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MATERIAS-PRIMAS: DA AUTOBIOGRAFIA A AUTOFICGAO - OU VICE-VERSA Evando Nascimento* Lautobingraphie ex toujours en fait, une autofction, Na verdade, 2 aucobiografia & sempre wma ausofcgéo.) a Serge Drouboosky ateiinicialmente alguns esclarecimentos, como introdugéo 20 wema das F rclagéeg’entre autobiografia¢ o que atualmente se chama de autoficgéo. Al primeira vex que owvi falar de autofiesso foi numa palesera de Régine Robin, organirada por Euridice Figuelzedo, na Universidade Federal Huminense, em 1997. Tive na ocasiéo a possibilidade de conversar com a CE. bupsitwwnv.erugam,calnobelF24136/ (consul realizada em 20/04/2010), Rousseau, Jean-Iaeques. es confessions, Paris: Gallimard, 1996, MatéiayPimas: Da Autobiografia 1 Auofcrio ~ Ou Viee-Vers nnpacto, Nunca consegui lé-lo pelo vids do “pacto aurobiogrifico”, ou seja, como cfiniu e redefniu tecentemente o proprio Lejeune, por um compromisso com a zrdade. Certamente jé contamsinado por Dezrda, comei cada uma das palavras ‘e Rousseau como uma vasta ficgéo, por assim dizer um romance floséfico. Cada nha desse belissimo volume me dizia, “Nie ereia literalmente no que digo, pois vida sb € possivelreinventada” — enxertei aqui de propésito os versos célebres de Jecilin Mireles, que jd citei em outras ocasides, como um mote para qualquer fda que se queica minimamente literéria. Lembro de passagem que Derrida az parte daquela categoria de pensadores que, como Rousseau, Nietasche © Jenjamin, ousaram filosofar na primeira pessoa. O fivro de Rousseau ¢ a lecuras de Derrida me prepararam 0 espiito no sara 0 “pacto aucabicgrifico” de Lejeune, autor que sé viriaa ler depois, mas para autoficgig de Serge Doubrovsey, escrtor francés que criow esse termo até certo ronto cotno provacicio 3 teoria, em muitos aspectoslimitada, de Lejeune, o qual dria também a the dar a séplica, num ciclo de provocagdcs sem fim. “Assinalo que toda a questio da classficagdo de um texto como autobiografia” serie quanto a saber o limive entre 0 autobiogrifico e 0 so-autobiogréfico, ¢ isso € fundamental para compreendet a invengio de Doubrovsky, a “autsfiogio”. A definigao do género aurobiogrifico foi fea sm meados dos anos 1970 ¢ uatida por Lejoune na revisio que fex de seu sercurso em 2001, em “Le Pacte autobiographique, vinge-cing ans aprés” [O acto autobiogrdfice, vinte ¢ cinco anos depois)’ baseando-se essencialmente 10 imperativo do pacro. E preciso que um texto se inscreva num “pacto de zerdade” com seu leitor, por meio de um performativo que promera e garanta sstar dizendo a verdade, nao mais do que a verdade. Bis como cle define os stitérios que tegem ¢ Associasio, por ele fundada, em prol da autobiografia e do patrim@nio autobiografico: “Aceitamos para depésito «leitura todos os textos de CE Meireles, Cecilie, Reinvenso. In: Obra postica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, 195, + Lejeune, Philippe, Le pacte autobiographique, Pasi: Seu, 1975. 5 Lejeune, Philippe. Le Pacte aurobiographique, vingt-eing ans aprés. Tn: Signes de vie: le peete autobiographicue 2, Pars: Sell, 2005, p. 11-36. Salvo indicagdo contri, todas as ‘wadugdes so minha) Evando Nascimento doenca, de viagens, dios pessoas, cartas~ mas solicitamos que sejam regidos por um pacto de verdade. Desca-tamos as ficgées ¢ a8 coletineas de poemas. ‘Byidentemence as veres acontece de hesitar em estabelecer a fronteira. Mas hd uma fronteira, A coeréncia e 0 vilor de uso do acervo (fonds dlarchives] que constituimos depende disso” § Curiosamente, nesse texto que faz um balango de seu percurso rem-se também uma confissio autobiogréfica: Lejeune fala da telaggo de amor e de distanciamento para com o diario e outras “escritas do eu”. ‘A conta altura, cita Paul Valéry: “Na verdade, nao existe teoria que ndo seja wm fragmento, cuidadosamente preprrado, de alguma autobiografia". Em seguida, comenca: “Meu proprio desejo autobiogeifico explica, portanto, ao mesmo tempo o lado normative de LAutobiographie on France, a escolha do projeto ‘ousseauisca © minha cegueita em relacko a0 didtio”,’ Esse texto ¢ precioso para se ver 0 lado autobiogrifico de toda teoria: os interesses nunca sio neutros, mas resultantes de “frustragées e desejas” do tebrico e critico, como o préprio Lejeune sublinha, Jia proposta de Doubroky viria para completar © quadro tragado por Lejeune em seu famoso estudo dos anos 1970. Na quarta-capa de seu livre Fil: (197),* Doubrovsky propée 0 termo de autoficeio para 0 tipo de narrativa em que os nomes do autor, do namdor e do protagonista coincidem. Assim, no romance Fib, mais do que simples autobiografia, veu-sc a cucenaséo da vide privada do autor Serge Doubrovsky sob forma de (anto}ficgio. Feita essa anotagio conccital, retomo 0 curso da pequena anamnese acima esbogada. A aticade diante da autoficsio, que me chegava pela palavza falada ¢ iimpressa de Robin ~ pois Ii seu ivro fundamental Le Golem de Vécriture? — era tanto de absoluto fascinio quanto da maior desconfianga. Também por meio de Derrida, aprendi a desconfiar de tudo 0 que leva 0 prefixo “auto”, de coda carga cexcessiva colocada no “eu”, no “me” € no “mim”, além, é claro, do nome dito oid, p. 27, grifos meus. Boid, 9.27.28, ubrovsky, Serge. Fils: Paris: Grasset, 1977 Robin, Regine. Le Golem de Iéeritur: de V'autfiction au eybersoi, Montréal: Ed. X¥7, 1997, 191 ‘Matérias Primas: Da Aurobiografia 3 Autoliesio ~ Ou Vice-Versa proprio. Tal como desenvolvi num dos capitulos de Derrida ea litera," tudo ‘© que leva a marca do que chamamos de “eu” tanto me sidera quanto me poe em ‘guarda, atento ans riscos do narcisismo exacerbado. Antes de tudo, porque tanto Derrida quanto Lévinas, aquele como leitor deste, tomaram patente a precedéncia do outro sobre 0 eu.!' Tudo 0 que soa, tudo 0 que somos, vem dos outros ¢ das outras que nos conceberam, drain tm nome, cuidatam ¢ até hoje nos chamam, Antes da consciéncia do proprio nome, bhi 0 chamado (Clarice Lispector), o apelo & convivéncia e ao compantllsimento da expetiéncia, a qual jamais é inteiramente solipsista. Estou convencido de que ‘oda experiencia do cu passa pelo encontro com a alteridade, de forma estructural ¢ intedutivel. "Ea? 6 existe porque 0 outra/a outra (que pode ter intimeros nomes: mundo, universo, natureza, Deus, pai, mie, familia, sociedade, acaso, ei, norma exe) Ihe deu cxisténcia, E nesse sentido que se deveria era famosa frase de Rimbaud ‘ho contexto original da carta em que se inscreve: ex é1am outro, porque é esse outro € essa-outra que me fundam, desde antes do nascimento, quando ainda nio passe de uma ideia na mente € no corpo de meus pais. "Eu € ¢ sempre seré outro, igual ¢ diferente de ético da existéncia: antes de mim o outro ou a outra que me deram vez e lugat. Ne verdade, parafrascando a epigrafe acima de Doubrovsky, diria que o eu no passa de uma fietdo do outro, Pois 0 outro é que me inventa, a meu desconhecimento e até ¢ ‘se diferimento vem da alteridade que nos habita. Tal é 0 primade «minha revelia. Desde a certdao de nascimento até o atestada de Sbito, quem cuida sempre de nossas vidas so os outros, sem os quais nada seriamos, nada somos. Pot esse motivo sempre preferi, em vez do neologismo autoficgéo, um putto, ur pouco mais estranho, o de alterfieydo ou ainda o de heteroficedo, para nascar que tudo ve do outro €a ele-le retorna, malgrado a passagem necessicia selo eu. Todavia, deixo de lado a heteroficgo, em proveito da alterfieso, pois 1 primeira corte o risco de se confiundir com a heterossexualidade, reduzindo- a um novo sexismo, Alterficado & uma auténtica “fiegio do interitio” (para « Pessoa), lugar intervalar onde 0 eu se constitui entre dois outros, um que 0 ° Nascimento, Evando. Derrida a lteramra. 2 ed, Nicer BLUFF, 2001, p. 306-311 * CE Dent, Jacques. Psyche: snventionsdel'autre. Paris: Galile, 1987; Lévings, Emmanuel Totaité etn: essai sur Vextetorité, Pats: Kluwer Academic, 1994; Lévinas, Emmanuel Autrement qu'éie ou aurdel cde Uesvence. Baris: Kluwer Acdenic, 196. * Rimbaud, Arthur. Letves cela vie litraire. Pais: Gallimard, 1990, Evando Nascimento antecede € outro que o sucede. Serd preciso, num outro momento, pensar juntos a heteronimia pessoana e a auto/alterfiogio, com ¢ além de Serge Doubrovsky. Se neste texto recorre-se a maior parte do tempo & autoficsao, deixo desde logo claro {que esse operador rextual se encontra de ponta a ponta modulado pela alterficgio. Alterficgio: fiecao de si como onto, francamente alterade, e do outro como uma parte essencial de mim. Retorno novamente a0 contexto de meus esclarecimentos (mas nao de minhas confiss6es). Além da autoficeso, surgi no texto de Robin o rermo bioficgéo, que vim a uilizar em mais de un momento, em particular num artigo publicado na Cult, sobre o poeta ¢ amigo Waly Salomao, “Os Favos da (quase) poesia’.* O maior efeito do encontro com essa categoria foi a deciséo tomada a partir de encio de considerar tudo o que viessea escrever como fragmento de um grande didrio, pouco importando se se ratava de ensaio universiviio ou de fegio purae simples. Mas no ano seguinte a0 daquele luminoso encontro, em 1998, me vveio 0 desejo imenso de escrever de ato um distio ficcional, que teria @ forma de lum romance reinventado. Fazia parte do projeto datar qualquer coisa que viesse « escrever, mesmo a simples anotagéo & margem de um livro ou numa eaderneta que passei 2 utilizar Datar ¢ assinar embaixo, circunstanciar a escrita, dando-lhe uma materialidade temporal, eis todo o paradoxo da ficgao auto ou alterbiogréfica, Em 1998, portanto, comecei a escrever um livro que foi aos poucos se configurando como “difrio ficticio’, oximoro absoluramente voluntirio, De modo que me vi envolvido num projeto dentro do projeto: se tudo para mim virara didtio, entéo por que ngo escrever um romance-didrio, contando uma histéria que outra néo fosse senio a de minha propria ¢ mintiscula vida? A referéncia é sem diivida Vidas rmindsculas, de Pierre Michon.§ Por razdes que nao caberia explicar aqut, esse primeiro romance ficou arquivado. Acabei por publicar um out, escrito entre 2004 ¢ 2007, 0 Retnito desmatural.” "© Nascimento, Bvando. Os favos da (quase) poesia. Cul: SP, ano V, n° $1, p. 10-13, outubro, 2001, M- Michoo, Pier. Flee minusciles. Pats: Gallimard, 1984 "5 Nascimento, Bvando, Rerrato desnatural (Diérios 2008-2007) Rio de Taneiso: Record, 2008, -Marér'as-Primas: Da Aurabiografia & Autofie¢io —Ou Vice-Versa Cabe lembiat que a ideia do dirio, para além da influéncia ou da contluéneia da aucoficgio de Doubrovsky e de Robin, foi marceda por ers outras roferéncias. A primeira delas foi uma passagem de um belo ensaio de Barthes, em que ele diz. nfo suportar o ginero didtio porque nele se diz “eu” o tempo todo." ‘Mas © préprio Barthes propée uma saida para esse solipsismo, ao reconsiderar uc o didrio é possivel, sim, como escritura, desde que reinventado, ou seja, como forma de reescrta lireriria." Esse texto ressoou por um longuissimo perlodo, € decerto jamais e apagou; como tantas coisas de Barthes, ¢ marca escrieural ficou ‘ surtiu efeito. Muito do que fiz e faco vem desse outro professor universititio, uplo de soripror. A segunda referéncia foram os filmes de Woody Allen, a meu ver, tados de cunho autoficcional, mesmo os mais impessoais — como pode se comprovar com o derradciro © belo Whatever work: (Tudo pode dar certa). & ‘ltima referéncia foram os dois filmes de Nanni Moretti, Caro dirio e Abril, que vi quando jé estava em pleno curso. Esse tiltimo caso foi mais de reconhecimento do que de alumbramento, como quem diz “eu eambém quero”, Esse desejo de ‘mimica, de mimesis ou de emulacio me parece decisivo para todo gesto escrirural emular para imitarsrivalizar (como jé diz o termo latino emadato) & mado 0 que interessa hoje, maisdo que nunca. Enquanto iso, do final dos anos 1990 para cf. o terme autofiesin ganhow mundo, deixando as fronteiras da francofilia. Néo por acaso, uma das grandes estrelas do ano da Franca no Brasil foi a artista Sophie Calle, arrolada por Robin ‘como um dos grandes exemplos da prdtice.!* Destacaria ainda outros incémodos em face da autoficcao, além do jd mencionado, Primeiro, é 0 cemor de que se converta em definitive em novo "© Barthes, Roland, Délibération. In: Owes completes: (1974-1980), 3, Pans: Seuil, 1995, p, 1004-1014, “Com eserever um Diirio sem egotisms? Eis a questia que me impede de faz6-to (pois estou um tanto fasto do egeismo)” [1 provavelment seria preciso conclu que posso salvar o Dirio, com ania condigbo de tabelhé-to até a mort, até a0 ponto extreme da exaust2o, como um texto quase {mpossivel:tabalc ao fim do qual talvez 0 Dro assim mantido em nada se paresa com ‘um Didria”(p, 1014) Cf. Robin, Regine. Ere suns trace: Sophie Calle. In: Le Golem del'ritre, ap cit, p. 217+ 229. Calle, Sophie. Historias, eas, Trad. Hortencia Santos Lencastee, Rio de Janciro: Agir, 2008. 1904 vando Nascimento igenero, reduzindo-se a clichés ¢ ideas fixas. A graca © 0 frescor da invengio doubrovskyana é ter sido uma provocacio literéria ao papa do sactossanto género dda autobiografia, Lejeune, Converter autoficgio num género com caracteristicas definidas ¢ repetidas & saciedade, parece-me uma traigéo ao impulso inventivo original, Ao nomear © aparentemente inexistente, mas paradoxalmente jd af (segundo uma nogéo cata a Heidegger), Doubrovsky provocou um abalo no cexistente ¢ consagrado. Como ele proprio velo a descobrit, nfo foi a decisio consciente dle nomear © que propunha na quarta-capa de seu livo Fils, que gerou ‘0 terme autoficgio; como pesquisasde critica genética comprovaram, isso ocorreu 1a propria invengao do livro, A paavra ja se inscrevia nos originais do romance autoficcional, que somavam cerca de tés mil pigina, reduzidas para seiscentas na versio publicada."” A fegio e nZo a consciéncia auroral a respeito da obra foi {que engendrou a autoficeao. Segundo Detrida cm Génaes, genealegia, géneros, © 0 génio, desde 0 momento em que um texto se insereve nas paragens da literatura, de imediato se vorna dificil e por vezes impossivel discernir a fronteira entre 0 verdadeiro € © ficcional2® Muito da ficgéo atual brinca com esses limites, pois em diversos casos a atestagso s6 depende daguele que fila e empenha sua palavra, Tal &0 caso do francés Pierre Michon, do catalio Enrique Vila-Matas, do chileno Roberto Bolatio, da francesa Héléne Cixous, do norte-americano Paul Auster, do alemio G. W. Sebald, do sul-africano J. M. Coctzes ¢ do brasileiro Joio Gilberto Noll, ‘entre muitos outros. Em todos esses autores comparece algum grau de autoficgo, A forga da autoficedo & que ela n2o tem mais compromisso algum nem com a autobiografia estrito senso (que ela nao promete), nem com a ficgio igualmence cstrito senso (com que rompe). Aa fazer coincidit, na maior parte das vezcs, os rnomes ¢ as biogeafias do autor, do narrador e do protagonista, o valor operatério ‘da aucoficeso cria um impasse entreo sentido literal (a referéncia real da natrativa) Para essas questdes, ef Grel, Isabell, Pourqooi Serge Doubrovsky na pu éviter le terme doncaficron, In; Jeanelle, Jean-Lov's; Villet, Catherine (Dir). Genése et awiofcton Bruxelles: Academia Bruylant, 2007, p. 40-51, Toda a coletinea dispde de excelentes ‘ensaios e depoimentos de escritores sdbre autofice2p, entre os quais Doubrovsky e Lejeune Devo a Eneida de Souza a eeomendacio deste volume ® Derrida, Jacques. Gendses, généalogies, genres et le génie: les soctts de Parchive. Pars Galie, 2003, ae Matésias-Primas: Da Autobiogafa 8 Aucoficso — Ou Viee Nest 0 sentido lirerério (a referéncia imaginsria). © literal eo literdrio se contaminam simulaneamente, impedindo uma decisio simples por um dos polos, com a ultrapassagem da fionceira. essa auséncia de compromisso com a verdade factual, por um lado, ¢ a simuleinea rupturs com a convengio fieional, por outro, que tornam a chansada aucoficgdo tio fascinante, ¢ por isso mesmo defendo que nao scja redutivel a tum novo género. O interesse da auto ou da alterficgso & romper as comportas, as eclusas, 0s compartimentos dos géneros com que aparentemente se limita, sem pertencer legitimamente a nenhum deles. Ela participa sem pertencer nem 0 real nem ao imagina jo, transitando de um a outro, embaralhando as cartas © confundindo o leitor por meio dessas instancias da Letra. Diferentemente do romance autobiogrifico ou de memérias, que ainda quer pertencer a um ‘gfnero tradicional, a autoficeSo poe em causa a generalidade do géncro, sua convencionalidade, correndo decerto 0 risco de cair em novas armadilhas. Dai ser necessirio mukiplicar as suspeitay, duvidar dos acertos, contestar as vitrias Ficeis do eu. Podese entio dizer acerca dessa espécie sui generis de discurso que ie 0 termo servir apenas para designar um novo género, nenhum interesse especial teri, Porque a modesnidade viveu e vive ainda de inventar ¢ destruir géneros, ¢ fi sobre essa pulsio classificatéria que se debrugou a obra inicial de Fouceult, especialmente As Palavras ¢ as coisas € a Arqueologia do saber. Nao podemos viver sem os géneros (sexuais, discursivos, liveririos), mas 0 aprisionamento a sgineros engendra a asfixia do pensamento. Ademais, nio hé género que nio dependa daquilo que se faz dele, das palavras que engendram coisas € das ccisas que engendram efits. Essa seria uma nova versio de “como fazer coisas com palavras", para lembrar 0 magnifico titulo de Austin, Desse aspecto performativo © performitico de qualquer discurso, ou sefa, de sua pragmética, a autofiegs ‘um maximo proveito, Pois toda sua forea pensante esté em desafiaras definigbes, as regras genéricas¢ generalizantes, em suma, em fundar uma “ciéneia” do particalar © do intransferivel, ali onde manda o bom método basear-se 0 conhecimente na sgeneralidade e na universalidade previamente concebidas. Talvee aucoficcéo néo passe disso, o que no € pouca coiss: um saber singular, francamente indefinivel, perturbador 20 mostrar a ficcionalidade de todo discurso, mesmo ou sobsetido Evando Nascimenta SEE EEE Eee Eero eee aqueles que se querem rigorosamente cientificos. Como diz Barthes: “Com efeito, 4 Ficso nao se ope de modo simplista A verdade; somente diz que a verdad deve levar em conta 0 desejo, ¢, se posso dizer assim, carregando-o na garupa, sendo corte o tisco de se reduzir & fantasia da castracio" Dizer que todo relato, ¢ mesmo que todo dliscurso é uma feeso néo implica dizer que todas as fcg6es se equivalem, ao contriio, 0 interesse repousa em que ‘modalidales de fico se esta falando quando se passa do jornal a0 romance, das _memérias A corespondéncia, do ensaio 20 poerna, até chegar’s monografiaacadémica, 'A ficeionalidade define menos um género do que o estatato hibrido de qualquer discurso. Por um lado, todo documento, mesmo o mais veridico, detém tragos de ficcionalizagéo; por outro, todo romance, todo poema detém valor documenta Ficcio ou verdade, imaginagto ou documento deixam de sr, por si mesmos criérios cde definigéo do género, pois a distinggo & de grau e nio de natureza. J os géneros se definem menos por uma esséncia que os tera gerado do que pets historia de seus uso signficagbes, de suas performances histicas, se quiserem. COurra grande diferenga entre o dispositive de aucofiesto e a autobiografia ‘oo romance autobiogrifico tradicionais é que estes tendem a ser autolaudatérios. ‘As memérias ou confissées visam a enaltecer e/ou desculpar © autor-natrador- protagonista (caso protoripico de Rousseau), enquanto os autoficclonistas partem do inacabamento e da fragilidade de suas vides. Nao pode haver ¢pica nna autoficgio, com o tisco de empobrecimento da experiencia vital ¢ literria Epopcia, quando ocorce, é por meio da micronarrativa, pois como diz Doubrovsky, seguindo voluncatiamente os passos de Lyotard, 0 grandes relatos ¢ as grandes utobiografias se néo esto mortos pelo menos se tornaram problemiticos. sso cocotte pela constatacéo mesma da precariedade de todo relato, de coda narrativa, de toda histéria com h maitisculo ou minisculo. Pois a histéria, géneto cientifico, tanto quanto a literatura, gnero artistico, perderam o cariter redencionisca que imuitas vezes assurmiram, sobretudo a primeira, Nao hd mais sentido redentor nem figura soterol6gica, encarnada num narrador neutro de terczira pessoa, Restou 0 lugae vanio da civida, da imprecisio. Nesse sentido, rods narrativa no é mais do 2) Barthes, Roland. Il existe auetn diseours qui ne soit une Fiction, In: Qewwres competes (1974-1980), t 3, Pars: Seuil, 1995, p. 385-386 at Pee ee Matéeas-Pimast Da Autablografa & Autoiegso Ou Vice Versa que o rastro, 0 vestigio ou a ruina (Benjamin) de um acontecimento que nunca ‘se apresentou de todo em sua identidade pontual. A ficgéo literivia € um segundo ‘evento em relacio ao primeiro ¢ disperso evento do real Assim, © tinico pacto hoje possivel & com a incerteza, jamais com a verdade factual e terminante, rantas vezes contestada por Nietzsche, O pacto que 108 nartadores podem fazer com seus leitores & quanto a forga ¢ A legitimidade de seu relato, fandado numa experigneia instivel, dividida, estlhagada, como se fosse verdade, ro fando matcadamente estética. Mesmo o de-verdade da historia virow intexpretacao, sem abrir mao do estatuco da verdade, que apenas se tornow infinitamente mais problemética, todavia nem de longe indcua. Diria, 20 contririo, que « verdade hoje é 0 que mais importa, sobretudo sob as vestes da imaginagio. A terdade em literatura, cis do que nao gostaria nunca de desists, cembora essa verdace esteja sempre por construis, rfizer, desconstruic.. Bau sio sempre vatios, era 0 que diria, como vimos, © multicitado trecho da carta de Rimbaud, Talvez seja isso 0 que tenha descoberto Riobaldo-Tararana na invengéo de si como outro que & 0 Grande sertéo. “Aqui a estbria se acabou./ ‘Aqui, a est6ria acabada./ Aqui a estéria acaba’, ou depois: “E me certo aqui, mite € veja. Isto no ¢ 0 de um relatar passagens de sua vida, em toda admiragéo, Conto 6 que fui evi, no levantar do dia, Auroras” diz Riobaldo a seu silencioso muito pacience interlocutor. Agui comega a vida, diremos nés, repercutindo 0 pact dessa suposta iceao autobiogrifica, dessa vera autoficeio como tanatografia, pois no centro da vida esté a morte do outro ou da outta, Reinaldo-Diadorim- Deodorina. Tado acaba e recomesa justamente neste ponto instivel para onde convergem ficgio ¢ realidade, numa linha demarcaeéria que sempre se afasta, Indecidivel, como tanto defendeu Derrida. Ali onde ‘05 pastos se veem des-mareados, para citar outro famoso trecho do Grande sertio, ‘quando cremas tangenci que comeca a verladeira e indecidivel histria, ence literarnen e realidade, arve «vida, ficgdo e tes:emunho, imaginagao e seus supostos contrdsios. No grande sertio lteririo, nem tudo é verdade, mas 6 pouco de verdade que sealeanga basta para fizer funcionar o maquindtio literro € literal % Rosa, Jodo Guimates. Grande serido: veredas. 1%. et, edigto especial. Rio de Janeito: ‘Nova Fronteira, 2001, p. 616, % Ibid p63, gris meus. Brando Nascimento (© que hé de verdadeiramente fiecional num romance ou num conto & menos 2 defini¢éo do géncro ficsio como oposto & realidade, como mera ilusao, portanto, do que como impossbilidade de discernir os limites encre ego € realidade, O fievicio do ficcional reside na impossibilidade do limite absolute, ‘¢ nio na natureza dos cervitérios demarcados (cpio x realidade). A fegio estd no limite ¢ néo nos terrtérios dscursivos, nos géneros, Essa &-a instivel novidade da auofiogio, © niio a identfica;ao simplista entre narrador € autor. Quando nna “Dedicatéria do Autor” de 4 Hora da estrela vem esctito entre parénteses “na verdade Clarice Lispector”, a ficgio comeca nisso que aa dissertagio de imestrado sobre A Hora da estrela chamei de interttoca de papéis. Intertroca € no iddentificagio: Rodrigo S.M. € ¢ nfo ¢ Clarice Lispector. Nessa indecidibilidade centre um género (masculino) ¢ outro (feminino) surge a ficgio de Macabea © tudo 0 que dé vez & Hora dit estrele. © narrador Marcel, nomeado assim de forma rara ao longo de Lim busca do tempo perdido, & nfo & Marcel Proust, Nessa tensio entre nareador, autor e personagem, ¢ que se insere a verdadeira ficyi0 para Barthes: a do leitor,”* que quase nunca é mencionado nas discusses sobre autoficgio, exceto pelo proprio Doubrovsky. © leitor é convocado a intertrocar papéis com todas essas mAscaras iccionais, atribuindo também algo de sua propria vids, sur o que « litenatuta peumanece letra morta. A vida de toda fiegéo depends do bios leicora, sem o qual nada acontece, Pois a autoficedo 6 existe de fato como feito ¢ no como um novo dogma de criagio. A autobiografia depende mais do autor ¢ do critica expecializados ja a antoficeéo se vincula pragmaticamente 20 leitos, constituindo esse eftito de estranhamento (obtido em graus diferenciados por cada receptor, de acordo com suas préprias experiéncias) que ocorre quando se percebe uma confusio mais ou menos intencional entre autor empitico & autor-nartador ficcional. © mal-sstar ou o prazer derivam dessa dificuldade de discernimento, dat os processos legais que alguns autoficcionistas sofrem por parte de parentes ¢ conhecidos, que alegam ter tido sua intimidade exposta em piblico2> Um verdadeiro escandelo ficcional. 2% Barthes, Roland. La mort de aut. In: Oesnres competes: (1966-1975) 2, Pais: Seti 1994, p. 491-495, 2% Nesse sentido, ef os testemunhos ds esesores Philippe Vilain, Catherine Cusset, Philippe Aatoficedo é pois. um termo que veio para por em evidéncia que todo discurso, mesmo o mais neutro e andnimo, guarda as marcas do sujeto que 0 enunciou, marcas estas ambigaamente verdadeitas e fcticias; mas também, em rapartids, alguns textos levam essa hibridizagio ao extremo, a0 fazerem dos fatos documentais a matéria mesma da ficgio, ou seja, 20 se utilizarem da capa ficcional do real como matétia romanesca. O mais perturbador néo € vera vida ‘onvertida cm romance, poesia, drama ou ensaio (sso a literatura sempre fer, com os mais diversos recursos), mas perceber que o proprio tecido vital esté infestado de ficcionalidade, Se posso:autoficcionalizar minha vida € porque cla mesma, como a de todos, dé um dtimo romance, a depender é claro do talento do narrador. Mesino a mais mediocre das vidas, a mais miserével, sob certo ingulo pode receher um enfoque inaudito, a partie de sua pripria mesquinhez e néo a dlespeico dela, Lembremos de Félicté (personagem de Flaubert), de Macabéa (de (Clarice) ede Bartleby (de MetWvill), codas vidas mintsculas: O que mais fasina e estranhaa na autofc santo a eferenciaidade imediata de lterstura, como em principio re poderia supor 0, quando bem realisada, éa dimensdo ficcional do real, e néo A autofiesio s6 pode ser entio efetivamente compreendida dentro de uma pry rdvica discutsiva, € n4o numa ontologia tradicional dos géneros. Importa menos 0 que é a autoficgo, do que 0 que podemos fizer com ela, sea como ‘turores de romances, pesas de teatro ou obras de arts plsticas (como Sophie Calle © Helio Oisicica), seja como escritores de textos dissertativos. Tal € a dimensio ensastca da autofcsto: as tentarivns de cealizar a passagem da vida} obra, no por ‘steticismo, mas para fizer re-verter a matéria-prima de volta & prépria vida. Isso ‘lo se dé por uma metafisica da transgressao, mas sim pela passagem necessria ‘entre as esféras da vida e da arte, como vasos intercomuinicantes, ¢ nio mais como compartimentos estanques. A referida expresso Minka vide daria wm roneance € potencialinente vilida para todos © para ninguém (como falava 0 Zanaiastra de Nietzsche). Para todos, por tudo © que ji disse: para ninguém, porquc & indispensivel ser dotado da forga capaz de esctita, de reinvencéo, Em estado bravo, a vida de qualquer um ¢ s6 wim romance em potencial ou, se quiserem, um ee Forest ¢ Camille Laurens, In: Jeanelle, Jean-Louis; Viole, Catherine (Dir), Gondse et ‘autofition. op. ct 200 romance virtual. Para vir @ ser de f2t0 romance, carece de técnica narcativa, de sclegdo, recorte, investimento na linguagem, reflexio, politica de citagio (omitir certas fontes, explicitar outsas, deturpar incencionalmente etc), enderegamento (preficios, notas, quartas-capas), € 0 mais que faz de um romance romance, Sinalizaria igualmente que Jean-Louis Jeanelle idencificou muito bem ‘outro aspecto estranhamente familiar no aparcnte neologismo autoficgao, Esse procedimento aponta para mais um fendmeno de hibridizacio no pedprio real, Tratase de um dispositive capax de congregar modalidades que sempre se ignoraram € até mestno se hostilizaram: a instituigio lic tla, a instituigéo Universitaria © a midia. A auroficgio comparece com grande’intensidade nnessas trés instincias, no sem muitos confltos. E mais, do ponco de vista da produgio, ela pode ¢ frequentemente retine nur mesmo sujeico diversas “fung6es” ou, antes, diversas méscaras profissionais: 0 escritor, 0 professor, 0 ensaista, © pensador. "A autoficeio 6 se tornou esse formidivel catalisador teérico em razo da indefinigio [flow] de que se cerca: eseritores, exiticos © vuniversicdrios nela encontram um terreno de entendimento [entente], ou antes de desensendimento [mévenrente], mas de um desentendimento produtivo” Auroficgio néo serd jamais ui género literirio e consensual, mas sempre um dispositive que nos libera a reinventar a medioctidade de nossas vidas, segundo 4 modulacio que eventual e momentancamente interesse: ora na pele do pocta, do romancista ou do dramaturgo, ora na pele do etitica, universitario ou néo, ofa na pele do jornalista. Etc. Mais uma ver, néo ha equivaléncia entre essas designagdes, mas todas sio modos da heteronomia criativa, fazendo com que sejamos sempre mais de um, mesmo ou sobretudo quando ostentamos um mesmo rosto, aparentemente una tinica feicéo. Um ilimo © maior desconforto com 0 velho-novo tetmo vai também muito além das fronteiras do mundo académico, Sem divida nos iilkimos tempos, 0 “eu” passou a acupar obsessivamente o espago da midia, fendmeno que foi muito bem descrito no inteligente livro de Paula Sibilia, O Show do ex? %® Seanelle, Jean-Louis. Oden est la séfexion su autofition? fn: Jeanelle, Jean-Louis; Viole Catherine (Dir). Genése er auojiction, op. cit, . 36. * Sibilia, Paula. Oshow do eu a intimidade como espetdeuto, Rio de Janeito: Nova Fronteire, 2008, 201 ‘Maésiss-Primas: Da Autobiografa ® Aurafiogio ~ Ou Vice-Versa Indagaria qual o interesse de se falar em nome do cu, no momento em que os egos se convertcram em mil celebridades por segundo. Se no final dos anos 1990 0 uso 0 abuso do “auto” incomodava, agora se tornou quase intolerdvel ouvir e ler um discurso que s6 sabe dizer “eu”. ‘Talvez hoje o maior prazer seja também o de poder dizer ele out ela, como defende Beatriz Sarl, em seu belo Tempo pasado.” Quando se tornou imperativo afirmar eu (penso, existo, falo..), dizer ele seria um bom modo de escapar a0 espitito da época - éeslocando-o. Quando tude virou escrita do eu, dos romances aos contos, das teses 0s ensaios, dos documentérios as correspondéncias virwuais, quem sabe 0 grande neresse seria voltar a falar na tetceira pessoa. Nao mais, todavia, como a narrativa cléssica, acreditando numa hipotética neutralidade, nio mais como o plural de majestade de um pretenso nés, mas sim o romanesco cle, que Roland Barthes, contradizendo a si mesmo, enuncia quando despudoradamente aceita falar de si por meio de biografemas, em Roland Barthes por Roland Barthes.” E 0 faz ficcionalmente, como personagem de romance. A maior aud:cia estaria em fazer uma autofiogéo na terceita pessoa, cspécic inquietantee estranha de “trés em um”: ele, ela em “mim”. E isso que arrisca a desconcer-ante narrativa de O Filho eterno, romance que se rornow um fiho peddigo, de Cristdvio Terra Resisti muito tempo a ler’ O Filho eterno, desconfiando de uma ficgio que cexplorasse os estigmas de uma erianga com sindrome de Down. Sinalizaria que ainda guardo cerca divida, embora considere que. feitara do livo tena dissipado parte da desconfianca. Mas nio de todo. Fui convencido @ ler por amigos que me anteciparam alguns desdobramentos da trama, 2 qual levaria o rotciro além do previsivel, ou seja, 0s softimentos de um pai, tendo que aprender a lidar com um filho portador da sirdzome no comego dos anos 80, momento em que as terapias para o caso estavam bem pouco desenvolvidas ¢ em que a deficigncia ainda era chamada preconceimosamente como “mongolismo”. % Sari, Beatriz, Tempo passado; cultura da mem6ria ¢ guinada subjetive. Trad. Rosa Freire Aguiar. S. Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte; Ed. da UFMG, 2007, © Barthes, Roland, Roland Barthes par Roland Barthes. In: Ocuvres completes 3, op et, p. 79-289. » ‘Tezza, Cristovio, Otho eterno, 8% 0d, Rio de Janeiro: Record, 2010 ‘Bvendo Nascimento SS | Duas coisas redobraram as dificuldades em dissipar o viés de auroajuda e de aurocomiseragao a posteriori que o livro contém, Por um lado, a obsessio do narradorautor com a nogio de “normalidade” e o equivalente adjetivo “normal”, plaveas que se reperem dezenas de veres a0 longo dla natraiva, sem que a insergao dentro de uma norma seja devidamente questionada mas apenas tangenciada como problema. Por outro lado, 0 assinaado recurso da erccira pessoa, um ee repetido cotiisicamente & exaustio — tal recurso mal disfarga a presenga obsessiva do eu. Rgocentrismo escandalosamente evidente nos pouces comentivios relativos a0 softimento da esposacme ¢ menes ainda aos sentimentos da itm, e mesmo da cmpregada. Como sublinhava Silviano Santiago ao caderno Mais, nurna resenba publicada bem antes que o livzo se tormasse o sucesso de extica ede pablico que veio ses, a auséncia jd nfo diria da vor mas do ponto de vista feminino, empobrecendo 1 narrativa." Todo 0 universo des diividas se concentrava nesse “eu-falo; logo existe”, sob os disfarces do “cle”. Como se nada mais existsse do que esse projeto de esctitor que € 0 retrato do narrador quando jovem. Finalmente, ¢ em terceito lugar, apenas com excegéo de tim momento, a narratva jamais assume o ponto de vista do maior interessado, 0 filho autisea, este olhar da fiontera, que daria ficeionalmence toda uma coloratura diferencial A vor nartativa, Cito 0 trecho em que iso ocorre de modo pontual, com alguns deslobramentos até o final: “Quando o filho se vé nas gagues Blmadas, o pai pens ~ que ele esta vendo? Em que dimenste perecbe asi mesmo?" Aqui o ele-narnador € outro mestmo, ¢ nin um simples avatar do eu. 0 Filho exerno & um romarce de formagio c de deformagéo. Formagio de tum escritor durante muitos anos fracassado todavia conhecido, e que 6 tex4 pleno reconhecimento justamente com esse livzo em que a deformagio constituciva do filho— causada pela triscomia genética ~ troure enfim o ambicionado sucesso. A “falha’ ou o “defeito de fubricaséo” constirutivos do outro ironicamente trazem ‘a sonhada vitéria de um eseritor que acumulari com essa fegio seis prémios de primeira categoria em concursos nacionais, A autoficsio se faz, porcanto, em dupla clave, entre um tempo “presente”, mas na verdade ja muito passido, pois decorre nos anos 1980, ¢ outro anterior, osanos 1970 da ditaduraem que viveu na © €f Santiago, Silviano. Cominhos txtuosos. Fotha de S. Paul, 2 set. 2007. Mai % Teaza, Cristivio. O filo eterno op. cits p. 189. 203 MautiasPritnas: Da Autobiograis & Astofieelo - Ou View-Vessa Europa como estudante ¢ trabalhador clandestino (mas hé cambém um cpissdia mais antigo, da adolescéncia no interior do Parana). © nome do autor nio & repetido dentro da obra, porém o atestado de autoficeio é dado pela coincidéncia dos livros que 0 personagem, futuro escritor reconhecido, publica e aqueles que de fato 0 esctitor Cristévio Tezza publicou, Assim, « formacao do escritor serd inclutavelmente maccada pelo sofrimento do pai com a “deformact ” genéticn do filho. Como se nesse caso nao fosse possivel a afirmagio do ditado, mas aperas a incerteza quanto a tal pai, qual filho. Porque para ser filho é preciso ter algo do pai no proprio queixo, nas expressées faciais, no jeito, ainda que de um modo totalmente outro, conforme uma das epigrafes do volume ~ a de Kierkegaard. Dentro do cédigo da dita normalidade, um filho com coordenagio motora reduzida e incapaz de plena autonomia, ainda que em tudo o mais detenka as caracreristicas de um set humano considerado normal, néo é exatamente um flho. Para et fillho, é preciso parecer, sem maiores deformidades ~a semelhanga da prole confirma a identidade dos pais, mas sobretudo do Pai, no regime falocéntrico em aque ainda vivemos ¢ que determina o cu dda narracgo Apesar da delicaders de algumas passagens, O Filho eterno despesdica uma maravilhosa opottunidade de expos, sob diversos Angulos, a aflig6es por {que passam todos os atores envolvidos nesse caso-imite de suposto desvio da normalidade. Ao se centrar nas angistias do autor-eseritor-narrador-protagorista, 6 livro encerra 2 autoficgio nos limites da afirmagio 3s avessas do eu, numa relagio especular com 0 autismo do filho, como aliés vem tematizado. O fato nao basta de também por em evidéncia 0 “autismo” de quem fala inflizm para abtit a nartativa em ditecio as paragens improviveis do outro, a néo ser por alguns reflexos de meméria. Se a dor persiste, € como um aguilho que confirma a existéncia de quem softe (0 pai), muito aquém da quase inexisténcia social daquele (0 filho) que esté do outro lado de uma invisivel fronteira: 0 asim batizada Felipe, 0 filho eterno. Os momentos mais belos, a meu ver, sio exatamente aqueles (poucos) em que se sublinha a tettralidade das relagbes sociais. Destacam-se, pois, as :microperformances, os teatros do eu! em suas dificuldades com 0 outro, sobretudo quando esse outro — Felipe ~ tende a reinterpretar a seu modo a teatralidace do Eyando Nascimento mundo. A performance é o discurso verbal ¢ corporal que assume esse teatro- mundo em relagio a0 qual o escritor nem de longe esti isento. O escricor de autoficcio seria, por definigdo, aquele que, 20 fizer coisas com palavras, performa sua vida como 0 teatro em que 0 outro (ou a ouera) tem vez'¢ vor, € em que fo protagonista pode ser destronado pelos supostos coadjuvantes. Para que finalmente, despojado de scus atavios, © monatca deposto (0 autos) sirva a quem deve mudo ~ 0 leitor. ara concluir, ciraria ainda um exemplo mais antigo de autoficcionalidade, por assim dizer antes da letra. Cioso da necessidade de deixar um testemunho acerca de sua formacao literdtia para a posteridade, José de Alencar escreveu aquilo que seria 0 primeiro capitulo de um livro pot vit. “Seria esse 0 livre de meu: livves' diz e tifa o autor de Iracema. Como e porgute sou romancista acabou sendo 0 tinico capitulo escrito, sob forma de carta dirigida « um amigo, dencro de um dos raros € mais interessantes cestamencos da literatura dita brasil Inscrevendo-se explicicamente no género da “autobiografa lcearia” (e expressio de Alencar, com toda sua ambivaléncia, sem que se saiba o que pesa mais, se 0 ‘adjetivo ou substantivo), 0 texto contém diversos elementos de auroficg4o. De forma que pode ser lide de moda dibio: tanto como a aurobiografia “veridics” de um auténtico homer de letras, quanto como sua autoficgio, um pequeno romance sob forma de ensaio. Nesse pequeno ¢ inacabado romance ensaistico, cujo tema principal & justamente a forma-romance, em especial © romance fomintico, em que Alencar se formou ¢ que desenvolveu a0 longo de sua vida ~ esse romance 8 revelia, autor empirico, narrador e protagonista trocam os papéis. A intertroca se toma possivel pela ampla ficcionalizagio dos fatos reais, ainda gue pagando tributo a uma ausoglorificagio propria ao genero autobiogréfico. Declara Alencar: “Estes faros jornaleiros [cotidianos], que & propria pessoa muiras ‘vexes passam despercebidos sob a monoronia do presente, formam na biografia do exritor a urdidura da tela, que 0 mundo somente vé pela face do matiz ¢ dos recamos fornatos]”* 3 Alencar, José de. Como e porque sou romancisi. 2. ed Campinas: Pontes, 2005, p. 12 bid. p. 12, geifos meus. seid ‘Matisss-Primast De Ausoblogratia & Autofcgso~ Ou Viee-Versa “Todavia, mais do que sit avaliagdo, em sentido nietaschiano, da instituigio literdria no Brasil do século ‘XIX, Esté ali registrado basicamente o gesto de ficeéo que € assumir uma carreira de escritor, desde 0s primeiros escritos da adolescéncia até as publicagées da spies testemunho, o denso texto de Alencar é uma maturidade. A ficrdo comega ai: querer ser escrtor. Ressalta a pobreza intelectual do meio cultural brasileiro da primeica metade do século XIX, até que se consiga cstabelecer o sistema miaimo de uma literatura com seus produtores e sua critica ‘especializada, jé na segunda metade. Haveria que aproximar esse libelo alencariano do Fave bomo, em que [Nietrsche faz um balango de sua vida por meio de suas obras, defendendo ambas da inépcia dos concemporaneos. Alencar se queixa, entre outras coisas, do siléncio em torno de seus primeiros livros, mas também de como a indiferenga inicial passou & hostilidade diante do sucesso. Precioso € também o registro em relacéo 40 leitor comum, néo-especializado, que para ele constitu um parimetzo decisivo de sua atividade No momento atual em que a literatura se vireualiza ¢ em que segue uma deriva que ninguém sabe aonde vai dar, a avaliagéo alencariana ¢ indispensivel para pensarmos o lugar hoje dessa estranha instituigéo chamada literatura, A diferenga da critica nillista, portm nao desprovida de algum acerto, de Flora Sussekind publicada no Prosa &¢ Verso, do jornal O Globo," vale apostar num porvir de nossa literatura no concexto da literatura mundial, em tempos de slobaliracio. Sem nos limitarmos is leis do mercado, cabe nos indagarmos 0 que de fato acontece quando alguém se sentae escreve ao correr da pena, ou a0 cotter do teclado. Que fccio ¢ essa que leva a dizer que se vai escrever um pocma, im romance, uma pega, uum ensaio, quando ninguém the pede. Em contrapartide, quando se ganha certa reputacéo, hd sempre quem pergunte pelo préximo livro, sinda que o formato livro esteja se refazendo, noutras paginas. Foi isso 0 que diagnosticou om entrevista recente 0 escritor norte-americano Philip Roth. % SGssekind, Flora, A critica como papel de bala. O Giobo, 24 de maio de 2010. Prosa & Verso, p. 1-2, % Roth, Philippe, Meo de perder talento lias Philippe Roth protagonista de“A Humithacio" Entrevista concelida a Cristina ibe. Folha de. Paulo, 22 de maio de 2010. Tusada, 7 ‘Evando Nascimenco Depois de publicar erés dezeras de livros, numa consagracéo internacional, Roth interroga com espanto seu empresitio, indagando-nos também, 0 que se tomnari a partir de agora a publicagio. Pergunta afiva para a qual ninguém tem nenhuma resposta. Cabe, no entanto, acreditar que as penas ¢ os teclados literirios comtinuatéo corrend>, pelo menos até que surja outro invento com mesmo grau de ficgio — ou, se quiserem, de auto ou de alterficgio. Rio de Janeizo, 10 de maio de 2010. Juiz de Fora, 26 de maio de 2010.

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