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© EDIPUCRS a IF edigao: 2008 dos originais: Eurico Saldanha de Lenvos Prepar Reviséo: da Coordenadors Capa: Samit Machado Editoracio e composi¢do: Suliant fia Lida Impressao ¢ acabamenta: Grafica EP Texto publicado cm 2003 em espanol pela Editora CCS, Dados Internacionais de Cataloyagau na Publicagio (CIP) 19 dos modelos famili C735 Como se perpetua a famiilia?: 2 transmis ares / coordenadora Adriana Wagner. ~ Porto Ale EDIPUCRS, 2005. 166 p ISBN: 85-7430-519-7 1. Relagives Familiares. 2, Familia - Psicologia. 3. Pais © Filhos. 4 Psicologia Aplicada. 1. Wagner, Adrian CDD 158.2 Ficha Catalogrética clara p Setor de Processamento Técnico ds BC-PUCRS Proibida a reprodugdo total ou parcial desta obra sem autorizagan expressa da Editors. EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 ~ Prédio 33 Caixa Postal 1429 90619-900 - Porto Alegre ~ RS Brasil Fonelfax: (51) 3320.3523 wiew.pucrs.brfedipuers! Ecmail: edipucrs(@puers. br is Digitalizado com CamScanner Transgeracionalidade e educacio: como se perpetua a familia? Adriana Wagner Juliana Predebon Denise Falcke Dentreassarefas que competem 8; familia, a educagao dos filhos tem sido uma das mais complexas em tempos de pis-modemidade. ‘As diversas demandas, criadas a partir da erescente diversidade de configuragdes ¢ estruturas familiares que tém surgido em nosso contexto, rompem com diversos padres estabelecidos, além de gerarem varias perguntas ainda sem respostas. As questdes mais comuns que circulam entre os pais giram em tomo das diividas sobre: como, para que ¢ para quem educar 0 filhos. Pode-se dizer que a familia passa por um momento de perda de referenciais. Se, por um lado, os modelos recebidos nas geragdes anteriores parecem estar obsoletos, por outro, carecemos de estratégias ¢ padroes educativos que sejam cticazes frente is novas demandas. Nesta busca de alternativas, muitas vezes, en- contramos velhos padrdes comroupagemmoytees ‘Ao longo da historia, a tarefa de educar os filhos passou por indmeras transformacies. Se analisarmos diferentes periodos e 0 tipo de relagio que se estabelecia entre pais ¢ filhos, podemos conslalar que lanto as priticas quanto osealoresye as metas educa- tivas sofreram modificagdessimporlantes. Transgeracionaldade e educagéo: como se perpewa a familia? 8 (Earner TE] Digitalizado com CamScanner Na 1da@@"Mdia, por exemplo, como fica evidente nas mani- festages artisticas da época, accrianiga era retratada como um adule etorerminiatiira (Ariés, 1981). Este ¢ 0 retrato da inexisténgiay neste periodo, da definigéo de um conceito de infancias Além disso, na | familia medi€Val} a cducagio dos filhos nao erapresponsabilidade direta dosypais® As criangas ficavam cm casasaté aproximadamente ‘Teanos} quando eram enviadas para casa de outras pessoas para ' serem educadas. O valor educativo preponderante cra a necessidade de que os filhos aprendessem boas maneiras. Contudo, na realidade, as crian- gas, chamadas de aprendizes, eram responsaveis pelo servigo do- méstico pesado, permanecendo nessas casas até cerca de 14 a 18 anos. Através desta pratica educativa, o mestre transmitia a crianga sua bagagem de conhecimentos, sua experiéncia pritica ¢ seus valo- res, Deve-se destacar que elas cram ensinadas a no expressar ne- nhum sentimento ou pensamento ¢ deveriam obedecer mecanica- mente aos adultos (Ariés, 1981). Em vista desses aspectos, pode-se supor que, nessa época, a afetividade nao era a tonica na relagdo pais e filhos. Porém, nio necessariamente isso significava desamor; havia um grau de envol- vimento diferenciado. A educagio era transmitida de uma geragdo (mais velha) 4 outra (mais nova), sem que os pais fossem os princi- pais agentes dessa transmissio. Por volta dos séoulos XVI e XVII, comegou a ser valorizado um novo aspecto na educagiio dos filhos: a disciplina (Badinter, 1985). Assim, a partir de um contexto fortemente influenciado pe- los eclesidsticos, as criangas passaram a ser educadas nas cscolas para se tornarem homens racionais e cristios. Elas, entdo, voltaram a residir nas suas proprias casas, 0 que favoreceu o desenvolvimen- to de uma maior proximidade com a familia. E verdade que essa escolarizagao nao foi imediatamente gene- ralizada, mas, mesmo as criangas que no iam a escola, permane- \ ciam em seus lares. Além disso, a escola do século XVII era fre- giientada somente pelos meninos. Eles eram submetidos a um con- trole bastante rigido pelos professores, aspecto igualmente valori- zado pelos pais em casa. As meninas, por sua vez, eram excluidas do ambiente escolar. Aos 10 anos jé eram consideradas mulheres, 94 ‘Adriane Wagner, Juliana Predebon e Denise Falcke RR ae Es Digitalizado com CamScanner casando-se por volta dos 11 ou 12 anos. A aprendizagem doméstica cra_a base da educagio. Conseqiientemente, neste periodo, clas cram semi-analfabetas, o que perdurou até o inicio do século XVIII (Ariés, 1981). Sendo assim, foi apenas nesse século que realmente surgiu a consciéncia de que as criangas nao eram adultos em miniatura, Alem disso, foi nesse século que a familia passou a valorizar a intimidade (Ariés, 1981; Caldana, 1998). Essa mudanga de referencial culminow, no século XIX, com a consolidagao da familia nuclear burguesa. Tal configuragao familiar comegou a abrigar, aos poucos, a afetividade entre seus membros ¢ a preocupat-se mais com o bem-estar das criangas. Nessa época, 0 indice de mortalidade infantil foi reduzido gragas as melhores condigdes de higiene e satide. Passou a existir uma maior preocupacio com a educagio dos filhos em termos de uma valorizag3o de seu futuro, assim como de sua saiide fisica e emo- cional. Foi, entio, que a infincia passou a ser vista mais clara- mente com caracteristicas de fragilidade e inocéneia (Caldana, 1991, 1998). A familia nuclear burguesa surge a partir do desenvolvimen- to do capitalismo ¢, conseqiientemente, da industrializagao, que ocasionou a diminuigdo da produgio dentro do lar (Ariés, 1981). Essas transformagdes produziram profundas mudangas na estrutu- ra ¢ no funcionamento das familias ¢, principalmente, na vida das mulheres, que passaram a centrar-se no cuidado dos filhos ¢ do cénjuge, enquanto que o homem se ocupava do trabalho nas in- distrias, a fim de garantir 0 sustento. Sendo assim, 0 principal papel das mulheres na sociedade passou a ser o de transmitir a cultura mediante a educagdo dos filhos (Videla, 1973). E a partir deste processo que se constitui como um ideal social, a alegoria da familia feliz, na qual 0 pai governa € a mie é a senhora da casa (Ackerman, 1997). Em termos disciplinares, Ariés (1981) salienta que assim como na sua origem, educar os filhos ainda estava associado & Preocupacdo com a ordem, com o rigor moral, resultando no auto- ritarismo ¢ na rigida disciplina exercida pelos pais. Eram aplica- dos muitos castigos corporais. ‘Transgeracionalidade e educago: como se perpelua a familia? 95 Digitalizado com CamScanner No século XX, houve modificagdes nas concepgdes sobre a familia devido As transformagées no Ambito social. Dentre essas, destaca-se: a amplitude no alcance dos meios de comunicagdo de massa, em especial a televisio ¢ a Internet, o aumento da escolari- zagio das mulheres, a valorizago do consumo, os movimentos feministas, a entrada da mulher no mercado de trabalho, 0 surgi- mento de pré-escolas ¢ a institucionalizagao dos cuidados maternos substitutos, entre outras (Biasoli-Alves, Caldana e Dias da Silva, 1997). Somando a isso, a crescente difusio do saber cientifico fez com que os pais tivessem acesso as informagdes sobre o desenvol- vimento infantil, fazendo com que se preocupassem, por exemplo, com a estimulagio da crianga desde bebé, através da oferta de brin- quedos e de atividades de lazer. Os pais também passaram a prco- cuparem-se em desenvolver a autonomia dos filhos e cm respeitar a crianga, permitindo-lhe que participasse ativamente nos mais diver- sos aspectos de seu dia-a-dia. Em geral, houve um afrouxamento das regras ¢ as restrigdes relacionavam-se com as cxigéncias de habitos de higiene, estudo, brincadeiras ligadas a sexualidade ¢ agressividade (Biasoli-Alves, 1995). Em termos de disciplina, 0 recurso que passou a ser mais uti- lizado foi o didlogo, numa pratica caracterizada pelo uso de técni- cas disciplinares verbais, preferencialmente, nao punitivas. Além disso, a garantia da felicidade dos filhos passou a ser uma das maio- res preocupagdes dos pais. Essa ideologia sugere um ideal de educagdo antiautoritario, com uma estratégia de socializagio centralizada nos desejos ¢ ne- cessidades da crianga, que conforme denominou Caldana (1998), comporia uma pratica educativa quase idilica, favorecendo, em muitos casos, uma inversao hierarquica na familia. Em vista disso, a concep¢ao atual de educagao tende a colocar © filho numa posigdo privilegiada em relagio aos pais. Figueira (1987) complementa esta idéia afirmando que a educagio na atuali- dade prima pela valorizagdo da idiossincrasia, da liberdade, pela inexisténcia (ou quase) de regras explicitas ¢ externas, ficando a cargo de cada pai, mic e/ou cuidador decidir sua forma de ugir, de acordo com as suas crengas particulares. 96 ‘Adriana Wagner, Juliana Predebon e Denise Falcke Digitalizado com CamScanner ce) A partir desse breve percurs historico, pereebemos que a concepgio de inffincia, os padres de cuidado ¢ os valores na edu- cagio das criangas, modificaram-se essencialmente através do tem- po. Provayelmente, os pais de hoje nio pensariam em enviar seus filhos a casa de estranhos para que fossem educados de forma com- petente ou induziriam as suas filhas para casarem aos 12 anos, por exemplo, Novos conhecimentos fizeram surgir demandas que im- pulsionaram 0 processo de atualizagio da familia, Nesta perspecti- va, 0 registro do passado serve como um referencial que se oferece para ser repetido, translormado ou neyado na construyao de novas relagiies familiares entre pais ¢ filhos. Podemos constalar, entao, que de um modelo autoritirio, pas- sou-se a um modelo permissivo, Numa anilise evolutiva, parece que os novos padres eclucativos firmaram-se através da negativa do padrio vigente, Se pensarmos na dindmica de transmissio de valores, legados, ereneas ¢ mitos, numa perspectiva da transyeracionalidade social, como referido no capitulo 2, evideneia-se a tentativa de ne- gagio do passado que leva “ao outta lado da mesma moeda" E pos- sivel que da ditadura dos pais, tenhams passado a tirania dos filhos. Mesmo na educaydo intrafamiliar. & comum encontrarmos pais que se cmpenham em niio repetir os padres educativos recebidos em sua familia de origem. Liste ¢ um processo motivado pelo desejo de nio reedilar os erros de sua propria educagio. Nesses casos, na tenta- tiva de favorecer as novas yeragdes melhores condigdes de vida e de bem-estar, os pais tendem, muitas vezes, a criar modelos idealizados de como educar. Porém, 0 resultado nem sempre ¢ eficaz. A experiéncia tem demonstrado que a transmissio de questdes transgeracionais relativas a valores, erengas, legados e mitos familia- tes sio inevitiveis ¢ fazem parte da p familiar ou, mais especili pa Spria estruturagdo do niicleo mente, da propria condigdo humana. Os s desejam que scus fillios adquiram uma estrutura de valores que facilite seu desenvolvimento no mundo externo, Contudo, como os filhos sio agentes ativos na dindmica familiar, nio é possivel afirmar que exista uma retayio dire entre os valores que os pais desejam para seus filhos ¢ os que os flhos realmente assimilam (Garcia, Ra- mire. ¢ Lima, 1998). Inclusive, porque os pais néio sio os «inicos transmissores de valores. No processo de desenvolvimento, 0 que inais freqiientemente acontece & a busca de diferentes referencias ¢ Transgeracionaldade e educagao: como se perpetua afamiia? «= «97 Digitalizado com CamScanner modelos. Nesta perspectiva, a comunidade onde 0 sujcito esti inseri- do, a escola, os meios de comunicagio de massa, o grupo de amigos € outras pessoas significativas também sio agentes desse proceso. Frente a este mecanismo, pergunta-se entio; Qual o papel da educagio familiar no processo de transmissio transgeracional? Como se perpetua a familia? Os mecanismos que garantem a continuidade do “patriménio psiquico” da familia instalam-se desde as primeiras interagdes do bebé com seus cuidadores. A qualidade dessas interagdes também est mediatizada pelo tipo de riqueza que compac este patrimonio. Tal mecanismo também ¢ expresso na infinidade de ditados po- pulares, criados ¢ validados pela nossa cultura. Entre eles, a crenga popular é a de que “tal pai, tal filho”, ou “filho de peixe, peixinho ¢”, ou ainda “o fruto nao cai longe da arvore”. Esses trés ditados enfati- , zam a existéncia de uma identidade que vai sendo transmitida de uma geragao a outra, de pais para filhos. A importancia da continuidade deste “patriménio” tem a di- mensio da propria sobrevivéncia da familia. Neste caso, 0 mecanis- ' mo que garante a repeticdo dos padrées familiares é extremamente sofisticado e complexo. Uma das expressdes da forga e do valor deste proceso ¢ a sensagao de pertencimento e afiliagdo que ele produz, ja que também “quem sai aos seus, nfo degenera” ‘As duas forgas antagénicas que se contrabalancam entre a iden- tificago com a familia ¢ a luta pela individualidade (Bowen, 1978, 1979), provavelmente, sejam a tensdo central da condigdo humana. Marta Medeiros (1999) ilustra esta idéia dizendo: minha bisavé reclamava que minha avé era muito timid minha avé pressionou minha mae a ser menos cética, minha mie me educou para ser bem licida € eu espero que minha filha fuja deste carcere que é passar a vida transferindo dividas (p. 158). O desejo expresso pela autora ¢ 0 de liberar sua filha do lega- do das gerages passadas. Entretanto, este desejo, em si, ja se carac- teriza como uma poderosa divida sendo transferida. Ela passa para a filha a necessidade de fazer diferente, sem perceber que, mesmo na tentativa de negar o padrio estabelecido, acaba cumprindo 0 legado familiar de esperar uma determinada forma de comporta- mento da geragao futura. 98 ‘Adriana Wagner, Jutana Predebon e Denise Falcke el Digitalizado com CamScanner Perpetuando a familia: lembrangas, repetighes ¢ perspectivas A importincia deste processo de transmissio (ransgeracional, incrente as diversas inleragdes educativas que ocorrem ao longo da vida familiar, motivou-nos a analisar a relagdo que adultos jovens suas Familias ¢ @ sua estabelecem entre os valores que reeeberam « forma de pensar e agit, bem como daquilo que desejam transmit aos seus filhos, Solictamos a um grupo de $7 universtirios, de 18 25 anos, que respondessem a tais perguntas: “Pensando na educa- do que recebestes de teus pais, qual a frase que mais escutastes eles na tua infancia que expressa um valor educativo da tua fami- lia? Qual a conseqiiéncia que csta frase trouxe para a tua vida? Quando tiveres os teus filhos © a responsabilidade de educé-los, 0 que consideras mais importante ensinar a cles?” As respostas dadas a cada uma das questdes foram analisadas ¢ agrupadas em catcgorias de conteidos afins, A analise das respos- tas 4 primeira pergunta, sobre as frases mais ouvidas na infincia, ficou assim definida: Grafico | Categorias de respostas sobre as frases mais ouvidas na infincia Porcentagens sro omens es 5 ‘eaten ugte lus ceoge se 568 poss oro eatido orette i com aka mo Se ae Transgeracionaidedee educario: como se perpeuaa famila? «99 Digitalizado com CamScanner A categoria com maior pontuagao (22.27% das respos @ que agrupou temas sobre a importineia de pensar nas cias dos atos, sejam el ponsabilid 3) foi qiié $ positives ou negativos, assumindo at res- de pelos feitos cons Foram citadas frases do tipo “pensa antes de fazer alguma coisa para no te arrepender depots” ¢ “tudo 60 que plantares, tu colheras”. Esta pais de que seus filhos sejam pe: idéias expressam 0 desejo dos ‘oas conseqiientes, A segunda categoria em ntimero de respostas for a que enfati- Zou a importincia que os pais atribuiam aos estudos (16,35% das respostas). Frases do tipo “primeiro os estudos, depois o lazer" foram as mais lembradas por estes participantes. Pode-se observar que a importincia dos estudos é um valor que cresce na sociedade contem- porinea. a medida que aumenta a competitividade no mercado de trabalho, exigindo cada vez maior qualificagdo das pessoas. Cerveny ¢ Berthoud (1997) corroboram esse resultado em uma pesquisa reali- zada com a populagio brasileira de nivel socioecondmico médio. Elas constataram que a importancia dos estudos nas familias é resul- tado daquilo que vem sendo incorporado a partir dos avangos sociais € das exigéncias impostas aos individuos na contemporancidade ‘A categoria que expressa a exigéncia de Icaldade e de retri- buicdo dos filhos em relagdo aos pais reuniu 13,8% das respostas. As frases “nao estas fazendo mais do que a tua obrigag’o” ¢ “nds somos mais experientes, por isso tens que seguir 0 que disscmos” elucidam tais valores familiares. No quarto lugar, trés categorias foram pontuadas igualmente | (11,36% das respostas). Elas referem-se a | Lutar pelo que se deseja, Lutar, batalhar, correr atris dos seus objetivos é um valor que foi passado pelos pais ao assinala- rem que “é preciso trabalhar bastante para conquistar 0 que se | deseja”, pois “quem sabe faz a hora, nao espera acontecer”. Nes- { las frases, fica demarcada a necessidade do esforgo para atingir as | metas almejadas, assim como hd referéncia 4 dedicagdo ao traba- Tho como um valor que dignifica o ser humano. i Pensar no proximo. A preocupagio ¢ soliduriedade com 0 ‘ Proximo também foram transmitidas como valor aos filhos, no \ sentido de passar a eles a importincia de “dividir”, de “comparti- i thar”, de “fazer o bem sem esperar nada em troca” ' ) 100 ‘Adriana Wagner, Juliana Predebon ¢ Denise Falcke _— Digitalizado com CamScanner Ter ewidudo, A necessidade de ter cuidado perante os perigos cxistentes no mundo foi uma preocupagio transmitida aos filhos: Frases como “te cuida, filha”, “cuidado que ¢ perigoso”, ou ainda “mmm... Acho melhor tu nao fazeres isso... Ndo vais conseguir e vai acabar chorando” refletem uma tentativa dos pais de ensinar a aulopreservagio perante situagdes adversas. Contudo, é comum que estas tentativas, muitas vezes, sejam avaliadas pelos filhos como superprotegao (Wagner et al., 1997, 1998). Outro valor educativo que os filhos reccberam de seus pais na infincia foi a honestidade, Do total, 6,9% dos participantes indicaram que seus pais solicitavam a cles dizendo, literalmente: “soja uma pessoa honesta” O respeito di autoridade paterna ¢ 0 poder do destino sio ca- teyorias que aparceem com igual ndimero de respostas (3,3%). Fra ses do tipo: “respetto é bom ¢ cu gosto” ou “mas que falta de res- peito!”, expressam que alguns pais enfatizavam a obediéncia como importante no relacionamento dos lilhos com eles. A idéia de sub- missdo também fica expressa de forma mais especifica na categoria que retine contetidos relatives a erenga no destino ¢ em Deus. Fra- ses do tipo “se Deus quiser tu vais conseguir” ¢ “o que for para ti, vai acabar acontecendo na hora certa”, atribuindo a Deus ¢ ao des- tino a responsabilidade pelo futuro, ilustram esta categoria. Partindo destas frases que expressam os valores familiares dos participantes, questionamos qual a conseqiiéncia que estes cnsina- mentos trouxeram a vida deles. Os resultados revelaram que, em geral, 0 que foi dito pelos pais ao longo da vida dos sujeitos inves- tigados funcionou como um balizador de condultas, valores ¢ proje- tos pessoais, além de influenciar na forma como os sujeitos viven- ciam hoje determinadas situagies. Quando 0 valor enfatizado pelos pais foi a necessidade de ser conseqiiente ¢ responsivel, os parlicipantes disseram que desenvol- veram a capacidade de ter bom senso em suas decisdes. Entretanto, quando os pais enfatizavam exvessivamente a necessidade de pen- sar nas conseqiiénetas dos atos, os sujcitos referiram que se torna- ram pessoas demasiadamente reflexivas ¢ cautclosas, muitas vezes com medo de que “tudo se voltasse contra mim”. Transgeraconaldade e educagio: como se peretiaa lami? 101 Digitalizado com CamScanner Essa diferenga de forma ¢ de intensidade também apareceu quando 0 que foi dito referia-se a lealdade/retribuigdo, ao cuidado com os perigos do mundo ¢ ao poder do destino. Em todos estes casos, os filhos referiram que, ao mesmo tempo em que os ensi namentos dos pais Thes trouxeram bencficios, quando foram ex- cessivamente reforcados, induziram-lhes a serem temerosos ¢ a sentirem-se frageis. Por exemplo, quando os pais tinham 0 costume de dizer que 08 filhos “nao faziam mais do que sua obrigagao”, os participantes revelaram que passaram a vida tentando “fazer mais”, “buscando. sempre a perfeigdo” para orgulhar aos pais de alguma forma. Essa expresso foi sentida como um estimulo para tentarem se superar, buscando serem valorizados. Todavia, concomitantemente, os sujeitos registraram um sentimento de insatisfagio com 0 que faziam, apresentando dificuldades em acreditar nas suas potencia- lidades. Do mesmo modo, os pais que ressaltavam aos filhos a neces- sidade de cuidado com os perigos do mundo, contribuiram, na ' vis&o dos participantes, para que se tornassem pessoas cautclosas, | mas também, por vezes, preocupadas ¢ fragilizadas. A visio do mundo como perigoso, que foi transmitida pelos pais, ao mesmo. tempo em que foi vista como protegio, também gerou inseguranga e medo. ' Por fim, a mesma dualidade também aparece nas frases rela- j tivas a categoria poder do destino. A conseqiiéncia dos pais atri- buirem o futuro dos filhos ao destino ou a Deus foi fazer com que eles ficassem otimistas, esperando 0 que Ihes estava reservado de ' bom. Entretanto, um dos sujeitos expressa: “muitas vezes eu me ' incomodo com 0 tom de acomodagao desta frase”. Nesta perspec- tiva, se, de um lado, este valor transmitido traz um conforto por + pensar que existem coisas boas que estao reservadas a cada um, de ' outro lado, sugere que pouco se pode fazer para conseguir 0 que ) se deseja, a ndo ser “esperar ¢ rezar”. , Assim, os efeitos do contetdo que foi transmitido dos pais para os filhos, a partir da repetigdo das frases, aparecem direta- ! mente relacionados com a forma c a intensidade de como tais mensagens foram passadas. ’ 102 ‘Adriana Wagner, Juliana Predebon e Denise Falcke UY — Digitalizado com CamScanner De forma geral, os participantes referem que assimilaram assumiram os valores dos scus pais como seus também, Aqueles que ientificaram em seus pais o incentivo ao estudo, referiram que, como conseqiiéneia, dedicaram-se realmente a estudar, esforgando- se ¢ procurando dar o melhor de si na vida académica. O mesmo ocorreu quando os pais atribuiram importancia a luta pelos seus dt solidariedade, a honestidade e ao respeito. importante considerar, entrctanto, que, assim descrito, pode parecer que 0 processo de transmissio transgeracional ocorre de forma linear ¢ delerminista, ou seja, os pais dizem c os filhos assi- milam, Longe de ser um processo de causa ¢ efeito, a transmissa0 de valores é um fenémeno que esté inserido num contexto comple- xo, composto por miltiplas variveis que se inlercruzam em deter- minados aspectos ¢ se complementam cm outros. Neste caso, pes- quisas indicam que os filhos clegem valores similares aos dos pais, porém nunca idénticos (Garcia, Ramirez ¢ Lima, 1998). std comprovada a importancia da familia, na maioria das ve- zes representada pela figura do pai c da mic, como principal agente nese processo (Garcia, Ramirez ¢ Lima, 1998). Em nossa pesquisa esta evidéncia se expressa no alto nivel de acordo entre os valores: ide; tecebidos na familia ¢ a intengéo de transmiti-los aos seus filhos. ‘A maioria dos participantes (90%), ao se remeterem para o futuro ¢ pensarem em que valores pretendem transmitir aos seus filhos, de- clararam a intengdo de repetir 0 que Ihes foi ensinado. Sendo assim, ainda que os processos transgeracionais tenham sido explicados, preponderantemente, por uma perspectiva incons- ciente, conforme exposto no capitulo | deste livro, nota-se que exise te um movimento consciente dos sujeitos de reiterar e validar as suas vivéncias familiares, buscando perpetuar 2 educagdo recebida em sua familia de origem. Considerages finais A revisio tedrica a respeilo do assunto, assim como a analise dos dados encontrados, nos leva a refletir sobre a importincia da transgeracionalidade nas. interagdes educativas que ocorrem a0 longo da vida familiar. Nao hi divida que 0 processo de transmis- Transgeracionalidae eeducario: como se perpelaafamila? 103) Digitalizado com CamScanner so transgeracional relativo aos valores © as crengas familiares & uN ma inevitivel, resultando, muitas vezes, em Iegados que integram a = propria estruturagdo do sujeito de sua familia TH essa continuidade & que toma a vida possivel. Afinal de eon- r tas, como questiona Alves (2000): jé imaginaram 0 que acorreria se, a cada nova gerago, tudo devesse comecar da estaca zcr0? PR ® semniria perdida, experiéncias passadas desperdigadas... Seriamos apenas um organismo vivo ante um mundo desconhecido, do qual 18 nao se sabe 0 que esperar. Nesse sentido, fica evidente 0 poder de perpetuagao do patri- ménio psiquico da familia. Através da educagao, os pais vio atribu- indo significados as experiéncias dos filhos. possibilitanda ou difi- a8 ccultando conquistas, incentivando ou remediando sonhos. Conhecer esse processo ¢ 0 contetido herdado atraves dele é 0 SS oc ofcrece as pessoas maiores chances de ampliarem os espagos ad intemos determinados pela educacao recebida na familia de origem : Quando nio se conhece ¢ no se questiona aquilo que foi me zprendido, a tendénciaé, inevitavelmente,repetir sem critica 0 mes- ‘mo modelo ou negé-lo, qualificando tudo 0 que foi recebido como BD) 5 jm, antigo ou ultrapassado. Entretanto, 0 reconhecimento dos tesouros ¢ das dividas que integram este patrimonio psiquico her- = ado ¢ 0 que abre possibilidades de transformagio. Referéneias ; ACKERMAN, D. Una histéria natural do amor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, ce 197. LVES, R. Comversas cam quem gosta de ensinar. Si Paulo: Papirus, 2000 GP ariés, P.sistiria social da familia e da crianca. Rio de Jancivo: 1.TC, 1981 eno, Rio de Janeiro: BADINTER, E, Um amor couguistedo: 0 mito do amor m e Nova Frontera, 1985. Fa BIASOLI-ALVES, Z. M. 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