vezes como um objeto empirico intuitivamente dado *Por maquina, entendemos aqui uma maquina real, endo uma maquina abstrata como a maquina de Turing. 74 fim de evitar qualquer mal-entendido, ¢ importante dizer claramente que isto nao é uma critica 2 N. Chomsky (ou 8 maioria dos linguistas que trabalham com Chomsky}. 0 papel de Chomsky foi, & permanece, capital tanto no plano epistemolégico quanto estritamente linguistico, e nés gostariamos que houvesse, em toda parte, {30 pouco dogmatismo e tanta prudéncia, Mas essa atitude aberta rapidamente se fecha no discurso pseudocientifico e caricatural de alguns epigonos. Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 2 (observa-se funcionar o inglés, 0 chinés, etc.), a5 vezes como uma esséncia (a lingua no sentido saussuriano do termo, ou a linguagem) cuja “pureza” teria sido perturbada. Enfim, muitos linguistas ignoram que se pode construir 8 vontade sistemas formais, € tomam por uma propriedade do objeto o que é uma propriedade do modelo ou mesmo um expediente efémero. Problema antigo, mas que tem uma importancia singular na linguistica contemporénea (na parte, a0 menos, que consente em sair do circulo magico da ideologia positivista). Para alguns, a linguistica formal é, antes, uma arborescéncia (dicotémica) e, depois, um sistema gerador sintético, radicalmente separado da seméntica que, como em todo sistema formal, é uma interpretaco das express6es bem formadas (sintaticamente). O problema no é, esse estdgio, o de apreciar 0 grau de validade de um tal modelo, mas de reconhecer que ele & uma caricatura da doutrina de Chomsky; em seguida, diferentemente de Chomsky, que conhece (e enuncia) seus postulados, muitos linguistas tomados de formalismo nao sabem o que fazem, Porque o fazem, e cedem simplesmente ao fascinio da engenhoca, do objeto técnico do qual se sabe que tem um modo de existéncia privilegiado. Seré que é preciso lembrar que o problema metodolégico da linguistica (dentre as outras ciéncias humanas) é 0 de encontrar, isto é, fabricar as ferramentas ldgico-mateméticas que permitiro dar uma descrico adequada da atividade linguageira apreendida através das linguas? Nada nos permite pensar que as matematicas atuais, so forcosamente apropriadas, que os seres gramaticais, mesmo matematizados, com os quais © linguista opera, tém um valor diferente do tradicional. Que a linguistica deve ser sistematica, rigorosa, explicita, aberta a verificacdo, todos esto prontos para aceitar, com entusiasmo, um programa como esse, supondo-se que as boas intengdes constituam um programa. Mas as resisténcias afloram muito rapido, basta querer encontrar os meios que correspondam a nossas ambigées. Enumeremos, sem triagem, alguns problemas que devem pelo menos ser levantados, de forma preliminar: 1. Observaveis e modelos: o problema da relaco entre um modelo, o objeto e 0 observador no é certamente especifico & linguistica, mas tem para o linguista uma importncia capital, ois, aos perigos habituais, acrescentam-se dificuldades suplementares. a) A metalingua é a lingua de uso (no melhor dos casos, seré sempre necessrio utilizar a lingua U para falar da metalingua ou do sistema formal; na verdade, frequentemente, a intrincagdo entre terminologia e lingua de uso é tal que ele se encontra preso na armadilha cujo funcionamento queria explorar. b) A linguagem é uma atividade que supe, ela propria, uma perpétua atividade epilinguistica (definida como “atividade metalinguistica néo consciente”), bem como uma relacgo entre um modelo (a competéncia, isto a apropriagdo e 0 dominio adquirido de um sistema de regras a respeito das unidades) e sua realizacao (a performance) da qual temos o traco fénico ou grafico, textos? ¢) Aatividade linguageira é significante : & porque se tém, na comunicaco, operagdes nos dois extremos que os enunciados adquirem sentido (operagées complexas, jd que todo emissor é a0 mesmo tempo, isto é, no mesmo momento, receptor, € reciprocamente}; mas no se pode afirmar que as palavras tém um sentido sem ser levado a uma concepsao instrumental da linguagem, concebida como uma ferramenta cuja finalidade explicita seria a comunicagao entre sujeitos universais que, como se sabe, repartiriam o sentido correto, Ora, pode-se mostrar que * Evitaremos agui qualquer assimilago de competéncia & lingua e performance & fala, O préprio Chomsky 6 bastante prudente em relagio a esse ponto, Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 3 a linguagem no € exterior ao sujeito (termo empregado, por falta de um melhor, para evitar locutor ou falante), mas se encontra numa relacao complexa de exterioridade-interioridade; além disso, 0 cédigo (mesmo em sua parte coletiva ou, melhor, transindividual) precisa de um suporte, deve portanto codificar algo, mas no teria como ser bijetivo, pois se houvesse correspondéncia biunivoca, nao teriamos como explicar a existéncia dos mal-entendidos, e até de uma certa classe de metéforas. Da mesma maneira, uma concepcdo instrumental da linguagem evacua o lapsus, considerado como simples falha. Quanto & modulacdo do discurso (retérico, estilo), ela correria o risco de se tornar as roupas que vestem o pensamento, um luxo acrescentado ao robé sintético, a0 passo que ela é inerente ao préprio sistema: uma das propriedades da linguager humana € a de se prestar a axiomética euclidiana e & imagem pottica. Na verdade, a linguagem funciona em diferentes niveis (denotativo/conotativo; extrinseco/intrinseco; univoco/equivoco; cognitivo/afetivo; sistema de signos discretos/sistema simbélico, isto € analégico; etc.) d) Nao se tem como reduzir os problemas de categorizacio a simples generalizagdes fundadas na frequéncia. Isso foi claramente mostrado num estudo de D. McNeill sobre a aprendizagem do japonés por uma crianca de dois anos: existe em japonés duas particulas pospostas, wae ga, a primeira correspondente, grosso modo, a “quanto a x, ele...” ou ainda “tem-se x,e ele..”, 2 segunda a “é x que [pronome relativo sujeito]...” ou simplesmente “x se encontra na origem de tal proceso”. A mae utiliza duas vezes mais wa que ga, mas a crianca emprega cem vezes ga para seis wa (em oito horas de gravacio) e mostra que ela sabe utilizar ga com seus dois valores (“Ex que [pronome relativo sujeito ou objeto)”, de um lado, e “x sujeito”, do outro). Assim, a crianga compreendeu o sistema, observou qual das duas particulas corresponderia 8 funcdo central de predicagao, ainda que ela fosse a menos frequente, e aprendeu o uso correto. Eainda, nenhum estudo de frequéncia permitiré explicar 0 estatuto do masculino com relacio a0 feminino em tantas linguas, ou do animado com relago ao inanimado. A conclusdo desta enumeracao é que no se pode levantar o problema dos observaveis sem que se tenha uma teoria da observacao, em particular, sem se perguntar onde so colocados os observadores. € o que marca a distingdo entre estrutura de superficie e estrutura profunda em Chomsky: a configuragao de superficie é 0 traco de operagées subjacentes. Ora, estudar os processos de producio significa deixar 0 campo da observagio ilusoriamente imediata para operar abstratamente. (Nao teria como existir formalizagao de superficie"; nao se pode decidir a priori que s6 vdo existir dois niveis, superficial e profundo, exceto se for fazer uma distinggo rudimentar; pouco provavel que se possa definir como objetos (termos & relagdes) primitivos os encontrados em superficie, simplesmente transpostos a um nivel inferior). Em seguida, seré preciso encontrar pelo célculo os enunciados possiveis, e isso até nos detalhes, j4 que a linguistica formal ndo se dé por tarefa sobrevoar as linguas em suas generalidades, mas dar conta do que se encontra, numa ampla diversidade, sem nenhuma excecdo (deve-se poder justificar 0 cardter excepcional das préprias excecées). Construir uma teoria da observacao implica, além disso, classificar os madelos segundo ‘as questdes &s quais respondem, exigéncia fundamental quando a pesquisa se articula a vérios campos, por exemplo, a psicolinguistica ou andlise literdria. Seré indispensdvel ter, ainda, uma teoria das representagdes (no sentido de procedimentos gréficos: toda formalizacéo é uma escritura): 0 modelos séio equivalentes, compativeis? As representagées sio isomorfas? Tal modo de representagdo é operatéri, isto é, sabe-se como utilizé-lo para calcular? Aqui, deveria *E, co ido, a empreitada tedrica que tentou a linguistica “estr Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 4 se introduzir uma teoria da aproximacao que permitiria avaliar a forga e a regionalidade de um modelo. Mas, por muito tempo, a linguistica no sentiu necessidade de uma tal teoria, pois seu empirismo epistemolégico a tornava inconsciente e fazia com que imaginasse que terminariamos por beliscar o objeto arbitrariamente reduzido; belo exemplo de confianca na inesgotdvel exaustividade do conhecimento. Ao contrério, formalizar deveria levar a0 reconhecimento de que nenhum modelo é exaustivo e a tirar as consequéncias cientificas disso. Acrescentemos que no se deve confundir uma teoria da aproximagdo (observador) e uma teoria das aproximagdes e do erro na atividade linguageira (observvel), do mesmo jeito que no se deve confundir a andlise dos enunciados ambiguos e 0 estudo da ambiguidade constitutiva da linguagem, 2. Conceitos, termos e simbolos: de saida, ficamos impressionados com a confuséo de inumeros trabalhos, provocada e cultivada pela labilidade da linguagem e seu duplo estatuto®. Pode-se projetar falar sobre uma lingua e finalmente falar sempre nessa lingua, sem mesmo se dar conta disso, gragas a dupla natureza da linguagem. Assim, vé-se que so produzidas sérias confuses entre operadores e metaoperadores, entre esquema-niicleo (abstrato) e frase empiricamente presente, entre um enunciado e uma frase, etc. Nao se trata aqui de observacées mal-humoradas de um académico da lingu(stica ou de um purista da formalizacao; o que esta ‘em jogo é, de um lado, a possibilidade de sistematizar a linguistica ingénua, a fim de poder em seguida formalizar uma lingu(stica axiomatizada. Seré preciso lembrar que sé se pode formalizar algo (exceto se se quer construir sistemas ininterpretaveis) e que nao se pode formalizar 0 ingénuo®? De outro lado, a auséncia de rigor corre o risco de produzir um sistema de re-escritura {que se fecha sobre si mesmo, enquanto que a exigéncia formal forca a no se contentar com subterfagios. Assim, a assimilacdo de sintdtico a formal, de origem matematica e licita em si, sé & permitida em linguistica a titulo de primeira aproximacdo. Se no, retornamos ao robé, instrumento nas maos de um sujeito livre que cria e interpreta, com base na forma e no fundo, To significante e significado, e assim vai Da mesma maneira, se se estuda a lingua materna, pode-se ter a ilusio, estando num s6 nivel, que as unidades, operacdes, valores descritos sdo primitivos, em suma, que apenas o térreo existe (0 restante sendo da alcada do psicdlogo}. Mas estas unidades, operagées e valores sd designadas por meio de metatermos (por exemplo, substantivo, verbo, auxiliar, sujeito, complemento, ativa, passive, negagio, etc.) que se resumem, todos, a uma concepcao morfol6gica e distribucional da gramética. E ainda, & preciso acrescentar, como jé observamos, que toda unidade de linguagem, mesmo metalinguistica, é forgosamente engajada e ambivalente: passiva, por exemplo, pode ser um metatermo, mas, ao mesmo tempo, esté sobrecarregado” de contetidos intuitivos. Supondo-se que se possa torné-lo univoco, resta que, 5 Sobre esse ponto, ver acima (metalinguagem e atividade epilinguistica). © Entendido no sentido de “intuitivo, nao dedutivo, ndo teorizado”. A distinguir do emprego que Bourbaki fa2 do adjetivo quando fala de matemética ingénua, e isso por razées evidentes. No sentido em que Bachelard fala de sobrecarga: “Dever-se-ia, pois, desconfiar sempre de um conceito que ndo tivesse ainda sido dialetizado. O que impede a sua dialetizacdo é uma sobrecarga do seu conteddo. Esta sobrecarga impede o conceito de ser delicadamente sensivel a todas as variacées das ccondigdes em que ele assume as suas justas fungdes. Atribui-se seguramente demasiado significado a ‘esse conceito, dado que nunca é pensado formalmente. Mas se se Ihe atribui demasiado significado, é de temer que dois espiritos diferentes nao Ihe atribuam o mesmo significado.” (G. Bachelard, La Philosophie du Non, Paris, p. 134.) [Nota do Trad. A tradugio da passagem citada consta da cole¢do Os pensadores, publicada em 1978, S30 Paulo, Abril Cultural: A filosofia do nao; O novo espirito cientifico; A poética do espago / Gaston Bachelard; selecdo de textos de José Américo Motta Pessanha; tradugdes de Joaquim José Moura Ramos et al Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 5 ‘em toda lingua em que a passivacdo existe, esta transformagdo introduz (ou melhor, pode introduzir) uma modulago semantica que proibe considerar a passiva — exceto no plano da sintaxe estrita, isto & vazio - como o simples dual da ativa. Ora, isso introduz novamente na palavra, por retroagio, uma sobrecarga incontrolavel De fato, todo sistema algébrico de operadores (e de metaoperadores) vem se imbricar num sistema de variéveis sobre as quais recai. Esse segundo sistema tem suas estruturas préprias, e essas varidveis esto, por sua vez, inseridas numa rede referencial que esté em correspondéncia com as situagdes vividas, a organizag3o de nossas condutas perceptivas e pragmaticas, e inclusive com nossas elaboragGes fantasmaticas. Que nio nos esquecamos, além disso, que apreendemos os universais somente através das variagdes de superficie de cada lingua: dai um risco elevado de dar um estatuto cientifico a conceitualizagdes falsamente objetivas, nas quais as teorias explicitas e implicitas estariam misturadas. Consequentemente, no teriamos como partir, exceto por razdes evidentes de ‘comodidade, de uma Unica lingua, da qual fariamos a descrigiio de um dado fendmeno (assim, fariamos em francés um inventério fundamentado dos empregos de étre e avoir), esperando que, na sequéncia, pudéssemos transportar para uma outra lingua 0 que encontramos na primeira E acreditar que as estruturas (no sentido pleno) so encontradas na superficie e que se pode escapar, por uma simples intengo de racionalidade, ao engodo terminolégico: é subestimar a sobrecarga parasita que toda conceitualizac3o ocasiona na linguagem. Para poder iterar com uma estabilidade razodvel (logo ter um nticleo de invariantes que, por si s6, permite a previso), & necessério munir os seres linguisticos de uma estrutura, esta estrutura sendo proveniente de uma teoria de andlise que, ela prépria, deve estar vinculada @ uma teoria da linguagem. Deve-se, portanto, a partir das linguas (isto é, na prética, a partir de linguas), elaborar uma metalinguagem, com suas regras, e depois retornar as linguas. Ao invés disso (mesmo se 6 se trata de um projeto, realizavel a longo prazo), encontram-se uma mistura de categorias mal definidas, frequentemente herdadas, de relacdes consideradas como evidentes, ou uma utilizagdo esquematica de classificagSes bindrias que distinguem a fonologia®, do tipo: solteiro humano+ ou. gala animado- — et. macho+ artefato- adultos vegetal+ contavel+ sem que os pressupostos tedricos de tais procedimentos sejam claramente explicitados® 3. Sintaxe e semGntica: recolhemos aqui alguns problemas entrevistos acima e enunciados sob forma de proposicées: a) nada permite reduzir a semantica das linguas a semantica interpretativa dos sistemas formais; b) todo signo pode ser utilizado como simbolo e os operadores sintaticos ndo escapam a essa regra: toda mudanga sintética provoca uma mudanca seméntica (qualquer que seja a acepcdo * Encontramos outras representacées (caminho, érvore], mas os problemas teéricos permanecem. ® Deixemos de lado os empregos sem rigor do programador que fala de formalizar um texto, enquanto se trata de uma codificagao utilizando uma linguagem formal [ou] do linguista que fala de formalizacdo a partir do momento em que emprega um simbolo ou um diagrama. Neste nivel, ndo & sequer questdo de pressupostos tedricos, explicitas ou nfo. Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 6 desse adjetivo: regulagao interindividual por uma comunidade, pragmatica, retérica, etc.) Dizer ‘que uma frase e sua transformada sio equivalentes n’io muda em nada o problema: tudo reside na forga da equivaléncia; claro, em termos de vizinhanga, poderd ser estabelecido uma distancia crescente, da transformada idéntica a uma frase profundamente remanejada, mas é dificil, exceto numa teoria (a ser explicitada) do sentido correto e da conservacao do sentido, sustentar que, sozinha, a estrutura profunda receba uma interpretago seméntica e que as transformagées no mudem nada. Ou melhor, a um tal grau de aproximago, semelhante proposico pode ter um valor heuristico, mas ndo tem validade teérica, ¢) 6 permitido, ao contrério, sustentar ~ se se embasar a tese com argumentos tedricos ~ que existe, num nivel muito profundo (provavelmente pré-lexical), uma gramética das relagdes primitivas na qual a distincSo entre sintaxe e semadntica no faz nenhum sentido. Tem-se, em seguida, um filtro lexical, com um determinado nimero de regras sintdticas e semédnticas, inclusive a modulaco retérica (metéforas, deslocamento de sentidos) que nao tem como ser reduzido a sintaxe, Estamos, aqui, no continuo, e ndo no descontinuo, e nenhuma representacdo do tipo sintética (restrigdes distribucionais sobre a coocorréncia, ordem parcial) ndo basta para dar conta, por exemplo, da linguagem poética, a menos que se recorra ao pifio argumento do desvio e da anomalia, que, de qualquer modo, nao regra nada, ‘Apés um outro filtro™, obtém-se uma lexis, em que os termos so compativeis com uma ordem, mas ndo estdo ainda ordenados; além disso, a lexis & pré-assertiva e a passagem & assergo (no sentido de “enunciago por um sujeito”) implica uma modalizacio. Modalizar significa “afetar de uma modalidade” e modalidade deve ser entendido, aqui, em quatro sentidos, naquele de (1) afirmativo ou negativo, injuntivo, etc.; (2) certo, provavel, necessério, etc; (3) apreciativo: “€ triste que..., Felizmente...”; (4) pragmético, em particular, modo alocutério, causativo, em suma, 0 que implica uma relagao entre sujeitos, Além da modalizagao, 2 passagem & asserco é acompanhada de um segundo tipo de modula¢ao, que poderia ser chamada estilistica, para distinguir do primeiro tipo, ou modulagao retérica. Trata-se, nesse caso, de uma ponderagio dos elementos, seja por manipulagdes analégicas" que serdo realizadas como tragos prosédicos, seja por permutagées, etc. Tem-se assim uma sequéncia pré- terminal cujos elementos so parcialmente ordenados, e ponderados. A projecao dessa ordem parcial sobre a cadeia conduziré a uma reunio sequencial de termos, sobre a qual esté definida uma relagio de ordem total, ndo absoluta Se se recusa esse modelo, pode-se sustentar a existéncia de dois sistemas geradores, um sintatico, outro seméntico, entre os quais existem correspondéncias. Pode-se ainda conceber a seméntica como uma hipersintaxe, uma passagem em caso extremo quando se esgotou a andlise sintética. Tudo vale mais do que a separacdo essencial da sintaxe e da seméntica, que reduz, inescapavelmente, a uma sintaxe com um léxico munido de regras projetivas. Em suma, sustentaremos o cardter licito de uma seméntica formal (da qual se duvidava desde Frege e Husserl): sustentaremos que existem enunciados bem formados semanticamente e mal formados sintaticamente; e reconheceremos que a dificuldade central da formalizacao em linguistica no reside nem na formalizacao de sistemas algébricos sintaticos, nem no estudo distribucional das combinagSes de palavras-objetos em correspondéncia pontual com a realidade extralinguistica, mas no campo intermediario, especifico das Iinguas naturais, fem que nos é necessario descobrir sobre quais seres trabalhar, construir tipos de légica desconhecidos nos dias de hoje e que sem duvida néo funcionam de maneira homogénea, dosar ® 0 termo de filtco (ou peneira) ndo tem outra fungo que no seja a metaférica, 31 Em mais ou menos, e no em tudo ou nada. Tradugdo por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 7 a forga dos conceitos, “esses instrumentos de efra¢do” que nos propde a matematica e adapté-los a nossas finalidades. Assim, ignoramos as estruturas matematicas que mostrar-se-do adequadas e fecundas: ‘como diziamos acima, teremos provavelmente que inventé-las com a ajuda do matematico; depois, ainda mais provavelmente, que fazer uma “bricolagem”, ao menos numa primeira etapa ‘Que fique claro que nao estamos importando técnicas légico-matematicas para chapé-las sobre um objeto qualquer. Seria infantil indicar 20 leitor onde buscé-las, pois, justamente, nao se trata de tomé-las, emprestado de um estoque de ferramentas, mas de pegar 0 que nos serve onde podemos aché-lo (combinatéria e dlgebra, topologia, etc.). Digamos simplesmente que o linguista tera as vezes conceitos-chave ao alcance das maos (por exemplo, aplicacdo, estrutura, ordem), as vezes, a elaboragio serd lenta (como 0 ¢ a utilizag3o da topologia em linguistica ou ainda da logica combinatéria), as vezes, ser necessério fazer tudo (como 0 é no campo das modalidades). A fim de ilustrar esses propésitos, gostariamos de chamar rapidamente a atencSo para alguns conceitos importantes e, em seguida, para uma propriedade caracteristica da linguagem. 1 Todas as operagdes unérias de predicagdo (exceto transformacdes de composicao sobre lexis) serdo conduzidas a uma aplicaco, 0 que no ha nada de mais banal. Mas vamos até o fim da anélise, acrescentando-lhe uma teoria dos predicados. Obteremos desse modo uma tipologia dos processos, uma classificacao das operacdes que podem ser efetuadas sobre um conjunto de partida e/ou de chegada, sobre a flecha simbolizando o funtor. Se é entdo capaz de analisar formalmente as situacdes empiricamente encontradas nas linguas, assim como transformagées tais como a passivacdo e outros fendmenos conexos. Se é sobretudo capaz de aumentar a complexidade do modelo, introduzindo, por exemplo, a composicao de duas aplicagoes. 2. Pode-se dar valores de um sistema verbal (um sistema sendo definido como uma rede de valores), uma representa¢o topolégica que permite melhor evidenciar alguns problemas que dizem respeito aos sistemas de modalidades, e singularmente vincular os sistemas modais, aspectuais e temporais. 3. Pode-se conduzir as operacdes sobre as unidades no conjunto de partida e no conjunto de chegada a uma lista acabada de operadores que poderdo na sequéncia ser combinados (por exemplo, operador de classe: 0 gato é um felino doméstico, para citar apenas o caso mais trivial; ‘© que flecha, je. 0 que distingue um elemento, ora um individuo, ora uma porcao: le [o] (em alguns de seus empregos), ce [este], mon [meu], etc.; extrator, por exemplo, em Tem um cdo que esté latindo; cursor, que percorre, ou varre, a classe: por exemplo, tout [todo], quiconque [quem quer quel, inglés ony; operador que faz com que se considere a classe como remetendo a.uma “nogo”: um barulho de méquina, um cheiro de rosa). 4, Buscaremos as relages de dualidade que existem entre expressées (no sentido formal do termo), mas importa notar que, na linguagem, em que tudo é orientado, encontram-se setores ‘em que o principio de dualidade age de modo estrito e outros em que os fenémenos sao mais complexos. De qualquer modo, importa aqui distinguir com um cuidado particular o que é linguageiro do que é linguistico, para se ater apenas a essa dicotomia simples. 5, Representaremos algumas categorias por vetores de propriedades, de tal modo que podemos ter vetores de vetores. Assim, notaremos Sujeito (de uma frase) = (Co, Agente, Tema). Codeve Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 8 ser lido como Complemento de posigio zero numa teoria dos complementos, implicando que 0 sujeito (de superficie), nas linguas em que sua presenca é obrigatéria, & necessdrio como elemento do conjunto de partida para que o enunciado seja canonicamente bem formado; Agente implica que com muita frequéncia (a formulago é voluntariamente aproximativa) 0 Sujeito & Agente, seja num nivel de superficie, seja, invertendo a proposi¢ao, que o Agente era © Sujeito (Ca) num nivel profundo. Além disso, esta notacao indica que, mesmo quando Co néo é Agente, tendemos a Ihe atribuir propriedades de Agente; Tema nao exige & primeira vista muita explicagio, pois a acepedo do termo é aqui préxima da acepcao tradicional. Uma anélise mais fina poderia, contudo, revelar problemas complexos, Esse vetor & “movedico", o que significa que cada termo, exceto Co, pode receber um valor nulo. Pode-se, portanto, ter: (Co, Ag., Th.), (Co, AB.), (Co, Th.), (Co). Do lado do Agente, ele é representado num outro vetor (Agente, Animado, Determinado), igualmente movedic Uma tal notagdo permite eliminar muitas das ambiguidades e desalinhos na metalinguagem, permite realizar algumas andlises linguisticas e psicolégicas que, caso contrario, no chegariam a termo; de um modo geral, trata-se de uma combinatéria muito mais complexa que na analise dita estrutural, em que se lida com estruturas pobres. 6. Construiremos sistemas légicos particulares, do tipo 0, 1 (em que 0 pode ser um absorvente™* conforme os sistemas), * (termo neutro, o que significa: que ndo é nem 0, nem 1, ou entdo é 0 0u 1), w (termo que esté fora de 0, 1, *)". Reencontramos, aqui, mas de um modo mais fecundo, © conceito de marca (néo marcado: -/ marcado: +) e isso tem alguma relagdo (apesar das profundas diferencas) com o sistema de Brondal). O importante ¢ entender bem que, por si s6, uma decisdo teérica (teoria da linguagem) permite atribuir a uma dada unidade o estatuto do 0 0u origem (por exemplo, no masculino/feminino, atual/ndo-atual), em seguida, o estatuto de sucessor, etc 7. Numerosos sistemas so munidos de uma estrutura em “came”, & qual voltaremos em outro artigo, do seguinte modo: Nao se trata aqui de uma involucgo: 0 esquema nao ¢ bidimensional, e * inicia uma espiral, depois projeta-se sobre a, ¢ 0 ciclo recomega, Este modelo, de grande importancia para as linguas naturais, permite melhor conceber alguns problemas que dizem respeito & ambiguidade, ambivaléncia (no sentido psicanalitico do termo), e de uma maneira geral, faz sem diivida aparecer uma propriedade fundamental da linguagem. ” € por acaso que se tem, por duas vezes, um tripé. * Assim, masculino + feminino, em francés, da masculino; do mesmo modo, nds + vocés + eles dé nds. * Naturalmente, pouco importam os simbolos adotados. 0 termo me fol sugerido por F. Bresson. Trata-se de um termo geral para remeter a uma categoria; alguns dos pontos aqui considerados so bem conhecidos dos mateméticos. Tradugio por Marcia Romero, versdo 05 set 2021 9 Assim, para fixar as ideias, podemos considerar os exemplos seguintes, entre tantos ‘outros de varios campos: a} Pode-se conduzir o jogo de if [ele] et ce [este] a uma came"®, Gr Era» ems nt (sigue: trace) ae# ela {18 au, ee e fi gui, ee Passa-se assim de il, que remete a um representante Unico, masculino, a0 que nao é nem determinado, nem indeterminado, nem masculino, nem feminino (i/3}”. Pode-se em seguida agir sobre esse sistema e produzir tanto Les chats, ¢a grife [Os gatos, isso arranhal, ‘quanto, como em Giraudoux, “Aujourd’hui, cela a tué, Je parle de I'inoffensif. Cela va en prison pour meurtre. Cela a saccagé sa vie. Cela vous a wue. Cela a été heureux (Hoje, isso ai matou. Falo do inofensivo. Isso ai vai preso por morte. Isso ai destruiu sua vida. Isso ai te viu. Isso ai foi feliz)” (Pour Lucréce), em que cela remete a um homem. b) Do mesmo modo, mostraremos que a sintaxe dos pronomes incorporados do francés (tipo je Jui en donne [eu Ihe dou disso] obedece a regras estritas e que se tem, novamente, um sistema que se fecha. Se chamarmos C: le, Ja, les (0, a, ofa)s], C2 lui, leur (Ihe, Ihes], C’2 y em j’y donne (je le lui donne feu the dou algo), C3 y de localizacdo (U'y vais, J'y reste [Vou a, Fico aqui, em ‘algum lugar]) e preposicional (J’y pense [Penso nisso]), Cs en de localizagao (J’en viens [Venho de algum lugar]), 0 en de extraco U’en prends [Quero (um pouco) disso], com relagao a Je le(s) prends (Quero isso)], abteros o diagrama seguinte: Goa ou ainda O interesse de uma representacao como esta é que ela forca a tomar decisGes, portanto ‘a problematizar. Assim, qual sera 0 ponto de partida? Por que analisar desse modo o sistema de ° a escolha desses dois pronomes é didatica; seria muito extenso expor a questo em sua totalidade. " Seria preciso explicitar o que se entende aqui por determinado e justificar o lugar de ca (vé-se que @ determinagao decresce de il; a ¢a, que ils 6 ndo-determinado, isto 6, encontra-se fora da oposi¢go determinado/indeterminado; seria preciso relacionar isso ao tépico (5) acima; seria necessério, enfim, cexplicar por que il, que ndo ¢ referencialmente nem masculino, nem feminino, esté morfologicamente no masculino. Essas demonstragdes ndo sao feitas por simples razGes de espago, Tradugio por Marcia Romero, verso 05 set 2021 10 pronomes? Além disso, importa compreender que o diagrama ndo é um brinquedo, uma ilustrago para sustentar a intuigo, mas uma ferramenta com suas regras formais de emprego. Enfim, pode-se assim tornar comparéveis os fatos em linguas diversas, comparar o emprego de de, @, B diante de um infinitivo e diante de um substantivo, etc. ¢) Se fizermos um estudo completo da assersio, podemos mostrar as relagdes que existem entre negacdo e interrogacdo, interrogagao e hipotético, situar 0 injuntivo com relac3o ao assertérico, etc, Contentemo-nos aqui de considerar a léxis com relacdo & assercdo positiva (afirmacio) e negativa (nega¢do). € notavel que a Iéxis e a afirmagéo tenham a mesma forma (ordens préximas, e algumas outras diferencas ndo pertinentes nessa discussdo), De outro lado, consideragées estritamente linguisticas confirmam claramente a tese segundo a qual nao existe léxis negativa (em outras palavras, a negacéo recai sobre a Iéxis, que no é, em si, nem afirmativa, nem negativa). Reencontramos uma estrutura em came Ainda aqui, tais modelos permitem resolver problemas que so colocados a respeito das linguas e da linguagem. Entre eles, assinalemos a ambiguidade da léxis [meu pai, morrer] (a) fa mort de mon pére [A morte de meu pail (simples acontecimento: “eu considero que meu pai morre”, “se meu pai morre”, “a ideia, o fato de que meu pai morra”), (b) desejo (“eu desejo que meu pai morra”; “que meu pai morra!”),(c) recusa (“eu ndo quero que meu pai morra”, “ quero pensar na ideia de que meu pai morra”), (d) retorno a léxis, etc. Naturalmente, reconhecemos a discussio feita por Freud no caso do Homem dos ratos: 0 que & importante, & que, como indica 0 diagrama acima, temos um caminho que é, grosso modo, o seguinte: [pai, morrer ou ndo morrer] -> “a ideia que...” > “o desejo que” -> “o desejo que nao” ou “a recusa do desejo que” > finalmente, “o desejo que” pelo intermédio de [pai, morrer ou nao morrer]. Construir modelos como esses ¢ recusar reduzir a linguagem, e recusar fazer da linguistica apenas uma coleta de fendmenos individuais; & permitir que se levantem os problemas teéricos, se obrigar a uma metalinguagem comum e a modos de raciocinio rigorosos. E assim que poderemos axiomatizar a linguistica e, talvez, formalizé-la. ‘eu ndo

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