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A O Conto em Lingua Portuguesa Luminescentes suby 0 fantastico na narrativa breve sugfeal Giver sidade de Colmbra | Palavras-chave: Fantistico ¢ Surralismo, subversio esttica, imaginagio, complexidade fic- ional, narrtiva breve Keywords: Fancastic and Surrealism, aesthetic subversion, imagination, fictional complexiey, short story ‘A ntenaficagdo da percepedo pode ir 20 porto de distor- cer as coisas de modo que o indiivel ¢ dito, o invsiel ‘se toma visiele o insuportivel explode Herbert Marcuse Romper 0s limites convencionais da ficeo narrativa é um dos objectivos almeja- dos pelos autores surreatistas. Se, mais que uma estética, o surrealismo é uma forma de estar na vida, uma filosofia e uma ideologia, a ruptura que apregoa grava-se na profundidade do sentir e do ser. Por isso a subversio é para Cesariny muito mais que ‘uma palavra: E facil ser subversive ~ a palavra no custa... é um caso de audicdo. Eu sou subversivo, tu és subversivo, nés somos subversvos (..). Subversivo, pois!, mas o que é de real € o engano de que se pode ser algo parecido com subversivo sem levar & conscéncia o meio onde se é, sem conhecer 0 que nele acon- tece e para o qual conhecimento € necessério estar dentro. (Cesariny, 1997: 170)' Tratase de um excerto da carta Aberta ao Dr, Adolfo Casais Montero» datada de 1950 ¢inserida em A Intervenpio Surealista marie jase vinses | 134 1, Complexidade do subversivo e imersao imaginativa Que poderd significar este estar dentro para Cesariny e para os surrealistas? Signi- fica, entre outras coisas, esse mergulho na agua fecunda da imagina¢do; nao qualquer uma imaginagio... mas, como diz 0 poeta, «s6 a imaginacéo [que] transforma. S6 a ‘imaginagdo [que] transtornan, (Cesariny, 1997: 89). Como se origina este «transtomo», como se processa e o que significa sao inter- rogagGes sobre as quais se tém debrucado estudiosos e criticos do surrealismo. E 0 ue se pode facilmente depreender desse trabalho critico e das diversas interpretacdes das produgoes surrealistas & que a inten¢ao subversiva surrealista no pode deixar de ser abordada sem ter em conta o modo complexo como ela se configura, ou seja, 0 entrangado conjunto de aspectos que engendra - complexidade que se torna indispen- sdvel ponderar em qualquer abordagem. Neste sentido, s6 0 cruzamento de diferentes elementos podera explicar esta «imersio», este «estar dentro», que Cesariny diz ser necessério ao sentido subversivo surrrealista 2. Imersao e ética Um dos aspectos que concorrem para esta ideia & a estreita ligacio entre estética « ética - uma conexio hé muito reconhecida no surrealismo como verdadeiramente intrincada e apertada. 0 posicionamento surrealista ndo tem apenas implicagées esté- ticas pois pressupde uma determinada forma de estar no mundo com determinagées éticas, pressupde uma vivéncia onde a atitude subversva face as convengGes burguesas ¢ fundamental. Dai esta insisténcia de Cesariny (e dos surtealistas em geral) relativa- mente a0 significado do verbo ser: ndo s6 «ser subversivo» mas, para além disso, ser consciente do que «ser subversivo» realmente «é» num determinado meio ~ trata-se, obviamente, da identificagdo de uma «diferenca» do «ser» relativamente ao «outro» que nao 0 &. Divergentes sio, no entanto, as formas de entender esta ligacio entre os préprios surrealistas. Das diferencas relativamente a profundidade desta ligagZo e/ou relati- vamente ao grau de intensidade da atitude subversiva a adoptar derivam muitos dos desencontros entre os surrealistas, conduzindo-os a dissidéncias, expulsdes acusa- es - tal como se pode ler na carta de Mario Henrique Leiria aos Surealistas, ditos disssidentes, criticando a 1* exposigio do Grupo Surrealista de Lisboa e modo como funcionou: Nesta questio ou se é, ou se ndo €, Sendo vejamos aquela exposicdo.(...) Onde estava alio problema moral surrealista? Onde estava o ataque definido e sistematizado TBS | fantastico ma narrating breve surreatista ‘um certo e determinado nimero de organizacées sociais erradas? Onde estava, enfim, a necessidade de acco @ 0 estado de furor? (cf. shid.: 135). E preocupagdes idénticas ecoam num outro texto de Mario Henrique Leiria escrito «Para ser lido no J.U.B.A. em 27-5-49», onde ele diz: 1. a8 inexplicavels explicacées dadas de cétedra por pessoas que tinham ido ‘umas coisas e que confundiam nomes [...] no explicaram nada (..., no mostraram ao ppablico o que verdadeiramente se esta passando entre o surrealismo e a vida (ou seja © que se esta passando poeticamente). (..) Falou-se em obscenidade da nossa parte, sem se reparar que, quando aqui se disse merda, era mesmo MERDA que se queria dizer, ‘A nossa posigao comecou a tomar-se ingrata, ¢ tio ingrata que nos abrigou a voltar c& para dizer que & bom e conveniente no confundir o Surtealismo com qualquer catélogo de livreiro ou rol de mercearia. (Marinho, 1987: 652) ‘A ressonancia destas criticas atinge também a produgao artistica apresentada na revista ditigida por José Augusto Franca - Unicérnio, Bicémio, Tricérnio, Tetracérnio @ Pentacdrnio - que os Surtealistas dissidentes nao consideram ser verdadeiramente surealista. No ceme das divergéncias dos surrealistas portugueses est pois uma medidat res- peitante 2 essa profundidade de «imersio» que se erige como uma espécie de entrega do ser do artista. Ora, esta estética com implicacSes éticas funciona também como uma estratégia propulsora da propria criatividade uma vez. que 0 poeta nao s6 se entrega a interpretagdo poética da vida, como, mais ainda, poetiza a vida fazendo-a depender do postico, Por isso Pedro Oom, comentando um poema de Cesariny, diz em 1950: «Eu no posso conceber a imaginacéo desligada da acco como coisas opostas, irredutiveis» (Gt. ibid.: 1987: 637). E certo que esta estratégia se toma mais fécil de por em pratica na poesia - néo € or acaso que os surrealistas privilegiaram a poesia. Mas, mesmo nos textos narratives, esta imersio se verifica e se torna luminosamente criadora, como facilmente se poderé ver em alguns breves textos ficcionais que aqui se pretende abordar. Neste estudo, privilegiar-se-Ao sobretudo os mais antigos ~ aqueles que foram escritos logo no dealbar da década de 50 -, mas alargar-se-4 o periodo em andlise até ao principio da década de 70, ou seja, considerar-se-Ao, fundamentalmente, os textos que foram escritos antes do 25 de Abril *. Antes, porém, convém ponderar ainda um outro aspecto: a marca interiorista da criagdo ficcional de alguns dos nossos surrealistas. No se pretende dives aqui que a referida eimersion & a Gnica expicagio das divergnciassurceaisas, sas sim que & um dos seus aspectorfundamentas Parte-se assim do pressuposto: o de entender que a subverséo desempenhava um papel fundamental sum tempo dominado pelo regime ditatorial. Sendo faciimente acstivel que asim fo, isto nfo quer ote rinses | 136 3.Interioridade e imaginacao A correlagio entre estética e ética no Surrealismo esta, de facto, intimamente ligada a um outio aspecto: uma certa propensdo interiorista que se torma evidente logo numa primeira leitura destes textos. Contudo, esta tendéncia interiorista dos surrealistas ndo pode ser confundida com um subjectivismo* a moda romantica - é sim uma procura duma relacéo peculiar entre o «eu» e a realidade de forma a ultrapassar as limitagSes desta iltima. Por esta via se compreendera o que Pedro Oom, nesse texto de 1950, valoriza em Cesariny, quando afirma: Eu no posso conceber a imaginagio destigada da accio (...). 0 poeta realiza a fusio do real e do imaginario num absoluto pessoa, intransmissivel,tnico. Hle transpie para a vida di mundo belo do sonho onde vive uma outra humanidade diferente desta e onde o inconcebivel & valido real. & neste Universo Magico em que “a alegria é mais resplan- decente” que se move o poeta Cesariny de Vasconcelos. (Apud Marinho, 1987: 637) 0 emaravithoso» que descobriu na infancia, 0 ‘A énfase dada ao sujeito que transmuta o real - que funde real e irteal - oferece uma chave de acesso a ligagdo entre a utilizagdo do fantastico e 0 sentido subversivo, uma vez que nesta transmutagao se junta operador com o objecto operado, levando a que, em muitas narrativas breves surtealistas, 0 sujeito, pressentido ou explicito no texto, coincida com a figura do autor, sendo o narrador muitas vezes um narrador de 1° pessoa. Isto mesmo podemos verficar no «Texto Automatico» escrito por Cesariny, em 1949, para a ser apresentado na Casa do Alentejo, no J.U.B.A., cujo inicio é o sequinte: Devo dizer que anoitecia. Os eléctricas comecavam a subir pelo espaco com ‘uma obrigatoria sensacio de enjoo. Quando as casas se desmoronam é observavel um brevissimo movimento-luz na palpebra do dltimo a desfalecer (desde que desfaleca ‘esmagatt). As varias interpretacBes que o fenémeno tem sofrido parecem-me bastante Tonge da verosimithanca. desta natureza, ha sempre um pequeno desvio oscilatério entre 0 fenémeno em si .) Além de ser pouco acessivel a crenga nos fenémenos dizer que of surralstas pensacsem sero sentido subversivo dispensével na estéica pés-revoluciondia, Como muitas textos dos surealistasatestam a constestacdo e consequente necesidade de subversio do Dburguesisne canvencional e dos wtiquess e «autismos» de pseudorevolucionaios continuara a ser uma tarefa importante para os surealistas. + De cena forma, & essa resistencia ao colectivo que ecoa nas disidencia dos suealistas com os neo: realists, mas também na recwsa de um colectiviemo surealista que implicate uta genealizacdo ¢/ ou imposiggo abusiva do posicionamento tebrico do sunealismo. E este recelo que se pode ler quando Cesarny fala a Victor Brauner no pesig da «pretensto de codifient para o colectivo aquilo que 56 por acldente o sera (colectvo) ou nlo 0 seré nuncas (1985: 305). Fa ee iiiie areve sunvenees e uma pequena pedra que se situa muito ignoradamente no pé levante esquerdo do ‘tamulo de Napoledo Bonaparte. A coisa é dificil de estabelecer porque no seu movi- ‘mento de suspeitissima ascensdo os elevatores actuam colectivamente, Na minha meninice tive muita facilidade em verificé-lo mas como a transmissio directa de certas revelagGes @ praticamente mula, além de ser vergonhosa, aconselho a leitura ao ar live dos livos pornograficos que pelo menos uma vee na vida nos apare- ‘em de chofte, Nao é no desejo de impulsionar ~ impulsionar ¢ uma palavra estranha = que a este propésito vos falo da aranha pessoal, incrivelmente ténue, que a certas horas do dia pode ver-se na mio das pessoas que caminham come sonambulos entre lum automével que soe escangalhar-se e 2 parede da mua perfeitamente ocasional. Foi tuma dessas mos aranhadas (falo sem preconceito) que em tempos remotos, através de um amigo de inféncia, me deu a ler a Torre de Nesle. ‘Ao iniciar com um discurso de primeira pessoa ~ «Devo dizer que anoiteciay) -, o texto implica imediatamente a perspectiva de um sujeito (identificdvel com o autor) que observa um (in)certo fenémeno - «os eléctricos comecavam a subir pelo espaco», permitindo, pela presenca da subjectividade, 0 desencadear de interpretages situadas ‘longe da verosimithangay, como 0 proprio sujeito/autor diz. No paragrafo seguinte, Cesariny parecendo dar razio a Pedro Oom, vai buscar a infancia a raiz da sua capaci- dade de observar este fendmeno fabuloso: «Na minka meninice tive muita faciidade em verificé-lo», Porém, aqui néo se trata de um regresso ao idilico mundo infantil, pois, aquilo que o narrador vai salientar dessa sua rememoragéo juvenil é a capacidade subyersivamente propulsora e reveladora de certos livros pornograficos - uma parca via de acesso ao mundo do erotismo mas que se compreende facilmente se nos lembrarmos do ambiente castrador da época salazarista. Se o exemplo convocado, o livro A Torre de Leste’, nao 6 uma obra pornografica, 6, porém, uma obra que acentua as liberdades de duas princesas addlteras, 0 que interessa, portanto, neste e nesses outros livros, é a possibilidade de constituirem uma revelacdo, lamentando o autor «que o homem nao possa realmente incandescer-se e crescer segundo os seus desejos», (Cesariny, 1997: 104), Permeia este texto de Cesariny uma nitida linha isotopica de cariz exético, mais do que pornogréfico: a figuracdo da aranha ou da mao ararihada e a ideia de voracidade remetem simb6lica e conotativamente para 0 campo erdtico ~ desejo, posse, seducao ~ cuja explicitacao nao esta isenta da vontade de chocar o piblico, Neste texto, a revelagao e o seu sentido subversivo s2o plasmados pelo fantastico envolvente, 0 qual esfuma o racional. 0 fantastico origina-se aqui através do «desva- necimento geral dos limites» (cestompage génerale des limites») de que falava André * Segundo alenda, as princesas Margarida e Branca de Borgonhalangasiam da Torre de Nesle os seus aman- tes ao Sena. &lenda, ji tratada anteriomente em drama, ¢retomada numa série de zomance bistro, por Maurice Druon precsamente entre 1955 ¢ 1977. serie jose sinses | 138 Berge, na década de 30, ao tentar estabelecer uma teorizagéo do que designava por sfantéstico moderno» (apud Bozzetto e Huftier, 2004: 34). Note- se que esta altima expressio, hoje recorrente, foi na altura e durante bastante tempo ignorada e esque- ida. Conquanto que bem reveladora da necessidade de dar conta de uma producéo estética diferente, na época esta designagdo estava longe de ser consensual. Com feito, para o mesmo procedimento estético, Denis Saurat preferia falar de feérico, afirmando tratar-se de um «feérico interior, de uma mentira que se desenrola no inte- rior do eu» («féerie intérieur, un mensonge qui se déroule a Vintérieur du mois) ~ designagao que é cabimentavel sobretudo dentro de um renascimento do maravithoso (ibid.: 35). Tais divergéncias denotam, por um lado, a flutuagdo terminol6gica e a divergéncia quanto ao ponto de clivagem entre maravithoso* e fantastico, mas também, por outro lado, a relevancia do psicologismo nesta época potenciadora de uma mais aguda mas menos distanciada interpretacdo do fantéstico surreaista, £ no contexto desta discussdo que Franz Hellens propde (em 1835) a distingdo entie «fantastico exterior» e «fantastico interior», afirmando que neste a realidade «esta transformada e incorporada no sobrenatural» pela «imaginagdo emotivan e poética (ibid.). Incipientes, quicé inscientes, estas abordagens sio muito reveladoras: por um lado mostram que ainda néo esto reféns do afa categorizador estruturalista verificavel nos espartilhos as teorizagées & maneira todoroviana’, mas, por outro lado, ja reflectem a intengao de abarcar as mudangas que no fartéstico se vao verificando (as quais, mais tarde, levardo a preferéncia por termos como «insdlitos* ou «novo fantastico»), podendo assim discernir a acentuacao interiorista. £ esta interioridade que explica a mescla de elementos magicos, miticos, mitémanos e fantasticos utilizados neste texto e noutras producées artisticas do surreal. Que estas questies do magico, do mito e do fantéstico preocuparam os surrealistas vistvel, por exemplo, na carta que em 8 de Janeio de 1948 Cesariny envia a Victor Brauner (aquando da tentativa de expor as suas obras em Portugal, falhada por causa da censura), onde afirma: Quero dizer-the que, para nds, o Brauner constitui uma «pedra» das mais signifi- cativas na questdo que neste momento debatemos, isto é, a deteminacdo, ou néo, de * A palavra chave para Breton € maravioso, mas evidentemente numa acepcio muito ampla com se pode ver ma actualizagio que far no 1° manisfesto em frases como xLe mervalleux ext toujours beau, il n'y 4 méme que le mervellaux qui sot beaus, ou eLe mervellex rest pas le méme a toutes les Epoquese (Breton, 1979: 26). "Sobre a fortuna da teovizagio todorovana, confronte-e texto de Arnaud Hutter taduzido em Simdes, 2007, Para questionacio do fantastico enquanto categoria estétic, cf. Simdes, 2007, * A designacio elnslton sera a opcio da revista Fiction em 1862 (apud Bozzetto Hufter, 2004; 38) ‘novo fantistico» & a concessio que Todorov far 20 conjunto de textos nao enquadtavels na sua teor- zac. 9 \ ie Taatdanee na navratiea oceve sarceatisna lum lado propriamente mégico do surreal, nao evidentemente, erguido contra o mito, ‘mas buscando em via efectivamente nova o mito sempre presente e sempre ausente, Neste sentido (...) vejo as suas criagdes na mais forte vanguarda do surrealismo. 0 lado magico, que Breton nunca deixou de por em relevo, tem no Brauner um alto grau de lucidez agente, tanto pela recusa de uma téenica de qualquer modo cerimonial, ‘imposta do exterior, como por um natural deirio de interpretacao, fortemente estri- bbado nos signos poéticos da ciéncia mégica, propriamente dita. Decerto que, a este respeito, pode fazer-se muita confuséo, e, mais natural, ter muito medo. Medo de nao se ser. acionalista moderno. (Cesariny, 1985: 305) Torna-se claro que o que motiva a preocupacio de Cesariny (e dos surrealistas em geral) néo é encontrar destringas entre os elementos, mas sim, sobretudo, descobrir os procedimentos para os articular, procurar as jungdes e combinatérias mais produtivas luminescentes. Nada de espantar, portanto, que este lado «mégico» da obra de Brau- ner valorizado por Cesariny seja, no meramente contemplativo, mas sim carreador de ‘uma elucidez agente» - a qual advém da interioridade do «delitio de interpretacéo» conseguido por Brauner pois que & um artista conhecedor e explorador dos signos e simbolos mégicos. Eis talvez a razdo porque Cesariny traduz, para ler na 1* expo ao dos Surreatistas, em 1949, o texto «Autocoroagdo», onde Brauner se auto-inttula ‘) ~ uma ligacéo que ‘mostra como se quer acentuar a capacidade de CRIAR suscitada pela «conjugagdo futura desses dois estados, na aparéncia t4o contraditérios, que s80 0 Sonho ¢ a Realidadew, Sobrelevando estes vectores, ha ainda a considerar esse entendimento da «Liberdade, como explosdo acontecida no mais profundo do Ser» (apud Cesariny, 1997: 109) rei- vindicada pelos surrealistas, sabendo-se que este sentido libertério os conduz a um questionamento do si, muito para além das convenes do ser social (atingindo, no caso de Cesariny em particular, uma dimens4o vivencial profunda). Neste contexto, os nossos surtealistas parecem realizar a operacdo identificada por Herbert Marcuse na arte contemporanea (citada em epigrafe), na qual a «experiéncia é intensificada até ao ponto de ruptura (..). A intensificagdo da percepedo pode ir ao ponto de distorcer as coisas de modo que o indizivel é dito, o invisivel se torna visivel e o insuportavel explode» (2007: 44). 5, Subversdo categorial Uma outra forma de subversio processada através do fantéstico origina-se pela aproximagdo analégica do que é percebido ou percepcionado como pertencendo a cate- gorias ou dominios separados, configurando uma estratégia que, em trabalho anterior (cf. Simées, 2006: 28), se designou por «fusdo paradoxal da disparidaden, mas que talver seja melhor designar por «fusio paradoxal do dispar». Tal efeito de fantastico» foi intuido por André Berge ao caracterizar certos procedimentos surrealistas como fendmenos de «oniromancia» - uma designagao advinda das teorias médicas recentes da década de 30 -, dado que neles «as abstracg6es se tomnam objectos que ocupam um volume no espago». Para este autor, nestes procedimentos a «impressio de fantastico resulta a maior parte das vezes de uma nova classificagio da realidade, a qual poe relevo uma certa esséncia que até af a classificacio pratica sempre tinha deixado esca- ‘par ao nosso olhar» (apud Bozzetto e Huftier, 2004: 34), Mostrando a resistencia da "Tia bebida em Breton que aizma no 1° Manifesto: «Tout porte croie quil existe un certain point de Vespit Go la vie ot la mort, le rel et Uimaginaie, le passé ot le futur, le communicable et ‘incommuniable, le haut et le bas cessent dete percus contradictorement. Or Cest en vain qu’on chercherait 4 Yactvite suréaliste un autre mobile que Vespoir de détermination de ce points 143 | Tunissvice na nortatioa Sreve surreatista existencia a categoria", este procedimento transposto para a ficcio ndo sé6 tira partido das «contradigdes e das aporias inerentes a racionalizacio do espago» (Chareyre-Méjan, 1998: 106), como também abala a inércia dos nossos habitos de percepgdo categorial. E esta subversio categorial que o fantastico analégico realiza, quer seja nos jogos do «cadaver esquisiton, quer nas associagSes de texto e imagem como as realizadas por ONeill em Ampota Miraculosa. Nada de estranhar, portanto, que no texto da badana dessa inusitada Ampéla Mira- cculosa, gafanhotos e pirilampos sejam convocados para caracterizar 0 acontecer artis- tico desta obra peculiar, estabelecendo-se uma nao menos estranha comparacéo entre a intermiténcia do movimento e da luminosidade destes bichos e a criagdo de artistica de ONeill: «0 que se passa com 0 poeta recorre sempre a magia do encontro. Recorre ou é nela que se fixa luminosamente, por um instante, entre dois pinchos. E o instante 6, de facto, o que interessa a quem sabe como deve ser a alegria de vivern. Trata-se de um paratexto assinado por Ant6nio Pedro com as iniciais A. P. que plasma uma interpretagdo da producio artistica de ONeill da qual se devem reter dois elementos: por uma lado, a magia do encontro, por outro lado, a luminosidade do instante captado artisticamente, conseguindo que este instante significativo seja, néo a representacdo de um objecto na sua auséncia, mas sim a representacdo dessa «coisa» aqui achada, que & «chose présente-ci, hic et nuncy (Chareyre-Méjan, 1998: 85). Jogo, seguramente uum jogo... mas, através dele, «0 espftito descobre a unidade do que anteriormente surgia miltiplo e a multiplicidade do que parecia tinico e simples» (apud Bozzetto e Huftier, 2004: 34). Complexo? Sim, complexo, mas esta complexidade permite contrariar aquela inter- pretagdo de os surrealistas se esgotarem num simples anelo pela unidade, como pre- tende Raoul Vangeim. 6, Subversdo e violéncia ‘Um outro aspecto fundamental se toma indispensavel considerar no que diz res- peito a subversio e que tem a ver com a dose de violéncia que ela implica. Este 6 outro onto propulsor de divergéncias em termos de posicionamento estético nos surrealistas, cujas posturas véo desde as brincadetras, pretensa e supostamente mais inocentes, de certos jogos surrealistas ~ como o do aproveitamento da linguagem dos «ppp» -, ao abjeccionismo de Pedro Oom que implica um aponto do espirito onde, simultanea- mente a resolucio de antinomias, se toma consciéncia das forgas em germe que iro © Segundo A. Chareyre-Méjan (1998:108), «Le fantastique prdsent, au fond, la résistence de Uexistence & 1a categorie. 1 exhibe Lnsignifiance catégoriale comme indice exsentiet dela talité du rel, aria jote simes | 14h criar novos antagonismos»", Consciente da dimensdo violenta da propria subversio se ‘mostra Cesariny quando, logo a seguir ao 25 de Abril, contesta o sentido que o nosso ¢@ outros regimes totalitarios colaram ao subversivo que considera ser um «subversive falseado e falsoso falado por todas as tiranias», defendendo ser necessério «limpar 0 conceito de subversividade «desse sarro horrendox. 0 exemplo que Cesariny convoca para ilustrar 0 seu sentido da subversdo é um excerto da peca de Peter Weiss intitulada Persequigéo e Assassinato de Marat Pelos Doidos do Hospital de Charenton Sob a Diecgao do Marqués de Sade, referida abreviadamente por Marat/Sade, onde se discute a eficdcia da contestardo de valores. Do extracto citado, Cesariny ressalta a etensdo permanente do pensamento e da acco fenquanto] dois bragos agentes do subversivon e declara a ‘impossibilidade de algum deles alcancar vitbria sobre o outro, depreendendo-se que considere estes elementos essenciais & definicio que colhe do dicionério: «SUBVERTER ~ Revolver, voltar de baixo para cima». (Cesariny, 1985; 316-322). 0 que Cesariny nao explicita mas que @ deixado claro peto pedaco da peca reproduzida é que ambas as figuras (Marat e Sade) representam o lado violento da accio e do pensamento, dei- xando assim implicito que a violéncia é um elemento fundamental se se pretende (sur) realmente subverter. Esta questio desencadeia ainda hoje acesos debates e opinides muito extremadas"* acirradas, Entre estas contam-se as que so expressas por Jean Clair na sua obra Du Surréalisme considéré dans ses rapports au totalitarisme et aux tables tournantes: Contribution @ une histoire de Uinsensé, cuja tese, segundo Pascale Roux-Cassuto, 6 a seguinte: «a ideotogia surrealista funda-se sobre um sectarismo que a aparenta siimut- taneamente ao ocultismo e ao totalitarismo». A esta obra reagiram varios criticos entre 0s quais Régis Debray que secunda certas afirmagées de J. Clair, refutando outras. Ora, segundo Pascale Rowx-Cassuto, a contra-argumentagSo realizada por Régis Debray @ certeira excepto numa concesséo que ele faz a Jean Clair ao entrar em concordancia quando ele afrma que a violéncia dos surrealistas & datada e algo gratuita, Discordando relativamente a este aspecto, Pascale Rowx-Cassuto afirma: 1 0 ne peut, nous semble-t-il, faire de la violence surréaliste un épiphé- rnoméne, un attribut accidentel. La violence verbale, Vagression, fait partie intégrante du suréalisme, que Yon envisage ce dernier d'un point de vue politique ou esthéti- que. La fin de Youvrage, qui avance Vidée d'une «religiosité surréalistes pour rendre compte d'une poésie qui est « un style dexistence, une régle de vie, Véquivalent d'un voeu sotennel » (p. 42), nous parat tr8s contestable. La violence surréaiste exige du ® Apud Martinho, 1985: 89 Por exemplo, Philippe Sollersafirma na sua obra Lois, de 1972: eLhumour est votre canon, votre sut- raison. Abandonnez le surréalsme qui nourrit le sous-réalisme, es deux ayant aver le so-disant naturel une odeor de ehiottes et de sacriste» (Gauvin, 2007). US |S Teatistico aa aurratioa breve sureeatists monde quil change séance tenante, le merveilleux rvest pas une échappée vers le « pays oi Yon warrive jamais » (p. 44) mais bien un viol du rel. Et en ces temps de relativisme et de compromis, en ces temps oi le réalisme politique et économique @ détroné toutes les utopies, cette violence, intransigeante et intégre, nous donne de Yair. (Roux-Cassouto, 2000) 0 n6 crucial aqui estabelece-se na interconexdo entre a violéncia, um peculiar empenhamento artistico e a imtiséo alcancada por um fantastico altamente derrogador das convengées do pensat, mostrando a complexidade dos procedimentos subversivos 7. Subversao e humor Todavia, ndo é s6 da violéncia que o surrealismo se serve para subverter as ideias ais arreigadas. Um procedimento onde excelam quer ONeill quer Mario Henrique Leira 0 humor, um humor engendrado em estreita relacdo com o fantastico como € visivel nos textos «Em Orbitay de O'Neill (incluido em As Andorinhas Nao Tém Restaurante, de 1970) e na conhecida narrativa . Consultado em 4-6- 2008. GOUVAIN, A. «Sollers et le surréalismen http://www pileface.com/sollers/article.php32id_arti- lenso2 HUFTIER, Arnaud (2007). «Fantastique, fantastic, fantastiche, fantéstica, fantastico... Derivas ocidentais de uma palavra». In Simbes, Maria Jo8o (coord.). 0 Fantastico. Coimbra: CLP, 23-61. LEIRIA, Mario Henrique (1999). Contos do Gin-Tonic. 5* ed. Lisboa: Editorial Estampa. MARCUSE, Herbert (1977) A Dimensdo Estética. Lisboa: Fd. 70. MARINHO, Maria de Fatima (1987). 0 Surrealismo em Portugal. Lisboa: IN-CM. [MARTINHO, Femando (1985). eRecensio Critica a Faca nos Dentes de José Fortes», Coléquio / Letras 86. ONEILL, Alexandre (1997) Anes 70, Poomas Dispersos. Lisboa: Assirio & Alvim. 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Resume: Pretendese, neste trabalho, analisar como se procesia a ligagdo entre o fantstio € a subverséo nas nartativas breve da Bio surrealist, destrincar os diversos elementos ‘que concocrem para engendrat a complexidade dessa presenga subveriva¢ interpretar 0 seu significado exten. Abstract: In this work we sek to analyse how the connection between subversion and fantas- tic works in surealistc shore stories and try to discem various elements that contribute to the complexity of that subversive presence, as well as provide an interpretation of their aesthetic meanings. eae

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