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David Harvey O NEOLIBERALISMO historia e implicagées TRADUCAO Adail Sobral Maria Stela Goncalves Edicbes Loyola INTRODUCAO (Os futuroshistoriadores poderdo coerentemente ver 0s anos 1978- £80 como um ponto de rupture revelucionétio na histéria sociale eco- rérica do mundo, Em 1978, Deng Xiaoping deu os psmeiros pass05 fundamentas para a liberalizacZo de uma economia gerida por un go- vvemo comunista em um pais que sbrigava 20% da populacéo mundial O trajeto que Deng defini ira transformar a China, em duas décadas, de um remote pats fechadio rium centro aberto de dinarismo capitalisa ‘com taxas de crescimento constantes sem paralelo na bstéra humana, Do outro fado do Pacifico, e em crcunsténcias completamente diferen- tes, uma figura relativamente cbscura (mas agora renernada) chamada Paul Volcker assumiu o comande de Banco Central dos Estados Unidos {FED) em jut de 1979, eno curso de alguns meses mudou dramatica- mente a poltica moneténa, O FED a partir de entio assumia ideranga ra luta contra @ inflagdo,independenternente das conseqiiincias (em particular no que serefere a0 desemprego). Do outro lado do Atlantica, Margaret Thatcher i tinha sido eeita primeira-ministea da Gri-Brets- ria, em maio de 1979, coma tarefa de restringir 0 poder dos sindicatos ¢ levar ao fim uma destruidora estagnacSo infacioniria que envolvera © pais na década precedente. Entéo, em 1980, Ronald Reagan foi eto presidente dos Estados Unidos e, armado com uma genialdade e um Carisma pessoal, impeliu seu paisa revitalzar a economia, 20 apoiar as decisdes de Volcker no FED e adicionar sua prépria mistura particular de polticas destinadas a restringir 0 poder do trabalho, desregular a in- stra, a agriculture e os setores extratvistas, assim como lberar os jpoderes das fnancas tanto intemamente coro no cendrio mundial. A partir desses diversos epicentros, os impulsos revolucionéros aparente~ mente se dsseminarem e reverberaram para impor 20 mundo que nos cerca uma imagem totalmente diferente Transformagoes desse alcance e dessa profundidade no ocorrem por acaso. Assim, & pertinente perguntar por que meios © percursos a nova configuracéo econdmics — freqientement designada pelo termo globalization — fo arrancada das entrarhes da antiga, Tanto Volcker fe Reagan como Thatcher e Deng Xiaoping usaram argumentos secur- dtios que havia muito estavam em cirulagio e 0s transformaram em arguments fundamentas embora em nenhurn caso ser enfrentar urna Jonga bataha). Reagan retomou a tredigd0 minortéia que remontava tno imbito do Partido Repubiicano, a Barry Gokiwater, no inicio dos anos 1960. Deng viu a riqueza ea infuéncia do Japso, de Taiwan, de Hong Kong, de Cingapura e da Corti do Sul em ascenséo e procuros mabilizar © socialsmo de mercado em vez do planejamento central pars protegerepromover os interesses do Estado chinés. Volcker e Thatcher arranceram das sorsbras de ua relative cbscurdade uma dautrina par- ticular que respondia pelo nome de “neoliberalsmo" e a transformaram | na diretrz central do pensamento e da administracko econémicos. E principalmente dessa doutrina — de sua origem, sua ascensio € suas immplicagBes — que me ocupo aqui 'O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das préticas politi- | ‘co-econémicas que prope que o bem-estar humano pode ser melhor | promovido liberando-se as literdades e capacidades empreendedoras in- dividuais no dbo de uma esiruturs Mrceaeirial earacterizade por sS- lidos direitos a pr vada, livres mercados e livre coméreo. O Fapaldo Eas oar e peter oma estrtuairsttconlaropia- daa essas praticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade ¢ a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas fundies miitares, de defess, da policia e egais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessdrio pela forga, 0 funcionamento apropriade dos mercados. Além disso, se n3o existe mercados (em reas como a tera, a gua, a instruxSo, o cui dado de satide, a seguranga social ou @ poluig&o ambiental), estes de- ver ser criados, se necessério pela ago do Estado. Mas 0 Estado n30_ deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervengdes do Estado ngs mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nivel minimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente nao possui in- formagées suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (rec0s) e porque poderosos grupos de interesse vo inevitavelmente distorcer e viciar as intervengdes do Estado (particularmente nas demo- cracias) em seu préprio beneficio. Houve em toda parte uma empstica acohida ao neoliberaismo nas priticas e no pensamento politics-econémicos desde os anos 1970. A. esregulaco, a privatzasSo e a reirada do Estado de muita éreas do ‘bem-estar social tém sido muitissimo comuns. Quase todos os Estados. dos recém-criados apis 0 colapso da Unido Soviética 4s socialdemocra~ ias e Estados do bem-estar social a0 velho estilo, como a Nova Zelén- dia e a Suécia, adotaram, as vezes voluntariamente e em outros casos ‘em resposta a pressdes coercivas, alguma verso da teoria neoliberal 1.5. Geonce, A Short History of Nectberalsm Twenty Years oF Eite Eeonomice and Emerge Onperturites for Structural Change n Wi. Beto, N. BULLARD. K. MALHO™ rr (Ed), Got! Finance: New Thirking on Regulating Capital Maret, London, Za ‘eks, 2000, 27-35; G. Owner, . Levy, Capa! Rarrget: Roc ofthe Neoiberl Revelation, Cambridge, Mage Harvard Unversity Press. 2004 J Pecx, Geography and Puble Policy: Constructions of Neotberalsm, Progress in Human Geograoty 28/3 (2004) 392-405;.1 Peon. A. Tenth, NeokDeralling Space, Antipode 34/3 (2002) 320-404: Treanor, Neiberlim: Origine, Theory. Definion. Dispoivel em: cestagnada? As politicas de substtuicao de importagées (que promove- ram a indéstria nacional mediante subsidios ou barreiras tarifirias) que tinham dominado as tentativas latino-americanas de desenvolvimento econémico estavam em baixa, especialmente no Chile, onde nunca ti ‘nham funcionade muito bem. Com o mundo intero em recessBo econd- ica, havia necessidade de uma nova abordagem, Um gruso de economistas conhecidos como “the Chicago boys”, ‘por causa de sua adesio Bs teorias necliberais de Milton Friedman. en- to professor da Universidade de Chicago, foi chamado para ajuder a reconstruir a economia chilena. E interessante a histéria de como eles foram escolidos. Os Estados Unidos tinham financiado o treinamento , 208 principios de livre mercado da economia neocléssica que emergira 1na segunda metade do século XIX (gragas aos trabalhos de Alfred Mar- shall, Wiliam Stanley Jevons Leon Walras) para substituir as teorias clissicas de Adam Smith, David Ricardo e, naturalmente, Karl Marx. Mas também seguiam a idéia de Adam Smith de que a mao invisivel do rmeicado constitula 0 melhor recurso de mobilizagao de mesmo os mais vis instintos humanos, como a gula, @ ambivdo € o desejo de rigueza © poder em beneficio de todos. Assim, a doutrina neoliberal opunha-se profundamente as teorias do Estado intervencionista, como as de John Maynard Keynes, que alcangaram a proeminéncia nos anos 1930 em resposta & Grande Depressio. Muitos legsladores. depois da Segunda Guerra Mundial, recorreram & orientag3o da teoria keynesiana em seus esforcos para manter sob controle os ciclos de negdcios e as recesses. Os neolberais se mostravam ainda mais fortemente contrérios a teo- ras do planejamento estatal centraizado como as propostas por Oscar Lange, mais préximo da tradi¢o marxista. Alegavam que as decisoes o Estado estavam fadadas & tendenciosidade politica, que dependia da, orga dos grupos de interesse erwolvidas (como os sindicatos, os ambien- talistas ou os grupos de pressio corporativos). As decisdes do Estado ‘em questdes de investimento e acumilacéo do capital estavan fadadas 1a ser erradas porque a informagies & disposiglo do Estado nfo podiam rivalzar com as contdas nos sinais do mercado. Esse arcabougo terico, ‘como varios comentadores assinalaram, nBo € inteiramente coerente'’ (O rigor cientifico de sua economia neocléssica nao € facilmente compa- tivel com seu compromisso politico com ideais de lberdade individual nem sua suposta desconfianca com respeito a todo poder estatal o € com a necessidade de um Estado forte e, se necessério, coerctivo, que efenda os direitos & propriedade privada, 8s liberdades individuss © as lberdades de empreendimento. O artifiiojuriico de definr as corpora- es como individuos perante allel introduz suas préprias distorgBes, tor- nando rénico © credo pessoal dé John D. Rockefeller, gravado em pedra 1no Rockfeller Center da cidade de Nova York, que diz: “o valor supremo do indivicuo” acima de todas as coisas. E, como veremos, hé na posigdo neoliberal contradigSes suficientes para tornar as priticas neolbersis em

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