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II CONALI
Congresso Nacional de Literatura
A literatura & tempo: Cem anos de encantamento
ANAIS
João Pessoa – PB
Novembro de 2014
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 2
Diagramação:
Paulo Aldemir Delfino Lopes
ISBN: 978-85-6641-465-3
CDU: 869
APRESENTAÇÃO
Seis conferências:
Prof. Dr. Sergio Alcides Pereira do Amaral (UFMG): “Augusto dos Anjos e a poesia
moderna nesta América”
Prof. Dr. Álvaro Santos Simões Jr.– Universidade do Estado de São Paulo – UNESP Assis
- São Paulo:” A Crítica de Poesia nas Primeiras Décadas do Século XX”
Prof. Dr. Chico Viana – Universidade Federal da Paraíba: “Sobre a Modernidade de
Augusto dos Anjos”
1
Dra. em Linguística. Professora da UFPB e da UFC. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste –
Núcleo da Paraíba – ALANE-PB. Membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba. Membro da
União Brasileira de Escritores – UBE-PB. Membro da Associação Amigos de Augusto dos Anjos. Presidente da
Comissão Organizadora do II CONALI.
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Prof. Dr. Hildeberto Barbosa Filho - Universidade Federal da Paraíba – “Augusto dos
Anjos e História Literária”
Prof. Dr. Antônio Dimas – Universidade de São Paulo – “Augusto dos Anjos lido por
Gilberto Freyre”
Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin – Universidade Estadual Paulista – UNESP –
Araraquara – “Literatura, Discurso e Produção de Identidade”
Sete Mesas-Redondas:
José Américo entre o real e o ficcional;
Augusto dos Anjos: A tua sombra há de ficar aqui;
Ariano: a parte e o todo;
Ensino de língua e literatura: um diálogo possível?;
Benditos frutos da literatura popular nordestina;
Análise do discurso, Literatura e Mídia;
Produção de Sentidos na mídia e na literatura: abordagens discursivas
Poesia Brasileira
Literatura, Cultura e Tradução
Os trabalhos aqui apresentados mostram a diversidade de aspectos e visões dos
estudos literários e linguísticos, por professores, escritores, especialistas e estudantes de dez
estados de todas as regiões brasileiras, numa demonstração do interesse, da importância e da
oportunidade da realização de eventos como este.
Apenas como uma amostragem, temos textos sobre autores brasileiros e estrangeiros,
músicos, cineastas, filósofos e poetas populares, como, por exemplo: Augusto dos Anjos,
Ariano Suassuna, Carlos Drummond, Gilberto Freyre, Wirginia Woolf, Câmara Cascudo, F.S.
Key Fitzgerald, Kieron Gillen, Jamie McKelvir, Yeats, Samuel Beckett, Damien Hirst, Sean
O’Casey, Marion Carr, Gottfried Benn, Isaac Asimov, Antônio Olinto, Domingos Vieira
Filho, Felipe Alface, Eça de Queiroz, Gilvan Lemos, Leonardo Mota, Zé Vicente da Paraíba,
Caio Fernandes Abreu, Mary Shelley, Luiz Gonzaga, Ernesto Sábato, Romeu Correia, Manuel
da Fonseca, Onjaki, Luis Silva, José do Patrocínio, Cíntia Moscovich, Chico Buarque,
Antônio Gonsalves Teixeira e Silva, Júlia Lopes de Almeida, Lima Barreto, Renato Caldas,
Airton de Nogueira Monte, Luís Jardim, José Costa Leite, Antônio Klévisson Viana,
Guimaráes Rosa, Rubem Fonseca, D.H. Lawrence, Christine de Pizan, Arthur Rimbaud,
Annie Proulx, Paul Ricoeur, Kate Chopin, Micheliny Verunschky, Eduardo Strezi, Roberto
Pontes, Mário Quintana, Cora Coralina, Vinícius de Morais, Alphonsus de Guimarães, Da
Costa e Silva, Gregório de Matos, Maria do Socorro Silva de Aragão. Clarice Lispector,
Edgar Allan Poe, Florbela Espanca, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José
Américo de Almeida José Saramago, Ligia Fagundes Teles, Machado de Assis, Manoel de
Barros, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Rachel de Queiroz,
O lançamento de 25 Livros, 02 Revistas e 02 Folhetos de Cordel, além das
Homenagens a Ariano Suassuna e Manuel Monteiro, falecidos em 2014, e a programação
artístico-cultural complementaram as homenagens a Augusto dos Anjos nesse centenário de
seu Encantamento.
Assim, é com alegria e grande honra que a Coordenação Geral do II CONALI entrega
à comunidade paraibana e brasileira o resultado desses estudos, em forma de Anais do
Congresso.
Nossos agradecimentos especiais, em primeiro lugar a todos os participantes, que
atenderam ao nosso convite e vieram à Paraíba apresentar seus trabalhos, discutir com seus
pares a literatura brasileira e universal, lançar seus livros e confraternizar conosco nos
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momentos de lazer, na bela terra de Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, José Américo de
Almeida, Ariano Suassuna e de tantos outros paraibanos ilustres. Vocês é que, na realidade,
fizeram este Congresso.
Queremos agradecer à Universidade Federal da Paraíba, na pessoa de sua Magnífica
Reitora, Professora Margareth de Fátima Formiga Melo Diniz; ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFPB, através de sua Coordenadora Professora Socorro de Fátima
Pacífico Barbosa que aceitou sediar o Congresso; ao Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes da UFPB, na pessoa de sua Diretora, Professora Mônica Nóbrega, que nos apoiaram em
todos os momentos.
Um agradecimento especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES, do Ministério da Educação e Cultura - MEC, na pessoa do Professor
Dermeval da Hora Oliveira, que aprovou o nosso projeto, alocando recursos para o II
CONALI.
Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, na pessoa do seu
Magnífico Reitor, Professor Cícero Nicácio do Nascimento Lopes.
Merece destaque, ainda, a Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de
João Pessoa, na pessoa de seu Secretário, Professor Luís de Souza Júnior e a Secretaria de
Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Sapé, na pessoa de seu Secretário, Professor
Kildare André Lima de Freitas.
Finalmente queremos agradecer aos nossos colegas da UFPB, aos alunos de Pós-
Graduação em Letras e todos os funcionários da UFPB que nos apoiaram e vestiram conosco
a camisa deste evento, tão significativo para todos nós e para a Paraíba.
Queremos terminar com versos de nosso homenageado maior deste Congresso,
Augusto dos Anjos, em seu Centenário de Encantamento:
Conferências
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Três anos depois (1896), Cunha Mendes lançaria livro de versos com o título de Poemas da carne.
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O Parnasianismo, única forma de verso aceitável, desde que ainda não houve
poeta capaz de nos dar o verdadeiro naturalismo, ora pecando pela
exageração com Richepin, ora pela timidez com Coppée; nunca ficam
perfeitamente estabelecidos aqui, estiolando-se naqueles mesmos que a
aclimaram a arte teve um momento de elegância do verso, de qualquer
cousa de fino, rápido e brusco, como um fogo de vistas: a aclimação dos
delírios de Catulle Mendes e Banville, sendo a geração de 1880 a única que
se pode orgulhar disso.
Para Pereira da Silva, os poemas “de caráter abstrato” do Eu eram todos escritos sob a
influência de Ernst Haeckel, por cujos óculos Augusto dos Anjos tendia a ver a natureza
excessivamente “escura”.
Em sua conclusão, o crítico da Gazeta de Notícias declarou que o Eu seria a
“expressão viva de um estado d’alma” coletivo: o dos “espíritos voluptuosamente fascinados
pela ciência positiva”.
Conclusão
Assim como O Álbum (1893-1895) acolhera poetas que em meados da década de 1890
ainda cultivavam o realismo poético, não seria absurdo que no início do século XX, quando
Augusto dos Anjos produzia a sua obra, a assim chamada poesia científica pudesse ser
recolocada em circulação. A propósito, João do Rio, no vespertino Cidade do Rio, ainda
ansiava por uma poesia que correspondesse aos avanços científicos e à filosofia positivista do
seu tempo. A irreverência e a insubmissão de Gustavo Santiago davam testemunho de que
havia entre os jovens disposição para romper com os rígidos ditames da poesia parnasiana e
da crítica militante de então.
Ao estrear, Augusto dos Anjos foi logo identificado como herdeiro da poesia
científica, contemporânea do realismo poético, criticado por seu acentuado pessimismo,
condenado por suas extravagâncias, “palavras difíceis” e “incorreções” de vária natureza, mas
foi também valorizado pela originalidade e amplitude de seu pensamento, o que lhe permitiu
ser saudado como um “estreante de envergadura” e um poeta “complexo”, dotado de uma
nova visão de mundo.
Referências
CLAUDE. Crítica literária. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p.1, 5. col., 3 ag. 1899.
______. _______. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p. 2, 1. col., 4 set. 1899.
DUQUE-ESTRADA, Osório. Registro literário. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 1, 5.-
6. col., 17 jun. 1912.
MENDES, Cunha. Poema da carne. O Álbum, Rio de Janeiro, v. 1, n. 32, p. 252, ag. 1893.
MENESES, Nazareth. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 4, 1.-2. col., 14 jun. 1912.
OITICICA, José. A poesia dos novos. A Época, Rio de Janeiro, p. 7, 1.-3. col., 6 out. 1912.
P., M. [iniciais de Mário Pederneiras] O momento literário. Eu – versos de Augusto dos
Anjos. Fon-Fon, Rio de Janeiro, n. 27, p. 23, 6 jul. 1912.
SANTIAGO, Gustavo. Cruz e Sousa. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p. 2, 7. col., 26 abr.
1899.
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SILVA, Antônio Joaquim Pereira da. A poesia e a poética do Sr. Augusto dos Anjos. Gazeta
de Notícias, Rio de Janeiro, p. 3, 5. col., 7 ag. 1912.
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Chico Viana1
(UFPB)
Devido aos elementos novos que trouxe à literatura brasileira, não é de admirar que Eu
tenha chocado e ferido as sensibilidades ainda afeitas ao ideário parnasiano-simbolista. O
livro gerou um novo tipo de expectativa, abriu um outro horizonte temático-estilístico para a
poesia brasileira. Os poucos que viram isto saudaram-no com entusiasmo; os que não
perceberam a novidade limitaram-se a manifestar o seu desprezo ou espanto. Segundo Álvaro
Lins, Augusto “é, entre todos os nossos poetas mortos, o único realmente moderno, com uma
poesia que pode ser compreendida e sentida como a de um contemporâneo”.
O Eu surgiu num momento em que Parnasianismo e Simbolismo conviviam, mas a
rigor não se filia a nenhum desses estilos. Os historiadores terminaram incluindo-o no Pré-
Modernismo, já que ele constitui uma ponte entre os simbolistas e os modernos. Conserva dos
primeiros a musicalidade e o tom soturno, que lembra Cruz e Sousa. E tem dos segundos o
vocabulário prosaico, por vezes apoético, em que palavras de uso cotidiano (vinagre, tesoura,
sorvete) se alternam com vocábulos científicos. Sua modernidade está mais nisso do que no
uso de versos que não rimam ou na metrificação livre. Como em termos de métrica e de rima
Augusto era convencional, foi praticamente ignorado pelos modernistas de 22.
Apesar de versejar em decassílabos e utilizar-se do recurso das rimas – procedimentos
que os modernistas abominavam –, Augusto era moderno por adotar recursos que subvertiam
a nossa tradição lírica. Nele, ao vocabulário oriundo da filosofia e da ciência, aproveitado
como matéria poética, aliavam-se o mau gosto resultante da obsessão escatológica em seu
duplo sentido, o grotesco das imagens e, no domínio fônico, a dissonância que o fazia, por
exemplo, multiplicar aliterações e sinéreses. Aos acostumados com a cadência e a harmonia
parnasianas, o Eu vinha-lhes violentar os ouvidos com versos como estes, de “Monólogo de
uma Sombra”:
1
Chico Viana é doutor em Letras pela UFRJ e autor de “O evangelho da podridão; culpa e melancolia em
Augusto dos Anjos”.
http://www.bookess.com/read/17097-o-evangelho-da-podridao-culpa-e-melancolia-em-augusto-dos-anjos/
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Um dos exemplos típicos de alegoria barroca está nestes versos de Cristoph Männling,
que vê o mundo como “uma grande loja/ Um posto aduaneiro da morte/ Em que o homem é a
mercadoria que circula/ A morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador
consciencioso,/ E a sepultura, um armarinho e armazém credenciado.”. Sem nunca ter
possivelmente lido o poeta alemão, Augusto quase repete um dos termos dessa imagem, ao
afirmar que “a morte .../ é a alfândega, onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o
último imposto!”. “Posto aduaneiro” em um, “alfândega” em outro – efeito de sombrias
afinidades eletivas. Em ambos, a mesma ideia de que o imposto da vida é a morte, e de que
esse ninguém vai conseguir sonegar. Melhor aceitá-lo, afeiçoar-se a ele, conforme o eu lírico
de “Último credo”, que diz amar o coveiro, “ – este ladrão comum/ que leva a gente para o
cemitério”.
Se o homem evolui para a morte, o corpo marcha para se transformar em esqueleto –
em caveira. Daí outro traço característico do olhar alegórico, que é transpor a superfície
corporal e se concentrar nas vísceras ou, sobretudo, nos ossos. Estes constituem o espólio a
que a morte nos reduz. O esqueleto é concreção, limite, estágio último da “ultrafatalidade de
ossatura” a que estamos submetidos; a personagem do soneto “Decadência” constata que,
após haver perdido tudo, “... Só lhe restam agora o último dente/ E a armação funerária das
clavículas!”. Esse tipo de representação envolve também o corpo feminino, cuja sensualidade
exacerba a culpa do melancólico; Gustave Flaubert chega a confessar: “...A contemplação de
uma mulher nua me faz sonhar com o seu esqueleto”. E o próprio Augusto descarna o corpo
da meretriz, radiografando-lhe o ato sexual na irônica e grotesca imagem que se segue:
“Nesse espolinhamento repugnante/ O esqueleto irritado da bacante/ Estrala... Lembra o ruído
harto azorrague/ A vergastar ásperos dorsos grossos./ E é aterradora essa alegria de ossos/
Pedindo ao sensualismo que os esmague!”.
O soneto “Apóstrofe à Carne”, de Outras Poesias, é um dos que melhor exemplificam
a estética dissonante, segmentada e alegórica de Augusto dos Anjos. Nesse poema estão
presentes alguns dos tópicos preferidos do poeta, como o sentimento da morte próxima, a
antevisão da própria decomposição física, o julgamento negativo e moral da carne (sexual e
perecível) em confronto com o espírito, o desconforto com a hereditariedade (cujo veículo - a
conjunção carnal - o eu lírico rejeita). Eis o texto, que a seguir brevemente comentamos:
Antonio Dimas
(USP-IEB)
autores que exemplificam suas considerações: Carlos de Laet, Afonso Arinos, Lafcadio Hearn
e Augusto dos Anjos.
Pulando os demais e me concentrando apenas em Augusto dos Anjos, Gilberto aprecia
o poeta de Eu como carta com o endereço errado; desgarrada num meio que não podia ser o
seu destino. Por isto esse meio a rasgou: porque não a compreendia. (Tempo de aprendiz, v.
2; p. 79).
Nessa primeira consideração, o que se sobressai é o caráter nitidamente deslocado do
poeta, cujos versos não encontraram ressonância num meio despreparado para ouvi-lo, tônica
aliás, de boa parte da crítica que dele se ocupou. Num momento de nossa história intelectual,
no qual os resíduos do determinismo eram ainda fortes, Augusto dos Anjos mostrava-se
inadequado, porque sua poesia estava lastreada num arsenal vocabular nitidamente patológico
e avesso às louçanias parnasianas. Sua poesia voltava-se para a distorção repulsiva em vez de
celebrar a harmonia convidativa, como mandava a praxe literária de então. Mais para
Euclides da Cunha, enfim, que para Olavo Bilac.
Um poeta que - é paradoxal isso - repercutiu de modo assustador com suas 30 edições
em quase 50 anos, mas que foi entre nós carta com o endereço errado, afirma o cronista.
Num segundo momento, em artigo destinado a uma revista literária norte-americana
de aspiração internacional, The Stratford Journal (Boston, v. 2, n. 3, set. 1924) e recolhido,
anos mais tarde, em Perfil de Euclydes e outros perfis (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1944),
Gilberto Freyre avança na apreciação crítica e incide sobre a camada sonora dos poemas de
Eu, sobre sua sonoridade áspera:
O mundo para ele não era alegria de criação nem festa de renovação, mas
constante dissolução de vida. (p. 147)
Augusto dos Anjos não deu batalha às suas doenças. Entregou-se a elas.
Submeteu-se ao seu jugo. (p. 148)
A morbidez de Augusto dos Anjos alterava tudo que ele via e ouvia. (p. 149)
Augusto dos Anjos foi poeta mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Mais
pela análise do que pela síntese. (p. 149)
Augusto dos Anjos foi um místico que substituiu nos seus versos o latim
mole da Igreja pelo latim duro da história natural. Um latim com sotaque
inglês e com sotaque alemão. (p. 149)
Há nele alguma coisa que faz pensar em Euclides da Cunha. (p. 150)
Augusto dos Anjos não amou a natureza tropical. Afastou-se dela quanto
pôde. (p. 150)
Nenhum amor pela natureza tropical revela Augusto dos Anjos em seus
poemas. A natureza brasileira não o empolgou. (p. 151)
Augusto dos Anjos não soube nunca o que fosse alegria de sexo. (p. 152)
Isolo entre tantas afirmações uma que me interessa mais de perto, não por causa de sua
forma categórica, mas sim porque seu sumo haveria de se constituir em um dos temas
favoritos de Gilberto Freyre em sua carreira posterior: o ajustamento simbiótico entre o
homem e o seu meio. Dessa relação harmoniosa ou desajustada, Gilberto Freyre daria
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demonstração convincente e sensual, anos mais tarde, em “A cana e a água”, um dos seus
ensaios de Nordeste (1937).
Precocemente às turras com essa correlação homem-natureza, o jovem estudante de
Pernambuco assinala o descaso e a indiferença do poeta Augusto dos Anjos pela natureza que
o rodeava. Repetindo:
AA não amou a natureza tropical. Afastou-se dela quanto pôde. (p. 150)
Nenhum amor pela natureza tropical revela Augusto dos Anjos em seus
poemas. A natureza brasileira não o empolgou. (p. 151)
Exemplos não faltam, retirados da passagem em que o soneto clássico de Augusto dos Anjos,
“Debaixo do tamarindo”, serve de apoio às explicações do cronista: “à sombra do tamarindo,
o menino passava horas esquecidas” (p. 151); fora do poeta “existia apenas o seu eu e a sua
sombra (p. 151); uma sombra enorme que se confundia com a do pai morto” (p. 151).
Recupere-se, por inteiro, o soneto:
Debaixo do tamarindo
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei biliões de vezes vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
Na exaltação dessa árvore mais caseira que do mato (Perfil de Euclydes, p. 151), o
poeta decide encará-la como cofre inerte, no qual são abrigados registros e segredos. Essa
escolha esvazia a árvore, portanto, de sua eventual imponência e utilidade. Sua vida se vê
adulterada, então, porque aquela massa vegetal não se impõe mais como manifestação da
natureza e, sim, como artefato transformado e desbotanizado. Por causa de sua envergadura, o
tamarindo zeloso retém dentro de si um passado coletivo - o da nossa flora - e um passado
individual - o da família do poeta. Ambos fossilizados, no entanto. Inteiramente despida de
seus atributos botânicos, a frondosa árvore perde sua condição original. Embora destituído de
seus atributos naturais e botânicos, o tamarindo imponente conserva, no entanto, sua
capacidade de abrigo, de armazenamento, de proteção, porque encarcera a sombra do poeta.
Diz ele: A minha sombra há de ficar aqui.
Ora, a sombra é impalpável, fugidia e imaterial. É leve e escorregadia, por natureza.
Nesse contraste entre a árvore e a sombra, assoma um descompasso evidente de forças, uma
vez que tamanha massa física supera e encobre, de longe, a fragilidade dessa sombra
individual e já inofensiva, por estar morta.
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Caudatário da palavra sombra há uma récua de outras que a ela se associam. Uma
simples inspeção em dicionário analógico nos sugeriria outros termos como fumo, névoa,
sonho, espectro, fantasma, assombração etc. Em suma, um vocabulário mais propício a
Tânatos do que a Eros.
Essa obscuridade, esse gosto pelo sombrio não é difícil de se perceber em nosso poeta.
Isso é óbvio, é até mesmo estridente. O curioso e paradoxal é que Gilberto Freyre, em pleno
aprendizado juvenil e imerso em vivência pessoal e acadêmica no estrangeiro, viesse a se
deter nessa poesia exatamente no momento em que organizava seu catálogo de critérios, como
já disse acima, para avaliação das mais variadas experiências intelectuais e artísticas. Daí não
parecer abusivo pensar-se esta leitura como exercício de contraste para afirmação do gosto e
construção de parâmetros de valor.
Escapando deste reduto imediato, dedicado a Augusto dos Anjos, e olhando para os
lados, verifica-se que esses valores emergiam, devagar, nos textos que Gilberto ia dedicando a
Cícero Dias ou a Francisco Brennand, pintores pernambucanos que lhe serviam de pauta para
suas reflexões entre a produção artística e o meio circundante do artista.
Não me cabe estender-me aqui mais que o razoável. Mas, à guisa de argumentação,
permitam-me escolher o exemplo de Brennand para ilustrar a construção do ideário crítico de
Gilberto, elaborado sempre em cima da arte local, nacional ou estrangeira.
Num dos artigos de seu Vida, forma e cor (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962), Gilberto
Freyre toma Francisco Brennand como assunto e, em determinado momento, expõe, de modo
nítido e indiscutível, sua percepção das relações entre a arte do Nordeste e a fartura solar deste
entorno.
ainda ainda nesse começo de século. Muito menos o determinismo ecológico, garante-se ele
em seu ensaio “A propósito de pintores e das suas relações com a luz regional”:
Trago este exemplo à baila como recurso de contraste para comentar o segundo ponto
específico em que o autor de Casa Grande & Senzala toca, quando avalia nosso poeta
paraibano.
Já no final de seu artigo sobre Augusto, Gilberto diz:
Morreu Augusto dos Anjos aos trinta anos. Desde os vinte e poucos anos que
ele via a sua “sombra magra” a “caminho da Casa do Agra”, a velha casa
funerária do Recife imortalizada num dos seus poemas mórbidos. (Perfil de
Euclydes..., p. 154)
Como se fossem duas pontas de enorme e extenso novelo, junto a passagem acima
com outra, supostamente escrita em 1923, mas publicada muitos e muitos anos depois em
Tempo morto e outros tempos (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975), as memórias de Gilberto.
Nelas, ao evocar o gosto paterno pelos almoços de Alfredo Freyre na Casa Agra,
velho estabelecimento funerário do Recife, Gilberto repele, mais uma vez, o gosto pelo
escuro, pelo noturno, pela falta de claridade. Recorda-se ele:
um cânone intelectual próprio, Gilberto Freyre escolhe um poeta de sua região, reconhece-lhe
os méritos poéticos, aproxima-o do expressionismo alemão (Perfil de Euclydes ... , p. 149),
mas não endossa seu distanciamento telúrico e menos ainda seu gosto pelo macabro e pela
ausência de cor. De forma subliminar, “A nota sobre Augusto dos Anjos” não é tanto sobre
Augusto dos Anjos, mero pretexto temático, parece. Ainda que justa, a apreciação crítica
parece apenas recurso. O que essa nota sugere e encarece vai bem além dela. Sua inserção
numa revista de alcance internacional pode camuflar o desejo de marcar posição do jovem
autor, já se preparando para traçar os contornos de uma estética alternativa, fora do eixo EUA-
Europa.
Sob a camada evidente e patente dessa apreciação, o que essa nota encaminha é uma
postulação, embora latente, de fé juvenil a favor da multiplicidade e do policromatismo,
suscetível de tomar forma e de se encorpar anos mais tarde, na extensa obra do historiador de
nossa cultura.
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A história literária nem sempre caminha no compasso das obras, sobretudo quando
estas detêm marcante singularidade. No relevante escopo de contextualizar historicamente
obras e autores, classificando correntes, identificando grupos e movimentos, enfim,
documentando e selecionando, a história literária não raro passa ao largo de certas
personalidades, privilegiando o fenômeno comum da expressão ficcional e poética, ao mesmo
tempo em que engaveta ou obscurece certas vozes, numa indiferença interpretativa e
axiológica que somente a crítica, com a metodologia teórica e a análise das dicções
individuais, é capaz de equacionar e corrigir na sua intrínseca função pedagógica.
Caso curioso é o de Augusto dos Anjos, com o Eu e outras poesias, que, a partir da
terceira edição, de 1928, a cargo da Livraria Castilho, transforma-se em fenômeno editorial,
uma vez que os jornais da época chegaram a noticiar 5500 exemplares vendidos em menos de
dois meses ou 3000 volumes, em menos de 15 dias, conforme assinala Ângela Bezerra de
Castro, no ensaio “A travessia do Eu”, que introduz a edição comemorativa dos 100 anos da
obra, em publicação conjunta da Academia Paraibana de Letras e do Senado Federal, em
2012.
O fato parece não ter tido a devida repercussão na sensibilidade dos historiadores.
Uma rápida visada em algumas histórias literárias publicadas na primeira metade do século
XX sinaliza para o descompromisso e o descaso com que tratam a poesia de Augusto dos
Anjos, quando, mesmo que fosse sob o prisma do espanto e do desconforto, já havia uma
fortuna critica considerável acerca do poeta do Pau d `Arco. Umas há que nem mesmo
mencionam o nome do poeta, como a Pequena história da literatura brasileira (1919), de
Ronald de Carvalho, e a História da literatura brasileira (1939), de Bezerra de Freitas. Esta,
no entanto, no capítulo sobre o simbolismo, refere os nomes de dois paraibanos; Carlos Dias
Fernandes e Pereira da Silva.
José Osório de Oliveira, por sua vez, na História breve da literatura brasileira (1934),
regista o nome do poeta na “Cronologia” final, com data de nascimento e de morte, porém,
sem tecer nenhuma consideração de ordem reflexiva a respeito de sua poesia ao longo dos
capítulos anteriores. Já Afrânio Peixoto, em suas Noções de história da literatura brasileira
(1931), também no capitulo final, denominado “Nomenclatura”, escreve este breve registro:
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a “clareza das ideias”, embora a estranheza dos motivos e da inspiração, assim como sua
inegável singularidade.
O problema básico de Nelson Werneck Sodré reside evidentemente na falta de
comprovação com a matéria prima dos próprios poemas e versos de Augusto. A ideia de que o
poeta, à semelhança de José Lins do Rego, com todo o ciclo da cana de açúcar, faz uma
espécie de radiografia poética da decadência de uma classe me parece pertinente e bastante
sugestiva para novas e fecundas leituras de sua poesia. Certamente mais fecunda do que o
lugar comum das discussões em torno das escolas e das vertentes poéticas e estilísticas que
poderiam contemplar a singularidade de sua dicção.
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Doutora em Estudos Literários; professora da UFPB; leitora votante da FNLIJ.
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É ainda Staiger (1975: p.55) quem nos lembra de que “o passado como objeto de
narração pertence à memória. O passado como tema lírico é um tesouro de recordações”.
Alguns críticos vislumbraram a presença da natureza em diferentes formas nos poemas
de “Quarto minguante”, preferimos caminhar ao encontro das recordações, do passado
abrangendo poemas que remetem à infância, à idade adulta e à velhice. A morte do pai,
quando o escritor contava doze anos de idade, foi um golpe muito duro para o menino que
estava começando a descobrir o mundo. O poema “A nuvem comovida” remete a esse
momento da infância:
Neste poema, o poeta relembra o dia da morte do pai. Esse fato marcante da vida do
menino José Américo está registrado no livro de memórias – “Antes que me esqueça”. José
Américo estava com doze anos. Muitos anos depois, na idade provecta, transformou a dor
daquele momento em poesia. Utilizando-se de uma linguagem metafórica, coisas inanimadas
são personificadas, como nestes exemplos: “Toda casa chorou alto” e “Doeu-me o sono dos
quartos”.
Quanto ao “menino antigo”, o sentimento de perda do ente querido se revela,
inicialmente, com os olhos enxutos sem compreender bem a morte do pai, só depois, passado
o instante de perplexidade e de espanto, ele chora e chora tanto que a natureza se associa a seu
pranto, como podemos constatar nesses versos:
Vale lembrar aqui o poema “Lágrimas de cera”, de Raul Machado, poeta paraibano,
que, ao relembrar a morte da noiva querida, se utiliza da mesma imagem poética:
Referências
ALMEIDA, José Américo de. Quarto Minguante. 2 ed. João Pessoa: Fundação Casa de José
Américo, 1994.
______. Antes que me esqueça. 3ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005.
______. Discursos do seu tempo. 3ª ed. João Pessoa: Interplan [196-]
BARBOSA FILHO, HIldeberto. Arrecifes e Lajedos: Breve Itinerário da Poesia na Paraíba.
João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
______. José Américo de Almeida e a Poesia de Quarto Minguante. João Pessoa: Fundação
Casa de José Américo, 1994.
Staiger, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
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O ROMANCE AMERICISTA
Introdução
1
Alceu Amoroso Lima. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 25.
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Em 1901, aos 14 anos José Américo é levado pelo tio, Padre Odilon Benvindo de
Almeida, para o Seminário da Paraíba, onde permaneceu por três anos, iniciando o Curso de
Humanidades. O tio Padre foi muito importante na formação de José Américo.
Em 1904, José Américo deixa o Seminário e faz, de uma só vez, todos os
preparatórios no Liceu Paraibano. No mesmo ano matricula-se na Faculdade de Direito do
Recife.
José Américo de Almeida formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade
de Direito do Recife em 1908, aos 21 anos de idade.
Foi Promotor Público, Procurador-Geral do Estado da Paraíba, Consultor Jurídico do
mesmo Estado e Ministro do Tribunal de Contas da União.
A vocação literária de José Américo de Almeida revelou-se aos vinte anos quando em
1907 – juntamente com Simão Patrício e Eduardo Medeiros edita, em Areia, o jornal
CORREIO DA SERRA.
Nesse mesmo período publica sonetos no Jornal A UNIÃO, diário da Capital.
José Américo escreveu romances, relatórios, ensaios, crônicas, discursos e memórias.
Algumas das obras de José Américo vêm tendo novas edições e A BAGACIERA
possui versões em Inglês: Trash; Espanhol: La Bagacera e Esperanto: La Bagasejo.
Escreveu, também, em diversas revistas da Paraíba e do Brasil, como Era Nova, A
Novella e O Cruzeiro. Deu entrevistas em revistas como Manchete, Veja e em jornais,
algumas delas que abalaram a República, como a entrevista concedida a Carlos Lacerda.
2
ALMEIDA, José Américo de. Apresentação. In: Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1976, 171p., p. 11.
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O romance escrito por José Américo e que o tornou famoso foi A Bagaceira. Falando
sobre sua condição de como se tornou romancista, diz o autor:
3
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, 171
p., p. 25 - 167-168).
4
Tristão de Ataíde. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 13-14.
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José Lins do Rego, contemporâneo e amigo de José Américo disse sobre A Bagaceira:
Assim, toda a produção literária de José Américo, que daria milhares de análises, sob
os mais variados aspectos, será aqui representada apenas por seu romance A Bagaceira.
Alguns autores consideram romances as Novelas, como as chamou José Américo,
Reflexões de uma Cabra, O Boqueirão e Coiteiros, classificação que seguimos o autor,
como Novelas.
A linguagem de A Bagaceira
Este trabalho trata das variações regionais populares do autor paraibano José Américo
de Almeida. O estudo baseia-se nos princípios teórico-metodológicos das ciências da
linguagem Dialetologia, Sociolinguística e Etnolinguística, analisando o léxico do autor.
Sabe-se que todas as variações e mudanças linguísticas são evidenciadas, imediatamente, pelo
léxico, uma vez que ele acompanha a mobilidade sociocultural da comunidade. As relações
entre língua, sociedade e cultura são muito fortes e a língua pode revelar o sentir e o pensar da
sociedade e de um povo, seus valores culturais e sua visão de mundo. O autor aqui estudado
representa, em seus personagens a língua, a sociedade e a cultura do povo paraibano.
Se partirmos, como pretendemos, das variantes regionais, no caso, as paraibanas, e
direcionarmos nosso olhar para a perspectiva cultural desses falares poderemos afirmar que a
linguagem utilizada nessas variações, marca ou é marcada pelos aspectos socioculturais que
revestem essas realizações.
Em se tratando de falar regional nordestino da Paraíba, o léxico e a fonética são os
aspectos onde mais se percebe as diferenças entre esses falares e os de outras regiões
5
João Ribeiro. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A
União, 1977, p. 38.
6
José Lins do Rego. (In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 55.
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brasileiras. Aqui trataremos dos aspectos léxicos do falar paraibano, que é uma marca dessa
cultura regional.
Como corpus para esta análise utilizaremos itens lexicais da Linguagem Regional da
Paraíba na obra de José Américo de Almeida, autor paraibano, que, apesar de erudito, usou
nos personagens de sua obra a linguagem do povo simples e muitas vezes não escolarizado de
nosso Estado.
O próprio autor diz:
A língua nacional tem rr e ss finais... Deve ser utilizada sem plebeísmos que
lhe afeia, a formação. Brasileirismo não é corruptela nem solecismo. A
plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir [...].7
Análise do corpus
7
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1987, 215 p. p.2.
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Aspectos Léxicos
8
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1987, 215 p. p.2.
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Falar Regional-Popular
Brote - bolacha grande e dura. “Deitavam-se a elas nos fundos das bodegas por um rabo
de bacalhau ou um brote duro”.
O termo brote foi introduzido no vocabulário nordestino numa adaptação da palavra
holandesa brood (pão), durante o período da dominação holandesa no nordeste. Apenas
Horácio Almeida registra o termo, mas com outro sentido.
Bangalafumenga – João – ninguém, indivíduo sem importância. “Ela não dança com
bangalafumenga daqui”.
O dicionário de (HA) registra com o mesmo sentido e (CF) registra: banga-la-
fumenga.
Cruviana – friagem, frio intenso. “Você fala de mim e treme de frio, que nem eu [...]. Que
cruviana”.
Dos dicionários consultados, (AB), (HA), (CF), registram, outros registram com
sentido semelhante.
Andar com uma mosca na orelha – estar suspeitando de alguma coisa. “Papai já anda
com uma mosca na orelha, é capaz de fazer uma das dele”.
Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão.
Acatitar os olhos - arregalar, fixando os olhos. “Acatitou os olhos e escumava, como juá”.
Expressão registrada apenas por Horácio Almeida na variante encatitar.
Andar de capas encouradas - disfarçado, dissimulado, mascarado. “Há gente que anda de
capas encouradas; quando menos se pensa. Bota as mangas de fora.”.
Nenhum dos dicionários consultados registra esta forma.
Calcanhar – de - Juda – Lugar muito afastado, muito distante. “Eu arrenego da bondade
deste calcanhar-de-juda.
Os dicionários de (HA), (AB), registram com sentido semelhante.
Dar de mamar à enxada – apoiar-se no cabo da enxada. “Só vive dando de mamar à
enxada.”
Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão.
Cabra danado,
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Minha senhora,
De que chora este menino?
Chora de barriga cheia
Com vontade de apanhar...
Ou ainda numa trova de Fabião das Queimadas, o violeiro puxava a alma com os
dedos:
Pirunga improvisou:
Não se vê um olho-d’água,
Quando há seca no sertão
E enchem-se os olhos d’água,
Quando seca o coração...
Considerações Finais
publicados sobre sua obra, em vários níveis, abordando novos e diferentes aspectos, desde artigos e
ensaios até teses de doutorado.
Concordamos com Tritão de Athaíde quando diz sobre A Bagaceira:
E todo o livro é escrito em brasileiro ora culto, ora bárbaro, mas sempre em
brasileiro, sem transição brusca artificial entre a linguagem dos que sabem
e a dos que não sabem. Uma língua só e nova, em todas as suas gradações.
De um sabor e de uma vida admiráveis.9
Referências
ALMEIDA, Horácio de. Dicionário popular paraibano. Campina Grande: Grafset, 1984.
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1976,171 p.
______. A Bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 215 p. p.2.
ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. Cartilha literária José Lins do Rego. João
Pessoa: FUNESC, 1990.
______. Glossário aumentado e comentado de A Bagaceira. João Pessoa: A União, 1984.
ATHAÍDE, Tristão de. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977.
______. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 23ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1987.
BARBOSA, Maria Aparecida (1998): Relações de significação nas unidades lexicais, em:
______. O léxico e a produção da cultura: elementos semânticos. I ENCONTRO DE
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DE ASSIS. Anais. Assis; UNESP, 1993.
CLEROT, L.F.R. Vocabulário de termos populares e gíria da Paraíba: Estudo de
glotologia e semântica paraibana. Rio de Janeiro: s. ed. 1959.
FERREIRA, A. Buarque de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
LIMA, Alceu Amoroso. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977.
9
ATHAIDE, Tristão. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987,
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Escrever sobre José de José Américo de Almeida é sempre difícil porque José
Américo “é um monumento vivo dele mesmo” como disse o escritor Juarez da Gama Batista
em entrevista a Aspásia Camargo publicada no livro O nordeste e a política, 1984. Fui
Diretora do Departamento de Documentação e Arquivo da Fundação Casa de José Américo e
primeira arquivista daquela Casa, quando iniciei em 1981 os trabalhos de implantação e
organização do Arquivo de José Américo de Almeida, com documentos espalhados por toda a
Casa logo após a sua morte, em março de 1980. Naquela Casa trabalhei com afinco durante
23 anos. A documentação do Arquivo de José Américo é de uma riqueza extraordinária para a
história da Paraíba e do Brasil e está custodiada na Fundação Casa de José Américo.
Por ocasião do II CONALI-Congresso Nacional de Literatura com o tema A literatura
& tempo: Cem anos de Encantamento, em homenagem aos cem anos de morte de Augusto
dos Anjos, realizado no período de 16 a 19 de novembro de 2014, na cidade de João Pessoa,
as pesquisadoras e professoras Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e
Ana Isabel de Souza Leão Andrade, que há vários anos vem realizando trabalhos em conjunto
sobre Augusto dos Anjos e atualmente escrevendo o livro “José Américo de Almeida: uma
fotobiografia”, se reúnem nessa mesa redonda intitulada “José Américo, entre o real e o
ficcional” para apresentar temas que falam sobre José Américo. Para mim coube falar de José
Américo: o político. O tema é muito abrangente, mas, me deterei fazer uma pequena
abordagem.
José Américo de Almeida nasce às duas da madrugada de uma sexta-feira, 10 de
janeiro de 1887, no Engenho Olho d’Água, município de Areia, Estado da Paraíba. Filho do
casal Ignácio Augusto de Almeida e Josepha Leopoldina Leal de Almeida. É o quinto filho de
onze irmãos. Aos 11 anos de idade falece o seu pai Ignácio e José Américo aos 12 anos foi
morar no engenho na cidade de Areia com seu tio paterno, o vigário Odilon Benvindo que o
1
ALMEIDA, José Américo de. In: Discursos do seu Tempo. A hora das consciências, 1963. p.147. João
Pessoa:Iterplan, [s.d].
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assume com as funções paternas. Mesmo contra a vontade de José Américo aos 14 anos ele é
enviado para o Seminário com a finalidade de seguir os passos de seu irmão mais velho,
Inácio e permanece por três anos. Abandona o Seminário por não ter vocação para o
sacerdócio. Em entrevista a Aspásia Camargo disse José Américo: “Eu nunca pensei ser
Padre; fui coagido. Quando estava no Seminário sonhei coisas de menino.” (CAMARGO,
Aspásia et.al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.71)
Fez de uma só vez os estudos preparatórios no Liceu Paraibano. Os exames do Liceu
Paraibano nessa época eram o que se chamava jubileu. No mesmo ano, 1904 matricula-se no
Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito do Recife e recebe do titulo de
Advogado em 1908 com 21 anos de idade. Foi político, escritor e advogado. Como político
assumiu vários cargos importantes na vida nacional: Secretário Geral do Estado da Paraíba,
Secretário do Interior e Justiça e de Segurança Pública. Interventor do Estado da Paraíba,
chefe do Governo Central do Norte, Ministro da Viação e Obras Públicas por dois mandatos,
Candidato à Presidência da República em 1937, Senador, Governador da Paraíba eleito em
1950.
Ignácio (pai de JA) Josepha(mãe de JA) Casa onde nasceu José Américo
Iniciação Política
escola e também compõe letras para hinos da tradicional festa da Conceição da cidade de
Areia. Funda, na cidade de Areia, com Simão Patrício e Eduardo Medeiros o jornal “O
Correio da Serra”.
Em 1907, na cidade de Areia, José Américo inicia a sua trajetória política. Era ainda
acadêmico, quartanista de Direito, e juntamente com seu primo Antônio Simeão Leal já se
filia ao partido que era chefiado pelo Senador Gama e Melo, partido de oposição ao seu tio e
padrinho Monsenhor Walfredo Leal, então presidente do Estado da Paraíba. Ambos apoiaram
a candidatura dissidente de Gama e Melo. O partido perdeu a eleição e a dissidência levantou
sua bandeira. A briga com o tio e o partido oficial quase o induz a emigrar para o Rio Grande
do Sul deixando a política, mas a família insiste para que fique na Paraíba. Pouco tempo
depois é nomeado promotor em Sousa em pleno sertão paraibano.
E, em 1915, José Américo volta a se envolver nos conflitos entre as facções políticas
do seu Estado, na cidade de Areia com a ruptura entre Epitácio Pessoa, líder ascendente de
Walfredo Leal, herdeiro político do ex-Governador da Paraíba Álvaro Lopes Machado. José
Américo apoia seu Tio Walfredo Leal contra Epitácio Pessoa.
Em entrevista a Aspásia Camargo José Américo diz: Mas aberta a luta fui dos mais
aguerridos. (CAMARGO, Aspásia et al. . O nordeste e a política: diálogo com José Américo
de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.25)
Destaca-se como figura de proa do walfrederismo, graças a ferinas polêmicas contra
os epitacistas divulgadas na imprensa. Mesmo assim, Epitácio Pessoa admira os discursos do
jovem José Américo quando estava no cargo de Procurador. O cargo de Procurador-Geral do
Estado era um cargo político e José Américo, mesmo contrário ao governo, continua
exercendo essa função por mais alguns anos. Seu saber jurídico estava acima das querelas
políticas.
José Américo enquanto estava no cargo de Consultor Jurídico, nomeado por João
Pessoa, merece o seguinte elogio de Epitácio Pessoa: “Estou informado de quanto tem sido
brilhante e proveitosa a sua colaboração no cargo de Consultor [...] não vai nisto um simples
cumprimento mas o reconhecimento de uma verdade por todos proclamada” (CAMARGO,
Aspásia et al . (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo de Almeida: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 226). Nesse período o Presidente do
Estado da Paraíba Solon de Lucena sabedor de seu interesse pelos estudos paraibanos
encomenda a José Américo para que faça um inventário sobre o meio geográfico e social do
Estado, do qual resultou no livro: “A Paraíba e seus Problemas”. Este livro trata dos
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problemas nordestinos sobretudo a seca, livro que veio a ser publicado com a 1ª edição em
1923. Atualmente já está na quarta edição e mais a edição especial publicada pelo Senado
Federal. Este tema foi à tônica de suas gestões políticas futuras. Esta obra segundo José
Américo, “tinha como objetivo expressar ao Senhor Epitácio Pessoa o reconhecimento da
Paraíba pelos benefícios outorgados como solução dos problemas das secas... e perpetuar
num livro a história desse esforço redentor.” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a
política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1984. 579 p.,
p.28)
Secretário Geral
Em 1928, selada a Aliança entre walfredistas e epitacistas, desde que Walfredo Leal
apoiara Epitácio Pessoa para Presidente da República, o presidente do Estado, João Pessoa
que era sobrinho de Epitácio Pessoa, convida, José Américo, com 41 anos de idade, consultor
prestigiado, próspero advogado, e escritor já reconhecido, para ocupar a pasta da Secretaria
Geral do Estado. Esse convite ocorre poucos meses após o lançamento do livro “A bagaceira”
atualmente com 44 edições. Mesmo afastado da política José Américo, por não concordar
com alguns procedimentos desenvolvidos na época, aceita o convite feito por João Pessoa que
desejava fazer uma reforma política no Governo. Sobre o assunto, José Américo comenta em
entrevista a Aspásia Camargo que teve o seguinte diálogo com João Pessoa: “[...] Por que me
convida? O que vai fazer lá? Ele me respondeu: Vou dar uma “vassourada.” (CAMARGO,
Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro
Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.115 ). A reforma foi realizada e este ato fez com que João
Pessoa se tornasse impopular por um bom período.
Por sugestão do próprio José Américo, o Presidente João Pessoa desmembra a
Secretaria Geral do Estado, criando a Secretaria do Interior e Justiça e a de Segurança Pública.
A princípio, José Américo é nomeado Secretário do Interior e Justiça, depois é acionado pelo
próprio João Pessoa para ocupar a segunda pasta- Secretária de Segurança Pública.
Deputado Federal
Com o apoio de João Pessoa, foi candidato a Deputado Federal pela Paraíba. Eleito
nas eleições de março de 1930, com a maioria de 28 mil votos, teve seu mandato depurado
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com toda a bancada situacionista da Paraíba e de Minas Gerais, em favor de um candidato que
contava apenas com pouco mais de 3 mil votos. Isto ocorre como reação contra a Aliança
Liberal de que fazia parte. Foi um episódio de muita decepção para José Américo. Narrando
os fatos em entrevista a Aspásia Camargo sobre que ele mesmo chamou de “A degola”, diz:
[...] deixei a Secretaria do Interior e fui o deputado mais votado da Paraíba, com 28.000
votos. Mas organizaram uma junta apuradora inteiramente facciosa. Eleito, vim para o Rio,
mesmo sabendo que era tempo perdido. Da maneira como agia a Comissão de Poderes, vi
que ela era inteiramente facciosa, porque chegaram a mudar os seus membros. Chequei aqui
e fui depurado, com toda a bancada situacionista da Paraíba e a mineira. (CAMARGO,
Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 579 p., p. 136-137).
Ainda sobre a eleição diz: Comecei acompanhando os trabalhos de apuração que me
encheram as medidas. Não pude suportar a farsa: só voltei para um desagravo. Demócrito de
Almeida um dos candidatos a deputado, avisou-me que tinha sido revistado, à entrada do
edifício. Tomei-me de tal revolta que corri até lá e penetrei armado, sem me deixar
desfeitear. Ainda subi e lavrei meu protesto. [...]. Vi João Pessoa pálido de cólera. Havia um
brilho estranho em seus olhos. E levantou um protesto que era uma objurgatória retumbante
contra os que tinham traído o seu gesto romântico. (ALMEIDA. José Américo de. O ano do
nego. 2 ed., João Pessoa: A União 1978, 245 p., p. 59-61).
Pergunta Aspásia: - Quando o senhor saiu da Paraíba ainda não estava diplomado?
— Não. Mas eu cheguei, e Epitácio Pessoa resolveu, aqui, que Tavares Cavalcanti, que era
candidato a senador, falasse por todos diante da Comissão de Verificação de Poderes. Mas
aconteceu que nós fomos surpreendidos. Um dia disseram: “É hoje”. Eu então disse a
Tavares: “Chegou a ocasião”. Ele falou: “Não tenho nenhum documento feito”. Respondi:
“Bem, então vou dizer desaforos. Não tenho documentos, não deu tempo me documentar: vou
dizer desaforos”. Fiz um discurso terrível. [...].
O relator me explicou: “É a política, são coisas da política...” E eu respondi: “E é
isso a política? Política, para mim, é uma coisa direita...”. (CAMARGO, Aspásia et al. O
nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984, 579 p., p. 137).
- E depois de tudo isso, como foi sua volta à Paraíba?
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Diz ele: — Fiquei decepcionado com a política. [...] Mas fui ficando no Rio, até que
João Pessoa me mandou chamar... [...] porque a resistência do governo da Paraíba contra a
revolta estava sendo destruída: tinham desertado trezentos homens numa única semana.
Cheguei lá e ele me pediu para voltar. Eu disse: “Não. Estou desencantado, deixe-me
voltar para a minha banca de advogado”. Ele disse: “Eu quero mais um sacrifício seu. Não
será mais secretário do Interior. Você vai para a Secretaria de Segurança”. Mandou que o
secretário de Segurança pedisse demissão – eu relutei muito – e me nomeou. [...]....”.
(CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 579 p., p. 140).
contrários ameaçados pela fúria popular. (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo
de Almeida: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 215).
A Revolução de 1930
Diante dos fatos Aspásia Camargo comenta sobre a atuação de José Américo na
Revolução de 1930:
“[...] José Américo projeta-se no cenário político em nome da Paraíba, como ele
mesmo diz “pequenina e louca” que não hesitara em desafiar o governo Washington Luís,
apoiando a chapa oposicionista de Getúlio Vargas e em seguida aderindo à revolução que o
leva ao poder em 1930.” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com
José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.579., p.31 )
Juarez Távora dá poderes a José Américo como Chefe da Revolução no Nordeste,
através de carta datada de 3/10/1930, um dia antes de deflagrar, na Paraíba o movimento de
1930. Da Paraíba, como foco da Revolução de 1930 no Nordeste projetaram-se, dois nomes,
o de José Américo como civil e o de Juarez Távora como militar. O seu filho General
Reynaldo Almeida, quando da entrevista dada a Aspásia Camargo faz a seguinte avaliação:
“A aproximação entre os dois dá-se na fase conspiratória, quando Juarez dirige
clandestinamente, da Paraíba, o movimento militar no Nordeste. [...] Na realidade, Juarez
era um instrumento do campo militar no desenvolvimento da revolução. E meu pai” José
Américo” representava o contato entre o movimento armado e o movimento político, uma
vez que João Pessoa era meio afenso à ilegalidade, a todo problema que significasse
revolução” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo
de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p.362)
Cargo que exerce por dois períodos. Em 1930, nomeado pelo Presidente da República
Getúlio Vargas para Ministro da Viação e Obras Públicas, lugar que se manteve até encerrar-
se o ciclo do Governo Provisório em 1934. Deu grande relevo à ação dos poderes públicos no
combate aos efeitos devastadores da seca de 1932 completando a obra que Epitácio Pessoa
havia deixado inclusa.
Em 1953, a convite de Getúlio Vargas José Américo volta pela segunda vez a assumir
o cargo Ministro de Viação e Obras Públicas. Deixa por um período o cargo de Governador
do Estado da Paraíba:
“Na metade do período, governamental, foi chamado, outra vez, para ocupar o
Ministério da Viação. Relutou o quanto pôde, mas a seca, que conflagrava todo o Nordeste,
obrigou-o a ceder. Disse então: “Em vez de pedir, vou dar”. Ao saltar no Galeão, foi
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interpelado por jornalistas que estranhavam sua atitude, depois do que se passara em 1937:
“Por que veio?”. A resposta foi simples e direta: “Porque me chamaram. “Porque precisam
de mim” (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). O político. In: José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 217).
No mês de setembro de 1954, após o suicido de Getúlio Vargas retorna ao cargo de
Governador do Estado da Paraíba.
Senador da República
Em 1935 foi eleito pela Paraíba Senador da República, renuncia três meses depois o
mandato como também a Chefia do Partido dominante em seu Estado. Desiludido da reforma
política que o Brasil esperava, José Américo solicita a Getúlio Vargas a sua nomeação para o
cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União.
Entrevista de 1945
José Américo, em janeiro de 1947, foi eleito Senador pela Paraíba. Nesse mesmo mês
foi escolhido para a presidência nacional da União Democrática Nacional - UDN, e desligou-
se do partido em maio de 1948 por não concordar com a aproximação do Partido com o
governo do General Dutra.
Governador da Paraíba
saltar do carro e desafiar esses selvagens. Nomearam, demitiram, fizeram tudo isso e
perderam feio. Deu-me trabalho, mas venci, por uma grande margem de votos” (ALMEIDA,
José Américo de. A palavra e o tempo. (1937-1945-1950) Rio de Janeiro: José Olympio /
Fundação Casa de José Américo, 1986, 325 p., p. 297-298).
Em 1958 José Américo candidata-se mais uma vez ao Senado Federal pela Paraíba.
Perde a eleição, por ter sido contra o governo Estadual e Federal e coincidindo com uma seca
em que todos os serviços de assistência foram mobilizados contra seu nome, com ameaça de
suspensão. Com a sua derrota para o Senado, afasta-se da política e da vida pública. O pleito
foi entre José Américo e Ruy Carneiro.
Solitário de Tambaú
Alguns depoimentos
Almeida, na Casa de número 3.336, da Avenida Cabo Branco, João Pessoa-Paraíba, antiga
residência do escritor e politico José Américo de Almeida e onde viveu seus últimos anos de
vida. Faleceu em 10 de março de 1980 aos 93 anos de idade.
José Américo em frente a sua Casa, hoje transformada na Fundação Casa de José Américo.
Referências
ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1928.
______. Antes que me esqueça- Memórias.. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
______. O ano do nego. João Pessoa: A União, 1978.
______. Eu e Eles. João Pessoa: A União, 1974.
______. Discursos do seu tempo. 3 ed. João Pessoa: ITERPLAN [,s.d].
______. A palavra e o tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
______. Política. In: Sem me rir, sem chorar. (1) O Cruzeiro, Rio de Janeiro, ano XXV, 28
dez. 1957.
ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão. Catálogo da Correspondência de José Américo de
Almeida - Cartas. 1915 a 1952. v.1. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo. 1983.
______. José Américo visto pelos caricaturistas. João Pessoa, FCJA. 1989.
ARQUIVO José Américo de Almeida. João Pessoa: FCJA.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de, MEDEIROS, Neide Santos, ANDRADE, Ana Isabel
de Souza Leão. José Américo de Almeida: uma fotobiografia. João Pessoa: FIC/Ideia, 1984.
CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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PEREIRA, Joacil de Brito. José Américo: a saga de uma vida. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, Senado Federal, 1987.
SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo: o escritor e o homem público. João Pessoa:
A União, 1977.
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William Costa
Na verdade, o que trago hoje, para o nosso debate, não é propriamente um estudo; uma
tese ou dissertação sobre a obra deste homem maravilhoso. Este paraibano admirável. Este
artista extraordinário e de múltiplos talentos, cujo nome, Ariano Vilar Suassuna, figura hoje
no panteão dos gênios brasileiros.
Intitulei este texto de Ariano Suassuna, O Decifrador, porque, para mim, tudo o que
ele criou tem como sentido ou objetivo final encontrar a chave que o ajudasse a elucidar o
mistério superior da vida, que seria a Morte. Ou: Pra que tudo começou/Quando tudo acaba,
como diz Chico Buarque, na música “Almanaque”.
Canta o poeta armorial, no soneto “O Sol de Deus”:
Desde que o conheci, há dezesseis anos, procuro conhecer e entender Ariano. Daí o
contato permanente com sua prosa e poesia, seus ensaios e textos teatrais; os filmes, aulas e
entrevistas que protagoniza. E sinto que apenas vislumbro o abismo... É como estar à beira-
mar, imaginando a nau ancorada em porto distante.
Como todos sabem, Ariano nasceu na capital da Paraíba, mas viveu os primeiros anos
de sua vida no Sertão. A paisagem o encantava. E o ambiente familiar, repleto de afetos e
atenções, moldava, aos olhos do menino, o horizonte do mundo como um campo alvissareiro
para o galope alegre e colorido do sonho.
No entanto, muito cedo ainda, aos três anos de idade, Ariano se depara com a face
trágica e cruel da vida: seu pai e principal mentor, o ex-presidente João Suassuna, é
assassinado. O fato abre no peito do menino uma profunda e jamais cicatrizada ferida, cuja
dor seria apenas atenuada, mais tarde, pelo riso.
Ariano faz o inventário e, de certo modo, “apropria-se” do espólio paterno: uma
estante básica universal, de preciosa prateleira regional, que, a partir dos 12 anos de idade, vai
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como O Decifrador. O próprio autor definia esse trecho como o núcleo poético do romance e
uma espécie de súmula de sua literatura.
Neste folheto, a Moça Caetana, representação popular e sertaneja da Morte, aparece a
Quaderna, o protagonista-narrador d’A Pedra do Reino, e, com o dedo indicador, escreve na
parede, com palavras de fogo, o poema em prosa que vou ler, para vocês, agora. É belíssimo,
exatamente por refletir a forte simbologia da poesia suassuniana.
enuncia o eu lírico na primeira das “Odes”, de Ariano Suassuna, dirigida ao amigo José
Laurênio de Melo, e publicada pelo Gráfico Amador, em 1955.
O tom sentencioso destes versos, que vai perdurar nas outras odes, num total de sete,
parece marcar um momento singular na poética do autor de “A pedra do reino”. Cadenciando
a “expressão especial da apóstrofe lírica”, para me valer das palavras de Wolfgang Kayser,
em sua “Análise e interpretação da obra literária”, estabelece, assim, uma espécie de diálogo
com os seus destinatários (José Laurênio de Melo, Zélia, a esposa, Francisco Brennand, José
Paulo Cavalcanti, Aloísio Magalhães, Antônio Montenegro e Gastão de Holanda), ao mesmo
tempo em que convoca o lirismo filosófico para refletir sobre a vida, o amor, a arte e a morte.
A ideia da incompletude do ser e o sentimento da finitude associados à ânsia do
absoluto desvelam a consciência trágica do eu poético, numa dicção em que temática e
discurso se correspondem, objetividade e subjetividade se conformam e razão e emoção se
equilibram. Tudo, dentro dos princípios retóricos que a ode, a ode moderna e livre, consagra
no itinerário interno e específico de sua tradição estética.
Essa contradição, ou melhor, esse paradoxo entre vida e morte como que sustenta a
melodia grave da “Ode” a Laurênio, sem descurar o eu lírico, em instância alguma, da
contenção do entusiasmo emotivo que, vista a história desta forma poética, tende a cristalizar-
se como substância retórica essencial. À maneira eliotiana, diria que Ariano Suassuna, aqui e
em tantas outras incursões poéticas, contém a emoção, doma a personalidade, e faz de sua
composição lírica um complexo aforisma no qual as ideias, as imagens e a sua intrínseca
musicalidade atingem o ponto máximo da estesia, abrindo também o leque da cognição. Ou,
como diria Horácio, uma das suas referências na enunciação ódica: deleita e ensina.
Se “procuramos, sem falha de esperança,/aquilo que é sem nome”, continua o eu
poético, constatando, mais à frente e ao compasso do Eclesiastes, a possibilidade de se chegar
o “momento do desvelo,/que vai se desvendar todo o segredo”, onde “tudo há de aclarar”,
pois “é tempo de saber e de saciar-se”, é porque
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Somos seres para a morte, afirma Martin Heidegger. Ariano Suassuna, aqui e em
outros passos líricos, aceita e confirma este postulado e o retoma sempre, no corpo de sua
poesia, como forma de expressão do seu sentimento trágico diante da vida. Não obstante, sem
o travo amargo do pessimismo puro, conforme sugerem os versos finais desta ode, senão
vejamos:
A segunda ode, escrita para Zélia, é toda uma reflexão poética acerca do amor.
Reflexão cheia de dúvidas, de indagações e de hipóteses, através de uma técnica de
composição em que à lógica, quase silogística dos versos, soma-se o impacto estético das
imagens. Na concepção do eu lírico, se o amor não escapa à “corrução” e caminha junto “ao
som da morte”, ainda assim vale a pena. É o tema latino do carpe diem que se imiscui na
ordem do poema, pois, como enuncia a voz poética,
dimensão trágica deste embate, porém fiel, nietzscheanamente fiel, aos imperativos
inamovíveis da vida.
Este tom de sugestão, mais que de conselho; esta fala que se assume – tudo leva a crer
– inteiramente hipotética, em nenhum momento abdica da condição trágica, embora consiga
vislumbrar o prêmio de algum sentido, a brisa de alguma transcendência, principalmente por
meio da expressão artística, esta virtude de “palpar os destroços da beleza”, como diz o poeta
na ode a Laurênio.
Nas duas últimas, dirigidas a Antônio Montenegro e Gastão de Holanda, o poeta
retoma a incursão filosófica mais aberta, tratando das perdas e insistindo no motivo da morte
enquanto elemento que integra o tecido da vida. Repito: o sentimento trágico que penetra o
olhar do poeta, sobretudo emoldurado em algumas imagens realistas, como que coaguladas no
fogo e no sangue, não elide o sopro intenso e constante de uma visão redentora, somente
possível num poeta cuja voz não se limita à estreita geografia da imanência materialista.
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Introdução
A relação do escritor Ariano Suassuna com o Cinema foi estabelecida muito cedo, por
intermédio de seu pai, João Suassuna, que, quando era Presidente (hoje, Governador) da
Paraíba (1924-1928), saiu em uma expedição pelo Sertão paraibano, para conhecer mais a
fundo os problemas da região, e levou consigo seu amigo Walfredo Rodriguez, que realizaria,
durante essa excursão, a primeira produção cinematográfica em terras paraibanas, o
documentário Sob o céu nordestino (1928).
Ao publicar, nos anos 1970, sua teoria estética dedicada à Arte Armorial, Suassuna
esboça um Cinema Armorial prenhe de narrativas e situações cênicas oriundas do teatro, da
dança e dos folguedos populares, agregadas à música, às vestimentas e à arquitetura
sertanejas, ou seja, um Cinema que poderia propiciar uma fruição estética nos moldes da que
é usufruída a partir do contato com as narrativas épicas e trágicas do Romanceiro Popular do
Nordeste.
Essa mescla de diferentes expressões artísticas em uma única obra é fruto de uma
concepção agregadora das artes, presente nas reflexões suassunianas acerca da cultura
brasileira. Suassuna gostava de dizer que se considerava um homem barroco, uma vez que era
“receptivo a todas dissonâncias” e gostava de unir, harmoniosamente, “termos antinômicos”,
evitando, assim, a razão exacerbada e realista do pensamento clássico e a paixão desmesurada
e ilusória do sentimentalismo romântico. Buscava, então, o equilíbrio estético, o caminho do
meio, a integração dos saberes. “Continuarei a acreditar, sempre, que a idéia de ‘harmonia’,
em arte, tem que ser aprofundada até a união dos contrários, grande lição da corrente
tradicional brasileira, desde o barroco colonial e mestiço até os dias atuais” (SUASSUNA,
1964, p. 11). Por isso, segundo SUASSUNA (2004, p. 25), a Estética pode ser vista como
uma Filosofia da Beleza (concepção clássica), mas sem estar a Beleza associada unicamente
ao Belo – fundamentado na harmonia e na fruição prazerosa –, pois poderia contemplar
também o “amargor e a aspereza”.
Partindo dessa concepção integradora da arte, Suassuna, a partir da década de 1950,
principalmente após entrar em contato com as obras cinematográficas Os sete samurais
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O Cinema, pelo fato de ser uma arte pouco literária, no que se refere à escrita dos
roteiros, pouco despertou interesse de Suassuna. Chegou a escrever o roteiro de A
Compadecida (1969) e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), em parceria com os
respectivos diretores, George Jonas e Roberto Farias, mas, provavelmente, muito mais para
evitar uma adaptação distorcida de sua obra mais conhecida do que, propriamente, por
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A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do
Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano
que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas,
assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com
esse mesmo Romanceiro associados. (SUASSUNA, 1977, p. 39)
dessa literatura: a música seria inspirada nos instrumentos que acompanham os cantadores nas
feiras populares (viola, rabeca, pífano etc.), as artes plásticas (pintura, cerâmica, escultura,
gravura e tapeçaria) se inspirariam nas xilogravuras, nas paisagens e nos “bichos estranhos”
(dragões, pavões, onças, cachorros loucos, anjos, demônios etc.) relacionados ao Romanceiro.
O Cinema Armorial, para Suassuna, deveria envolver todo universo épico, trágico e cômico
presente nas narrativas populares tradicionais, a maioria registrada em folhetos, com ênfase
maior às ações épicas, utilizando um tratamento visual que, da mesma forma que as artes
plásticas, teria como referência principal o “espírito mágico e poético” do Romanceiro
popular. Mas, considerando a natureza multiexpressiva do Cinema, a sua estrutura cênica
também deveria ser baseada nos folguedos, nas danças ou espetáculos populares do Nordeste,
com suas roupagens e bichos fabulosos (a Onça, o Jumento, o Jaraguá etc.).
Para Suassuna, da mesma forma que os japoneses recriaram o gênero western, por
meio dos filmes de samurai, agregando às suas narrativas a plasticidade de suas danças e
cantos populares, o cinema épico nordestino, de “cangaço”, poderia conter elementos
narrativos relacionados às estórias tradicionais populares: ações épicas; vestimentas
encouradas e fabulosas – numa alusão aos Vaqueiros e folguedos, como o Auto dos
Guerreiros e a Nau Catarineta –; músicas inspiradas na poética dos cantadores sertanejos, nos
cantos indígenas, na tradição ibérica; danças carnavalescas, míticas e místicas. Outro aspecto
a destacar é que o Cinema é uma arte de exploração espacial. Por isso, os cenários, a
princípio, dentro da concepção armorial, deveriam conter uma os elementos da arquitetura
armorial, que é “imaginosa, meio demente, colorida, violenta, irregular, ardente e forte em
certos casos, e, noutros casos, tranqüila e acolhedora” (SUASSUNA, 1977, p. 50).
Vinculado à formação de uma identidade genuinamente nacional, desde a publicação
de “Os Sertões” (1902), de Euclydes da Cunha, o Sertão e sua “civilização do couro”
passaram a ser protagonistas da literatura regionalista brasileira na década de 1930 e a
influenciar toda uma geração de cineastas preocupados em formular uma estética
cinematográfica que retratasse e criticasse a realidade brasileira dos despossuídos e
marginalizados do campo e da cidade (DEBS, 2007, p. 107-108). No entanto, mais do que um
ambiente de reflexão sobre a realidade social, para Suassuna, o real motivo da atração dos
cineastas brasileiros pelo Sertão deve-se principalmente à grandeza mítica e mística da região.
O País de São Saruê é das coisas mais sérias que já vi em cinema, o que
digo porque esse filme possui, exatamente, de fato ou em potencial, todas
aquelas características com que eu sonhava para o cinema nordestino,
quando conversei com Glauber Rocha em 1958 e 1961. (SUASSUNA, 2008
[1972], p. 191)
devemos alertar para o fato de que, embora haja afinidades estéticas entre o filmes de Glauber
Rocha e o Cinema Armorial teorizado por Suassuna, este nunca concordou com o uso da arte
para propósitos políticos, prática comum nas obras de Glauber, principalmente Terra em
transe (1967). Sempre se colocou contra a arte engajada, militante.
Eu tenho um medo enorme de arte militante. Não gosto. Acho legítimo que
as idéias políticas, religiosas, filosóficas etc. e um autor apareçam na obra,
mas não como militância. Eu gosto muito de um romance que tenha
problemas filosóficos, políticos e religiosos implícitos. Mas gosto menos de
um romance filosófico, político ou religioso. Quando o escritor carrega
muito na idéia, quem paga é a arte. (SUASSUNA apud CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 38).
dos responsáveis pelo roteiro de A Pedra do Reino). Luiz Fernando Carvalho, cineasta diretor
de TV de forte influência literária, desenvolve uma criação imagética permeada de elementos
que fazem alusão às estórias fabulosas e mágicas presentes na memória e no imaginário
popular, integrando todo universo da arte popular (músicas, danças, figurino, cenários etc.),
uma marca barroca da arte armorial. No entanto, Luiz Fernando Carvalho não é um artista
vinculado diretamente à estética armorial. Novamente, como vem ocorrendo desde o início
dos anos 1960, quando o embrião do Cinema Armorial começou a se desenvolver, o que
vemos é uma “apropriação” de uma estética, apregoada por Suassuna, por artistas que
necessariamente não criam vínculos permanentes com a Arte Armorial, mas se sentem à
vontade para usufruir de seus preceitos para, pontualmente, realizarem alguma obra no campo
do audiovisual. O longa-metragem Brincante (Walter Carvalho, 2014), sobre o versátil artista
armorial Antonio Nóbrega, é um claro exemplo de apropriação pontual da estética armorial
para a concepção de uma obra cinematográfica vinculada, em função da formação do artista
intérprete do filme, à Arte Armorial.
Conclusão
Referências
Notas introdutórias
Contextualizando a conversa...
2
Disciplinas que equivaliam ao Estágio Supervisionado antes da LDB 1996
3
Hoje considerado Ensino Fundamental I.
4
São consideradas turmas do novo currículo, as turmas com as quais foi realizado o processo de transição do
chamado currículo antigo, que contava, entre outras distinções, com o fato de ter apenas 200 horas de prática
pedagógica, sob a responsabilidade de professores da educação. Com a aprovação do PPP de Letras, a disciplina
de Prática passa a Componentes Curriculares, denominados agora Estágios Supervisionados, ministrados por
professores do curso de Letras.
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completamente possível termos a aula de LP em que Língua e Literatura são integrados, pois
para realizar leitura e escrita de textos é necessário descobrir, por meio do que está escrito, as
pistas para a compreensão dos aspectos literários. Nesse sentido, podemos afirmar que
projetos e/ou sequências didáticas não poderiam ou deveriam restringir-se à análise linguística
ou a ordem cronológica das escolas literárias.
Pois como afirma Segabinazi (2011, p. 51), ao se referir à metodologia usada para
trabalhar a literatura com base no que propõem grande parte dos livros didáticos, que se
constituem basicamente por
Vemos nesse ponto o ganho que podem ter os alunos da última etapa do ensino básico,
no Brasil, em termos de aquisição de saberes. Pois trata-se de construção de conhecimento
que servem para “manipular” a língua e a literatura em prol da formação cidadã, tão
propagada nas Orientações Curriculares Nacionais (OCEM, 2002) e nos objetivos que
permeiam documentos oficiais que regem o ensino médio no Brasil.
Notas conclusivas
Ao finalizarmos a escrita deste texto, vemos que a proposta inicial de analisar projetos
de ensino e sequências de aulas elaboradas pelos graduandos de Letras/Português nos
Componentes Curriculares dos Estágios Supervisionados VI e VII, que contemplassem a um
só tempo o ensino de Língua e Literatura e que víssemos nessa relação o texto e as
possibilidades de leitura, oportunizou iniciarmos uma discussão mão só sobre a relação
Língua e Literatura, mas também refletir sobre a realidade dos estágios nas licenciaturas e o
ensino de LP no Brasil. Por isso, já na primeira etapa do trabalho, contextualizamos a
realidade a formação do professor de Língua Portuguesa e o histórico do Estágio
Supervisionado na formação inicial, para depois localizarmos as atividades que foram foco de
análise e reflexão dentro do Portfólio.
Em uma segunda etapa do trabalho, à medida que apresentamos as atividades que
contidas nos projetos, apresentamos o posicionamento de alguns estudiosos do assunto,
realizando paralelamente a análise reflexivas das atividades. Finalmente trouxemos uma
análise de como a realização da atividade poderia auxiliar na integração de Língua e
Literatura na aula de Língua Portuguesa e na formação do leitor e produtor de textos na aula
de LP.
O percurso do texto nos faz vislumbrar possibilidades de atividades concomitantes de
Língua e Literatura (se é que, em algum momento possam essas subdisciplinas podem
aparecerem dissociadas). Isso tornou-se evidente quando nos debruçarmos precisamente sobre
dois projetos que se ajustavam ao recorte exigido pelo objetivo da pesquisa. Observarmos a
produtividade que podemos ter se dermos maior credibilidade à aula de Língua Portuguesa no
Ensino Médio, cujo objetivo é a formação do leitor e do produtor de texto que usa a língua e a
literatura, para aprimorar seus conhecimentos não só de normas gramaticais e de conteúdos
literários restritos a questões da Teoria da Literatura, mas que os leve a usá-los para ouvir,
falar, ler e escrever com liberdade de fazer escolhas, não porque alguém lhes disse que assim
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deveria ser, mas por estarem conscientes de que as possibilidades de manipular Literatura e
Língua, segundo suas necessidades, formá-los-ão não apenas para dar respostas ensaiadas,
mas para usarem a aprendizagem no exercício da cidadania, como almejamos para os jovens e
adultos que terminam o Ensino Médio no Brasil.
Referências
Este estudo está vinculado a um projeto amplo que desenvolvemos para o CNPq desde
2010 cujo objetivo é analisar, do ponto de vista semiótico, os textos literários de expressão
popular que fazem referências às figuras étnicas que entraram na composição do povo
brasileiro, a fim de descobrir a ideologia subjacente aos discursos. Aqui, discutimos,
especificamente, os gêneros literários de expressão popular cuja maioria teve origem numa
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oralidade fecunda, de tradição milenar, que os ampliou, recriou, ou restringiu sua significação.
Além da teoria semiótica dos gêneros dos discursos, utilizamos, também, o suporte teórico da
etnoliteratura que vêm se debruçando sobre a análise dos textos recolhidos na tradição oral,
comparando variantes, em busca de explicação para este ou aquele fenômeno.
Vejamos, agora, os gêneros literários populares mais encontrados no Nordeste que,
pela modalidade do código linguístico utilizada, podem ser bipartidos em orais e escritos.
A literatura popular escrita é comumente chamada de literatura de folheto ou
literatura de cordel. O último nome se deve à venda dos folhetos em barracas de feira, portas
de igrejas, mercados públicos, pendurados numa corda fina que, em Portugal, denominava-se
cordel. Na verdade, hoje, preferimos nomear o gênero cordel e reservar o nome folheto para o
suporte onde o gênero é escrito, mesmo porque muitos outros gêneros podem utilizar o
mesmo suporte sem serem poéticos, nem populares.
Este tipo de literatura apresenta algumas características que a diferenciam da literatura
popular oral. O eixo da comunicação acontece entre escritor e leitor. Existe uma indicação
precisa de tempo, espaço e ator com foco narrativo em 3ª pessoa. A capa traz uma xilogravura
(palavra derivada do grego xýlon que significa madeira e gravura). Na última estrofe, aparece,
na maioria das vezes, um acróstico indicando o nome do autor. Este é geralmente conhecido e
determinado na capa do folheto.
Sua origem é lusitana, vinculada à tradição escrita ou à tradição oral. Da tradição
escrita, são referência às folhas volantes ou folhas soltas (pliegos sueltos). Antes de haver
uma impressão, eram feitos em cadernos manuscritos. Da tradição oral, as narrativas de cordel
mais antigas provêm dos romances tradicionais orais: Carlos Magno e os Doze Pares de
França, Roldão e Oliveiros. Esta tradição romancística surgiu no Norte da França (na langue
d´oil) com a publicação de La Chanson de Roland que deu origem ao ciclo carolíngio de
narrativas orais no século XI.
Os mais antigos poetas eram rigorosos na métrica. Os mais modernos perderam essa
característica por estarem mais preocupados com o conteúdo. A maioria dos folhetos se
compõe de estrofes de seis versos, chamadas sextilhas. Outros são feitos em septilhas e
décimas. As quadras são mais raras.
Vejamos, a seguir, como exemplo, algumas estrofes do folheto Suspiros de um
Sertanejo de Leandro Gomes de Barros, escritor popular paraibano que descreve a tristeza do
migrante longe do Sertão, lugar em que cresceu e viveu. Em sua narrativa, fala de belas
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percurso cheio de peripécias para buscar o seu valor. ARAGÃO (2004: p.44) cita como
característica dessa peça popular:
Era uma vez um homem bem velhinho que morava com sua filha
numa casinha bem pobre junto da floresta. A filha era muito bonita e
inteligente, mas o velho era muito pobre. A filha lavava, passava, cozinhava
e era muito prendada. O velho era lenhador. Um dia, o velho chegou muito
cansado e, sentindo que ia adoecer, disse para a filha: minha filha,estou
muito preocupado com você. Sinto que a morte vai chegar e não sei como
você vai ficar. Ao que a filha respondeu: tem nada não, papai, Deus
proverá. No mesmo dia passou por ali um arauto do rei que dizia que o rei
estava procurando moça para firmar casamento, mas só queria uma que fosse
bonita e tivesse ciência.
O velho escutou e correu para avisar à filha. Ele disse: minha filha,
bonita eu sei que você é, mas não sei se tem ciência. Ela respondeu: Que
tenho, eu tenho. Precisa só que o senhor vá lá avisar ao rei. O velho foi e
como era muito esmulambado, não deixaram ele entrar. O velho voltou
muito triste. A filha disse:tem nada não, papai.O senhor volta e fica na
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LA CONDESSA
Cantado por Joana de Araújo Mendonça (Eci), 53 anos, do lar.
O dó da viola:
Cantado por Lisbete L. de Oliveira, 20 anos João Pessoa. Gravado em
16/05/1983 por Mª. de Fátima Batista
Referências
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva. A cultura popular nas escolas rurais paraibanas e a
biblioteca da vida rural brasileira in BATISTA, et all. Estudos em Literatura Popular. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p.279-287.
BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A tradição ibérica no romanceiro
paraibano. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2000
______. O Romanceiro Tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica.
Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1999. 2 vol.
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BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita et al. Estudos em Literatura Popular II.
João Pessoa: Editora da UFPB, 2011
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Lindoaldo Campos1
Introdução
Quando não completamente desprezada pela academia, a poesia popular tem sido alvo
de interpretações equivocadas, derivadas, modo geral, de uma perspectiva eruditocêntrica,
pautada em elementos que se revelam no mais das vezes inconvenientes e em todos os casos
absolutamente improfícuos.
Trata-se, no caso, daquilo que já se logrou denominar de “polido menosprezo” com
que a academia trata a poesia popular:
Concepção errônea, equivocada, e, mais que isso, deletéria. Trata-se de uma imagem
distorcida, carregada de esquematismos que à evidência não dão conta dos múltiplos e
singulares aspectos da poética popular, que possui elementos, arquétipos e propósitos
próprios, que por isso mesmo a distinguem e a nobilitam. A exemplo da oralidade,
característica que, ao contrário do que comumente se imagina, possui o condão de
sempiternamente avivar o fogo telúrico da verve do menestrel do povo, e que desta forma é
preciso considerar em qualquer análise que se pretenda justa.
1
Pesquisador e escritor.
2
Cláudia Neiva de Matos, A poesia popular na república das letras, p. 172 e 194. Em outra parte de sua obra,
esta pesquisadora acentua: “O conceito de poesia popular é elaborado de maneira a mantê-la à distância no
tempo e no espaço, separando irrevogavelmente sujeito e objeto da pesquisa. Pesquisador e pesquisado
encontram-se de saída prudentemente distanciados e interditados para qualquer diálogo. O diálogo, ou a
polêmica, só se trava entre os participantes credenciados pela instrução livresca, na discussão de teses / teorias
das quais os acentos específicos da voz popular ficam via de regra excluídos”. (op. cit., p. 197)
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Origens
3
Luís da Câmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores, p. 178 e 181.
4
Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, p. 211.
5
Cfr. A oficina de Almanzor, in Um certo Jó, p. 57-71.
6
Cfr. Origens árabes no folclore do sertão nordestino.
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Um dos elementos poéticos mais referenciados pela teoria arabista para estabelecer a
relação entre a poética árabe e a poesia popular brasileira é o zejel (ou zajal, também
conhecido como hino sonoro ou bailada, ainda hoje cantado na África do Norte), gênero que
deriva da chamada muaxafa (mwwaxaha ou muwashah), mas enquanto esta possui uma forma
erudita, o zejel é expresso em árabe vulgar, ou seja, em uma linguagem popular.
O zejel foi bastante desenvolvido pelos poetas muçulmanos Mucaddam ben Muàfa e
Ibn Quzman, que viveram nos Séculos IX a XII na Andaluzia, região da Espanha ocupada
pelos árabes, e consiste em uma técnica poética que se antecipou em pelo menos 2 séculos aos
modelos idênticos (ou ligeiramente alterados) compostos pelos primeiros trovadores. Trata-se
de uma estrofe que, em sua forma mais simples, possui a estrutura de rimas AA BBBA AA
CCCA AA e que teria dado origem, por sua vez, ao vilancete (ou vilancico, em castelhano),
forma poética comum na Península Ibérica da época da Renascença (ou Renascentismo,
período da História da Europa que assinala o final da Idade Média e o início da Idade
Moderna)7.
Gêneros
Como se disse, a poesia não é algo petrificado, imutável; ela se modifica ao longo do
tempo, sofrendo transformações de acordo com a constante impermanência das coisas.
No que respeita aos gêneros, atualmente são utilizados pelo menos 50 formas poéticas,
das quais se destacam:
7
Cfr., a respeito, Ramon Menendez Pidal, Poesia Árabe y Poesia Europea; Slimane Zeghidour, A poesia árabe
moderna e o Brasil; Yara Frateschi Vieira, Poesia Medieval (literatura portugues) e Michel Sleiman, A poesia
árabe-andaluza (Ibn Quzman de Córdova).
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O galope à beira-mar
o 1º rima com o 4º e o 5º
o 2º rima com o 3º
o 6º rima com o 7º e o 10º
o 8º rima com o 9º
a) O Refrão
Alguns gêneros de poesia terminam com um refrão, ou seja, com versos que se
repetem no final de todas as estrofes. É o caso do galope à beira-mar, em que cada estrofe
termina com a expressão “na beira do mar”.
8
A décima possui também os seguintes modelos de estrutura de rimas: ABBAACCDDC (conhecida como
espanhola ou espinela, pois sua criação é atribuída ao poeta espanhol Vicente Espinel), ABABCCDEED
(conhecida como portuguesa ou recitativa) e ABBACCDEED (estilo de Assu).
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b) A Deixa
Deixa é o último som deixado no derradeiro verso de uma estrofe, com o qual deve
rimar o primeiro verso da estrofe seguinte. É justamente isso o que significa a expressão
“pegar na deixa”, muito utilizada pelos poetas improvisadores: rimar o primeiro verso da
estrofe que se vai fazer com o último verso da estrofe anterior9.
A deixa é muito utilizada na poesia popular (sobretudo na sextilha10, na setilha11 e no
martelo agalopado12), mas também no galope à beira-mar.
Ocorre que, como dissemos, o galope à beira-mar possui um refrão (“na beira do
mar”), de modo que o último verso da estrofe não pode servir de deixa, uma vez que a mesma
rima se repetiria no 1º e no último versos de cada estrofe. Portanto, no galope à beira-mar vale
como deixa o final do verso que fica imediatamente antes do refrão, ou seja, o 9º verso da
estrofe.
Veja um exemplo, para que isso fique mais claro:
(João Paraibano)
c) A Métrica
A poética popular é construída, toda ela, por gêneros que obedecem a formas
definidas, tanto no sentido da quantidade dos versos quanto no tamanho deles.
A medição do tamanho dos versos é o que se chama de métrica, palavra que vem de
metro, medir. Na poesia, significa, então, ajustar os versos de uma estrofe para que tenham o
mesmo tamanho, com o objetivo de que sua leitura e a sua audição fiquem mais fáceis e
agradáveis, como uma espécie de pontuação dos versos, para que sua leitura seja feita de
forma pausada, com o controle da respiração. É algo semelhante ao que acontece na prosa,
onde os sinais de pontuação são necessários para que a leitura das frases seja feita de forma
tranquila, com as pausas e entonações mais adequadas à nossa respiração.
Existem basicamente dois sistemas de metrificação:
A poesia popular (e, de resto, a poética brasileira) segue o sistema românico, onde
predomina a sílaba poética. Ora, como sabemos, sílabas gramaticais são aquelas que obtemos
quando dividimos as palavras conforme elas são escritas (essa é a primeira providência para
verificar se o verso está metrificado). Já as sílabas poéticas são aquelas que obtemos quando
dividimos as palavras de acordo com a nossa fala, ou seja, conforme elas são lidas, e são elas,
as sílabas poéticas, que contamos, portanto, para definir o tamanho do verso. Desta forma,
para que um verso esteja metrificado, basta que ele possa ter o mesmo número de sílabas
poéticas que os outros versos da estrofe13.
Pois bem: os versos de galope à beira-mar possuem 11 sílabas poéticas. Ou seja, são
versos hendecassílabos, também conhecidos como versos de Arte Maior ou Datílicos14.
d) O Ritmo
Na poesia, o ritmo é a ordenação, a distribuição das sílabas tônicas e das sílabas átonas
nos versos. É como se, na “pulsação” do verso, as sílabas tônicas representassem as “batidas”
e as sílabas átonas representassem as “pausas”.
Cada gênero poético tem seu próprio ritmo, ou seja, seu próprio modelo de
distribuição de sílabas tônicas. É como na música: o forró, o samba, o frevo, o baião, cada
gênero musical tem seu próprio ritmo; na poesia, como existem vários gêneros com a mesma
quantidade de versos (que por sua vez têm a mesma quantidade de sílabas poéticas e a mesma
estrutura de rimas), é principalmente através do ritmo que é possível perceber a diferença
entre eles.
Em cada gênero, as sílabas tônicas que estão nas mesmas posições em todos os versos
de uma estrofe de determinado são chamadas de sílabas tônicas obrigatórias (ou ictos) e
formam o seu ritmo15. Isso quer dizer que, para que fiquem num ritmo adequado, bom de se
recitar e de se ouvir, todos os versos de uma estrofe devem ter sílabas tônicas nessas posições
obrigatórias.
13
Outro ponto a ser considerado é que a versificação brasileira segue o padrão francês, segundo o qual a
contagem das sílabas poéticas é feita até a última sílaba tônica do verso.
14
Segundo Hênio Tavares (Teoria literária, p. 282), hendecassílabo iâmbico-anapéstico é o nome que se dá, em
teoria literária, ao verso de 11 sílabas poéticas com acentuação em 2, 5, 8, 11, ou seja, ao verso de galope à
beira-mar).
15
Na linguagem dos poetas repentistas, o ritmo também é chamado de acentuação, cadência ou toada.
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Pois bem: cada verso de galope à beira-mar as seguintes devem ter as seguintes sílabas
tônicas: 2ª, 5ª, 8ª e 11ª. A título ilustrativo, vejamos o exemplo de uma estrofe em que o tema
é chuva:
Façamos, agora, a escansão de cada um de seus versos (as elisões estão sublinhadas16):
16
Escansão é como se chama o processo de separação das sílabas poéticas de um verso. Elisão, por seu turno, é
o nome que se dá aos “ajuntamentos” que podem acontecer entre palavras, em que uma termina em vogal e a
outra inicia em vogal, e de acordo com a velocidade da leitura. Ressalte-se também que, na escansão, utilizamos
o símbolo ř para significar o som (fonema) que a letra r tem quando é escrita, sem duplicidade, no meio da
palavra (como, por exemplo, na palavra coroa → co / řo / a).
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Comparando estes versos, percebemos que, em todos eles, as seguintes sílabas são
tônicas: a 2ª, a 5ª, a 8ª e a 11ª. Esta é a acentuação dos versos de galope à beira-mar, o que
significa que, para que todos fiquem no ritmo próprio deste gênero galope, cada um deles
deve ter sílabas tônicas nessas posições, o que garante um ritmo bem característico, que
lembra o galope de um cavalo.
Um mestre
17
De acordo com Francisco das Chagas Batista (Cantadores e poetas populares, p. 227), Dimas Batista é filho
de Severina Batista Guedes (1890 – 1956), por sua vez filha de Cecílio Batista de Melo, que é filho de Ubadilna
Camila de São Mateus, irmã de Ugolino Nunes da Costa (1832 – 1895), por seu turno irmão de Nicandro Nunes
da Costa (1829 – 1918) e filho de Agostinho Nunes da Costa (1797 – 1858), este último um dos primeiros
povoadores da Serra do Teixeira/PB e dos primeiros cantadores de que se tem notícia. Por outro lado, como o
noticia o próprio Dimas Batista (Desafio – Dimas e Cabeleira, Apresentação), sua mãe é prima legítima dos
poetas Francisco das Chagas Batista, Pedro das Chagas Batista e Antônio Batista Guedes.
18
Desafio – Dimas e Cabeleira, Apresentação.
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(Nuvem) (Filosofia)
Nos mares, nos rios, nos lagos, nas fontes Percorro os quadrantes do Sul e do Norte
Eu tenho meu berço e na hora em que nasço Buscando a verdade jamais atingida
O vento me leva no brando regaço Percebo que a morte precisa da vida
Acima de vales, colinas e montes Assim como a vida precisa da morte
Colhendo energia, rasgando horizontes No campo da luta, só vence o mais forte
Pintando o arco-íris do prisma solar No entanto, o vencido não pode parar
Mas quando a saudade me obriga a voltar Prossegue na vida dos filhos, no lar
Desfaço-me em chuvas, cobrindo de afagos Produz outras formas de vida na cova
Montanhas e rios e fontes e lagos Conforme o processo que a tudo renova
Colinas e vales e a beira do mar Assim como às ondas na beira do mar
(Espírito) (Pensamento)
No Espaço da vida, tangendo rebanhos Meu raio de ação tem um campo sem fim
De nuvens pesadas, perdidas ao léu Precedo à ciência, que em tudo se expande
Habito a um só tempo a terra e o céu Atinjo, no espaço, um impulso tão grande
E corpos celestes de vários tamanhos Que a luz não se move diante de mim
Converso em silêncio com vultos estranhos Desvendo no escuro segredos e, assim
Vestidos de neve, neblina e luar Supero em ação magnética o radar
Liberto do peso, suspenso no ar Eu sou o Pensamento – meu nome é
vulgar
Volvendo volúvel, divago nas vagas Mas guardo invioláveis segredos avulsos
E ouvindo o murmúrio das coisas presagas Cadeias de ferro não prendem meus
pulsos
Soluço meu canto na beira do mar Mais livres que a brisa na beira do mar
(Mãe) (Filho)
O Centro do Grande Sistema ilumina As flores e frutos no verde da flora
Os corpos celestes com rara beleza O salto das águas polindo o granito
A massa gravita, no círculo presa O dia que nasce e, no palco infinito
Repete-se o quadro da luz vespertina A policromia suave da aurora
Perpassa, no espaço, visão peregrina São quadros que o Artista Divino elabora
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(In)Conclusões
Referências
Atualmente, no Brasil, a Análise do Discurso (AD) tem sido marcada por uma
pluralidade de temas e enfoques, sendo balizada por uma consistente abordagem teórica e
metodológica acerca dos seus objetos, constituindo um mosaico de olhares multifacetados. Na
perspectiva do estreitamento das fronteiras entre os diversos saberes na contemporaneidade,
este trabalho busca, através do suporte teórico da AD, investigar um momento importante da
História do Brasil, elegendo como objeto de análise uma obra literária. Intentamos a
compreensão de como as condições de produção se descortinam e deixam as suas marcas na
materialidade textual da literatura, constituindo sentidos. A partir do estudo da obra Vidas
secas, publicada originalmente em 1938, e de alguns fragmentos não-ficcionais, de Graciliano
Ramos, escritos na década seguinte, revisitamos a conjuntura social e política brasileira da
década de 1930.
A escritura de Graciliano Ramos é perpassada por representações da violência. Em
vários momentos no decorrer da narrativa de Vidas secas, observamos marcas de tal
abordagem. Destacamos que o conceito de representação, aqui tomado, está intrinsecamente
ligado ao de ideologia cuja composição se dá através do conjunto de representações. Nessa
direção, Stuart Hall assinala:
1
Professor Adjunto na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL
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aqui analisados, materializam os efeitos de sentido que a sua obra nos permite estudar. Existe
uma relação entre a sua discursividade que emerge da materialidade literária e a exterioridade
do texto, elo entre a sua escritura e a conjuntura da época: a violência do período varguista
institui sentidos e constitui a própria discursividade elaborada pelo sujeito-autor.
Na sequência discursiva (SD) seguinte, podemos ver a violência mostrada pela palavra
“pontapés”: (SD 1): “Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e
não dissipavam a imagem do osso” (RAMOS, 2000, p. 55). Aqui encontramos a violência na
materialidade do texto. Os pontapés narrados trazem, metaforicamente, o sentido de violência,
uma atitude de agressão desmotivada. A recorrência à exterioridade elucida parte do
significado que essa narrativa literária, aqui tomada pela sua discursividade, encerra, através
dos pressupostos da Análise do Discurso (AD). Como aponta Eni Orlandi, a AD “reconhece a
impossibilidade de um acesso direto ao sentido e tem como característica questionar a
interpretação considerando-a como objeto de reflexão” (ORLANDI, 2004, p. 21). Desse
modo, buscamos esse acesso ao sentido, aos seus deslizamentos, as suas possibilidades.
A personagem Baleia, uma cachorra, um animal, um bicho, portanto, desprovida da
condição de pensar ou agir, que na narrativa recebe os pontapés sem motivo, é alegoricamente
utilizada pelo sujeito enunciador para, simbolicamente, representar a violência experimentada
por muitos durante o contexto exterior de produção da narrativa – o governo de Getúlio
Vargas. O enunciado “os pontapés estavam previstos” manifesta a condição de submissão e
aceitação à violência do regime, uma condição de impotência e resignação. O período era de
repressão, de violência, vivia-se sob um regime de exceção que se desenhava antes mesmo da
instituição do Estado Novo, em novembro de 1937, conforme ressaltado pela historiadora
Maria Helena Capelato:
forma de persuasão e de controle social e político, como forma de evidenciar a todos quem
está no poder e no controle político.
O totalitarismo, pelo qual havia simpatia de Getúlio Vargas, mostra-se, além de
violento, um sistema político que se apodera do Estado e estabelece as suas ramificações no
corpo social a fim de exercer o seu controle. A manipulação de informações sobre os
opositores em potencial se torna uma das principais estratégias. A polícia possui um
importante papel de controle e repressão para a manutenção da ordem. Assim, temos “a
importância da polícia como único órgão de poder” (ARENDT, 1989, p. 470), em que a
manutenção da “ordem” justificava os meios utilizados em um regime totalitário. Para Arendt,
povo, apenas, se conforma com aquilo que ele próprio deseja e é executado
pelo depositário de uma autoridade por ele conferida. (CAPELATO, 2003, p.
124)
velho ao se aproximar dos pais pode ser vista como um deslizamento de sentido trazido no
enunciado destacado neste parágrafo. Esse deslizamento de que falamos, pode ser atribuído ao
medo de sofrer violência, dos cascudos e puxavantes de orelha que simbolizam a violência
familiar e, também, aquela instituída pelo regime político vigente no período. O sujeito-autor,
desse modo, enuncia o medo em relação ao governo, ao regime que impõe um “respeito” ao
governo, personificado na figura de Getúlio Vargas. A narrativa literária encerra em suas
metáforas, uma discursividade que constrói efeitos de sentido sobre a violência vivida no
período. Veremos a seguir outra recorrência da violência:
Neste recorte, vemos a personagem Baleia dar voz aos oprimidos metaforicamente
abordando o tema da violência. Uma violência que se repete e (re)significa os sentidos das
formulações discursivas produzidas pelo sujeito-autor, ao longo da materialidade textual
literária: uma violência, representada simbolicamente pelos pontapés, definida como fatos
presentes na ditadura varguista.
Essa necessidade da violência, simbolizada pelos pontapés, representa a interpelação
ideológica que transforma o indivíduo Graciliano Ramos em sujeito-autor. Dessa forma, a
SD-3 estabelece um espaço de reflexão e discussão a partir dos sentidos que são produzidos
pela discursividade que lhe constitui, pois surge em um contexto sócio-histórico do regime da
época onde se insere o sujeito-autor Graciliano Ramos.
Em um regime autoritário, a fuga constitui uma das estratégias para não sofrer com a
violência física e moral imposta aos opositores do regime político que está no poder. Dessa
forma, a discursividade do enunciado “só tinha um meio de evitá-los, a fuga”, remete-nos à
construção do sentido político de que a fuga, vista como um afastamento que, em muitos
casos, foi concretizada pelo asilo político, foi uma das estratégias utilizadas durante o regime
varguista. Como assevera o historiador Edgard Carone, “com o fracasso do golpe, muitos
integralistas são presos, mas vários se refugiam nas Embaixadas. As da Itália e de Portugal,
países fascistas, são as mais procuradas” (CARONE, 1976, p. 206). Há uma relação entre a
realidade exterior, a conjuntura do período e a discursividade da literatura de Graciliano.
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Nessa direção, o discurso de Graciliano Ramos pode ser analisado. Pelos seus efeitos
de sentido, tentamos compreender os significados dos sonhos e da narrativa relativos à
cachorra Baleia, uma das principais personagens do seu livro, personificada pela
discursividade pretendida pelo sujeito-autor. Embora a fuga fosse uma estratégia na luta pelo
poder que se desenrolava no Brasil na década de 1930, o discurso presente na narrativa de
Graciliano aponta que muitas vezes a personagem Baleia era apanhada de surpresa. Da
mesma maneira, vemos marcas da violência existente naquele dado contexto histórico
brasileiro. O seu enunciado possui efeitos de sentido que representam literária e
metaforicamente as dificuldades políticas vividas.
A figura de Baleia permite gestos de interpretação pela sua riqueza estética, literária
ou semântica. Sentidos que deslizam e se tornam diferentes do/no enunciado, pois, “todo
enunciado é intrinsecamente suscetível a tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2006, p. 53).
Sentidos deslizados e possíveis de serem observados nos enunciados do sujeito-autor,
inseridos nesse jogo de palavras que carregam em si toda uma discursividade de
contraposição à ordem instituída desde o início da década de 1930.
Dessa forma, entendemos que o sujeito-autor Graciliano Ramos pode ser revisitado em
seus escritos como contraponto ao governo centralizador e populista. Governo esse que visa à
permanência e continuidade mediante a força, a violência do Estado que, simbolicamente, é
representado nos enunciados de Graciliano, por exemplo, quando a cachorra Baleia sentia
“uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato,
com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se” (RAMOS, 2000, p.
60). Percebemos a estratégia da fuga emergindo da materialidade textual da literatura no
momento em que o sujeito-autor dá voz, a partir da sua criação narrativa, à personagem Baleia
que se mantém desejosa de morder, representando a resistência, a revolta dos oprimidos.
Todavia, outros sentidos aparecem na escritura de Graciliano Ramos. A
impossibilidade de enfrentamento, simbolizada pela incapacidade de poder realizar o desejo
de morder por parte da cachorra Baleia, mostra a resignação pela qual é tomada parte da
oposição ao regime autoritário. A fuga, o desejo de enfrentamento e a quietude dos opositores
do regime metaforizam, nas tramas do texto, a realidade de repressão vivida no Brasil,
naquele período histórico denominado Era Vargas. O controle dos opositores deu-se
principalmente porque “houve repressão forte – prisões, tortura, exílios, censura –, que atingiu
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Comunicações
Coordenadas
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O presente trabalho tem por finalidade uma análise comparada dos contos O barril de
montilado de Edgar Allan Poe, publicado em 1846 na Godey's Lady's Book; e Venha ver o
pôr-do-sol de Lygia Fagundes Telles, publicado pela primeira vez em Histórias do
Desencontro, de 1965, e, cinco anos depois, reunido no aclamado Antes do Baile Verde.
Notamos que os esforços dos teóricos, desde a transição do conto folclórico para o conto
enquanto criação literária, foram no propósito de descrever a natureza do que torna conto um
conto, ou seja, a busca da essência a qual distingue o conto dos gêneros, como a novela ou
romance, por exemplo. Registra-se a “criação do conto e sua transmissão oral. Depois, seu
registro. E posteriormente, a criação por escrito” (GOTLIB, 2006, p.13). Neste ponto temos
o conto enquanto criação, não de uma coletividade, mas de um escritor consciente de recursos
criativos. No confronto dos contos aqui analisados, buscamos os caminhos narrativos que
traçam cada autor para se chegar ao que o próprio Poe definiu, no século XIX, como sendo o
principal objetivo do contista que é o efeito de totalidade ou efeito único. Segundo Poe, um
escritor hábil procede da seguinte forma:
Não deve haver no conto, pelo objetivo de causar um efeito emocional no leitor ao
final da leitura, e também pela própria natureza breve do conto, nenhuma palavra cuja
1
Graduando do curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão - gladdking@hotmail.com
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Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres. Atualmente é professora
titular da Universidade Federal do Maranhão onde é professora de Língua e Literatura Inglesa.
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Evidenciamos que Piglia não contradiz Poe, mas o coloca em nova perspectiva; o
efeito surpresa nada mais é do que o efeito único previamente premeditado.
Esquematicamente podemos visualizar esta dinâmica narrativa no seguinte gráfico 1:
nesses elementos de cruzamento revelam-se a compreensão do enredo dos mesmos. Note, por
fim, que a linha segmentada ao final ascende: é a representação gráfica para o "efeito
surpresa" que se produz quando o final da história secreta aparece de forma intensa na
superfície da primeira.
A aproximação dos contos não é apenas estrutural mas também temática, podemos
resumir o enredo dos contos coincidentemente como: uma personagem que deseja vingança
(Montresor e Ricardo), mas sem que o outro (Fortunato e Raquel) saiba de sua intenção a
princípio, assim, guia a vítima para a sua última morada. Confessa Montresor que deseja
vingança por ter sido ofendido pelo amigo Fortunato; Ricardo vinga-se da ex-namorada por
trocá-lo por um ricaço.
O procedimento metodológico aqui apresentado, visto a intertextualidade presente dos
contos, é apresentar tais intertextos intercalados a fim de confrontar suas características
temáticas e técnicas, conforme a peculiaridades de cada autor.
O leitor familiarizado com os contos de Poe conhece bem a afabilidade, humor, e por
que não, o carisma de seus narradores personagens. São personagens que ganham a confiança
do leitor para o acontecimento insólito que está prestes a narrar. Recorrentes casos como o
narrador de O gato preto: “Não espero nem peço que se dê crédito à história sumariamente
extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar.” (POE, 2002, p. 39). Não
pede confiança, mas em tom como quem confessa para um amigo suas profundas angústias (e
neuroses) é sincero: “Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os
meus próprios sentidos se negam a aceitar.” (Idem). Ou ainda o assassino que se esconde no
canto escuro do quarto enquanto observa sua vítima em O coração denunciador; o conto é
uma espécie de monólogo do personagem-narrador, obcecado pelo olhar de abutre de sua
vítima, um velho, apavorado na penumbra do quarto. O velho só se manifesta no conto
através do “olho de abutre” e o som do seu coração que bate – ao menos o assassino crê que
seja o coração do velho – (CALVINO, 2004, p. 279). Poe, inaugura um tipo de fantástico, que
será dominante na segunda metade do século: o fantástico obtido com os mínimos meios, todo
mental, psicológico; método o qual Lygia Fagundes Telles é uma exemplar representante: “É
verdade – nervoso -, eu estava assustadoramente nervoso e ainda estou; mas por que você
diria que estou louco? A doença tinha aguçado os meus sentidos...” (POE, 2002, p.280)
Narrador tão extremamente lúcido quanto perturbado pelo “olho de abutre” de sua vítima que
repousa em seu leito. “Como posso estar louco? Ouça com atenção! E veja com que sanidade,
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com que calma sou capaz de contar a história.” (Idem). Assim é a personagem Montresor,
assassino (ou justiceiro?) do conto O barril de Amontillado, mais um exemplo de narrador
que se confessa, lúcido, e visivelmente perturbado por pela ideia fixa da vingança.
O leitor - ou algum interlocutor - é invocado no discurso pelo narrador, que declara ter
certa intimidade para com o narrador-personagem. “Pois, conheceis tão bem a natureza do
meu caráter”. O “castigar ficando impune” é a nota do crime perfeito, insuspeito. Por fim,
deveria proceder da forma que só no momento derradeiro a vítima ficasse consciente que está
sendo punido. Aqui encontra-se, de forma condessado, o enredo que o conto irá desenvolver.
Este conto de Poe configura uma narrativa onde encontramos, no entendimento geral
deste, uma característica que é frequente em Lygia Fagundes Telles, que é o desfecho que não
conclui; não fecha a história. No caso, a discussão poder-se-ia nutrir da questão da
legitimação da “vingança” de Montresor, pois jamais é deixado revelar a natureza das injúrias
que insultara tanto o narrador. Vejamos agora, como Lygia, nas palavras de Poe, adquire o
controle da alma do leitor nas primeiras linhas de seu conto.
“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. Á medida que avançava, as casas
iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos
baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato
rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a
única nota viva na quietude da tarde. (TELLES, 2009, p.135)
impressão que o conto começa de algum ponto do meio, pois o leitor pega o bonde andando.
Não é construindo todo um cenário para só depois o drama (ação) realizar-se.
“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira.” Um pronome pessoal de antemão é
apresentado, como se já tivera sido citado um nome de quem seria “ela”. Ela que sobe “sem
pressa” a “tortuosa ladeira”. Já sabemos que ela que sobe, mas reluta em ir para onde quer
que seja. Não anseia por chegar. Enfim, o caminho não é um dos mais convidativos. Mas para
onde irá esse caminho tortuoso? O leitor atento se perguntará. Para um lugar onde tem-se “rua
sem calçamento” e “mato rasteiro”, um lugar onde a única nota viva seria das poucas crianças
que ali brincam. Observemos que Lygia minunciosamente constrói o clima do conto com
pinceladas sutis, construindo uma espécie de simbologia que anuncia de forma sugestiva o
que está prestes a se contar. Descobrimos a seguir que a personagem está indo encontrar o ex-
namorado no cemitério, mas o clima soturno já estava presente desde o primeiro parágrafo.
Podemos dizer que rua sem calçamento e mato rasteiro são elementos do campo semântico de
cemitério, e por antítese a morte, temos a “cantiga infantil que era uma nota viva na tarde”
Notemos, como, em ambos, bem como aludiu Poe, o senário é construído com rigidez
matemática. “Na composição toda, não deve estar escrita nenhuma palavra cuja tendência,
direta ou indireta, não se ponha em função de um desígnio preestabelecido”. (POE, 1999,
p.409). Porém, devemos atentar não somente as semelhanças, mas sim o que torna cada autor
peculiar. Poe faz o leitor consciente de sua trama, o narrador declara seu procedimento de
vingança; Lygia, apenas incita, tanto através de recursos simbólicos quanto de insinuações e
ambiguidades. Como apontou a professora Regina Dalcastagnè em seu ensaio Renovação e
Permanência: o conto brasileiro da última década:
quando de Tchekhov pela criação de uma atmosfera que engana o leitor onde pensa-se que
nada demais está a acontecer.
No conto clássico à Poe, nos termos de Piglia (2004), contava-se duas histórias de
forma declarada, contava-se uma, anunciando o que estava por trás, no conto contemporâneo
as duas histórias fundem-se, ao exemplo de Katherine Mansfield em The Garden Party, onde,
o clima de céu azul ideal uma festa no jardim sobrepõe tacitamente o velório logo do outro
lado da rua. Os dois planos que se imiscuem exaltam temas duais como morte-vida,
sensibilidade-insensibilidade. Como não aludir à personagem Tatisa de Antes do Baile Verde
que se prepara para o carnaval enquanto o pai está moribundo no quarto ao lado? Lygia
constrói sua narrativa concentrando discursos velados que se misturam na forma de
desencontro. Desenvolveremos tal princípio a seguir ao analisarmos a relação dialógica dos
amantes em desencontro na autora.
Já aludimos a respeito da preferência de Poe por narradores-personagens; vamos
analisar as propriedades da escolha do foco narrativo em terceira pessoa em Venha ver o pôr-
do-sol. Tal foco instala uma relação diferente da relação em primeira pessoa entre o leitor e o
narrador. Lembrando que as teorias de Poe, inaugura a presença do leitor na narrativa, pois o
efeito único é o efeito emocional que a narrativa causa no leitor. Narrar em terceira pessoa
não apresenta mais tanto o contrato de confiança naquilo que é dito, como acontece em
primeira pessoa; mas sim um olhar externo, em câmera, do que está acontecendo no exato
momento. Porém, em Lygia, este “olhar em câmera” é apenas aparentemente imparcial.
A narrativa flutua para uma espécie de discurso indireto livre onde as descrições do
narrador esconde pensamentos e intenções, tão propenso ao fluxo de consciência, o narrador
funde-se à personagem, porém não é dado ao leitor conhecer o que a personagem pensa. Esta
dinâmica narrador-personagem-leitor confere um visualismo ambíguo ao conto.
– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei,
se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos.
Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em
redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se
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aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem
como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem
deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –
Você fez bem em vir. (TELLES, 2009, p.139.Grifos nosso)
Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos
de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em
duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto
têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das
duas histórias. Os pontos de cruzamento são a base da construção. Conta-se
uma história enquanto se está contanto outra, e a maneira como as duas se
articulam encerra os problemas técnicos do gênero. (PIGLIA, 1992, p.60)
Tais unidades de tempo e espaço contribuem para que os contos caminhem em direção
ao efeito único. Os elementos manipulados (tempo, espaço, foco narrativo, descrições,
sucessão de incidentes) circunscritos nessa “moldura” espaço-temporal são meios que
potencializam o efeito e tensões das narrativas.
Uma vez situados o tempo, o espaço e de que maneira se dão os focos narrativos nos
contos, vamos trazer à luz o estatuto simbólico, pertinente a responder a questão levantada por
Vera Maria Tietzmann Silva: “Mas como esse efeito (efeito único), que também poderíamos
chamar de atmosfera emocional, é construído com palavras num dado conto? (SILVA, 2005,
p.177) Na perspectiva aqui apresentada, os elementos simbólicos caracterizam os pontos de
cruzamento entre a história aparente e a história cifrada – os ápices do gráfico inicialmente
aprestado (Gráfico 1). A questão do intercruzamento das histórias, que segundo o teórico
argentino, encerra a problema técnico do gênero (PIGLIA, 1992, p.60), nos dados contos,
encontram-se nesses vértices, onde a história que o leitor somente irá ficar ciente no final do
conto no “efeito surpresa”. Vemos essas pistas narrativas da história submersa em história em
primeiro plano.
Analisando o primeiro parágrafo de cada conto encontramos consubstanciado o plot
(enredo) de cada conto. Porém antes mesmo destes temos os títulos que simbolicamente já
representam uma forma de morte. Amontillado é um vinho espanhol produzido desde o século
XVIII, na região de Andaluzia (Espanha). A tradição faz inúmeras referências ao vinho
enquanto uma bebida divina; para o cristianismo simboliza o sangue de Cristo; para os
gregos, substituía o sangue de Dionísio, porém ambos como valor de imortalidade. No conto,
a bebida é apresentada de forma jocosa, já que está ligado diretamente à morte e não, e a
imortalidade, de Fortunato, que é encontrado ébrio em meio a rua numa noite de carnaval, e
ainda consome mais da bebida nas catacumbas induzido por Montresor. O vinho também
aparece com representante da vingança, “causador de embriaguez [...] é símbolo da loucura
que Deus provocou nos homens e nas nações infiéis e rebeldes para melhor castiga-las”
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p.957). Além de constituir a passagem de um estado
de lucidez para a inconsciência, da luz a escuridão da razão, como um pôr-do-sol.
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Vemos que Lygia optara, fortuitamente, para título de seu conto por um convite ao
pôr-do-sol, convite que exprime fim de um clico e início de outro. O crepúsculo é uma
imagem espaço-temporal: o instante suspenso. Momento de suspensão que é morte de um e
anúncio do nascimento de um outro: um novo espaço e um novo tempo sucederão aos antigos,
Para além da noite esperam-se novas auroras.
Aludimos então, aos diálogos nostálgicos dos ex-namorados, onde surge um Ricardo
que tenta dissimular suas mágoas. O encontro representa a morte de Raquel e a morte das
mágoas de Ricardo; a hora da saudade onde as lembranças são passadas a limpo para nunca
mais, então, o amante vingado, em novo espaço-tempo, acende “...um cigarro e foi descendo a
ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda” (TELLES, 2009, p.144). Expressa
tranquilidade e renascimento.
Outro elemento que podemos encontrar em ambos os contos é a representatividade dos
sorrisos, que jamais são sinceros. Os sorrisos servem tão somente para esconder as
verdadeiras intenções de vingança.
Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a
Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a
rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da
ideia da sua imolação. (POE, 2002, p.29)
O narrador em Poe, de forma direta, declara que o riso é falso, o que nos faz inferir
que o narrador é cumplice ciente do desenrolar da trama. Em Lygia, Ricardo ri “afetando
encabulamento como um menino pilhado em falta." (TELLES, 2009, p.136.) A afetação da
personagem tem a intenção de dissimular a premeditação do crime, tanto para Raquel quanto
para o leitor.
Comparemos outros dois símbolos de morte que aparecem nos contos: a colher de
pedreiro e o cipreste. Fortunato questiona, de forma desafiadora, Montresor sobre o seu
pertencimento à Maçonaria, então ele responde sarcasticamente mostrando-lhe uma colher de
pedreiro. Fortunato entende como um ato jocoso, e o leitor também, porém no final quando a
colher é usada para emparedar a vítima, vemos que representa um elemento da história
cifrada. Vemos aqui a possibilidade de encontrar o motivo pelo qual Montresor jura vingança;
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a injuria que a Fortunato cometera talvez tenha sido as provocações pelo amigo não fazer
parte da Maçonaria, ou ainda, pela vaidade de sempre se dizer o melhor conhecedor de
vinhos. Em contrapartida, podemos atestar também as invejas de Montresor para com a
vítima: “Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos.
Você é um homem cuja falta se sentiria” (POE, 2002, p.30). Esse consiste o mistério do
conto, não é possível afirmar os reais motivos dos atos de Montresor e nem se realmente é
uma vingança. Vejamos narrador Lygia:
Raquel sente a nota de agouro, o frio psicanalítico da morte iminente, pois o cipreste,
não escolhido pela autora por acaso, é o símbolo da morte. Outro ornamento comum em
cemitérios seria as figuras de anjos, posto a representatividade destes como mensageiros de
Deus. Raquel termina “atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça
decepada” (TELLES. 2009, p.138). Reside neste ponto a simbologia da interrupção do mundo
divino com o mundo humano; os anjos, em sua qualidade de mensageiros, são sempre
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portadores de uma boa notícia para alma. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p. 61), mas
este, de cabeça decepada, não transmite boas-novas.
Como em Lygia as duas histórias (cifrada e aparente) são contadas como se fossem
uma só, vemos um discurso que emerge sobre outro. O narrador dá pistas da história cifrada:
outro ponto de cruzamento destas são as rugas e alguns gestos das personagens. Ricardo que é
descrito inicialmente como “jeito jovial de adolescente”, a cada momento que é provocado
pela ex-namorada, muda de expressão e surgem as rugas, enquanto ela tem gestos de distração
e de pouca importância para com ele, este a todo momento dá pistas de suas reais intenções
através desses símbolos - desatenciosa baforeja fumaça de seu cigarro na cara de Ricardo que
fala que ainda lhe ama, ao passo que no final, vingado, ele quem fuma intrépido saindo do
cemitério. Raquel esnoba-o declarando que o atual e rico namorado é riquíssimo e lhe levará
par ao Oriente, então
Vemos, então, que quando cada vítima nos respectivos contos desce suas escadas em
caracóis já estão simbolicamente assinando suas sentenças, estão passando de um plano
terreno para um espiritual. Nota-se que a relação dicotômica morte-vida é enfaticamente
revisitado, tanto no próprio tema dos contos, que acaba pela morte de Fortunato e Raquel,
quanto nos elementos simbólicos envolvidos no mesmo campo semântico como cipreste,
catacumba, cemitério, vinho e pôr-do-sol.
Evidenciamos deste modo, como cada autor articula os pontos de cruzamento entre as
histórias aparentes e cifradas. Ambos chegam ao efeito único, Poe, com sua densidade e
tensão psicológica, joga o leitor nas zonas abissais das neuroses de seus personagens. O leitor
é cúmplice das duas histórias que se articulam. Lygia realiza essa dinâmica de cruzamento,
chegando a tal efeito único com seu caminhar felino; os pontos de cruzamentos aparecem
como sugestões, como ambiguidades. Sua narrativa é fluida, levíssima, onde o silêncio dos
gestos e dos objetos pesa mais do que o dito. O leitor, em Lygia, não é cúmplice, mas outra
vítima que, como Raquel, é enganado e aprisionado surpreendentemente no mausoléu da
narrativa.
Referências
CALVINO, Italo. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das letras,
2004.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19ª Edição. Rio de
Janeiro: Ed. José. Olympio, 2005.
CORTAZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1974
DALCASTAGNÈ, Regina. Renovação e permanência: o conto brasileiro da última década.
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea,2001. Disponível em:
http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846121.pdf. Acesso em: 01/11/14.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 6ª Edição. São Paulo: ática, 1993.
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PIGLIA, Ricardo, “Teses sobre o conto”, in: Formas Breves, São Paulo: Ed. Cia das Letras,
2002.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. São Paulo: Globo, 1999.
______. Histórias Extraordinárias. Ed. Nova Fronteira. 2002.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. Transitando nos limites: uma leitura de As Formigas, de
Lygia Fagundes Telles, 2005. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/organon/article/ view/30067.
Acesso em: 04/11/14.
TELLES, Lygia Fagundes, Antes do baile verde, Rio de Janeiro, Ed. Cia das Letras, 2009.
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Introdução
O ser humano, por natureza, é um ser curioso, que sempre demonstrou esta
característica desde a sua gênese quando buscou não apenas adaptar-se as situações mais
adversas possíveis, mas também fazer dessas adversidades instrumentos que pudessem levá-lo
a dar um salto evolutivo.
Com o passar do tempo alguns seres humanos permanecem com essa instigante sede
pelo desconhecido, enquanto outros foram levados a ficarem estagnados de forma a não
conseguirem se perceber diante da sociedade. É evidente que essa estagnação foi
incrementada por diversos elementos de repressões sociais que foram engendrados durante a
construção da sociedade até os dias atuais.
Por cima dessa estagnação intelectual da humanidade que se tece a linha crítica da
José Saramago quando escreve O Conto da Ilha Desconhecida. Pois, ao apresentar um
homem que exige que o rei o receba pessoalmente para pedir-lhe um barco, porque acreditava
que ainda faltava um a ilha a ser descoberta, mesmo sendo oficializado que todas as ilhas já
foram descobertas, o autor expõe a necessidade da humanidade em indagar-se, mesmo quando
essa indagação se contrapõe ao “discurso oficial”.
São esses elementos supracitados que servem de alicerce para discutir, neste trabalho,
o papel do sujeito desse “homem que queria um barco” na sociedade e os discursos que dão
forma a obra. Como o discurso e o poder podem levar uma sociedade, aparentemente
esclarecida, se comportar de acordo com os mandos e desmandos de um comando central.
E como guias dessa navegação pelo desconhecido as figuras de Zygmunt Bauman,
Michel Pêcheux e Eni P. Orlandi se fazem importantes, pois serão os responsáveis por
explanarem teoricamente o estudo sobre a Identidade e a Análise do Discurso e como são
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão e integrante do Grupo de Estudos Ficção
Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital – FICÇA.
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A Análise do Discurso surge como uma prática que faz parte dos pressupostos
científicos da Linguística e da Comunicação. Pois observa as manifestações, individuais e de
grupos, pontuando como a formação dos falares, dos textos, das imagens, são meras
representações discursivas que necessitam não apenas de destaques, mas também de estudos
aprofundados.
Nos anos de 1960, as pesquisas e os estudos sobre a linguagem, e contexto em que
estavam inseridas, se desenvolvem de maneira única e bem precisa quando buscavam
identificar, no texto, o papel da linguagem estruturada na relação de poder existente na
sociedade.
Essa situação abre margem para que, na França, Michel Pêcheux e Jean Dubois
desenvolvam uma abordagem da análise do discurso que se alicerça nos estudos do linguista
Zellig Harris e na reelaboração da teoria marxista sobre a ideologia, feita por Louis Althusser.
Assim nasce a Análise do Discurso de linha Francesa.
O que se observa nesse momento na França, com a análise do discurso, é a união de
duas concepções científicas que possuem características distintas, A Linguística e as Ciências
Sociais, mas que não podem de estudas de maneira separadas quando se trata da análise do
discurso, como destaca ORLANDI (1999, p. 53):
Desta forma observa-se que a AD é uma ciência que se constitui em seus estudos a
interdisciplinaridade, pois trabalha conjuntamente com a participação de várias de várias áreas
das ciências humanas, e que no trecho supracitado se dar destaque a Linguística e as Ciências
Sociais.
A Análise do Discurso, desde o seu surgimento, vem colaborando muito para a
compreensão mais profundas dos textos principalmente por trabalhá-los evidenciando o (s)
discurso (s). Pois, leva em consideração os aspectos constituintes dos textos pontuando a
maneira como foram construídos e a forma como são apresentados, a ideologia, o social, a
história e o discurso coletivo e/ou individual. Conquanto, a figura que permeia o discurso
coletivo e o discurso individual é o sujeito. O sujeito discursivo, que pode ser caracterizado de
forma livre e/ou submissa, que no caso da submissão é caracterizado como assujeitado.
Sujeito e assujeitamento
A discussão sobre a figura do sujeito é permeada por ideias bem filosóficas e também
teóricas, por isso, da amplitude de se tratar de tal assunto. Entretanto, a amplitude sobre a
posição do sujeito na produção de sentido, quando discute a si próprio, amplifica-se ainda
mais no momento em que esbarra na Análise do Discurso.
Segundo o Mini Dicionário Aurélio o sujeito é um ser escravizado, cativo, obrigado,
constrangido que se sujeita à vontade alheia, passível. Sujeito esse que segundo Eni P.
Orlandi corresponde ao sujeito da Idade Média que era submisso aos discursos religiosos –
dogmas da Igreja – que correspondia ao comportamento do sujeito religioso.
Na gênese dos estudos da linguística, na esfera dos formalistas da língua, a forte
influência estruturalista, com Ferdinand de Saussure, o sujeito é posto como uma
subordinação do código linguístico, como ressalta a doutora professora em psicolinguística
Priscilla Peixoto Florindo, no seu artigo “As diferentes faces do Sujeito na Análise do
Discurso” publicado na Revista Língua Portuguesa. O sujeito passa a ser um enunciador
individual a partir dos estudos da pragmática textual, onde também se torna um ser
consciente. Todavia, o fio que tece o sujeito com a ideologia atrelado ao contexto sócio
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histórico ainda não existia. E é neste momento que aparece a Análise do Discurso criando
esse fio condutor.
A partir do momento em que esse sujeito ideológico surge com a AD ele passa por três
fases. A primeira fase, chamada de AD1, tem como destaque o sujeito relacionado “a
exploração metodológica, de uma noção maquinaria”, pois neste momento tem-se grande
efervescência dos ideais comunistas que estavam em grande oposição as políticas capitalistas
onde o sujeito tem seu aspecto de assujeitamento de maquinaria, pois o sujeito é preso por
regras específicas que delimitam o discurso em um dado momento (FLORINDO, 2013).
Na segunda fase, AD2, a formação discursiva é definida por Michel Foucault, onde
está marcada as regras controladas pelo social e que se constrói a partir de outras formações
de discursos. O sujeito discursivo continua com a característica de assujeitado, pois ainda não
é livre. Conquanto, se difere do sujeito discursivo da AD1 porque o seu discurso não é mais
pontuado de acordo com o momento histórico que vive, mas pelos papéis sociais (funções)
que exerce, por exemplo, o professor, o juiz, o motorista, etc. Mesmo podendo mudar de
funções esse sujeito discursivo fica preso a determinações de cada função que delimitam o
que ele pode ou não pode fazer.
No terceiro momento a AD3, toma como perspectiva os diversos discursos que
circunda a formação do discurso, não mais adotando o pensamento de independência do
discurso, mais sim o discurso sendo formado no seu interior, o interdiscurso. Mas, antes de se
analisar o conto faz necessário conhecer o seu enredo, por isso, iniciar-se-á a navegação pela
busca da ilha desconhecida.
Perante a porta das petições o homem diz que desejava um barco porque queria ir à
procura de uma ilha que ainda não tivera sido descoberta. A partir deste momento é que o
enredo do conto se desenvolve.
Os personagens no conto não possuem nomes próprios. Eles são identificados de
acordo com a posição social que eles assumem dependendo do momento em que aparecem na
obra. Por exemplo, o homem que vai de encontro ao rei no início do conto, é caracterizado
apenas como “o homem”, no momento em que ele faz o pedido o homem se torna “o
suplicante”, após a este momento, o suplicante, muda para “o homem que queria um barco”, e
assim por diante.
Essa mesma situação acontece com outra personagem. Logo que o homem está diante
da porta das petições quem o atende é “a mulher da limpeza” que depois de descobrir o que
homem desejava, decide acompanhá-lo em sua viagem assumindo, no final do conto, a
posição de “a mulher”.
José Saramago, com “O Conto da Ilha Desconhecida”, não tece críticas apenas aos
comportamentos sociais, mas também a própria situação em que o indivíduo se encontra
quando busca sair das amarras psicológicas e discursivas que não o deixam observar além das
possibilidades impostas por alguém (o discurso oficial) ou algum sistema (a ideologia).
Como já referido neste artigo um dos elementos que compõe a crítica de Saramago no
conto é a sua oposição ao modo de vida capitalista, que também é uma das principais
características do assujeitamento dos personagens.
Essa crítica ao capitalismo é marcada pela maneira como os personagens são
apresentados. Eles não possuem nomes próprios, os seus nomes são as funções que cada
personagem exerce de acordo com a situação em que são expostos. Já que no sistema
capitalista o ser humano é reconhecido pela função que exerce e não pelo o que ele realmente
é.
No início do conto já é possível se observar a crítica do autor ao modo de vida do
capitalismo, pois o primeiro personagem é apresentado como “um homem”, o demonstrando,
desta forma, que se trata de uma pessoa qualquer. O uso do artigo indefinido destaca muito
bem esse sujeito homem.
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No decorrer da história, quando um homem demonstra que desejava algo ele passa a
ser chamado de “o suplicante”. Depois de dizer o teor do pedido, um barco, o suplicante se
torna “o homem que queria um barco”. O rei, depois de uma longa conversa, resolve atender
ao pedido do homem que queria um barco que, após esta nova situação, se torna “o homem
que ia receber um barco” e assim por diante.
Essas constantes mudanças de função até poderiam ser demonstração de certa
liberdade desse personagem, conquanto José Saramago escolhe nomear seus personagens de
acordo com a situação que eles vivenciam porque é um reflexo do comportamento capitalista,
pois as pessoas ficam aprisionadas a amarras sociais que são delimitadas pelo o que elas
fazem.
Sendo assim, esse “dinamismo” oriundo de um discurso ideológico capitalista leva o
personagem a um assujeitamento, ou seja, um sujeito “livre”, mas ao mesmo tempo submisso,
como cita ORLANDI (2002, p. 51): “Essa é uma submissão, [...], menos visível porque
preserva a ideia de autonomia, de liberdade individual, de não determinação do sujeito. É uma
forma de assujeitamento mais abstrata e característica do formalismo jurídico do capitalismo”.
O próprio homem que muda várias vezes o seu nome (função) durante a história
demonstra claramente esse aspecto citado pela Eni Orlandi. O principal fator do conto é a
busca por uma identidade, como pode ser observado no seguinte trecho SARAMAGO (2012,
p. 40): “[...] mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela
estiver [...]”. Zygmunt Bauman, no livro Identidade, argumenta que:
Encontrar a ilha desconhecida não representa apenas um novo local geográfico a ser
descoberto, é mais do que isso, ela representa a coragem de um homem que decide ir além dos
limites impostos pelo discurso oficial. É a materialização da busca de um homem que até
certo momento permanecia cômodo com a situação, mas que após refletir sobre o seu papel na
sociedade sai à procura de sua identidade.
O ato do homem querer mudar, fugindo do sistema imposto, causa espanto, pois levam
a todos os envolvidos pelo sistema a se comportarem de maneira estranha. É justamente o que
ocorre com um homem quando decide procurar a tal ilha desconhecida, pois diante de um ato
tão incomum, o rei muda seu comportamento, recebendo esse homem suplicante, na tentativa
de manter a situação controlada temendo que algo acontecesse fora do programado. Isso é
observado no seguinte trecho:
desconhecido é nada mais e nada menos que a tentativa de procurar descobrir a si mesmo.
Sobre isso Bauman comenta:
Talvez o grande elemento que faz todo o conto se movimentar nem seja pela situação
de se procurar uma ilha desconhecida, e sim o fato de ser desconhecida. É o que se observa na
seguinte passagem conforme SARAMAGO (2012, p. 16-17):
[...] E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de fato
perguntou [...], Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem,
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, [...], A ilha
desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas,
Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas
nos mapas, Nos mapas estão as ilhas desconhecidas, E que ilha desconhecida
é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria
desconhecida, [...]
daqueles que constituem o poder central e daqueles que não tem coragem de sair da
comodidade.
Quando o homem recebe o barco a única que embarca na ideia dele é a mulher da
limpeza. Ainda assim ele vai à procura de marinheiros que estivessem dispostos a segui-lo
nessa viagem rumo ao desconhecido. A questão que, assim como o rei, os marinheiros
também não acreditavam no homem, como pode ser observado no seguinte trecho:
[...] E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver,
Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-
me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não
iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de
carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um
impossível [...] (SARAMAGO, 2012, p. 39)
Terra a vista!
Quando o homem do leme percebe que o barco está abarrotado de areia e que os
animais e plantas que os marinheiros trouxeram para a embarcação haviam ficado, o barco
começa a sofrer modificações. O trecho a seguir ilustra esse momento: “Por causa do atropelo
da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela
como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais chuva para que seja
um bom ano agrícola” (SARAMAGO, 2012, p. 61).
A ilha que o homem do leme tanto procurava na verdade vai sendo criada no decorrer
de toda a navegação que se iniciou em busca da ilha desconhecida. Como pode ser observado
no seguinte trecho conforme SARAMAGO (2012, p. 62):
É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde,
sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos
por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja
madura e é preciso ceifa-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu
ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras
espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra.
Esse é o primeiro momento em que o homem faz aquilo que ele realmente quer sem
ter que algo que o determinam fazer.
No final do conto o homem do leme percebe que não estava sozinho. A mulher da
limpeza foi a única a permanecer, desde o início, ao seu lado. Como pode ser visto no trecho a
seguir:
Neste momento o homem percebe que não estava mais diante da mulher da limpeza, e
sim diante de a mulher. O mesmo ocorre com a mulher que agora via o homem.
Porém, a busca pela identidade não é algo que se conseguirá tão fácil. Talvez ela seja
algo incessante e instigante, como elucida a passagem a seguir: “Pela hora do meio-dia, com a
maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma”. (SARAMAGO,
2012, p. 62). Pois ir de encontro a ela seja, quem sabe, ir à procura da essência do “SER”.
Todavia, o fato de não encontrar a verdadeira identidade não signifique que a identidade que
se adquire não seja própria.
Considerações Finais
oposição aos discursos oficiais. Mesmo assim, não se pode deixar de ressaltar que o homem
só conseguiu realizar o seu desejo de ir à procura da ilha com a concessão do rei que permitiu
que o homem levasse um dos barcos da doca, que se não fosse por esse fato talvez a viagem
de descobrimento da ilha desconhecida nunca teria sido iniciada.
Com isso, Saramago deixa a indagação sobre a real possibilidade da sociedade
contemporânea em conseguir encontrar um novo rumo, para a essência humana, que possa
acalmar seus anseios. O homem da ilha desconhecida, e todas as outras personagens do conto,
são impressões quase perfeitas do comportamento do homem pós-moderno, da ansiedade
gerada pelos paradigmas dessa pós-modernidade e da quase inexistência ou apagamento da
identidade.
Referências
PÊCHEUX, Michel. O discurso. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Pontes
Editores, 6ª ed. 2012.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 31ª
ed. 2012.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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Introdução
O Grande Gatsby, um dos principais romances de Scott Fitzgerald, foi escrito em 1925
e retrata a sociedade americana dos anos vinte de maneira realista e um tanto negativa em
uma dos períodos mais glamorosos da história ,The Roaring Twenties ou, Loucos Anos Vinte.
O romance, narrado por Nick Carraway, rapaz recém chegado à cidade e primo de um
dos personagens principais, Daisy Buchanan. Ele narra a história de um misterioso homem
chamado Gatsby e de seu imensurável amor por Daisy, mulher por quem se apaixonou
durante a Primeira Guerra Mundial e que, depois de 5 anos, seguiu sua vida cansando-se e
tendo filhos, enquanto Gatsby ainda nutria um forte sentimento por ela e a esperança de ainda
ficarem juntos.
Gatsby nutria por Daisy um sentimento semelhante ao que muitos nutrem pelo Sonho
Americano. E, assim, como a concretização do amor de Gatsby por Daisy era utópica, o
Sonho Americano, ideologia fortemente enraizada na cultura americana, principalmente nessa
época, também era impossível de se alcançar, ao menos de acordo com o romance de
Fitzgerald.
nos preços dos veículos e fez com que mais pessoas os adquirissem com mais facilidade.
(Brogan, 2001, p. 493). Dessa forma, a industrialização foi intensificada, o que também
expandiu o processo migratório. Muitas pessoas saíram de suas cidades e países em busca de
empregos.
A população da cidade, consequentemente, cresceu em grandes proporções,
provocando mudanças físicas no cenário social, como a criação de subúrbios, já que os não
havia espaço suficiente nas cidades para os imigrantes morarem; a construção de mais hotéis e
restaurantes mais afastados dos grandes centros, pois como muitos possuíam automóveis,
estes começaram a se deslocar com mais frequência.
Assim como grande parte dos romancistas, Fitzgerald pôs em sua obra muito de sua
vida pessoal. Ele conheceu sua futura esposa, Zelda Sayre, enquanto era tenente na Primeira
Guerra Mundial. Zelda era uma moça rica e considerada por ele “a garota dourada” assim
como Gatsby considerava Daisy. Como Fitzgerald não pertencia a alta sociedade e nem
1
Tradução nossa. “New York had conquered: the symbol of American life was no longer to be a log cabin or a
family farm, it was to be a gigantic cigar.”.
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possuía muito dinheiro, Zelda não aceitou se casar, pois a mesma exigia do tenente uma
ascensão financeira.
Após algumas dificuldades eles se casaram e adotaram o estilo boêmio da época, o que
levou Fitzgerald ao alcoolismo e, mais tarde, Zelda à insanidade mental. Talvez por esse
motivo o autor faça uma crítica negativa à sociedade da época, pois de fato ele experienciou o
que escreveu, como afirma o crítico John Callahan.
Assim como Fitzgerald, Gatsby também se interessou durante a guerra por uma moça
que não pertencia ao seu extrato social, e, para consegui-la, Gatsby buscou durante anos a
riqueza, achando que assim poderia comprar o seu amor.
Nick, narrador da história, ao descrever a sociedade da época, diz: “Nesse verão, todas
as noites havia música na casa do meu vizinho. Em seus jardins azulados pelo luar, homens e
garotas iam e vinham como mariposas entre murmúrios, champanhe e estrelas.” (Fitzgerald,
2013, p.51).
A citação acima demonstra como a sociedade era vazia em termos de valores. Nick
acabara de chegar em West Egg e ainda não conhecia Gatsby, mas percebera o grande
movimento em sua casa. Na obra, não vemos nenhum personagem de fato trabalhando, além
Nick e George, mecânico marido da amante de Tom, morador do Vale das Sombras.
Gatsby está sempre sendo o anfitrião de festas glamorosas e fazendo ligações
misteriosas, e Tom é um jogador aposentado que provém de uma família rica. As pessoas são
geralmente retratadas em festas ou momentos ociosos, evidenciando que nos anos 20 isso era
o mais comum.
2
“The contradictions he experienced and put into fiction heighten the implications of the dream for individual
lives: the promise and possibilities, violations and corruptions of those ideals of nationhood and personality
‘dreamed into being,’ as Ralph Ellison phrased it, ‘out of the chaos and darkness of the feudal past.’ Fitzgerald
embodied in his tissues and nervous system the fluid polarities of American experience: success and failure,
illusion and disillusion, dream and nightmare.”
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O sonho americano
O Sonho americano é uma ideia que foi construída pelos Estados Unidos desde muito
antes da década de 1920. O país sempre pregou a imagem de “Terra Prometida”, ou seja,
“Terra das oportunidades”, lugar onde qualquer um poderia reconstruir sua vida e viver
alegremente.
Porém, para se reconstruir, o homem precisaria trabalhar arduamente. É a ideia do
Self-made man, ou seja, “o homem que se constrói”, aquele que pode obter sucesso na vida
independente do seu histórico familiar ou extrato social, se trabalhar bastante para isso.
A ideia já existia antes da Primeira Guerra Mundial assolar o país, e durante esse
período a população começou desacreditar nos Estados Unidos como o melhor lugar para se
viver. Os políticos, no entanto, tinham consciência que precisavam restaurar essa imagem
americana, como afirma Bayan (2001, p.3). “O objetivo dos políticos era reafirmar ao público
que o idealismo dos ‘bons anos antigos’ poderia voltar à consciência americana. Agora que a
guerra acabou, a América poderia voltar ao normal”3
E isso também pode ser notado na obra, quando Gatsby escolhe não considerar tudo o
que Daisy viveu enquanto ele estava na guerra. Gatsby fazia planos de se casar na casa dos
pais de Daisy e formar uma família, sem considerar que ela já tinha uma.
Nick tenta abrir seus olhos, afirmando que não se pode repetir o passado, mas Gatsby
o contraria dizendo: “Não se pode repetir o passado? – ele gritou, incredulamente. – Mas é
claro que se pode!” (Fitzgerald, 2013, p. 127). Desse modo, Gatsby acreditava que poderia
voltar aos bons tempos, assim como os políticos afirmavam que a América poderia voltar aos
3
Tradução nossa. “The goal for politicians, accordingly, was to reassure the public that the idealism of the "good
old days" could return to the American consciousness. Now that the war was over, America could go back to
normal.”
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tempos de glória, a ser a Terra das oportunidades mesmo depois de ser assolada pelo período
bélico.
O conceito do Sonho Americano havia sido alterado pelo capitalismo. As pessoas não
buscavam apenas ter uma vida confortável e um emprego que pudesse os sustentar. Elas
queriam mais, pois “Não era suficiente afirmar que ter dinheiro era, por si só, o bastante.
Dinheiro proporciona as pessoas o capital necessário para comprar bens. Em termos da
individualidade dos anos 20, dinheiro define alguém como pessoa.”4 (Bayan, 2001, p.8). A
riqueza fazia parte da realidade da época, e era exatamente isso que as pessoas mais
almejavam.
Na época, como muitos começaram a ganhar dinheiro e precisavam aplica-lo para
fazer render, muitos começaram a investir em ações, que era uma das áreas mais lucrativas
dos anos 20. Por isso Nick se muda para a cidade, para tentar fazer parte dessa atividade tão
lucrativa. “Eu decidi ir para o Leste e aprender o ofício de corretor de ações. Todas as pessoas
que eu conhecia estavam trabalhando com ações,” (Fitzgerald, 2013, p. 15).
Talvez a partir dessa visão capitalista, o Sonho Americano dos anos 20 começou a
cair, pois estava contaminado pela busca incessante por dinheiro.
Jay Gatsby era o homem de origem pobre que conseguiu se refazer mesmo diante das
dificuldades. Ao conhecer Daisy, Gatsby era uma pessoa que não possuía fortuna, diferente
dela, então para “merecer” seu amor, ele teve que se reinventar. Ele mudou de nome – antes
se chamava James Gatz -, começou a sua busca pela riqueza.
Gatsby é rico, porque ele é um homem que se fez sozinho e que entendia as
condições dos anos 20 como sendo passível de seu desejo de tornar-se outra
pessoa. Descobre-se no romance de Fitzgerald o que significa dizer que a
América é um país onde as pessoas podem se reinventar.5 (BAYAN, 2001,
p.2)
4
Tradução nossa. “It is not enough to state that having money was on its own sufficient. Money provides people
with the capital to buy goods. In terms of 1920s individuality, money defines one as a person.”.
5
Tradução nossa. “Gatsby is rich because he is a self-made man who understood the conditions of the nineteen
twenties as being amenable to his desire to become someone else. One discovers in Fitzgerald’s novel what it
means to say America is a country where individuals can reinvent themselves.”.
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De fato, na história é possível ver a América como a Terra das Oportunidades. Gatsby
representa esse ideal americano de que qualquer um pode ser o que quiser, e ele conseguiu
traçar o caminho que queria para chegar até Daisy.
Assim como Zelda, para Fitzgerald, Daisy representava a “garota dourada”. A mulher
que parecia estar fora de alcance, e conquistá-la traria a sensação de ganhar um prêmio. Daisy
simbolizava a aristocracia que, no fundo, era o que Gatsby realmente almejava. Ela
representava a parcela dos velhos ricos, que desconsideravam o grupo dos que recentemente
adquiriram fortunas como parte de seu mesmo extrato social.
Ao revelar a Nick a maneira como conheceu e se apaixonou por Daisy, é possível
notar que Gatsby se encantou pelo que ela representava e não por quem ela era. Ele relatava
que ela era a moça mais cobiçada da cidade, que todos a queriam, e que ela possuía a mais
bela casa de toda região. Era realmente uma mulher muito rica, e ele se encantou com a vida
que poderia viver ao seu lado. De tal maneira que ao comentar sobre Daisy com Nick, ele
afirma que “sua voz estava cheia de dinheiro”.
Gatsby possuía tanto dinheiro quanto Tom, e talvez até mais, mas mesmo assim Daisy
não quis largar a vida que tinha, seu marido infiel e sua posição social por alguém que
afirmava amar. Isso mostra que Daisy na verdade não se importava. Ela brincava com os
sentimentos de seu marido e de seu amante, sem se importar com as consequências.
Daisy demonstrava ser uma pessoa insensível e isso fica ainda mais claro quando ela
atropela Myrtle, amante de Tom que ela não conhecia, e nem se importa, deixando Gatsby
levar toda culpa da morte da mulher.
A Lei Seca, como foi dito aqui anteriormente, deu margem para muitos enriquecerem
com o contrabando de bebidas alcóolicas e foi dessa forma que Gatsby conseguiu sua fortuna.
A ideia na qual consistia o sonho americano era que qualquer um poderia conseguir
sucesso na vida, independentemente de seu passado ou extrato social, se trabalhasse
arduamente. A partir dessa nova realidade social, percebe-se um desvio desse ideal
americano, pois assim como muitos, Gatsby não trabalhou honestamente ou arduamente para
conseguir sua fortuna.
Ele, assim como a maioria dos novos ricos, não poderia ser aceito pela alta sociedade.
E também não poderia concretizar o seu sonho, pois um dos fatores primordiais, que é o
trabalho árduo, não aconteceu. Talvez, a partir desse ponto, sua decadência teve início.
A decadência de Gatsby
Gatsby depositava em Daisy toda sua felicidade. Ele não vivia para si mesmo, mas
para seu sonho, com a ideia de viver uma vida confortável e feliz inspirada pela beleza de
uma adorável garota rica. Devido a sua obsessão por Daisy, Gatsby se ilude ao pensar que
pode comprar o amor com dinheiro (cf. Fahey 1973 apud Smiljanić 2011).
Gatsby, buscou algo que na verdade nunca poderia alcançar. Ele jamais poderia casar-
se com Daisy do modo que queria e jamais poderia fazer parte daquele grupo social. Talvez o
que Fitzgerald buscou mostrar é que esse ideal americano não existia/existe e, por isso, jamais
poderia ser alcançado.
Logo após o grande ápice, quando Gatsby pressiona Daisy a negar seu passado e
afirmar que nunca amou Tom e que iria ficar com ele, Daisy decide voltar para sua casa e sua
antiga vida com seu marido, agindo como se nada tivesse acontecido.
Nesse momento Nick percebe: “- Acabei de me lembrar que hoje é meu aniversário.
Eu estava fazendo trinta anos. Diante de mim se estendia a estrada ameaçadora e portentosa
de uma nova década.” (Fitzgerald, [1925] 2013, p.155).
Juntamente com os vinte anos de Nick, a década de 1920 também estava se esvaindo.
Muitos acreditam que Fitzgerald pareceu prever o que aconteceria no início da década de 30.
Assim como o mundo de Gatsby desmoronou no final do romance, a América foi devastada
pela Grande Depressão em 1929. E aquela sociedade boêmia e festiva ficou presa nos Loucos
Anos Vinte.
Considerações Finais
6
Tradução nossa. “The failure of the American Dream in his life is mainly due to his moral decay throughout the
novel. Instead of turning into an honorable man after earning his fortune, he turns into a quasi-member of Tom
and Daisy’s crowd through trying to live up to the material culture of that decade. He never quite fit in with them
but became morally relegated to association with that group. (…) Gatsby’s quest for happiness through illegal
and superficial means ultimately is the cause of his death, and therefore the collapse of his American Dream.”
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O Grande Gatsby é, de fato, uma obra que tem despertado o interesse da crítica não só
pelo seu valor estético literário, mas pela sua relação com importantes mudanças histórico-
culturais cujos resultados podem ser observados até hoje.
Referências
BAYAN, Andrew. The Quest for Normalcy in the Jazz Age. All College Writing Contest 5
(1): 1-13, 2001.
BROGAN, Hugh. The Penguin History of the USA. 2. ed. London: Penguin Boooks, 2001.
CALLAHAN, John F. F. Scott Fitzgerald's Evolving American Dream: The "Pursuit of
Happiness" in Gatsby, TenderIs the Night, and The Last Tycoon. In: Zimmerman, LEE (ed.)
et al. Twentieth Century Literature 42 (3): 374-395, 1996.
FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. Trad. Luis Humberto Guedes. 1. ed. São Paulo:
Geração Editorial, 2013.
THE DEMISE of the 1920s American Dream in The Great Gatsby. Disponível em:
<http://www.inforefuge.com >. Acesso em: 5 Out. 2014.
SMILJANIĆ, Siniša. The American Dream in The Great Gatsby. Croácia: Rijeka, abril
2011.
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Considerações Iniciais
O Autor: vida/obra
Leonardo Mota, Leota, era assim que gostava de ser chamado, nasceu em Pedra
Branca, no dia 10 de maio de 1891 e faleceu em Fortaleza, no dia 02 de janeiro de 1948.
Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará em 1916. Foi membro da
Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará, escritor, professor, advogado, promotor
de justiça, secretário do governo, tabelião, jornalista e historiador. Proferia palestras para
estudiosos e interessados folcloristas. Era um animador de rodas de amigos e intelectuais da
Praça do Ferreira. Intitulava-se o “último boêmio do Ceará”, pelo seu modo de ser, seu gênio
alegre e sua capacidade de interpretar o sertanejo.
Adagiário Brasileiro, como o próprio nome indica, é uma coletânea de adágios.
Permaneceu nas mãos de Leonardo Mota durante 13 anos. Por ocasião de sua morte, o livro
desapareceu, misteriosamente, e jamais foi recuperado, o que seria a obra principal do escritor
no campo do folclore. Reunindo notas manuscritas, apontamentos, rascunhos, publicações na
imprensa e capítulos finais de seus livros, seus filhos, Moacir e Orlando, fizeram um
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apanhado do que seria o livro integral, reconstituindo-o em pelo menos 80%, um grandioso
projeto de paremiologia comparada, envolvendo as línguas latinas. O legado de Leota é tão
rico que assim recomenda Cascudo (1999) a Orlando Mota: “Não mexe em nada do que o teu
pai escreveu. Orlando, Orlando... O que o Leota fez está feito e é sagrado”.
Folclorista dos maiores que já se teve, Leonardo Mota desempenha papel importante
na literatura folclórica brasileira. Defensor tenaz do sertão sofrido ressaltou a linguagem
simples do homem do campo. Tendo dedicado sua vida à pesquisa, cruzou o Brasil do
Oiapoque ao Chuí, viajou pelo sertão, observando e anotando as manifestações populares,
enaltecendo a inteligência e a vivacidade de espírito da gentehumilde do sertão. Em sua
pesquisa sobre a paremiologia nacional, selecionou adágios que foram comparados com cerca
de 5.000 adágios estrangeiros. A seguir, o acervo literário de Leonardo Mota, o príncipe dos
folcloristas brasileiros:
Cantadores (1921): poesia e linguagem do sertão cearense;
Violeiros do Norte (1925): poesia e linguagem do sertão nordestino. Foi premiado pela
Academia Brasileira de Letras, o que garantiu a Mota o título de Embaixador do Sertão;
Sertão Alegre (1928): poesia e linguagem do sertão nordestino;
No Tempo de Lampião (1930): história de cangaceiros, anedotário e notas sobre poesia e
linguagem populares;
Prosa Vadia (1932): palestras lítero-humoristas;
Cabeças-Chatas (1939/1993): Casa do Ceará em Brasília, perfil de alguns cearenses
notáveis;
Padaria Espiritual (1938/1939): história de um movimento literário no Ceará, 1892/1898;
Adagiário Brasileiro (1991): coletânea de adágios e expressões proverbiais do Brasil,
estudos de paremiologia comparada. Existe, sim, uma peremiologia tipicamente brasileira,
háum adagiário nacional riquíssimo, faltando apenas quem o estude e divulgue a filosofia
popular.
Pressupostos teóricos
A língua, pela própria dinamicidade, está sempre sofrendo alterações, que podem ser
condicionadas por fatores históricos, socioculturais e geográficos. E o léxico, tão rico e tão
dinâmico quanto a língua, é o conjunto das palavras de uma língua, as lexias. Desse modo,
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nas investigações sobre questões lexicais de um determinado grupo, não se pode prescindir de
levar em consideração a influência desses fatores, uma vez que é o nível que mais incorpora e
traduz estas alterações.
O léxico, segundo Biderman (2001, p. 179), representa “a somatória de toda a
experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através do tempo”. O
estudo do léxico é objeto de investigação científica de áreas de conhecimento distintas, as
ciências do léxico – Lexicologia (estudo científico do processo de funcionamento do sistema
lexical de uma língua), Lexicografia (seu estudo nas obras de referências: dicionários,
vocabulários, glossários) e Terminologia (estudo de termos técnicos de áreas de
especialidade).
O grande problema de se estudar o léxico advém do fato de se tratar de uma porta
aberta para a língua, quer modificando ou criando novos termos, segundo as necessidades
sócio-histórico-culturais dos seus falantes, uma vez que reflete essas influências no modo de
nomear a realidade que os cerca. Segundo Biderman (2001, p. 13), “foi o processo de
nomeação que gerou o léxico das línguas naturais”, perpetuando valores, crenças e costumes
de uma comunidade social.
Outra área de pesquisa que se volta para as diferenças dialetais ou regionais de uma
língua, notadamente no léxico, é a Dialetologia. As diferenças dialetais, marcadas
geograficamente são estudadas pela Dialetologia e pela Geografia Linguística, método da
Dialetologia que se refere “[...] à representação de dialetos, em mapas, que constituem os
Atlas linguísticos” (RECTOR, 1975, p. 24).
Os estudos dialetais sem deixar de lado o parâmetro diatópico (regional, espacial),
abrem espaço para a inclusão de outros parâmetros, tais como: o diastrático (estudo das
classes sociais), o diagenérico (estudo das ocorrências no sexo masculino e feminino) e o
diageracional (que reproduz z convivência das gerações). As tendências atuais conduzem a
evolução da Dialetologia tradicional, essencialmente diatópica (Geolinguística), para uma
Dialetologia pluridimensional que incorpora a verticalidade.
Inúmeras são as contribuições dessa nova dimensão nos estudos dialetais,
especialmente, nos que se desenvolvem sob a metodologia Geolinguística. O Atlas
Linguístico do Brasil – ALiB, por exemplo, trabalha, conjuntamente os três parâmetros: o
diagenérico, o diageracional e o grau de escolaridade.
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(1985). Seraine, porém, foi quem mais se destacou nas pesquisas diatópicas e diastráticas,
chegando mesmo a publicar o artigo Introdução ao Atlas Linguístico e Folclórico do Cariri,
em explorou, também, o critério etário (diageracional).
Metodologia
Constituição do corpus
Antes:
Antes a lã se perca, que a ovelha. Mieuxvautperdrelalaine que labrebis;
Antes cautela que arrependimento;
Antes de entrar, pensar na saída. Avant dentrer, songez à lasortie;
Antes tarde do que nunca. Plutôttard que jamais. Better late thannever;
Antes só do que mal acompanhado. Antes solo que mal acompaňado.
Hoje:
Hoje em dia, até santo precisa ser da moda;
Hoje em dia, o dono do cavalo anda na garupa;
Hoje em dia, quem menos corre é quem mais caminha;
Hoje rico é festejado, amanhã pobre e desprezado.
Análise de dados
O livro em estudo divide-se em 4 partes. O corpus para análise foi retirado da parte II,
composta pelos capítulos finais dos 4 primeiros livros: Elucidário, do livro Cantadores; 2
Modismo e Adagiário, do livro Violeiros do Norte; 3 Linguagem Popular, do livro Sertão
Alegre; 4 Filosofia Popular; 5 Silva de Ditados; 6 Apelidos Sertanejos e 7 Comparações
Matutas, do livro No tempo de Lampião.
Para este trabalho, foram aplicados questionários a 16 informantes da capital cearense.
Foram levantados 1.120 dados nos quais observou-se uma preferência por parte dos
informantes pelo uso da forma de maior ocorrência na sua comunidade. Inicialmente, é
preciso considerar que alguns informantes forneceram mais de uma designação como
resposta.
Os dados selecionados para a análise foram organizados de maneira a permitir
observar o aspecto diacrônico no discurso dos falantes, considerando-se a perspectiva do
léxico na sua relação com a história social das línguas.
No Quadro 1, apresentam-se as expressões registradas por Leonardo Mota e as
variantes registradas pelos informantes. Pode-se observar que algumas lexias apresentam
variantes quanto ao uso, dependendo da faixa etária, gênero ou grau de escolaridade. Outras
apresentam significado diferente, e há ainda aquelas com preferência pelas formas inovadoras,
principalmente, entre os mais jovens.
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A expressão “A cavalo dado não se abre a boca” não é conhecida na capital cearense,
mas “A cavalo dado não se olha os dentes”. Outra expressão “Galinha velha é que dá bom
caldo”, é conhecida e usada como “Panela velha é que faz comida boa”. Em “Mulher de
bigode não é pagode”, é conhecida e usada como “Com mulher de bigode nem o diabo pode”.
Expressões como: “Quando você ia pros cajus, eu já vinha das castanhas”, apresentou
variantes do tipo“ Quando você ia com a farinha, eu voltava com o bolo”; “ Quando você ia
com o fubá, eu já voltava com o angu”; “Quando você ia com o milho, eu já tinha comido o
fubá”; “Quando você ia com o milho, eu já vinha com a pipoca”, que se equivalem no sentido
de não ser novidade. Na linguagem dos mais jovens, a expressão “De papoco” – locução que
dá ideia avantajada. Ex.: Festa de papoco, apesar da convivência com os mais idosos a
preferência de uso é pela equivalente de sentido: É o que há; Bom pra caramba; Da hora; De
arromba; Top; Massa.
No Quadro 2, encontram-se os resultados obtidos através do questionário:
Quadro 2 – Resultados obtidos
Ensino Fundamental Ensino Superior
Expressões Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II
H M H M H M H M
C 47 21 34 77 33 39 17 40
CNU 39 40 46 24 20 27 38 49
NC 54 79 60 39 87 74 85 51
Total 140 140 140 140 140 140 140 140
Legenda: C (Conhece); CNU (Conhece e não usa); NC (Não conhece); H (Homem); M
(Mulher).
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Considerações Finais
Os resultados nos revelam que as expressões retiradas da obra citada acima são
conhecidas e usadas, principalmente, pelos cearenses da faixa etária II, acima dos 45 anos,
que vivenciaram esse momento histórico. Enquanto isso, entre os informantes da faixa etária
I, de 18 a 30 anos, a preferência é por lexias equivalentes às que chegaram a conhecer pelo
contato com outras pessoas que usam tais expressões.
Enfim, a realização deste trabalho destacou a importância de que se revestem as
pesquisas empíricas para o registro de variantes de um espaço geográfico, no caso, o da
capital cearense. No dizer de Isquerdo (2001, p.91), “o estudo do léxico de uma região mostra
dados que deixam transparecer elementos significativos relacionados à história, ao sistema de
vida, à visão de mundo do grupo estudado”.
Referências
Este artigo tem sua gênese numa dissertação de Mestrado por mim elaborada na
Universidade Federal da Paraíba, cujo título versa sobre Expressões de Fala em O Quinze, de
Rachel de Queiroz: uma análise léxico-semântica.
Seguindo as mesmas hipóteses e metodologia do trabalho anteriormente realizado: 1) é
possível realizar estudos lexicológicos a partir teorias linguísticas e sociológicas; 2) na obra
selecionada constam palavras, expressões e estruturas próprias da oralidade; 3) aspectos extra-
linguísticos são identificáveis no léxico dessa obra que nos permitem proceder a uma análise
léxico-semântica em que se configure a interface língua-sociedade-cultura, perfilamos as
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Por valor social entendemos qualquer dado que tenha conteúdo empírico
acessível aos membros de algum grupo social e um significado em relação
ao qual é ou pode vir a ser objeto de atividade... Por atitude entendemos um
processo de consciência que determina a atividade real no mundo social ... A
atitude é, assim, o equivalente individual do valor social; a atividade, seja lá
em que forma, é o vínculo entre eles... A causa de um valor ou de uma
atitude nunca é uma atitude ou valor isolado, mas sempre uma combinação
de uma atitude e um valor.
É oportuno lembrar que apesar de algum grau de consenso em torno de alguns valores
ser, possivelmente, inerente à própria idéia de sistema social, este consenso é sempre parcial,
principalmente, em sistemas maiores e mais complexos, a exemplo da sociedade.
Por seu turno, as práticas sociais de natureza não-ética aceitas por uma sociedade ou
subgrupos desta como tradição e aprendidas pelo indivíduo como hábitos constituem os
costumes.
Na obra analisada, dentre tantas ocorrências de palavras, expressões e estruturas
lingüísticas evocadoras de valores e costumes selecionamos para este espaço algumas
analisadas.
Comecemos por “─ [...] Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se
sujando com negra?” (p. 60, linha 24), em que, na essência de seu radical, a palavra
SUJANDO concentra a idéia de resto, de borra, de imundície, de grosseiro, em suma, remete
à noção de vilipêndio.
Assim, a estrutura verbal que ora se apresenta marcada pela noção de uma ação reflexa
e contínua, em que a palavra SUJANDO é a base de significação, na sua relação com os
vocábulos MOÇO BRANCO e NEGRA, mostra-se reveladora de uma atitude cultural, de teor
preconceituoso, fruto de um julgamento de valor baseado na crença estereotipada da
inferioridade da raça negra, em que se podem incluir, dentre outros campos, o da inteligência,
do caráter moral, da motivação, das habilidades. Conforme Alann Johnson (1997, p. 180), “O
preconceito é uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou
categoria social. Como atitude, combina crenças e juízos de valor com predisposições
emocionais positivas ou negativas”. Destarte, ANDAR SE SUJANDO revela um valor
sociocultural.
Essa atitude cultural denota-se, ainda, no emprego do vocábulo NEGRA, como
substantivo, em referência à personagem Zefa, “Zefa [filha] do Zé Bernardo”. A ausência do
termo moça, designativo de pessoa do sexo feminino, à medida que sugere a “coisificação” do
elemento humano, intensifica a idéia de aviltamento por parte da personagem Conceição em
relação àquela.
Conforme vimos, a referida “coisificação” é elemento compósito da fala de uma
personagem da raça branca – se é que no Brasil este adjetivo pode ser empregado nesse
sentido com segurança – mas que tal elemento também encontra-se na fala de personagem da
raça negra: “─ O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra
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bico de cabra que nem nós...” (p. 57, linha 15), o que ratifica a força desse valor cultural
preconceituoso da sociedade retratada na obra em foco.
Numa fala da personagem D. Inácia outro valor é identificado, desta feita, envolvendo
a função da mulher naquela sociedade: “─ E para que você [Conceição] torceu a sua
natureza? Porque não se casa?” (p. 124, linha 29)
A Mãe Natureza é feminina! Todo dia, num processo contínuo, renova-se, recicla-se,
no seu papel procriador.
Ao empregar o termo TORCEU, significando alterar, modificar, e complementar-lhe o
sentido com A SUA NATUREZA, enquanto constituição orgânica, a locutora – Dona Inácia,
avó de Conceição – questiona a neta, estabelecendo um paralelismo entre as duas naturezas,
apontando o que deve ser feito pela natureza humana nos moldes da MÃE NATUREZA, e,
assim, deixando situar-se na sua linguagem um valor ético de cunho místico, baseado na
gênese e na funcionalidade do Universo.
Esse dever fazer da natureza humana feminina, em seu papel procriador, reflete-se na
imediata indagação em que ele aparece condicionado a uma atitude ético-sociocultural: de
casar-se.
Assim, nesta fala de Dona Inácia, estão circunscritos valores socioculturais que
orientam para a compressão de que à mulher cabe casar para depois procriar e, socialmente,
cumprir o seu papel de mãe, esposa e dona de casa, em suma, formar uma outra instituição
social da qual ela é o esteio emocional.
Em “─ E se a rama faltar, então, se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar
meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos...” (p. 12,
linha 10), a carne é a parte macia, musculosa, mais suculenta, portanto, mais digerível do
corpo do homem e do animal; o osso, ao contrário, é a mais dura, menos digerível.
Neste adágio proferido por Vicente, em censura a “Dona Maroca da Aroeiras”, que,
considerando vãos os gastos excedentes com o gado, em razão da seca, ordenou que os
soltassem, a palavra CARNE, ao tempo em que é metonímia de todas as substâncias
imprescindíveis à manutenção da vida, metaforiza o trabalho, o esforço e a dedicação
necessários à conservação e ao funcionamento da fazenda e, por conseguinte, a garantia do
alimento para o corpo e para a alma de seu proprietário.
O vocábulo OSSOS, por sua vez, representa as dificuldades, as agruras, os obstáculos
que Vicente tem de enfrentar, em face da seca, para garantir àqueles a permanência da vida.
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diferença que fazia do irmão doutor e teimava em não querer ‘ser gente’...” (p. 17, linha 27)
passa, então, a significar o elemento que por meio do estudo destaca-se daqueles que não o
realizam, de sorte que, em determinadas famílias, ser professora normalista, médico, padre,
advogado, dentista circunscreve-se em O Quinze como paradigma social baseado no valor da
relação título-status. Tal expressão parece ter sido transportada para além dos limites do
Sertão Nordeste ao encontrar eco em outras localidades brasileiras, talvez pela sua forte carga
semântica, abrangendo, ainda, outros campos significativos.
Por fim, apresentamos o excerto “[...] achando a vida do sertão uma ‘ignomínia’, um
‘degredo’, e tendo como única ambição um emprego público na Capital” (p. 18, linha 9) ,
cujos destaques foram também objeto de análise.
O verbo achar, neste contexto, já preanuncia julgamento de valor por parte da
personagem Paulo – bacharel que vivia em Fortaleza – que o faz baseado em outro
julgamento refletido no termo ‘IGNOMÍNIA’, grande desonra imposta por um julgamento
público, o que se reafirma em ‘DEGREDO’, afastamento compulsório de um contexto social:
a Nação.
O serviço público está sempre presente, tanto em procedimentos bem definidos da
União, dos estados, dos municípios, dos territórios, quanto nas ações dos poderes
governamentais do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário, tripartição característica dos
regimes republicanos – que editam leis, em torno das quais dirimem dúvidas e, ainda,
tornam efetivo o cumprimento daquelas que se dizem baixadas em nome do interesse do
cidadão, da coletividade e da preservação do próprio país.
Como diz Belmiro Siqueira, no Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio
Vargas (1987, p. 1111), “O Estado moderno, direta ou indiretamente, é forçado a intervir em
todos os setores da vida da nação; não porque o queira, mas porque os grupos sociais assim
exigem [...] ‘mesmo quando temem que o faça demasiadamente’”, o que, socioculturalmente,
confere ao servidor público um nível de importância.
A ambição de várias categorias profissionais é, assim, tornarem-se parte do corpo
funcional de uma das frações do organizado, assim como o é para Paulo, pois vislumbram no
serviço público um status, como profissional e cidadão, que tem a garantia de um bom salário,
portanto, de poder aquisitivo diferenciado e que se mantém por uma aposentadoria.
Tantos são os exemplos de valores e costumes configurados no léxico da obra
analisada, mas os limites aqui impostos não nos permitem delongas. Restando-nos registrar
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que após a conclusão do estudo proposto, foi possível constatar a convalidação das teorias
representadas.
Para efeito de elucidação da análise, e alertas para o aspecto afetivo/expressivo da
língua, primeiramente, buscamos dentre os elementos lingüísticos selecionados aqueles que,
em virtude de seus valores lexicais e semânticos, evocassem valores e costumes. Estes foram
identificados. Alguns deles, enquanto tal, fundamentam a estrutura estratificada daquela
sociedade, situando-a dentro do contexto maior do País. Esses valores abrangem o campo
ético-místico-religioso e se manifestam nos elementos lingüísticos denotadores de práticas e
rituais, quer em descrição do narrador, quer efetivados por personagens, bem como em suas
falas mais espontâneas.
Assim, os objetivos propostos foram atingidos, sem que isso signifique o esgotamento
temático em relação à obra, cabendo, pois, a outros pesquisadores o aprofundamento do
mesmo.
Referências
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Pessoa, A UNIÃO Cia. Editora, 1983.
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FENESC, 1990.
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______. Léxico, produção e criatividade: processos do neologismo. São Paulo: Global,
1981.
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria Lingüística (lingüística quantitativa e
computacional). Rio de Janeiro - São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1978.
BOAS, Franz, Antropologia cultural, - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COSERIU, Eugênio. Fundamentos e tarefas da sócio e etnolinguística. In: I CONGRESSO
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CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. – 2 ed., Bauru: EUDSC, 2002.
DIALECTAQUIZ, Maria do Socorro Burity. Uma incursão lingüística em Primeiras
histórias de Guimarães Rosa: aspectos léxico-semânticos. UFPB/João Pessoa: Dissertação
(Mestrado), 2003.
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Introdução
1
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba - UFPB
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A Obra
Eu sou fã de vaquejada
Ou festa de apartação
Correr no mato encourado
De guarda-peito e gibão
Ferrar gado e vacinar
E puxar boi no mourão
Só me sinto satisfeito
Quando me vejo ocupado
Tirando leite de vaca
Vendo o bezerro “apeado”
E quando tomo café
Vendo o cavalo selado
É carreira disparada
Por cima do tabuleiro
Por entre paus e cipós
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Rasga-beiço e marmeleiro
Mas se não trouxer o boi
Não prova ser bom vaqueiro
Aportes Teóricos
Sociolinguística
A importância da lexicologia é ressaltada por Ulmann (1964, p. 62), quando diz que “a
palavra desempenha um papel de tal modo decisivo na estrutura da língua que necessitamos
de um ramo especial da linguística para examinar em todos os aspectos. Chama-se a esse
ramo Lexicologia [...]”. Para esse autor, a lexicologia é uma subdivisão dentro da linguística
que transforma a palavra em objeto de estudo.
Por meio da lexicografia, conceituada como a arte ou técnica de compor dicionários, é
possível realizar a transcrição do léxico e organizá-lo num glossário geral. Nesse sentido, a
Lexicografia objetiva, sobretudo, a elaboração de dicionários, vocabulários e glossários.
O fazer lexicográfico não é uma atividade contemporânea, pelo contrário, pois:
Assim sendo, de acordo com Haensch, Wolf, Etinger e Werner (1982), a lexicografia
se ocupa da descrição do léxico enfocando os discursos individuais, os discursos coletivos, os
sistemas linguísticos individuais e os sistemas linguísticos coletivos.
Semântica
geral, a Semântica é definida como a ciência que estuda a significação; o estudo do sentido
das palavras e, de modo mais amplo, o estudo do sentido das palavras, da frase e do
enunciado. Nessa perspectiva:
Assim sendo, a semântica, em seu sentido mais amplo, nada mais é do que a ciência
das significações, ou seja - o estudo do significado da linguagem - o que a torna uma
importante ferramenta para os estudos de natureza linguística.
Metodologia
a) ficha lexicográfica;
b) caneta;
c) computador;
d) pen drive.
27 verbetes;
As entradas são apresentadas em ordem alfabética, em caixa alta, negrito, fonte Times New
Roman (tamanho 12);
Informação gramatical (adj. = adjetivo, exp. = expressão, s.f. = substantivo feminino, s.m.
= substantivo masculino, v. = verbo e i. = interjeição);
As indicações das palavras dicionarizadas com sentido equivalente (PDSE), palavras
dicionarizadas com sentido diferente (PDSD) e palavras não dicionarizadas (PND) são
apresentadas em caixa alta;
Entre parênteses, em caixa alta, constam as obras lexicográficas pesquisadas: Dicionário
Caldas Aulete Online (A.O.) e Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro (F.N.), para a
verificação da existência de palavras dicionarizadas com sentidos equivalentes, palavras
dicionarizadas com sentidos diferentes e palavras não dicionarizadas;
Definição;
Entre aspas está o registro da abonação;
Registro de variação em itálico é dado através da indicação VAR.
AJEITAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Arrumar. “[...] eu trato, eu curo, eu ajeito […]”.
APEADO adj.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Abaixado. “[...] tirando leite de vaca, vendo o bezerro apeado [...]”.
BEZERRO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
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Cria masculina da vaca. “[...] tirando leite de vaca, vendo o bezerro apeado [...]
CAATINGA s.f.
PDSE (A.O.; F.N.)
Vegetação tipicamente brasileira, geralmente composta de espinhos, que é encontrada no
semiárido do Brasil, em especial, na região nordeste. “[...] é melhor gastar dinheiro, mesmo
sem profissão, de pegar boi na caatinga, rasgando o couro da mão [...]”.
CARREIRA s.f.
PDSE (A.O.) PDSD (F.N.)
Corrida desordenada. “[...] é carreira disparada por cima do tabuleiro [...]”.
CHINCHAR v.
PDSD (A.O.) PND (F.N.)
Puxar. “[...] encaretá-lo e chinchá-lo pra mostrá-lo ao meu patrão”.
CIPÓ s.m.
PDSE (A.O.; F.N.)
Planta trepadeira parecida com um corda. “é carreira disparada por cima do tabuleiro, por
entre paus e cipós [...]”.
COURO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Pele de certos animais. “[…] de pegar boi na caatinga, rasgando o couro da mão [...]”.
DISPARADA s.f.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Corrida desenfreada. “é carreira disparada [...]”.
ENCARETAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Fazer caretas no animal. “[...] encaretá-lo e chinchá-lo pra mostra-lo ao meu patrão”.
ENCOURADO adj.
PDSE (A.O.; F.N.)
Que se veste com roupa de couro. “[...] correr no mato encourado com guarda-peito e gibão
[...]”.
FERRAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
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Por marca em animal com ferro quente de brasa. “[...] ferrar gado e vacinar e puxar boi no
mourão”.
FESTA DE APARTAÇÃO exp.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Ato de partar; ato de separar algo ou alguém. VAR. vaquejada. “eu sou fã de vaquejada ou
festa de apartação [...]”.
GADO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Rebanho bovino. “[...] ferrar gado e vacinar e puxar boi no mourão”.
GIBÃO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Casaco de couro usado por vaqueiros. “[...] correr no mato encourado, de guarda-peito e gibão
[...]”.
GUARDA-PEITO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Colete de couro. “[...] correr no mato encourado, de guarda-peito e gibão [...]”
MAÇAROCA s.f.
PDSE (A.O.) PDSD (F.N.)
Extremidade cabeluda da cauda do boi. “[...] tem boi que a maçaroca deixa enrolada na mão
[...]”.
MANDINGUEIRO s.m.
PDSD (A.O.) PND (F.N.)
Mau. “para mim é diversão pegar um boi mandingueiro, bater com ele no chão [...]”.
MARMELEIRO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Árvore de tamanho pequeno cujo fruto é chamado de marmelo. “[...] por entre paus e cipós,
rasga beiço e marmeleiro, mas se não trouxer o boi, não prova ser bom vaqueiro”.
MOURÃO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Estaca de madeira ou concreto que serve para construir uma cerca. “sei que a festa no mourão
é muito mais animada quando a rádio e a tv se encontram nessa parada [...]”.
RASGA-BEIÇO s.m.
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Considerações Finais
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Referências
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minha vida: Zé Vicente da Paraíba. Recife: Coqueiro, 2009.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. O linguístico e o cultural nos contos populares
paraibanos. In: Simpósio: Tradição oral, Literatura Popular, Discurso etno-literário. 57.
Reunião Anual da SBPC. Fortaleza: UECE, 2005.
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Disponível em: http://www.aulete.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=o_que_e. Acesso
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BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires; ISQUERDO,
Aparecida Negri (org). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2ª Ed.
Campo Grande: Ed. UFMS, 2001.
COSERIU, Eugênio. Fundamentos e Tarefas da Sócio e Etnolinguística. In: Sociedade,
Língua e Cultura. João Pessoa: Shorin, UFPB, 1987.
FAULSTICH, Enilde. Para gostar de ler um dicionário. In: RAMOS, Conceição de Maria de
Araújo; BEZERRA, José de Ribamar Mendes; ROCHA, Maria de Fátima Sopas (org). Pelos
caminhos da Dialetologia e da Sociolinguística: entrelaçando saberes e vidas – homenagem
a Socorro Aragão. São Luís: EDUFMA, 2010.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba:
Positivo, 2004.
HAENSCH, Günther; WOLF, Lothar; ETTINGER, Stefan; WERNER, Reinhold. La
Lexicografia: De la linguística teórica a la lexicografia práctica. Madrid: Editorial Gregos,
1982.
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MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1996.
NAVARRO, Fred. Dicionário do Nordeste: 5.000 palavras e expressões. São Paulo: Estação
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OLIVEIRA, Ana Maria Pinto de; ISQUERDO, Aparecida Negri. As ciências do léxico:
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ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
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Introdução
[...] o estudo dos fatos de uma língua enquanto motivados pelos “saberes”
(ideias, crenças, concepções, ideologias) acerca das “coisas”, portanto,
também acerca da estratificação social das comunidades e acerca da
linguagem mesma enquanto fato “real”. Assim, por exemplo: de que modo
uma determinada organização lexical corresponde a um tipo determinado de
experiências e conhecimento intuitivo real? (COSERIU, 1987, p. 46)
Desse modo, as condições de verdade a que nos referiremos adiante serão aquelas dos
valores culturais da sociedade machista em que os falantes estão inseridos e, por conseguinte,
a constituição do homem se dará pelo valor exacerbado que se atribui à sua capacidade
sexual, seus atributos para praticar o sexo, em especial, a genitália masculina.
Aspectos Metodológicos
Narrações do autor
jatumama, dizem, mais de trinta centímetros. A maior do mundo. Decapa-la-ei com um golpe
de minha espada vingadora. Ficará saltando como rabo de lagartixa?” (p. 30)
O QUE DE FATO O Sr. ORICÃO POSSUI EM RIQUEZA DE POSSESSÃO = lexia
complexa que se refere ao pênis desconforme de Oricão.
“Lá vem o dito Oricão, com os cupinchas lhe ajeitando o nó da gravata, abotoando-lhe o
paletó e não dando fé, os puxa-sacos, pois do contrário teriam dado um jeito, do cordão da
calça do pijama do nosso pseudobemfeitor que saía escandalosamente pela braguilha da
calça propriamente dita, do termo, num efeito um pouco imoral, embora esse simples
cordãozinho fino nem de longe pudesse lembrar o que de fato o Sr. Oricão possui em riqueza
de possessão, segundo as más línguas.” (p. 59)
PENSAR SER HOMEM = lexia complexa que significa acreditar poder fazer sexo.
“Pensa que ainda é prefeito. Tem hora que pensa. Tem hora que pensa até que é homem.”
(p. 119)
PORTENTOSO adj. = extraordinário (DSE – AD, DInF)
“Tragam meu pai, o velho macho, o portentoso, para me dar uns gritos [...]” (p. 152)
HOMEM DOS HOMENS s.m. = o mais homem, mais viril, mais macho dentre os homens
(N.D.)
“Tragam eles, um por um, primeiro Josias pra me conversar, depois Jesonias pra me escutar,
por último meu pai, aquele, o homem dos homens.” (p. 152)
PENDURICALHO s.m. = órgãos genitais masculinos (DSD – AD, DInF)
“[...] gosta de ficar todo nu pra eu coçar ele, revirar na cama, os penduricalhos arrastando
no colchão. Quer um espelho pra ver? Faz tempo que não vê, hem, velhão cuiudo, porcão
macho? Num espelho você vê, quer vê? (p. 227)
Falas de Oricão
FURAR PAREDES = lexia composta que, de modo hiperbólico, remete à ereção do pênis
“Até porcas eu tive, por necessidade carnal da natureza, no tempo em que não podia
escolher. A força vinha, dominava, me conduzia. Cego, obedecia. Não existe mais esse
dominador, nada me domina cegamente, e sou dominado de olhos abertos. Nem aos mais
íntimos, se fosse contar, contava, não relatava, não confidenciava: naquele tempo eu furava
paredes.” (p. 74)
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MOMENTO DE COMPETÊNCIA = lexia composta que remete à saúde para fazer sexo
“Danem-se! Troco tudo que tenho por um momento de competência junto a Tininha.” (p. 77)
VERRUGONA s.f. = pênis avantajado (N.D.).
“Na escuridão da sala, minha mãozona por dentro da blusa, corrupiando aquelas
verruguinhas fibrosas: Virgem! Seu-Orico, podem ver. Ai, me machuca! Eu desabotoando a
braguilha: Pegue, veja que verrugona a minha.” (p.107)
MORTE s.f. = metáfora para significar a incapacidade de ereção.
“Acordo com a morte na alma, deito-me com a morte entre as pernas.” (p. 108)
VÚPOTE = onomatopeia para significar a velocidade e a força com que se introduz o pênis
na vagina.
“Por que deixei de ser homem? Quando eu vivia no meio da sujidade, tirando da fossa o
sustento, era homem até demais. Ah, eu furava paredes. Vúpote! (p. 108)
ARREMETIDA DO CÃO = lexia composta que remete a um movimento brusco para
deflorar uma virgem, romper seu hímen (cabaço).
Não havia cabaço que aguentasse a arremetida do cão de Orico, este aqui, o do cão agora
exorcizado de cabeça baixa, entregue.” (p. 109)
RAIZ s.f. = metáfora referente ao pênis.
“Hoje com toda riqueza, todo poder, e morto, morto nas calças, nada me serve, de nada me
sirvo. Tenho o unguento para nele me unguentar e vinho para louvar o Senhor; atraio aos
meus campos as gazelas formosas... Para quê? As ervas do meu jardim estão brancas, a raiz
murchou.” (p.109)
LESEIRAS DE CALÇAS SEM NADA DENTRO = lexia complexa referente a homens
fracos, frouxos, que não se sobrepõem às mulheres.
“Homem baixa a cabeça sem ter o que dizer, emprestando essa oportunidade a mulheres?
Homem é homem, não aquilo, aquelas leseiras de calças sem nada dentro.” (p.113)
PASSARINHO DA NOITE QUE NÃO MAIS AVOA, QUE INÚTIL AQUECE OVOS
CHOCADOS, GORADOS NO TEMPO = lexia complexa referente ao pênis de Oricão, que
não mais tem ereção.
“Tininha vai ter de me virar pelo avesso, descobrir dentro de mim em que parte do corpo se
esconde minha viveza, em que reentrância de carnes usadas dormem as forças da minha
aurora: passarinho da noite que não mais avoa, que inútil aquece ovos chocados, gorados
no tempo.” (p. 114)
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Considerações Finais
No falar de Oricão estão presentes as mais ricas referências ao pênis, ao sexo e à falta
dele. O personagem se constitui como homem a partir de sua virilidade, revelada em suas
memórias da jovialidade. No entanto, ao chegar na velhice, sente-se desconstituído dessa
faculdade a qual seja ser homem, uma vez que perdeu a capacidade de ereção: está morto.
Nas falas de outros personagens, Oricão é também visto como o mais macho, o
cuiudo, portentoso, aquele cujas esposas morreram após o parto, visto que por ele foram
“arrombadas”. Nesse sentido, o velhão macho é um dominador de mulheres, ele as penetra
como se fossem objetos para perfurar, broca – cerca de 30cm – em parede ou madeira.
O machismo, por sua vez, está em negar à mulher a identidade feminina, o direito de
escolher, de sentir prazer, como na passagem em que o velho Orico relembra o tempo em que
levou uma moça ao cinema para boliná-la e fazê-la conhecer sua verrugona. Também está no
modo como ele vê os homens que não conseguem resolver os problemas e dão vez a mulher
para falar. São homens sem nada nas calças. Mulher não tem voz, e homem que deixa mulher
falar não é homem de verdade.
A obra O Anjo do Quarto Dia está, portanto, recheada de expressões (lexias simples,
compostas e complexas) que, seja nas narrações do autor, seja nas falas de outros personagens
que apontam para a virilidade exacerbada e para a macheza de Oricão. Nas suas falas, por sua
vez, suas lamentações denotam o quanto importante é para ele tal virilidade. Sem ela, Orico
Rezende se sente morto, não é mais homem. Quando a tinha, era o homem dos homens.
Diante da diversidade de mecanismo figurativos utilizados para relevar esse
sexualismo (metáforas, hipérboles, perífrases) e da diversidade lexical que muitas vezes nos
defronta com palavras não dicionarizadas, percebemos que outros trabalhos mais
aprofundados precisam ser realizados, principalmente na verificação de outras obras de
Gilvan Lemos e na investigação de outros dicionários e glossários que tomem por base o povo
pernambucano.
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Referências
Introdução
1
Professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do RN. Doutorando em Letras pela
Universidade Federal da Paraíba. E-mail: sandro.sousa@ifrn.edu.br. Orientadora: professora Maria do Socorro
Silva do Aragão.
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Dialetologia tradicional dedicava-se mais aos estudos dos falares regionais e rurais, bem como
a sua distribuição no espaço, identificando-se, pois, com a linguística diatópica, horizontal.
Como o aparecimento da Sociolinguística nos anos 60, a Dialetologia recebe e, ao
mesmo tempo, imprime influências ao novo ramo linguístico então emergente. O novo
enfoque leva Ferreira e Cardoso (1994, p. 19) a asseverar que:
enquanto os dialetos são variações da língua cuja diferenciação mais avançada atinge também
a morfologia, chegando a acarretar dificuldades à comunicação.
Contudo, segundo a observação de Aragão (1983, p. 65), a tendência geral,
atualmente, é usar os termos dialeto e falar como sinônimos ou parassinônimos. Para a autora,
Ferreira e Cardoso (1994, p. 37) dividem a história dos estudos dialetais brasileiros em
três grandes diferentes fases, a partir de uma delimitação bipartite sugerida por Antenor
Nascentes em meados do século passado.
Para as autoras, a primeira fase compreende os anos entre 1826 até 1920. Foi no ano
de 1826 que o baiano Domingos Gomes de Barros, Visconde da Pedra Branca, escreveu a
primeira obra de natureza dialetal a se referir sobre a língua falada no Brasil, como capítulo
integrante do livro Introduction à l’Atlas ethnographique du globe. Segundo Aragão (2008, p.
10), na descrição da língua portuguesa no Brasil o Visconde mostrou as interferências e os
termos e expressões incorporadas ao português, partindo das línguas indígenas faladas no
2
Aragão refere-se aqui à classificação de Pottier (1972, p. 43) sobre três grupos de semas, distinguindo-os entre
genéricos: aqueles que indicam que o morfema pertence a uma classe conceptual (humano, material),
específicos: aqueles permitem distinguir os morfemas mais próximos de um mesmo domínio - são descritivos
(baixo, alto) - e virtuais: aqueles que correspondem às associações disponíveis na consciência dos locutores de
uma comunidade homogênea (vermelho, indicando perigo). Estes poderão, facultativamente, ser atualizados no
discurso.
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Brasil. Essa fase caracteriza-se pela riqueza de obras de cunho lexicográfico sobre o
português brasileiro.
A segunda fase começa com a publicação de O dialeto caipira de Amadeu Amaral e
tem como característica principal a profícua publicação na área de estudos gramaticais, apesar
de haver uma continuidade nos estudos lexicográficos caracterizadores da primeira fase. Os
trabalhos que merecem destaque nessa fase são as obras O dialeto caipira – obra inicial já
citada – O linguajar carioca, de Antenor Nascentes, publicada em 1922 e que teve uma
segunda edição em 1957, e A língua do Nordeste, de Mario Marroquim, originalmente
lançada em 1934.
A terceira fase inicia-se com as preocupações em produzir estudos de geografia
linguística que consolidem a disciplina no Brasil. Para Cardoso (2010, p. 138), o marco
inaugural desse período é um ato do governo brasileiro, especificamente o decreto no
30.643/1952, promulgado pelo então presidente Getúlio Vargas, com a finalidade principal de
elaborar o Atlas Linguístico do Brasil. Esse período estende-se até a edição do Atlas Prévio
dos Falares Baianos, publicado em 1963. Os nomes dos pesquisadores de destaque dessa fase
são os sempre lembrados Antenor Nascentes, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha e Nelson
Rossi. Desse modo, esses estudiosos foram os pioneiros que, por caminhos diferentes, deram
o impulso inicial à consolidação da Geolinguística Brasileira.
Conforme informa o site do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), a ideia do
ALiB foi retomada por ocasião do Seminário Nacional Caminhos e Perspectivas para a
Geolinguística no Brasil, realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em
novembro de 1996. Todavia, a extensão do Brasil com mais de 8 milhões de quilômetros
quadrados tornava, naquele momento, a aspiração de se criar um atlas nacional bastante
impraticável. Apesar dos esforços de destacados linguistas do Projeto, as discussões do
Seminário reconhecem que a ênfase deveria ser dada à realização de atlas regionais para então
se chegar ao ALiB. Desse modo, pode-se afirmar, em concordância com Aragão (2008, p. 4),
que uma quarta fase dos estudos dialetais estava em pleno desenvolvimento.
Feitas essas considerações sobre a história dos estudos dialetológicos e geolinguísticos
no Brasil, passamos a analisar a contribuição do Atlas Linguístico da Paraíba nesse contexto
nacional.
O Atlas Linguístico da Paraíba (ALPB) está historicamente situado na terceira fase dos
estudos dialetológicos esboçadas acima. Conforme já ressaltado, coube à coordenação de
Maria do Socorro Silva do Aragão e Cleusa Bezerra de Menezes a elaboração do terceiro
Atlas linguístico estadual do Brasil. Decorria o ano de 1984 quando dois dos seus três
volumes foram editados pela UFPB e CNPq.
A pesquisa se constituiu de 25 pontos (municípios) que foram escolhidos como base,
juntamente com mais 75, que compuseram os chamados municípios satélites o que
possibilitou cobrir todo o estado paraibano. Foram inquiridos 107 informantes, de ambos os
sexos, todos eles dentro da faixa etária compreendida entre 30 e 75 anos, com nível de
instrução variando entre analfabeto a primário completo.3
No que se refere ao método, foi aplicado um questionário dividido em duas partes,
uma geral com 289 questões ligadas aos seguintes campos semânticos: terra, homem, família,
habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação e atividades sociais; a outra parte,
específica, contém 588 questões versando sobre os então cinco principais produtos agrícolas
paraibanos: mandioca, cana-de-açúcar, agave, algodão e abacaxi.
O primeiro volume traz uma parte introdutória, a metodologia da pesquisa, cartas de
identificação com descrições sobre a Paraíba, suas microrregiões, divisão municipal, as
localidade e seus gentílicos, identificação das inquiridoras e escolaridade dos informantes e,
por fim, as cartas léxicas e fonéticas organizadas de forma intercaladas. Para a elaboração das
cartas foram utilizadas as 68 questões que apresentaram alta frequência de ocorrência e maior
número de variantes léxicas e fonéticas. Desse modo, por exemplo, a carta léxica número 114
da pergunta 185, cupim é seguida pelas cartas fonéticas lubim, mamilho e castanha.
O segundo volume é constituído de cinco partes principais: a apresentação novamente
da metodologia, a caracterização histórico-geográfica da Paraíba, situação geo-econômica e
sócio-cultural das localidades, caracterização dos informantes, análise das formas e estruturas
linguísticas encontradas e um glossário com 363 verbetes dicionarizados em sentido diferente
do uso geral ou não dicionarizados. Para a feitura desse repertório linguístico foram
consultadas 08 obras, entre dicionários, vocabulários e glossários.
O glossário não traz definições, pois, segundo a autora, “o objetivo era remeter o leitor
ao termo básico, tema de cada carta” (ARAGÃO, 1984, p. 65). Cada verbete é acompanhado
3
Equivalente na nomenclatura adotada hoje ao Ensino Fundamental I.
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O ALPB revelou aspectos riquíssimos no que tange às variantes encontradas nos dados
transcritos nas cartas léxicas coletadas pelas inquiridoras.
Cleusa Palmeira B. de Menezes atuou em 25 localidades. A professora Maria do
Socorro Silva do Aragão atuou como inquiridora no ALPB em 07 municípios: a) João Pessoa
(Localidade 01); b) Guarabira (Localidade 04); c) Campina Grande (Localidade 07); d) Patos
(Localidade 17); e) Pombal (Localidade 20); f) Sousa (Localidade 22); e g) Cajazeiras
(Localidade 24). As outras inquiridoras do questionário foram Maria da Penha Nascimento de
Andrade, Maria Betânia Leite Lins, Egéria Celeste Silva da Silveira e Kátia Helena Pessoa.
Para a aplicação dos questionários, alguns órgãos serviram de agentes intermediários
para o primeiro contato junto aos informantes. Assim, prefeituras, Secretarias de Educação, de
Assistência Social e o então existente Movimento de Brasileiro de Alfabetização (Mobral)
foram os principais canais para apresentação do grande projeto ALP. Segundo Aragão (1984),
as entrevistas foram bastante informais, procurando-se sempre deixar o informante
descontraído e à vontade para responder as questões do questionário. Nas formulações das
questões, se mostrava o objeto ou imitava-se a ação para a qual se buscava a denominação
esperada.
No que concerne às cartas léxicas, são encontrados dados interessantes sobre o falar do
povo paraibano quanto à designação dos mais diversos itens dos campos semânticos já
apontados: terra, homem, família, habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação
e atividades sociais.
Passemos à análise de alguns dados selecionados que – devido às restrições do
trabalho – buscam contemplar, pelo menos uma lexia, de cada campo semântico retrocitado
com comentários sobre sua distribuição e presença de variantes no território paraibano. As
lexias escolhidas foram: sutiã, rótula, sovina, aguardente, corno, urinol, colmeia, sacristão e
arco-íris.
4
O símbolo “R.” equivale à realização fonética mais frequente na região.
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5
Adotamos a nomenclatura usada por Teles e Ribeiro (2014) que defendem que mapa ou carta é a representação
cartográfica que deve apresentar informações essenciais como: orientação, sistema de projeção, sistema de
referência para as coordenadas e escala. Um documento cartográfico que não contemple essas informações é,
para o IBGE, um cartograma.
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Figura 09: Cartograma no 30. Arco-íris. Pergunta 29. Localidade 24: Cajazeiras.
datas6 de sesmarias, Genipapeiro e Serra Branca. Essas faixas de terra foram passadas para
José Gonçalves Vieira da Costa e Silva na década de 1830 e transformadas na Fazenda
Palestina. Nascia ali o clã dos Vieiras, composto originalmente por oito irmãos: Antônio
Vieira, Raquel Vieira, Manoel Nascimento, José (Zeca) Vieira, Joaquim (Kinô) Vieira,
Constantina Vieira e Maria (Dona Torô) da Conceição. Os casamentos entre primos e primas
formaram a grande família Vieira. O poder político local era controlado por seus membros.
Em 19627, foi criado o distrito de Vieirópolis, subordinado ao município de Sousa, assim
permanecendo até ser elevado à categoria de município com a mesma denominação,
desmembrando-se finalmente de Sousa, por força da lei estadual no 5.904, de 29/04/19948.
Por outro lado, em 2007, surge na imprensa paraibana reportagens sobre o centenário
do nascimento do monsenhor Manoel Vieira (1907-2007) que nasceu no município de
Uiraúna, foi diretor do Colégio Diocesano em Patos, secretário estadual de Educação, vigário
em Princesa Isabel, além de vigário geral em Cajazeiras, cidade também desmembrada do
município de Sousa em 1863, sendo, pois, um grande educador da região do Sertão paraibano.
Todos esses municípios retrocitados: Uriaúna, Cajazeiras, Sousa e Vieirópolis estão
localizados em uma mesma mesorregião, o Sertão Paraibano. Diante do exposto, podemos
pensar em algumas motivações semânticas para o uso de “os Vieiras” com o sentido de arco-
íris: o povo tinha tanta fé no monsenhor e respeito pela sua família que o informante
respondeu “Os Vieiras” em resposta à indagação 29? Por isso, os Vieiras equivaleriam ao
próprio arco-íris no céu? Ou seria a motivação o fato de os membros da família Vieira
estarem sempre juntos (oito irmãos), ou com roupas coloridas que lembrassem o arco-íris?
Por fim, cabe destacar que, das variantes encontradas nas respostas aos questionários,
os itens lexicais “braguilha” (campo semântico: família, cartograma no 106, pergunta 152),
“borboleta” (campo semântico: aves e animais, cartograma no 124, pergunta 212),
“gafanhoto” (campo semântico: aves e animais, cartograma no 128, pergunta 217, com apenas
um registro de “mané mago”, em Conceição), “torrado” (campo semântico: plantação,
cartograma no 133, pergunta 248) e “terçol” (campo semântico: o homem, cartograma no 71,
equivalente à pergunta 90) foram encontrados em todas as 25 localidades pesquisadas pelas
inquiridoras do Atlas Linguístico da Paraíba.
6
Porção ou faixa de terreno.
7
Durante a coleta de dados do ALPB, Vieirópolis ainda era distrito de Sousa.
8
Em 2014, faz vinte anos de emancipação política de Vieirópolis.
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Das seis localidades do ALiB, cinco coincidem com pontos do ALPB que teve
originalmente 25 pontos pesquisados, conforme pode ser visualizado no diagrama seguinte.
Diagrama 01: número de pontos coincidentes no ALPB e no ALiB
Pontos coincidentes entre o ALPB e o ALiB
ALPB ALiB No de pontos
coincidentes
25 06 05
Considerações Finais
O ALPB foi o terceiro atlas linguístico regional a revelar para o país, em 1984, o falar
da Paraíba. Suas inquiridoras sob a batuta da professora Maria do Socorro Silva do Aragão e
Cleusa Palmeira B. de Menezes percorreram todo o estado paraibano em um trabalho de
fôlego, colhendo dados estribados em pressupostos teóricos sólidos da Dialetologia e
metodologia científica criteriosa da Geolinguística. Buscavam mostrar o modo de falar da
Paraíba, a fim de apresentar ao seu povo e ao Brasil a realidade linguística de seu estado,
mormente no aspecto das variações diatópicas e diastráticas. Foi um trabalho realizado com
uma visão retrospectiva, orientado pelo passado, seguindo as trilhas de Antenor Nascentes,
Nelson Rossi e de outros dialetólogos, mas com um brilho no olhar voltado para o futuro, com
a certeza de que contribuiria um dia para a elaboração de um projeto maior para o Brasil. Essa
certeza é hoje realidade. Trinta anos depois o Atlas Linguístico da Paraíba vê-se
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Referências
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UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 1984.
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Infográficos: histórico. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/painel/historico
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CALLOU, Dinah. Quando Dialetologia e Sociolinguística se Encontram. In: Estudos
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Neste ensaio pretendemos analisar o livro El tunel de Ernesto Sábato tendo como base
para seu desenvolvimento a obra O escritor e seus fantasmas do mesmo autor. Acreditamos
que a compreensão inicial de qualquer obra de arte, deve dar-se em seu prolongamento
histórico e social. Afinal, como bem coloca James (1995)
Sábato trilhou uma trajetória curiosa que, de certa forma, faz com sua obra seja
singular e controversa. Sendo pouco estudado na academia e com uma série de pesadas
críticas a respeito de sua produção literária, este doutor em física tornou-se pra nós um
profícuo literato mesmo compondo apenas três romances.
Passemos à sua história; Sábato, conhecido hoje como ensaísta, romancista e artista
plástico argentino, no início da vida encontrou nas ciências exatas uma ordem em meio ao
caos de sua existência, em suas palavras:
1
Doutoranda do programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
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pra Argentina, “abandonar” a ciência e dedicar-se às letras. Parece-nos ter sido uma sábia
escolha já que Sábato, dentre outros prêmios, foi o segundo autor argentino, depois de Borges,
a receber o prêmio Miguel de Cervantes em 1984.
Diante desta breve síntese histórica de Sábato, cabe lembrar que nenhuma obra que
valha se limita unicamente à vida de seu autor, pois, como afirma Zéraffa (1991, p. 13) “o
paradoxo de romance é o de toda obra de arte: ela é irredutível a uma realidade que,
entretanto, traduz”. Sabemos que toda literatura contém elementos do real, sejam eles de
ordem social ou emocional, se assim não fosse, não haveria o reconhecimento por parte do
leitor nem a efetivação dos sentidos que a obra propõe.
Neste caso, também vale ressaltar a afirmação de Candido (1968, p.74) sobre a função
do escritor: “o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a
imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e
morais.” Ou seja, as circunstâncias em que a obra é produzida, combinadas com uma análise
profunda do texto, podem evidenciar certos critérios de escolha, bem como de temas que
perpassam a obra literária.
O próprio Sábato se pronuncia a esse respeito afirmando o que se segue:
Por fim, nossa postura diante do nosso objeto de estudo, O túnel, é aquela já colocada
por Said (2007, p.82), “adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras
e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido”. É a
leitura minuciosa do texto que envolve recepção e resistência, situando o texto como parte de
uma rede de relações.
O túnel é o primeiro romance escrito por Sábato e foi publicado em 1948, numa época
política controversa na argentina conhecida como Peronismo, Sábato foi um dos críticos desse
movimento ao denunciar em seu ensaio “O outro rosto do peronismo. Carta aberta a Mario
Amadeo” (1956) as perseguições executadas por este regime político, como a tortura de
estudantes, exilados e professores. Ele acreditava que Peron reuniu em torno de si criminosos
e aventureiros que tornavam o movimento indigno. Além disso, quando consideramos
analisar uma obra do século XX, há de se lembrar que este século inaugura um modelo
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bastante distinto dos padrões clássicos de narrativa. Desde seu contexto histórico, movido por
guerras e grandes deslocamentos, que alteraram o modo de vida das pessoas, até certa
efervescência teórica no que diz respeito a estudos críticos de arte, percebe-se consideráveis
mudanças. As obras literárias do século XX são objetos de estudo que, via de regra, assumem
um caráter experimental, onde a tradição é questionada, retrabalhada ou levada aos seus
limites máximos. Contudo, conforme destaca Adorno em sua Teoria estética (1982), todas as
obras de arte, e a arte em geral, são enigmas, pensamento que sempre serviu de inspiração
para o campo da teoria da arte. “O fato de as obras de arte dizerem alguma coisa e, no mesmo
instante, ocultarem algo aponta sempre para o caráter enigmático de tal linguagem” (p.140).
Sábato afirma que toda a sua obra é fruto de um espírito contraditório, e na leitura de
O túnel nos deparamos com situações dessa natureza. O livro é narrado em primeira pessoa
por um personagem chamado Juan Pablo Castel, possui trinta e nove capítulos curtos em que
ressoa um tom de oralidade e diálogos com o leitor muito fortes. Assim começa a obra: “Basta
dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne; suponho que todos ainda
se recordam do processo, o que dispensa maiores explicações sobre a minha pessoa” (1984, p.
7). Neste primeiro trecho do capítulo já nos é dada a sensação de tratar-se de um fato, real e
conhecido de todos, portanto, “dispensando maiores explicações” sobre este personagem
narrador. O leitor se depara com sua primeira interpelação e inserção na narrativa, através da
memória, de modo que suas expectativas e curiosidades diante do “pintor assassino” são
aguçadas já na primeira frase. O que caracteriza um traço da narrativa que se estenderá até o
último capítulo.
A escolha pela primeira pessoa do singular é explicada por Sábato (1964) como uma
tentativa de fazer o leitor sofrer as ansiedades e dúvidas da personagem, compreendendo sua
“lógica” até o assassinato da mulher. A sucessão dos acontecimentos é narrada de tal forma,
que o leitor se sente engendrado e fisgado pela leitura, não obstante o desfecho da estória estar
explicitado desde o início, o que evidencia a maestria da narração, logo, do autor. Neste
mesmo capítulo inicial encontramos a seguinte afirmação “o mundo é horrível, eis uma
verdade que dispensa demonstração” (p.7), o tom “pessimista” estará envolvendo todo o
enredo, e em cada personagem ele provará essa premissa. Sábato afirmou que “os seres
humanos não podem representar nunca as angústias metafísicas no estado de puras ideias [...],
o fazem encarnando-as e obscurecendo-as com seus sentimentos e paixões” (1964, p.14).
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A trama se passa em Buenos Aires por volta de 1946, Castel conta como conheceu
Maria e como seus pensamentos o conduziram a assassiná-la, nesse entremeio encontramos
reflexões sobre a condição humana, a solidão, o ciúme, a incomunicabilidade entre os seres,
discussões sobre a arte, a crítica, o uso das palavras e a insensatez. Outras poucas personagens
também estão presentes na trama como veremos a seguir.
O narrador conversa com o leitor em toda a obra e até o despreza, o segundo capítulo
elucida esta afirmação e outras:
mas, por que essa mania de querer encontrar explicação para todos os atos da
vida? Quando iniciei este relato, estava firmemente decido a não dar
explicações de nenhuma espécie. Tinha ímpetos de contar a história do meu
crime, e pronto: quem não gostasse, não a lesse. [...] Posso falar até o
cansaço e aos gritos, ante uma assembleia de cem mil russos: ninguém me
entenderia. Percebem o que quero dizer?
Houve uma pessoa que poderia entender-me. Mas foi, precisamente, a
pessoa a quem matei. (p.10-11)
“incomunicável” com o mundo, e duvidosa deste narrador. Sábato se pronuncia a este respeito
afirmando que,
Um claro relato da influência que ele sofreu do existencialismo de Sartre, pra quem a
“encarnação é a queda, o mal original” (1964, p.143), Deus não existe e o que resta é
desesperança. No próprio enredo o narrador afirma que Maira estava lendo uma novela de
Sartre. Além da indagação sobre o homem, sobre o mal em si e no mundo, caracterizando,
como dito anteriormente, o pessimismo, ou realismo, dependendo do ponto de vista de cada
leitor. Caminhando na narrativa, Castel diz que cuidará em relatar tudo imparcialmente, e
conta que durante o Salão da primavera de 1946 apresentou um quadro chamado
Maternidade, no mesmo estilo dos outros, mas, à esquerda havia uma cena através de uma
janela em que uma mulher contemplava o mar numa praia solitária. Ninguém se interessava
por esta cena com exceção de uma moça que a fitou fixamente fazendo com que ele quisesse
chamá-la, mas não conseguiu. “Durante os meses que se seguiram, só pensei nela, na
possibilidade de voltar a vê-la. E, de certo modo, só pintei para ela. Foi como se a pequena
cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha vida” (1984, p.13). O
exagero da personagem nessa citação anterior já mostra a timidez e o caráter obsessivo de
Castel, durante o romance veremos como esta obsessão maltrata a si próprio e à sua relação
com Maria. Além do quadro, especificamente a cena através da janela, ser o motor que
conduz as emoções de Castel e a representação desta será uma chave para compreensão da
obra como um todo.
O narrador passa os próximos três capítulos pensando em como encontrar a moça e
como falar com ela já que sua timidez era quase patológica. Até que ele consegue encontrá-la
e perguntar por que ela estava olhando pra cena da janela, ela não responde com clareza, diz
não saber, mas, pergunta a Castel o que aquela cena significa verdadeiramente, segue sua
resposta:
Não sei, tudo isso tem algo a ver com a humanidade em geral compreende?
Lembro-me de que, dias antes de pintá-la, tinha lido que em um campo de
concentração alguém pediu o que comer e lhe obrigaram a comer um rato
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Sabemos que o mundo presente no texto é um mundo representado que “não traz em si
mesmo nem sua determinação, nem sua verdade, que devem ser procuradas e encontradas em
relação com algo outro” (ISER, 2002, p.404). Acreditamos que a afirmação de Iser corrobora
a posição do narrador mediante as explicações do quadro.
Também podemos encontrar outro exemplo do existencialismo presente na obra, sob a
influência de Sartre para quem “o mundo é demais e ameaça engolir o eu” (SÁBATO, 1964,
p.145). No mais, nos é inevitável lembrar Camus e suas obras, na expressão do absurdo do
mundo, na gratuidade dos infortúnios e no acaso trágico. Já que graças a indicação deste
autor, O túnel foi publicado em Paris, em 1949.
Na sequência da narrativa, mais precisamente no capítulo doze, Castel começa a
entregar-se aos delírios do ciúme mesmo antes de sequer tocá-la. Maria viaja repentinamente
para a casa de campo do primo Hunter e deixa uma carta para ele, neste momento ele
descobre que ela é casada com Allende, um cego que lhe entrega a carta em mãos. A carta
tinha apenas a seguinte frase: “Eu também penso em você”. Nas palavras do narrador,
passa desde que Castel conhece Maria até o seu assassinato, muito menos em que época ele
resolve contar seu crime. A próxima característica seria o subconsciente, na descida ao eu, o
escritor encontra-se com as zonas desconhecidas do inconsciente de cada personagem fazendo
com que, por vezes, as impressões sejam como de um sonho ou pesadelo. Castel nos
evidencia esse aspecto. Inclusive narra alguns sonhos durante a estória. O quarto ponto é a
ilogicidade, o escritor se veria obrigado a abandonar o instrumental da razão e das ciências.
Como ele mesmo coloca, “nosso tempo é o tempo do desespero e da angústia, mas, só assim
pode iniciar-se uma nova e autêntica esperança” (p.52). A quinta característica é o mundo
desde o eu, ou seja, cada momento é contado a partir da visão e dos estados de alma de cada
personagem. Em seguida, o outro, sua subjetividade e relação entre as personagens; a
comunhão entre os seres, logo, sua solidão e incomunicabilidade, já que Castel representa
uma situação extrema de incomunicabilidade; o sentido sagrado do corpo, o sexo adquire
uma dimensão metafísica e a comunicação entre os corpos está fadada ao fracasso, já que a
questão é quase espiritual para o autor. Por fim, o conhecimento, a literatura se torna forma
de conhecimento já que agora os sentimentos e emoções são a parte mais complexa e
verdadeira da realidade, já que “a novela de hoje é a novela do homem em crise” (p.89).
Castel num dos últimos capítulos chega a dizer,
agora, que posso analisar meus sentimentos com tranquilidade, [...] de certa
forma, sinto estar pagando a insensatez de não me ter conformado com a
parte dela que me salvou (momentaneamente) da solidão. Esse
estremecimento de orgulho, esse crescente desejo de posse exclusiva,
deviam-me haver revelado que trilhava um mau caminho, aconselhado pela
vaidade e pela soberba. (1984, p.88)
Castel se perde em seu ciúme, em sua “solidão quase olímpica”, em seu mundo
interior conturbado por dúvidas e inseguranças, enfim, em sua crise. Ele mata a única pessoa
que poderia entendê-lo com facadas no ventre, por uma desconfiança autodestrutiva e sem
provas de traição, se entrega a polícia e acaba preso. Nos momentos que antecedem o
assassinato, o título do romance se elucida ao leitor:
Acreditamos que há aqui um dos mais belos eventos narrados no romance, a precisão e
a clarividência da análise são redentoras para o leitor, nos deparamos com as grandes questões
da personagem central, suas ilusões, seu pessimismo, seu ciúme doentio, sua incapacidade de
se relacionar, sua visão do amor e de Maria. A sensação de viver num túnel, isolado por
muros que mudavam de aspecto, de achar-se invisível e ingênuo por achar que alguém
poderia viver em corredores como ele, e a constatação de estar só e preso nos limites de seu
mundo. Afinal, o imenso mundo de fora não tinha limites, e apenas na arte, sua pintura, sua
janela, alguém poderia vê-lo, irremediavelmente mudo e solitário.
A leitura desta obra nos provocou de tal forma que nos fez repensar nossas próprias
convicções, tanto pessoais quanto intelectuais, já que se trata de um escritor em certa medida,
pouco conhecido, e com uma narrativa tão sedutora e carregada de questionamentos. Inclusive
da prática crítica, qualificada pelo narrador da seguinte maneira:
Por fim, sabemos da limitação de nossa perspectiva e que as análises de uma obra
como esta não estariam nem perto de esgotarem-se neste breve ensaio, afinal, toda grande
literatura é inesgotável em seus efeitos e implicações. Concluímos à maneira de Sábato: “E os
muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos” (última frase do romance).
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Luiz Costa (Org.). Teoria da Literatura em Suas Fontes. Rio de Janeiro: Civilização
Braileira, 2002. v. 2.
JAMES, Henry. A Arte da Ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.
PICCHIO, Luciana Stegagno. A lição do texto: filologia e literatura. São Paulo: Martins
fontes, 1979.
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2007.
ZÉRAFFA, Michel. Romance e Sociedade. Lisboa: Cor, 1971.
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(Figura VII)
É preciso dizer que esse esquema não aparece nas tramas discursivas com esta
ordenação metódica. A depender do universo de discurso, tal hierarquização sofre
determinadas transformações ou complicações. No caso da literatura oral, especificamente
nos romances tradicionais, observa-se uma neutralização ou um apagamento da instância
ocupada pelos actantes narrador e narratário. Em determinadas peças, o sujeito enunciador e o
seu correlato dialético, o enunciatário, projetam no enunciado os interlocutores (atores) que,
em situação dialógica, passam a ter a “autonomia” do processo enunciativo. É o que ocorre,
por exemplo, no romance La condessa, cujo enredo se desenvolve a partir do confronto
dialógico fincado entre a Condessa, detentora de belas filhas, e o cavaleiro e/ou rei, que
pretende desposar uma das donzelas. Aparentemente, a enunciação serve aos propósitos
desses protagonistas:
todas as manhãs, para a tumba dela onde pede a Deus que a traga de volta. O discurso se
desenvolve em primeira pessoa, do ponto de vista de Miguelzinho, forjando a impressão de
que a história está acontecendo no momento em que é enunciada, acentuando, dessa forma, o
seu caráter veridictório:
A crítica literária e diversas teorias que se dizem voltadas para o discurso continuam
postulando, erroneamente, que os mecanismos de debreagem e embreagem criam,
essencialmente, dois efeitos de sentido: o de objetividade e o de subjetividade. Os fenômenos
enunciativos não se limitam a essa visão simplória e ingênua. Um discurso que se constrói
sobre os simulacros do eu-aqui-agora pode ser tão ou mais objetivo quanto aquele cujas
marcas de enunciação foram eliminadas. Subjetividade e objetividade não são fenômenos
estruturais que se fincam na superfície do discurso. São antes, procedimentos ideológicos que
fazem vir à tona as intenções e valores daqueles que, competentemente, deles fazem uso.
Recorrendo mais uma vez ao universo popular, tem-se o romance Margarida, erigido
predominantemente em terceira pessoa, mas que concentra fortes traços de subjetividade.
Constatemos:
realização, o abrigo em Margarida. Não é à toa que entre eles reside um sentimento “que não
se via em ninguém”. Por motivos não expressos, o valente Alfredo viaja para lutar na guerra,
mas promete à amada voltar. O destino lhes é cruel e Margarida, não suportando a longa
espera, desfalece. A causa da morte é evidenciada através do elemento intensificador <tanto>
presente no verso “Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar”. Há, então, uma
avaliação da condição de espera de Margarida realizada pelo enunciador, que interfere,
subjetivamente, ao apreciar o fato.
Ao receber a notícia da morte de sua amada, Alfredo fica profundamente perturbado.
Essa constatação mais uma vez sofre intervenção estratégica do enunciador, que, para
enfatizar o transtorno que a perda da mulher dileta causara no desafortunado mancebo, projeta
sobre o discurso uma estrutura linguística que o lança na cena enunciativa: “Alfredo em
campos de batalha seu corpo estremeceu” O tremer do corpo só poderia ser descrito por
alguém que, de fato, estivesse a observar Alfredo quando este fora tomado pela tristeza.
Infere-se, depois dessas ponderações, que extrair os vestígios da enunciação de um texto, não
garante que sua enunciação proceder-se-á de forma objetiva.
É de responsabilidade da SEMÂNTICA DISCURSIVA descrever e explicar os
procedimentos semiológicos que permitem a conversão dos percursos narrativos em percursos
temáticos e o revestimento destes por meio das figuras. Na epistemologia canônica da
semiótica, a tematização e a figurativização correspondem a realizações do sujeito da
enunciação que as utiliza como mecanismos geradores e mantenedores da coerência
discursiva.
Na tematização, os valores semânticos que instauram o sujeito no patamar narrativo
são convertidos, no nível discursivo, em unidades abstratas denominadas temas, as quais se
organizam em percursos. Pertencem ao domínio das idéias, pois não se referem a algo
existente no mundo exterior, mas a elementos capazes de organizar, distribuir e,
principalmente, ordenar a realidade apreendida por mediação dos sentidos. Em suma, os
temas caracterizam-se por seu aspecto propriamente conceptual.
Para revestir os temas, o sujeito da enunciação faz uso do processo de figurativização
que consiste em selecionar, do seu sistema de representação, intensamente regulado e
alimentado pelas coerções sociais e, sobretudo, culturais, as figuras que poderão concretizar
as categorias temáticas que, abstratamente, tangenciam o discurso. Segundo Courtés (1991),
será considerada figura, de um dado universo de discurso (verbal ou não-verbal), todo
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real, exterior. Diferentemente, os romances populares, de realização oral, primam por papéis
temáticos genéricos que estendem a narrativa, situando-a mais próxima daquele que a produz.
Assim, o cangaceiro, a condessa, o marido traído, a namorada cruel podem ser referentes de
qualquer sujeito, podem ocupar outros espaços, podem ser enunciados em outro tempo, em
suma, podem ser reconstruídos incessantemente pela dinâmica da memória e da cultura
popular. São atributos sociais e morais que não se restringem a uma dada História, caminham
e se transformam com as gerações.
O ator concentra outras complexidades que vão além de seu investimento semântico.
Ele não se limita a ocupar o nível discursivo, estando também integrado na narrativa, onde é o
responsável direto pela ordenação sintática. Nesse âmbito, a figura do ator aparece como o
lugar de convergência e de união das estruturas narrativas e das estruturas discursivas, do
componente sintático e do componente semântico, visto que está incumbido,
simultaneamente, de pelo menos um papel temático e de um revestimento actancial. Trazendo
à tona a opinião de GREIMAS:
Referências
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______. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
CORTINA, Arnaldo & MARCHEZAN, Renata Coelho. Teoria Semiótica: a questão do
sentido. In: Introdução à Linguística – Fundamentos Epistemológicos. São Paulo: Cortez,
2004.
COURTÉS, Joseph. Analyse Sémiotique du Discours. De l’énoncé à l’énonciation. Paris:
Hachette, 1991.
______. Introdução á Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra: Livraria Almedina,
1979.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Editora Ática, 1998.
______. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1999.
______. As astúcias da Enunciação. São Paulo: Editora Ática, 2002.
GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In: Semiótica Narrativa e Textual.
São Paulo: Cultrix, 1977.
______. & COURTÈS, Joseph. Sémiotique: dictionaire raisonné de la théorie du langage.
Paris: Hachette, 1979.
______. Semântica Estrutural. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1973.
______. Semiótica do discurso científico. Da modalidade. São Paulo: Difel, 1976.
______. Sobre o Sentido: Ensaios Semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975.
______. Du Sens II: Essais Sémiotiques. Paris: Éditions du Seuil, 1983.
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Considerações Iniciais
“Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela
pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade!” (FREUD, 1930, P. 168)3
Utilizando-nos desse postulado freudiano datado de 1930, colocamos à tona o caráter não
somente teórico-psicanalítico que preceitua o tema da agressividade, mas também seu viés no
contexto social, já que o tema é antigo na constituição de nossa história, sendo descrita desde
os tempos mais remotos, como na Antiguidade, pelos aedos4 e rapsodos5, em suas narrativas
orais, onde narravam os castigos sofridos pelos homens por causa da hybris6 para com os
deuses. Sendo descrita até na obra que descreve o mito fundador do mundo e dos deuses
gregos, a Teogonia, de Esíodo, em que os diferentes tipos de divindades elementares vão
sucumbindo-se diante dos castigos provenientes de suas hybris em relação os sucessores.
Posteriormente, teremos outras inúmeras referências a atos considerados violentos e
agressivos, como, por exemplo, na Bíblia, ou até mesmo em tempos mais antigos, como o de
1
Graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Doutor em Letras, pela Universidade Federal da Paraíba. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa da
mesma Universidade.
3
FREUD, S. O Mal-Estar Na Civilização, (1930 [1929]), vol. XXI. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
4
Um aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento de
música, o forminx. Distingue-se do rapsodo, mais tardio, por compor as próprias obras. O mais célebre dos
aedos foi Homero, a quem se credita duas das mais famosas epopeias já escritas: Ilíada e Odisseia.
5
Rapsodo é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando
poemas (principalmente as epopeias homéricas). Diferenciava-se do aedo por cantar poemas que não eram de
sua autoria e por não ter qualquer instrumento para acompanhar a declamação.
6
A húbris ou hybris é um conceito grego que alude tudo aquilo que “passa da medida”; “descomedimento", mas
que também pode ser relacionado à violência de algum ato, ou insolência diante dos deuses.
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Platão, onde, em seu “Livro IX da República, retrata a figura do homem tirânico, o mais
violento deles, hospedeiro de todos os vícios. (FERRARI, 2006, p. 50)”7.
Dessa forma, ratificamos que a violência, que é entendida pela psicanálise como o
encontro da pulsão de destruição com a linguagem, faz parte do mal-estar não só de nossa
época, mas de toda a história da espécie humana, diferenciando-se diacronicamente apenas
pelo fato de que, hoje, ela está sendo excessivamente exposta, praticada e, de certo modo,
valorizada, como já afirmou Badiou (2012)8 ao dizer que este século possuía um furor
mortífero. E, para tal efeito, a mídia tem constituído importante mecanismo, sendo ela, nos
dias de hoje, a instituidora, muitas vezes, dos padrões, das normas da sociedade e, nos casos
em que lei simbólica encontra-se mal instaurada, devido, por exemplo, ao declínio da figura
paterna, a Imago, passa a ser a formadora e deformadora do psiquismo do sujeito e da
sociedade (LEVISKY, 1999)9.
Voltando-nos novamente às considerações expostas em 1930, vemos que Freud
postulou que a agressividade seria algo inato ao ser humano. Para ele, tal elemento que
alicerça a personalidade de qualquer um de nós constituía parcela importante no mecanismo
de construção e desenvolvimento psíquico de qualquer pessoa, pois, quando nos referimos à
agressividade, estamos falando sobre energia, combatividade, disposição ativa, sobre uma
força empreendedora, de autoproteção, estando presente desde os princípios da existência
humana, fazendo companhia à incessante busca do amor do outro.
Sendo assim, Freud considerou que durante o processo de formação do aparelho
psíquico, os recém nascidos não possuíam qualquer distinção do outro, daquele ao qual
proviam os cuidados necessários a suprir toda e qualquer necessidade desse indivíduo.
Contudo, quando tais necessidades não fossem supridas de maneira total ou parcial, haveria
um acumulo de tensão na criança, causando-a um enorme desconforto e desprazer. Só a
posterior descarga dessa tensão faria com que se gerasse novamente a condição de prazer, ou
seja, dessa maneira, o princípio do prazer constitui-se mediante esse processo de descarga e,
por sua vez, seria esse processo primário que objetiva a eliminação mais imediata possível
dessa tensão acumulada para se restabelecer o estado inicial de prazer que, para a psicanálise
7
FERRARI, I. F. Agressividade E Violência. In: Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol.18, n.2, p.49 – 62, 2006.
8
BADIOU, A. O século. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2012.
9
LEVISKY, D.L. A mídia- interferências sobre o aparelho psíquico. Revista Diagnóstico & Tratamento, vol. IV,
no 2, abril/maio/junho, 1999. Disponivel em:<http://www.davidleolevisky.com/artigos/A%20m%EDdia%20%
20interfer%EAncias%20sobre%20o%20aparelho%20ps%EDquico%20%20portugu%EAs.pdf> Acesso em: 26
junho de 2014.
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10
Freud, S. (1996). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: S. Freud. O caso
Schereber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos (pp. 237-244). Rio de Janeiro: Imago. v. XII. (Original
publicado em 1911).
11
KLEIN, M. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Volume III das Obras Completas de Melanie
Klein. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
12
FREUD, S. Além do princípio de prazer, (1920), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de
Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
13
Mais uma vez a psicanálise busca personagens da mitologia grega para metaforizar alguma de suas teorias,
como o fez Freud, por exemplo, nas considerações desenvolvidas com relação ao complexo de Édipo, sendo
desta vez utilizadas duas outras figuras para mehor compreendermos esta amálgama entre as pulsões. No mito
grego, Eros (cupido na mitologia romana) é o deus do amor e Tânatos, deus da morte. Eros, o mais belo dos
deuses, possui arco e flecha com os quais costuma enlaçar de amor homens, mulheres e deuses. Segundo consta
na mitologia, certo dia Eros adormeceu numa caverna, embriagado por Hipno (deus do sono, irmão de Tânatos).
Ao sonhar e relaxar suas flechas se espalharam pela caverna, misturando-se às flechas da morte. Ao acordar,
Eros sabia quantas flechas possuía. Recolheu-as, e sem querer levou algumas que pertenciam a Tânatos. (Esopo,
Grécia Antiga in Meltzer, 1984). Sendo assim, Eros passou a portar flechas de amor e morte (Tânatos).
14
FREUD, S. (1996). Além do Princípio de Prazer. In: S. Freud. Além do princípio de prazer, psicologia de
grupo e outros trabalhos (pp.17-34). Rio de Janeiro: Imago editora. v. XVIII. (Original publicado em 1920).
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15
SILVA, Frederico de Lima. Da Letra ao Inconsciente: dimensões do desejo perverso. Monografia (Graduação
em Letras- Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
João Pessoa, 2014, 51p.
16
FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. (Coleção Passo-a-passo; 38).
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como por exemplo, o incesto, para que ele pudesse conviver em sociedade. É que nos expõe
ao afirmar que:
17
FREUD, S. (1996). O mal-estar na civilização. In: S. Freud. O futuro de uma ilusão, mal-estar na civilização e
outros trabalhos (pp. 67-148). Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. (Original publicado em 1930).
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Com relação a esse mal-estar presente na vida dos três irmãos que, aparentemente,
surge em meio à descoberta do tesouro, mas que não é, tendo em vista que eles já
encontravam-se em estado de constante agressividade, mediante o modo desafortunado em
que viviam, que, por sua vez era reflexo de um mal-estar na ordem da subjetividade de sua
época, pode-se constatar que preceitua o modo fragilizado das relações humanas de nossa
época, onde a perversão tornou-se o maior inimigo da sociedade atual.
Esse mal-estar que passa a ser mais claramente evidente no conto no momento em que
os três irmãos se deparam com o tesouro reflete algo que Lacan denominou discurso
capitalista. O psicanalista preceituou, utilizando-se do discurso de Max, que o que existe na
sociedade capitalista é um regime de falta de gozar. Essa postura de Lacan vai divergir dos
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que pensam que o sistema econômico capitalista é puramente um gozador, pois o entendo
como um eterno buscador desse gozo. É o que Lacan vai nos expor mais claramente em
“Radiofonia” (1970/2003)18, onde afirma que a plus valia, terno creditado a Marx, seria a
causa de desejo de toda economia, ou seja, do proletário e do capitalista, atribuindo, para isso,
o referente de mais-gozar. Em termos pungentes, e referindo-nos ao contexto dos três
desafortunados, agora, temporariamente, afortunados novamente, se é pela busca desse mais-
gozar que se constitui a existência de todos, assim como a do capitalismo, como dizia Marx, é
devido a constante falta desse gozo.
No caso de Rui, Guannes e Rostabal, o gozo temporário que lhes é apresentado
inicialmente, logo se desfaz em seguida, fazendo com que eles busquem, por meio da
violência, da descarga de suas pulsões destrutivas, retornar a esse estado de prazer, aquele da
qual, quando crianças, buscávamos ao chorar pelo seio de nossas mães, mas que aqui, no
conto de Eça de Queirós, evidencia-se na premeditação e realização das ações dolosas que
culminam na morte dos irmãos por suas próprias mãos, o que revela, ainda nos referindo à
visão lacaniana em “Radiofonia” (1970/2003), que todos somos, diante dessa busca pelo
mais-gozar, meros proletários, desprestigiados e, muitas vezes, impassíveis de constituir laços
sociais, mediante nosso estado de eterna insatisfação (nós neuróticos), nessa constante busca
pelo plus, pelo mais, pelo gozo.
Considerações finais
18
LACAN. J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos (p. 404-447). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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do sujeito, uma vez que a agressividade, como pulsão primitiva, e a violência, como entrada
da agressividade no âmbito da linguagem, pressupõem diferentes formas de compreensão que
a sociedade dá ao gozo.
Como se pode observar, os teóricos que serviram como base para nossa análise, Freud,
Klein e Lacan nos evidenciaram que os temas aqui expostos não representam matérias
acabadas para à psicanálise, tendo em vista que são elementos de um mal-estar próprio da
evolução humana; que encontra-se, assim como nossa existência em função da busca pela
plus valia, pelo gozo pleno, em constante modificação perante à sociedade, e as regras que
moldam a maneira de se viver na contemporaneidade.
Referências
LACAN. J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos (p. 404-447). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
LEVISKY, D.L. A mídia- interferências sobre o aparelho psíquico. In: Revista Diagnóstico &
Tratamento, vol. IV, no 2, abril/maio/junho, 1999. Disponível em: <http://www.davidleole
visky.com/artigos/A%20m%EDdia%20%20interfer%EAncias%20sobre%20o%20aparelho%
20ps%EDquico%20%20portugu%EAs.pdf> Acesso em: 26 junho de 2014.
SILVA, F. L. Da Letra ao Inconsciente: dimensões do desejo perverso. Monografia
(Graduação em Letras- Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2014, 51p.
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Introdução
Desde a época da chegada dos primeiros viajantes ao nosso território, sabemos que
eles, além do interesse pelas nossas riquezas, como o ouro e a prata, também estavam à
procura do exotismo e da libidinagem tropical do nosso país. A terra onde os índios andavam
com suas vergonhas à mostra era o cenário ideal para a lascívia. Um país que cheirava a sexo
por ser um lugar quente, exótico e proibido. Em diferentes épocas, essa foi a imagem do
Brasil “um paraíso sexual dos trópicos” (FAOUR, 2011, P. 21). O país em que o povo sempre
apresentou uma forte inclinação para alegria, com um pensamento descontraído e um
temperamento irreverente. Um povo que não se preocupava com regras. E, que na cama,
revelavam-se muito quentes. Todo esse tempero tropical acabou esquentando também a nossa
música, com ritmos alegres, sensuais e letras bem “safadinhas”.
O percurso histórico da Música Popular Brasileira (MPB) nas primeiras décadas, em
termo de Brasil, trazia uma forte depreciação da mulher, assim como dúvidas em relação ao
seu caráter, pois ela era vista como traiçoeira. As letras das canções tinham um tom agressivo,
e sempre estavam a reclamar das mulheres. Músicas machistas com uma mistura de “tesão e
raiva” compunham o nosso cancioneiro brasileiro, como a música Papagaio come milho de
Francisco A. Rocha, gravada em 1922, onde o autor narra que, a “Mulher que chora não fala
a verdade / Mulher que jura é só falsidade” (FAOUR, 2011, p.31).
Segundo os letristas, não dá para confiar nas mulheres. Vejamos, agora, uma outra
música O bicho mulher, uma canção sem data de Domingos Caldas Barbosa, nosso primeiro
compositor oficial. Observemos a letra:
Um mal-estar na cultura
Roque LARAIA (2001), nos revela que as identidades culturais nos acompanham
desde que nascemos, pois não existe indivíduo sem cultura, ou seja, a cultura é algo que está
inerente ao ser humano. A cultura determina e/ ou estimula o ser humano a desenvolver suas
potencialidades, o que a torna geradora de personalidades. Dessa forma, os indivíduos são o
resultado do meio cultural do qual estão inseridos, pois a cultura influencia o agir, o pensar, o
vestir, o comer e principalmente o falar, pois é na fala onde se evidenciam as diferenças
linguísticas. O homem enxerga o mundo através da cultura. Porém, esse ato pode acarretar em
algumas consequências. Vejamos o que LARAIA tem a dizer sobre isso:
Tais conflitos sociais acontecem devido ao homem achar que as normas e valores
culturais do meio no qual está inserido são melhores que os padrões culturais de povos
diferentes.
Atualmente, percebemos um elemento “perverso” na cultura, que ultrapassa os
modelos de comportamento social aceito entre a cultura e as relações sociais, demonstrando
“a existência da inclinação para agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com
justiça que ela está presente nos outros.” (FREUD, 2011). No seu livro Mal-estar na
civilização, Freud (2011) relata que o ser humano vive à procura da felicidade, e ele a
encontra através de prazeres e realizações momentâneas, como sexo, drogas e aquisição de
bens materiais. Dessa forma, Freud acredita que a felicidade se fundamenta no narcisismo, ou
seja, o homem necessita nutrir por si mesmo, um amor excessivo, uma auto- admiração.
Assim, a libido é direcionada ao próprio ego, fazendo com que o indivíduo vivencie crises
referenciais e existenciais, causando assim um “mal-estar na civilização”. (FREUD, 2011).
Esse “mal-estar” é necessário, pois ele é caracterizado por rupturas, por uma igualdade
fragmentada e pelos interditos culturais que frustram o sujeito social, deixando claro que a
vida civilizada não é a felicidade pelo prazer, mas afastar o desprazer. Portanto, a felicidade
não existe porque é efêmera, ou seja, ela é momentânea, apesar de todos os sacrifícios feitos
para alcançar a tão almejada felicidade. Dessa forma, “se a cultura impõe tais sacrifícios não
apenas à sexualidade, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor
por que para ele é difícil ser feliz nela” (FREUD, 2011, p. 61).
Esse “mal- estar” social e / ou cultural pelo qual estamos passando e que promove as
nossas significações, atestou em nós um desejo de destruição do outro e a música, da
atualidade, reflete muito bem essa nova cultura. Uma cultura em que a perversão está presente
no cotidiano, tanto masculino quanto feminino. Freud já dizia que a transgressão é algo que
está na cultura.
A hegemonia do gozo
mal-estar contemporâneo causado por desejos narcísicos, capazes de negligenciar a lei a favor
de um gozo perverso.
No gênero musical tecnobrega, sobretudo na música Eu vou cortar a cara dela da
Companhia da Lapada, percebemos um mal-estar que sustenta o ódio, trazendo os signos
sociais de uma cultura marcada pela perversão, e que, com efeito, torna as relações humanas
fragilizadas.
Através da análise da música citada à cima, intencionamos compreender as insígnias
da perversão e do narcisismo, segundo Freud, apontando como a psicanálise os concebem a
partir do funcionamento psíquico e das exigências culturais. Pretendemos deixar bem claro
que nosso julgamento quanto à música não será para dizer se ela é de qualidade ou não. O que
nos interessa é a forma como esse texto reafirma valores de uma sociedade narcísica, onde o
gozo perverso reina, absolutamente. Observemos esta estrofe:
Nessa estrofe, a voz narrativa denigre a imagem do outro sem dó nem piedade,
evidenciando seus traços perversos, que são fortalecidos através da diminuição e humilhação
do outro. Evidenciando essa desvalorização, o enunciador revela seu prazer em destruir o
outro. O sujeito perverso desdenha e desvaloriza aquele com o qual se confronta para manter
sua imagem em alta: Eu posso! Eu tenho o poder!
O sujeito envolto em seu narcisismo apresenta um ego bastante elevado. Possui um
padrão invasivo de grandiosidade, uma necessidade de admiração e uma falta de empatia. Não
tem nem um pouco de sensibilidade para com os desejos e necessidades alheias.
No segundo verso da primeira estrofe, “Postou no facebook que vai me pegar”, e no
quarto verso, também, da primeira estrofe “–amiga entra aí no face, pra tu ver o que ela
postou”. Ambos evidenciam a incitação à violência e revelam como as redes sociais estão
servindo para o escoamento desse ódio vivido, atualmente, na nossa cultura. Hoje em dia, já
virou algo normal o indivíduo acessar as redes sociais para ameaçar o outro de modo a
aniquilá-lo, esfacelá-lo, convertendo-o num mero objeto de prazer.
No refrão da música analisada, percebemos que a perversão reina, revelando o prazer
que se tem em destruir o outro, de mostrar quem detém o poder. Assim:
outro. Nesse contexto, assume-se como alguém acima da lei e que nada teme. Por conta
desses excessos, expõe as marcas de um mal-estar que sustenta um ódio. Essa repetição
contínua ”Eu vou, eu vou, eu vou cortar a cara dela” enfatiza quanto o desejo perverso é
destrutivo, e numa sociedade onde a perversão reina, as relações são fragilizadas.
No dicionário psicanalítico de Elisabeth Roudinesco (1998), o termo perversão era
designado, ora de forma pejorativa, ora valorizando as práticas sexuais consideradas como
desvios em relação a uma norma social e sexual. Retomado por Freud, a partir de 1896, o
termo perversão foi definitivamente adotado como conceito, conservando a idéia de desvio
sexual em relação a uma norma. O novo conceito é desprovido de qualquer conotação
pejorativa ou valorizadora, e se inscreve juntamente com a neurose e a psicose numa estrutura
clínica diagnóstica. Segundo Freud, toda perversão é sexual e sua origem está inscrita no
desenvolvimento da sexualidade dita normal.
Já em A parte obscura de nós mesmos, Elisabeth Roudinesco (2008) assim define
perversão:
Em suma, tudo que maltrata ou desagrada o outro é perversão. E ela está presente em
nosso cotidiano, assumindo as mais variadas formas.
Considerações Finais
Referências
Eu vou cortar a cara dela (Companhia da Lapada), tecnobrega, NODP Studio, 2012.
FAOUR, Rodrigo. História Sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção
brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Penguin Classics. Companhia das Letras, 2011.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera
Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: Uma história de perversos.
Tradução: André Telles; revisão técnica: Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
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Introdução
Nesse contexto, o autor fornece uma compreensão de um sujeito que abarca o seu
mundo histórico-cultural, que se manifesta na dialética entre o momento social atual e o
individual. Este reflete um sujeito em concordância e reflexão permanente com suas práticas
sociais junto aos seus sentidos subjetivos.
A subjetividade do indivíduo permite a manifestação de seus desejos e fantasias, bem
como a manifestação também da sexualidade reprimida, do conflito de aceitação de sua
completude masculina num âmbito dual, ou seja, numa interação com o outro; de
comunicação e diálogo.
Tais propostas permeiam o modo de se estar no mundo e nas relações humanas em
geral e suas confluências de subjetividade em uma esfera de sentidos e sentimentos que
perturbam o imaginário e a construção de possíveis suposições que interferem no modo de
agir do sujeito que, não estando em harmonia com a sua consciência e em tudo aquilo que a
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permeia, pode vir a singularizar as atitudes para se posicionar diante de conflitos internos para
a constituição de sua identidade.
Outro aporte expõe um interesse de se agregar sentido para a concepção de
regularidades para acomodar pensamentos que surgem em meio às divagações sobre o
transcorrer na vida do indivíduo: “Segundo Fernando González Rey, esse sentido de
reconhecimento que o sujeito experimenta ocorre no curso irregular e contraditório de suas
próprias ações.” (SCOZ, p. 26, 2011).
O trajeto individual retoma as experiências passadas, objetivando e subjetivando para
a construção do indivíduo por intermédio de si e do mundo. Compõe formas por vezes
irregulares de se aprender e de se estar num ambiente conflituoso, no sentido de estar em
discordância com aquilo que pode estar correto, ou não, acerca dos cumprimentos que regem
o mundo no qual nos sujeitamos viver e conviver, num âmbito social e nunca individual, num
sentido composto por formas variadas de relações entre aspectos individuais, sociais, etc.
Em seu livro A face e o verso, Jurandir Freire Costa nos apresenta uma forma de
pensar a vida em classificações morais tradicionais e liberais que nos imputam a ideia de
aceitação pelo que pode vir a ser o correto aos padrões antigos, em confronto aos termos
propostos nos dias atuais, delimitando que não a como se estar no mundo sem estar em
constante mudança: “A tarefa de redescrever o bem e o mal não termina. A vida e o sentido da
vida são um movimento constante; diferenças e semelhanças, pausas no caminho da ética”.
(COSTA, p.16, 1995)
A identidade homossexual, para alguns, não surge como um fator crítico em suas
opções, em suas conjecturas de vida ou intenção. Podemos supor que uma educação pautada
numa livre expressão, numa escolha sem conflitos que seja contrário, a uma repressão, ou
mesmo uma facilidade em tecer diálogos naturais em como lidar com os apreços do mundo,
pode sugerir uma satisfação de se sobrepor às incertezas, possibilitando estar mais a vontade
com o seu destino e ter um maior desejo em se expressar no ambiente social, familiar e
individual. O sujeito poderia estar preparado facilmente para lidar com as questões
homossexuais com uma maior naturalidade, maior conforto e segurança, precisão com as
palavras. Uma autoconfiança sobre suas ansiedades, articulação de ideias, troca de
experiências.
A ênfase encontrada na literatura de expressão gay, ou comumente reconhecida como
literatura marginal, visa certa característica identitária, não somente biológica como também
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A possibilidade de se ler um romance, mesmo que não esteja circulando na lista dos
melhores Best Sellers, pode vir a gerar e a galgar um lugar nos grandes estudos possibilitando
um amalgama de questionamentos que provoquem o imaginário individual ou coletivo,
permitindo, se não a compreensão, mas ao menos suscitando uma busca por questões atuais a
serem discutidas. Compreendendo como um processo, o leitor pode se permitir uma maior
compreensão, um novo enfoque, um olhar, ou até mesmo um pensamento a partir do qual seja
capaz de entender as vicissitudes do ser humano em meio a seus conflitos, seja de ordem
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mais intuitivo, mais emocional. Fica impossível esconder-se do desejo explícito: estava ele,
“no papel”, no meu pensamento, diante dos meus olhos.
Como explicar o medo e a hostilidade? Como explicar a distância e a atração? Uma
parte secundária da vida na busca da constituição psicológica e emocional é proposta pelo
personagem como uma fuga do emocional que vai de encontro a sua razão de estar presente
na vida do outro.
A sobrevivência depende da auto-ocultação. O controle da sublimação, de esconder
seus reais sentimentos. Mas contrapõe-se à enganação e autodesprezo que nunca deixam sua
consciência. O que lhe dá sentido para a vida é justamente o que mais pode vir a destruí-lo,
tanto seu interior de jovem apaixonado em meio aos seus sentimentos, quanto aos olhos dos
outros, estando alheios.
A condição básica para sobreviver em certas situações é subjugar a si mesmo diante
das observações pouco animadoras e enriquecedoras para transcorrê-lo de tais sentimentos. O
personagem acredita em suas emoções e convicções para o seu desenvolvimento, o seu
caminhar para a liberdade do seu corpo, de ter domínio sobre seus desejos; ir ao encontro
daquilo que lhe é fator favorável de aproximação, de pele, suor e gozo.
Sugere que sabe lidar com a incerteza. Que comunga da distinção entre seu desejo
sexual e seus anseios emocionais de forma a sempre estar em fuga de si mesmo para encarar o
personagem de sua antítese, Eduardo. Não porque tenha real domínio objetivo da carne, mas
pelo instinto de sobrevivência social e sexual. O personagem não deseja ser excluído da
presença do outro, pois seria traumático. Atravessa uma experiência de se estar só. A solidão
aproxima os seus reais sentimentos para encontrar-se ao outro. A sua antítese descobre a
rejeição emocional do personagem Fábio, pela simples força das circunstâncias. Já Eduardo
segue a traçar uma trajetória para sua vida onde lhe é permitida burlar seus sentimentos e estar
sempre na companhia de seu primo, não se permitindo a saudade.
Mesmo não sendo “natural” o fato de o relacionamento atravessar o caminho comum
do adultério consciente, pois no decorrer do romance, Eduardo inicia um relacionamento com
Clara, e, ao saber de tal relação, Fábio entra em conflito e faz drama de sua situação, por estar
sendo uma má pessoa e ridículo. O orgulho ultrapassa a fronteira da satisfação pessoal e
chega à culpa, sublimando os reais sentimentos.
Os homens são menos defensivos e mais arrojados em suas emoções do que as
mulheres; são mais arrojados na sexualidade (FÁVERO, 2012). O processo de enfrentar,
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encarar e aceitar uma condição de macho ultrapassa a linha do traçado lento e o caminho de
divagar de uma autorrealização em meio de uma realidade de vivência emocional básica. A
permuta para se conseguir suprir seus desejos é usualmente atrelada ao fator sexual. O perigo
é fator preponderante para a relação e a situação que a envolve é inevitável para a
experimentação homossexual, que pode vir a ser considerada, em várias hipóteses, como uma
possível doença, uma perturbação da ordem, uma condição privilegiada ou mesmo a maldição
certa; pode vir a cair na discussão de uma possível cura. Ser polida, ocultada, alcançada,
abraçada ou somente suportada. Mas ela é real. E perpassa transcorrendo involuntariamente,
não se atendo as suas formas de expressão, aos sentimentos condenados. Ela devaneia por
uma área misteriosa, instável em sua masculinidade onde o desejo sexual e o emocional se
entrelaçam e se encontram para uma satisfação momentânea.
A história presente, na obra aqui escolhida, é de uma minoria grandiosa em seus
conflitos internos que se acomodam diante das questões que poderiam abrir um leque para as
discussões acerca do prazer emocional e o prazer sexual. Trava-se um duelo entre a paixão e a
razão, entre o cuidado máximo e a honestidade com argumentos que confortam a momento
atual. São verdades que se escondem na mentira dos outros.
Num processo de mediação entre o pensar lógico em concordância às práticas sociais,
o sujeito infere sua subjetividade, em acordo ao seu contexto histórico de vida para romper
com o social. O que um dia foi um processo de adequação, hoje rompe com o social para se
aventurar em novas perspectivas de adequação social. Para se compreender o sujeito de hoje,
faz-se necessário reconhecer o sujeito de ontem, para se construir o sujeito de amanhã.
Considerações finais
avançou na mudança requerida. O olhar voltado para as causas ainda passam por
reformulações que garantam o zelo e diversidade de pensar, agir e mesmo se portar em
sociedade.
Os conservadores ainda estão do lado oposto aos direito do ser humano. Vários serão
os degraus a serem alcançados na busca do ideal perfeito de convivência que se possa definir
como igual. As injustiças abarcam os que buscam por viver uma vida plena que mereça um
fenecer do coração. Para muitos indivíduos, um amor compartilhado pode ser considerado
sempre fugidio, um objetivo que não raramente podemos atingir, e quando o fazemos
supomos achar de difícil conservação. Mas abster-se da falta dessa possível realização como
condição de existir é retirar de uma vida humana muito do que poderia impulsioná-la além do
horizonte. É por isso que talvez pareça tão difícil esquecer uma cicatriz feita pelo destino, ou
uma tatuagem inserida no corpo por uma razão qualquer, pois não conseguindo se mover
sozinha do corpo, não há nada a sua frente, nenhum futuro ou desejo que impeça de ir.
Referências bibliográficas
1
Thanatos, que representa a morte e os instintos de auto-preservação, e é regido pelo princípio da realidade, que
leva o ser humano a adiar o prazer, buscar a segurança e desempenhar atividades produtivas.
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O conflito entre Eros2 e Thanatos é uma luta pela liberdade e felicidade humanas. Uma
vez que, para viabilizar a civilização, o princípio do prazer foi sobrepujado pelo princípio da
realidade, os dois instintos se encontram em permanente estado de oposição. Dessa forma,
cada ser humano tem em seu aparelho mental a evolução de sua repressão individual (da
infância à existência social consciente) e a evolução da civilização repressiva (da horda
primordial ao estado civilizado plenamente constituído).
Esse aparelho realiza uma constante repressão de Eros por meio da dinâmica da tríade
id, ego e superego e da administração dos princípios do prazer e da realidade. Nesse processo,
os instintos de vida foram enfeixados em um ego organizado que torna o sujeito um ser que
lida com a realidade de acordo com aquilo que lhe é “útil”. O superego, por sua vez,
administra os impulsos do id, mantendo o ego equilibrado e orientando o indivíduo a remover,
de forma racional, as barreiras que impedem o prazer.
A sociedade disciplinar fabrica corpos dóceis, submissos, altamente especializados e
capazes de desempenhar inúmeras funções, a fim de beneficiar o poder, mas que carrega com
grande peso o discurso de bem comum.
O adestramento como método a ser seguido pelo corpo social desenvolveu uma
disciplina no agir do homem, fator que resultou e continua resultando em uma manutenção da
eficácia das instituições.
Tal procedimento é facilmente reconhecido no conto “A medalha” de Lygia Fagundes
Telles. O conto é protagonizado pela personagem Adriana, a qual busca romper coma moral
social. Para tanto ela surge como uma mulher subversiva ao vivenciar encontros amorosos
clandestinos. Noiva de um rapaz negro vive em uma rotina de adultério. No entanto, ela
sucumbe à concretização do matrimônio, por não ter forças para lutar contra a robustez da
moral social.
2
Eros, que representa a vida e os instintos sexuais, e é governado pelo princípio do prazer que impulsiona o ser
humano na superação da repressão para obter satisfação e desfrutar de atividades lúdicas.
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A moral é para o homem uma espécie de chancela, onde se é permitido certos desvios.
Ao passo que um determinado grupo social cresce, é intensificada consequentemente a
pressão coletiva em cima do indivíduo, o qual é acanhotado pelas regras que devem ser
cumpridas automaticamente, pois ao serem criadas estabelecem um novo modelo a ser
seguido, ou seja, mais uma cobrança de algo que já deveria ter sido executado.
O modelo repressivo que estamos apresentando neste trabalho coincide com o
arquétipo que Foucault propôs. Segundo ele a sociedade imobiliza o indivíduo, o
impossibilitando de praticar qualquer ato que fuja do padrão estabelecido.
A dialética da repressão tem seu objetivo alcançado quando ocorre um adestramento
satisfatório. Quando tal fenômeno ocorre tem-se o reaparecimento da pulsão de vida. A pulsão
de vida consiste na obtenção de um prazer pleno para o indivíduo, o qual passa a ser soberano
de si.
Embora seja tão importante governar desejos e prazeres, e apesar do uso que
se faz deles constituir um alvo moral, de tal preço, não é para conservar ou
reencontrar uma inocência de origem, não é em geral-(...)- para conservar
uma pureza; é ser livre e pode permanecê-lo. (FOUCAULT, 1984, p73).
A pulsão de Eros é impulsionada por meio do outro, este Outro pode ser qualquer ser
ou instituição. Uma parcela da energia que destrói o indivíduo – Thanatos – destina-se a
renuncia que é desencadeada quando olhamos para o que se constitui como o nosso Outro e
nos percebemos como menor ou igual.
Seguindo o raciocínio freudiano, Marcuse (1999) mostra que o inconsciente humano
retém os objetivos do princípio do prazer derrotado, de modo que a repressão é
recorrentemente contestada pelo “retorno do reprimido”: os instintos sexuais humanos
retornam para cobrar a sua insatisfação, seja pelas manifestações genitais ou de sublimação
(desvio da libido, ou sua conversão em outras formas de desejo).
Ao analisarmos os principais constituintes da teoria freudiana, podemos concluir que a
repressão de Eros reproduz o arrolamento de das relações de dominação na malha social, isto
ocorre quando equiparamos a teoria de Freud com os itens histórico-sociais específicos. Na
sua visão, além da repressão dos instintos primários – necessária para viabilizar a convivência
social e evitar a barbárie – a civilização gerou também a “mais-repressão”.
Segundo o sociólogo Marcuse (1999) mostra-nos que tanto a repressão de Eros como
os desvios da libido estimulam o “retorno do reprimido”, gerando deste modo mecanismos de
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A medalha
Lygia Fagundes Telles nos agracia com uma produção é marcada pelo fato de suas
personagens apresentarem vivências conflituosas, entrando constantemente em choque com a
realidade exterior, são “desencontradas dentro si e ou com o mundo”. Estão sempre em busca
de respostas que expliquem sua situação frente ao seu meio social. Desse modo, buscam
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meios para resolver os seus conflitos. Isso, muitas vezes, resulta num choque entre os anseios
e desejos da personagem e as limitações impostas pela sociedade.
Os problemas que as suas personagens vivenciam são advindas das relações com o
Outro. LFT foca, em primeira instância, nas relações homem-mulher e entre o Sujeito e os
seus entes familiares – pai, mãe, irmãos e demais figuras que compõem o universo familiar.
O conto que foi escolhido como corpus para compor este trabalho intitula-se A
medalha, o qual apresenta um enredo marcado por conflitos tanto de cunho existencial como
de caráter social. A história tem como base de sustentação um “novo” modelo familiar, no
qual os membros não mais vivem subordinados a papeis conservadores. Defrontamo-nos com
uma família que se expõe a costumes que a conduzem a conflitos com as tradições sociais. O
pai já não é o ponto central da família, muito pelo contrário, ele é posto como permissivo.
Com a descentralização da figura paterna, como ponto determinante da valorização da
família, a “ordem” volta-se à figura materna e esta passa a constituir a “lei”. É nesse ambiente
controverso que Gina, a protagonista, se edifica.
Defensora da literatura como um receptor social, acredita que o autor é uma espécie de
testemunha de seu tempo, uma “caixa preta” da história. Argumenta que a função de escritor é
servir de representante para aqueles que “não têm voz”, que não têm meios de mostrar quem
são verdadeiramente, que não têm como expressar como conseguem sobreviver dentro do
modelo social que não abarca os seus desejos. Desse modo, o literato tem, em mãos, um meio
de transformar a sociedade. Ao se debruçar sobre o feminino, Telles dá voz a mulheres.
Mostra as nuances da existência humana a partir da visão do “belo sexo”. Com as suas
personagens fortes e densas, ela cria um novo conceito de Literatura.
Com sua “pena adestrada”, LFT relata o universo feminino em todas as suas esferas,
subvertendo o patriarcado. Ela revela como as mulheres se constroem em meio aos nãos,
como são densas, complexas, cheias de desejos e necessidades. Apresenta personagens que
dão vazão aos seus desejos sexuais, mesmo que isto represente viver sobre a lâmina cortante
da sociedade. LFT mergulha mais fundo e traz mulheres que amam suas iguais, jogando,
desse modo, as cartas sobre a mesa do preconceito e a hipocrisia social. De forma sublime,
retrata como este amor é puro, denso e cheio de novas experiências, porém deixa claro que
para vivenciá-lo é necessário vencer a si mesma.
Lygia Fagundes Telles se debruçou sobre a construção de personagens femininas,
elaborando de forma rebuscada os seus dramas, suas vivências, dores, necessidades, desejos.
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Porém, esse estilo não limita a sua obra como muitos podem pensar. Pelo contrário, “suas
mulheres” ilustram, com propriedade poética, a condição humana. De acordo com José Paulo
Paz, a obra de LFT é edificada a partir “da decadência moral burguesa, habitualmente através
dos dramas centrais de personagens femininas que se debatem entre o desejo de afirmar a
própria autenticidade e a impossibilidade de fazê-lo no contexto familiar ou social, a que se
sentem irremediavelmente presas” (pág. 420).
“A medalha” é um exemplar perfeito da escrita lyginiana. Este conta-nos uma história
de fracasso da família burguesa, atestando deste modo o caráter alegórico das narrativas
ficcionais modernas. Mostrando-nos a fragilidade da instituição familiar. Para tanto, Lygia
Fagundes Telles disseca esta, deixando visível a “olhos nus” os vícios que a compõem.
O sentimento que rege o conto “A medalha” é o abandono. A história apresenta um
núcleo de amarguras. O sentimento tingi a atmosfera do enredo da obra, deixando tudo
escurecido, lânguido. Com ares de solidão e desamparo. Adriana se abandona. Ela opta por
deixar-se, larga-se a vontade do que a sociedade lhe impõem.
A protagonista se vê abandonada pelo mundo. Após a morte do pai e da orfandade do
seu primeiro e verdadeiro amor. Posteriormente aos desabrigos, ela joga-se nos braços da dor
e da angústia. Na vã tentativa de amenizar o sofrimento que é desencadeado pela partida dos
dois, Adriana arremessasse na roda vida das relações furtivas, tentando incessantemente
vencer a angústia dos que já não tem para onde voltar. Ao dar-se conta de que esta é uma
guerra perdida, ela passa a fingir. Fingi assim como Fernando Pessoa fala: “O poeta é um
fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”.
É perceptível a “adoração” que a protagonista tem pela figura paterna, nos conduzindo a
compreensão de que esta não conseguiu sanar de forma satisfatória o complexo de Édipo.
Para melhor compreendermos como este processo ocorre, tomemos o conceito do termo
supracitado Para tanto, contamos com o auxílio do consagrado verbete de Laplanche e
Pontalis (1992), que o caracteriza como um:
A filiação do complexo psicanalítico descrito por Freud ao mito grego Édipo Rei,
popularizado graças à tragédia escrita por Sófocles; e o caráter trifásico (positivo, negativo e
completo) atribuído pelo pai da Psicanálise a este fenômeno. Tal conceito nunca foi
sistematizado de forma precisa por Freud, porém ele pode ser facilmente compreendido
quando o mesmo em carta a seu amigo Wilhelm Fliess cita:
A mãe da protagonista compara a filha ao marido, segundo ela, ambos eram idênticos.
Apresentavam o mesmo tipo físico, os mesmo vícios. O devasso os unia em uma única figura
refratária.
Adriana tinha o véu para “cobrir-lhe” os pecados. Segundo o dicionário de símbolos
de CHEVALIER (2012, p. 950), “o véu quer dizer, em árabe o que separa duas coisas...
significa o conhecimento do culto ou do revelado. Assim na tradição cristã monoteísta, tomar
o véu significa separar-se do mundo...”. Adriana ao apoderar-se do valor simbólico deste,
passa a figurar como outro ser. É como se este a desse o poder de controlar a fronteira entre o
degenerado e a moral.
A protagonista ao por o véu faz a passagem do Eros para a pulsão de morte. O véu
simboliza o sistema de controle, o qual tentava manter o indivíduo ocupado trazendo
mudanças nas práticas discursivas para controlar a libido individual, e obter um controle
coletivo.
Para entendermos de forma mais clara como este jogo se homogeneíza, tomemos o
trecho do conto: Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho? Já
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se olhou num espelho'' — E daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à
beça Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. (p. 07).
Aqui é evidente como a moral social age coagindo os que fazem parte do tecido social.
Enquanto Adriana tiver o véu, ela estará protegida até determinado ponto da ação coerciva da
mora.
Conclusão
Procuramos ao longo deste estudo construir um desenho claro de como a moral social
esta atrelada a elementos que integram a psique humana. Conceitos como pulsão de morte e a
pulsão de vida são de extrema valia para alcançar este entendimento, já que estes se mostram
como ingredientes básicos na estrutura do comportamento humano.
Para entendermos como se dá o processo de enlace entre as normas sociais e a psique
tomamos a literatura como objeto de analise, já que compartilhamos da ideia de que esta é
resultante do que a sociedade lhe coloca, sendo assim, ela é o resultado do processo
supracitado.
A literatura, assim como as demais expressões de arte, funciona como uma espécie de
resposta aos movimentos que a sociedade passa. É um continuo de respostas para
questionamentos feitos a si mesmo. Deste modo as artes nos auxiliam na compreensão dos
elementos que compõem a subjetividade humana.
Evidentemente que não podemos estabelecer como único papel da criação literária o
seu caráter refratário do social. A literatura é uma expressão artística e merece ser valoriza
pelo simples fato de existir e comover.
O que este trabalho objetivou foi utilizar o texto literário como mote para
entendimento da mecânica do funcionamento da sociedade, tomando como pano de fundo a
psicanálise.
A psicanálise surge como mecanismo de ativação para o entendimento de como o
nosso comportamento é moldado pela moral social e como respondemos a esta de forma a
buscarmos uma sobrevivência psíquica. Adentrar no âmbito da compreensão da sociedade
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requer uma serie de cuidados, visto que cada ser humano reage de forma específica quando
exposto a uma mesma ação.
Para tanto a psicanálise juntamente com a literatura conseguem retratar questões
humanas, mesmo de formas distintas elas absorvem a demanda da subjetividade humana em
um processo contínuo em busca por respostas para o que lhes é colocado. Fazendo uso da
mesma ferramenta, a fala, ambas procurar entender e elaborar respostas que nos auxiliem na
compreensão de quem somos e de como a sociedade se constrói.
Referências
Introdução
vida dos seres humanos. Há sempre a criação de androides cada vez mais perfeitos, pessoas se
tornando em ciborgues (pós-humanos) e robôs mais rápidos e eficientes.
Todavia, mesmo aceitando-os próximos de si, no fundo o ser humano guarda a
convicção de que esses seres artificiais criados pela ciência e tecnologia são diferentes dele, e,
portanto, inferiores. Mas conhecendo as habilidades destes seres e sua contínua capacidade de
aprimoramento, no coração do homem cresce um temor aparentemente infundado, porém
antigo, de que aqueles podem tentar substituí-lo, temor este que o escritor de ficção científica
Isaac Asimov denominou como “Complexo de Frankenstein”.
Para se entender o que seria o citado complexo, se faz necessário discorrer sobre o
gênero ficcional no qual esta designação surgiu: a ficção científica.
O escritor Muniz Sodré, em seu livro “teoria da literatura de massa” ao discorrer sobre
a suposta a origem da ficção científica traz o pensamento do francês Pierre Versins,
importante estudioso da área:
juventude. Planta esta que posteriormente lhe será furtada por uma serpente. A história
termina com o retorno do rei à Uruk e sua morte: “Oh, Gilgamesh, era este o significado de
teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar era teu destino; a vida eterna não era teu destino.”
(Anônimo, 1992, p.109).
Porém, embora haja posicionamentos como o de Pierre Versins, na qual a origem da
ficção científica acompanhe a de alguns mitos e lendas; para outros pensadores, como o
escritor russo naturalizado americano Isaac Asimov, a verdadeira ficção científica somente
surgiu no começo do século XIX, após a revolução industrial:
“scientific-romance1” para classificar as suas obras, foi Hugo Gernsback, escritor e editor da
primeira revista dedicada exclusivamente à ficção cientifica (Amazing stories 2), quem
idealizou o termo tal qual o conhecemos hoje: “O termo (Science-fiction) é forjado em 1927
pelo engenheiro norte-americano Hugo Gernsback." (SODRÉ, 1978, p.122).´
Em seu livro “No mundo da ficção científica”, Asimov apresenta a seguinte
afirmação: “Brian Aldiss considera Frankenstein, publicado na Grã-Bretanha em 1818, como
a primeira verdadeira história de ficção científica. Sinto-me bastante inclinado a concordar
com ele.” (ASIMOV, 1984, p.17). Conclui-se que tal concordância se deve ao fato de Asimov
entender que Mary Shelley foi a primeira a fazer uso de uma descoberta científica, neste caso
os estudos do anatomista italiano Luigi Galvani acerca da “bioeletrogênese3", para infundir
lógica à criação do monstro de Victor Frankenstein, tornando sua criação plausível.
Porém, embora Asimov acredite que o primeiro romance de ficção científica foi
Frankenstein, este igualmente defende que Mary Shelley não deve ser considerada a primeira
escritora deste gênero. Seu pioneiro seria Júlio Verne, tendo em vista que ele foi o primeiro
escritor a se especializar na área e a obter o seu sustento escrevendo ficção científica.
Mas afinal, o que é ficção científica? Muniz Sodré tenta responder a este
questionamento ao apresentar a seguinte definição:
Pelo discurso de Sodré, nota-se que ele concede a ficção científica como sendo uma
espécie dentro do gênero fantástico. Para ele, a ficção científica é uma fantasia dotada de
racionalidade, ou seja, cujas suposições teriam como fundamento as descobertas de cunho
científico e tecnológico.
Tal conceito, de certo modo, nos recorda o posicionamento do ensaísta, doutor em
Literatura e significação, Tzvetan Todorov. No seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”,
Todorov apresenta três grandes gêneros: O fantástico (caracterizado pelo momento de
1
Romance científico.
2
Histórias incríveis.
3
Em linhas gerais, seria um estudo que implicava na utilização de impulsos elétricos na medula espinhal de
sapos mortos, resultando assim, em contrações involuntárias dos músculos e nervos de suas pernas, como se
esses anfíbios ainda estivessem vivos.
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Todorov apresenta a ficção científica como uma subespécie, só que desta vez daquilo
que ele denomina como “maravilhoso puro”. Ele, diferente de Sodré que pensa na ficção
científica como uma fantasia racional, a concebe como pertencente ao maravilhoso,
justamente por acreditar que os eventos ocorridos neste tipo de narrativa dependem do
sobrenatural, de acontecimentos que, embora inicialmente, sejam aparentemente
inexplicáveis, na realidade são cientificamente aceitáveis.
Em sentido completamente inverso, Isaac Asimov apresenta a ficção científica não
como espécie ou subespécie, mas sim como um gênero ficcional surrealista.
Segundo Asimov as obras literárias podem se encaixar em um de dois grandes grupos:
ficção realista “(...) trata de fatos que se desenrolam em meios sociais não significativamente
diversos dos que hoje existem ou tenham existido em alguma época no passado.” (ASIMOV,
1984, p.15) e ficção surrealista “(...) referem-se, por outro lado, a fatos que se verificam em
ambientes sociais não existentes na atualidade e que jamais existiram em épocas anteriores.”
(ASIMOV, 1984, p.16).
Como se pode observar, a ficção realista baseia-se em fatos que ocorrem na sociedade
atual ou que ocorreram em sociedades anteriores a esta, sendo facilmente reconhecíveis pelo
leitor em detrimento da sua verossimilhança com a realidade. Enquanto a ficção surrealista
refere-se a fatos que presumivelmente ocorrerão (ou não) e desencadearão em mudanças
sociais não reconhecíveis pelo leitor, justamente por se situarem fora do que este entende
como real.
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Dentro deste contexto, a ficção científica e a fantasia podem ser consideradas como
gêneros que compõem a ficção surrealista:
Com base no exposto acima, vemos que a diferença primordial entre a ficção cientifica
e a fantasia baseia-se no fato da primeira ter uma narrativa alicerçada pela presença da
cientificidade e da tecnologia, e a segunda não. Razão esta pela qual Isaac Asimov elaborou a
seguinte definição: “A ficção científica é o ramo da literatura que trata das respostas do
homem às mudanças ocorridas ao nível da ciência e da tecnologia” (ASIMOV, 1984, p.20).
Por crer que a classificação e conceito defendidos por Asimov são os mais coerentes, este
serão os adotados para guiar o presente trabalho.
Asimov acreditava também que a ficção científica possuía como meta descrever
aspectos da vida sobre o qual não temos conhecimento, possibilitando ao Homem realizar
uma projeção do futuro, ou ainda, como observa Sodré, idealizar um presente alternativo ou
um passado suposto.
Deve-se ainda ressaltar que, utilizando-se de argumentos lógicos e racionais além de
suposições dotadas de cientificidade, ao passar dos anos muitos autores deram asas a sua
imaginação. Tornando plausível a criação de um mundo ficcional, no qual, a ciência e a
tecnologia tornam possível: se construir uma máquina capaz de viajar no tempo, em que há
guerras interplanetárias; onde um monstro formado por partes de corpos humanos ganha vida,
no qual a ciência se tornou um agente de desumanização e dominação; onde seres humanos
artificiais extinguem a vida na terra, ou mesmo, em que robôs visam acima de tudo o bem da
humanidade, protegendo os seres humanos inclusive de sua própria natureza destrutiva.
Este último exemplo é fruto da imaginação de Asimov em sua obra “Eu, robô”. O
citado livro é constituído por série de nove contos, precedidos por uma breve introdução. Os
contos, escritos entre os anos de 1938 e 1949, somente foram publicados enquanto coletânea
no ano de 1950.
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4
Drª. – Doutora.
5
As Três Leis da robótica são:
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais
ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a
Primeira e/ou a Segunda Lei.
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mecânicas supramencionadas, Hefesto, com o aval de Zeus, também teria criado Pandora, a
primeira mulher.
Porém, o ato de criar vida, se intentado por seres humanos, era considerado um
grande atrevimento, digno de punição. Geralmente esta punição se dá por meio de um ato de
rebelião da criatura, que se volta contra seu criador.
Uma história que exemplifica bem este tipo de situação é a “Lenda do Golem”.
Segundo Asimov, um Golem seria uma espécie de robô espiritual: “A palavra cognata árabe,
ghulam quer dizer servidor e, nesse sentido, aproxima-se do termo robô. Acredito que um
golem seria um robô no qual fosse instilada vida através de palavras mágicas, religiosas, e não
mediante aplicação de princípios científicos” (ASIMOV, 1984, p.85).
A versão mais conhecida desta lenda (pertencente ao folclore judaico) discorre sobre a
criação de um ser artificial (feito de barro, mas cuja aparência era humana) mudo e
desprovido de consciência, supostamente fabricado pelo rabino Judah Loew ben Betzalel.
No que respeita à componente folclórica, conta-se que certo dia o Rabbi Low
(Praga, séc. XVI) se propôs criar um servo a partir do barro, o terá
"animado" por fórmulas mágicas através do nome de Deus, mas que mais
tarde o teve de destruir, porque ele tinha entrado num descontrole total.
Apesar de o Rabbi ser considerado sábio e santo, a criação do Golem foi
vista como um ato melindroso e problemático, cuja ambivalência se
manifesta na dupla natureza do Golem: por um lado possui um corpo dotado
de forças naturais, por outro, é mudo e não tem alma, não devendo ser
considerado um ser humano na verdadeira acepção da palavra: é insensível,
mas obediente; um ser sem passado nem futuro, sem duração e sem
memória. (MOSER, 2013, p. 323 e 324).
O Rabino Loew teria criado o Golem com uma boa intenção: proteger os judeus que
moravam em Praga contra ataques antissemitas. Porém, apesar de no início servir o seu
criador de forma inquestionável, com o tempo o Golem foi se tornando violento e acabou por
se voltar contra aqueles que ele deveria proteger. A justificativa para tal atitude seria
justamente o fato da criatura não possuir uma alma (já que foi criado por um ser humano), e,
portanto, ser desprovido de consciência sobre o bem e o mal.
Outro grande exemplo seria o de Victor Frankenstein, que teve sua vida destruída por
uma série de eventos trágicos após brincar de Deus, e ter infundido vida em um monstro
construído a partir de partes de cadáveres. Frankenstein foi punido (assim como o titã
Prometeu, que provocou a ira de Zeus ao conceder aos homens o segredo de como obter o
fogo) com a morte de entes queridos como a do seu irmão William e de sua esposa Elizabeth,
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por utilizar-se de um conhecimento cujo acesso deveria ser proibido à humanidade: O segredo
da vida.
A autoria da palavra “robô” foi atribuída a Capek, graças a esta peça, na qual, o jovem
Rossum (com base na descoberta de seu tio e impulsionado pelo desejo de fazer fortuna)
inicia o audacioso plano de produzir milhares de robôs para servirem como escravos dos
humanos. O plano dá certo, e, anos depois, os robôs se tornaram “produtos”, sendo utilizados
para realizarem as tarefas desagradáveis e enfadonhas que seres humanos não querem realizar.
A exploração do trabalho dos robôs se justificaria no fato destes serem seres sem alma,
criados unicamente para serem funcionais: “Mechanically they are more perfect than we are,
they have an enormously developed intelligence, but they have no soul.” 6 (CAPEK, 2013, p.
9). Todavia, no fim, revoltados com a sua condição, os robôs armam um motim e se voltam
contra os seres humanos, exterminando-os.
Em decorrência de obras como esta, Asimov afirmava que os contos que formam a
série “Eu, robô” foram escritos como uma ação de repúdio ao citado complexo: “A partir de
1938, escrevi uma série de contos sobre robôs, que exerceu alguma influência. Tal série
combateu de maneira um tanto constrangida o “complexo de Frankenstein”, fazendo dos
robôs servidores amigos e aliados da humanidade.” (ASIMOV, 1984, p.198).
Todavia, o mencionado Autor expôs que mesmo ele tentando combatê-lo (com a
publicação do livro “Eu, robô”), o pessimismo acabou triunfando por dois motivos:
O fato de muitos jovens escritores, nos anos 60 e 70, se arriscarem a escrever uma
obra de ficção científica sem possuir qualquer noção de ciência, sendo a ela, na realidade,
bastante hostis.
E também, o fato das máquinas estarem se tornando a cada dia mais assustadoras;
tanto por seu poder de destruição (devemos nos lembrar de que a coletânea foi publicada em
1950, para uma geração que ainda recordava com extrema clareza os horrores da segunda
grande guerra e da tecnologia que a apoiava, capaz de criar bombas nucleares com poder de
destruição em massa); como por seu poder de tornar os seres humanos dependentes de sua
praticidade, tais quais os automóveis e computadores.
6
[Nossa tradução] “Mecanicamente eles são mais perfeitos do que nós, eles têm uma inteligência extremamente
desenvolvida, mas eles não têm alma."
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escravizar toda a humanidade, Evelyn se sacrifica para destruir a sua criação e acaba
falecendo no processo. Neste longa, a inteligência artificial “Will” acaba sendo a responsável
por fazer com que o mundo sofresse uma regressão tecnológica, pois sua destruição gerou
uma pane global em todos os equipamentos eletrônicos.
No filme “Eu, robô” (2004), que se passa no ano de 2035 na cidade de Chicago, o
detetive Spooner (personagem que não existe na obra literária, tendo sido criado
exclusivamente para o filme) apresenta-se como um homem amargurado, que vê toda a
tecnologia que o cerca como um grande perigo para a humanidade. Para ele, os robôs não são
criaturas confiáveis, razão pela qual ele vive procurando um modo de provar que as suas
desconfianças são verídicas. A oportunidade surge quando este é convocado para assumir o
caso do suposto suicídio do Dr. Alfred Lanning, um brilhante cientista e cofundador da
empresa U.S.Robotics. Durante a investigação, Spooner é surpreendido por um robô modelo
NS5 que está fugindo da cena do crime, o que somente colabora em aumentar a desconfiança
que o policial tem pelas máquinas.
A partir de então há várias cenas de perseguições e ataques realizados por robôs contra
Spooner, que por sua vez está juntando as peças do quebra-cabeça que envolve o falso
suicídio de Lanning.
E ainda, é revelado o fato de Spooner ser um ciborgue. Segundo o entendimento da
criadora da Ciborgologia, a professora Donna J. Haraway:
dos dois sexos ou, também, por extensão, qualquer produto artificial que seja neutro, isto é
assexuado.”. Logo, o androide nada mais é do que um robô que possua aparência humana,
com ou sem um gênero definido.
Neste filme, o androide David acaba revelando certa crueldade quando, por mera
curiosidade científica, coloca em risco a vida de toda a população da nave em que este se
encontra, ao inserir uma espécie de parasita alienígena na bebida do Dr. Holloway,
infectando-o e consequentemente prejudicando também a sua companheira, a Dra. Shaw, que
acaba gestando uma das criaturas, apesar de ser estéril. No fim do filme, fica claro para o
espectador que todas as tragédias ocorreram a nave “Prometheus” e seus membros foram
direta ou indiretamente ocasionadas pelas ações de David.
Na série de filmes que compõem a franquia “Exterminador do futuro” (1984 – em
andamento), o grande vilão também é uma máquina: o sistema computadorizado de defesa
“Skynet”. Este, que originalmente foi criado pelo departamento de defesa americana para
controlar as armas criadas pelos mesmos (inclusive as nucleares), acaba desenvolvendo
inteligência artificial, tornando-se assim independente dos seus criadores e se espalhando para
todos os computadores e equipamentos eletrônicos do mundo. O Skynet utiliza-se do controle
que possui sobre todo o arsenal militar existente e inicia o extermínio da raça humana, por
acreditar que os humanos são uma ameaça à sua preservação. Com isso acaba eclodindo uma
guerra entre os homens e as máquinas.
Guerra essa que também ocorre na trilogia “Matrix” (1999 – 2003). Após tomar a
pílula vermelha, Neo toma conhecimento da realidade sobre a sua existência, tornando-se
então o escolhido e passando a enfrentar duas duras batalhas: no mundo real, contra as
sentinelas enviadas pelo supercomputador “Deus Ex Machina”7 (líder da cidade das
máquinas) para encontrar e destruir Zion (cidade humana sede da resistência); e no mundo
virtual Matrix, contra o vírus Smith que transformou todos os habitantes de Matrix em seus
clones.
Outro filme em que o “Complexo de Frankenstein” faz notar sua presença é “Resident
Evil: O Hóspede Maldito” (2002). A protagonista Alice demonstra ser uma jovem
extremamente sem sorte, tendo em vista que além de ser obrigada a descer para um
7
“Deus Ex Machina” é uma expressão de origem latina que significa “Deus surgido da máquina”. Esse termo
geralmente é utilizado para designar uma solução mirabolante e improvável que surge para resolver um conflito
de impossível resolução. Já em Matrix, “Deus Ex Machina” é o supercomputador que lidera a cidade das
máquinas e o mundo de Matrix. Este possui uma aparência exótica, sendo como um ouriço-do-mar com o rosto
de um bebê humano.
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Considerações Finais
Vemos que apesar de Isaac Asimov ter escrito “Eu, robô” com a intenção de combater
o “Complexo de Frankenstein” (que é o medo sentido pelo homem de ser substituído pelos
seres humanos artificiais criados por si), no cinema contemporâneo a influência deste
complexo é forte e a temática “humanidade X robôs maus” ainda é amplamente utilizada.
É uma verdade incontestável o fato de que, atualmente, a maioria das pessoas não
teme a tecnologia. Muitas, na realidade, não conseguem viver um único dia longe dela. Porém
isto não dissipa do imaginário popular a crença de que os “seres humanos artificiais” nunca
serão confiáveis, pois eles não têm algo que tanto os humanos, como os pós-humanos (como
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os ciborgues) possuem: uma alma, algo essencialmente humano capaz de lhe atribuir
sentimentos.
Contudo, também não podemos nos esquecer de que cinema é uma grande indústria,
idealizada para fornecer entretenimento. Razão pela qual, filmes cuja estrutura profunda
resgata o antiquíssimo medo da substituição, que é o “Complexo de Frankenstein”, serão
sempre produzidos e capazes de atrair os espectadores ávidos por assistir um duelo entre os
criadores e as criaturas.
Referências
O exterminador do futuro. James Cameron, 1985. 1h47min. Dolby Color. Colorido. 35 mm.
Prometheus. Ridley Scott, 2012. 2h4min. Dolby Digital DTS. Colorido. 35 mm.
Resident Evil: O hóspede maldito. Paul W.S. Anderson, 2002.1h40min. Dolby Digital.
Colorido. 35 mm.
SHAKESPEARE, William. Tito Andrônico. Disponível em: http://www.ebooks
brasil.org/eLibris/andronico.html#and44. Acesso em: 24 Jul. 2014.
SODRÉ, Muniz. Teoria da literatura de massa. Série princípios. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975 (Debates, 98).
Transcendence – A revolução. Wally Pfister. 2014. 1h59min. Dolby Digital. Colorido. 35
mm.
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Plínio Cabral’s Umbra is a portrait of a devastated world. Its plot takes the reader to
the future as a projection of present day reality. The flowers, the clean water, the rivers, the
fresh air are all disappearing. Little by little pollution is poisoning the planet and its wildlife,
making man an irrational being unable to stop the consequences of his own action.
From the very beginning of the novel it is possible to identify issues related to
colonialism in Brazil and Latin America. For example, the factory gated ports remind us both
of the way in which slaves were enclosed in the senzalas (slave quarters) after six in the
evening and the original colonial settlements in which a city worked as a fort whose gates
were closed at 9pm every night. Another Important allusion to this time is the way people die:
“some suffocate by pollution; others kill themselves or go mad”. This is exactly what
happened to the original natives: many died of illness caused by the colonizer and many chose
to commit suicide rather than submit to the horrors of colonization. Another important fact
that bears witness to the continuing impact of colonial history on Brazil during the seventies
is the way Cabral represents most characters: nameless, homeless, submissive, dependent and
hopeless, unable to take decisions by them own.
1
Naiara Sales Araújo Santos: Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres,
Mestre em Estudos Literária pela Universidade Metropolitana de Londres e Mestre em Letras pela Universidade
Federal do Piauí. Possui Especialização em Língua Inglesa pela Universidade Estadual do Piauí e Graduação em
Letras Inglês pela Universidade Federal do Piauí. É professora da Universidade Federal do Maranhão. Coordena
o grupo de pesquisa Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na
Era Digital (CNPq). Autora do livro Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy e organizadora do livro
O Discurso (pós) moderno em foco: Literatura, Cinema e outras Artes.
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Given that a ‘name’ is central to the individuous’ sense of identity, Cabral denounces
the lack of identity in Umbra’s characters. Expressions like ‘the young boy’, ‘the old man’,
‘forerunner’ replace the name of the characters as if they do not have a real name.
Also important is the idea of homelessness present in the novel. This is clearly
illustrated by a frequent movement of people looking for a better place to live. Paradoxically,
there is no other place where they could settle and build a better future; In fact, Cabral reflects
on the lack of perspective for Brazilian society during the seventies, the characters behave as
if they already known the future - “they meet to discuss about the history of the future”-
which is not possible literally since the word ‘history’ is usually related to something that
happened in the past. This attitude can support the idea that Umbra is strongly related to
issues of colonization which is not just to do with Brazil’s past but also with its current and
potentially future political and economic status.
Thus, our analysis will underline the novel’s investment in colonial and neo-colonial
realities based on the arguments of important critics such as Fanon, Said, Spivak, Bhabha and
the Latin American Nestor Canclini and Enrique Dussel. For methodological reasons, the first
part of the analysis will focus on the ecofeminist criticism followed by the postcolonial
discussion.
Given the fact that this novel was published in 1977 it is pertinent to highlight that its
publication coincided with some important ecological movements that arose in Brazil during
the seventies. Another important issue to stress is the particular significance of the
environment for Brazilian national identity which is associated to the myth of grandeza, or
national greatness. This myth goes back to images of Brazil’s wealth and beauty, its forest and
fertile land.
In 1971 the agronomist José Lutzenberger founded the first ecological association in
Brazil and Latin America – The Gaúcha Association of Protection to the Natural Environment
(Associação Gaúcha de Proteção Meio Ambiente Natural – AGAPAN). It was located in Rio
Grande do Sul state where Plínio Cabral was born. Among other important actions of
AGAPAN one can mention: the fauna and flora defense, combating the industrial and
vehicular pollution, combating the indiscriminate use of insecticides, fungicides and
herbicides, fighting against water pollution caused by industries and against the destruction of
natural landscapes. From 1971 to 1974 these actions were severely repressed by the military
regime; any attempt to raise awareness of these ecological problems could be taken as an
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insult to the governmental authority since ecological activists pointed the government as the
main responsible for the destruction of nature. Its countless enterprises did not take into
account the preservation of the environment. During the sixties and seventies, with the growth
of industrial production, toxic wastes used in agriculture were thrown into rivers, dangerously
compromising the water resources. Uncontrolled gases expelled by industries and motor
vehicles were the principal cause of the increase in respiratory illness. According to the
sociologist Eduardo Viola in his work Meio Ambiente, Desenvolvimento e Cidadania
[Environment, Development and Citizenship] (2005), the height of absurdity, when it comes
to ecological issues, was when Brazilian president Medici put an advertisement in
international newspapers and magazines inviting first world companies to move to Brazil
where they would not face any expenses due to anti-pollution legislation.
As a journalist, lawyer and member of the government, Plínio Cabral occupied
important posts in cultural and politic fields, among them it is worth mentioning his
performance as Chief Secretary of the State of Rio Grande do Sul. From this post it was
possible for him to see and discuss the problems of environmental devastation during the
military regime. Although his position as a member of the government did not allow him to
join the AGAPAN, his writings reveal his deep consciousness about ecological issues. For
Ginway (2004), Cabral is among the first to popularize environmental themes and contest the
cultural myths of Brazilian sensuality and of the lush and fertile land (p.33). As a writer, he
has been critical of modern society and its relationship to the natural environment. His use of
metaphor and allegories can be understood as a necessary response to censorship. Thus, he
used dystopian fiction as a way of denouncing and satirizing modern society. By utilizing an
imaginary futuristic world, his dystopia effectively focuses on political themes and satirizes
tendencies present in contemporary society.
According to Ginway (2004), Plínio Cabral’s Umbra is the first Brazilian dystopia to
focus exclusively on ecological disaster. Given the fact that the novel was published during
the military regime when the government wanted technological advancement at any cost, and
censorship did not allow any opposing views, it is no surprise that the author used allegoric
discourse as his most important instrument in order to protest against the depletion of Brazil’s
natural resources. The idea that everything could be replaced by technology is strongly
stressed by Cabral from the first chapter:
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Nada era importante: cada um fazia o que era necessário fazer, desde tempos
imemoriais. E ninguém se importava com o resto. A fábrica fornecia tudo:
roupa sintética, alimento concentrado, figuras visuais e reuniões onde se
debatia a história do futuro [Nothing was important: each man did what he
had to do since time imemorial. Nobody worried about the rest. The factory
provided everything: clothes, food, visual pictures and meetings to discuss
about the history of the future] (p.10).
Little by little the natural environment is replaced by an artificial one and not only the
environment, but also people’s values. With the expression “nothing is important” the reader
can see how nature is put aside; there is no need to cultivate or preserve the natural
environment since technology provides whatever is necessary. However, at the same time that
man is shown as intellectual, scientific and superior to nature, he seems to be an irrational
being, enslaving himself. This attitude can be associated to the invading colonizers who
despised the indigenous people’s harmonious relationship with the natural world. Drawing on
Merchant’s ideas, Shiva defines Western science as based on an epistemology of male
domination over women and nature. This epistemology abstracts the male knower in a
transcendent space outside of nature and reduces nature itself to dead matter pushed and
pulled by mechanical forces. Thus, the homo scientificus is given supremacy over nature,
denying the symbiosis between humanity and the natural world. From this perspective, the
modern scientist is a man who creates nature as well as himself, through his own intellectual
power. Echoing Merchant’s argument, Cabral seems to advocate the idea that man and nature
are in constant symbiosis. Reflecting this argument at the end of most legends, the hero joins
with a natural element: sand or water, as can be seen by the second legend:
Um dia, por fim, chegou à beira de um rio. Era calmo e silencioso. Aric,
então, deixou-se ficar ali. Já não podia mais caminhar. Não tinha forças.
Abraçou-se ao rio e chorou misturando-se com a água e nela tornou-se. E
assim, correndo com o Rio, continuou a nadar. Até o fim do mundo [One
day he got to the river’s edge. It was calm and silence. Aric, then, stopped
and stayed there. He could not walk anymore. He was weak. He hugged the
river and cried, his tears mixed with the water and Aric and the river became
only one. Aric ran with the river and swam to the end of the world] (p.33).
Here, the dynamic interaction of man (hero) and nature emphasizes the fact that the
non human world, animals, plants, celestial bodies are not simply under human control. They
also have their own purpose, their own relation to God, as expressed by Ruether (2005: 68).
Unlike non human world, modern man has lost contact with nature; instead of being a part of
it he has alienated himself from it and therefore abuses it. Allusions to important biblical ideas
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are also an important strategy used by Cabral in order to reinforce the idea that nature has its
own vitality and it is strongly related to God. In the ninth legend, the hero Daric dies to save
nature in the same way that Jesus Christ dies to save humanity:
In this passage it is possible to find important aspects of the patriarchal paradigm with
its hierarchical structure and methodology of thought which is closely linked to the Judeo-
Christian ideas of man’s innate superiority over nature. These ideas are discussed by the
historian of science Lynn Townsend White in her article The Historical Roots of our Ecologic
Crisis published in 1967. White suggests that an alternative worldview was necessary, and
this alternative must be religious. She also believes that science and technology were so
tinctured with orthodox Christian arrogance toward nature that no solution to our ecologic
crisis can be expected from them alone2. According to Gebara (2005: 111) Patriarchal
epistemology bases itself on eternal unchangeable ‘truths’ that are the presuppositions for
knowing what truly is. In the Platonic-Aristotelian epistemology that shaped Catholic
Christianity, this means eternal ideas that exist a priori. Catholicism added to this the
hierarchy of revelation over reason. Revealed ideas come directly from God and thus are
unchangeable and unquestionable, compared to ideas derived from reason. This religious way
of seeing reality shows, somehow, Cabral’s ambivalent discourse; as is a practicing catholic,
he transfers, unconsciously or not, his beliefs to his texts. Gebara criticizes this kind of
discourse, because according to her, experiences are the most important subject for any
discourse, they cannot be translated into thought finally and definitively. They are always in
context, in a particular network of relationships. This interdependence and contextuality
includes not only other humans but the nonhuman world, ultimately the whole body of the
cosmos in which we are embedded in our particular location. Theological ideas are not
2
Science, vol.155 (March 10, 1967), 1203-7. Reprinted in This Sacred Earth: Religion, Nature and Environment,
Roger S. Gottlied, ed ( New Yourk: Routledge, 1996), 184-93.
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exempt from this embodied, contextual questioning. Gebara goes on to state that changing the
patriarchal paradigm for an ecofeminist one starts with epistemology, with transforming the
way one thinks. Such an effort to dismantle patriarchal epistemology for ecofeminist thinking
includes the nature of the human person.
In Umbra, patriarchal epistemology is also reproduced in the hero who seems to be a
disembodied self that is presumed to exist prior to all relationships. From this perspective the
ideal self is autonomous, has extricated itself from all dependencies on others and stands
outside and independent of relationships as a ‘free subject’. Interestingly Umbra’s hero
always reincarnates with other names and without any family ties or ‘network of
relationships’, as if he existed by himself. In an ecofeminism understanding of the human
person, such autonomy is a delusion based on denial of the others on whom one depends. This
attitude is also expressed in the end of the novel when the nameless boy decides to leave alone
searching for a better place to live. Ironically, he is supposed to be a hero but he fails to
understand the necessary reconceptualization that is needed. Whilst the novel is strongly
critical of environmentally destructive policies, it reproduces individualistic and transcendent
ideas that are, according to ecofeminism, incompatible with environmental awareness.
Whilst Cabral’s hero can successfully reincarnate in other bodies, the opposite
happens with nature. The promise of planting more and better plants has never been kept
(p.43). The idea that technology is able to renew nature is dismissed. Here, one can make a
link to Merchant’s criticism of human attempts to civilize nature. From this perspective,
science and technology are restoring human dominion and thus transforming primitive,
disorderly nature into civilization. Influenced by Merchants’ ideas, Ruether (2005:121) states
that, this task of civilizing nature is the white man’s burden3. This reference seems to be
ironic. The white Western male is subduing the whole world, first Europe and then the
colonized areas of the Americas, Asia, and Africa and elevating them to a higher order. And
by “areas” one can include all individuals living within them: indigenous people, women,
black people and slaves, among others. Merchant goes on to state that this system of
patriarchy or elite male domination is further developed in Western colonialism and modern
scientific technology and economics. These patterns of domination lead to the
impoverishment of most humans and the natural world and rapidly produce a crisis that
3
This expression was probably taken from a poem by Rudyard Kipling which is addressing the entrance of the
United States into the club of colonizing countries.
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threatens survival on earth. Cabral illustrates this same feeling of devastation by male
domination in modern society; because of the effects of pollution, men lose their natural
habitat and have to survive in inhuman conditions:
Naquele tempo quase não falavam. Não havia o que dizer. Deixavam-se ficar
ali, protegendo-se do frio ou do calor, olhando o horizonte, cavando a terra,
sem esperança. De quando em quando alguém aparecia com raízes velhas,
sem água, esfarelando-se como a própria terra. Mastigavam os pedaços,
depois cuspiam sangue, a boca seca, lábios cortados. Assim era a vida. E de
tanto sofrimento, um dia perguntaram: por quê viver? [That time, men hardly
ever spoke. There was nothing to say. They used to stay there, protected
from the cold or the heat, looking at the horizon, digging the earth without
hope. Sometimes some people found old roots, without water, dissolving in
the earth. They chewed pieces of roots and then, spit blood, with dry mouths
and chopped lips. That way was life. The suffering was so much that one day
they asked: Why do we live?] (p.82)
Cabral’s writing reflects the concerns of ecofeminism, but in some respects it is also
subject to criticism from the perspective of ecofeminism. His work can also be usefully read
in the light of postcolonial theory. The degeneration of men, for example, is strongly
emphasized in Umbra, suggesting the destructive impact of colonization on human identity;
Like technological development, the process of colonization generates people without
memories, dreams or hope. The novel depicts the idea that people have lost their memories,
history and imagination, and because of this, they have lost the desire to procreate; this can be
taken as an allusion to Edward Said’s stereotypes of the Orient: timeless, feminine, weak,
cowardly and lazy. Cabral seems to denounce the effects of foreign policies that have put
Brazil in a neocolonial position, that is, dependent and unable to develop by itself. Cabral’s
criticisms reflect Edward Said’s observations about the attitude of the United States to
underdeveloped nations:
In Brazil’s case, the authoritarian government with its repressive acts generated a
feeling that progress and economical development are never used in favor of the majority of
the population. According to Alves (1990:259), after 1974, the state resumed its previous
effort to find a balance between selective repression and a more flexible mechanism of
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representation that would allow it to extend its base of support among middle and upper class
groups, now disaffected because of the violence of the repression and the end of the economic
miracle. This economic model imposed extremely heavy burdens on the majority of the
population; the trend toward ever-greater concentration was most pronounced in rural areas,
where the poorest 50 percent of the population suffered a 33 percent reduction in its share of
national incomes. Cabral also registers this specific period of history when the government
imposed a high level of tax on the poorest population:
This is a remarkable intermediate moment in the novel. Prior to this passage, people
searched for a king who can govern them; they felt the necessity of some kind of leader.
According to Frantz Fanon in The Wretched of the Earth, this attitude is created by the culture
of submission experienced by exploited people in colonized countries (2001:29). Fanon’s
ideas gave significant contribution to the development of cultural and postcolonial studies in
Brazil and Latin America. Inspired in his works, Latin American writers such as Enrique
Dussel and Nestor Garcia Canclini have improved studies in this field. Dussel (2005) rethinks
the process of colonization and domination through a new epistemology: “A Teologia da
Libertação e a Pedagogia dos Oprimidos [The Theology of Liberation and the Pedagogy of
Oppressed People] in Latin America. According to him, in order to overcome the formation
of the oppressive and discriminatory discourse present in modern society, it is necessary to
discover the ‘other face’ of modernity: the world colonial periphery which means the
sacrificed Indigenous, the enslaved man, the oppressed woman and the alienated culture. By
understanding the effects of colonization suffered by Latin American oppressed people it is
possible to begin the process of ‘decolonizing the minds’ suggested by Fanon.
In this regard, Cabral seems to be critically reflecting on the way in which the
government replicates neo-colonial power structures. The repetition of the colonial experience
might also be seen in the reference to ‘Kings’ in the passage above which, one way or
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another, recalls colonial times. After being governed by the Kings of the world, people run
away looking for a better place to live and then, they decide to build the Factory in which they
live. Initially, the Factory works as a hope for people who have lost everything. It promises to
provide a new way of living: more comfortable, healthier, safer, more intelligent and
modernized. But they still need someone who can govern them: “Agora precisamos de um
chefe. Quem dirá o que devemos produzir? Quem repartirá o que produzirmos?...[Now, we
need a chief. Who will tell us what to produce? Who will share our production?” (p.85). Re-
reading Umbra in a post colonial context, it is possible to say that the Factory brings the
characters a neo-colonial reality; if on the one hand, men feel free to do whatever they want,
on the other hand they are unable to administrate their freedom. This attitude can be explained
because, according to McLeod (2000:22), overturning colonialism is not just about handing
land back to its dispossessed peoples, returning powers to those who were once ruled by
Empire. It is also a process of overturning the dominant ways of seeing the world, and
representing reality in ways which do not replicate colonialist values. Here it is worth
mentioning that in terms of post-colonialism, the Latin American context is different from the
situation that pertains in Africa and Asia, where the colonized peoples won back their
independence and rights to govern themselves; in Brazil, for example, the indigenous were
killed or displaced, so these colonized people were marginalized by their colonizers. The anti-
colonial independence movements then were primarily Creole which can explain the feeling
that colonization is not over in Brazil. McLeod goes on to state that if colonialism involves
colonizing the minds, then resistance to it requires ‘decolonizing the mind’. Thus, it would be
no exaggeration to say that, in several parts of the novel, Cabral seems to represent the way in
which Brazilian people are still ‘orientalized’. In other words, Cabral denounces the way in
which colonization is still present in Brazilian people’s mind and culture. In this perspective,
his writing can be pointed as an attempt to ‘decolonize mind’.
Attempting to analyze the cultural effects of colonization in Latin America, Canclini
(1995) starts his studies by emphasizing the hybrid identities in Latin America culture. In his
book Culturas Hibridas: Estratégias para entrar y salir de la modernidad (1995), he
postulates the necessity of a multicultural approach in order to understand the contemporary
Latin American culture. Like Bhabha, Canclini believes that hybrid identities are never total
and complete in themselves because they are marked by multitemporal heterogeneity. His
concerns about modernity and the new configuration of Latin -American metropolis allowed
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In this respect, Canclini and Cabral appear to share the same opinion. Cabral
denounces the way cities are developed without preserving historical and cultural aspects of
people’s lives. For him, the city is a key element in this contradictory processes of
modernization in which men become slaves of their own creation, as can be seen in this
passage:
For both authors the process of modernization is a mechanism that transforms the
subject into object. The passages above suggest the impossibility of idealizing a system
without dehumanizing people. For this reason, these authors denounce the mechanism for
which neocolonialism is able to reduce the individual to a state of inauthenticy. Here, one can
build a parallel with Bhabha’s hybridity:
Hybridity is the name of this displacement of value from symbol to sign that
causes the dominant discourse to split along the axis of its power to be
representative, authoritative. Hybridity represents that ambivalent turn of
discriminated subject into the terrifying, exorbitant object of paranoid
classification – a disturbing questioning of the images and presence of
authority (1994:113).
Bhabha and Canclini shows that the process of hybridization discloses the impurity
inherent in postcolonial society. Their critiques are centered on the effect of different imperial
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policies imposed by the modernity’s mechanism of control to the society. The motifs of
reproduction and representation are key elements to their critiques. Both writers articulate a
project of dismantling modernity and any kind of neocolonialism. Bhabha remarks that the
“subaltern and ex-slaves” who now seize the spectacular event of modernity do so in a
catachrestic gesture of reinscribing modernity’s “caesura” and using it to transform the locus
of thought and writing in their postcolonial critique (1994: 246). Like Bhabha, Canclini
questions the representations of modernity which assumes the properties of simulacrum.
Canclini goes on to state that modernity is not only a space one enters into or from
which one emigrates, it is a condition that involves us, in the cities or in the countryside, in
the metropolises and in the underdeveloped countries. Because of its contradictions,
modernity is a situation of unending transit in which the uncertainty of the modern world will
always be present. In Umbra, Cabral represents this ‘uncertainty’ of the modern world by
showing people’s refusal to look for another place to live. They are afraid of leaving the
factory because they do not know what is outside it.
Interesting enough is the way Cabral reacts to this colonial discourse; in the end of the
novel he describes the boy as someone prepared to face any obstacles he might find on his
journey; like a hero, the bizarre black boy intends to find what nobody has found so far – a
better place to live.
At the same time that Cabral uses the discourse of colonialism to describe the boy, – a
radically strange creature whose bizarre and eccentric nature is the cause for both curiosity
and concern (Mcleod 2000: 52)- this description seems to be an attempt of presenting a new
type of hero whose characteristics could represent a colonized subject essentially outside
Western culture and civilization. The refusal of the boy to be the old man’s student can be
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Introdução
1
Graduanda de Letras da Universidade Federal do Maranhão; bolsista Pibic e membro do grupo de pesquisa
Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital (CNPq)
2
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres, Mestre em Estudos Literária
pela Universidade Metropolitana de Londres e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Possui
Especialização em Língua Inglesa pela Universidade Estadual do Piauí e Graduação em Letras Inglês pela
Universidade Federal do Piauí. É professora da Universidade Federal do Maranhão. Coordena o grupo de
pesquisa Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital
(CNPq). Autora do livro Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy e organizadora do livro O Discurso
(pós) moderno em foco: Literatura, Cinema e outras Artes.
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As motivações ficaram ainda mais nítidas através da rejeição, num primeiro momento,
à ficção científica brasileira, como está claro na afirmação da escritora americana. Por conta
disso, o gênero parecia não se encaixar no campo literário brasileiro que estava mais voltado
para questões de origem nacional, graças aos ideais da Semana de Arte Moderna no Brasil
(1922). Assim, os livros que abordavam a ficção científica não foram bem difundidos em seu
início e perderam força diante do público leitor. Nos anos sessenta, letrados da classe mais
favorecida se dedicaram ao estudo das obras do gênero, o que propiciou o surgimento no
cenário nacional de alguns escritores como Fausto Cunha, Dinah Silveira de Queiroz e André
Carneiro. Os escritores tendiam a reproduzir obras semelhantes às internacionais, todavia,
empregavam nelas características nacionais:
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... um ícone é algo que nós estamos dispostos a aceitar por conta de nossa
familiaridade com o gênero, mas ao contrário das convenções comuns, um
ícone muitas vezes retém seu poder mesmo quando isolado do contexto das
estruturas narrativas convencionais [Like a stereotype or a convention, an
icon is something we are willing to accept because of our familiarity with the
genre, but unlike ordinary conventions, an icon often retains its power even
when isolated from the context of conventional narrative structures]. (p. 16)
Dos ícones tratados por Wolfe, um se destaca por conta de sua proximidade aos
humanos racional e funcionalmente: o Ícone do Robô. Tal representação será analisada
posteriormente nas obras O Desafio de Antonio Olinto e Robbie de Isaac Asimov. Tal ícone é
influenciado por um aspecto social, econômico e político que ainda reverbera no homem
contemporâneo: a escravidão.
Desde sua origem, o robô já se revela ligado à noção de submisso ao homem e às suas
vontades, sendo tido como inferior por natureza. Essa concepção nos remete à ideia do
escravo, do ser desprovido de direitos e relegado a ser propriedade de outrem. A ligação entre
robô e escravo é explicada com mais clareza por Bráulio Tavares em seu livro O que é Ficção
Científica, pois na ficção científica essa relação
[...] muitas vezes não passa de uma reprodução de narrativas que giram em
torno de um padrão civilizado e em criado primitivo, onde um encarna a
cultura e o outro a espontaneidade: um comanda e o outro comenta. O termo
robô vem da palavra tcheca robota, que significa escravo. Não é mera
coincidência. (1986, p. 63)
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Esta sujeição implicada à imagem do escravo é confirmada por Aurélio (2001: p. 611),
ao afirmar que o “robô” seria aquele que “[...] executa tarefas e movimentos usualmente
realizados por humanos”. Isto justifica por que o sentimento de invalidez e de ser substituível
gera apreensão nos seres humanos por natureza, fazendo-os temer os robôs. Estas máquinas
3
“Let us remember that the automatic machine, whatever we think of any feelings it may have or may not have,
is the precise economic equivalent of slave labor.”
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Por isso deve-se ressaltar o fato de que, apesar dos norte-americanos receberem bem a
tecnologia, não significa que não temam os robôs (o que será exemplificado com Robbie); ao
mesmo tempo em que a rejeição da tecnologia pelos brasileiros não significa que tais rejeitam
os robôs (como será exemplificado com O Desafio). O que ocorre nestes casos é a presença de
características particulares no Ícone do Robô que remetem aos efeitos da sociedade
escravocrata sobre o ser humano – o que, claramente, não é algo agradável e está próximo
historicamente o suficiente para ser recordado.
Um aspecto importante que Elizabeth Ginway nos chama atenção é que “do robô se
espera que não use violência e que obedeça e proteja a se mesmo (como propriedade) em
muito da maneira que o escravo teria” (idem, p. 44-45). Este dever do robô é aguardado por
conta das implicações fundamentais sobre o comportamento mesmo através das Três Leis
criadas por Isaac Asimov (em 1950, com a publicação de sua mais famosa obra, I, Robot) e
adotadas pela ficção científica como os princípios da robótica. Estes são três: um robô não
4
“As the robot supplants the functions of the human body, computers supplant the function of the human mind
[...]”
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pode ferir um ser humano, ou por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; um
robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em
que tais ordens contrariem a Primeira Lei e; um robô deve proteger sua própria existência,
desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis (ASIMOV,
1969, p: 03).
Estes parâmetros servem para classificar o comportamento de um robô, e garantir seu
status servil. Essas leis são necessárias, aqui, para uma maior compreensão do comportamento
dos robôs aqui trabalhados, Robbie e T-55, máquinas que seguem os padrões previstos e
corroboram a afirmação anterior de Ginway.
“Robbie”
Esta é uma evidente declaração a respeito do ponto de vista de Isaac Asimov, que
tentara desmistificar a ideia vigente em seu tempo de robôs que se voltam contra seu criador
e, para tanto, produz a imagem de uma máquina dócil que foi concebida somente com a
intenção de facilitar/auxiliar a vida humana. Todavia, com a evolução dos humanos, a
oposição surge: Posteriormente, os robôs tornaram-se mais humanos e surgiu a oposição.
Como é natural, os sindicatos opunham-se à competição que os robôs ofereciam aos homens
em questão de trabalho (ASIMOV, 1969, p: 07). Ressaltando aqui o temor humano quanto à
sua inutilidade frente à superior inteligência dos robôs.
O protagonista da história cujo título é seu nome, se caracteriza por ser um robô que
desempenha o papel de “ama-seca”. Isto é deixado claro logo no início, levando-nos a ligar
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sua função à mesma desempenhada pelas escravas domésticas que cuidavam de crianças. Ele
é criado e vendido em 1996, estando a dois anos com os Weston, a família de Glória, a
criança que cuida. Esta trata Robbie de maneira pessoal, brincando com ele e não estranhando
sua manifestação repetida de sentimentos. Por exemplo, quando Glória caçoa de Robbie por
ter ganhado um jogo:
A passagem acima, fazendo-nos, pensar no robô como uma criatura capaz de ter
emoções humanas, o que é salientado por George, o pai de Robbie:
Esta é a resposta que ele dá ao pedido da Sra. Weston de parar a “máquina horrível”,
pois tem medo dele e não o vê como capaz de demonstrar afeição:
Não admito que minha filha seja entregue a uma máquina... e não me
interessa o quanto ela seja inteligente. Não tem alma. Ninguém sabe o que
pode estar pensando. Uma criança não foi feita para ser guardada por um
objeto de metal (ASIMOV, 1969, p. 16).
.
O mesmo princípio de não considerar os sentimentos era aplicado aos escravos, que
não eram vistos como igual e, portanto, não tinham direitos comuns aos humanos – eram
somente uma Coisa, assim como Robbie. Quando a mãe de Glória percebe o nível de
importância que a filha dá ao Robô e como aquilo está influenciando-a, interfere.
A Sra. Weston o considera perigoso e nota-se que ela teme pela segurança de Glória,
todavia não sabe a respeito do funcionamento da máquina: [...] era um tanto ignorante a
respeito dos órgãos internos de um robô (idem). Demonstrando assim que eram as pessoas
“ignorantes”, e não as “avançadas” sobre o assunto, que temiam a tecnologia. A maioria da
população ao que parecia também concordava com a mulher, pois ela afirma que: A maioria
dos moradores da aldeia considera Robbie perigoso. Não permitem que as crianças cheguem
perto de nossa casa à noite (ASIMOV, 1969, p: 17). Os escravos não eram tidos como
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importantes na escala social, apesar de vir do trabalho deles o sustento da riqueza de donos de
engenhos, mercadores de escravos, negociantes, entre outros – direta ou indiretamente. O
desprezo vindo do preconceito, dentre outros fatores, fazia as pessoas se distanciarem, assim
como a população do livro.
Podemos então identificar a Sra. Weston como o elemento não-robô, aquele que é
desfavorável ao uso de robôs na esfera social, enquanto o Sr. Weston se põe no papel de
favorável ao robô, defendendo o uso da máquina ao crer na segurança de Glória diante das
habilidades de Robbie. Em um primeiro momento, a rejeição da máquina pela senhora
culmina por vencer a disputa pela insistência e eles planejam devolvê-lo. Para Glória não vê-
lo indo embora, a levam em uma viagem, mas é inevitável a criança não descobrir ao voltar. É
então que se tem na história a real percepção da criança sobre o robô:
Pela reação da criança, observa-se o modo como Robbie foi inserido no ambiente
familiar com um papel determinado, mas que ultrapassa os limites desejados e previstos uma
vez que desperta em Glória sentimentos sinceros e de cumplicidade. Isso é comprovado pela
inocente afirmação de Glória para a mãe, ao pedir que Robbie ficasse com ela no almoço:
Mamãe, prometo que ele ficará tão quieto que a senhora nem perceberá que ele está aqui.
Ele pode sentar naquela cadeira, ali no canto, sem dizer uma palavra (ASIMOV, 1969, p:
13). Paradoxalmente, apesar de Glória o defende-lo como pessoa, em determinados momentos
não demonstra dúvidas que, se pedir, ele fará sua vontade sem hesitar – como sua
programação robótica exige.
Com o passar do tempo não conseguem distrair Glória de sua tristeza e acabam
planejando uma viagem a Nova York, onde o fascínio da criança pelos robôs só aumenta, ao
ver diversos robôs na cidade. Eles visitam o Museu da Ciência e da Indústria, onde há uma
programação infantil especial com “amostras da magia científica”. Decidida a encontrar
Robbie, Glória acaba por se afastar dos pais e encontra um outro robô que é mais avançado e
já tem a capacidade de falar – ao contrário de Robbie. Neste momento ela afirma reconhecer
que Robbie é um robô: Só vim ver o robô falante, mamãe. Pensei que ele talvez soubesse onde
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está Robbie, pois ambos são robôs (ASIMOV, 1969, p: 28). Neste momento é comprovado o
que já foi citado acima: Glória vê Robbie como uma pessoa, mas sua mente infantil não
desassocia a ideia de pessoa da ideia de robô, mas sim da noção de máquina, Coisa. Isto é
ressaltado pelo pai dela, que após este episódio fica preocupado – juntamente com a mãe – a
ponto de planejar uma ida à fábrica de robôs:
Eis o que tenho pensado: todo o problema com Gloria é que ela pensa em
Robbie como uma pessoa, e não como uma máquina. É natural que não
consiga esquecê-lo. Ora, se conseguirmos convencê-la de que Robbie nada
mais é do que um monte de aço e cobre sob forma de chapas e fios, com a
eletricidade lhe servindo de fluido vital, por quanto tempo perdurarão suas
saudades? Trata-se de um ataque psicológico, se você consegue entender
meu ponto de vista (ASIMOV, 1969, p.32).
Na fábrica, visitam a sessão de robôs que trabalham criando robôs, onde Glória acaba
vendo Robbie, o que a faz correr em sua direção e o sobressalta: O grito de Gloria rasgou o
ar e um dos robôs junto à mesa vacilou, largando a ferramenta que segurava (ASIMOV,
1969, p. 30). Tal momento demonstra o quanto Robbie tinha afeição por Glória, pois ao ver
uma máquina indo em direção a ela e possivelmente podendo machucá-la, ele a salva, tirando-
a da frente da máquina. Neste momento, através do cumprimento da Primeira Lei da robótica,
Glória demonstrou ser fiel, descartou a possibilidade de uma natureza rebelde e confirmou-se
como um ser dotado de sentimentos:
Vendo isto, a Sra. Weston acabou descobrindo que o plano do marido era realmente
fazer os dois se encontrarem, mas não com aquele elemento que tudo arriscou, contudo
também o ajudou em seu intento, pois ela não mais se opôs a Robbie e eles o levam para casa,
tornando-o parte da família. Nota-se neste desfecho a prova de que Robbie não é como os
vizinhos pensam, mas uma criatura que ganha mais “humanidade” graças a seus atos – que
além de seguirem a primeira lei, também seguem a segunda lei da robótica.
“O desafio”
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Nesta obra brasileira de Antônio Olinto, datada de 1961, observamos um sensível robô
poeta chamado T-55, que é considerado o mais avançado de sua época, o ano de 2.455. Foi
comprado por um homem chamado Cláudio e o fazia companhia. Todavia, ele não era um
simples robô como Robbie, ele tinha a capacidade de aprender a falar unir imagens e associar
sons a sentidos. Esta já é uma evolução em relação a outros robôs. Um fato ainda mais
marcante em T-55 é que logo no início da história ele se mostra impactado pela visão de
Láctea, filha de Flávio – amigo de Cláudio –, momento decisivo para a máquina.
Apesar de nos dar a impressão de romper como a ideia de ligação robô-escravo, Olinto
adota a mesma postura do autor Americano: os robôs não podem superar os humanos. Para
tanto, o elemento tempo é fundamental no conto brasileiro, os robôs tinha prazo de validade
ou duração: “Os robôs haviam recebido o nome de Transitórios a partir do momento em que,
tornando-se mais eficientes, mais vivos, quase humanos, tinham também diminuído o tempo
de duração para dez anos (OLINTO, 1961, p: 51)”.
Esta transitividade é característica da sociedade colonial brasileira escravista, onde os
escravos eram considerados adultos quando tinha entre 12 e 30 anos; trabalhavam em média
16 horas por dia, quase sem descanso, o que os fazia amadurecer muito rápido (GOULART,
2012). Quanto mais eles tinham potencial, mais eram explorados e mais cedo morriam, assim
como os robôs de Olinto.
Fica claro como os Transitórios geram apreensão quando Flávio indaga a Cláudio: até
que ponto reações puramente previsíveis poderão chegar ao imprevisível? (OLINTO, 1961,
p: 52) Este último afirma que não sabe, mas que não deseja prever quando conseguirão
construir Transitórios que também se humanizem. Na mesma conversa, se diz que o ser
humano é imperfeito, mas o Transitório possui uma “perfeição relativa”. Contudo, por não
poder reproduzir-se, continuará sendo uma obra humana e, sem precisar necessariamente ser
amado – não se exige que o robô revele ternura, mas que somente possa servir o criador. Isto
nos alerta para a relação criador e criatura, com respectiva superioridade e inferioridade, como
aqui já foi explanado.
Quanto à ternura, Flávio chega a dizer que, às vezes, pensa que T-55 possa tê-la.
Todavia, resignado, Cláudio explica que mesmo sendo o melhor de sua geração, ele é dotado
de um grau altíssimo de atenção, mas nos faz um alerta: não misture atenção com emoção
(OLINTO, 1961, p: 54). O que enfatiza a separação entre as classes, além da ênfase na
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palavra empregada: atenção. Isto é um algo que um escravo precisava manter constantemente
em seu trabalho, pois a desatenção e a negligencia podia resultar em punições.
Nesta sociedade futurista, a língua usada remete ao passado: o latim. Doravante, os
Transitórios não conseguiam empregar o vocativo, e talvez o problema estivesse na ainda
relativa falta de iniciativa do Transitório, por que na verdade o vocativo é uma iniciativa
(OLINTO, 1961, p: 55). Ou seja, os Transitórios não pensavam por si mesmos, mas faziam o
que lhes era permitido fazer, sempre recebendo ordens e nunca sendo a eles permitido
contestá-las.
Fascinado por poemas, T-55 passara a se dedicar à composição de poesias e ao estudo
do latim. Ao levar suas composições para Cláudio, este não se admirou: Afinal, tendo
aprendido tantas palavras, além das leis que regem o ritmo, a cadência, nada mais natural
que T-55 pudesse utilizá-las no fazer poesia (OLINTO, 1961, p: 57). A capacidade de T-55
que lhe diferenciava dos outros Transitórios, não foi notada como um potencial particular que
lhe fazia especial perante os humanos, mas como uma consequência do aprendizado que lhe
foi possibilitado pela inteligência robótica lhe dada.
T-55, por sua incrível capacidade, foi selecionado para um duelo poético, onde um
robô seria o rival do humano pela primeira vez. Contudo, quando visitara Cláudio pela última
vez antes de viajar, foi testemunha da morte de Láctea: uma aeronave caíra próxima a ela, e a
proximidade da queda lhe matara. Ele correu mais rápido que os outros na tentativa de salvá-
la, mas fora tarde demais. Ao vê-la morta, o Transitório perdeu momentaneamente os
sentidos, denotando já um início de mudança em seu comportamento que antes fora suposto.
A cor da pele de Láctea, de uma brancura alvíssima, é ligada ao seu nome e ressaltada
por Olinto. Tal curiosidade e a distância que T-55 sempre mantinha da jovem nas poucas
vezes que a viu, nos lembra a sociedade escravocrata, onde era inconcebível um
relacionamento entre um escravo e uma jovem branca, socialmente superior. Segundo Santos,
“O significado do nome e da brancura da garota está intimamente relacionado com o tema da
brancura tão explorado pelo discurso colônia em que a cor é um elemento determinante na
representação dualística das classes” (2014, p: 111)
Na arena do duelo, Cláudio julgava-se responsável pelo espetáculo daquela noite,
porque fora com ele que T-55 aprendera a fazer poesia (OLINTO, 1961, p.54), o que ressalta
a ideia de um Transitório sem talento próprio, provido de um potencial particular. No duelo,
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T-55 se saiu muito bem compondo como deveria, nivelado ao seu opositor humano. Todavia,
em um dado momento, precisou criar uma rima, e ao tentar pronunciar uma palavra, falhou:
Lactea nomen...
Lactea...
Lactea...
Lac...
Lac...
La-La-La-La (OLINTO, 1961, p. 63).
T-55 acabou por sofrer uma pane no sistema, tombando e indo ao chão. Tendo só oito
anos, ninguém compreendia a causa. Impactados pelo acontecimento, Flávio e Cláudio não
conseguiam compreender o que ocorrera, até que este último disse-lhe que T-55 havia
morrido, o que Flávio estranhou: Os Transitórios não morriam: eles deixavam de funcionar,
ficavam inutilizados (OLINTO, 1961, p. 64). O verbo “morrer” não era empregado para
robôs, mas naquele momento ambos reconheceram que a fraqueza, a ternura, matara T-55. E a
conclusão final veio de súbito, ao perceberem o óbvio:
- Qual era o nome de sua filha, Flávio? A que tinha a pele muito branca?
O Outro compreendeu. Baixou os olhos para T-55 e respondeu num longe de
voz:
- Chamava-se Láctea (OLINTO, 1961, p.65).
Considerações Finais
A relação entre as criações do ser humano e o ambiente em que ele está inserido está
diretamente ligada a condições históricas que se iniciam antes mesmo de sua existência
particular. Ao longo do tempo, o homem procura compreender a afinidade que existe entre os
processos históricos e sua própria cultura enraizada, necessitando para tanto, de fontes que por
vezes são “incomuns”, como as narrativas encontradas na ficção científica. Estas histórias por
vezes marginalizadas no campo literário podem revelar depois de um olhar apurado, um
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Referências
SANTOS, Naiara Sales Araújo. Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy. Editora
EDUFMA, São Luís – MA: 2014.
OLINTO, Antônio. O Desafio. In: Histórias do Acontecerá. Ed. 1. Edições GRD. Folha
Carioca Editora S/A. Rio de Janeiro – RJ: 1961.
ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. Tradução – Luís Horácio da Matta. 2ª ed. 1969.
FAUQUEZ, Anne-Claire. Quando o norte era escravista. Disponível em: <http://www2.uol.
com.br/ historiaviva/reportagens/quando_o_norte_era_escravagista.html> Acesso em: 02-11-
2014
GOULART, Michel. 25 curiosidades sobre a escravidão. 2012. Disponível em: <http://www.
historiadigital.org/curiosidades/25-curiosidades-sobre-a-escravidao/> Acesso em: 03-11-2014
TAVARES, Bráulio. O que é Ficção Científica? (1986). São Paulo: Brasiliense, 1992.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário
da língua portuguesa. 4a Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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Introdução
Com o passar dos séculos, a mitologia tornou-se um dos elementos para a construção
do conhecimento, passando a engendrar em vários campos das artes, bem como a literatura,
que sempre esteve intrinsecamente relacionada à evolução da humanidade, apresentando as
problemáticas relacionadas à psicologia humana. Desta forma, muitas obras literárias se
propuseram a tratar do duplo, denotado sob as diversas estéticas literárias existentes, sendo o
tema tratado sob as perspectivas e características de cada período. Na literatura fantástica, este
tema configura-se como um dos elementos que provocarão a hesitação no leitor,
representando, em inúmeros casos, aspectos da dualidade da psique humana, sob as
1
Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Maranhão e membro do Grupo de
Pesquisa Ficção Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
2
Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Maranhão e membro do Grupo de
Pesquisa Ficção Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
3
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres (2013), professora de
Literatura Inglesa pela Universidade Federal do Maranhão e coordenadora do Grupo de Pesquisa Ficção
Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
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A literatura tem incorporado ou servido de base para estudos de muitos aspectos que
envolvem o lado subjetivo humano relacionado ao seu subconsciente. Segundo Bravo apud
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Damasceno (2010), a relação entre psicanálise e literatura intensificou-se desde o século XX,
relacionando-se com as questões voltadas para a dualidade de consciência. Muitos psicólogos
e psicanalistas também têm estudos pautados na temática do duplo. Alguns, como Otto Rank,
sugerem que a dualidade na literatura é fruto também da mente dúbia dos próprios autores.
Assim, sua pesquisa volta-se também para os próprios autores, justificando a necessidade dos
próprios em desdobrar-se.
Para a teoria psicanalítica de Carl Jung, a manifestação dessa dualidade está ligada ao
lado sombrio do inconsciente humano, representado pelo arquétipo da Sombra, constituindo-
se de pensamentos ocultos pelo indivíduo, bem como de "qualidades e atributos
desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem, sobretudo à esfera
pessoal e que poderiam ser conscientes”, tal como ressalta “O processo de individuação”,
escrito pela Drª. Marie Louise von Franz para O Homem e seus símbolos (1961), obra com
autoria de Jung e colaboradores. E conclui: "Portanto, seja qual for a forma que tome, a
função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar, precisamente, os traços de
caráter que mais detestamos nos outros." (FRANZ apud DAMASCENO, 2010, p. 26)
Logo, o arquétipo Sombra seria a representação dos sentimentos obscuros,
comportamentos negativos que o indivíduo tentaria reprimir a fim de fazer com que eles não
interfiram em suas relações sociais, portanto, estaria relacionado ao conjunto de normas
estabelecido coletivamente, o que justifica a sustentação do arquétipo dentro do inconsciente
coletivo.
Joseph Campbell, mitólogo e autor de O Herói de Mil Faces, foi deveras influenciado
pelos estudos de C. G. Jung na construção de sua obra mais conhecida e influente. Dentre os
diversos arquétipos e imagens arquetípicas, Campbell trata da questão do duplo enquanto
oposto ao herói, através do exemplo do mito sumeriano que trata das deusas irmãs e inimigas
Inana e Ereshkígal, e do acontecimento do seu confronto:
Uma das funções dramáticas da Sombra é trazer o que há de melhor no herói através
do desafio. Nas palavras de Vogler, “Costuma-se dizer que uma história é tão boa quanto seu
vilão, porque um inimigo forte obriga o herói a crescer no desafio.” (VLOGLER, 2006, p.84).
O autor ressalta ainda que a Sombra tanto pode ser uma personagem ou força externa ao
herói, como pode ser uma face dele mesmo que é reprimida para que seu lado bom se
sobressaia. Nisto, usa como exemplo a obra O Médico e o Monstro, de Stevenson.
No que tange ao fantástico, pode-se dizer que não há realidade absoluta, o que há, na
verdade, são relações entre o consciente e inconsciente, através das imagens mentais, como
observado por Jung:
qualquer.” (VLOGER, 2006, p.83). Assim sendo, a Sombra também pode ser a projeção de
aspectos positivos, porém não desenvolvidos por motivos diversos. Conforme se pode ver a
seguir:
desvantagem esse duplo possuía. Conforme o próprio narrador o diz: “[...] qualquer outro
antagonista menos encarniçado do que eu tê-lo-ia respeitado. [...] Quando falava, a sua voz
não passava de um murmúrio.” (p.240).
Conforme ressaltado no início, à medida que a narrativa se desenvolve, descobre-se
mais e mais semelhanças entre o duplo e o narrador: “[...] soube casualmente que meu
homônimo nascera no dia 19 de janeiro de 1813 e, por interessante coincidência, esse dia é
precisamente aquele em que nasci.” (p..239); “Por essa época, não descobrira eu ainda o fato
notável da igualdade das idades; percebia, no entanto, que tínhamos a mesma altura, e cheguei
até a descobrir certa semelhança de fisionomia [...]” (p. 241); ao entrar no quarto de seu duplo
durante a noite para pregar-lhe uma peça, o choque diante da igualdade : “O mesmo nome! Os
mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia!” (p.244)
O narrador ressalta que, ainda que houvesse rivalidade entre os dois, a atitude de seu
duplo sempre continha ares de proteção e afeição. Diversas vezes, ainda na época de escola,
sua Sombra intervinha em seus planos maliciosos com conselhos.
O talhe fora inventado por mim, porque nessa altura me preocupava muito
com essas futilidades do luxo. [...] Foi por isso que, quando o Sr. Preston me
estendeu a capa que levantara do chão [deixada pelo outro William Wilson],
eu vi, com um espanto que melhor se diria terror, já ter no braço a que me
pertencia, embora aquela fosse em tudo semelhante à minha, mesmos nos
pormenores mais ínfimos.[...]” (p.250)
Já que seu homônimo não ouve suas advertências, o duplo denuncia-lhe diante de
todos quando trapaceia num que envolve quantias altas e a falência do outro jogador. Desse
momento em diante, o William Wilson narrador vê-se sempre na condição de fugitivo de sua
Sombra, que sempre aparece para estragar suas ações maldosas. Por fim, farto dessa dinâmica
de rato e gato, William Wilson narrador decide matar sua Sombra, aquele que durante toda a
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narrativa funcionou como sua consciência, o lado melhor de si. Na declaração final de seu
duplo, o narrador faz essa constatação:
Era Wilson, mas um Wilson que já não murmurava ao falar. Pelo contrário,
falava tão alto que tive a impressão nítida de ouvir minha própria voz
dizendo:
- Venceste, e eu pereço. Mas daqui para frente também tu estarás morto.
Morreste par ao mundo, para o céu e para a esperança! Existias em mim.
Olha bem agora para a minha morte, e nessa imagem, que é a tua, verás o teu
próprio suicídio! (p.253)
Dentre as sete modalidades de duplo estabelecidas por Keppler em seu livro The
literature of the second self (1970), podemos dizer que o homônimo de William Wilson
encaixa-se na categoria de salvador: ele não tende à maldade, pelo contrário, suas tentativas
de alertar William Wilson de seu comportamento imprudente sempre são feitas com o intuito
de fazer com que ele não prejudicasse as pessoas ao redor e a si mesmo.
Deus, como a própria súplica que lhe agitava as rosas da boca e se evaporava
como um perfume. (AZEVEDO, 2000, pág. 13)
– Meu Deus! Onde começa o sonho?... Onde termina a realidade? ... Alzira
teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro? ... (Ozéas
redobrou de atenção.) Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em
formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos
que nos levaram a mundos desconhecidos para mim? ... Teria eu percorrido
com ela todas essas paragens maravilhosas? ... Teria eu provado de todos os
venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?... (AZEVEDO,
2000, p. 40)
As dúvidas de Ângelo acerca de seu próprio eu e suas vivências, bem como os limites
entre fato e fantasia, leva-o a fim trágico, quando este decide tirar sua própria vida, atirando-
se de um penhasco, após matar seu próprio tutor. Percebe-se então, nesta obra, a presença de
um duplo que se originou de uma fragilidade do eu original (o falecimento da amada),
representando a manifestação do inconsciente do personagem em relação ao seu desejo de
poder reencontrar Alzira e, assim, poder tornar o seu amor carnal. O duplo, portanto, tem um
papel de tentador, dentre as modalidades referidas por Keppler (1970), visto que Ângelo em
sua figura boêmia termina por influenciar o padre em sua vida sem máculas, fazendo com que
suas dúvidas acerca de suas crenças tornassem muito maiores, levando-o aos conflitos
existenciais que culminarão na sua morte.
Neste caso, o duplo tem a função oposta da que a do duplo da obra de Poe. Se na obra
anteriormente analisada a sombra do personagem funcionava como a manifestação do
inconsciente diante de atos condenáveis, numa tentativa de corrigi-los, na obra brasileira a
Sombra de Ângelo é a manifestação de sua imperfeição, de seus sentimentos reprimidos.
Considerações Finais
Referências
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Professor Adjunto na Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL
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Vemos um sujeito que enuncia de um lugar social: o lugar dos marginalizados, dos
que não tiveram a oportunidade de frequentar escola, acentuando a sua dificuldade de
“desvendar” e explorar a realidade em sua volta. A impossibilidade de acesso à educação
formal, manifesta na escritura de Graciliano Ramos, quando as personagens de Vidas Secas se
enunciam do lugar do “iletrado”, denuncia o estado de abandono em que vivia a população
brasileira, sobretudo as moradoras dos rincões, durante a década de 1930. Esse silêncio
constitutivo presente na narrativa de Graciliano não é apenas decorrente da ditadura varguista,
mas, aponta para o abandono por completo, a falta de tudo. O não saber falar é uma marca
dessa falta.
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manutenção da ordem vigente. Não olvidamos que no período Vargas, aqui evocado, ocorreu
o Estado de exceção ditatorial vivido entre 1937 e 1945, com o fechamento do Congresso
Nacional e a suspensão das garantias individuais, dentre outras arbitrariedades naquele
período sombrio de nossa História.
A mímesis dos berros dos animais pelo menino mais velho, presente na SD-1, é uma
marca da condição de abandono e descaso com educação naquele período. Ao não saber falar
conforme a norma culta estabelecida e ao ter dificuldades de se expressar por ser analfabeto, o
enunciado dessa SD traz um contexto social no qual nem todas as pessoas tem acesso à
escola. A imitação dos elementos da natureza, como o barulho do vento e o som dos galhos
que rangiam na caatinga, representa, igualmente, a escassez do vocabulário do menino mais
velho. Encerra a miserabilidade em que vivia a família de Fabiano e traz indícios de como se
apresentava a conjuntura social daquele momento.
A SD-1 traz um reflexo do contexto social, político, econômico e cultural que
contribuía para a construção de sujeitos marginalizados como a família de Fabiano.
Personagens que espelham a conjuntura de uma sociedade que marginaliza a pobreza e
aprofunda as suas desigualdades. Ao imitar os animais, o menino mais velho observado na
SD-1, apresenta traços de uma miserabilidade humana que não tem casa, não tem moradia,
mostra a proximidade do homem com os animais, um homem que está sendo animalizado.
A escassez do vocabulário é trazida em outros trechos da escrita de Graciliano Ramos,
como veremos a seguir:
Pensando nesse contexto social, que é o cenário onde se desenvolve a história de Vidas
secas, encenando a pobreza, a miséria, a marginalização, o descaso, o sujeito-autor Graciliano
Ramos assiste às cenas horrendas da repressão, da tortura, do silenciamento, da prisão
arbitrária que experimenta em sua existência e representa em sua obra. Traz, na materialidade
textual da escritura, representações simbólicas que nos inquietam e nos remetem a analisá-las
como uma discursividade referente ao momento em que vive.
Assim, a partir do olhar trazido pelo sujeito-autor, que é interpelado pela ideologia que
o chama e o convoca a denunciar e a se contrapor a um governo autoritário, utiliza as letras da
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sua escritura a respeito da realidade a sua volta que afeta e constitui o seu texto. O sujeito-
autor Graciliano, analogamente a um pintor que pontilha e pinta o que observa, desliza as suas
mãos sobre o papel, produzindo a sua arte com a beleza de sua escritura, com a estética do
sublime, desveladora de uma realidade marcada pela violência. As luzes que iluminam o
quadro Las Meninas, de Velázquez, produzindo um efeito de sentido na sua produção
artística, analisada por Foucault, apresentam-se em Graciliano, metaforicamente, através da
exterioridade de sua obra. A luminosidade que esclarece, elucida e confere sentido à sua
escritura, podemos encontrar no momento político de sua produção – o Estado Novo.
O silenciamento vivido na exterioridade, durante a Era Vargas, deixa suas marcas na
discursividade da obra de Graciliano. O que não é falado significa, institui sentidos. O não
dito, em forma de silêncio, constitui os efeitos de sentido na discursividade. Ter o vocabulário
minguado traz um deslizamento de sentido que evoca o silêncio. Como vemos em Orlandi
(1990), essa forma do não dito é um viés cuja origem está no fato da linguagem ser política e
que todo poder se acompanha de um silêncio, em seu trabalho simbólico – uma política do
silêncio.
Nesse sentido, percebemos no silenciamento vivenciado no enunciado “Tinha um
vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca”,
recortado na SD-2, a presença de um silêncio constitutivo, cuja parte do sentido se apaga ao
se dizer. Ele é marcado por Fabiano buscar, em Seu Tomás da bolandeira, a sua fala, o seu
discurso, ou, ao menos, desejar buscar, apagando, desse modo, os sentidos que poderiam se
inscrever em sua fala. Em Vidas Secas, após ser preso por não saber se explicar, passar a noite
na cadeia, zangar-se, dar um pontapé na parede e gritar enfurecidamente, Fabiano, ao ser
interpelado pelo carcereiro, responde pela restrição imposta pela falta de letramento, que não
havia nada. Nesse episódio, há um desvelar do silêncio constitutivo, marcado no enunciado
presente na narrativa: “Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem
perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás
da bolandeira, contaria aquela história” (RAMOS, 2000, p. 34).
O silêncio de Fabiano se assemelha ao do discurso sobre a colonização do Brasil,
analisado por Orlandi (1990), no qual o colonizado não fala, é falado pelo colonizador. Da
mesma maneira, Fabiano não argumenta, não contradiz, a fala do outro sobre si prevalece,
estabelece-se como “verdadeira” e Fabiano vai para a cadeia, pois é falado pelo soldado
amarelo que o prendera e, por não saber se explicar, deseja que fossem perguntar a Seu
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Tomás que havia lido bastante. Vê-se, aqui, uma mazela da sociedade do período por não ter o
poder da linguagem para se defender. Isso mostra o quadro social em que se insere Fabiano,
como sujeito que ocupa o lugar do marginalizado, do discriminado, daquele que precisa de
outro para mediá-lo nas situações cotidianas.
Essa falta de letramento, manifesta na escritura de Graciliano Ramos, observamos
como um discurso antagônico em relação ao discurso produzido pelo Estado Novo. Há um
sujeito inscrito em uma formação discursiva (FD) de oposição ao regime estabelecido, ele
enuncia e contradiz aquilo que o regime diz. Como menciona Capelato, ao analisar o livreto O
Brasil, produzido pelo regime varguista, a educação é abordada da seguinte maneira:
O menino, para ser um bom brasileiro, deve também saber ler. Um homem
sem instrução é um homem infeliz... Por isso o governo não quer que haja
brasileiros que não saibam ler. Por que o governo não quer? Porque o
governo é amigo dos brasileiros e não gosta da ignorância (CAPELATO,
2003, p. 124).
Seria coincidência a produção de uma obra literária cujas personagens não sabiam ler
e, por isso, eram exploradas, alijadas, excluídas na sociedade? Haveria alguma relação entre
os episódios narrados em Vidas Secas e a conjuntura política e social brasileira dos fins da
década de 1930? O vocabulário escasso, a pobreza, a miséria, a falta de acesso à educação,
por parte de Fabiano e sua família, marcam uma contraposição ao discurso do regime de
Getúlio Vargas, uma contestação, uma forma de pensar por si mesmo, um lembrete à
sociedade brasileira da década de 1930, mas que também se aplica à contemporaneidade.
O vocabulário da personagem menino mais velho “quase tão minguado quanto o do
papagaio que morrera no tempo da seca” (RAMOS, 2000, p. 55), presente na SD-2, aponta,
através do discurso presente na literatura, não apenas uma narrativa a ser lida pelo aspecto
estético e pela força da sua beleza literária ou pelo seu reconhecimento como clássico da
literatura brasileira, mas também como uma discursividade que satura de sentidos outros o
texto literário e que dialoga com o momento vivido pela sociedade brasileira.
Sociedade essa que se vê calada, silenciada pela recorrência das lembranças trazidas
pela memória das prisões arbitrárias e sem justificativa como a experimentada por Fabiano,
causada por “falta menor”. Nesse sentido, percebemos o silenciamento e a arbitrariedade,
marcados na discursividade da obra de Graciliano Ramos, relacionarem-se com o momento
vivido. Como aponta Eni Orlandi, “o silêncio não é visto apenas em sua negatividade, ele
significa, o seu não dizer contém sentido, é fundador, portanto, sustenta o princípio de que a
linguagem é política” (ORLANDI, 1990, p. 50-51). O silêncio da personagem Fabiano,
motivada por sua experiência anterior com a violência da prisão, significa o medo
simbolizado pela cautela de se expressar, de reivindicar, de falar aquilo que pensa sobre a
realidade, aquilo que experimenta e vivencia. Semelhantemente, à parte da sociedade
brasileira do período, Fabiano, como fruto das arbitrariedades sofridas, tornara-se passivo, não
reivindicava, silenciava, era silenciado. Esse silenciamento, observado metaforicamente na
literatura de Graciliano, portanto, traz marcas, pistas, sinais, vestígios da conjuntura política e
social brasileira da década de 1930.
Referências
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
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DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do nacional-
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 12. ed. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 2005.
LUCENA, Ivone Tavares de. Fiando as tramas do texto. João Pessoa: Editora Universitária,
2004.
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Cortez; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni
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RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Ática,
2004.
VELÁZQUEZ, Diego. Las Meninas. 1656. 1 pintura, óleo sobre tela 310 cm x 276 cm.
VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano: o
tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. v. 2.
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Introdução
Linduarte Noronha, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Jomard Muniz de Britto, Sérgio de
Castro Pinto, Eulajose Dias de Araújo, Violeta Formiga, Bráulio Tavares, entre tantos outros
nomes. É espaço para publicação de obras de autores consagrados, como também espaço
quase obrigatório para a projeção dos novos autores e artistas da Paraíba.
O primeiro editorial, assinado por Edson Régis, traz-nos diversas informações sobre a
natureza da publicação e do seu contexto de surgimento:
03 de abril de 1949, Aderbal Jurema expressa o seu entusiasmo diante do primeiro número do
suplemento, bem como fala da movimentação literária da metrópole.
Novamente percebemos uma fala que ressente-se da ausência de uma publicação para
as artes paraibanas. Aderbal Jurema compara a chegada do Correio das Artes à revista Era
Nova. Esta revista circulou na Paraíba de 1921 à 1926 e foi um importante veículo para os
debates de ideias em torno da arte moderna na Paraíba, tendo Joaquim Inojosa como
divulgador e defensor das ideias do movimento de 1922. Essa comparação empreendida por
Jurema não é gratuita e não se encerra apenas no fato de situar o novo suplemento numa
história marcada por publicações que a antecederam, – o próprio jornal A União já havia
publicado revistas e suplementos, como a própria Era Nova e as páginas dominicais
Literatura e Arte, que circulou em 1947. Acredito que a fala de Jurema pretendeu alinhar o
Correio das Artes a um discurso que marcará os primeiros anos do suplemento: o debate em
torno do modernismo.
Os entusiastas do suplemento o concebiam como o veículo de expressão do
modernismo que, tardiamente, teria chegado às artes da província. A ideia de província é
construída em oposição à ideia de centro, e é uma constante nos textos do suplemento,
revelando que é sobre a província que os signos da modernidade devem agir, como também
na sua arte, fortemente parnasiana.
O surgimento do Correio das Artes se insere num contexto local de emergência de
manifestações culturais, como a criação da Academia Paraibana de Letras (1947), a fundação
de diversos grêmios literários, como o do Liceu Paraibano e de cineclubes. Ao ser concebido,
este suplemento literário passou a compor uma rede de sociabilidade que integrava artistas,
literatos e jornalistas. Logo, devemos entendê-lo como uma das expressões de divulgação,
construção e configuração de valor dentro do campo de produção cultural junto com as
academias de Letras e Imprensa, os grêmios literários, as editoras, sendo que cada qual
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Concebo o Correio das Artes dentro desse cenário complexo, o que Pierre Bourdieu
denominou de campo de produção cultural. A noção de campo de produção cultural, que
pode ser especificado em campo artístico, campo literário, entre outros, e é compreendido
como uma rede de agentes e bens que atendem às especificidades objetivas que regem as
relações dentro do próprio campo. O campo é visto como espaço de disputa de poderes, com
ritualizações próprias e com a capacidade de construir discursos de verdade. Os campos
possuem semelhanças uns com os outros, mas cada qual possui suas especificidades e
autonomia e devem ser vistos em constante reestruturação. A abordagem bourdieusiana
permite fugir de reducionismos que dão privilégio a análise da obra como tendo singularidade
irredutível, do autor “único” e da arte pura e por ela mesma (BOURDIEU; CHARTIER,
2011). De um lado, Bourdieu se opõe ao idealismo e às obras sem raízes, e de outro, recusa a
um simples e direto determinismo social. Nesse sentido, compreendo o suplemento num
processo relacional entre campo, autores, obras e o próprio suplemento, que se definem dentro
do campo a partir da relação com os outros. Configurar o campo literário a partir de um
processo relacional permite perceber como uma obra é produzida, reapropriada e consagrada a
partir de relações de forças, a partir dos lugares de fala dos agentes, das posições sociais e das
hierarquias (BOURDIEU, 2004, 170).
A noção de representação, à qual relaciono a de discurso, é central para compreender
a conformação das falas a partir do suplemento. Segundo Chartier, representações são “os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social,
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os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1990, 17). Segundo Foucault, o
discurso é formando por um conjunto de regras anônimas que dão sentido às enunciações,
fornecendo as bases e a especificidade de uma argumentação. A partir dessas noções,
compreendo o discurso como representação do campo. Ou melhor, representações. Visto que
a concepção de discurso a partir de Foucault nos chama atenção para a sua heterogeneidade e
possíveis contradições.
Ao termos um suplemento em mãos e folheando-o, percebemos um universo de
relações narrativas que se observa primeiramente na forma de organização das páginas: os
títulos em destaque, as ilustrações, as colunas. Concebo o suplemento literário como um
formato particular dentro da imprensa, que constrói de maneira específica, conteúdos. Como
coloca Peruzzolo, as “relações narrativas dizem respeito às modalidades de organização do
que se diz, do que se conta no texto; e as relações discursivas organizam os recursos de
persuasão, as estratégias de projeção da enunciação e dos tratamentos figurativos dos
conteúdos”. Sendo assim, “a página do jornal afirma conteúdos” (PERUZZOLO, 2004, 140).
O processo de reconstruir e compreender o documento com um “todo significante”,
parte da concepção do jornal, mais especificamente do suplemento, como um dispositivo.
Compreendo que os discursos produzidos e reproduzidos no Correio das Artes, não estão
soltos, mas, sim, envolvidos pelo próprio suplemento entendido como dispositivo. Porém,
como coloca Mouillaud (2002), este, por sua vez, “não é uma simples entidade técnica,
estranha ao sentido” (p. 29). O suplemento não é apenas uma matéria, mas um formato dotado
de sentidos (p. 31), e esse, por sua vez, oferece sentido ao texto. Mouillaud coloca que, o
“dispositivo existe antes do texto, ele o precede, comanda a sua duração e a extensão”,
contudo, essa antecipação não significa a passividade do texto. Compreende-se, então, uma
relação dinâmica, onde texto e dispositivo são geradores um do outro (Id. Ibdem., 33-34). A
concepção de dispositivo nos é útil para conceber o suplemento não como um texto passivo
que recebe significado unicamente do meio externo, mas como um suporte dotado de
significado por si mesmo e também como construtor de sentido. Essa concepção é central para
a AD.
A análise de discurso tem como objetivo compreender as condições de existência de
um discurso, abarcando as regras históricas que lhe dão sustento, as falas que o compõe e as
falas contra as quais ele se posiciona. Esta ferramenta metodológica permite compreender o
efeito de sentido de um dado objeto, possibilitando abarcar os jogos de poder e representações
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que envolvem os sujeitos numa teia de relações sociais e institucionais. A análise do discurso
não visa desvendar a universalidade do sentido dos discursos em torno das artes produzidas a
partir do suplemento, mas compreender os elementos que os compõem e os apresentam de
maneira única, própria do campo.
O campo literário é marcado por disputas em torno de legitimidade e “guerras de
representações”. Por meio dessas representações é possível compreender as diversas relações
dos agentes e suas posições no campo, além de se ver como se configuram as lutas simbólicas
interiores do campo literário. Nesse interim, o suplemento literário é um dos meios pelo qual
há a produção e reprodução de um “discurso autorizado” que funciona como elemento de
legitimação de práticas e representações de grupos e instituições que compõem o campo.
Abordando o objeto artístico ou literário tendo como base a Análise do Discurso, tomamos a
noção de efeitos de sentido para compreendermos a produção de representações ou
subjetivações que levam às acomodações dentro do campo literário. Fernandes coloca que
podemos pensar, a partir das
(BOURDIEU, 2004). No caso do suplemento, isto fica mais evidente nesta "historiografia"
feita pelos escritores quanto às "literaturas" produzidas até então. O constante embate com os
velhos e a dicotomia centro-província demonstra uma luta simbólica pela apropriação do
lugar de dominação do campo. A parcela dominante era formada pelos estabelecidos, aqueles
que já haviam transpassado um contexto de lutas e teriam saído "vitoriosos". Assim, o
suplemento, tomado pelos novos como meio de comunicação, portador, produtor e reprodutor
do vanguardismo, da parcela dominada do campo, está sempre posicionado de forma a realçar
a necessidade do discurso vanguardista por um duplo movimento: de um lado, retomando a
sua história para desmerecê-la e/ou enaltecê-la naquilo que lhe cabe e, por outro lado, na
sempre necessária oposição à parcela dominante na tentativa de deixar de ser dominado.
As disputas por legitimidade dentro do campo literário na Paraíba, e que tinha o
suplemento Correio das Artes um dos locus de divulgação e discussão das vanguardas,
articulam noções de modernidade, inclusive ao se oporem à ideia de tradição. O Correio das
Artes se insere num debate em torno dos signos do modernismo, aqui entendida e abordada
como um constructo discursivo latente do campo artístico, mais especificamente, do seu
processo de autonomização no contexto do século XIX. Nesse sentido, cabe compreender os
efeitos de sentido do Modernismo propagado pelo suplemento. Fernandes propões pensar os
efeitos de sentido do Modernismo “face à sua ruptura com padrões estéticos até então
vigentes” e que “sendo uma produção inicialmente rejeitada, posteriormente, promoveu a
construção de cânones. Residem aí movimentos de subjetivação, descontinuidade e dispersão
apontando para certa unidade vislumbrada a partir de projetos estéticos e políticos”
(FERNANDES, 2007, 229).
Interessa, então, entender como a prática do Correio das Artes relaciona-se com o
campo artístico, e compreender como se deram as relações entre as novas ideias e sujeitos que
entraram em cena neste campo e que encontraram nesse suplemento um veículo para projeção
de suas concepções. Ou seja, atentar para os embates entre “modernos” e “velhos” que se
expressaram como latentes na primeira fase de circulação do periódico.
Essa fase de circulação perpassa um contexto de intensos debates e transformações na
imprensa e nas artes do Brasil, configurando novas relações entre imprensa e literatura e
aparecendo como matéria de novidade no cenário artístico e literário paraibano. Os embates
em torno da arte moderna foi a tônica dos primeiros anos do suplemento. Porém, torna-se
perigoso conceber uma polarização simplista entre “velhos” e “novos”, bem como comprar a
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ideia de que o Correio das Artes foi um veículo uníssono de defesa das novas ideias. Apesar
das disputas pelo “direito de uso” do suplemento para divulgação de uma ideia de um grupo
específico, ao passo que vai ficando evidente a heterogeneidade do discurso do suplemento, é
possível entender a autonomia desse veículo dentro do campo.
Num campo marcado por tradições, esse novo veículo foi concebido como espaço para
a divulgação e reflexão das novas ideias em torno da arte. Porém, o que se assistiu foi a
convergência de diversas falas, tanto as que defendiam as novas formas da arte, como as que
defendiam a manutenção, ou o não abandono, de uma tradição artística do estado. Retomando
a fala de Aderbal Jurema, ao passo que o autor concebe o Correio das Artes como veículo
para a promoção dos novos valores da arte, o mesmo ressente-se pela ausência de velhos
nomes da literatura paraibana que “compareciam regularmente às páginas da revista da
Academia Paraibana de Letras”. Essa fala também pode ser entendida como uma forma que o
autor procura demonstrar o quanto este núcleo de agentes, já dispostos em locais
estabelecidos dentro do campo, estariam além – ou até então, não inseridos – das
transformações propostas.
Em artigo do Correio das Artes, de 9 de outubro de 1949, intitulado “Democratização
e Nacionalização Cultural e Literária”, Adauto Rocha defende a abertura de espaço para a
nova produção literária, em específico as das províncias, que encontraram resistência dos
Centros:
Essas falas que tanto buscam refletir a chegada do suplemento, como produzem
reflexão em torno dos novos autores, perpassam os primeiros anos de circulação. Em artigo
intitulado “Correio das Artes”, de 21 de agosto de 1949, Campomizzi Filho, diz:
2
Artigo intitulado “O novismo na Paraíba”, publicado no Correio das Artes em 09.10.1949.
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3
Correio das Artes, 22.11.1964.
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A fala de Rodrigues tanto nos ajuda a interpretar o artigo citado, como também na
coexistência das sessões de Antologias dos antigos poetas paraibanos e do novos.
Quando se fala nos novos, pode-se concebê-los como um grupo homogêneo, porém,
evidenciam-se embates entre eles. No artigo “Considerações sobre a poesia”4, escrito por João
Lelis, e na entrevista de Gasparino Damata com Fernando Ferreira de Loanda5, percebemos os
choques entre os novos, entre aqueles que se projetam no contexto da década de 1940 e início
de 1950, bem como os antigos novos. João Lelis, destacando a obra de Edson Régis, explana
sobre o modernismo nas letras paraibanas:
4
Correio das Artes, 25.12.1949.
5
“Conversa ligeira com um Poeta de Alem-mar”, Correio das Artes 31.07.1949.
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João Lelis estabelece uma relação direta entre os poetas vanguardistas da década de
1920 e os “novos” de 1940. Já Fernando Ferreira de Loanda estabelece uma relação
conflituosa entre esses dois grupos. O entrevistado difere ataques à geração de 1922,
inclusive, concebendo Mario de Andrade como “o maior embromador do Modernismo”.
Como também faz críticas ao levianismo de muitos periódicos que tecem comentários
elogiosos aos novos, porém, sem fundamentos. Portanto, esse veículo foi apropriado como
instituição central nos jogos de poder sobre a legitimação de bens no campo literário
paraibano, o que estimula a compreender os mecanismos utilizados nesses jogos em torno, de
um lado, da promoção de vanguarda, e de outro, da manutenção do consagrado, do velho.
Considerações finais
Como propõe Tania de Luca (2005), localizo o suplemento literário dentro da história
da imprensa, o que ajuda a entender o seu surgimento num contexto específico de
transformações na imprensa brasileira e seus diálogos com a literatura. Ao conceber os
suplementos como materialidade dotada de significados e historicidade, procurei analisar
como seu formato específico atende a diversos interesses. Nessa perspectiva que toma o
suplemento literário como objeto de estudo, concebo-o como um construtor do próprio fato
artístico ou literário, procurando, assim, não apenas verificar o que esses documentos
informam, mas, principalmente como dizem, ou melhor, como constroem o dito, bem como o
não dito.
Chartier defende que a fonte documental não permite uma ligação “imediata e
transparente com as práticas que designa”. Nesse sentido, reforço a concepção do suplemento
literário como dispositivo construtor – além de reprodutor – de discursos e, como coloca
Chartier, “a representação das práticas têm razões, códigos, finalidades e destinatários
particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para entender as situações ou práticas
que são o objeto da representação” (CHARTIER, 2013, 3-4).
O exame da natureza e a estrutura do suplemento ganha sentido na análise de discurso,
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visto que a análise da materialidade do documento e dos sentidos construídos em torno do, e
pelo dispositivo, é central para compreender o processo de disputas em torno da legitimação
dentro do campo literário na Paraíba, no qual o Correio das Artes teve grande destaque. Nesse
sentido, como explorado, o Correio das Artes se configura como bem simbólico dentro do
campo da produção cultural paraibana.
Os suplementos literários são indícios históricos importantes para a elaboração de uma
história do campo de produção cultural na Paraíba, considerando as tensões e os conflitos
próprios vivenciados por um contexto que redimensiona o próprio campo e que evidencia as
disputas em torno da instituição de práticas e representações sociais legitimadas.
Compreender esse campo cultural demarca uma escolha que se coloca de encontro à
historiografia clássica que omitiu, e omite, manifestações culturais locais ou que não atentam
para os ritmos próprios dessas outras experiências.
Referências
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Public ado postumamente.
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de como nós vivemos entre os outros2” (MORTON, 2003, p. 262) – tradução nossa. Então,
essa condição legada a Criatura como reflexo da sociedade oitocentista inglesa, é uma
ferramenta útil de crítica cultural, afinal estar/ser fora de um padrão preestabelecido é estar
fora da sociedade? E essa mesma sociedade é constituída totalmente de iguais ou de diferentes
compartilhando objetivos?
A história de Frankenstein inicia quando em meio a uma obcecada tentativa de chegar
às regiões polares o capitão Robert Walton encontra o moribundo estudante de medicina
Victor Frankenstein. Este lhe conta sua trajetória, desde a infância e adolescência sempre
pautada pela obsessão sobre os mistérios da natureza e principalmente o segredo da vida e da
morte, inicia então a história contada sob a perspectiva de Victor como uma espécie de
retrospectiva até o ponto onde se encontra, então, conta ao seu novo amigo navegador, como
foi levado pela sede de conhecimento e pela excitação dos estudos em História Natural
ligados à fisiologia à decisão de dar vida à matéria inerte: “após dias e dias de incríveis
trabalhos e fadigas, consegui descobrir a causa da criação e da vida; mais ainda, tornei-me
capaz de conferir vida à matéria morta” (SHELLEY, 2007, p. 55). Então, com partes e
pedaços de corpos de diferentes procedências, retirados de salas de dissecação e matadouro, o
cientista monta e costura um ser humano, para dar-lhe vida. Com a vaidade de ser responsável
por uma nova criação a qual somente ele seria o detentor do conhecimento para tal
empreitada, como se pode observar em uma de suas falas antes de alcançar seu objetivo:
Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas
criaturas felizes e excelentes passariam a dever a sua existência a mim.
Nenhum pai podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente
quanto eu a daquelas criaturas. (SHELLEY, 2007, p. 57)
2
“Shelley’s “betweenness” made her reluctant to decide between the individual and the group, and between
collectivist and individualist ideas of how we live among others” (MORTON, 2003, p.262).
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criatura ‘recém-nascida’, que permanece sem nome. Esta atitude marca a incapacidade do
homem de lidar com aquilo que existia apenas em sua mente.
O que se segue é uma série de fatos que aterrorizam a vida da inocente Criatura que é
abandonada por aquele que deveria lhe instruir no mundo, é igualmente rejeitada por todos em
qualquer lugar que vá. Esconde-se da barbárie humana e chega a uma floresta onde aprende a
se comunicar e a ler observando à distância uma família que mora ali e após ser desprezada ao
tentar entrar em contato com tal família, a Criatura jura vingança ao seu criador. Neste ponto
percebemos como Victor e a comunidade preconceituosa criaram os “monstros” interiores da
Criatura, por privar-lhe de sua voz e de burlar seu processo de auto compreensão e descoberta
de sua identidade como sujeito digno de participar do mitsen humano, o ser-com-os-outros, o
direito e necessidade que todo ser vivo tem para que em contato com o outro consiga entender
e reconhecer a si mesmo.
E a descoberta do causador de todos os seus males, desperta na Criatura a necessidade
de retribuir as ações de seu criador e nas páginas seguintes inicia a destruição daquele que o
privou da vida como ela deveria ter sido por direito. E assim, o texto sugere que essa decisão
é mediada pelas circunstâncias que movem a Criatura, elas, sim, monstruosas.
Estas circunstâncias nas quais a Criatura teve de perpassar para chegar à sua auto
compreensão de indivíduo e de como funcionava a sociedade, deflagra o ambiente inóspito ao
‘outro’ visto sob um ponto de vista negativo, assim como o diferente, o individual, dessa
sociedade e sua hipocrisia por pretender uma pureza e moral quando não enxergava os limites
e diferenças daqueles que deveriam ser seus ‘semelhantes’, na tentativa de padronizar e criar
uma cultura una não se percebia que o medo de serem eles mesmos iguais a esses ‘outros’, os
transformavam em uma cultura cega intrinsecamente e distorciam a ideia de cultura.
Concordamos com Bhabha quando diz que:
Podemos afirmar, sem cair em generalizações, que um indivíduo não é fruto de uma
sociedade, mas a sociedade é feita pelo conjunto de diferentes indivíduos, alteridades mistas
conjuntas, onde a cultura se faz pelas práticas recorrentes desse grupo que se pretende uno,
mas esquece de que seu âmago é plural. Laraia (2001) citando Benedict diz “que a cultura é
como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (p. 67), podemos acrescentar a essa
afirmação que a cultura é também a lente através da qual nós conhecemos os outros e a nós
mesmos. A Criatura só entende a causa de todos os seus males e rejeições quando, depois de
muito observar, entende que aqueles comportamentos são recorrentes de um grupo de pessoas
que vivem em um mesmo ambiente e que para viverem em comunhão precisam agir de modo
semelhante a da maioria.
Durante seu processo de compreensão do mundo que o rodeava, enquanto conta a sua
história para Victor quando, depois de muito tempo, conseguem se reencontrar, a Criatura
afirma:
O depoimento da Criatura exalta não somente a sua indignação a respeito de como sua
condição de ser humano estava fadada ao fracasso por não pertencer a nenhum espaço dentro
de um sistema opressor e egocentrista, mas nos faz metaforicamente, caminhar por entre os
parâmetros estabelecidos pela sociedade inglesa de um tempo de escuridão coletiva. Onde o
correto era estar dentro de um padrão político e economicamente pré-estabelecido e o
diferente era aquele destinado ao nada social. Laraia afirma que “é comum a crença no povo
eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm
o germe do racismo, da intolerância, e, frequentemente, são utilizadas para justificar a
violência praticada contra os outros” (2001, p. 73) e acrescenta que, “a chegada de um
estranho em determinadas comunidades pode ser considerada como a quebra da ordem social
ou sobrenatural” (2001, p. 73). Assim considerada pelo medo ou estranheza do que não lhes é
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comum e, que assim, não se sabe como exercer influência e poder. Então, a Criatura é
discriminada por ser diferente, por estar em uma “intermediação”, e assim pertencer a outro
grupo, que não aquele no qual foi inserida e que dissemina uma cultura que não lhe é digna,
pelos motivos por ela elencados na afirmação acima.
Considerando essa cultura que, ao invés de unir os diferentes de um grupo em um
conjunto, exclui aqueles que não se encaixam, desse contexto inglês, nos perguntamos o que é
afinal a cultura de um povo? Nós constituímos a cultura ou a cultura nos constitui? Se a
cultura é o espelho pelo qual conhecemos a nós mesmos, como se encontrar em uma cultura
que não nos enxerga? Geertz (1989), ao fazer uma interpretação da cultura, coloca que ela não
é um conceito, a cultura é o que os agentes dela fazem, desse modo nós constituímos a
cultura, é através do nosso comportamento que as especificações da nossa comunidade é
formada e chamada de cultura.
Morton (2003), afirma que:
Descobrir sua existência através da cultura se torna uma tarefa mais árdua do que a
própria compreensão da palavra quando o indivíduo se encontra em um processo de não
pertencimento. Como entender então a si mesmo nesse espaço, além de observar as
atribuições realizadas por ele à distância, e daí, em um jogo de compreensão do outro, ou seja,
do que não é, compreender o que se é. Como vimos acima, a Criatura compreende a si mesma
quando percebe que não tem as mesmas feições físicas daqueles que ela observa na cidade e,
mais de perto, aqueles moradores da cabana na floresta, assim como não fala o mesmo
idioma, e não tem uma linhagem sanguínea parental, ou propriedades, ou amigos, como eles.
A Criatura não é vista pela sociedade a qual pertence, mas condenada à intermediação ou ao
nada social, espaço daqueles que não pertencem a nenhum construto.
Ao longo da empreitada de compreensão do mundo ao seu redor, a Criatura consegue
entrar em contato com um dos moradores da cabana, o ancião De Lacey, com o qual, pela
primeira vez, pode sentir que existe bondade no coração dos homens, pois este não o rejeita
3
The word “culture” is a contested term. It hesitates between “nature” and “nurture”, an insoluble conundrum. Is
can, for instance, mean a corporation’s management structures or the medium in which people come to discover
their existence. (MORTON, 2003, p. 259)
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de imediato, como todos os outros, pela sua aparência pobre e hedionda, fora dos padrões,
mas o agracia com palavras bondosas e tenras, como o que se faz entre semelhantes, e
consegue proferir uma conversa amigável:
Quando nos deparamos com o fato de o homem cego ser o único ao longo da narrativa
que “enxerga” a Criatura como semelhante a ponto de se prontificar a ajudá-la, considerando
não a sua aparência, mas o que ela tinha a dizer e seus anseios em relação aos outros,
contrastamos com a atitude de seu criador Victor e todos os outros sujeitos com os quais a
Criatura teve contato, para entendermos que é preciso estar culturalmente cego para agir
honestamente com o ‘outro’ em uma sociedade que prefere fechar os olhos a ver o diferente
do padrão como parte integrante do sistema que se pretende plural.
Para entender a si mesma a Criatura desiste de tentar se encaixar naquela sociedade
que entende não pertencer, e para tentar sair do estado de intermediação, pela necessidade
natural de fazer parte de algo e de uma cultura que comporte seu papel de sujeito constituinte,
a Criatura recorre a seu criador em busca de respostas e exige que ele a coloque em contato
com um semelhante, para que possa viver em paz, em uma última atitude desesperada, ela
pede:
O desejo da Criatura de não ser mantido nas trevas não pode ser concedida por Victor,
este acreditava que seria o início de uma espécie horrível que devastaria o mundo como ele
conhecia e que lhe era confortável e que a existência da Criatura, esse ser supostamente tão
aquém dele e de seus semelhantes, teria de ser afastada e não proliferada. Esse afastamento só
cria monstros interiores que consomem tudo o quanto pode, as implicações de um
comportamento egoísta e excludente desse ideal de sociedade estão inseridas não somente
naquele momento histórico, mas carregaria suas raízes ainda durante muito tempo, colocando
sempre à parte aqueles que poderiam corroborar em uma ameaça ao poder instituído pelos
‘iguais’, com isso sofreriam em um ponto da história mulheres, sempre silenciadas, os negros,
os pobres, os de linhagem não nobre, para citar alguns.
O texto nos mostra que a solução de dois diferentes pertencerem a algo em uma
sociedade egoísta e excludente como a inglesa do contexto de produção de Frankenstein, é
apenas através da exclusão e, neste caso, pela morte tanto de criador quanto de criatura. Nessa
apófase cultural, mostrando a realidade sem citá-la, o texto de Shelley nos conduz à ideia de
que a cultura pode sim, contrariando Geertz (1989), ser apenas um conceito, quando distancia
os sujeitos do processo legando-os ao eterno estado de “intermediação”.
Referências
Introdução
Neste artigo propomos estudar a canção Vozes da Seca dos autores nordestinos, Luiz
Gonzaga e Zedantas2, tendo como pressupostos teóricos norteadores a Análise de Discurso de
linha francesa (doravante, AD). Para tanto, entende-se como necessário, em primeiro lugar,
fazer uma breve incursão sobre alguns conceitos básicos da AD, bem como sobre a
caracterização do sujeito-intérprete da referida canção e das condições de produção do
ambiente sócio-histórico onde a mesma foi concebida. Pretende-se demonstrar que a
materialidade linguística objeto de estudo apresenta, de forma incomum, características de
contraponto ao disseminado estereótipo de sujeito nordestino pobre, pedinte de esmola,
ignorante, conformado, alienado político e eterno dependente dos favores dos povos “do sul”.
A análise não tem como propósito metodológico precípuo a organização linguística do
texto, mas compreender como este é tecido, criando nós, laços e relações entre a língua e
aspectos sócio-históricos que imprimem ao discurso características próprias de dizeres
expressos e implícitos na canção analisada. Desse modo, é da mediação entre o dispositivo
escolhido, a fundamentação teórica subjacente e o objetivo proposto que o texto exsurge
como unidade de análise privilegiada da Análise do Discurso.
1
Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal da Paraíba. Professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Campus Natal/RN. Endereço eletrônico:
sandro.sousa@ifrn.edu.br
2
Mantivemos aqui a forma como Zedantas gostava de assinar seu nome em suas omposições, segundo
observação de Ferreti (2012, p. 9).
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Há diversas orientações para o estudo da linguagem. Duas delas talvez sejam as mais
conhecias: a forma de analisar a língua em sua suas características imanentes, que evidencia a
separação dicotômica entre língua e fala, reservando a esta última um papel secundário e que
remonta aos estudos estruturalistas de Saussure, ou a aplicação de regras, conforme uma
prescrição advinda da gramática normativa que persegue o “bom” uso da língua enquanto
sistema estrutural-funcional. Não obstante essas duas vertentes, o recente domínio da Análise
do Discurso emerge como contraponto às duas orientações retrocitadas, pondo em evidência
as relações que se estabelecem entre os sujeitos produtores de discurso e o “produto” por eles
produzidos. Desse modo, segundo Orlandi, (2013, p. 16) a Análise do Discurso
considerada efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que
exista sentido. Nesse cenário, o indivíduo é assujeitado ou interpelado como sujeito
ideológico, no sentido em que cada um é conduzido, sem se dar conta, e tem a impressão de
estar exercendo sua livre vontade (PÊCHEUX; FUCHS, p. 165-166), produzindo seu próprio
modo de dizer, mas que na verdade este decorre do funcionamento da instância ideológica,
situando a posição do sujeito em uma determinada classe social. Como corolário dessa
vinculação a uma conjuntura sócio-histórica dada, emerge a formação discursiva, isto é,
aquilo que determina o que pode e deve ser dito numa formação ideológica dada (ORLANDI,
2013; p. 43). Neste aspecto, é possível traçar uma referência à noção de interdição, uma vez
que toda produção de discurso poder ser controlada. Na nossa sociedade, não se tem o direito
de dizer tudo nem se pode falar de tudo em qualquer circunstância (FOUCAULT, 1989; p. 9).
Com esteio nessas características, a AD é descrita como uma disciplina de entremeio
cujo quadro epistemológico reside, segundo Pêcheux (1997, p. 164), na articulação de três
regiões do conhecimento científico, a saber:
A junção desses três domínios deve ser também compreendida, ainda segundo
Pêcheux, levando-se em consideração o fato de que é atravessada e articulada por uma teoria
da subjetividade de natureza psicanalítica. Conforme se avulta, esse tripé fundador, composto
de História-Língua-Sujeito, implica uma necessária inter-relação entre essas três regiões de
conhecimento: Linguística, Marxismo (materialismo histórico) e Psicanálise.
Em uma releitura dessas disciplinas, a AD defende que a produção de discurso se
estabelece considerando a historicidade da linguagem, a sua não transparência, e a noção de
indivíduo transformado em sujeito descentralizado. Essa reconceptualização de sujeito,
advinda da Psicanálise, é recepcionada pela AD que o entende como aquele que não é senhor
de si mesmo, nem como um ser apriorístico ao discurso, pois o sujeito já nasce imerso nos
diversos discursos que circulam na sociedade. Assim, o sujeito é entendido como sendo
cindido, clivado, já que as formações discursivas são heterogêneas. Diante deste quadro
epistemológico, tem-se que os discursos são lacunares. Tal como uma teia, o discurso é
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formado por nós e, ao mesmo, tempo, possui buracos, furos que lhes são constitutivos, que
deixam escapar o real da língua, entendido como aquilo que não pode ser simbolizado
totalmente na palavra e na escrita (FERREIRA, 2011). Segunda a autora, Pêcheux pensa o
real da língua como um corpo - não biológico, não orgânico - atravessado de falhas, ou seja,
submetido à irrupção da falta. O real pode, desse modo, ser representado pelas falhas, pelos
atos falhos, pelos lapsos e chistes. Dessa forma, a AD não se contenta com a inteligibilidade
(sentido literal do enunciado) ou interpretação (sentido do co-texto e contexto de entorno) de
um objeto simbólico. A AD vai além, buscando a sua compreensão. Dessarte, Orlandi (2013,
p. 26) esclarece que
animados pela sanfona de oito baixos de Gonzaga. Ambiente, então, de valiosas interações
linguísticas e sócio-culturais naquela região pernambucana. Rebento de família pertencente à
classe social baixa exuense, o segundo de um grupo de nove filhos, conforme relatou o
próprio Gonzaga: “fui o segundo dos nove, o primeiro sendo Joca. Depois, em anos
sucessivos ou espaçados, foram chegando Geni (Efigênia), Severino, José, Raimunda
(Muniz), Francisca, Socorro e Aloísio” (SINVAL SÁ, 2012, p. 22).
Batizado Luiz Gonzaga do Nascimento na matriz de Exu em 5 de janeiro de 1913, o
Rei do Baião ganhou esse nome por sugestão do então padre, José Fernandes de Medeiros.
Porque nascera no dia de Santa Luzia, deveria se chamar Luiz, já que era homem, Gonzaga
porque era o complemento do nome do santo Luiz Gonzaga, e, por fim, Nascimento em
virtude de dezembro ser o mês de nascimento do menino Jesus. Interessante registrar que foi o
único com nome diferente dos demais irmãos, como atesta a pesquisadora Dominique Dreyfus
(2012, p. 31).
Luiz Gonzaga apresentou logo cedo certa musicalidade, acompanhando o pai nas
festas e tocando sanfona de oito baixos. Aos dezessete anos, fugiu de casa para o Ceará, após
levar uma surra da mãe, que soubera que o filho havia desafiado - armado com uma faca – o
pai de Nazinha, garota com quem namorava às escondidas e pretendia casar-se. Ao chegar ao
Rio de Janeiro em 1939, já possuía uma sanfona maior e passou a frequentar programas de
calouros na Radio Nacional. Alcançou o sucesso. Conquistou o Rio de Janeiro. E, como
consequência, o Brasil. Por justo merecimento, tornou-se conhecido como o Rei do Baião. A
mudança para o sudeste proporcionou a Gonzaga o contato com o grande centro produtor do
mercado fonográfico. Como lembra Laraia (2013, p. 46), não basta a natureza criar gênios,
isto acontece com frequência; entretanto, faz-se necessário que coloque ao alcance desses
indivíduos o material que lhes permita exercer toda sua criatividade de uma forma
revolucionária.
Luiz Gonzaga tinha consciência que seu grande público o acompanhava aonde fosse,
principalmente os migrantes residentes no Rio e São Paulo. O seu idioleto3 era
predominantemente o do falar nordestino, mesmo que tivesse tido a oportunidade de conviver
com advogado, médico – profissões de seus principais parceiros -, músicos, compositores e
empresários. As músicas de Luiz Gonzaga exaltavam, principalmente, o Nordeste, seus
3
Língua tal como é observada no uso particular de um indivíduo.
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ritmos, sua língua, seu povo e suas tradições culturais. Segundo Albuquerque Jr. (2011, p.
178),
Luiz Gonzaga assume a identidade de “voz do Nordeste” que quer fazer sua
realidade chegar ao Sul e ao governo. Sua música “quer tornar o Nordestino
conhecido em todo país”, chamando a atenção para seus problemas,
despertando o interesse por suas tradições e “cantando suas coisas positivas”.
Fonte: <http://www.isurubim.net/2012/11/imagens-impressionantesa-invasao-dos.html>
No que concerne ao contexto cultural nordestino, por ser uma região menos
industrializada e economicamente mais frágil, frequentemente o nordeste é retratado como
espaço inferior, lugar de penúria e miserabilidade, e o homem nordestino é visto como pessoa
mal-informada, alheia aos condicionamentos sócio-históricos que suscitam as adversidades
que afligem sua vida. Esse quadro cria uma espécie de arquivo cultural de nordeste
subdesenvolvido e ignorante que é replicado em textos, músicas e poesias. Desse modo,
Lucena (2006, p. 3.) pondera que
Na música popular do nordeste, feita nas décadas de 40 e 50, não é raro encontrar
letras que retratem uma memória sócio-histórica de nordestinos desvalidos, muitas vezes,
conformados com a situação de penúria causada “exclusivamente”, para muitos, pela baixa
pluviometria da região. Entretanto, é igualmente possível encontrar canções que questionam a
situação de dependência econômica e de falta de investimento na região. Passemos, pois, à
análise do texto da canção Vozes da Seca:
Vozes da Seca
(Luiz Gonzaga/Zedantas)
4
Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos
4
Utiliza-se a transcrição grafemática do texto, mantendo-se as formas linguísticas das palavras e expressões tais
quais foram usadas na canção.
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5
O termo enunciador se refere à perspectiva que o “eu” assume no discurso.
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Considerações Finais
socioeconômicas dos nordestinos. O discurso faz revelar uma formação discursiva que traz
consigo valores que defendem uma criação e libertação do Nordeste como espaço sócio-
histórico livre da dependência econômica do centro-sul brasileiro. O sujeito enunciador
apresenta-se, assim, propositivo. O enunciador mostra-se, efetivamente, como representante
legítimo de um conjunto de vozes, vozes de uma coletividade cuja identidade interior se
rebela - embora de forma não panfletária - contra a estereotipada identidade exterior
nordestina: maltrapilho pedinte, resignado com a sua situação sócio-econômica, assujeitado
por uma formação discursiva de subserviência.
Foi possível verificar sentidos que emergem do discurso enquanto reveladores de uma
memória discursiva de investimento econômico em outros estados da federação que os
elevaram à categoria de espaços desenvolvidos, em contraponto ao esquecimento e
subdesenvolvimento da região Nordeste.
Evidenciamos também efeitos de sentido retratados em expressões metafóricas
reveladoras de um Nordeste submisso e contra o qual o sujeito se insurge, desafiando
procedimentos de exclusão sem ter, contudo, pretensões revolucionárias.
O discurso do sujeito-autor Luiz Gonzaga é permeado de reivindicações e propostas,
apontando as possíveis soluções para o problema de convivência com a estiagem prolongada.
As representações do homem nordestino na canção “vozes da seca” desvela ainda sentidos
sobre um sujeito que cobra responsabilidade de quem detém o poder-dever institucional de
investir na região para eliminar as discrepâncias sócio-econômicas historicamente
construídas.
Por fim, o texto como espaço significante do discurso instaurado permitiu entrever um
sujeito-autor que não se harmoniza com a visão estereotipada de canções que cantam um
nordeste somente de resignação “romântica” à situação de dificuldades que atravessa por
causa da seca prolongada. O enunciador possibilitou revelar efeitos de sentidos no texto, a
partir de várias vozes: vozes da seca, vozes de protesto que, sob o ponto de vista da Análise
do Discurso, busca incessantemente compreender os diferentes processos de significação em
função de sua historicidade. Concluindo, retomamos a epígrafe de um de nossos
interlocutores e que abre este estudo: “se só houvesse submissão, não haveria produção de
novos sentidos”.
Referências
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Há uma morte que vem de fora e uma morte que cresce por dentro. Cada
uma delas produz uma dor diferente. (Rubem Alves)
O Brasil é hoje o oitavo país com maior índice de suicídios, de acordo com números
da Organização Mundial de Saúde. Em 2012, registrou-se 11.821 mortes em nosso país,
média que ultrapassa 32 casos por dia2. De acordo com a Rede Brasileira de Prevenção do
Suicídio – REBRAPS3, esse número pode ser ainda maior, considerando a fragilidade da
captação e registro de informações. No mundo, segundo a organização, ocorre uma morte por
suicídio a cada 40 segundos.
Apesar de tal abrangência, o que se vê é um silenciamento social a respeito do
suicídio, o que se justificaria pelo receio de o debate público gerar ainda mais casos a partir
do efeito de imitação. Esse posicionamento é rechaçado pela REBRAPS, que defende a
discussão responsável sobre o assunto e a adoção de medidas amplas de saúde pública a fim
de que haja maior conscientização e prevenção.
Roosevelt Cassorla (1991, p. 22) destaca o fato de que “o suicida não quer morrer – na
verdade ele não sabe o que é a morte. Aliás, ninguém sabe. O que ele deseja é fugir do
sofrimento”. Esse entendimento conduz à reflexão sobre a devida conscientização sobre o
suicídio enquanto uma das vias para evitar novas ocorrências.
Há um cuidado necessário no modo como abordar tal temática e um temor social, o
que gera medidas como a elaboração, por parte da Associação Brasileira de Psiquiatria –
ABP, da cartilha Comportamento suicida: conhecer para prevenir (dirigido para
profissionais de Imprensa)4, sobre o modo como noticiar os casos que ocorrem a fim de evitar
a propagação de atos suicidas, a exemplo do acontecimento a partir do qual foi cunhada a
expressão “efeito Werther”:
2
Informações extraídas de matéria divulgada pela Agência Brasil. AQUINO, Yara. OMS alerta para a
importância da prevenção do suicídio. Online. 04 set. 2014. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-09/oms-alerta-para-importancia-de-prevencao-ao-suicidio>.
Acesso em: 25 set. 2014.
3
Cf. REBRAPS - http://www.rebraps.com.br/.
4
Cf. ABP. Comportamento suicida: conhecer para prevenir (dirigido para profissionais de Imprensa). São Paulo,
ABP Editora, Out. 2009. Disponível em: http://www.abp.org.br/portal/wp-
content/upload/2013/10/cartilhasuicidio_2009_light.pdf>. Acesso em: 25 set. 2014.
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Ao iniciarmos nossa reflexão sobre o modo como Elena faz uso de lugares de
memória para tratar de forma sublime de um tema silenciado cultural e socialmente, cabe
ponderarmos que este filme traz em si especificidades em sua proposta que lhe conferem um
caráter de maior liberdade criativa, distanciando-se da ideia difundida tradicionalmente do
5
Termo entendido aqui em sentido amplo, como “suporte através do qual um discurso se materializa, podendo
ser tal suporte verbal ou não-verbal” (INDURSKY, 2011, p. 76).
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6
Mousinho (2012, p. 82) esclarece que, “grosso modo, chamamos de voz over ao som não diegético, ou seja, à
fala do personagem que não corresponde à fala ou ao diálogo de uma ação que se desenrola naquele momento”.
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Sereia no cinema que fica na esquina de casa. E nesse dia você volta a
brincar comigo de encenar, e a gente volta pra casa cantando, e sentindo que
nem ela, embaixo d’água, sonhando em trocar de pele. Depois você lê pra
mim a história original, em que ela sofre pra se tornar mulher, perde a voz e
morre. “Como assim ela morre?”, eu te pergunto. Me sinto enganada, peço
para dormir com você.
O relato contido no filme-carta aponta para o fato que nos referimos anteriormente: a
história A pequena sereia, que se estabeleceu no imaginário coletivo, amplamente difundida
através do cinema comercial, é uma narrativa infantil que se constitui enquanto releitura do
conto trágico de Andersen, com a definição de um final feliz para a personagem protagonista,
atendendo às expectativas do espectador comum. A partir de seu alcance e repetição, o texto
fílmico sobrepõe-se ao texto original, operando um apagamento deste e mesmo causando um
estranhamento ao dar-se o contato com o conto de Andersen após se conhecer a narrativa dele
derivada.
As referências a Ofélia, personagem da peça shakespeariana, estão por todo o
documentário de Petra Costa. Desde o uso da água como elemento cênico constante 7; trechos
narrados dos diários de Petra e Elena; imagens de arquivo da própria diretora do filme, ainda
adolescente, interpretando Ofélia; e mesmo em encenações autoficcionais e da personagem.
Martha Kiss Perrone, diretora de arte e preparadora de elenco do documentário,
esclarece que as referências a Ofélia remetem ao fim trágico, mas também o ressignificam,
vendo em sua morte um ato de liberdade e rebeldia: “o suicídio da Ofélia no Hamlet é uma
manifestação de vida. Ela não pode agir. Finalmente, quando ela faz algo, é se matar”8. Érika
Vieira (2010), em trabalho sobre as representações de Ofélia nas artes visuais e leituras
críticas de Shakespeare, refere-se ao percurso trágico da personagem e ao vínculo de sua
imagem à insanidade, à morte, mas também à feminilidade, à fragilidade, à vitimização e à
água enquanto elemento feminino. A cena de sua morte, demonstra a autora, é retratada, em
geral, não com morbidez, mas com vivacidade e beleza, sem trazer em si o sofrimento do ato.
Observa-se que reverbera na fotografia do filme uma representação recorrente da
morte da personagem da peça Hamlet, o quadro Ophelia, de John Everett Millais, datado de
1852. A pintura constitui-se enquanto imagem-monumento, canonizada, tornada ícone,
7
Elena, irmã de Petra, suicida-se tomando aspirinas com cachaça. Não há, portanto, qualquer relação entre as
circunstâncias de sua morte e a presença constante da água enquanto elemento estético utilizado em todo o filme.
8
Complexo de Ofélia: o lugar e os direitos das mulheres na sociedade. Elena Filme. 2 ago. 2013. Disponível
em: <http://www.elenafilme.com/mobilizacao-social/complexo-de-ofelia/>. Acesso em: 29 set. 2013.
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Apesar de haver uma grande quantidade de pinturas feitas com base na descrição da
morte de Ofélia, o quadro de Millais é uma das obras mais conhecidas, tornando-se uma
representação artística canônica a respeito do suicídio, imagem amplamente difundida em
diversas produções anteriores ao filme de Petra Costa. O discurso, antes apenas verbal, mas
dotado de grande visualidade e potencial imagético, ganha força e representatividade a partir
de sua iconicidade, imagem que compõe a memória social, sobre a qual Indursky observa:
A ideia de referir-se às Ofélias, no plural, surge desde o texto em voz over, quando Petra
relata o momento em que se tornou mais velha que Elena: “E eu, com muito mais consciência
para sentir a sua morte dessa vez, o imenso prazer que vem acompanhado da dor. Me afogo
em você, em Ofélias. Enceno, enceno a nossa morte, pra encontrar ar, pra poder viver”. Tal
uso dá-se também na construção cênica posta em tela, reforçando a ideia do drama comum de
desadequação e sofrimento na passagem do tornar-se mulher, vivido tanto pela mãe Li An quanto por
Petra e Elena e que teria sido caminho para o desencanto da jovem atriz e seu suicídio, refletindo um
sentimento socialmente compartilhado por outras mulheres.
Elena, portanto, não apenas resgata, mas atualiza uma imagem-monumento de ampla
difusão, canonizada no imaginário social. O documentário ressignifica a representação da morte de
Ofélia indo além do significado da imagem da bela morta, sugerido por Poe (1987), da morte
sublime, figurada no quadro de Millais (1852) e reproduzida em diversas obras. A encenação feita
por Petra, na qual ela, sua mãe e outras mulheres deixam-se levar pelas águas com suavidade, leveza,
feminilidade, em imagens fluídas, de movimento, vai além do vínculo à personagem shakespeariana,
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ao suicídio cometido por Ofélia, e mesmo à morte de Elena. A cena toma uma amplitude maior,
representando a melancolia, o desencanto, o sentimento de vazio existencial enquanto mal-estar
social que transcende a dor da perda relatada em tela e os limites do próprio filme.
Referências
MOUSINHO, Luiz Antonio. A sombra que me move: ensaios sobre ficção e produção de
sentido (cinema, literatura e tv). João Pessoa: Ideia/ Editora Universitária, 2012.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Mônica Saddy Martins. Campinas:
Papirus, 2005.
PERES, Urania Tourinho. Depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. 2 ed.
Rio de Janeiro: Globo, 1987. p. 77-88.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011.
______. The tragedy of Hamlet, Prince of Denmark. Ed. Edward Hubler. In: ______. The
complete signet classic Shakespeare. Ed. Sylvan Barnet. New York: Harcourt Brace
Jovanovich, Inc., 1972. p. 910-961.
VIEIRA, Érika Viviane Costa. Resistindo à clausura: a iconografia de Ofélia. Revista Todas
as musas, USP, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 81-98, jan-jul. 2010.
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Introdução
O professor e estudioso maranhense Domingos Vieira Filho (São Luís, 1924 – 1981) é
autor de obras fundamentais para o patrimônio cultural do Estado do Maranhão. Membro do
Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, da Comissão Maranhense de Folclore e da
Academia Maranhense de Letras exerceu, dentre outros cargos e funções, os de professor da
Universidade Federal do Maranhão, Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de
Educação e Cultura do Estado do Maranhão e Presidente da Fundação Cultural do Maranhão.
Escreveu mais de uma centena de obras científicas sobre a linguagem e a cultura popular
maranhense, que o projeto Dicionário Crítico da Obra de Domingos Vieira Filho busca
resgatar.
Sua obra é ainda hoje indispensável a quem se interesse pela identificação do perfil
social do brasileiro comum e em particular do maranhense, não só pela abrangência dos
assuntos abordados como pelo tratamento rigoroso dos dados que coletava, com riqueza de
detalhes e profundidade de análise e de observação.
Segundo Cordeiro (2003, p.16), é consenso entre aqueles que conheceram Domingos
Vieira Filho ou D.V.F. como ele próprio se designava, que suas “[...] descobertas eram
sempre examinadas e reexaminadas, testadas com maior rigor metodológico para a
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informação exata, abandonadas ou contraditadas aquelas que pareciam brotar da pura fantasia
alheia.”.
Essas descobertas abrangiam temas de etnografia, folclore, literatura, história e
linguagem. Apesar da dificuldade da recolha do material por ele produzido – já que sua obra é
constituída, em boa parte, por artigos publicados em jornais e revistas variados, de todo o
Brasil, ou em publicações como livros, plaquetas, folhetos, relatórios, catálogos, com edições
há muito tempo esgotadas – foi possível obter material sobre assuntos como linguagem
popular maranhense e alimentação típica, brinquedos infantis, literatura oral, costumes,
crenças, superstições, folguedos. Nos campos da linguagem popular e da literatura oral, cujos
limites muitas vezes se confundem, Domingos Vieira Filho trata do léxico regional, de frases
feitas, pregões, orações populares, nomes curiosos, contos e lendas, parlendas e adivinhas.
Desse universo de informações sobre a cultura maranhense selecionamos dois
assuntos: as parlendas e as adivinhas, que foram objeto de artigos publicados em jornais, mas
que constituem também capítulos dos livros Folclore do Maranhão (1976) e Folclore
Brasileiro – Maranhão (1977), respectivamente.
Em Folclore do Maranhão, D.V.F. apresenta uma relação de parlendas, entendidas
pelo autor segundo a definição e as características apontadas por Veríssimo de Melo, quais
sejam:“Parlenda, ou seja, palavreado, significa, assim, palavras ou ditos rimados ou não,
destinados a ensinar algo ou a criticar e divertir pura e simplesmente” (VIEIRA FILHO, 1976,
p. 61).
Estes textos de formato peculiar e original que integram o folclore infantil
caracterizam-se pelo que Melo (1949, p. 14) denomina de “pontos de contacto: 1º - São
sempre rimas ou ditos instrutivos ou satíricos. 2º - Não têm música.”.
Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, assim as define:
[...] acalantos (cantigas para adormecer meninos); jogos (onde, para nós, o
elemento característico é a disputa, a competição); rondas, (canções de
roda); adivinhas (perguntas enigmáticas); brinquedos (o objeto de brincar, a
boneca, o cavalinho de barro, etc.); contos (estórias de trancoso);
superstições, etc.
Não há uma designação única para esse tipo de texto, conhecido também como brinco,
dinamogenia, lengalenga e ditos ou rimas de criança. Quanto à tipologia, Melo (1949, p. 15),
baseando-se na divisão proposta por Cascudo, propõe uma divisão em três tipos:
Vieira Filho registra a parlenda que é parte do título deste trabalho, em versões
maranhense e paulista, da recolha do próprio autor e de Aluísio Almeida, respectivamente:
Tico-tiririco/ Quem te deu tamanho bico?/ Foi o padre São Francisco/ Ele
vai, ele vem,/ Nunca paga meu vintém.; [...] Tico-tico-sirilico, Quem te deu
tamanho bico?/ Foi a velha cigarreira/ que ia indo na ribeira/ Comprando
ovos de perdiz/ Para o filho do Juiz. (1976, p. 63).
Coelho registra, em Portugal, as formas: – Sirolico, tico, tico,/ Quem te deu tamanho
bico?/ Seja d´oiro, ou de prata,/ Mete-te já na buraca – e Sirolico, tico, tico,/ Quem te deu
tamanho bico?/ Dois, quatro, seis e oito;/ Safa já, cozei biscoito, como parte das falas de uma
brincadeira infantil, jogada em roda, e conhecida como Vassoirinha.
Além das muito conhecidas “Meio-dia,/ panela no fogo,/ barriga vazia;/ macaco
torrado/ que veio da Bahia/ deu um sopapo/ na velha Maria”, mencionada por Antonio Lopes
(1967), em Presença do Romanceiro, por lembrar uma expressão chistosa que ocorre no final
da versão maranhense do romance Branca Flor, e “Estou com fome/ Come um homem./ É
pouco./ Come um caboco./ É muito./ Come um defunto./ É demais./ Come um rapaz.”, Vieira
Filho registra parlendas utilizadas para encerrar uma sessão de histórias da carochinha:
“Quem conta história de dia/ cria rabo de cutia”; “E com esta/ urubu foi à festa” e “Era uma
vez/ um galo pedrês/ pôs um ovo pra vocês três./ Era uma vez um galo socó,/ pôs um ovo pra
ti só”.
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Outra parlenda mencionada e muito difundida, na versão coletada em São Luís pelo
autor e pertencente ao grupo das mnemonias, é:
Um, anum./ Dois, camarão com arroz./ Três, galo pedrês./ Quatro, pé de
pato./ Cinco, pé de pinto./ Seis, inglês./ Sete, canivete./ Oito, biscoito./ Nove,
automove. (grifo do autor)/ Dez, burro tu és./ Onze, casaca de bronze./
Doze, tira tua pose. (VIEIRA FILHO, 1976, p. 64).
Melo (1949, p. 65) apresenta uma versão recolhida em Natal, e algumas variantes:
Ribeiro (1969, p. 135), para quem o tema fundamental desta parlenda é a “alegria
infantil que decorre da perspectiva de um dia santo ou feriado próximo, e mais, dia de festa,
ou de missa”, explica dessa forma o encadeamento de ideias: “daí as idéias sucessivas:
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As parlendas acima referidas, embora diferentes entre si, apresentam muitos dos
elementos das parlendas coletadas por Vieira Filho no Maranhão, especialmente da terceira,
que menciona: “O touro é valente,/ Dá na gente,/ A gente é fraca,/ Cai no buraco,/ Buraco é
fundo,/ Cai no mundo”.
Ribeiro (1969) explica que vê na expressão “pé de cachimbo” também uma referência
indireta a domingo, pois “alude seguramente à liberdade do indivíduo, à fuga ou repouso do
trabalho. Abalar os cachimbos é fugir, dar à perna” (p. 138). Mas o mesmo autor acrescenta
que pode ser apenas uma rima para domingo, sem outro sentido, e menciona versão colhida
no norte do País que apresenta início diferente: Hoje é sábado/ Pé de quiabo,/ Depois é
domingo/ Pé de cachimbo.
Vale mencionar a versão coletada por Vieira Filho, que substitui “pé de cachimbo”
muito simplesmente por “pita cachimbo”, o que daria lógica à expressão, uma vez que pitar
pode significar fumar. Em Portugal, Vieira (1994, p. 29) registra uma versão que, embora com
grandes diferenças em relação ao padrão, mantém vários elementos como o sino, o ouro e a
valentia e a ideia de dia de repouso, lazer e diversão:
Cascudo (1984, p. 59) registra também duas versões, uma do Brasil e outra de
Portugal:
Versão brasileira:
Versão portuguesa:
Versão norte-rio-grandense:
Uma versão curiosa é a registrada por Melo (1949, p. 71) e por ele recolhida,
possivelmente em Natal, cidade onde nasceu, uma vez que é apresentada como memórias de
infância:
1
Aarne Thompson – sistema de classificação utilizado para classificar contos. Primeiramente desenvolvido por
Antti Aarne e publicado em 1910, o sistema foi traduzido e ampliado por Stith Thompson. Usa motivos ao invés
de ações em contos agrupados em Animal Tales, Fairy Tales, Religious Tales, Realistic Tales, Tales of the
Stupid Ogre, Jokes and Anecdotes, e Formula Tales. Dentro de cada grupo, eles são subdivididos por temas.
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do touro, da gente, do vigário, da mata ou do fidalgo, sendo que este último também pode ser
ladrão. As diversas combinações desses elementos, em alguns casos acrescidos por outros
versos, resultam em versões diferentes, quase todas iniciadas pelo verso “Amanhã/ Hoje é
domingo”, mas sempre com finais diferentes. Como diz Cascudo (1984, p. 60), “O texto
verbal é uma série de imagens associadas sem que a sucessão seja lógica, ou tendo a lógica
infantil, nem sempre a nossa”.
Outra pesquisa realizada por Domingos Vieira Filho foi sobre adivinhas ou
adivinhações.
Cascudo (2001, p. 8) assim as define:
2
Enigma de Ilo– Baseia-se na história de uma jovem acusada de crime, a quem se propõe que apresente aos
juízes uma adivinha que, se não for decifrada, lhe garantirá o perdão. A jovem fabricou e calçou uns sapatos
feitos com a pele de uma cadela que lhe pertencera e que se chamava Ilo e apresentou-se aos juízes dizendo:
“Sobre Ilo vou,/ sobre Ilo estou,/ Ilo, a bela e gentil./ Adivinhem meus senhores, o que isto quer dizer.” Os juízes
não puderam adivinhar e a jovem foi libertada. (JOLLES, 1976, p. 114).
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O que é, o que é:/ Tem casca sem ser de pau,/ E vela sem ser de cera –
Cascavel;
O que é, o que é:/ Capim aqui e vara acolá – Capivara.
Meu nome se chama tá, / Ralinho de coisa má./ Não ando vestido nem nu,/
Todos me tratam por tu – Tatu.
Jeni caiu no chão fez pa – po! – Jenipapo
O que é, o que é:/Um pássaro do mangue/ e uma embarcação? – Guaraná =
(Guará – Nau)
Tengo, tengo da chapada/ Tem fígado mas não tem moela,/ Tem bofe mas
não tem costela? – Jabuti;
Quatro pés na lama,/ Quatro pés na cama./ dois parafusos/ e um que abana?
– Vaca;
Muitos não gostam de mim,/ Mas sou de muita utilidade,/ Pois os serviços
que presto/ dão sempre bons resultados. – Gato;
Caixinha de bom parecer/ não há carpina que saiba fazer – Amendoim.
O que é, o que é:/ Está num pomar e também se encontra num país? – Lima;
Somos duas irmãs,/ Em nada iguais no parecer:/ Uma se come/ E a outra
serve para comer? – Lima;
O que é, o que é;/ Está no casaco e no pomar? – Manga.
[...] a maior parte das que aqui circulam entre crianças e velhos é,
indubitavelmente, de proveniência lusa. Pode, todavia, ocorrer que algumas
sejam de origem negra, transmitidas pelos escravos africanos. Nongonongo
significa adivinha na língua quimbunda e os negros adoram esse tipo de
quebra-cabeças.
Há ainda adivinhações nascidas em terras maranhenses, da imaginação
popular e expressando ideias ligadas a traços de cultura nativos. Algumas
variantes sobre o buriti, a melancia, a cana, a mandioca, a renda de
almofada, o jenipapo, etc. para tudo o povo, aqui e em qualquer latitude,
encontra motivo para propor enigmas: animais, nomes de santos, frutas,
plantas, objetos da cultura material... (VIEIRA FILHO, 1976, p. 15).
A respeito da influência africana na base lusitana das adivinhas, Vieira Filho afirma
que: “Os negros africanos adoram o gênero, são hábeis fazedores de adivinhas [...]” e ainda:
Referências
ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional III: ritos, sabença, linguagem, artes populares
e técnicas tradicionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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CÂMARA CASCUDO, Luís da. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1984.
______. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
COELHO, Adolfo. Jogos e rimas infantis. Porto: ASA, 1994.
CORDEIRO, João Mendonça. Domingos Vieira Filho: um amante da cultura popular
maranhense. Boletim de Folclore, São Luís, n. 25, p.16-17, jun. 2003.
JOLLES, André. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável,
conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.
LOPES, Antônio. Presença do romanceiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1967.
MELO, Veríssimo de. Parlendas. Natal: Biblioteca da Sociedade Brasileira de Folk-Lore,
1949.
RIBEIRO, João. O folclore. Porto: Rio de Janeiro: Organizações Simões Editora, 1969.
VIEIRA, Alice. Eu bem vi nascer o sol: Antologia da poesia popular portuguesa. Lisboa:
Caminho, 1994.
VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore do Maranhão. São Luís: Edição do Autor, 1976.
______. Folclore brasileiro: Maranhão. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura;
Departamento de Assuntos Culturais; Fundação Nacional de Arte; Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro, 1977.
______. Adivinhas. Jornal do Povo. São Luís, p.1e 5. 27 dez. 1951.
WEITZEL, Antônio Henrique. Folclore literário e linguístico. Juiz de Fora: EDUFJF, 1995.
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Introdução
Este estudo foi desenvolvido com base em uma pesquisa mais ampla, intitulada “O
Atlas Linguístico do Maranhão: em busca do léxico de origem africana, uma segunda
abordagem” que tem como objetivos: (i) pesquisar as relações das línguas africanas com o
português brasileiro e em particular com a variedade falada no Maranhão e (ii) oferecer
subsídios à investigação das bases linguísticas do léxico da língua portuguesa, principalmente,
de sua variedade maranhense.
Esta pesquisa mostra-se fundamental para uma melhor compreensão do português
brasileiro considerando o tema e o objeto escolhidos. Deste modo, justifica-se, por um lado,
pelo fato de a história de uma língua se explicar por meio da história social e política do povo
que a usa, e, por outro, porque são “os africanos e os afrodescendentes os agentes principais
da difusão do português no território brasileiro, na sua face majoritária, a popular ou
vernácula.” (SILVA, 2004, p.106).
Convém ressaltar que a presença de africanos e afrodescendentes, no Brasil, foi e
ainda é expressiva. Segundo o censo oficial de 1823 (CASTRO, 2001), a introdução de
africanos no Brasil originou um contingente populacional de 75% de negros e mestiços em
relação ao número de portugueses e outros europeus. Dados mais recentes da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República indicam que 51% da população brasileira
é formada por negros.
Esse grande contingente africano trouxe consigo, além de sua cultura, suas diversas
línguas étnicas, que contribuíram consideravelmente para a composição do que hoje é o
Português Brasileiro (PB). Essas marcas linguísticas são evidenciadas tanto nos níveis
fonético, morfológico, sintático, como também no nível objeto deste estudo, o lexical.
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Vale destacar que os iorubás foram trazidos em grande quantidade para o Estado e,
possivelmente, foram os principais responsáveis pela inserção da religião dos orixás que,
atualmente, faz parte da cultura maranhense, sobretudo, nas comunidades negras.
Tendo em vista esse panorama, foi possível observar forte presença do negro no Brasil
e no Maranhão. Além da importância social, econômica e cultural, a presença africana
contribuiu para a língua(gem), principalmente na área do léxico.
Bonvini e Petter (1988 apud SILVA, 2004, p. 96) estimam que chegaram ao Brasil,
com o tráfico de escravos, por volta de 200 a 300 línguas africanas que abarcam duas grandes
áreas de procedência: (i) a área oeste-africana, que abriga um grande número de línguas
tipologicamente diversificadas e entre as quais se destacam ewe, yorubá, e (ii) a área banto,
que abarca línguas tipologicamente homogêneas, como o kicongo, o kimbundum, o umbundo.
Considerando essa realidade do Brasil Colonial, alguns estudiosos afirmam que a
influência africana no PB ocorreu paralelamente à importação de escravos africanos. Estes
trouxeram consigo sua língua e cultura, mas foram forçados a viver outra realidade e a
conviver com uma língua diferente das diversas línguas étnicas que para cá trouxeram. Assim,
nesse contexto de contato linguístico que se estabelece no Brasil a partir da segunda metade
do século XVI, os empréstimos linguísticos foram inevitáveis, como evidencia Bonvini (2008,
p. 103):
Convém ressaltar que o contato do português falado no Brasil com as línguas africanas
não se faz presente apenas no acervo lexical do português. São muitos os estudiosos que se
dedicam à pesquisa da presença africana em outros níveis de análise linguística, como por
exemplo, no nível morfossintático, em que examinam questões como a concordância de
gênero e de número, a concordância verbal, a negação, o emprego do subjuntivo, dentre
outros tópicos (cf., dentre outros, LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009).
É, contudo, o nível semântico-lexical que nos interessa nesta pesquisa. Os
africanismos, palavras oriundas de línguas africanas, são os termos que ajudam a compor
grande parte do acervo lexical do Português Brasileiro, como evidencia Petter (2002, p.141):
Procedimentos Metodológicos
de-açúcar?
Fonte: Produzido pela pesquisadora
Dicionários Gerais:
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), de Antônio Houaiss, que, assim como o
dicionário Novo Aurélio, demonstra ser uma das obras mais completas e de maior difusão
do País.
o Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999), elaborado por
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. É uma obra atual que demonstra grande
conhecimento das palavras de origem africana (cf. Petter, 2002).
Dicionários Específicos:
o Dicionário Banto do Brasil (1993-1995), elaborado por um dos pesquisadores da
influência africana no português. Neste trabalho, Nei Lopes registra os vocábulos oriundos
de línguas do grupo banto presentes no Português Brasileiro.
o Vocabulário Afro-Brasileiro: Falares Africanos na Bahia (2001), elaborado por Yeda
Pessoa de Castro, que analisa a contribuição africana no português do Brasil, focando na
presença de línguas africanas na Bahia.
Dicionários Etimológicos:
o Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (1955), de Antenor Nascentes,
o Dicionário Etimológico Nova Fronteira (1986), de Antônio Geraldo da Cunha, que é
considerado por Petter (2001, p. 136) a obra etimológica brasileira mais recente e
completa.
Petter (2002, p.131) afirma que “os dicionários gerais do português vão refletir na sua
elaboração o estado do conhecimento sobre a participação das línguas africanas na
constituição do léxico nacional”. Sendo assim, observamos que, com a incorporação dos
africanismos nos dicionários, não só nos gerais, como também nas obras de referência
etimológicas e específicas, várias lexias de origem africana mostram-se já integradas, de fato,
ao léxico do português do Brasil.
O quadro a seguir apresenta os africanismos e sua condição nos dicionários brasileiros.
Encontramos, assim, itens lexicais sem registro (SR), com outra acepção (OA), ou com a
mesma acepção (MA), considerando-se a acepção que foi encontrada entre os informantes do
projeto ALiMA.
Quadro 2 –Dicionarização de Africanismos em obras de referência.
DICIONÁRIOS DICIONÁRIOS DICIONÁRIOS
GERAIS ESPECÍFICOS ETIMOLÓGICOS
Dicionário
Vocabulário Dicionário
LEXIAS Dicionário Etimológico
Afro- Etimológico
Houaiss Aurélio Banto do da Língua
Brasileiro Nova
Brasil Portuguêsa
(VAB) Fronteira
(DELP)
Cangalha MA AO OA MA MA MA
Angola MA MA MA MA OA SR
Catraio*
OA AO SR AO SR OA
(Catraia)
Cotó MA MA MA MA OA OA
Catita MA AO OA MA SR MA
Camundongo MA MA MA MA SR MA
Banguela MA MA MA MA SR MA
Tabaco MA MA SR Vulva Fumo Fumo
Xoxota MA MA SR MA SR SR
Bode MA AO OA OA OA OA
Caçula MA MA MA MA SR MA
Moleque MA MA MA MA SR OA
Canhenga*
SR MA MA MA SR MA
(Canhengue)
Cultos
Religião Cultos afro-
Macumba MA MA afro- SR
Africana brasileiros
brasileiros
Gangorra MA MA MA MA SR MA
Canjica MA MA MA MA SR MA
Cachaça MA MA MA MA MA MA
Fonte: Produzido pela pesquisadora
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Todas as lexias que compõem o corpus desta pesquisa já estão dicionarizadas e são
encontradas em praticamente todos os dicionários utilizados para este estudo. Dos 17
africanismos aqui selecionados, todos já possuem registro no dicionário Aurélio (1999) e no
Vocabulário Afro-Brasileiro (2001); 16 já estão registrados no dicionário Houaiss (2001); 15
no dicionário Nova Fronteira (1986); 14 no Dicionário Banto do Brasil (1995), e apenas 6
podem ser encontrados no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (1955). Notamos,
portanto, que dentre os dicionários selecionados, os mais atuais apresentam maior número de
lexias quando comparados com as publicações mais antigas.
Vale ressaltar também que nem todos os itens lexicais apresentam o mesmo
significado que lhes foi atribuído pelos informantes do projeto ALiMA (cf. Quadro 1). A lexia
cangalha, por exemplo, possui a mesma acepção nos dicionários etimológicos, no Houaiss e
no Vocabulário Afro-Brasileiro, porém, no Aurélio e no Dicionário Banto do Brasil, é
definida como: “peça de três paus, unidos em triângulo, que se enfia no pescoço dos porcos
para não destruírem hortas cultivadas” (1993-1995, p. 71).
A lexia angola, de acordo com o questionário do ALiMA, remete à “ave parecida com
a galinha, de penas pretas e pintinhas brancas”. A lexia encontra-se com a mesma acepção
apenas nos dicionários gerais e específicos, não possuindo registro no dicionário Nova
Fronteira e apresentando acepção diferente (apenas referindo-se ao país africano) no
Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (DELP).
Já a lexia cotó pode ser encontrada com o mesmo significado nos dicionários gerais e
específicos. No entanto, nos dicionários etimológicos, aparece com acepções diferentes,
significando “cotovelo”, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa, e um “tipo de faca
pequena”, no Dicionário Etimológico Nova Fronteira.
O africanismo catita, que se refere ao “pequeno rato encontrado dentro das casas”,
apresenta a mesma acepção nos dicionários Houaiss, Nova Fronteira e no Vocabulário Afro-
Brasileiro. Nos dicionários Banto do Brasil e Aurélio, temos um significado mais genérico,
pois a lexia se refere a “certos mamíferos marsupiais muito delicados, de hábitos noturnos”
(LOPES, 1995, p.81). Neste caso, não há registro da lexia no DELP. Já camundongo,
africanismo que recobre o mesmo conceito englobado por catita, apresenta a mesma acepção
em todos os dicionários, com exceção do DELP, onde também não houve registro.
O mesmo ocorre com as lexias banguela, caçula, gangorra e canjica, que possuem a
mesma acepção em todos os dicionários, com exceção do Dicionário Etimológico da Língua
Portuguêsa, onde não estão registradas.
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A lexia tabaco é encontrada tanto nos dicionários gerais, como no banco de dados do
ALiMA, com dois significados diferentes como: (i) o “órgão sexual feminino” e (ii) os
“cigarros que as pessoas faziam antigamente”. Nos dicionários etimológicos, a lexia refere-se
apenas à planta cujas folhas constituem o fumo, fazendo alusão ao segundo significado dado a
essa forma lexical, e no Vocabulário Afro-Brasileiro, a lexia apenas faz referência à vulva,
retomando, portanto, apenas ao primeiro significado atribuído à lexia.
O africanismo xoxota, que também se refere ao órgão sexual feminino, apresenta a
mesma acepção nos dicionários gerais e no Vocabulário Afro-Brasileiro, porém não há
registro no Dicionário Banto do Brasil e nos etimológicos.
Bode, africanismo referente ao período de menstruação da mulher, apresenta esta
mesma acepção apenas no dicionário Houaiss. Em todos os outros, a lexia é usada para
referir-se “macho da cabra”.
Moleque, que designa a criança do sexo masculino que tem entre 5 e 10 anos,
apresenta essa mesma acepção em todos os dicionários gerais e específicos; contudo, no
dicionário Nova Fronteira, a lexia apresenta um matiz depreciativo: alude à “pessoa sem
maturidade”; no DELP, a lexia não foi registrada.
A lexia canhenga é uma variante da forma já dicionarizada canhengue, sendo que a
primeira não está registrada em nenhum dos dicionários. Assim como canhengue, canhenga
refere-se à “pessoa avarenta, que não gosta de gastar dinheiro”. Esta forma possui registro nos
dicionários específicos, no Aurélio e no Nova Fronteira, todos com a mesma acepção. Porém
este africanismo não está registrado no dicionário Houaiss e tampouco no Dicionário
Etimológico da Língua Portuguêsa.
O mesmo ocorre com o africanismo catraio, que, assim como angola, se refere ao
animal que se parece com uma galinha, de penas pretas e pintinhas brancas. A forma catraio
não está dicionarizada nas obras de referência arroladas neste trabalho; o que se encontra
registrado em quatro dos seis dicionários pesquisados é a forma catraia, porém com acepção
diferente daquela encontrada entre os informantes do ALiMA. Nos dicionários gerais se refere
a um tipo de peixe; no Vocabulário Afro-Brasileiro, refere-se a “prostituta de baixa classe”
(2001, p.226), e no dicionário Nova Fronteira refere-se a “um barco pequeno tripulado por um
homem” (p. 166). Não há registros da lexia no Dicionário Banto do Brasil e no Dicionário
Etimológico da Língua Portuguêsa.
A lexia macumba, uma das denominações para o conceito “aquilo que as pessoas
fazem para alguém e botam nas encruzilhadas”, de acordo com o questionário do projeto
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ALiMA, encontra-se registrada com o mesmo significado apenas nos dicionários gerais. Nos
dicionários específicos e no Nova Fronteira, a lexia se refere aos cultos e religiões afro-
brasileiras, porém não há registros da lexia no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa.
E, por fim, o africanismo cachaça, que se refere à “bebida alcoólica feita com cana-
de-açúcar”, é o único que está registrado em todos os dicionários com a mesma acepção.
A partir desses dados e de sua dicionarização, é possível observar como, de fato, estes
africanismos já foram incorporados ao português brasileiro, o que comprova que a influência
das línguas africanas sobre o português é bastante significativa, principalmente no nível
lexical.
Além disso, importante registrar que estas lexias encontram-se no falar cotidiano dos
maranhenses, fato comprovado pela origem do corpus da pesquisa – o banco de dados do
Projeto ALiMA, mostrando que essa influência, além de ser a nível nacional, também
restringe-se a níveis regionais e pode apresentar peculiaridades em cada região do país.
Considerações Finais
A língua, como destaca Levi-Strauss (apud CÂMARA JÚNIOR, 1995, p.188), “(...) é
a um tempo resultado, parte e condição da cultura.”. É justamente essa natureza da língua que
possibilita a seus usuários, por meio dela, veicularem seus valores, sua cultura. Nessa
perspectiva e considerando a presença maciça de línguas étnicas africanas no Brasil colonial,
a ideia de Fiorin e Petter, expressa no prefácio do livro África no Brasil: a formação da
língua portuguesa (2008, p. 9), ganha mais força, pois afirmam os autores que as palavras
africanas que se fixaram no PB não representam somente palavras em si, mas uma maneira de
ver e categorizar a realidade.
Com a dicionarização, a presença dessas palavras no PB toma um caráter mais oficial
e torna evidente sua relevância para a constituição de acervo lexical desta variedade do
português.
A língua falada hoje é o resultado do contato que aqui se deu/dá entre povos, línguas e
culturas diversas; da contribuição, muitas vezes anônima, de todos aqueles que
construíram/constroem este Brasil de muitos rostos e muitas vozes. Muitas palavras que
fazem parte do cotidiano do brasileiro têm sua origem em diferentes grupos linguísticos
africanos e muitas outras podem ser citadas além das que foram listadas neste trabalho.
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A análise feita aqui pode ser considerada uma prova cabal da importância do papel que
o negro desempenha na realidade histórica, linguística e cultural do Brasil e, principalmente,
do Maranhão.
Referências
PETTER, Margarida Maria Taddoni. Africanismos no Português do Brasil. In: NUNES, José
Horta; PETTER, Margarida. (Orgs.). História do saber lexical e constituição de um léxico
brasileiro. São Paulo: Humanitas, FFLCH, USP; Pontes, 2002, p. 223-234.
______. Termos de origem africana no léxico do português do Brasil. In: NUNES, José
Horta; PETTER, Margarida. (Orgs.). História do saber lexical e constituição de um léxico
brasileiro. São Paulo: Humanitas, FFLCH, USP; Pontes, 2002, p. 123-145.
SANTOS NETO, Manoel. O negro no Maranhão: a trajetória da escravidão, a luta por
justiça e por liberdade e a construção da cidadania. São Luís, 2004.
SILVA NETO, Serafim da. Guia para estudos dialetológicos. 2. ed., Belém: Conselho
Nacional de Pesquisa, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1957.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro.
São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
VIARO. Mário Eduardo. Manual de etimologia do português. 2. ed. São Paulo: Globo
Livros, 2013.
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Introdução
A literatura ocidental [...] constitui uma unidade, um todo. Não se pode pôr
em dúvida a continuidade entre as literaturas grega e romana, o mundo
medieval ocidental e as principais literaturas modernas; e embora sem
minimizar a importância das influências orientais, especialmente a da Bíblia,
temos de reconhecer uma estreita unidade que compreende a literatura de
toda Europa, da Rússia, dos Estados Unidos da América e da América do
Sul.
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todos em verso e recriações de contos muito antigos. A coletânea de Contos da Mãe Gansa
compreende oito contos, todos em prosa, “em linguagem clara, desembaraçada, direta,
sabiamente ingênua, que agradava plenamente às crianças e aos adultos” (COELHO, 1991, p.
90):
Foi Bakhtin quem primeiro deu suporte à ideia de um diálogo de múltiplas escrituras:
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Sant´Anna (1995) ou ainda subversão, para Grésillon e Maingueneau (1984, apud KOCH,
BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 30).
Genette (1982) propõe uma outra classificação, diferenciando o que denomina
relações de copresença – que equivaleria à intertextualidade explícita, em casos como os das
citações e das alusões – e relações de derivação, de que resultam novos textos, por
transformação, caso das paródias, ou imitação, como nas paráfrases. Como podemos observar,
as classificações se equivalem embora apresentem abordagens diferentes, mais discursivas
para Sant´Anna, mais estruturalistas para Genette.
As classificações são facilmente atribuíveis na maioria dos casos mas, no conto de
Baruzzi e Natalini (2008), a classificação por intertextualidade das semelhanças/captação,
que definiria a paráfrase, ou por intertextualidade das diferenças/subversão, que definiria a
paródia, parece-nos insuficiente para diferenciá-lo de outros textos em que essas marcas estão
evidentes. Seria necessária a proposta de uma outra categoria, que se referisse a casos de
retextualização em que apenas se estabelecem pontes com o texto-fonte, como o acima
referido, em que se propõe uma intertextualidade cronologicamente inversa. Optamos por
classificar o conto como paródia, por essa subversão cronológica.
Um das possibilidades ainda de intertextualidade, por imitação, é o pastiche que,
diferentemente da paródia, promove a reescritura de um texto-fonte, realiza a reescritura de
um estilo ou de um gênero textual, do que decorre ser apresentada por Koch, Bentes,
Cavalcante (2007) como intertextualidade estilística, na qual se inclui a intertextualidade
intergenérica.
Em resumo, na paródia, para Genette, promove-se
Para este trabalho, que tomará como texto/fonte o conto de Perrault (1967),
selecionamos os seguintes textos: Chapeuzinho Vermelho, reconto de Sâmia Rios a partir do
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conto original dos irmãos Grimm, Chapeuzinho e lobo mau, de Pedro Bandeira; Fita verde no
cabelo: nova velha história, de Guimarães Rosa; A verdadeira história de Chapeuzinho
Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini, e Chapeuzinho Vermelho em nossa
imprensa, disponível na internet.
Os textos selecionados apresentam fenômenos distintos e, ainda que possam ser
enquadrados em três tipologias predominantes – a paráfrase, a paródia e o pastiche –, as
diferenças de estratégias que apresentam mereceriam uma classificação mais precisa.
No caso dos contos em análise, o que podemos observar é que uma única categoria
não atende ao texto como um todo e o título, por exemplo, pode diferir de orientação, em
relação ao corpo do texto.
Na grande maioria das versões da história, os títulos são exemplos de intertextualidade
explícita, já que retomam o título do texto-fonte. Para Koch, Bentes e Cavalcante, a presença
explícita do intertexto no título determina o reconhecimento do texto-fonte, ainda que o autor
não seja mencionado ou que a presença deste texto seja pouco marcada.
A nosso ver, o texto que circula na internet é um exemplo claro de pastiche, entendido
neste trabalho como o definem Koch, Bentes e Cavalcante:
Concordamos com as autoras quando alertam para a dificuldade de definir o que pode
ou não ser considerado intertextual, tendo em vista que “[...] os títulos, os subtítulos, as notas
e as ilustrações compõem, na verdade, o próprio texto e só configurarão uma situação de
intertextualidade se tiverem sido extraídos de outros textos, para que se estabeleça a
interseção” (KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 132).
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realidade, com a morte, com a finitude da vida. O verde da esperança, da imaturidade, dos
chamados verdes anos, perde-se, como a fita inventada, com o amadurecimento da menina
que presencia a morte da avó. Em outras versões, as cores também são alteradas para reforçar
a intenção do autor. Em Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque (1994), a cor do chapéu é a
cor da própria menina, amarela de medo. E o medo é o obstáculo a enfrentar, como o lobo ou
a morte. Em O Capuchinho cinzento, o subtítulo explica a escolha da cor: Quando
Chapeuzinho vermelho envelheceu..., e o cinzento do capuz é também o dos cabelos
encanecidos da velhinha em que Chapeuzinho se transformou.
Dos textos selecionados, o primeiro é uma paráfrase do conto dos Grimm, ele próprio
uma paráfrase de Perrault. Na paráfrase, busca-se a identificação com o texto-fonte, o que se
pode observar com clareza nessa versão.
Em Chapeuzinho Vermelho, reconto (grifo nosso) de Sâmia Rios a partir do conto
original dos irmãos Grimm, na primeira folha a autora já anuncia tratar-se de uma nova
versão, um “reconto”, efetivamente uma paráfrase da versão dos irmãos Grimm, da qual o
texto pouco se afasta, e quando o faz é em razão em razão do objetivo da coleção, declarado
na última capa como uma adaptação para jovens leitores. Datada de 2009, esta versão parece
ter como orientação a redução da história; o diálogo entre o lobo e a menina, por exemplo,
que, na versão dos Grimm, compreendia quatro perguntas – orelhas, olhos, mãos e boca - é
transformado e resumido a orelhas, nariz e boca, sentidos essenciais. Outra orientação que
parece ter contribuído para as alterações desta paráfrase do conto dos Grimm é a atenuação do
desfecho final, em que o lobo é punido, mas sem a participação de Chapeuzinho – que, no
texto-fonte, enche a barriga do lobo de pedras, o que ocasiona sua morte – ou qualquer outro
indício que revele um espírito de vingança ou crueldade. O lobo, simplesmente “[...] teve um
fim merecido. Com o fim do lobo mau [...]” (RIOS, 2009, p. 21). Em tempos em que
predomina a preocupação com o politicamente correto, evita-se mencionar atos de crueldade
contra os animais, da mesma forma que, da versão de Perrault para a de Grimm, a história se
humaniza e Chapeuzinho é salva enquanto o lobo é punido.
As três versões seguintes são paródias, como se pode avaliar, a partir do que afirma
Ramos, mencionando Bakhtin:
Mas meu apelido eu sei. Todos me chamam de Chapeuzinho Vermelho” (BANDEIRA, 1997,
p. 15).
No confronto do lobo com o lenhador, momento crítico e de suspense, ouve-se (e
recrimina-se) a voz do leitor mais “safadinho“: “Foi mais do que um ronco. Foi... – Um pum!
Diria um leitor mais safadinho. Sem brincadeiras, tá? Esta história está chegando ao seu ponto
mais importante e é melhor prestar atenção em vez de ficar fazendo brincadeirinhas!”
(BANDEIRA, 1997, p. 37). Além disso, o jogo intertextual não se resume à retomada do
conto tradicional, há menção também a uma antiga e famosa cartilha de alfabetização: “[...] a
vovó viu... – A uva! – adiantaria aquele leitor que ainda se lembra das lições da cartilha”
(BANDEIRA, 1997, p. 22).
Nos aspectos que selecionamos para análise, vejamos como o autor renova e parodia o
conto tradicional: o título não revela o rumo da paródia, já que menciona simplesmente os
personagens centrais, antagonistas – Chapeuzinho e o lobo mau. Anunciado como mau, no
título, Bandeira cria um lobo que é apenas, como os lobos da vida real, animais “soltos e
famintos”, afinal “lobo não é burro”, prefere “ficar faminto e solto do que alimentado e
preso”, e o lobo da história é apenas “especialmente esperto e terrivelmente faminto”
(BANDEIRA, 1997, p. 12). O lobo é mentiroso, faz planos terríveis, é rápido, mas
contrariamente ao que se espera é atrapalhado, tropeça por causa dos óculos, crava os dentes
no pé da cama e, com o peso da refeição, é presa fácil para o lenhador, que usa a espingarda
para abatê-lo. O diálogo entre a menina e o lobo travestido de avó é mantido no texto
parodístico, e o desfecho segue a linha tradicional da punição do lobo, mas é contestador,
impõe de forma jocosa a reflexão, ”[...] pondo em xeque verdades prontas sobre a escola, a
família, a liberdade, a criação da obra literária...“ (RAMOS, 1991, p. 25).
Em A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro
Natalini, a originalidade maior está no fato de que, neste conto, a intertextualidade faz-se
subvertendo a linha do tempo, e as marcas intertextuais apresentam-se como raras menções a
uma história que o autor expressamente presume conhecida, mas que só acontecerá
posteriormente. O livro recorre a estratégias interativas para contar a história de um lobo que,
cansado de ser mal visto e perseguido, pede ajuda a uma menina – Chapeuzinho Vermelho –
para ajudá-lo a ser aceito.
O lobo reconhece o inusitado do pedido, mas está “canssado (sic.) de ser mal (sic.) o
tempo todo e de ninguéim (sic.) gostar” dele e declara que quer “ter boms (sic.) modos (e
melhorar a minha ortorgrafia (sic.)) e aprender a ser gentil uma vez na vida” (BARUZZI,
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Quanto ao desfecho, “Quanto ao que aconteceu depois... Bem, você conhece a história
oficial” (BARUZZI, NATALINI, 2008), o fim anuncia o verdadeiro começo da história, em
uma circularidade que é uma das originalidades desta versão.
A terceira paródia selecionada é o conto Fita verde no cabelo de Guimarães Rosa.
Embora popularmente se associe a ideia de paródia ao humor ou à ironia, é necessário levar
em conta o que afirmam Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 137): “A paródia se elabora a
partir da retomada de um texto, que é retrabalhado para obter diferentes formas e propósitos
em relação ao texto-fonte. As funções discursivas dessa reelaboração podem ser humorísticas,
críticas, poéticas (grifo nosso) etc”.
Sant´Anna afirma também que a paródia, diferentemente da paráfrase, não pretende
ser um espelho, a não ser que seja um espelho invertido. Ela se assemelha mais a uma lente
que “[...] exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado
num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo [...]” (1995, p. 33).
Diferentemente das que apresentamos anteriormente, não há humor ou ironia no texto,
mas uma prosa poética, em que a subversão em relação à fonte é minuciosamente trabalhada,
desde o título, que anuncia a história de Chapeuzinho Vermelho apenas na menção a uma
“nova velha história”. Neste conto a menina usa uma fita verde inventada, e não um chapéu.
A história acompanha as etapas tradicionais da história, com a determinação da mãe de enviar
Fita-Verde à casa da avó, com mantimentos. Não há lobos nesta história, apenas lenhadores,
responsáveis pelo extermínio dos lobos. Ainda assim, a menina escolhe o caminho mais longo
e demora a chegar, colhendo frutas e flores. O diálogo famoso é retomado e reinventado de
forma magistral e ocorre entre a avó e Fita-Verde, agora já sem a fita que a identificava e
anunciava sua condição de criança.
A constatação do tamanho exagerado de olhos, braços, nariz, boca, dentes, que
revelam a força do lobo e as respostas agressivas e positivas que este dá às perguntas da
menina, na história tradicional – para te olhar melhor, para te abraçar melhor, para te cheirar
melhor etc – transformam-se no conto de Guimarães Rosa em imagens de fragilidade - falar
agagado e fraco e rouco, braços magros, mãos trementes, lábios arroxeados, olhos fundos,
parados, rosto encovado, pálido, a avó murmura, suspira e geme – e as respostas são sempre
negativas – não abraçar, não beijar, não ver, nunca mais. De ameaçador, o diálogo passa a ser
comovente, uma despedida para a avó, um choque de realidade para a neta:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
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– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta... – a avó
murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta... – a avó
suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido?
– É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha... – a avó ainda
gemeu (GUIMARÃES ROSA, 1992).
Considerações finais
A título de conclusão, gostaríamos de deixar claro que temos consciência de que muito
mais se poderia dizer sobre a presença da intertextualidade em contos como Chapeuzinho
Vermelho.
Neste trabalho, procuramos classificar alguns textos que retomam a história de
Chapeuzinho Vermelho, identificando-os como paráfrases, paródias ou pastiches, servindo-
nos para isso da classificação proposta por Koch, Bentes e Cavalcante (2007).
Apresentamos alguns elementos que apresentam marcas intertextuais nem sempre
muito evidentes, mas reveladores da criatividade de cada autor e do universo de cadeias
intertextuais que permeiam qualquer texto.
Muitos outros elementos merecem estudo, muitas outras versões podem ser analisadas
e revelar aspectos diferentes dos que observamos. Parece-nos potencialmente produtiva a
utilização de histórias com tantas versões disponíveis para fins didáticos, inclusive no que se
refere à identificação das diferentes classificações da própria intertextualidade. A
comparação entre versões de uma mesma história facilitaria certamente o esclarecimento e o
reconhecimento de aspectos que, muitas vezes, apresentam apenas pequenas nuances de
diferenciação.
Concordamos com Barthes (1993, p. 49), quando diz: “E é bem isto o intertexto: a
impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário,
ou a tela da televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”.
Também neste caso é impossível desconsiderar o texto infinito constituído pelos
livros, pelas ilustrações, pelos filmes, melhor dizendo, pelas sensações táteis, visuais, sonoras,
que as formas de apresentação dessas histórias constituem, somadas às experiências de vida
que nos permitem reconhecê-las, apreciá-las e desvendar-lhes os segredos.
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Referências
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Fronteira, 1992.
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______; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade:
diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita. São Paulo: Cortez, 2001.
MENESES, Adélia Bezerra de. Vermelho, verde e amarelo: tudo era uma vez. Estudos
Avançados. v. 24 n. 69. São Paulo, 2010. Disponível em: <http;//www.scielp.php?pid=S0103-
40142010000200017&s...>. Acesso em: 27 maio 2011.
MIRANDA, Orlando. A garota do livro. São Paulo: Moderna, 1991.
PERRAULT, Charles. Contes. Paris: Garnier, 1967.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault (e um conto de Mme D´Aulnoy). Tradução de
Olívia Krähenbühl. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.
PIÈGAY-GROS, Nathalie. Introduction à l’intertextualité. Tradução de Mônica Magalhães
Cavalcante; Mônica Maria Feitosa Braga Gentil; Vicência Maria Freitas Jaguaribe.
Intersecções, São Paulo, ano 3, n. 1, p.230-244, 2010.
RAMOS, Conceição de Maria de Araujo. Chapeuzinho Amarelo/ Chapeuzinho e o lobo mau:
novas entonações de um velho som. [S.l.:s.n.], 1991.
RIOS, Sâmia. Chapeuzinho Vermelho: reconto de Sâmia Rios a partir do conto original dos
irmãos Grimm. São Paulo: Scipione, 2009.
SANT´ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e Cia. São Paulo: Ática, 1995.
TATAR, Maria. Contos de fada. Edição comentada e ilustrada. Tradução de Maria Luiza X.
de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
THOMÉ, Kiko Arquer. Chapeuzinho Vermelho na Mídia. Disponível em: <http://www.
zionsoft.com.br/colunas-artigos/murphy-era-otimista/chapeuzinho-vermelho-na-midia/>.
Acesso em: 27 maio 2011.
WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da Literatura. Tradução de José Palla e Carmo. 5. ed.
Sintra: Europa-América, s.d.
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Não é de hoje que reconhecemos a importância da obra de Augusto dos Anjos e sua
representação na cultura nacional. Todavia, apesar de parecer que tudo já foi dito, o poeta
ainda nos surpreende com algo novo e vivo cada momento em que nos deparamos com a
riqueza de seus textos. Dentre tantos aspectos que merecem uma reflexão sobre sua forma de
lidar com a palavra enquanto materialidade ideológica está o aspecto singular com que utiliza
a memória e seus efeitos de sentido. Considerado como um poeta simbolista e até parnasiano,
Augusto é visto, também, como pré-modernista conforme a predominância de traços
característicos do estilo modernista. A obra deste ilustre paraibano, valorizada até
internacionalmente, nos possibilita refletir sobre os percursos discursivos que tanto
impulsionam o debate de seus inúmeros admiradores.
Descrever a infinidade de traços que o distinguem é um exercício de fôlego, mas há
um aspecto merecedor de análise que se torna imperativo na agenda de discussões daqueles
que se arriscam em analisá-lo – nos referimos à memória e seus modos de subjetividade.
Interessa-nos refletir sobre os procedimentos de rememoração que o autor imprime em dois
importantes momentos discursivos: os sonetos “Senhora, eu trajo o luto do passado” e
“Debaixo do tamarindo”. Com base nos pressupostos da Análise do Discurso francesa,
sobretudo na esteira de teóricos como Pêcheux, Foucault e Le Goff, procuramos discutir os
principais elementos presentes na obra de Augusto dos Anjos que nos levaram a identificar o
devir da memória enquanto modos de ressignificação do dizer. A memória é vista como um
lugar que não está no passado, mas nos é retomada em cada processo de discursivização cujos
efeitos de sentido são entrelaçados por silêncios e já-ditos. A perspectiva discursiva contribui
para a compreensão de que os enunciados rompem os limites da estrutura frasal ao instaurar
elementos sociais, históricos e ideológicos. E isto é perfeitamente ajustável quando nos
deparamos com o discurso literário.
Caracterizado pelo senso comum como um poeta de textos sombrios e obscuros por
apresentar o que há de mais escatológico na sociedade, defendemos que é justamente nesta
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aparente obscuridade advinda da opacidade de seu discurso literário, que o poeta imprime em
sua linguagem peculiar, procedimentos de memória enquanto condição de sua própria
existencialidade. É com base nos aspectos significantes do (re)dizer que faremos uma
comparação entre os dois textos supracitados a fim de que possamos evidenciar como ambos
consistem lugares de memória. Uma memória que atua na discursividade por trazer vozes
outras, olhares transversos capazes de elucidar e resgatar/resguardar outras memórias
possíveis. Para tanto, sistematizamos o trabalho em dois momentos: Primeiramente
discutimos o conceito de memória e sua transdisciplinaridade: a memória na perspectiva
psicanalítica, histórica e discursiva – a que nos interessa. No segundo momento veremos
como os dois eventos enunciativos transitam entre o dizer e o não dizer para construir
verdades. Em “Senhora, eu trajo o luto do passado” vemos o discurso da morte como
condição de um existencialismo – um paradoxo compreensível e constitutivo de sentido. Já
em “Debaixo do tamarindo” volta o tema da infância quando o poeta materializa o
saudosismo e recorre aos arquivos para testificar o presente – o que nos leva a crer que a
memória revisitada por Augusto parece fazer parte de um movimento de constante
atualização. É como se o passado fosse a todo o momento recuperado para significar a
atualidade.
sujeito procure utilizar estratégias para “escapar” desse confronto, deixa sempre lacunas no
decorrer do discurso, enunciados repletos de ideologias, pois não existe um signo neutro.
Então, discursivamente, a memória não seria apenas a lembrança de algo que foi esquecido,
algo tão somente voltado para o lado psicológico do indivíduo – entramos, pois, no território
do discurso, na projeção de uma memória discursiva definida por Pêcheux (1997, p.52) como:
Aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem
restabelecer os “implícitos” (quer dizer mais tecnicamente, os pré-
construídos elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que
sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.
é o que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos
milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou
apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a
sinalização, no nível das performances verbais (...) mas que tenham
aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2004, p. 146).
Deve dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma
verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às
leis de um devir estranho. (...) não escapa à historicidade: não constitui,
acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável, uma estrutura
intemporal; define-se como conjunto das regras que caracterizam uma
prática discursiva. (FOUCAULT, 2004, p.144 e 145).
É o a priori histórico que nos permite ver como os discursos são tomados por um
devir. E o discurso literário que é entrelaçado de elementos sociais, históricos e ideológicos
deixa materializados rastros de memória que falam por meio de não ditos, de silêncios dignos
de sentido.
Algumas tendências culturais e, sobretudo críticos literários mais radicais, costumam
abordar o discurso literário como a espaço definido pelo estilo individual do poeta. Muitos
chegam a considerar uma espécie de profanação a análise de uma obra na perspectiva mais
sociológica. Tal “debate” reproduz formações ideológicas que foram cristalizadas pelo tempo.
Durante longos anos perdurou a ideia de que os literários eram seres ilustres, dotados de uma
genialidade – característica ausente em outros seres mortais. Não podemos deixar de
considerar o valor de criatividade do poeta, já que estamos no campo da arte também,
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Visto por alguns como pré-modernista, como dissemos, Augusto dos Anjos se firmou
como o poeta de uma obra complexa em que predomina desde o escatológico (menção aos
vermes, escarro, gritos, sangue, miséria) a uma carnavalização (contraste com o alegre, o
movimento) numa confluência de dizeres que submetidos aos modos de subjetivação. É neste
exercício de ir e vir que ressurgem dois textos marcantes em sua obra: “Senhora, eu trajo o
luto do passado” e “Debaixo do tamarindo”. Embora pareçam contraditórios por trazer em
primeiro momento o tema da morte e em segundo momento por fazer voltar à infância, os
dois textos retratados se coadunam, resgatam histórias, reacendem memórias.
A morte, que aparece de forma crua e natural segundo o crítico literário Ferreira
Gullar, é vista como tema recorrente na obra de Augusto dos Anjos. Para retratá-la o poeta
recorre a elementos simbólicos mantidos no jogo de simbioses que formam uma unidade de
sentido. Mesmo mantendo os devidos cuidados entre o eu inscrito em sua obra e sua própria
vivência, não devem ser desconsiderados que seus textos, ou seja, a materialidade da
ideológica testifica muito de sua personalidade. Os poemas de Augusto constroem um jogo de
similitudes com seu comportamento social, mas, sobretudo, figuram um espelho da sociedade.
Amor, inocência, pureza, luminosidade tão presentes em escolas anteriores (sobretudo o
romantismo), aparecem em Augusto como elementos secundários. Mesmo que a estrutura dos
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Senhora, eu trajo o luto do passado
Senhora, eu trajo o luto do passado,
Este luto sem fim que é o meu Calvário
E anseio e choro, delirante e vário,
Sonâmbulo da dor angustiado.
1
Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/augusto12.html
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No discurso literário, como todo discurso, as palavras exercem uma função discursiva.
São enunciados povoados de outros enunciados, pois só fazem sentido conforme as condições
em que são produzidos. A literatura, obviamente, desperta uma infinidade de gestos de
interpretação porque atingem o emocional chegando ao campo do transcendental. Portanto, os
dizeres que nos são apresentados no discurso literário não podem ser analisados em seu
sentido literal, mas mediante jogos de representação simbólica. Versos como “Cansado de
chorar pelas estradas. Exausto de pisar mágoas pisadas/ Hoje eu carrego a cruz das minhas
dores, advindos de A cruz do pânico (Augusto de Anjos), devem ser postos dentro de uma
configuração metafórica, pois só assim, poderemos compreender o que significaria dizer que
alguém vai “pisar mágoas pisadas”.
O primeiro verso do soneto em discussão nos traz evidências do passado. A memória é
retomada com nuanças de um vazio, do luto que é vivenciado por meio de novas
significações. Há um relato que deixa eternizar a dor “esse luto sem fim que é o meu
Calvário”. O sujeito do discurso afirma que traz o passado, ou seja, o processo de
rememoração parece transpor os limites da temporalidade para personificar o presente.
A distinção entre passado e presente gera infinitas interpretações conforme cada
campo científico como a Psicologia, História, Antropologia. No terreno da Linguística,
embora a oposição esteja voltada para as marcas linguísticas (flexão dos verbos), devemos
considerar a análise para além da estrutura. Benveniste (1965) em sua releitura de Saussure
estabelece a distinção entre o tempo da seguinte forma: a) tempo físico – contínuo, uniforme,
infinito, linear, divisível à vontade; b) tempo cronológico ou tempo de acontecimento que,
socializado, é o tempo do calendário; c) tempo linguístico, que tem o próprio centro no
presente da instância da palavra, o tempo do locutor.
narram tão somente venturas que ele insiste em lembrar, mas são recuperadas, aqui, neste
novo lugar de memória – o soneto – para que seja mantida uma relação de comparação entre o
ontem e o hoje – seu estado atual.
É o que ocorre também no segundo verso, quando é evidente o a priori histórico
conduzido pelo poeta. As cenas, os acontecimentos são descritos de modo mais incisivo
quando são narrados os momentos alegres que se contrapõem a sua finitude, seu prazo de
validade. Nos últimos versos instaura-se um processo dialógico. Há uma projeção do outro
partícipe da enunciação que é determinante para a construção dos efeitos de sentido. A
incompletude do sujeito se revela no momento em que se faz necessário emoldurar a imagem
desta “Senhora”, para firmar verdades. Ele confessa sua dor, externaliza seu saudosismo e
trava um conflito entre o passado e o presente, a vida e a morte, o amor e seu fim.
Os percursos discursivos são materializados na delimitação do tempo, na simbologia
das sombras alimentadas pela opacidade do dizer – nos referimos, mais especificamente, ao
contraste que é feito entre o Ocaso (entardecer, o cair da noite) e a Aurora (o amanhecer).
Aqui, neste evento discursivo, temos um sujeito lacaniano, clivado, censurado, em conflito
com a própria existencialidade. A memória transita entre a tristeza, o luto e a vida, quando são
recuperados seus momentos felizes, as venturas que parecem continuar na memória, no devir
constitutivo de sentido. O passado deve voltar através de trajes – trajes de luto – que ele
insiste em reafirmar ao longo do texto. Não adiante apenas sentir a ausência ele se reveste
dela.
Os jogos de relação configurados no texto transitam entre o dizível e não dizível, e por
mais que atuemos discursivamente na interpretação de uma obra como as que constituem o
discurso literário, não escapamos de considerar a articulação que consistem as técnicas de
representação. É o que observa Foucault em sua singular análise sobre o quadro “As meninas”
do pintor Velásquez. Cada elemento assegura uma nova imagem – uma grande metáfora.
Por mais que se diga o que se vê, o que se vê jamais se aloja no que se diz, e
por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.
(FOUCAULT, 2002, p.12).
enunciados que ocupam aqui uma função – a função enunciativa - que seria aquilo que faz
com que cada frase, cada proposição, cada dito, seja pronunciado segundo as condições
possíveis de sua existência. O que está em jogo não é o que é dito, mas como é dito e as
condições em que foram produzidos. É, enfim, a função que esse enunciado ocupa na cadeia
discursiva.
As sucessões dos elementos selecionados no texto condizem com a realidade
momentânea. O luto, as lembranças das venturas do passado não estão mais posicionadas em
um ponto fixo, mas exercem funções em outros períodos distintos. Constituem sentido ainda
hoje, no século XXI, e levantam os mesmos dilemas existenciais típicos da modernidade.
Em “Senhora, eu trajo o luto do passado” ouvimos uma espécie de grito, de clamor por
algo que se perdeu. Embora o luto tenha surgido no passado, os resquícios da alegria e
momentos de prazer se entrecruzam em reflexos de memória. Para preservar a atmosfera
sombria e saudosista o sujeito inscrito na tessitura do texto tenta manter um certo sigilo, um
mistério e um segredo contido na dor (conforme faz na terceira estrofe). Ele age, pois, no
silêncio. Obviamente a análise do soneto não está circunscrita somente nestas poucas
observações, pois discutir a obra deste poeta paraibano é entrar na ordem arriscada do
discurso, como diz Foucault.
O segundo momento do trabalho compreende a análise do poema “Debaixo do
Tamarindo” que funciona como um lugar de memória constituída de efeitos de sentido.
Retomando o texto anterior discutimos que o passado vem envolto por um sombreamento, a
dor/luto é o próprio agasalho do sujeito que nos é apresentado, mas, ainda assim, podemos ver
lampejos de uma claridade, quando ele relata os momentos felizes com a amada. Agora, no
novo acontecimento, o segundo texto, há novamente a retomada dos temas do passado, mas o
sujeito discursiv especifica, detalha as cenas da infância e deixa nas marcas do (re)dizer a
importância da árvore (tamarindo) que aqui é personificada como a figura de um ente
familiar, ou ainda, o próprio poeta.
Não há figura mais representativa na obra de Augusto dos Anjos do que o tamarindo.
Desde seu surgimento “Debaixo do tamarindo” tem gerado profundas reflexões porque
reproduz o real – ele existe, e continua relutando com o tempo. A ficção se confunde com a
realidade, a verossimilhança está presente de modo dinâmico. O tamarindo é uma árvore de
longos galhos, que está situada, ainda hoje, no Engenho Pau D’arco, município de Sapé/ PB,
Conforme vemos na imagem seguinte:
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O tamarindo tão cultuado pelo poeta (embora esteja passando por um processo de
revitalização, já que o tempo se encarregou de deixar sequelas profundas), ainda mantém sua
altivez e nos faz entender a razão de tamanha devoção. Augusto, mediante seu olhar
minucioso diante da vida, e pela forma como seleciona os enunciados, percebia o valor desta
árvore, sobretudo nos momentos de profundos conflitos pessoais. Vejamos o que seus versos
revelam adornados pelos lampejos da memória.
Debaixo do Tamarindo2
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
2
Disponível em: http://www.escritas.org/pt/poema/12229/debaixo-do-tamarindo
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Na opacidade do dizer há nestes versos a busca pelo eterno, o que nos leva a pensar
no aparente paradoxo entre parar a vida – morrer – e o ressurgimento de sua imagem através
da sombra é o que permite/garante a continuidade da vida, ou seja, a eternidade. O tamarindo,
neste sentido, é a própria personificação de Augusto. Tomando sempre certa cautela em
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dissociar o caráter biográfico da obra do poeta, não há como negar ou silenciar que o
tamarindo representou em sua vida. Não apenas por ser um lugar de refúgio (conforme fala
nos primeiros versos), mas por cultivar sua memória e imprimir na sombra, sua alma. O
tamarindo tem, assim, uma dupla face: o companheiro das árduos horas, e analisando o
processo interdiscursivo trata-se da outra face de Augusto, pois sua sombra está lá. Ele morre,
mas continua encarnado através da árvore que é tida como um lugar de memória e continua,
ainda hoje, em pleno século XXI reproduzindo sentidos, gerando novos gestos em quem visita
o local. A força da natureza existente no tamarindo ratifica uma história-testemunho. No
poema, em alguns momentos há um certo silenciamento do eu-lírico que cede lugar ao seu
objeto cultuado – o tamarindo. Ele dita o ritmo dos acontecimentos: a morte do pai, os
momentos difíceis resultantes de árduos trabalhos; a própria história do país que é revelada
através da flora, enfim os momentos mais representativos da vida do poeta.
Ao longo do tempo a sociedade foi instituindo lugares de memória para evidenciar a
história e cultuar o passado. Os monumentos, bustos de ilustres da história, museus,
bibliotecas, os próprios arquivos computacionais – técnicas típicas da modernidade – são
tidos como espaços que se encarregam de resguardar a memória. Tal como na Idade Média
em que os livros, ou o grande acervo de produção intelectual eram postos longe dos olhos da
sociedade, em lugares de difícil acesso, agora todo e qualquer sujeito social pode manipular
(no sentido de manuseio) a memória, conforme as condições que lhe são apresentadas.
Ao reler Nietzsche, Foucault estabelece rupturas no campo científico, sobretudo
quando passa a questionar a história tradicional. Entre os vários conceitos polêmicos que tanto
o inquietaram estava a questão da “verdade” como condição acabada, irrefutável. Em sua
arqueologia retoma as categorias de documento e monumento.
Vejamos como isso se dá no campo da história: Se o historiador precisa de provas para
evidenciar o passado como condição de verdade, devemos considerar o documento enquanto
monumento. E a verdade está submetida, fabricada, por meio de “jogos” – “jogos de verdade”.
Para Foucault (2004, p.157), “a arqueologia busca definir (...) os próprios discursos, enquanto
práticas que obedecem a regras. (...) Ela não trata o discurso como documento, como signo de
outra coisa. Ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento.”
(grifos do autor). Para Veyne (2008, p.54), “o documento seria todo acontecimento que deixa
uma marca material.”
É na reflexão estabelecida entre documento/monumento que os sentidos se instauram e
retomam aspectos significantes. Buscar “enxergar” os sentidos presentes na organização dos
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arquivamento da história (fotos, pinturas, recursos tecnológicos), Augusto dos Anjos retira da
própria natureza os elementos que vão se metamorfosear em um inventário de acontecimentos
passados. Seu lugar de memória tem longos galhos e produz sombras para refugiar os pobres
corações aflitos. O processo de rememoração, portanto, não pode parar, mas está a todo o
momento sendo reformulado, recontado em forma de de pré-construídos, já-ditos que se
encontram na dispersão e descontinuidade do (re)dizer.
Considerações finais
Referências
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 6ed. São Paulo, Edições Loyola, 2000.
______. O que é um autor. 3 ed. Vega: Passagens, 1992.
______. Arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004.
______. Microfísica do poder. 21ed, Rio de Janeiro, Edições Graal, 2005.
______. As palavras e as coisas. 8 ed. São Paulo, Marins Fontes, 2002.
______. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 2009.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 2003.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: Estrutura ou acontecimento. 2ed. Campinas, Pontes, 1997.
______. Papel da Memória in: ACHARD, Pierre. Papel da memória (et al). Campinas,
Pontes, 1999.
VASQUEZ, Pedro. Fotografia: reflexões e reflexões. São Paulo, Lpm, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4ed. Brasília,
UnB, 2008.
Sites pesquisados
Introdução
social é assimilada pelo sujeito através dos signos, que ganham novos sentidos nunca
estabilizados ou acabados, sempre em constante mutação.
Na poesia augustiana, “[...] o ‘eu’ expresso converge plenamente com a figura do
autor, visto que se pode apreender certa ‘totalidade’ que ressoa dessa convergência, pois o eu
‘concreto’ é posto em sua condição ‘determinada’ nas entranhas do poema”. (DUARTE
NETO, 2011, grifos do autor). Essa convergência, não é senão a relação do autor e seu outro
estabelecida no convívio dialógico do enunciado concreto.
Com essa condição, é preciso que os sujeitos estejam devidamente constituídos numa
situação real de diálogo, porque “compreender é opor à palavra do locutor uma
contrapalavra.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 137, grifos dos autores). O sentido do
discurso se ajusta às reações imediatas do ouvinte, passa de um a outro num intercâmbio
respondente, em uma relação em que a compreensão não depende somente da intenção de
quem enuncia em um contexto, mas de todo repertório de quem ouve.
Essa inter-relação implica dizer que todo sentido se multiplica cada vez que uma
palavra é pronunciada ou escrita, tornando a língua viva, dinâmica e pronta ao diálogo através
dos signos numa situação contínua de interação. Assim, elas já vêm impregnadas de uma
interpretação, avaliação ou julgamento de valor. (VOLOSHINOV, 1993 [1926]). Nada
permanece estável nesse processo, a parte significativa da língua é absorvida pelo tema, que
ressignifica a palavra na realidade concreta.
A negociação do diálogo acontece por um gênero escolhido pelo sujeito. No caso, é o
gênero poema, que organiza o dizer do sujeito e efetua também a organização das formas
linguísticas que compõem o enunciado. Os elementos constitutivos do gênero devem ser
especificados pelo conteúdo temático (o conteúdo do gênero), pela forma de organização
textual (construção composicional) e pelos recursos linguísticos (o estilo, o próprio gênero)
(BAKHTIN, 2000). Enquanto elementos determinados por essas três dimensões, os gêneros
se organizam pelo contexto linguístico-textual e pela sua dimensão social, que inclui o tempo
e o espaço da ação comunicativa, a sua situação de interação e a sua orientação valorativa.
Portanto, não se pode analisar um gênero sem levar em conta a ação totalizante de seus
elementos.
Com esta posição, a palavra do poeta também passa a ser entendida por uma visão
totalizadora que a torna signo ideológico, produto social e verbal, constituída pelo seu caráter
semiótico, que lhe confere a capacidade de ganhar novos significados em contextos diversos.
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A poesia de Augusto Anjos é lida por diferentes abordagens temáticas que realçam
suas experiências de vida, suas ânsias em monólogos, sua ênfase na temática da morte, seus
aspectos biográficos, sua inquietação filosófica e sua preocupação com a linguagem vinculada
aos veios naturalistas. O poeta, situado cronologicamente, no Pré-Modernismo, na verdade,
não pertenceu a nenhuma escola. Autor de um único livro, Eu, publicado em 1912, foi
parnasiano, simbolista, modernista, construindo uma poesia pluridimensional, estabelecida em
diálogo de confluências.
Entre tantos que se debruçaram sobre a obra, destacam-se nomes da crítica como
Helena (1977), Magalhaes Jr.(1977), Gullar (1995), Soares (1996) e Duarte Netto (2011),
todos, reconhecendo, de forma unânime, a valorosa criação poética do autor, principalmente,
em sua forma inovadora de tratar a realidade da existência humana, em outros termos, do
lugar único em que o homem participa do existir enquanto centro singular de valores.
Na linha de Lúcia Helena (1977, p. 23) prefere-se a evidência de uso da palavra por
esse sujeito-autor, que, na visão da autora, “reverencia o léxico repudiado pela estética do
‘belo’”. Nos escritos de Órris Soares (1996 [1920]), a crítica, embora não tenha privilegiado a
dimensão estética, deixa entrever caracteres biográficos como o andar desengonçado do poeta
e a imagem magra e cambaleante muito reproduzida nos poemas do Eu (1998) como, por
exemplo, em “As cismas do destino” e “Numa dança de números quebrados”. Nas
considerações de Magalhães Jr. (1997, p. 265), um de seus biógrafos, Eu é um “livro de
estreia, de verdadeira estreia, por ser de um poeta ainda ontem absolutamente ignorado; e hoje
até, no bom sentido, se pode dizer – um livro de escândalos”. Já em Ferreira Gullar (1995) se
postula um estilo prosaico que flui entre o extrínseco e o intrínseco, entre o belo e o asco,
rompendo com todas as conveniências verbais e sociais. Do aparato crítico augustiano, no
dizer de Duarte Neto (1997, p. 237), as reflexões de Rosenfeld (1996) dão “[...] um merecido
enfoque tanto à forma como também ao conteúdo da obra”.
Independentemente da crítica, Anjos é um poeta para ser lido, degustado, discutido,
recitado, encenado, haja vista as suas múltiplas faces frente aos valores da existência. Com
essa leitura ampla e constitutiva chega-se a compreender toda sua experiência estética
produtora de sentido.
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O sujeito-autor no diálogo
discursos. Esse outro está em si próprio, de forma que o silêncio também veicula uma
enunciação.
A preferência pela voz de primeira pessoa em “E olho o teto. E vejo-o, ainda, igual a
um olho, Circularmente sobre a minha rede!” demonstra o ato responsável, paritário que dele
o homem não tem como fugir. Sobre ele recai as perturbações, a vulnerabilidade do outro, a
autoculpa, a experiência malfadada, o abatimento moral, a prostração física, a vergonha, o
arrependimento, enfim a catarse da vida moral.
O embate com esta responsabilidade se dá a partir do ponto de vista do outro, que
movimenta a palavra em um território compartilhado em que a sua posição é sempre mediada
pelas intenções desse outro. Nesse território, não há espaços para discursos únicos de sentido,
para as unidades monológicas do dizer. Tudo é vivenciado numa intensa relação dialógica,
porque a natureza da língua é mutável, o que significa ser impossível um sentido estabilizado
ou pronto, acabado, definitivo.
A consciência do sujeito que fala no poema não se sobrepõe, mantém-se no mesmo
princípio de igualdade, inclusive em relação às posições correlacionadas com a do outro,
enquanto voz situada lado a lado com outras vozes. É o direito de a palavra ir à palavra,
situando subjetividades, deslocando sentidos em uma atividade de compreensão ativa e
responsiva.
Este agir, em relação aos atos de outros sujeitos, possui, em sua articulação, aspectos
psíquicos, advindos de uma identidade relativamente fixada e absorvida de um outro no
mundo concreto; aspectos sociais e históricos do ser-no-mundo do sujeito; e aspectos
avaliativos responsáveis, firmados por esse sujeito que age conforme sua formação identitária,
cujo princípio se cristaliza pelos efeitos coercitivos de suas relações sociais. (SOBRAL, 2010)
A avaliação pelo uso do signo ideológico aponta essa responsabilidade moral diante das ações
da vida, diante da autoatividade, do dever-ser, enfim, da posição dos sujeitos em relação às
suas atividades, no caso, a atividade poética.
Considerações finais
evidentes as tonalidades dialógicas que se pautam pela métrica, pela rima e pela simetria dos
versos em intensa relação desse sujeito com seu interlocutor.
Apesar da opção por uma estrutura composicional clássica como o soneto, o sujeito é
inovador para sua época, absorvendo expressões da ideologia cotidiana como a definição que
ele tem de consciência, o emprego de sequências nominais de forma fragmentada e realçada
pelo acabamento da compreensão, que se marca pelo uso gramatical do ponto.
O aspecto criativo provém das apreciações valorativas dadas às palavras, enquanto a
singularidade do sujeito modela-se na relação de valor estabelecida no discurso. Nesse
processo ativo responsivo, esse sujeito-autor assume uma posição política, filosófica e ética
diante da vida, expondo realidades, posicionamentos e diferenciado ponto de vista sobre o
tema.
Referências
ANJOS, A. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p.10.
Disponível em: <http://bib.virt.futuro. usp.br>. Acesso em: 06. out. 2014.
BAKHTIN, M.M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 279-326.
______. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética da criação verbal. Trad.
Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2010a. p. 3-186.
______. Por uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos
Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro e João Editores. 2010b.
BAKHTIN, M.M./ V.N. Volochínov. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de
Michel Lahud e Yara Frateschi Veira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
DUARTE NETO, H. Augusto dos anjos ou um eu para além do puro biografismo.
In: Revista Literatura em Debate, v. 5, n. 9, ago.-dez., 2011. , p. 203-222 Disponível em:
<br/index.php/literaturaemdebate/article/view/615/114>. Aceso em: 16 out. 2014.
______. A recepção crítica à obra de Augusto dos Anjos In: Anuário de Literatura, 1997, p.
225-240. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/download/>.
Acesso em: 5 nov. 2014.
GERALDI, J. W. João Wanderley Geraldi. (Entrevista). In: XAVIER, A. C.; CORTEZ, S.
(Orgs.). Conversas com linguistas: virtudes e controvérsias da Linguística. Rio de Janeiro:
Parábola, 2005. p. 78-79.
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O poema Asa de Corvo está entrecortado por uma espacialidade interna de ordem
mimética. Todos os semas cronológicos transformam-se na a - temporalidade e na a-
espacialidade imanentes nestes versos augustianos, segundo Portela (1974).
O tema em evidência é a antítese morte/vida:: vida/morte, pois a morte é a razão de ser
da existência humana. E o poeta se julga um homem perseguido pela falta de sorte, pelo
destino morte (metafísica) - tema universal.
Nesse sentido, Croce alude que os temas nada mais são que a matéria prima da
literatura, adquirindo importância, conforme vai transformando-se em drama, epopéia, poesia
ou novela. Elizabeth argumenta que a unidade de um tema encontra-se no denominador
comum espiritual de todas as versões, o que significa que o denominador comum de um tema
é a combinação daqueles motivos dos quais se necessitam para caracteriza-lo como tal. Já
Trousson sustenta que a identificação de um tema só é possível, decompondo-o em seus
componentes essenciais, ou seja, os motivos (WEISSTEIN).
Assim, o tema é comparado ao sol cujos raios são os motivos; é comparado a um
tópico frasal em que o autor dá asas à sua imaginação, criando e recriando todo o
emaranhado, para a montagem de sua peça literária, tornando, portanto, assunto muito
complexo e polêmico entre os estudiosos da literatura comparada.
Motivo
O motivo, conforme se frisou, é a causa que impulsiona a fazer algo, por exemplo,
pesquisar os motivos de uma ação, assim, o motivo é a causa.
O poema permite-nos detectar três motivos:
1) obsessão do autor pela morte;
2) o autor é dotado do mau destino, de má sorte, do sofrimento;
3) a morte metafísica (morte dos valores morais e espirituais do homem).
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Símbolo
Símbolo é figura, objeto que tem significação convencional, por exemplo, o cachorro é
símbolo de fidelidade. No sentido teológico, é fórmula que contém os principais artigos de fé:
o símbolo dos apóstolos. Na química, letras adotadas para designar os corpos simples: Fé é o
símbolo do ferro.
Símbolo é o fundamento de tudo quanto é. É a idéia em seu sentido originário, o
arquétipo ou forma primogênita que vincula o existir com o ser. Por meio dele, o ser se
manifesta em si mesmo: cria uma linguagem, inventa os mundos, joga, sofre, muda, nasce e
morre, pois, através do símbolo, a existência, e a realidade do mundo sucessivo deixam de
exercer sua tirania sobre a mente (CHEVALIER & CHEERBRAN).
Em face das idolatrias da existência e do devenir, o símbolo remete-nos ao a-temporal
e supraconceitual. Por isso é chamado de idéia-força. O símbolo é o fator de essência, daí
estar no umbral do não ser. Ver o símbolo supõe, portanto, o morrer ou talvez o despertar de
novo do esquecimento que é outra forma de memória, na concepção de Borges (CHEVALIER
& CHEERBRAN).
Os símbolos são para sonhar, e o sonho, quando é reparador, é sempre uma partida que
prefigura e atualiza a morte – sonhar para morrer. O símbolo, não se pode entendê-lo. Faz-se
em nós quando a mente, o sentimento, o instinto e o corpo somático põem-se em consonância
de maneira que haja ordem naquela “cidade maiúscula” que Platão descreve com letras
grandes em a Politéia (CHEVALIER & CHEERBRAN).
Na realidade, considerados desde o símbolo ser e saber são uma mesma coisa. A
presença dos símbolos possibilita, pois, aquele discorrer sobre eles que constitui a sociedade,
a história, a cultura.
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Os símbolos são o mais antigo cantar. O principal deles é a natureza virgem, todas as
técnicas que delas procedem encontram símbolo em seu caminho. Devem, por isso, conjugar
seus esforços para decifrar os enigmas que estes planeiam; associar-se para mobilizar a
energia que aqueles guardam condensada. Pouco é dizer que se vive em um mundo de
símbolos: um mundo de símbolos vive em nós.
Jung refere que símbolo, certamente, não é uma alegoria nem um simples signo, é uma
imagem apta para designar o melhor possível da natureza obscuramente suspeita do espírito.
Para Becker, o símbolo pode ser comparado a um espelho que devolve a luz segundo a
cara que a recebe. E podemos dizer, ainda, que é um ser vivo, uma parcela de nosso ser em
movimento e em transformação, de modo que, ao contemplá-lo, ao captá-lo como objeto de
meditação, contemplamos também a própria trajetória que se dispõe a seguir, captando a
direção do movimento no qual o ser é levado.
Assim, símbolo é uma representação, una conotação de algo. Os símbolos são como os
fonemas: existem e não existem. Ele pode ser histórico, literário, primordial. Todos somos
portadores de símbolos, da simbologia greco-romana: mito símbolo representação sob a
forma de se contar algo (nascimento, morte, amor, busca).
Eis a simbologia do poema em estudo:
França, conhecido anualmente, é o “Prêmio Goncourt”, instituído por estes dois irmãos. Neste
símbolo funcionam dois discursos estranhos: código metapoético e código
animal.(CHEVALIER & GHEERBRANTT).
Siameses: código animal. Siamês, adj. do ou pertencente ou relativo ao Sião (atual
Tailândia) ou natural ou habitante de Sião.
Irmãos siameses: pessoas que são inseparáveis, por alusão aos irmãos gêmeos Chang e
Eng, nascidos em 1811, na Tailândia, e mortos em New York, em 1874, ligados entre si por
uma membrana situada à altura do peito. (FERREIRA).
“Como os Goncourts, como os irmãos siameses!” (v. 8)
Morte: fim absoluto de algo positivo e vivo. Aspecto perecedor e destruidor da
existência. Indica o que desaparece na inelutável evolução das coisas. Introduz-nos nos
mundos desconhecidos dos infernos ou dos paraísos; mostra sua ambivalência, análoga à da
terra, e vincula-a aos ritos de passagem.
“A morte , costureira funerária” (v.13).
Homem: centro do mundo dos símbolos. Síntese do mundo. Modelo reduzido do
universo.
“Cose para o homem a última camisa” (v.14).
Camisa: símbolo de proteção, vestimenta.
“... a última camisa” = mortalha.
A partir do que foi resenhado, pode-se conferir que a intertextualidade implica uma
série de elementos linguísticos, tendo por base a sintaxe do texto, com vistas a que este
funcione, o que significa que ela exige uma leitura filológica, histórica, estética, uma leitura
comparada, a partir da diacronia, para ver o que está escrito e o que se lê, os seja, as
implicações sobre um texto com uma finalidade, qual seja, manter a coerência.
Referências
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 31 ed. São Paulo: Livraria São José, 1971.
______. Eu e outras poesias. Edição Comemorativa dos 100 anos do EU. João Pessoa:
Academia Paraibana de Letras; Brasília, DF: Gráfica do Senado, 2012.
CHEVALIER,J & GHEERBRANT, A . Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial
Herder, 1986.
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O ENIGMA DO EU
Como desvendar o mistério do “EU”, livro que rompendo a tradição inaugurou nova
poética no Brasil? Como considerar sua escola literária e, finalmente, a intrincada imaginação
do poeta Augusto dos Anjos?
Há evidências de aspectos discursivos, aportando composições em determinada escola
poética. Na primeira fase do poeta, surgem poemas assemelhados ao parnasianismo. Ainda
nessa fase inicial, a poesia anjelina também se apresenta aliterante e fonética, com palavras-
símbolo grafadas com maiúscula, ao modo do simbolismo. Na linha do tempo, sob a ótica do
movimento literário de 1922, antecipando-se aos cânones vigentes, Augusto é passível de ser
aludido pré-modernista. Insuficiente paisagem critica? Hoje o poeta é considerado moderno.
Abrahão Costa Andrade, enfático, assinalou: “Não foi Manuel Bandeira e sim Augusto dos
Anjos o primeiro poeta moderno brasileiro”.
Contudo, importa a essência da matéria poética de uma poesia estranha, instigante ao
atiçar os sentidos. Especialmente sensações visual e musical, invocando atenção de olhos e
ouvidos. No poema “Gemidos de arte”, tomado como exemplo, exibe em uma de suas
estrofes: “Um pássaro alvo artífice da teia/ De ninho em ninho salta, no árdego trabalho/ de
árvore em árvore e de galho em galho/ Com a rapidez duma semicolcheia”. Augusto, sutil,
aproxima o pássaro à semicolcheia, e, subliminarmente, alarga essa relação através de sentido
denotativo oculto, permitindo ilação ao avocar a ave e a figura de ritmo, ambas marcadas por
pausa e movimento.
Estudos importantes a partir de Antônio Houaiss e Cavalcante Proença incluem,
também, Ferreira Gullar, Lúcia Helena e Chico Viana, entre muitos outros, na fortuna crítica
do “EU”, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Mas, somente depois da segunda edição de
1920 a obra ganhou visibilidade. E, depois da quinta década do século passado, logrou,
finalmente, exaltação da crítica e paixão dos leitores. Alexei Bueno, Lêdo Ivo e outros
estudiosos observam esse alargamento de atenções ao livro de Augusto.
A poesia de Augusto dos Anjos conduz, ainda, o leitor à memorização de trechos de
poemas ou poemas completos. Versos indecifráveis passam a ser recitados, por pessoas de
1
Doutor em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais; Membro da Academia Paraibana de Letras –
APL
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distinta organicidade cultural, em todos os lugares. Mas, convém frisar, o enigma do “EU”
persiste, iniciando no título. Ora, se o rótulo indica o conteúdo, o monossílabo, provoca a
imaginação, permite inferências.
Flávio Tavares, consagrado artista plástico, projetou no espelho o rosto de Augusto
cercado por figuras exóticas. Essa tela insinuante nos dá a impressão do “eu” espargido em
universo mágico. Tudo se passa como se o poeta, num embate de morte e renascimento,
mirando-se, fitasse o homem e o cosmo. Vislumbrasse o condutor de DNA da espécie
humana, mero arcabouço carnal incompatível com sua mente grandiosa e atônita em vista
disso. Nesse senso, se expressa o soneto “A ideia”: De onde ela vem?! De que matéria bruta...
Delibera, e depois quer, e executa!...
Em “A divina comédia”, Dante Alighieri inicia exortando: “A meio caminhar de nossa
vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida”2. O arquiteto
Mário Di Lassio, em conclusão, observou indecisão do poeta na escolha do caminho. Ante
essa via, nos parece ocorrer a angustia na poética augustiniana. Nesse sentido, afirmou
Ferreira Gullar: “Com Augusto penetramos aquele terreno em que a poesia é um
compromisso total com a existência”.
O criador de “Monólogo de uma sombra” exibiu sua poesia, à frente da época literária
e à frente da linguagem convencional. Sua expressão, excêntrica, mostrou-se acima da mera
comunicação de ideias ou sentimentos. Impôs convicções com feitiço vocabular em discurso
realista suplantado, apenas, por outros obscuros enredos. Desse modo, ao compor poesia
intensa, personalíssima, Augusto dos Anjos desvirginou a linguagem comum e a fez possuída
por novas vestimentas. E manejou linguagem poética científica e coloquial, ambas sedutoras.
Plasmou sua poesia misteriosa.
A respeito dessa forte poesia, ouçamos Ferreira Gullar: “Em Augusto, a expressão não
aparece como um trabalho objetivo, exterior ao homem, mas quase como uma segregação
orgânica, e a linguagem se confunde com o aparelho da fala, a laringe, a língua”. Poeta
consagrado, Gullar aprecia a poesia de Augusto como o marceneiro, artesão da madeira,
aprecia um móvel singular, peça de mobiliário notável. Otto Maria Carpeaux exprimiu: “O
mais original, o mais independente dos poetas mortos do Brasil”. Alexei Bueno declarou:
“Como se escrevesse numa língua original”.
O autor do “EU”, ousa em léxicos distintos. Seu repertório de vocábulos produz um eu
lírico múltiplo: bucólico, onírico, cáustico, e outros mais. A crítica literária e os estudos
2
Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.
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Um século depois de sua aparição em livro,2 a poesia de Augusto dos Anjos continua a
motivar interpretações e reflexões de natureza teórica variada. O interesse que sua obra
desperta no leitor de hoje talvez seja proporcional à sua vocação para desafiar os estudos de
caráter classificatório, pois, na verdade, nunca se soube muito bem em que prateleira da
periodização literária colocar o estilo singular do poeta paraibano. Situando-se na transição
entre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX, o autor de Eu e outras poesias
reflete um pouco de tudo o que o século anterior produzira em termos de experiências
estéticas e filosóficas. E, para maior embaraço da crítica, essas sugestões (românticas,
naturalistas, simbolistas etc.) não se desenvolvem em sua obra como unidades discretas,
obedecendo a uma distribuição linear, mas se mesclam numa síntese muitas vezes paradoxal,
o que acaba por contradizê-las ou descaracterizá-las parcialmente, acentuando o aspecto
particular da poética resultante. Assim é que o rótulo de pré-modernista, concebido por Alceu
Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), tem-lhe servido precariamente de rubrica quando o
critério empregado é a cronologia, em substituição a visadas mais problemáticas que o
situavam restritivamente entre simbolistas ou parnasianos.
Além dos estudos focados na contextualização do poeta relativamente à periodização
dos estilos de época e, possivelmente, consistindo num desdobramento desses estudos, há a
pesquisa das influências, diretas ou indiretas: as que identificam matrizes do estilo de Augusto
em Baudelaire, Cesário Verde ou Cruz e Sousa, por exemplo, e as que abrem perspectivas
para a consideração de fatores culturais, atribuídos ao espírito do tempo e ao meio intelectual
que teriam determinado a formação do poeta. Neste último gênero, podem ser incluídas as
leituras que apontam relações entre a sua imagística e os influxos do Expressionismo — é o
caso de um conhecido ensaio de Anatol Rosenfeld,3 por exemplo —, e a proposta, a nosso ver
1
Professor de Teoria Literária na UFPB. Pesquisador na linha de Estudos Semióticos do PPGL/UFPB.
2
O ano de 2012 marcou o centenário da primeira edição do Eu, que registramos com o presente artigo, à maneira
de homenagem ao poeta.
3
ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos. In: ______. Texto/Contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1969, p. 259-266. Chico Viana registra posição semelhante de Gilberto Freyre. VIANA, Chico.
Monólogo de uma sombra ou Augusto dos Anjos em alemão. In: ______. A sombra e a quimera: escritos sobre
Augusto dos Anjos. João Pessoa: Idéia / Editora Universitária, 2000, p. 75-81.
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bastante sugestiva, que devemos a José Paulo Paes, que relaciona o poeta entre os principais
representantes, no Brasil, de
Ressalte-se que, antes de qualquer possível objeção à inscrição de Augusto dos Anjos
na esfera do art nouveau, o crítico trata de nos lembrar que, muito embora esse estilo tenha
incorporado e até se confundido com a estetização dos aspectos mais superficiais da vida
urbana da belle époque, exaltando nela o luxo e o ornamentalismo, ele não deve ser reduzido
à celebração do mundo burguês; haveria um lado oposto e complementar a esse, uma vertente
pós-impressionista, com pendor para o fúnebre e o “mau gosto”, à qual não temos dificuldade
de associar a poesia em questão.
Mas, se os estudos literários, em geral, forem entendidos como a busca de uma chave
(enfatizemos aqui o sentido musical do termo) em que se possa executar a leitura de uma
obra, extraindo-lhe os efeitos mais expressivos, há que se discernir ainda entre os que
procuram essa chave nas afinidades que essa obra mantém com o círculo das poéticas e
formas de expressão a ela contemporâneas, considerando-a, portanto, segundo os preceitos
estéticos de sua própria época; e os que preferem focalizar a obra como objeto específico,
contemplando-a neste caso contra o pano de fundo de toda a tradição literária (a tradição que
se fixou, via literatura e metalinguagem crítica, antes e depois de sua aparição) para indagar
do seu significado, por assim dizer, sincrônico5 — o que não significa de modo algum, como
já explicou Haroldo de Campos, ignorarem-se os condicionantes históricos de uma obra
literária, mas implica submetê-la a uma apreciação que leve em conta “não apenas o ‘presente
de criação’ (a produção literária de uma dada época), mas também o seu ‘presente de cultura’
4
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos e o Art Nouveau. In: ______. Gregos e baianos: ensaios. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 82.
5
Dois exemplos de estudos dessa natureza sobre a poesia de Augusto dos Anjos: em O evangelho da podridão:
culpa e melancolia em Augusto dos Anjos (Editora Universitária/UFPB, 1994), Chico Viana propõe uma
interpretação da obra do poeta a partir do paralelo entre dois sistemas de representação fortemente metafóricos,
quais sejam: o discurso da psicanálise e o da poesia. Também sincrônica é a abordagem realizada por João
Batista de Brito no artigo “Olhos e mãos em Augusto dos Anjos” (In: BRITO, João Batista de. Leituras poéticas.
São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1997, p. 3-15).
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(a tradição que nela permaneceu viva...).”6 Pois é justamente a esse crivo do presente que
resiste com impressionante vigor a poesia de Augusto dos Anjos, oferecendo-se ao leitor atual
como um universo de imagens e procedimentos em que o traço de novidade se insinua,
infiltrando-se por entre as fendas das formas de composição tradicionais, como procuramos
demonstrar nas anotações que seguem.
Excesso e contenção
Não há como negar que versos como esses obrigam o leitor, pela imposição do metro
decassilábico, a esforços fonéticos e articulatórios que se convertem aqui num traço
antiparnasiano. Pelo efeito de estranhamento que produz, a aspereza rítmica põe em relevo e
problematiza a artificialidade da forma poética, contrariando a naturalidade ou harmonia que
se esperaria de poemas de estrutura neoclássica, na medida em que deixa à mostra os
“andaimes” da construção do verso, contra tudo o que prescrevera a escola de Olavo Bilac.
6
CAMPOS, Haroldo de. O samurai e o kakemono. In: ______. A arte no horizonte do provável. 4 ed. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 213-219.
7
Todos os textos de Augusto dos Anjos estão citados neste artigo a partir do registro em ANJOS, Augusto dos.
Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Os grifos são nossos.
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Quer seja no estrato fônico ou na cadeia de imagens que ele veicula, percebe-se uma
espécie de tirania do suporte métrico e sintático do verso sobre esse dramático impulso de
expansão, realçado por uma opção estilística em que se manifesta o gosto pelo exagero, pela
distorção expressionista dos objetos representados. O efeito desse contraste na leitura é o de
um excesso mal contido, que detém, no entanto, uma função expressiva na poética em
questão. Nos parágrafos seguintes, estenderemos a análise dessa figura ao nível das
macroestruturas textuais, problematizando as relações entre a concepção de estrutura fechada,
frequentemente associada à forma do soneto, e certos efeitos de abertura ou de continuidade
que percebemos em grande parte dos poemas de Augusto inscritos nesse gênero de
composição.
[...] instrumento expressivo italiano (ou fixado pelos italianos), apto pela sua
estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e
progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a
8
BILAC, Olavo. A um poeta. In: CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A.. Presença da literatura brasileira: história
e antologia. Vol. I: Das origens ao Realismo. 2 ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 385.
9
“Afinal, Augusto dos Anjos conhecia que métrica é uma prisão, concorrendo a rima para estreitar as grades.
Não lhes fugiu, até lhes proclamou a eternidade num final de soneto...” PROENÇA, M. Cavalcanti. Nota para
um rimário de Augusto dos Anjos. In: ______. Estudos literários. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio; Brasília,
INL, 1974, p. 200.
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Como se vê, o autor situa a origem dessa relação nos modelos retóricos quinhentistas
(o “tempo de Camões). E, no entanto, bastaria um rápido inventário dos sonetos mais
conhecidos da nossa literatura para atestar a longa sobrevida dessa tradição, pois parece
acompanhar os sonetos de qualquer época a identificação entre a concisão dos catorze versos,
a estrutura decrescente das estrofes (sugerindo um movimento em direção à síntese), e a
expectativa de uma estrutura lógica fechada. Exemplos dessa concepção encontram-se,
naturalmente, na poesia de Augusto dos Anjos. Considerem-se, para fim de ilustração, os
versos transcritos abaixo, em que o eu-lírico chega a expor de maneira didática o andamento
de um raciocínio dedutivo:
A relação entre premissa (“Mas Deus enfim / é bom, é justo...”) e conclusão (“Deus
não havia de magoar-te”), respondendo à pergunta que abre o último terceto (“Seria a mão de
Deus?!”), encaminha o poema para um arremate argumentativo. Ainda que o resultado seja
evasivo quanto à indagação inicial dos tercetos (“Que mão sombria...?”) a negativa do último
verso soa como um acorde final, conclusivo, dando-nos ao menos a medida da perplexidade
do sujeito lírico ante a injusta fatalidade da doença do pai, referida no título do poema.
Mesmo quando, em outros exemplos, a argumentação se encontra subjacente a um
discurso narrativo, o soneto costuma preservar esse esquema de composição fechada,
encaminhando-se para um desfecho com ponto final, quase sempre realçado estilisticamente
pela tradicional chave de ouro, a sugerir que os limites da cena representada coincidem
efetivamente com o último verso do poema. É o que ocorre, por exemplo, nos versos
transcritos abaixo, de Vandalismo, em que não se vê qualquer sugestão de continuidade,
qualquer assincronia entre a duração do discurso e a projeção da “cena” descrita, cujos limites
10
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3 ed. São Paulo: Humanitas /FFLCH/ USP, p. 20
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cronológicos estão determinados por certos índices temporais, como o pretérito perfeito
(“entrei”, “quebrei”), indicativo de ação concluída.
e cujo arremate não será precisamente uma resposta a essa última indagação, mas um
comentário de teor moral que descortina o sentido alegórico de toda a cena antes descrita,
realimentando o significado desse componente narrativo do poema.
narrativas heróicas, mas relativamente estranho à natureza da poesia lírica, sobretudo se temos
em mente a referida afinidade do soneto com o argumento silogístico.
Descrever e numerar
Caso dos mais ilustrativos, que pode servir como matriz do procedimento que acima
sublinhamos, o poema Versos a um coveiro não apenas se inscreve no conjunto de textos que
apresentam o conflito entre a brevidade da enunciação e a continuidade do processo
retratado: este contraste ocupa aqui o nível temático da composição.
morte. À medida que descreve o fazer do coveiro, o poeta parece afirmar sua recusa a uma
linguagem retórica, pois a descrição daquele processo contínuo, repelindo “complicados
silogismos”, encontraria o instrumento adequado numa lógica quantitativa. Assim é que as
expressões “numerar” /“reduzir... a algarismos”, que se emparelham nos dois primeiros versos
do poema, vão realizar-se metalinguisticamente na construção simétrica dos versos 5 e 12: no
primeiro, uma sequência de numerais; no outro, uma enumeração de substantivos,
equivalendo-se ambos os conjuntos (aritmética hedionda do poeta!) inclusive na quantidade
dos elementos enfileirados.
Na hesitação entre descrever e numerar manifesta-se claramente o impasse de que
tratamos. Muito embora, em termos realistas, ambas as ações pressuponham uma duração
finita, como qualquer processo enunciativo, a voz lírica parece dotar a figura do coveiro de
um caráter alegórico, estendendo-lhe o atributo da eternidade, correspondente à natureza do
sistema de representações aqui relacionado ao seu ofício. O que está em jogo é a figuração de
uma impossível sincronia entre a representação e o processo representado (“Porque, infinita
como os próprios números / A tua conta não acaba mais!”) ou, nos termos da Teoria Geral dos
Signos, o que se coloca neste caso é o conceito de indexicalidade — a propriedade que teriam
algumas formas de representação de referir-se a cada ocorrência específica e atual de um
fenômeno, mantendo com ele uma “conexão dinâmica”.11 Em face desse atributo é que o
poeta (aquele que descreve) exalta a superioridade do coveiro (aquele que conta),
reconhecendo, por oposição, a inutilidade dos “complicados silogismos” que caracterizam o
seu próprio fazer.
O que se mostra aqui, com efeito, é o embate entre a estrutura discursiva tradicional do
poema — concebido como espaço da metafísica e do dizer, e regido por limites como o metro
e o número de versos e de estrofes, mas principalmente pela necessidade de um fechamento
argumentativo — e a dimensão infinita atribuída ao processo que o poeta pretenderia abarcar.
A solução, para o poeta, parece estar em certo caráter prospectivo que adquire o discurso em
casos como esse. Observe-se a semântica da continuidade que toma forma em expressões
como “continua a contar” (verso 10), “infinita como os próprios números” (verso 13), e “a tua
conta não acaba mais” (verso 14). Assim o poema, discurso do eu, se encerrará com uma
projeção da ação do coveiro ao infinito.
11
Cf. PEIRCE, C. S.. Semiótica e filosofia: Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
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Ocorre aqui algo análogo ao que representa o emprego da perspectiva nas artes
plásticas, em que o arranjo espacial das figuras simula uma terceira dimensão através de
objetos que se afastam em direção a um ponto imaginário no horizonte, forjando a ilusão de
profundidade da cena retratada, a despeito das limitações do suporte bidimensional. No caso
da poesia, dá-se uma projeção (não espacial, mas temporal) para um futuro teoricamente
irrepresentável: se o objeto não cabe nos limites enunciativos do soneto, reclamando do poeta
um instrumento igualmente infinito, ele deve ao menos projetar a imaginação do leitor aonde
as palavras não podem acompanhá-lo.
Tópica e variações
Ou do primeiro dos dois sonetos dedicados ao “pai morto”, em que a visão prospectiva
ganha tonalidade místico-religiosa, evocando um arquétipo do imaginário cristão.
Caminhada que progride com o andamento dos próprios versos, até a enumeração final
de ações como que simultâneas, já envoltas no sentido de continuidade dos versos anteriores:
Nas expressões “quando ela passa...” e “vai morta em vida assim pelo caminho”,
percebe-se o distanciamento gradativo da personagem em relação à instância enunciadora,
que logo a perderá de vista. Não é diferente a situação descrita em O caixão fantástico, que se
inicia com uma referência a movimento: “Célere ia o caixão...” e se desenvolve no intervalo
em que o eu-lírico e o leitor vêem afastar-se o objeto fúnebre.
O ângulo será quase sempre o mesmo, como se o soneto se convertesse numa janela
da qual um observador vê desfilar diante de si um cortejo mórbido de noctâmbulos e
desvalidos de toda espécie.
[...]
Entre todos, porém, lânguida e bela,
Da juventude a virginal capela
A lhe cingir de luz a fronte baça,
Explorando com alguma liberdade a proposta, já referida, de José Paulo Paes, que viu
traços de Art Nouveau (em sua vertente marginal) na obra de Augusto dos Anjos, diríamos
que a visão representada nessas cenas corresponderia ao olhar de um anti-flâneur, numa
referência a uma das imagens-símbolo daquele espírito da modernidade nascente que se
cristalizou na belle époque. A simples atitude de contemplação do cotidiano, de sua
banalidade e de suas epifanias, já justificaria a comparação. Entretanto, contrastam aí, de
imediato, o universo cosmopolita, metropolitano, típico do flâneur, e o mundo particular,
rústico (dir-se-ia regional), do sujeito-lírico que se expressa nesses poemas. Outro aspecto a
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específicas sobre a poética do autor (ou seja, da pesquisa em torno das tensões internas que
animam o seu processo criativo), é a de que a figura destacada deixa entrever raízes de um
universo de representação literária em que talvez figurem formas elementares de narrativas de
tradição oral. Mas essa mesma figura pode também sugerir um diálogo antecipatório com a
linguagem cinematográfica — em que as histórias, naturalmente, terminam quase sempre com
os personagens em movimento — ou mesmo com as artes plásticas, que, como já
sublinhamos, resolveram através da perspectiva um impasse análogo no âmbito das
representações espaciais.
Outra sugestão, esta no campo das reflexões de caráter geral — vale dizer: no contexto
das relações que a criação do poeta estabelece com os valores estéticos de seu tempo e com a
tradição literária — é a de se considerar os traços de estilo aqui sublinhados como índices da
modernidade que se anuncia na linguagem do poeta, na medida em que eles sinalizam uma
atitude de transgressão ao código saturado das fórmulas parnasiano-simbolistas, indicando ao
mesmo tempo uma ruptura relativa nos limites de uma forma fixa, como o soneto. Não seria,
portanto, apenas pelo vocabulário científico ou pela expressão do pessimismo que a poética
de Augusto dos Anjos se distinguiria: no nível do verso, a opção pela aspereza do ritmo,
levada às fronteiras do ruído e da desarmonia; e no nível da macroestrutura, a tendência ao
transbordamento — ambos os procedimentos apontam para técnicas de construção originais,
muito embora ainda emolduradas no gênero canônico de composição. Nestes aspectos,
poderíamos situar o poeta numa posição de prenunciador de certa postura crítica diante de
padrões estéticos então institucionalizados que seriam afinal demolidos pela geração seguinte.
Referências
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
BRITO, João Batista de. Leituras poéticas. São Paulo: Fundação Memorial da América
Latina, 1997, p. 3-15
CAMPOS, Haroldo de. O samurai e o kakemono. In: ______. A arte no horizonte do
provável. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 213-219.
CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A.. Presença da literatura brasileira: história e antologia.
Vol. I: Das origens ao Realismo. 2 ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 385.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3 ed. São Paulo: Humanitas /FFLCH/
USP, p.20
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 491
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos e o Art Nouveau. In: ______. Gregos e baianos:
ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 82.
PEIRCE, C. S.. Semiótica e filosofia: Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. 2 ed. São
Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Nota para um rimário de Augusto dos Anjos. In: ______. Estudos
literários. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio; Brasília, INL, 1974, p. 200.
ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos. In: ______. Texto/Contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 259-266.
VIANA, Chico. Monólogo de uma sombra ou Augusto dos Anjos em alemão. In: ______. A
sombra e a quimera: escritos sobre Augusto dos Anjos. João Pessoa: Idéia /Editora
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Editora Universitária/UFPB, 1994.
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Montgômery Vasconcelos2
(FUCIRLA-PB)
Introdução
1
Comunicação apresentada no II CONALI a 19-11-2014, às 14h30min., Sala 2 - CCHLA/UFPB, cem anos do
encantamento de Augusto dos Anjos, quem já denunciava corrupção no Brasil desde 1905.
2
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor concursado em 1º lugar desde 1991 à
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e Pesquisador da Fundação Científica Reis de Leão e das
Astúrias/FUCIRLA-PB.
3
Tese de Livre Docência reprovada pela USP porque denunciei a Banca Examinadora às eminências pardas do
MEC, por me cobrar de forma corrupta R$50.000,00 [Cinquenta mil reais]
4
Hoje que a magua me apunhala o seio,/E o coração me rasga, atroz, immensa,/Eu a bemdigo da descrença em
meio,/Porque eu hoje só vivo da descrença.//A’ noute quando em funda soledade/Minh’alma se recolhe
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Essa mesma tentativa de leitura duma transgressão na poética do Eu, também, nasceu
de minha preocupação inicial empreendida já na dissertação de mestrado em Letras na PUC-
RJ, 1988, conservando o mesmo título noutra tese que levei a público em 1996 no meu livro A
poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. Contudo, graças ao analfabetismo crônico da
educação brasileira ninguém as lê nem escreve sobre elas no Brasil, e não por boicote, má
vontade, falta de interesse ou coisa que o valha, mas por não saber mesmo, prova maior disso
é Paulo Coelho eleito à Academia Brasileira de Letras: Machado foi-se de Assis, acabou,
contra tal fato não há mais argumento, uma piada de muito mau gosto, o humor negro das
classes intelectuais dominantes, analfabetas. O fato é que ninguém sabe ler nem escrever,
portanto um caso crasso de analfabetismo crônico em nível nacional, porque o Brasil fez sua
opção pela corrupção e não pela educação.
É por isso que jamais devemos culpar o povo brasileiro, mas os seus governantes,
corruptos e colonizados felizes, por tamanhas faltas que me levam às pesquisas Brasil, o signo
da corrupção: da GMB à UFMS [Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS, que
denunciei seus dirigentes pelo desvio de R$ 70.000.000.000,00 – Setenta Bilhões de Reais no
Projeto Base do Pantanal, envolvendo OEA, ONU, BID, FMI, MEC, Palácio da Alvorada,
Governo do Estado de Mato Grosso do Sul e o ex-Presidente da República Fernando
Henrique Cardoso; General Motor do Brasil/GMB por crime de lesa-pátria ao produzir
veículos como os da linha Vectra com vícios de fabricação] Brasil, o signo da esperança: do
Oiapoque ao Chuí ou simplesmente Brasil, o signo da corrupção. Tese esta que nasce,
também, dessas minhas observações sobre as críticas percucientes de Augusto dos Anjos,
quem primeiro responsabilizou os males da corrupção do Brasil aos seus governantes por
meio, principalmente, de sua “Crônica Paudarquense”5.
Contudo, ainda, generalizando essa “Crônica Paudarquense” em todo universo de sua
poesia e prosa, uma vez mais estudadas ao longo de trinta e oito anos de pesquisas que
empreendo no entorno do seu Eu e sobre a sua visão triádica da transgressão: 1ª no meu livro
A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos; 2ª nesta tese Brasil, o signo da corrupção na
poética de Augusto dos Anjos, provocada pela minha tese de doutoramento Recepção e
tristemente;/P’ra illuminar-me a alma descontente,/Se accende o cirio triste da Saudade.//E assim affeito ás
maguas e ao tormento,/E á dor e ao soffrimento eterno affeito,/Para dar vida á dor e ao soffrimento.//Da Saudade
na campa ennegrecida/Guardo a lembrança que me sangra o peito,/Mas que no emtanto me alimenta a vida.//
(Almanaque do Estado da Paraíba, 1900, Apud ANJOS, 1994: 42).
5
ANJOS, Augusto dos. In: O Comércio,12-10-1905, Pau d'Arco — 1905, Apud ANJOS, Augusto dos [1884-
1914] “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª
ed., organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno, Aguilar, Rio de Janeiro, 1994, pp. 586-589.
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transgressão: o público de Augusto dos Anjos, e 3ª nas teses que se complementam por meio
do ciclo Brasil, o signo da corrupção.
O respaldo de minha teoria deve-se aos livros O Erotismo, de Georges Bataille, o Eu,
de Augusto dos Anjos, que se locupletam com Poética, de Aristóteles, Todorov e Staiger.
Além dos subsídios imprescindíveis da fortuna crítica brasileira à poesia e prosa de Augusto
dos Anjos, especialmente, as colaborações recentes do I CONALI 6. Ressalte-se o Concurso
de 2001 da Rede Globo de Televisão (o maior veículo de Comunicação de massa a serviço de
governantes corruptos e colonizados felizes do FMI) que o elegeu o Poeta do Século na
Paraíba: uma farsa da Verdade, constatada na dialética da poética do Eu anjelino.
O meu projeto de pesquisa sobre Augusto dos Anjos: a ideia da impossibilidade de
classificar sua poesia tomou corpo desde 1988 e gerou minha convicção a partir de
experiências e trocas em orientações. Assim, o que antes trabalhava era sobre a poética de
Augusto, tema de minha dissertação de mestrado: A poética carnavalizada de Augusto dos
Anjos. Nesta dissertação trabalhei com as teorias do dialogismo, polifonia e carnavalização da
literatura, do filólogo russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Mas, em seguida, senti a
necessidade de aprofundar esses três movimentos: dialogismo, polifonia e transgressão. Tal
possibilidade só conseguia vislumbrar com a semiótica peirceana, pra que eu pudesse
responder às questões que vêm surgindo, desde minhas primeiras inquietações. Inclusive, no
meu exercício de professor universitário, já em sala de aula, quando me faziam arguições,
dessa mesma natureza, os próprios alunos.
Com certeza, minha experiência durante o meu estudo em nível de mestrado, que
resultou na pesquisa inicial, mostrou-me a necessidade imperiosa de buscar novas formas de
leitura pra continuidade do trabalho em questão. Embora ela tenha atendido às questões
preliminares, outras investigações científicas acontecem como o vocabulário da poética
anjelina, sua classificação impossível, pois o próprio Augusto nega pertencer a quaisquer
escolas. Assim, a sua posição é como se fosse duma manifestação poética independente,
isolada e residente no eu de seu próprio ostracismo. E o que vejo aí é uma abertura duma
possível releitura, além doutra possibilidade inadiável de revisão e/ou posição, também,
classificatória. É como se ele tivesse deixado pra nós, por meio de sua poética, essa
possibilidade de transição e/ou evolução entre simbolismo e modernismo.
6
I Congresso Nacional de Literatura - CCHLA/UFPB/Campus I/João Pessoa-PB/3 a 6-7-2012] coordenado pela
Profª Socorro Aragão e representado por volta de 1200 pesquisadores que assinam cerca de 400 pesquisas.
Pesquisas estas que vieram a público quer por meio de edições do Eu, livros, periódicos, recursos tecnológicos
audiovisuais e Internet, quer por meio de teses, dissertações, monografias e concursos.
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Vivendo numa época de grandes transições, esse poeta paraibano assistiu à decadência
dos engenhos tradicionais, em prol das usinas, e presenciou o início do processo de
urbanização, cuja personagem principal vem a ser a cidade grande. Dela, Augusto dos Anjos
mostra o lado negro, soturno, as paisagens degradadas e tétricas da transgressão no Cemitério
Agra em “As Cismas do Destino”7, poema decassílabo:
7
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “As Cismas do Destino” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., texto e notas Alexei Bueno; Aguilar, Rio, pp. 211-223.
8
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “As Cismas do Destino” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 211.
9
SUASSUNA, Ariano (2002). Auto da Compadecida. Livro passado à película cinematográfica, com direção de
Guel Arraes, que veio a público, também, na projeção do dia 1º de janeiro de 2002, como parte da programação
Festival Nacional da Rede Globo de Televisão, Brasil. Participam do elenco desse filme Auto da Compadecida
expressões renomadas como Fernanda Montenegro representando Nossa Senhora, Marco Nanini interpretando o
Cangaceiro Severino, Selton Melo encenando Chicó, o amigo de João Grilo, Lima Duarte fazendo o papel de um
Bispo paraibano por ocasião de sua estada em Taperoá, pequena cidade do Estado da Paraíba, cenário local em
que se desenrola a comédia levada a sério pelo seu alto teor risível à luz de O Riso: ensaio sobre a significação
do cômico, que formula a teoria da “desarmonia” bergsoniana.
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Jamais foi influenciado pelo Parnasianismo nem tampouco pelo Simbolismo nem
quaisquer outros ismos e escolas, mas sempre desenvolveu temas excluídos e rejeitados pela
maioria, estando assim mais voltado à poética da transgressão, ao grotesco e sublime
hugoanos. Seus versos propagam um glossário de palavras feias que refletem, instauram e
corporificam a descrença, o verme, o escarro, a podridão, a miséria, o sofrimento, a angústia,
a mágoa, a tristeza, o tétrico, a morte, o abandono e a dor mais do que nunca presentes em
nossa sociedade – o que, sem dúvida, me explica em parte o grande interesse que ainda hoje
desperta a sua poesia do pessimismo, tematizado em seu primeiro soneto, “Saudade”. Soneto
este que o poeta publica em 1900, já sob a influência das ideias e da filosofia pessimistas de
Arthur Schopenhauer, pensador, também, excêntrico, com quem mantém estreita afinidade
em todo conjunto de sua poética da transgressão.
10
SUASSUNA, Ariano (2002). Auto da Compadecida. Tratam-se de expressões risíveis que o autor vai buscar
numa possível fonte teórica do pensador francês Henri Bergson, por meio do seu estudo e investigação
científicos em torno de O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. O romancista e dramaturgo paraibano
Ariano Suassuna é aqui revisto por meio da projeção do filme Auto da Compadecida, baseado agora em seu
próprio romance cômico no cinema, dirigido por Guel Arraes, como programação do Festival Nacional da Globo
em 1-1-2002, Brasil.
11
BERGSON, Henri (1983). O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª Ed., Zahar, Rio, 105 p.
12
BERGSON, Henri (1983). “Apêndice da vigésima terceira edição – Sobre as definições da comicidade e sobre
o método adotado neste livro” In: O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª Ed., Zahar, Rio, p.105.
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Trata-se duma relação que se forma por meio da problematização da existência duma
poética da transgressão em Augusto dos Anjos, que ora a instauro por meio dos pressupostos
teóricos O mundo como vontade e representação, III parte13; Crítica da Filosofia Kantiana14;
Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV15, de Arthur Schopenhauer16 (1980: 1-
235) e Georges Bataille17 (1988: 7-243) e (1977: 7-150) à luz da teoria dos seus O Erotismo18
e La Literatura y el Mal19, e ora na própria realidade da linguagem original do poeta
“paraibano do século”. Sendo ainda aqueles, dentre outros, portanto, quem lhes dão subsídios
à poética da transgressão. Poética esta caso impar no universo da literatura brasileira, quiçá
portuguesa ou universal, conforme afirma Georges Bataille sobre aproximação e relação
intrínseca entre avidez e transgressão:
13
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). O mundo como vontade e representação, III parte. Trata-se,
ainda, de a Crítica da Filosofia Kantiana ser o apêndice desse livro O Mundo como Vontade e Representação,
cujo complexo crítico e filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª
ed., vol. I, livro III, pp.199-316; (Crítica da Filosofia Kantiana); São Paulo, Abril, Os Pensadores;, pp. 1-82.
14
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). Crítica da Filosofia Kantiana. Trata-se, ainda, dessa Crítica
da Filosofia Kantiana ser o apêndice do livro O Mundo como Vontade e Representação, cujo complexo crítico e
filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed., São Paulo, Abril,
pp. 83-182.
15
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed.,
vol. II, pp.105-108, 214-255, 309-324 e 331-342; São Paulo, Abril, pp.183-235.
16
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860] . (1980). O mundo como vontade e representação, III parte; Crítica
da Filosofia Kantiana; Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. Trata-se, ainda, dessa Crítica da
Filosofia Kantiana ser o apêndice do livro O Mundo como Vontade e Representação, cujo complexo crítico e
filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed., (Crítica da
Filosofia Kantiana) São Paulo, Abril, pp. 1-235.
17
BATAILLE, Georges (1988). O Erotismo. 3ª ed., Lisboa, Antígona, Portugal, pp. 7-243. Obra imprescindível
à tese Augusto dos Anjos: uma poética da transgressão brasileira porque traz à questão fundamental a
compreensão do texto mais original e polêmico da fortuna crítica nacional. Daí a pertinência das palavras de
Alexandrian in “Os Libertadores do Amor” quanto à indizível obra ousada de Georges Bataille em O Erotismo.
18
BATAILLE, Georges (1988). “Primeira Parte – O Proibido e a Transgressão - Capítulo IV – A Afinidade
entre A Reprodução e A Morte: A morte, a corrupção e a renovação da vida” et alli In: O Erotismo. 3ª ed.,
Lisboa, pp. 23-128.
19
BATAILLE, Georges (1977). La literatura y el mal: Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, Blake, Sade, Proust,
Kafka, Genet. Espanha, pp. 7-150. Eis a nota sobre a impressão desta imprescindível obra batailleana na última
capa: “ESTE LIBRO SE TERMINO DE IMPRIMIR, SOBRE PAPEL DE TORRAS HOSTENCH, S.A., DE
BARCELONA, EL DIA 6 DE JUNIO DE 1977 EN LOS TALLERES DE VELOGRAF, TRACIA, 17 –
MADRID-17”.
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Pra provar a poética da transgressão em Augusto dos Anjos compreendo por que razão
as páginas de O Erotismo de Georges Bataille são tão fortes e decisivas. Elas provêm dum
homem cuja experiência íntima não fez concessões, características encontradas também no
poeta Augusto dos Anjos. Este livro sucede-se a La Part Maudite, tratado de economia geral,
cujo tema principal era, não a produção das riquezas, mas a sua despesa (o seu “consumo”). O
Erotismo era por ele designado como “a parte problemática”, uma vez que constitui pra toda a
gente “o problema dos problemas”. O mérito de Georges Bataille é o de encarar a sexualidade
humana no seu quadro sociológico, em relação à existência do trabalho e à das religiões. Sua
interpretação assenta numa dialética do interdito e da transgressão, tal como ocorre na poética
de Augusto dos Anjos quando faz intervenções radicais nos seus versos.
A existência joga-se em função dum conjunto de interditos que respeitam à morte e à
atividade erótica, não impostos do exterior, mas são valores subjetivos: “A atitude angustiada
que originou os interditos opôs a recusa – o recuo – dos primeiros homens ao movimento
cego da vida.” (Bataille, 1988: 23-128)
Tais interditos têm por fim restringir tudo o que a humanidade pode ainda conter de
exuberância animal. Contudo, o fluxo das paixões leva o homem a transgredir
incessantemente os interditos; e por vezes é a própria transgressão que revela o interdito. Tal é
o caso, no erotismo: “A essência do erotismo resulta da associação inextrincável do prazer
sexual com o interdito. Nunca, humanamente, o interdito aparece sem revelação do prazer,
nem nunca o prazer surge sem o sentimento do interdito.” (Bataille, 1988: 23-128)
Concepção também aceita e notável na poética de Augusto dos Anjos quando vem
numa intervenção de “Evangelho da podridão”.
Bataille estudou os meios de “transgressão organizada” da sociedade: a guerra e o
sacrifício humano que levantam temporariamente a interdição de matar, e o casamento e a
orgia ritual que permitem vencer o interdito da obscenidade. Encontram-se as mesmas
sensações de angústia e de aflição na transgressão destes dois tipos de interditos, pois a morte
e o erotismo abalam com igual frenesi a ordem do vivido. Pra o demonstrar, Bataille
20
BATAILLE, Georges (1977). “La moral unida a la transgresión de la ley moral” In: La literatura y el mal:
Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, Blake, Sade, Proust, Kafka, Genet. Espanha, p.105. Eis a minha versão em
Língua Portuguesa do trecho escolhido: “...Avidez não se opõe à transgressão, mas ao contrário, é um ponto do
princípio que lhe serve. Ela é muito grande por isso que seu princípio se vê ameaçado; a dúvida seria até mesmo
a fraqueza. No fundo ela é a base de virtude do poder que nós temos que quebrar em sua cadeia. O ensino
tradicional ignorou aquela primavera de segredo da moral: sua ideia de moral fica insípida.” (Tradução livre).
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Eis outra aproximação entre ambos porque Augusto dos Anjos nega-se à morte, mas
volta-se à vida plena da mulher enquanto única indústria da existência humana. Daí a
transgressão poética ao denunciar a corrupção material e espiritual no genético, biológico,
psicológico, econômico, social, político, cultural e educacional.
Depois de ter examinado o reforço dos interditos no cristianismo e as suas
consequências na escola do “objeto do desejo”, Georges Bataille acabou por ilustrar a sua tese
descrevendo “o mundo do desmoronamento” – o da baixa prostituição –, onde se vive à
margem do interdito e da transgressão, tal como o faz Augusto dos Anjos em sua poética. A
conclusão de O Erotismo é-nos dada por um outro que lhe é complementar, Les Larmes
d’Eros, evocando as relações entre o erotismo e a arte: “Ninguém hoje se apercebe de que o
erotismo é um mundo demente, e cuja profundeza, para além das suas formas etéreas, é
infernal.” (Bataille, 1988)
Afinal, é essa acepção que apreendo na poética de Augusto dos Anjos quando nos faz
refém dum mundo inexistente cujos seres são diferentes dos nossos ou os nossos inexistem
pra ele. Posto que é um mundo às avessas sempre, e a sua relação conosco vem negando
reciprocidade mais pelas nossas faltas do que pelas nossas virtudes em poder habitá-lo.
As lições de Bataille, apesar de sua exclusiva singularidade, são adequadas à época. A
sua lucidez cruel, o seu pessimismo exaltado e radical, como em Augusto dos Anjos, contêm
as virtudes capitosas do álcool e outros alucinógenos congêneres. Ele exprimiu os estados
inefáveis da sensualidade, sem nunca esconder o seu esplendor inquietante: “A fortuna dos
amantes é o mal (o desequilíbrio) a que o amor físico os constrange. Estão condenados, para
toda a vida, a destruir a harmonia entre si, e baterem-se na noite. É pelo preço de um combate,
pelas feridas que causam um no outro que conseguem unir-se.” (Bataille, 1988)
E tornou visível o sentido interior que anima a superação da dor e da alegria: “A
fortuna é o único objeto do amor e só a fortuna tem a força de amar.” (Bataille, 1988)
Contrário a isto, só a morte da natureza sem volta da poesia do Eu de Augusto dos
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Anjos é quem vai confluir também por toda sua poética da transgressão.
Mesmo reconhecendo Augusto dos Anjos como poeta pré-modernista, Alfredo Bosi
(1979: 293-326) tal qual Afrânio Coutinho incorreu no deslize de classificá-lo como
simbolista21 em seu História Concisa da Literatura Brasileira, respaldando-se em seus
“Caracteres Gerais”22 oriundos da Europa e em especial França (In: Bosi, 1979: 300).
Apesar da persistência teórica de Alfredo Bosi (1978: 300) em querer traçar as
características do Simbolismo brasileiro23, contemplando assim a poesia do Eu e seu poeta
Augusto dos Anjos como possíveis representantes desta escola, também, por meio do
neoparnasianismo, segundo Afrânio Coutinho, só consegue aumentar mais ainda o destaque
pra Cruz e Sousa24. Haja vista que este poeta sim é quem melhor representa o Simbolismo
brasileiro, tendo inclusive dado mais ênfase e rigor maior aos temas tanáticos em sua poesia
do que o próprio Augusto dos Anjos25, que faz isso apenas na superfície de seus versos. Posto
21
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais – O Simbolismo no Brasil” In: História concisa
da literatura brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, p. 300. Em relação à opinião crítica sobre Augusto simbolista
o autor assim se refere: “O poeta, inserindo-se cada vez menos na teia da vida social, faz do exercício da arte a
sua única missão e, no limite, um sacerdócio. A rigor, o caso brasileiro nada tem de excepcional e ilustra uma
tendência formalizante pela qual o estilista Flaubert é o melhor precursor do hermético Mallarmé, o neoclássico
Carducci daria lições ao decadente D’Annunzio; em suma, o Simbolismo, como técnica, é o sucedâneo fatal do
Parnasianismo.”
22
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais” In: História concisa da literatura brasileira.
2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 293-298.
23
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais – O Simbolismo no Brasil” In: História concisa
da literatura brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 298-301.
24
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: O Simbolismo no Brasil” In: História concisa da literatura
brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, p. 300. Eis a opinião do crítico em torno desta questão: “O divisor de águas
acompanha, como já vimos, a passagem da tônica, no nível das intenções: do objeto, nos parnasianos, para o
sujeito, nos decadentes, com tôda a seqüela de antíteses verbais: matéria-espírito; real-ideal; profano-sagrado;
racional-emotivo... Mas, se pusermos entre parênteses as veleidades dos simbolistas de realizarem, através da
arte, um projeto metafísico; e se atentarmos só para a sua concreta atualização verbal, voltaremos à faixa comum
do “estilismo” onde se encontram com os parnasianos.// Há, por outro lado, uma diferenciação temática no
interior do Simbolismo brasileiro: a vertente que teve Cruz e Sousa por modêlo tendia a transfigurar a condição
humana e dar-lhe horizontes transcendentais capazes de redimir-lhe os duros contrastes; já a que se aproximou
de Alphonsus, e preferia Verlaine a Baudelaire, escolheu penas as cadências elegíacas e fêz da morte objeto de
uma liturgia cheia de sombras e sons lamentosos. Quanto aos ‘crepusculares’, distantes de ambas, preferiram
esboçar breves quadros de sabor intimista: mas a sua contribuição ao verso brasileiro não foi pequena, pois
abafaram o pedal das excessivas sonoridades a que se haviam acostumado os imitadores de Cruz e Sousa.”
25
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Augusto dos Anjos” In: História concisa da literatura brasileira.
2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 321-326.
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Dessa maneira há em Augusto dos Anjos também um lado dandy baudelaireano, pois,
mesmo descendente de família da aristocracia dos senhores de engenho do Nordeste, vem
cantar em verso de estilo do dandismo de Baudelaire, “...o último feixe de luz radiante do
orgulho humano”27, quando em seu poema “A Luva”28 provoca tamanha revolução própria
26
VASCONCELOS, Montgomery José de (1996). “Leitinho Quente - Capítulo IV - A Poética Carnavalizada de
Augusto dos Anjos” In: A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. Ilustrações da capa e miolo de Valéria
Ottoni; Apresentação de Nilce Rangel Del Rio; Prefácio e Pósfácio nas orelhas das capas frontal anterior e pós
frontal posterior - equivalentes às capas e contracapas 2, 3 e 4 - por Gilberto Mendonça Teles; Revisão de Dida
Bessana; Conselho editorial: Eduardo Peñuela Cañizal, Willi Bolle, Norval Baitello Junior, Carlos Gardin,
Lucrécia D’Aléssio Ferrara, Ivan Bystrina, Salma T. Muchail, Ubiratan D’Ambrósio; Dados de Catalogação na
Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil) 96-1042 CDD-869.9109 ISBN 85-
85596-59-7 1ª ed., maio de 1996, Selo Universidade: 28, ANNABLUMEeditora.comunicação, Rua Ferreira de
Araújo, 359, Pinheiros, 05428-000, São Paulo-SP, Brasil, pp. 242-243. A questão fundamental aqui nesta
situação é revelar este poema que atribuo com plena convicção ser de Augusto dos Anjos, em desabafo,
respondendo aos maus-tratos que sofrera daqueles seus algozes perseguidores, lacaios do poder paraibano, por
ocasião da administração do seu maior perseguidor, Presidente João Machado, outrora seu amigo fiel e leal. Daí
que transcrevo ainda aqui a sua sátira mordaz neste desabafo ferindo suscetibilidades duma poética da
transgressão de Augusto dos Anjos contra o caos da perseguição empreendida de forma feroz pelos seus algozes
que lhe levaram a vida prematuramente. Era Professor Concursado do Liceu Paraibano e pleiteava apenas uma
Licença a fim de ir ao Rio de Janeiro publicar o seu Primeiro e Único Livro de Poesias Eu: “O illustre
presidente/ Por causa do nosso ‘Estado’/ Agora constantemente/ Anda muito aperriado.// Por da cá aquella palha/
Que o vento levante a esmo/ Elle grita, berra, ralha/ Com tudo e consigo mesmo.// Quando hoje sem detença/
Dos Anjos Dr. Augusto/ Foi pedir-lhe uma licença/ Quasi que morre de susto.// Pois que o Dr. Rocambolle,/
Fazendo o maior berreiro,/ Respondeu-lhe ‘não me amolle’/ Se queixe a meu carcereiro.// W. Estado da
Parahyba, sábado, 27 de agosto de 1910.”
27
BAUDELAIRE, Charles. Le Peintre de la vie moderne, Paris, France, loc. cit., pp.73-4. In: HAUSER, Arnold
[1892-] (1980-1982). “Sétima Parte – Naturalismo e Impressionismo/IV Capítulo - O Impressionismo: ‘O
‘dandismo’. – ‘O simbolismo’.” In: História Social da Literatura e da Arte. 3ª ed., Mestre Jou, São Paulo, Tomo
II, 1982, p.1087.
28
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Rio, Aguilar, pp. 485-486.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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duma poética da transgressão por meio de sua impressão formulada assim: “— A maldade do
Mundo é muito grande,/Mas meu orgulho inda é maior do que ela!//”29
Quem imagina combater maldade com orgulho, um dos sete pecados capitais, só
mesmo o poeta Augusto dos Anjos, original por levar a bom termo tal questão a sua poesia. E
se autodefine como palhaço e maldito nesses versos:
Eis porque dentre tantas relações e denominações por meio de seus paradoxos e
paradigmas semióticos ainda é chamado de o “Baudelaire paraibano”31.
32
Contudo, é em “Monólogo de uma Sombra” , outro poema, que lhe ocorre o maior
prefixo de poética da transgressão, pois além de abrir o livro Eu revela-se-me o tempo no
verso “E a miséria anatômica da ruga!”33 e se me reafirma que a passagem do século lhe
assusta, em “Poema Negro”34. Lembra-se-me aquele lado de “vidente” seu, ressaltado por
Rimbaud, quando assim pontifica um “diálogo socrático” nesta segunda estrofe por meio de
seus paradoxos e paradigmas semióticos:
29
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Rio, Aguilar, p. 485.
30
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 485-486.
31
NASCIMENTO, F.S. (1990). “Primeira Parte – Apologia de Augusto dos Anjos” In: Apologia de Augusto dos
Anjos e outros estudos. Fortaleza, UFC/Casa de José de Alencar, pp. 17-22.
32
ANJOS, Augusto dos [1884-1914].(1994).“Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 195-200.
33
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p.195.
34
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Poema Negro” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., Org,, notas e atualização Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 286-289.
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35
E parece-me um sonho a realidade.”
35
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Poema Negro” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. Org., notas e atualização Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 286-289.
36
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Perfis Chaleira” – Poesia/Versos de Circunstância In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 501.
Soneto com características do modernismo brasileiro quando cria fato inusitado rimando o número “7” com
“espermacete”, ‘o sêmen da baleia’, conforme atesto no conjunto desses catorze versos decassílabos, outra marca
sua inconfundível, a saber: “O oxigênio eficaz do ar atmosférico,/ O calor e o carbono e o amplo éter são/ Valem
três vezes menos que este Américo/ Augusto dos Anzóis Souza Falcão...// Engraçado, magríssimo, pilhérico,/
Quando recita os versos do Tristão/ Fica exaltado como um doente histérico/ Sofrendo ataques de alucinação.//
Possui claudicações de peru manco,/ Assina no ‘Croquis’ Rapaz de Branco/ E lembra alto brandão de
espermacete...// Anda escrevendo agora mesmo um poema/ E há no seu corpo igual a um corpo de ema/ A
configuração magra de um 7.//”. Zé do Pátio é quem assina como pseudônimo, heterônimo ou quaisquer
“múltiplas identificações” do poeta Augusto dos Anjos.
37
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Perfis Chaleira” – Poesia/Versos de Circunstância In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 501.
38
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 197.
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Essas características vêm à tona nos seus versos que se traduzem numa poética da
transgressão com manifestação criativa, independente de opção por quaisquer escolas que se
venha ou não classificá-lo ou rotulá-lo.
39
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
40
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
41
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
42
PRAZ, Mario (1996). “Capítulo quarto – A Bela Dama Sem Misericórdia.” In: A carne, a morte e o diabo na
literatura romântica. Tradução de Philadelpho Menezes da 2ª ed., italiana La carne, la morte e il diavolo nella
letteratura romantica, Campinas, Editora da Unicamp, pp.179-264.
43
PRAZ, Mario (1996). “Capítulo quinto – Bizâncio.” In: A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.
Campinas, Editora da Unicamp, pp. 265-379.
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Outro fato curioso que me intriga é por que a poética da transgressão anjelina sequer
faz parte da grade curricular oficial na rede de ensino público nacional? Pior, é consabido
sequer pensá-la nas instituições educacionais particulares. É como se ele fosse além de
maldito, proibido, discriminado e excluído, agora, no milênio terceiro. Até quando a
corrupção do MEC46 perseguirá o excluído Augusto dos Anjos? Daí por que é pertinente a
denúncia sobre tal corrupção47 grassando no MEC de há muitos anos quando o Professor
Napoleão Mendes de Almeida (1997: 3-7) faz nestes termos particulares seus:
44
REICHENBACH, Carlos (1993/1994). Alma corsária. Película cinematográfica que tem como foco narrativo
a paráfrase poética entre Augusto dos Anjos e Cesário Verde, mostrando os universos díspares de ambos: um
brasileiro e outro português, muito embora inclua neles fatos e relações congêneres. São Paulo. Alma Corsária
trata-se de película cinematográfica originalmente produzida e rodada em longa metragem, que obteve prêmios
de Melhor Filme no 26º Festival de Brasília (Juri Oficial e Prêmio da Crítica); Melhor Diretor & Melhor Roteiro
(Carlos Reichenbach) e Melhor Montagem (Cristina Amaral); Prêmio APCA: Melhor Filme de 1994; Prêmio
SESC “Os Melhores do Ano”: Melhor Filme & Melhor Diretor (Prêmio dos Críticos); Votado pela Associação
dos Críticos do Rio de Janeiro como um dos 10 melhores filmes de 94; Festivais Internacionais: Pesaro, London,
Miami, Chicago Latino, Montevideo, London Latino, Tübbigen; Prêmio Internacional: 30 th Pesaro Film festival
“Premio Del Trentennale” (Melhor Filme), 1994.
45
REICHENBACH, Carlos (1995). Alma corsária. Trata-se agora de sua reedição em Película cinematográfica
pra Vídeo que, ainda, tem como foco narrativo a paráfrase poética entre Augusto dos Anjos e Cesário Verde,
mostrando os universos díspares de ambos: um brasileiro e outro português, muito embora inclua neles fatos e
relações congêneres. Edição realizada no Rio de Janeiro pela Empresa Sagres Cinema, Televisão, Vídeo, já em
Produção de 1995 à Videoteca.
46
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, pp. 3-7. “De tal monta foram esses e outros fatos, que chegamos à triste
conclusão de que era uma falsidade o que estava na portaria que designava uns tantos professores para estudo e
proposição do projeto; ‘um dos empecilhos maiores, se não o maior, à eficiência do ensino da língua portuguesa
tem residido na complexidade e falta de padronização da nomenclatura gramatical em uso nas escolas e na
literatura didática’.” (Napoleão Mendes de Almeida, 1997:5).
47
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
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“...O nosso amor extremo e desinteressado a esta Pátria miserável, por cuja
felicidade nos damos gostosamente em sacrifício, dispensa para a nossa
defesa o auxílio dos circunlóquios.// (...) Mas a Arte, nesta pátria de bonzos,
18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, pp. 3-7. “...Qual o consciente professor de português que ignora repousar,
até hoje, no ridículo número de aulas de gramática a verdadeira e fundamental causa da deficiência do seu
ensino? Nenhum país culto existe em que o vernáculo não seja ensinado diariamente; na Itália e na Alemanha
Ocidental há oito horas semanais de idioma pátrio.” (Napoleão Mendes de Almeida, 1997:5).
48
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, p.5.
49
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 586-
589. A fim de objetivar o exemplo de Augusto dos Anjos sobre Brasil: o signo da corrupção antes do gramático
Napoleão Mendes de Almeida, destaco ainda alguns trechos desta sua “Crônica Paudarquense”: “Digam o que
quiserem os adeptos do otimismo incondicional, acostumados por uma aberração de óptica a ver perspectivas
régias em simples moinhos de vento, qual o inimitável herói, concebido por Cervantes, há e houve sempre
alguma coisa de cavalo tísico dentro do arcabouço da civilização brasileira.// (...) A Arte começou, no Egito, por
uma manifestação ampla de liberdade, abeberada na grande fonte real, de onde, em torrentes harmoniosas, se
escapam as verdades eternas da Natureza.// (...) Aí deparareis, o verdadeiro substractum da Arte, o desapego
insolente às tabuadas imutáveis, quebrando a intransigência dos moldes absolutos, e acompanhando a marcha
rítmica do progredir indefinido.// (...) E a alucinação é completa!// (...) É como se atirassem barras de ferro sobre
os nossos peitos chagados.// O luar fulge, uma auréola. Mas estão rindo! De quem serão essas gargalhadas? De
certo, não são humanas. Os homens não gargalham assim! E, saímos, em agonia.” (Augusto dos Anjos, Pau
d'Arco — 1905. O Comércio, 12-10-1905.).
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Considerações finais
50
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 586-589.
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51
PIRES, Luciano (2002). “Uma distância secular” In: Jornal do Brasil. Fundado em 9 de abril de 1891, Rio de
Janeiro, Ano CXI, Nº 296, www.jb.com.br, Quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, Brasil, p. 4. Ressalte-se que o
autor desta matéria nos fornece estatística sobre “Dados da segregação”, tendo como Fonte IBGE/IPEA, a saber:
45% da população brasileira é negra; Negros correspondem a 70% dos miseráveis; 51% das crianças negras até 6
anos no Rio de Janeiro integram a faixa de pobreza; Jovens negros permanecem, em média, 2,3 anos a menos na
escola que os brancos; Apenas 2% dos negros entram na universidade; Sete em cada dez negros não completam
o ensino fundamental; A renda dos negros é 2,5 vezes menor que a dos brancos.
52
KLINGL, Erika (2002). “MEC condena cotas para negros” In: Jornal do Brasil. Fundado em 9 de abril de
1891, Rio de Janeiro, Ano CXI, Nº 296, www.jb.com.br, Quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, Brasil, p. 4.
53
SOUZA, Paulo Renato (2002). “Diversidade na universidade” – Opinião: Tendências/Debates In: Folha de S.
Paulo. São Paulo, A 3, quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, p.3.
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transgressão poética, que jamais poderia deixar de ser diferente à cultura, à sociologia, à
psicologia, à biologia e à antropologia do corpo social de nossa civilização brasileira: o povo
brasileiro expresso em verso e prosa, também, na mentalidade e concepção à comemoração
desse Centenário do Encantamento de Augusto dos Anjos?
Por fim, a título de curiosidade sobre a poética da transgressão, há um exemplar do EU
fazendo parte do acervo da Biblioteca da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com
certeza, isso se deve ao fato do uso exacerbado de certos termos científicos que Augusto dos
Anjos utiliza em suas composições quer na poesia quer na prosa. Motivo pelo qual um grupo
de pesquisadores, coordenado pela Profª Socorro Aragão na Paraíba, vem desde o I Conali
produzindo ensaios científicos nessa direção: A Ciência na Poética de Augusto dos Anjos.
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A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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ISBN: 978-85-6641465-3
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com Crispim sobre Augusto dos Anjos: uma história oral. João Pessoa: Ideia, 2009.
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Roberto Pontes
UFC/Cátedra UNESCO-United Nations University – UNU
Se esta pergunta vier a ser respondida por algum egresso de cursos brasileiros de pós-
graduação em Letras, a resposta imediata será: – Charles Baudelaire.
É que nos referidos cursos há um entendimento generalizado de haver sido o poeta de
Les fleurs du mal o definidor do sentido dessa palavra hoje. Para darmos idéia de como tal
compreensão é corrente nos meios acadêmicos, tomemos do prefácio escrito por Agnaldo José
Gonçalves para o livro de Baudelaire organizado e traduzido por Plínio Augusto Coêlho,
intitulado Escritos sobre a arte, publicado conjuntamente pela EDUSP – Editora da
Universidade de São Paulo e a Editora Imaginário, trecho no qual podemos ler:
cit. p. 68); b. A caracterização do tipo urbano parisiense dito “flâneur” que, “no desejo de ver
festeja seu triunfo”, correndo o perigo de se tornar “basbaque” (Op. cit. p. 69); c. O heroísmo
pessoal da renúncia aos bens materiais (Op. cit. p. 71) constituindo-se o herói no “verdadeiro
objeto da modernidade” (Op. cit., p. 73); d. A qualificação heróica conferida aos “pequenos
agricultores”, ao “salteador”, ao “mercenário”, aos “citadinos”, à gente miúda (Op. cit., pp.
72-3); e. O espetáculo da “multidão doentia” (Op. cit., p. 73); f. A analogia estabelecida do
proletário como “lutador escravizado” com o papel desempenhado pelo gladiador quando
exercia seu ofício na antiguidade (Op. cit., p. 74); g. A diminuição do impulso produtivo
humano que leva o indivíduo a refugiar-se na morte “sob o signo do suicídio”, não como
“renúncia”, mas “sim paixão heróica”, “paixão particular à vida moderna” (Op. cit., p. 74-5);
h. A importância conferida à roupa, “esse invólucro do herói moderno” que “carrega sobre os
ombros negros e descarnados o símbolo de uma tristeza eterna [...] Nós todos celebramos
algum enterro.” (Op. cit., p. 76); i. Os “temas da vida privada bem mais heróicos” como os da
vida mundana das existências parisienses desregradas: a dos criminosos, das mulheres
manteúdas, da sagração do “apache na imagem do herói” marginal renegador das “virtudes e
das leis” (Op. cit., p. 77-8), do lesbianismo (Op. cit., p 88), do androginismo da utopia
sansimoniana (Op. cit., p. 89); j. O destaque dado ao trapeiro, para nós lixeiro, o homem que
recolhe detritos, resíduos da urbe: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no
próprio lixo o seu assunto heróico [...] Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos”
(Op. cit., p. 78); m. A ideia do herói moderno fadado à decadência (Op. cit., pp. 79-80); n. A
dialética entre moderno e antigo: “A modernidade assinala uma época; designa, ao mesmo
tempo, a força que age nessa época e que a aproxima da antiguidade” (Op. cit., p. 80); o. A
valorização do passageiro e do efêmero a partir de uma análise feita por Baudelaire da pintura
de Guys: “Por toda a parte buscou a beleza transitória e fugaz de nossa vida presente. O leitor
nos permitiu chamá-la de modernidade” (Op. cit., p. 80, apud); p. O locus terribilis citadino
que desponta na série de poemas de Vitor Hugo intitulada “Ao Arco do Triunfo” e se torna
sugestão decisiva para idéia de modernidade baudelairiana (Op., cit., p. 84), advinda
igualmente da dependência teórica devida a Poe (Op. cit., p. 81) e da crua descrição realizada
por León Daudet da Paris de 1830 (Op. cit., pp. 83-4); q. A associação de grandeza e
indolência reunidas no ser humano, no próprio Baudelaire, a que ele denominou modernidade
(Op. cit., p. 93); r. A valorização heróica do dândi: “Nessa sua última encarnação, o herói
aparece como dândi” (Op. cit., p. 93), consistindo o dandismo no “último brilho do heróico
em tempos de decadência” (Idem); s. O caráter trágico vivido pelos heróis baudelairianos: “o
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herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A modernidade heróica se
revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível” (Op. cit., p. 94); t. O uso das
palavras sacralizadas na lírica tradicional (“uso elevado”) e dessacralizadas (“uso chocante”)
na lírica da modernidade: “As Flores do Mal é o primeiro livro a usar na lírica palavras não só
de proveniência prosaica, mas também urbana” (Op., cit., p. 96).
Eis aí, em síntese, os principais pontos da modernidade compreendida por Baudelaire,
segundo Walter Benjamin. Note-se ser o contexto gerador desse conceito baudelairiano
inteiramente parisiense; seus tipos, heróis e referências dizem respeito a uma realidade e a
uma história europeias relacionadas aos anos de 1800. Entretanto, o conceito de que ora
tratamos é repassado para a América Latina e a América do Sul, para o seu meio acadêmico,
como se nossa realidade não fosse outra, nossa gente não se diferenciasse em nada dos bem-
situados do Quartier Latin.
Na verdade, por trás desse fato há um pressuposto que convém não desvendar para não
macular o “glamour” que ele encerra: Paris, ou qualquer outro lugar, é o centro do mundo, e a
pós-graduação brasileira, sua periferia.
Não pensamos desse modo. Estamos com Antonio Candido ao sentenciar: “Quando a
Europa diz mata, o Brasil diz: esfola!”. Estamos com Roberto Schwartz que bem diagnosticou
essa anomalia no clássico estudo “As ideias fora de lugar”. E recuando mais ainda, estamos
com Órris Soares, prefaciador do EU, em 1919, autor de observação a propósito de seu tempo,
muito válida para o nosso:
Pensamos que o centro do mundo é aquele onde temos os pés e a consciência crítica.
Portanto, e seguindo este raciocínio, Paris é periferia para nós, de modo que a modernidade
nos termos em que foi pensada por Baudelaire e Walter Benjamin não se aplica ao caso
brasileiro, que deve ser apreciado por outro viés mais consentâneo com nossa realidade.
Após explicitar este entendimento, teceremos algumas considerações sobre a poesia
de Augusto dos Anjos.
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Nenhum leitor do EU de Augusto dos Anjos pode esquecer o impacto causado pelos
versos do poeta do Engenho Pau D’Arco, reunidos no único livro que dele ficou na nossa
literatura – clássico de leitura obrigatória.
O EU foi construído através de uma linguagem inteiramente diversa daquela até então
empregada no cenário lírico brasileiro, quer por sua temática, quer por sua expressão, em
franca colisão com as preceptivas poéticas do romantismo, do simbolismo e do parnasianismo
afeitas à administração do sentimento contido sempre na medida do verso bem talhado.
O EU representa uma explosão verbal sem precedentes, moldada num léxico até então
inusitado na poesia brasileira e expressa quase que exclusivamente em decassílabos heróicos,
em torno de variações sobre um mesmo tema.
O EU, como bem definiu Lucia Helena em 1977, “é o espaço vital em que se processa
um único Poema, e em que se coloca uma única questão: a experiência literária da gravidade
do existir” (HELENA, 1977, p. 58). Em suas páginas “o poeta transforma-se no verme que
realiza o trabalho fundador de escavar um espaço, artístico, em que a existência possa
manifestar-se pujantemente” (Idem). E diz Lucia Helena mais adiante: “O EU transpõe os
limites do ‘historiar’ e constitui-se a instância em que se projeta a questão instigadora da
criação poética” (Op. cit., p. 59).
Mas é preciso salientar que a poesia de Augusto dos Anjos tanto nos fascina quanto
desconcerta; e desde logo nos vemos imersos no fenômeno estético mais legítimo: “A magia
da palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a compreensão permaneça
desorientada” [...] “Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de
dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. A tensão
dissonante é um objetivo das artes modernas em geral” (FRIEDRICH, 1978, p. 15).
Quem nos afirma isso é Hugo Friedrich, autor do importante livro Estrutura da lírica
moderna (1978), que trabalha com o conceito de dissonância para caracterizar a poesia da
modernidade. E suas palavras ajustam-se à perfeição aos versos dos cinquenta e oito poemas
reunidos no EU, pois ali temos um denso acúmulo de categorias inusuais na poesia então
praticada, como sucedeu em 1870 com Lautreamont ao trazer a seu texto “angústias,
confusões, degradações, trejeitos, domínio da exceção e do extraordinário, obscuridade,
fantasia ardente, o escuro e o sombrio, dilaceração em opostos extremos, inclinação ao Nada”
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(FRIEDRICH, 1978, p. 21), algumas das quais características comuns aos escritos de
Augusto.
E mais adiante, a propósito das características mencionadas, devidas a Lautreamont,
escreve Friedrich: “Insistimos no fato de que elas sempre foram empregadas descritivamente
e não com a finalidade de depreciar. Ou seja, desorientação, dissolução do que é corrente,
ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia
despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento,
modo de ver astigmático, estranhamento” (Op. cit., p. 22). Eis o que vem a ser a dissonância
verificada por Friedrich nos poetas da modernidade, entre os quais incluímos Augusto dos
Anjos por seu tom poderosamente dissonante em relação aos seus confrades europeus e
brasileiros, sendo bastante acrescentar o que sobre sua poesia disse Lucia Helena, que está
entre os melhores leitores de Augusto entre nós: “lido como o dizer do poético, o EU é a mais
forte contestação da cientificidade. O ‘povo subterrâneo’ de que nos fala Augusto dos Anjos é
submetido a um constante movimento de escavação, em que o verme, de elemento corrosivo,
transforma-se em móvel de constituição de um questionamento que faz a autópsia da
‘amaríssima existência’: o fagismo” (HELENA, 1977, p. 57).
Portanto, e sem dúvida, estamos diante da potente corda dissonante do “arrabil” de
Augusto dos Anjos: “lira”, “cítara”, “harpa”, qualquer desses instrumentos que haja o poeta
mencionado na falta de uma guitarra elétrica... inexistente até 1912.
A dissonância ganha espaço na música chamada erudita pelas mãos de Claude
Debussy (1862-1918), mais precisamente em Prélude à l’après-midi d’um faune, escrito entre
1892 e 1894, para orquestra, sobre um poema de Mallarmé. Este prelúdio é uma espécie de
bandeira do impressionismo musical. Com ele Debussy abre um caminho “intensamente
pessoal, rompendo as cadeias da harmonia tradicional através de acordes ‘independentes’,
deixando dissonâncias irresolvidas e fazendo uso da escala de tons inteiros, da escala
pentatônica e dos velhos modos da Igreja” (HORTA, 2001, p. 95).
Mas a dissonância musical de Debussy provinha já daquela ocorrida na pintura, com o
impressionismo, surgido na segunda metade do século XIX, com Édouard Manet e com
Claude Monet em Paris. Esta era a dissonância pictórica das artes plásticas.
Entre nós, a dissonância chega e se afirma com a música popular de 1960. A propósito
nos diz Jomard Muniz de Brito: “Bossa Nova não pode ser negação da música popular
anteriormente realizada no Brasil. Muito pelo contrário: temos raízes, antes de sofrermos
influências mais recentes, do jazz e da música dissonante (BRITO, 1966, p. 122),
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“sofisticação de cantar baixinho, bem desafinado, desafinando bem musicalmente (Op. cit., p.
123); “as dissonâncias, atonalidades e harmonias novas impregnavam o samba” (Op. cit., p.
129).
Este registro musical é feito aqui porque a poesia de Augusto dos Anjos realiza uma
potente dissonância, através do verso, no momento em que sua obra vem a público, razão pela
qual causará tanto impacto e estranhamento no meio literário avesso a tão significativa ruptura
do acorde canônico.
Augusto dos Anjos intuiu a mesma dissonância adotada musicalmente pelo aluno
rebelde do Conservatório de Paris, Debussy, em sua terra, Sapé, Engenho Pau D’Arco,
Paraíba, a partir de 1900, nos versos que compôs.
No capítulo “Augusto dos Anjos: poesia e modernidade”, do livro constante nas
referências in fine, Hildeberto Barbosa Filho afirma que o cânone formal parnasiano, passa,
“na linguagem poética do paraibano, por um processo de formação interna, onde os padrões
métricos, com suas rígidas pausas e acentuações, são radicalmente alterados no sentido de um
ritmo extremamente dissonante” (FILHO, 2014, p. 23). E exemplifica a dissonância em
questão com uma estrofe de “Gemidos da arte”: “Ah! Por que desgraçada contingência/ À
híspida aresta sáxea áspera e abrupta/ Da rocha brava, numa ininterrupta/ Adesão, não prendi
minha existência?!”, chamando atenção em especial para a “sonoridade estranha do segundo
verso” (Op. cit., p. 23). Aponta ainda os “efeitos ásperos da camada fonológica” da poesia
augustiana numa sextilha de “Poema negro”: “E quando vi que aquilo vinha vindo/ Eu fui
caindo como um sol caindo/ De declínio em declínio; e de declínio/ Em declínio, com a gula
de uma fera,/ Quis ver o que era, e quando vi o que era/ Vi que era pó, vi que era
esterquilínio!” (Op. cit., p. 24).
Eis, pois, por meio da argúcia de um dos melhores intérpretes da poesia de Augusto
dos Anjos, a comprovação da dissonância produzida por este poeta em seus versos.
(1911-17), cubismo (1909 e 1917) e surrealismo (1924). As datas se referem aos principais
manifestos.
O futurismo, manifestado por Felipo Tomaso Marinetti inicialmente em 1909, é
antecipado pelo poeta paraibano no “Poema negro” em versos assim: “A passagem dos
séculos me assombra./ Para onde irá correndo minha sombra/ Nesse cavalo de eletricidade?!”,
ou assim, em “A luva”, poema de 1905: “– O pensamento é uma locomotiva/ Tem a grandeza
de uma força viva/ Correndo sem cessar para o Progresso.”, ou como nesses versos de “Aos
meus filhos”: “Vulcão da bioquímica fogueira” [...], “Expressões do universo radioativo, /
Íons emanados do meu próprio ideal”.
Os versos transcritos são os de um eu poético aderido às conquistas tecnológicas do
momento da escrita: a eletricidade que move qualquer meio de transporte, a locomotiva que
simboliza a força e o progresso – com maiúscula –, a bioquímica, o universo radioativo e os
íons, numa adesão irrestrita à nova feição dada ao real através da ciência.
E no soneto “Guerra” ficamos diante da aceitação deste fato social adverso à sã
convivência humana; mas, dentro da perspectiva futurista, necessário, porque: “É a Natureza
que, no seu arcano,/ Precisa de encharcar-se em sangue humano/ Para mostrar ao homem que
está viva!”, a coincidir plenamente com a apologia à guerra e à iconoclastia apregoadas pela
insânia de Marinetti, tempos depois.
Augusto dos Anjos igualmente antecipa o cubismo quando escreve em “Insânia de um
simples”: “Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho/ De um delta humilde, apodrecer
sozinho/ No silêncio de minha pequenez!”. O cubismo é de 1913, a edição princeps do EU é
de 1912 e seu autor falece em novembro de 1914. O fato é que em 1913 o termo cubismo foi
inicialmente aplicado à pintura, passando em seguida a “designar um tipo de poesia em que a
realidade era fracionada e expressa através de planos superpostos e simultâneos” (TELES,
1997, p. 114); isso correspondia à decomposição da realidade em figuras geométricas
praticada por Picasso, Braque, Picabia, Delaunay, Fernand Léger, Mondrian e Juan Gris
principais representantes nas artes plásticas dessa estética vanguardista. Estes comentários
esclarecem bem, assim penso, os versos dados de “Insânia de um simples”.
Mas a geometrização pré-cubista augustiana prossegue em “Contrastes” onde se pode
ler: “O ângulo obtuso, e o ângulo reto,/ Uma feição humana e outra divina”, espécie de esboço
de retrato traçado com linhas, sem cores, mas totalmente diverso, absolutamente novo, na
escrita do começo do século XX.
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Referências
SEDLMAYR, Hans. A revolução da arte moderna. Trad. Mario Henrique Leiria. Lisboa:
Livros do Brasil, 1955.
SOARES, Órris. “Elogio de Augusto dos Anjos”. In: ANJOS, Augusto. Eu. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis RJ:
Vozes, 1997.
______. Drummond, a estilística da repetição. São Paulo: Editora Experimento, 1997.
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Sandra Luna
UFPB
Khayles Pereira
UFPB
Sean O’Casey é um dos mais famosos dramaturgos irlandeses do início do século XX.
Apesar de a maior parte de sua carreira ter se desenvolvido na Inglaterra, suas peças mais
famosas continuaram sendo as Dublin Plays, três peças com as quais estreou no Abbey
Theater de W. B. Yeats e Lady Gregory. The shadow of a gunman (1923), Juno and the
paycock (1924) e The plough and the stars (1926) tornaram-se conhecidas como Dublin Plays
pelo fato de seus enredos se passarem na cidade de Dublin, retrarando o período dos
confrontos armados pela independência irlandesa: as tramas de The shadowof a gunman e de
Juno and the paycock se desenrolam entre os anos de 1921 e 1922, e a de The plough and the
stars, algumas semanas antes do Easter Rising, em 1916.
O que há de especial na trilogia de O’Casey, contudo, não é o fato de ter Dubin como
cenário, mas a escolha dos personagens retratados em cena; pela primeira vez, as pessoas
pobres residentes nos tenements de Dublin são levados aos palcos (KOSOK, 1995, 207), em
situações que fazem refletir sobre questões dramáticas e trágicas, levando-nos a ponderar
sobre quem são os verdadeiros heróis de uma guerra e quais os ganhos do uso da violência
(AYLING, 1972, p. 492). A forma como O’Casey aborda esses temas, no entanto, atraiu a
antipatia de grupos políticos: tanto nacionalistas como socialistas sentiram-se incomodados
com a forma como O’Casey os retratou.
O’Casey era um ativista politico. Primeiramente, ele foi nacionalista. Suas primeiras
peças, por exemplo, foram escritas em gaélico, pois a concepção nacionalista era de que uma
nação se afirmava pela cultura, cujo idioma era um fator de diferenciação determinante.
Assim, O’Casey não só aprendeu gaélico, como tinha peças encenadas em teatros cujos
espetáculos aconteciam exclusivamente nesse idioma. Além disso, O’Casey foi membro da
Irish Republican Brotherhood. A IRB foi, de forma simplista, uma sociedade secreta, cuja
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participação na luta política foi fundamental para o estabelecimento do Home Rule1 e do Irish
Parliamentary Party2. Em seus discursos iniciais, líderes nacionalistas, como Conolly, não
falavam apenas de uma nação livre, mas recorriam a princípios socialistas, pregando uma
Irlanda para seu povo e seus trabalhadores. Até mesmo líderes de países estrangeiros, como
Lênin, apoiavam o processo de independência irlandesa e acreditavam no surgimento de um
pais socialista. As concepções políticas de O’Casey, no entanto, não se encaixavam
exatamente em proposições doutrinárias vigentes, sendo antes um produto direto de sua
própria experiência.
O’Casey teve pouco acesso à educação formal e, apesar de ser auto-didata, tinha olhos
ulcerosos e, por isso, preservava pouco de sua visão. Isso lhe causou diversos problemas para
conseguir emprego e pode ter sido um fato decisivo em sua escolha de tornar-se um
dramaturgo. Sabe-se, no entanto, que pelo menos dois dos vários trabalhos assumidos por
O’Casey foram fundamentais para moldar sua visão política. O primeiro deles foi como
empregado na Great Northern Railway of Ireland, onde pôde aprender sobre capitalismo, e o
outro foi o escritor do jornal da Irish Transport and General Workers’ Union. Embora não
tenha sido um líder e nem mesmo seus artigos figurem entre os mais influentes publicados no
Irish Worker, lá, O’Casey estabeleceu contato com Jim Larkin, principal lider da greve geral
de 1913, que o influenciou fortemente, e também teve acesso às ideias de socialistas
franceses, norte-americanos e canadenses. Nota-se, portanto, que o interesse de O’Casey nas
teorias socialistas a que tinha acesso não era apenas intelectual: para ele, o socialismo podia
ser entendido de forma diretamente relacionada a aspectos da vida irlandesa que retrataria em
suas peças (LOWERY, 1983 , p.130).
Assim, o ponto de vista nacionalista de O’Casey era um tanto peculiar. Em meio aos
acontecimentos, ele já se dava conta do que, hoje, é problematizado por muitos historiadores,
que contam com a clareza analítica propiciada do distanciamento temporal: o nacionalismo
irlandês colocava sua maior ênfase no orgulho nacional e, aos poucos e sutilmente, foi se
distanciando dos interesses do povo e passou a tratar de independência a qualquer custo,
fazendo até mesmo menção a cobrir o famoso verde irlandês com o vermelho do sangue dos
guerrilheiros, antes de desistir do levante armado e se render ao imperialismo inglês
(O’CASEY, 1994, p. 164-169). Dessa forma, a vida humana e o bem-estar social tiveram sua
1
Estatuto que dotava a Irlanda de certa autonomia em relação ao Reino Unido. Foi proposto oficialmente, pela
primeira vez, em 1886, sendo aprovado apenas em sua quarta submissão, em 1902.
2
Partido oficial dos nacionalistas irlandeses eleitos para a House of Commons of The United Kingdom, engajados
em propostas de independência legislativa e reforma agrária.
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Nas Dublin Plays, O’Casey deixa transparecer sua falta de otimismo quanto à
revolução, tanto na ironia das situações em que coloca seus personagens, quanto na própria
elaboração de seus caracteres: ou os personagens não se importam com as transformações
políticas pelas quais o país passa, pois estão muito ocupados em assegurar sua própria
sobrevivência, ou são heróis de caráter contraditório e postura decepcionante.
Não por acaso The plough and the stars teve sua estreia interrompida por protestos de
militantes nacionalistas, que consideraram a peça desrespeitosa à memória dos mártires do
Easter Rising, ocorrido apenas 10 anos antes (MORASH, 2002, pp.167-168). A peça,
povoada por uma gama de personagens que representam diversos pontos de vista politicos,
contém um trecho em que a maioria dessas personas “comparece” a uma renião do partido
nacionalista, na rua. No entanto, a cena se passa dentro de um bar, enquanto apenas
fragmentos do discurso do preletor são transmitidos por meio de uma janela. O público do
3
To O’Casey, Irish socialism was confused, or at the very least it was sadly lacking in direction. The war of
independence and the subsequent civil war destroyed the flower of a generation. Whatever labour consciousness
that remained after the rising was decimated by the following six years strife. Even after it was over, the national
Question and Partition dominated and permeated the most advanced political thinking. It was not fertile ground
for building a socialist movement.
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teatro era capaz de reconhecer que se tratava de trechos de um famoso discurso de Pearse 4,
conclamando o povo à luta armada por meio da imagem de purificação e redenção
propiciados pelo sangue sacrificial, o “rubro vinho dos campos de batalha”. Ironicamente, no
palco, encontram-se personagens literalmente embriagando-se com vinho; ao invés da
purificação cerimonial do sagrado solo da Mãe Irlanda, duas mulheres da ralé se agridem
física e verbalmente por desentendimentos relacionados à fornicação, promiscuidade e filhos
ilegítimos; e os homens convidados a tornarem-se heróis nada mais fazem do que assistir à
contenda, enquanto aguardam a chegada de uma prostituta. Ao contrário do que se poderia
esperar, O’Casey não poupa ironia na elaboração de personagens e situações que fazem
alusão ao socialismo: o jovem Coven não passa de um rapaz de muitas palavras, mal
fundamentadas em sua rasa leitura de um único livro sobre o socialismo, e suas notoriamente
poucas ações, não são em nada melhores que a dos demais personagens.
Em Juno and the paycock, temos um quadro semelhante, porém mais trágico, com a
jovem Mary, que inicia a trama realizando diversas leituras sobre política e participando de
uma greve, e, ao fim, descobre-se mãe solteira, depois de enredada numa trama que a levou a
apaixonar-se por um capitalista inglês, o que a levou a enfronhar-se definitivamente em um
sistema de perpetuação da miséria. Em contrapartida, também o seu irmão Johnny, um jovem
revolucionário que perdeu um braço e aleijou o quadril durante os confrontos da guerra civil,
revela-se, no decorrer da peça, um traidor do movimento nacionalista, responsável por
denunciar um colega, que acabou executado.
The shadow of a gunman não se afasta desse padrão de representação dramatúrgico
característico de O’Casey. Por um lado, o autor dá voz ao povo, focalizando a vida nos
tenements em suas mazelas e conflitos cotidianos, enquadrando-os sob perspectivas
econômicas, políticas, sociais, extraindo das falas e situações vivenciadas pelos personagens
uma variedade de posições ideológicas, com especial ênfase para discussões sobre identidade
nacional, religião e engajamento político. Por outro lado, utiliza O’Casey justamente esses
dramas do dia-a-dia para fazer incrustar no ethos, nos discursos e nas ações dos personagens
perspectivas ou mesmo avaliações críticas que desafiam a rigidez ideológica das doutrinas
nacionalistas e socialistas com as quais se debatia, rasurando em larga medida o apelo político
então vigente ao sacrifício do povo em prol da pátria.
A trama da peça fundamenta-se em um argumento simples, muito simples, mas não
pouco produtivo para a ilustração das teses de O’Casey. Dois jovens, Seumas e Davoren,
4
Um dos principais líderes revolucionários do Easter Rising, executado após a repressão do levante.
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Nome dado à Irlanda em rferência ao poema do nacionalista James Clarance Mangan.
6
SEUMAS (with a gesture of despair): Oh, this is a hopeless country! There's a fellow that thinks that the four
cardinal virtues are not to be found outside of the Irish Republic. I don't want to boast about myself (…) but I
remember the time i taught Irish six nights a week, when in the Irish Republican Brotherhood I paid me rifle levy
like a man, an' when the Church refused to have anything to do with James Stephens, I tarred a prayer for the
repose of his soul on the steps of the Pro-Cathedral. Now, after all me work for Dark Rosaleen, the only answer
ou can get from a roarin' Republican to a simple question is 'good-bye... ee'. What, in the name o' God, can be
bringin' him to Knocksedan? (…) I'm beginning to believe that the Irish People aren't, never were, an' never will
be fit for self-government.
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Seumas sairá de cena logo em seguida, deixando Davoren, o poeta, sozinho no palco
pela maior parte do tempo em que decorre a ação, embora não para compor seus versos, como
desejaria, mas para fazer-se, por força da informalidade da vida no tenement, anfitrião de uma
série significativa de vizinhos que, isoladamente ou aos pares, adentram o cômodo dos jovens
por motivos distintos. Note-se que o dramaturgo utiliza esse recurso de entra e sai de visitas
para nos fornecer uma espécie de figuração de um mosaico humano ilustrativo de tipos e
caracteres diversos, personagens representativos de ideologias e comportamentos sociais
distintos e muito apelativos à decifração crítica da vida como ela é na Dublin da miséria.
É assim que desfila diante dos nossos olhos a primeira persona, Minnie Powell, jovem
desenvolta, atraente e independente, vistosa em seu aspecto físico e apresentada como
experiente no sofrimento, tendo perdido os pais precocemente. Para além de seu caráter
seguro de si, logo se percebe o quanto Minnie anseia por um encontro com um herói
nacionalista, projetando em Davoren a imagem fantasiosa de um guerrilheiro destemido, um
homem de armas. O jovem poeta, que nada tem de herói nacionalista, mas capaz de ler o
anseio de Minnie por uma confirmação de sua pertença ao movimento republicano irlandês,
consente com a fantasia da moça e não desmente a noção romântica da jovem, que se mostra
seduzida pelo pretenso revolucionário:
Não tardará muito e outros vizinhos adentrarão o cômodo, cada qual convocando
Davoren a cumprir determinada tarefa por julgarem-no todos ser ele um herói revolucionário,
personificação de um ser que naquele contexto assume um estatuto messiânico, quase-divino.
7
Nacionalista republicano que liderou uma rebelião contra o domínio inglês, em 1803, que foi reprimida. Foi
condenado à morte por enforcamento e esquatejamento.
8
DAVOREN: No man, Minnie, willingly dies for anything.
MINNIE: Except for his country, like Robert Emmet.
DAVOREN: Even he would have lived on if he could; he died not to deliver Ireland. The British Government
killed him to save the British nation.
MINNIE: You're only jokin' now; (…) I know what your are. (…) A gunman on the run! (...)
DAVOREN (delighted at Minnie's obvious admiration; leaning back in his chair, and lightening a cigarette with
placid affectation): I'll admit one does be a little nervours at first, but a fellow gets used to it after a bit.
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Assim, investido de um papel que não lhe cabe, Davoren será chamado a opinar sobre uma
pendenga judicial envolvendo vizinhos, testemunhará os relatos de outros viventes do
tenement que lhes confidenciarão problemas pessoais, existenciais, financeiros, políticos.
Saberá do álcool, dos amores, das inimizades, das desavenças, enfim, cada tipo que lhe bate à
porta deixa-lhe uma marca impressa de uma humanidade fadada ao sofrimento físico e
material, embora nada disso se dê por via do pathos, ao contrário, chama a atenção o esforço
dessas personas em se manterem dignas, ou em parecerem dignas.
O segundo ato trará Seumas de volta ao lar, mas o sono não chega aos jovens.
Supersticioso, Seumas pressente a própria morte ao julgar ouvir reiteradas pancadas no lado
de fora, espécie de flashforward antecipando a batida policial que será dada no tenement
instantes depois. A chegada das tropas a serviço da coroa inglesa haveria de fazer a peça
correr pelos trilhos da tragédia. Durante a batida policial, uma vez armada a confusão que
exaspera toda a vizinhança, Minnie Powell, numa explicitação óbvia do seu romantismo
idealista, achega-se ao cômodo de Davoren e oferece-se para ajudar o poeta que julga ser
guerrilheiro, imaginando que este corre perigo iminente na revista já em andamento. Num
misto de covardia e admiração pela coragem da jovem, Davoren e Seumas consentem que
Minnie leve consigo o fardo deixado num canto da sala por Maguire, que a esse momento já
sabemos ter sido morto em Knocksedan. Trancafiados no cômodo, apavorados com o
estardalhaço dos agentes da lei e acovardados perante sua própria culpa – Seumas por ser
realmente um guerrilheiro, Davoren por ter se feito passar por um, ambos buscam formas de
racionalizar a grave transferência de responsabilidade com a qual aquiesceram, ao permitir
que Minnie levasse consigo a prova da traição política ao governo inglês. A tragédia não
tardará a realizar-se, bem no estilo grego, fora dos olhos dos protagonistas e longe das vistas
do público, chegando aos ouvidos de todos por via dos disparos que se ouve através da janela
e dos comentários de uma das vizinhas, que nessa hora se faz mensageira da morte: Minnie,
flagrada com a carga de munição, havia sido arrastada e morta pelos agentes da lei. No
cômodo, culpa e perplexidade, nada consistente com o que se esperaria de gloriosos heróis
nacionais. Em lugar de honra e fama, apenas vergonha. Nas palavras de Davoren:
DAVOREN: Ah! ai de mim! Dor, dor eterna, para sempre! É terrível pensar
que a pequena Minnie morreu, mas ainda mais terrível é pensar que Davoren
e Shields vivem! Oh Donal Davoren, vergonha é a tua sina, agora, até que se
rompa o cordão de prata e se quebre o copo de ouro. Oh, Davoren, Donal
Davoren, poeta e poltrão, poltrão e poeta!
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Referências
AYLING, Ronald. Popular Tradition and Individual Talent in Sean O'Casey's Dublin Trilogy.
Journal of Modern Literature, Bloomington, Vol. 2, No. 4, pp. 491-504, nov., 1972.
9
DAVOREN: Ah! me alas! Pain, pain, pain ever, for ever! It’s terrible to think that little Minnie is dead, but it’s
still more terrible to think that Davoren and Shields are alive! Oh Donal Davoren, shame is your portion now
till the silver cord is loosened and the golden bowl be broken. Oh, Davoren, Donal Davoren, poet and poltroon,
poltroon and poet!
SEUMAS (solemnly): I knew something ud come of the tappin’ on the wall!
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ISBN: 978-85-6641465-3
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LOWERY, Robert G. The socialist legacy of Sean O’Casey. The Crane Bag, Dublin, Vol. 7,
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KRAUSE, David. The plough and the Stars: socialism (1913) and nationalism (1916). New
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MORASH, Christopher. A History of Irish Theatre, 1601-2000. Cambridge: Cambridge
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O’CASEY, Sean. Three Plays – Juno and the paycock, The shadow of a gunman, The plough
and the stars. Londres: Papermac, 1994.
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A Irlanda contemporânea se veste com uma bandeira em três cores: branco, laranja e
verde. Cada cor, entretanto, carrega em si um significado diferente. O verde simboliza os
católicos; o laranja, os protestantes; o branco é o símbolo da paz. Porém, essa harmoniosa
bandeira não é a mimetização do retrato real histórico do país.
O movimento nacionalista foi braço atuante na cruzada pela independência irlandesa
que se estendeu a vários setores da sociedade. A literatura, entretanto, não ficou imune a esse
processo, vários autores, como William Butler Yeats, através de seus textos, se engajaram na
luta pela liberdade da nação contra os ingleses.
Para atingir seus objetivos, no teatro, Yeats deu um tratamento simbólico as suas
peças, dentre elas The Countess Cathleen (1892). Dessa maneira, intentamos fazer uma
investigação de como uma das simbologias mais importante para o dramaturgo, a da rosa,
emana no enredo elementos nacionalistas através da personagem central, Cathleen.
Lembrando que os símbolos usados por Yeats advinham de diferentes fontes, como o
arcabouço mítico próprio da Irlanda, e o simbolismo cristão católico.
A história da Irlanda foi moldada, sem dúvidas, por motivações religiosas que
interferiam diretamente nas decisões políticas. Católicos e protestantes, segundo Martin
(2001), duelaram pela hegemonia do poder irlandês. Os ingleses, que governaram a Irlanda
por mais de 700 anos, tentaram tornar o país uma nação protestante, principalmente a partir do
reinado de Henrique VIII, no século XVI, mas sem sucesso. Parte da sociedade irlandesa,
principalmente os mais pobres, se mantiveram fiéis ao catolicismo.
A luta religiosa na Irlanda deu origem a grupos distintos que buscavam a
independência do país a partir de visões nacionalistas diferentes. Os Anglo-Irish e Irish-
Ireland lutaram, a sua maneira, pela liberdade irlandesa. Os Anglo-Irish , de acordo com
Boyce (2011), abarcavam em seus quadros pessoas que tinham origem inglesa, professavam a
fé protestante, falantes do inglês, mas que viviam na Irlanda. Os representantes do Irish-
Ireland, por outro lado, de acordo com Connolly (2011), tinham origem “tipicamente
1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, membro do Grupo de Pesquisa em Estudos
Irlandeses.
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irlandesa”, eram católicos, e falavam galês. Ou seja, são duas visões distintas do nacionalismo
irlandês.
O nacionalismo é, sem dúvidas, uma das questões mais importantes do processo de
construção da Irlanda. Para Said (1997) o nacionalismo é termo usado em nosso dia-a-dia das
mais variadas maneiras, porém, em sua essência, o termo serve para mobilizar uma força
resistente a uma ocupação alien. O nacionalismo, porém, não é uma característica única da
Irlanda. Toda a Europa passou por ondas nacionalistas nos mais diversos países, no início do
século XIX motivadas, de acordo com Maria (2012), pela Revolução Francesa.
Com advento do nacionalismo, a literatura reage com o romantismo que foi uma
literatura política, mesmo intentando ser apolítica (p.1432).
Maria (2012) diz que os românticos pregavam uma literatura que fosse nacional e
servisse aos ideais nacionais, mas “a literatura romântica, que tantas vezes se gabava de ser
mais nacional e mais nacionalista que do que o Classicismo, construiu, no entretanto, o
movimento literário mais internacional de quantos a Europa até então tinha visto.” (p.1433).
Afirmamos, porém, que o arquétipo que moldou o romantismo é, sem duvidas, única, o ideal
nacional. Contudo, dentro de cada esfera nacional, esse movimento literário eclodiu de
maneira diferente.
Quando o romantismo chegou à Irlanda, em 1789, de acordo Kelleher (2007), o país
estava mergulhado em uma guerra contra os ingleses. Os grupos revolucionários irlandeses
tinham, porém, apoio militar e político dos franceses. Além disso, o Ato de União havia
acabado de ser imposto pela Inglaterra. Sendo assim, em meio a esse cenário conturbado, o
sentimento nacional progredia e avançava principalmente através de debates, panfletos e
poemas que buscavam instaurar no povo o desejo de luta pelas causas da pátria-mãe.
Segundo Kelleher (2007), alguns acadêmicos colocam a literatura romântica
irlandesa alinhada com o que vinha sendo criado na Inglaterra, mas o que ocorreu na Irlanda
foi um fenômeno único, através de nacionalismo cultural consubstanciado pelo celticismo. O
Romantismo na Irlanda, segundo Keller (2007), se desenvolveu de uma maneira nova e
sofisticada de representar a derrota, enquanto tentava manter o um exibicionismo. O
movimento literário abarca na Irlanda anos depois da sua eclosão na Inglaterra.
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vilarejo, cumprem com o que lhes foi pedido, ajudando a família e outros moradores a
conseguir ouro para com isso sanar suas necessidades. Porém, em troca da ajuda, os demônios
pedem algo de muito valioso para os camponeses: as suas almas. A condessa Cathleen, uma
nobre da região, ao saber dos acontecimentos, pede que toda sua fortuna seja vendida para
com isso comprar de volta as almas desses aldeões pobres, mas fica impossibilitada de ajudar
a todos, porque toda sua fortuna foi rouba. Sendo assim, em um ato de sacrifício, Cathleen
entrega sua própria alma pelos camponeses.
Cathleen, durante o curso do enredo, converge para sua caracterização como Deusa-
mãe, ou mãe-terra, lembrando assim a caracterização da rosa como a mãe protetora da nação
que volta ao país quando seus filhos precisam de si. A personagem volta a sua terra, Irlanda,
com a missão de salvar os seus pares dos diabos que tentam comprar suas almas.
Os diabos presentes no texto são uma leitura alegórica da situação vivida pelo país no
período. Cathleen é a representação da Grande-Mãe Irlandesa, ou a Deusa-Mãe, evocada pelo
nacionalismo político. A Grande- Mãe, assim como a Deusa, são personificadas como uma
mulher sem uma casa para morar, que vaga pelos campos verdes irlandeses conclamando
seus filhos para lutarem por ela.
Yeats em seu texto, usa as criaturas demoníacas como uma subjetivação do mal da
condição social irlandesa. Fazendo dessa maneira, uma critica ao capitalismo inglês, e a
rápida expansão da indústria em algumas regiões do país, como por exemplo, Ulster. Isso fica
evidente quando os próprios diabos se apresentam ao povo dizendo que vem do leste.
A passiva aceitação dos camponeses em vender suas almas foi duramente criticado por
grupos nacionalistas como o Irish-Ireland. Acusando Yeats de mostrar os camponeses apenas
pobres e materialistas, buscando um lucro fácil e não brigar pelo que eles mais necessitavam,
sucumbindo assim, facilmente, por um saco de ouro, às tentações inglesas.
A Igreja Católica organizou um boicote a peça, lançando panfletos pelas ruas de
Dublin intitulado “Souls for Money”, em que difamou Yeats, acusando-o de herege e de
mostrar que os pobres irlandeses eram materialistas, não acreditando no poder de Deus, por
venderem suas almas por meros trocados dados pelos diabos.
Seguindo os ideais românticos, Yeats faz com que sua Cathleen mimetize um dos
maiores, e mais conhecidos heróis do panteão irlandês Cuchulain. Ele foi personagem
principal de várias lendas e contos contados pelos irlandeses. O personagem representa a luta
contra a dominação. Sua juventude, força, e beleza eram suas armas contra os inimigos
invasores, especialmente os vikings.
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2
CATHLEEN (entering) And so you trade once more?
FIRST MERCHANT. In spite of you. What brings you here, saint with the sapphire eyes?
CATHLEEN. I come to barter a soul for a great price.
SECOND MERCHANT. What matter, if the soul be worth the price?
CATHLEEN. The people starve, therefore the people go Thronging to you. I hear a cry come
from them And it is in my ears by night and day, And I would have five hundred thousand
crowns That I may feed them till the dearth go by.
FIRST MERCHANT.. It may be the soul's worth it.
CATHLEEN. There is more: The souls that you have bought must be set free.
FIRST MERCHANT. We know of but one soul that's worth the price.
CATHLEEN. Being my own it seems a priceless thing.
SECOND MERCHANT. You offer us—
CATHLEEN. I offer my own soul. (YEATS, 2011, p. 34)
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A morte de Cathleen, um ato de amor, e sua ação nobilitada, não são aceitos como
representação de um sacrifício pela sociedade irlandesa. Ou seja, o papel de mártir não foi
bem visto pela comunidade católica do país. Os irlandeses, de acordo com Kinealy (2002),
não aceitavam que uma mulher representasse a figura do herói. Mesmo o país tendo em sua
tradição uma valorização da mulher, principalmente na literatura, o papel de Cathleen foi alvo
de duras críticas contra Yeats.
Um dos pontos mais criticados e usados no discurso mais fervoroso foi a falta de valor
simbólico do sangue de Cathleen. O sangue feminino, que jorra no parto, na menstruação, e
na perda da virgindade carrega, de acordo com os ritos pagãos, uma simbologia que evoca a
essência da vida, de caráter regenerativo. Segundo Chavalier (2012), “o sangue é
universalmente considerado o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente. Às vezes, é
ate visto como o princípio da geração.” (p. 800). Porém, para os contemporâneos de Yeats, o
sangue derramado por Cathleen, em amor ao povo, não era algo que tivesse conotação
positiva, pois seria apenas um liquido sujo derramado por uma mulher.
Dessa maneira, é possível notar que Yeats revestiu seu texto com elementos típicos do
período romântico irlandês, baseando-se na simbologia da rosa, além disso, usou os ideais
nacionalistas, sem recorrer, para isso, a um aparelhamento panfletário. Construindo seu texto
de uma forma fina, refinada e literária em uma dimensão simbólica dos eventos históricos que
assolavam o país.
Referências
FOSTER, R. F. The Irish Story: Telling Tales and Making It Up in Ireland. Oxford:
Oxford University Press, 2000.
______. W. B. Yeats : a Life. 1, The Apprentice Mage. Oxford: Oxford University Press,
1997.
______. W. B. Yeats : a Life. 2, The Arch-Poet : 1915-1939. Oxford: Oxford University
Press, 2003.
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“Nada a fazer”. A frase de abertura do primeiro ato de Esperando Godot, por si só, já
parece denunciar a completa negação da tradição do “fazer” teatral. Sem desconsiderarmos as
profundas reformulações que a dramaturgia sofreu ao longo do tempo (desde sua
conceituação na Poética aristotélica), os vagabundos beckettianos que esperam
indefinidamente por Godot, plantados sob uma árvore, sem dúvida marcam um momento
paradigmático de ruptura na história do teatro: se não há “ação”, onde está “alma” desta
tragédia? Alguns críticos chegam a declarar que o drama de Samuel Beckett é uma espécie de
“antitragédia”. Em seu prefácio à tradução brasileira do texto, Fábio de Souza Andrade
afirma:
Günther Anders é ainda mais radical que Andrade. Para o crítico alemão, Esperando
Godot não pode ser tragédia, nem comédia:
Onde não mais existe um mundo, um choque com o mundo não é mais
possível e, portanto, a possibilidade da tragédia foi confiscada. Ou, para
formular mais precisamente, a tragédia deste tipo de existência reside na
inexistência até mesmo da possibilidade da tragédia e, ao mesmo tempo, no
fato de que ela deve sempre na sua totalidade ser farsa (e não apenas, como
no caso de seus predecessores, eventualmente atravessada pelo farsesco); e
que, portanto, ela só possa ser representada enquanto farsa, enquanto farsa
ontológica, não enquanto comédia. (Idem, p 215).
Paradoxalmente, sobre este enredo em que não há propriamente enredo, jorrou uma
gigantesca fortuna crítica que, de alguma forma, tenta explicá-lo, ou ao menos tenta explicar o
desconforto que esse texto nos causa. E, por mais que se queira ainda hoje “enquadrar”
Esperando Godot em categorias analíticas, a peça nos escapa, troca de lugar, dá pontapés e
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Doutoranda do PPGL/UFPB, email: klaramarias@gmail.com
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muda de assunto, restando à crítica literária sempre algo a dizer, algo a fazer... e, como diria
Vladimir, “aí vamos nós de novo”.
A fluidez escorregadia desse drama de Beckett já nos parece indício suficiente de que,
ao contrário do que se possa inferir da frase inicial, há muita ação na peça. Conforme Roger
Blin, o próprio Beckett concebia o espetáculo como extremamente dinâmico, “um tipo de
western” (in BECKETT, 2005, p 205). Mas Esperando Godot não é um western, apesar da
agitada movimentação dos atores; não é uma comédia, apesar do humor quase pastelão de
“calças que caem” e, sobretudo, não é tragédia, apesar de ser profundamente trágico. É este
ingrediente trágico - que mais se assemelha a uma sensação, um tormento, um delírio nosso
do que um momento concreto que se mostra explicitamente no texto de Beckett, flagrável e
fixável - que nos leva a interrogar se a ruptura com a tradição do drama aludida a Esperando
Godot se dá de fato pela via da “negação da ação” em cena e da estruturação peculiar do
enredo, ou se temos aqui o oposto: uma radicalização da ideia aristotélica de “mimeses da
práxis”, uma outra volta no parafuso efetuada por Beckett, a ponto de quase espaná-lo.
Segundo Aristóteles, a própria etimologia da palavra drama traz em si o “fazer” (verbo drân).
A arte poética - particularmente o drama – é imitação (mimeses) de ações humanas (práxis),
ou seja, é imitação do “fazer” de homens e mulheres, superiores, inferiores ou iguais a nós; a
tragédia, em sentido oposto à comédia, seria o modo mais elevado de imitação da experiência
humana, posto que imita apenas os atos de “homens superiores”. Ao discorrer sobre as
origens e causas da poesia, afirma o estagirita:
PRIMEIRO ATO:
Vladimir - após breve solilóquio, no qual afirma que, apesar de tentar fugir “disso” a
vida toda, sempre se vê obrigado “a retomar a luta” - inicia o diálogo imitando certos “atos
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sobre a dor causada pelas botas, Vladimir acentua ainda mais o tom queixoso de cônjuge
magoado: “Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se você estivesse no meu
lugar, o que você diria”. Ao comando deste último enunciado, Didi e Gogô literalmente
trocam de lugar: Estragon assume a fala de Vladimir (e vice-versa), perguntando “Doeu?”, e
finalmente entrando no “jogo”. Agora, como é sua vez de ser o “cônjuge queixoso”, Gogô
reclama de Didi: “De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões”; “O que você
queria? Você sempre espera até o último minuto”. Vladimir responde “O último minuto...
(Medita) Custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?”. Na versão
original francesa, (“Le dernier moment... C'est long mais ce sera bon”), “quem” disse isso foi
a voz do senso comum, isto é, trata-se de conhecido provérbio popular ("Plus c'est long, plus
c'est bon" ou "C'est long mais c'est bon"), uma clara exortação à paciência, a qual
notadamente tem seu significado subvertido quando colocada ao lado de “último momento”,
sugerindo agora o desejo pelo derradeiro minuto de uma longa existência. Já na tradução para
o inglês, Beckett seleciona outro provérbio, agora bíblico: “The last moment… Hope deferred
maketh the something sick, who said that?” (“O último momento… A esperança adiada faz
adoecer alguma coisa, quem disse isso?”). Dos versos do Antigo Testamento, “Hope deferred
maketh the heart sick, but when hope cometh, it is a tree of life” (Proverbs 13:12.), Beckett
substitui “coração” por “alguma coisa” (mais adiante, o viajante Pozzo perderá seu relógio de
estimação, e quando seu coração é confundido com o tic-tac do objeto perdido, exclamará:
“Que merda!”). A afirmação final do provérbio bíblico (“mas quando a esperança se realiza, é
uma árvore da vida”) é completamente omitida. Não há sofrimento (“coração”) nem
esperança (“árvore da vida”), apenas a espera pelo último momento, durante um tempo
impossível de ser mensurado. Quer advenham do contexto profano ou do contexto sagrado, os
ditos proverbiais pertencem a ninguém e a todos; se voz do povo, ou voz de Deus, “quem
disse isso” não importa, pois os provérbios fazem parte do imenso repertório das frases feitas,
a “sabedoria popular” repetida e reproduzida ad infinitum, sem qualquer necessidade da
prerrogativa saussureana de criatividade e originalidade do falante. Essa fala automática das
situações banais de comunicação cotidiana, transformada em brincadeira de imitar - ou jogo
cênico em que os brincantes têm permissão para entrar e sair, trocar de papéis, mudar de cena
e recomeçar etc - traz, em verdade, uma estranha sensação de liberdade (“Não estamos
amarrados. Estamos?”, Estragon perguntará mais adiante). Didi e Gogô são livres para entrar
e sair desse jogo, e paradoxalmente o próprio jogo são as algemas que lhes prendem ao
cativeiro da eterna espera por Godot:
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negado: ninguém os reconhece, eles são incapazes de reconhecer os outros. Didi e Gogô se
apresentam com nomes falsos: um Sr Albert qualquer ou o famoso poeta latino Catulo, tanto
faz o nome que se dê, isto não acarretará qualquer tipo de consequência para os dois. Além de
não terem uma identidade reconhecível, ambos não têm certeza sobre a identidade dos
viajantes Lucky e Pozzo. Sequer estão seguros quanto ao local do encontro com Godot – se
aquela árvore é a mesma ou não - e não sabem se reconhecerão Godot quando este chegar.
Sem memória e sem história, Didi e Gogô nem mesmo têm certeza de que existem de fato.
Diz Estragon: “Reconhecendo! Reconhecendo o quê? Passei minha vida de merda rastejando
nesta lama e você vem me falar de nuances!” (BECKETT, 2005. p. 118). Sua tragédia é “a
sina de ter nascido”, sina esta que não há como evitar e que, segundo Worton, as personagens
beckettianas jamais conseguirão expiar:
Pozzo remarks that ‘[... ] one day we were born, one day we shall die, the
same day, the same second. [... ] They give birth astride of a grave, the light
gleams an instant, then it's night once more’. Death as a final ending, as a
final silence, is absent from the [Beckett´s] plays. The characters must go on
waiting for what will never come, declining into old age and the senility
which will make of them helpless, dependent children again, but decrepit, as
exemplified by Nagg in Endgame, who asks plaintively for ‘Me pap’.
4
(WORTON, 1994).
Presos neste círculo de vida e morte, resta a Vladimir e Estragon inventar passatempos
que deem “a impressão de que existem”. Assim é como percebem seu encontro com os
viajantes Lucky e Pozzo: mais uma distração, outro jogo de imitar. Lucky, burro de carga e
cão guia, já não se preocupa mais em fingir sua humanidade, no entanto ainda sabe como
imitar um homem dançando ou “pensando”; seu monólogo pseudocientífico no primeiro ato é
o ponto alto dessa “mimeses da práxis” distorcida que apontamos no início de nossa
discussão. Pozzo, por sua vez, apesar de ter consciência do eterno círculo de vida e morte, no
entanto, parece nutrir ainda alguma pretensão de existência, nem que seja uma existência
forjada sobre a opressão de seu criado Lucky. Diferentemente de Didi e Gogô, Lucky e Pozzo
estão em movimento, vindos de algum lugar e indo em frente. No entanto, retornam ao
4
“Pozzo observa que ‘[...] um dia nascemos, um dia morreremos, o mesmo dia, o mesmo segundo. [...] Elas
parem montadas numa tumba, a luz brilha um instante, então é noite mais uma vez’. A morte como derradeiro
fim, como silêncio final, está ausente das peças [de Beckett]. As personagens precisam prosseguir esperando
por aquilo que nunca virá, decaindo até a velhice e a senilidade, a qual as tornará indefesas, crianças
dependentes novamente, mas decrépitas, como exemplifica Nagg em Endgame, que pede queixoso: ‘Mim pap’.”
(tradução livre). A tradução de Fábio de Souza Andrade para a fala de Pozzo supracitada é: “[...] um dia
nascemos, um dia, morremos, no mesmo dia, no mesmo instante [...] Dão a luz do útero para o túmulo, o dia
brilha por um instante, volta a escurecer.” (in BECKETT, 2005.p 183)
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mesmo ponto, isto é, os viajantes têm a ilusão de liberdade, mas estão tão atados quanto Didi
e Gogô à roda da existência. Lucky retorna mudo e Pozzo retorna cego ao segundo ato. “Será
que ele prevê o futuro?”, pergunta Estragon. Mas Pozzo não é Tirésias, apesar de ter acordado
um dia “cego como o destino”, afirma que “os cegos não têm noção do tempo”. Caído no
chão, sem saber onde está seu guia, Pozzo pede ajuda; Didi e Gogô ponderam se devem
ajudá-lo, afinal, apesar das pancadas que poderiam levar de Lucky, seria uma “bela maneira
de passar o tempo”. Lembremos aqui do célebre questionamento de Vladimir no primeiro ato:
“um ladrão foi salvo”, apesar de que apenas um dos evangelistas atesta esta versão. Mesmo
em vias de falhar e independentemente da motivação, a compaixão ainda pode ter lugar no
mundo, ou conferir-lhe algum propósito. Disto dependerá um outro tipo de “reconhecimento”,
diferente daquele preconizado por Aristóteles:
Novamente a árvore. No segundo ato, depois de uma sequência muito rápida de várias
imitações de “atos de fala”, - que vai de uma protocolar troca de mesuras, substituída por uma
troca de xingamentos, culminando com os ritos de reconciliação (BECKETT, 2005. pp 149-
151) – Didi e Gogô se cansam desses jogos discursivos e resolvem fazer exercícios com o
corpo, mas logo se cansam também:
5
Segundo Eliade (2011), nas sociedades tradicionais, a comunicação entre os planos sagrado e profano causa
uma “rotura” na homogeneidade do espaço e do tempo. O local onde se dá essa rotura passa a ser o Axis mundi,
portanto um local “sagrado”, o qual é expresso por um certo número de imagens todas elas referentes ao “centro
do mundo”: montanha, torre, pilar, árvore marcam o eixo onde Céu e Terra se encontram.
6
Enquanto observam cadáveres, Vladimir e Estragon dizem “O terrível é já ter pensado um dia”, “Devíamos ter
mergulhado profundamente na Natureza”, “Ah, com certeza [ter pensado] não é o pior”, “Mas podíamos ter
passado sem essa”, frases que subliminarmente remetem ao “pecado original”. Adão e Eva, ao ingerirem o fruto
da “árvore proibida”, num único gesto, adquirem discernimento entre bem e mal (o logos passa a operar em suas
consciências), e assim se afastam da natureza (percebem que estão nus). Como punição são condenados por
Deus ao sofrimento (Eva terá de parir seus filhos dolorosamente; Adão terá de “comer o pão com o suor de seu
rosto”) e vigiados para que não comam jamais da “árvore da vida”, que poderia lhes dar a imortalidade.
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que, em meio a tantas referências à mitologia cristã, surja o Yoga para elucidar um dos
aspectos da árvore. Certamente há aqui uma brincadeira com o modismo orientalista de
meados do século XX, já presente há tempos entre os burgueses do velho mundo, e que agora
ganhava força entre os inconformados jovens beatniks da Califórnia. Como Didi e Gogô
imitam qualquer coisa, por que não imitar a “moda do Yoga”? “Deus, tenha piedade de
mim!”, grita o yogue Estragon, tremendo pelo esforço físico. No entanto, em se tratando de
Didi e Gogô, nada é tão ingênuo quanto parece. Como leitor contumaz de Schopenhauer e de
Nietzsche - cujos sistemas filosóficos sofreram inegável influência do pensamento indiano,
especialmente da doutrina budista -, Beckett pode ter tomado contato, por via indireta, com a
doutrina pan indiana dos yugas7, a qual expandiu ao máximo a ideia do “eterno retorno
terrífico” ao ciclo de vida e morte, isto é, à “Roda do Samsara”. O Yoga, enquanto prática de
ascese, visa justamente romper com este ciclo em direção ao “Atmã”, o “Eu primordial”, o
“Absoluto”. No entanto, o “Absoluto” não subsistirá no Budismo que, apesar de derivar do
mesmo ambiente cultural do Hatha Yoga, é radicalmente distante de qualquer conceito deste
tipo: ao invés de encontrar o “Atmã”, os budistas almejam o “Anatmã” (o “não- eu”).
Também não há qualquer ideia no Budismo que se assemelhe a um “Deus criador”, ou
piedade divina. Os filósofos alemães, fascinados pelo ateísmo budista, prontamente o
identificaram com o niilismo. No entanto, o Budismo também é uma religião, e, neste sentido,
visa trazer conforto aos homens. A soteriologia budista mais difundida no ocidente (Budismo
Mahayana, especialmente a escola Zen) toma por base, sobretudo, o exercício da compaixão,
isto é, da compreensão de que entre o “eu” (mundo interno) e o “outro” (mundo externo) não
há distinção, ideia radicalmente diferente da noção de piedade divina cristã. De forma
bastante resumida, podemos afirmar que a doutrina budista mahayana formata seu conceito de
compaixão a partir da análise de que as experiências mundanas são inseparáveis das estruturas
internas da mente, isto é, a “verdade última” de todos os fenômenos e de todas as experiências
sensórias é o vazio. Da mesma maneira, qualquer que seja a apreensão que tivermos do “eu”,
esta não passará de uma construção mental, isto é, o “eu” só existe como delusão, e sua
natureza última é a “vacuidade”. Se nossas estruturas mentais são modificadas, o modo como
percebemos não só os fenômenos, mas sobretudo aquilo que chamamos de “eu”, também se
altera. Não perceber a verdade última do eu e dos fenômenos, significa sustentar uma
compreensão incorreta da existência, manter-se preso na ignorância (avidya, em sânscrito) e
7
Esta doutrina elabora o templo cíclico (observável na natureza) como a eterna repetição da destruição e
recriação periódicas do Cosmos. Ver ELIADE, 2001 .
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errar incessantemente nas engrenagens da Roda do Samsara, Não por acaso, o ícone que
simboliza avidya, o primeiro e principal elo entre os doze que formam a corrente que nos
prende à Roda do Samsara, é justamente um cego tateando o chão com uma bengala. Esta é
uma longa discussão, que por ora não cabe no escopo deste artigo.
De todo modo, Beckett parece ter captado de modo peculiar a distância radical da
noção de “salvação” entre a cultura ocidental cristã e o budismo/tantrismo8, mesmo que tenha
sido através de vias indiretas e tortuosas, da filosofia germânica “niilista” ou da contracultura.
Ainda devemos notar que o exercício de meditação, proporcionado também pela postura da
árvore, visa justamente observar o fluxo mental, ou seja, a meta desta prática não é fazer
cessar a verborragia, mas observá-la enquanto ferramenta (de tortura, na maioria das vezes)
que nos prende à roda da existência, “Roda do Samsara”, impedindo-nos de vivenciar o
Absoluto (o “samadi” do yogues), ou a “vacuidade” (o “nirvana” budista). Conforme
afirmamos acima, o vazio para os budistas não é devastação, mas redenção; o vazio, portanto,
não é o sofrimento, mas o cessar de todo sofrimento. Se somos “ocidentais” demais,
demasiado “cristãos” para nos salvarmos através da imitação da árvore dos yogues, ou para
buscar a paz budista na vacuidade do “não-eu”, por outro lado, a ideia da compaixão não nos
é totalmente estranha: “Será que dormi enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora?
Amanhã, quando pensar que estou acordado, o que direi desta jornada?”, Vladimir se
pergunta. No final de cada um dos dois atos, Didi e Gogô resolvem ir embora, e não se
mexem. “Mas como permanecem unidos, sem nada a buscar nem nada a esperar senão
frustração, e no entanto permanecendo juntos, retoma-se assim um ritmo trágico antigo e
profundo.” (WILLIAMS, 2002. p 203). A consciência de que a causa da existência de Gogô
está diretamente ligada à causa da existência de Didi (e vice-versa), e que o “eu” não existe
separadamente do “mundo” (apesar de ambos acreditarem algumas vezes ser possível uma
existência individual, definida fora dessa relação interdependente, isto é, apesar de se
deixarem levar em alguns momentos pela “ilusão do eu”) se aproxima mais da ideia budista
de compaixão (atributo humano) do que de piedade cristã (atributo divino). Mesmo que
continuem a usar a ato da espera como álibi para sua permanência no girar infernal da “Roda
do Samsara”, Didi e Gogô não permanecem juntos porque sentem pena um do outro, mas
porque sentem compaixão: não há salvação individual, pois não há um “eu” que não seja
também o “outro”. Seu drama talvez não seja estar “fora do mundo”, como afirmou Anders,
mas, ao contrário; Didi e Gogô continuam completamente presos ao mundo, ao “Samsara”,
8
As possíveis leituras “budistas” da obra de Beckett são discutidas em CASTAGNINO, 2013.
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atados nas engrenagens da roda da vida e, por compaixão, hoje não vão se matar. Talvez
amanhã, se Deus tiver piedade.
Arriscamos dizer que a alma da tragicomédia em Beckett não é a ação, mas a imitação:
paródia, farsa, parábola, quaisquer que sejam as características de gênero que tentemos
atribuir ao texto de Beckett, ele continuará a espelhar quão frágil, quão ridícula e caricatural é
a condição humana, independentemente do modo que tentemos expressá-la através de “nossos
parcos recursos”. Se o inferno é aqui e agora, resta-nos escolher chorar ou rir (ou ambos) de
nossa desgraça, enquanto giramos nas engrenagens da roda da vida. “E se a gente se
enforcasse?”, a esta pergunta de Estragon, Vladimir, carnavalizando a tragédia, responde:
“Um jeito de ter uma ereção” (BECKETT, 2005. p. 34). Da inseparabilidade entre o trágico e
o cômico, entre a morte e a vida, entre “eu” e “não-eu” decorrem as diversas possibilidades de
montagem deste espetáculo. A árvore de Godot, neste sentido, é altamente democrática,
permitindo o passeio num vasto campo de signos - que vai da queda de Adão e Eva ao yogue
no topo dos Himalaias- através do qual cada leitor, cada diretor ou cada cenógrafo pode
traçar seu caminho, sem prejuízo do sentido essencial da peça. A árvore pode ser uma forca,
um crucifixo, um espelho, um cartaz de metrô, um transformador elétrico sobre o qual Didi
pratica yoga (montagem de Joël Jouanneau, 1991), ou somente uma árvore. Didi e Gogô, por
sua vez, não são heróis trágicos por excelência, mas parecem vestir a máscara ridente de
Dioniso diante do sofrimento humano, seguindo os passos do deus, loucos e embriagados.
Estariam, portanto, em outro plano que não o dos humanos “iguais a nós”, talvez no plano dos
deuses? Lembremos que este texto de Beckett surge num momento em que a humanidade
continua buscando a si própria entre os escombros do pós-guerra: não só a poesia, mas o riso
e sobretudo as lágrimas ainda são possíveis depois de Auschwitz? Se, por um lado, Beckett
leva a polissemia da expressão inglesa “to play” ao seu limite (atuar, jogar, brincar etc.), por
outro, ao se apropriar das práticas e falas do senso comum - imitando-as e reordenando-as em
contextos imprevisíveis, parodiando-as para explodir internamente o automatismo das ações
cotidianas, - as “brincadeiras” de Didi e Gogô denunciam algo bastante concreto, tão real
quanto a dor de um par de botas apertadas: estes jogos, dos quais participamos sem perceber,
nada mais são do que estratégias para preencher o tempo de nossa existência, nos distrair de
nossa humanidade. Afinal, somos hábeis em inventar coisas “para dar a impressão de que
existimos”. Godot, esfinge beckettiana por excelência, continua a devorar homens e mulheres:
seria ele a esperança sempre adiada, a morte, Deus, a árvore cenográfica? Ou seria Godot
apenas mais uma distração, uma ilusão necessária de que a vida tem algum propósito, que não
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seja apenas o preenchimento do tempo da própria vida? Vida e morte que não cansamos de
interrogar entre palavras, silêncio, riso e lágrimas.
Referências
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ANDERS, Günter. “Ser sem tempo: sobre Esperando Godot, de Beckett”, in Neue Schweizer
Rundschau, 1954. [Excerto apud BECKETT, 2005. pp 213- 15. Op cit.]
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
Paulo: Cosac & Naify, 2005.
______. Novelas e Textos para nada. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Portugal: Ed.
Assírio & Alvin, 2006
CASTAGNINO, María Inés. “Beckett, budismo, Zen y um acercamiento a Textes pour rien.”
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Amado Alonso”, Facultad de Filosofia y Letras, Universidad de Buenos Aires. 2013 (pp 47-
56).
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do
Discurso. Trad. Fabiana Komesu, 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.
ELIADE Mircea. O Sagrado e o Profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 2011
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Fora. Fev. 2013. Mimeo.
LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. 2ª ed. João Pessoa: Ideia/ Ed.
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Universitária da UFPB, 2012 (b).
MORRIS, Tony. Em que acreditam os budistas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.
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WORTON Michael. “Waiting for Godot and Endgame: Theatre as Text”, in The Cambridge
Companion to Beckett, ed. John Pilling. Cambridge University Press, 1994. Disponível em:
http://www.samuel-beckett.net/Godot_Endgame_Worton.html Acessado em: 27/01/ 2014.
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Introdução
estamos fazendo na terra e como podemos suportar o peso esmagador do mundo das coisas"
(IONESCO apud BERTHOLD, 2011, p. 522).
Vejamos como se deu o conceito de "absurdo" no teatro e na adaptação fílmica de
Breath (2000), do britânico Damien Hirst (1965).
O Teatro do Absurdo foi um termo criado pelo crítico norte-americano Martin Esslin
(1918-2002), no final da década de 1950, para descrever dramaturgos e diretores, a princípio
bastante diferentes entre si, mas que tratavam suas obras de forma inusitada no que diz
respeito a suas relações com a realidade.
Inspirado nas vanguardas europeias, esse teatro teria por características principais:
diálogos repetitivos e aparentemente sem sentido; personagens simbólicos e não-personagens,
ao invés de personagens clássicos ou problemáticos; personagens em situações ilógicas
(presos em um amontoado de terra a exemplo de Happy Days (1961) ou esperando alguém
que nunca chega, como em Waiting For Godot (1952); um enredo episódico, fragmentado e
não causal; dentre outras características. Vejamos:
uma respiração, a um choro e aos jogos de luzes. É ainda vista por Mahida como a peça mais
curta do mundo da literatura (2011, p.23), contendo por volta de 30 segundos.
A fim de continuar esta investigação, veremos na sequência como as indicações de
palco escritas por Beckett se concretizaram na adaptação fílmica de Damien Hirst.
O texto de Beckett pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira, indicações
mais gerais sobre luz, tempo de duração de determinado efeito de luz ou choro, etc... E a
segunda, indicações mais específicas, como a posição do lixo, o número preferível de vozes
para o choro, etc. Vejamos a peça a seguir:
Ao falar sobre a relação de Beckett com a linguagem, John Calder, em seu livro The
Philosophy of Samuel Beckett (2001), afirma que "if he believed in anything, he believed in
language: ' words have been my only loves, not many.'" (p. 16) e que Beckett sempre se sentiu
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primeiramente um novelista, acreditando que o seu envolvimento com teatro (como diretor,
principalmente) foi de longe um acidente - o que acabou por fazer dele um dos grandes nomes
do teatro do século XX. Ele chega a afirmar, certa vez, que "'the best possible play is one in
which there are no actors, only the text. I am trying to find a way to write one'" (BECKETT
apud CALDER, 2001, p. 16). Em 1969, Beckett encontraria essa fórmula com Breath.
A peça teria sido encomendada por Kenneth Tynan para sua revista vanguardista Oh!
Calcutta! - Breath é até hoje aclamada pela crítica ora como um experimento minimalista que
acarreta toda uma tradição histórica e teórica, ora como um mero non-sense. Tratando-se da
obra em termos convencionais, Breath poderia ser formada por cinco atos, como o próprio
Beckett a chamou na tradução para o francês de "farce in five acts".
Em artigo intitulado Decoding World's shortest play Samuel Becket'st Breath (2011),
Mahida aponta esses cinco atos investigados por William Hutching:
1. The initial pause and the first cry, representing birth, constitute the
"introduction" and "inciting moment" of life in general and of this play in
particular;
2. The inhalation, a symbol of growth and development, is clearly a "rising
action" (of the thorax and diaphragm as well as of the play) which is
appropriate for a second "act";
3.The pause while the breath is held is the climax and the third "act," the
culmination of growth and maturation, the apex of the "vital capacities" of
the lungs and hence of life;
4.The exhalation - a metaphor for the entropic decline of the body with
advancing age, a declining "vital capacity," and death (i.e., complete
exhalation) - constitutes the "falling action" of the thorax and the fourth "act"
of the play, which is followed immediately by
5. The reiterated cry, the "catastrophe" or "resolution" of the play, and a final
silence before the curtain descends (HUTCHING apud MAHIDA, 2011, p.
23-24).
Desse modo, no que diz respeito à estrutura, Breath se apresentaria, de acordo com
Hutching, de modo convencional - com começo, meio e fim, além de apresentar elementos de
clímax e de catástrofe.
Quando partimos para a linguagem cinematográfica, no caso de Breath especialmente,
temos a facilidade do movimento de câmera, da posição do lixo no tablado que se move
também com os recursos que o cinema propõe, ao contrário do que poderia ser feito no palco
de um teatro (mesmo com tantos novos artifícios).
Sobre a mise en scène, no lugar do figurino (normalmente atraente ao espectador) tem-
se os remédios vazios, uma maca de hospital, um monitor e um teclado de computador, filtros
de cigarros, além dos sacos amarelos abarrotados de mais lixo (de aparência hospitalar).
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As cores amarelo, branco e azul podem nos remeter ao lugar hospital, lugar onde
usualmente, ao mesmo tempo, estamos aptos a nascer e a morrer. Temos assim o ambiente,
tudo isso em um tablado, junto com as luzes que ora clareiam, ora escurecem. Já no que diz
respeito à atuação, há a presença da respiração - inspirando e expirando, na interpretação de
Hirst, de forma bizarra. E por fim, a câmera em travelling nos causa a sensação de estar
viajando pelo absurdo e pela brevidade da vida - pontos comuns em Beckett e Hirst.
É importante lembrar que o tema da fidelidade na adaptação não é do nosso interesse.
Hirst faz sua própria interpretação da peça de Beckett, utiliza-se da direção visual dele, de seu
contexto e adiciona novos sentidos à obra - casando sons com suas escolhas visuais.
Ao invés de utilizar lixos variados ("miscellaneous rubbish"), como propõe Beckett,
Hirst escolhe detritos médicos e hospitalares. Tais detritos não estão mais parados no palco do
teatro, mas nos dão a sensação de que se movem de acordo com a câmera, causando no
espectador a sensação de estar atordoado. A única evidência visual do contato humano que
aparece em Hirst são os filtros de cigarro.
Sobre algumas mudanças da peça para a adaptação de Hirst, Kim Clune menciona:
Where Hirst does stray from Beckett's direction is with his use of sound.
Beckett calls for a "faint brief cry and immediately inspiration." Instead,
Hirst foregoes the cry and uses the specific sound of someone inhaling
with great difficulty. The sound is organic, human, painful and strained but
ends on an up note like at the end of a question, perhaps demonstrating hope
as oxygen enters the lungs. The second sound is again devoid of the cry.
The expiration is not normal but the sound of one's last breath as the
muscles of a torso relinguish their ability to expand once more. This sound
is of air trailing out to the still silence of finality. By eliminating the vagitus,
or newborn cry, this film becomes a strict dealing with the end of life and
eventual death, ignoring the beginning altogether (Hirst's version of
Beckett's "Breath". Prática da pesquisa, jan. 2008. Disponível em
<http://atticfox.wordpress.com/2008/01/16/becketts-breath/>. Acesso em: 13
out. 2014 - grifo nosso).
Além das mudanças de som, há a inserção dos filtros de cigarro. Os filtros que estão
no cinzeiro em formato da suástica nazista e os que estão ao lado do cinzeiro jogados
aleatoriamente. A suástica é, desde a Segunda Guerra Mundial, um símbolo de assassinato em
massa e das câmeras de gás nazistas:
Em suma, Breath teria como temas "the uselessness of human action, and the failure
of the human race to communicate" (MAHADI, 2011, p. 24) como consequência dos males
das guerras e nos remetendo ao absurdo da existência - esta, que já tratamos na nossa
introdução no que disse respeito às observações de Camus. Embora na adaptação fílmica,
Hirst também deixe aberto a questionamentos a respeito das industrias que produzem cigarros,
que também são máquinas que possuem um efeito de assassinato em massa.
"O que seria então a vida?" (...) "O desespero." (CAMUS, 2014).
Beckett, em seus tempos de estudos na Trinity College Dublin, chega a encontrar por
acaso, na biblioteca da Trinity, o livro Ethica (1665) do filósofo belga e seguidor de Descartes
(1596-1650), Arnold Geulincx (1624-1669). Geulincx, dentre outros filósofos, viria a
influenciar Beckett no decorrer de toda sua obra. Ele é citado no capítulo 2 de Murphy (1938)
e na peça Waiting for Godot "rien a faire", ou "nothing to be done" - "the essence of his view
of the world is that man is a tiny being of no importance in the immensity of God's creation
and should conduct himself accordingly" (CALDER, 2001, p. 4).
Em ensaio sobre Proust, Beckett chega a tratar da questão da remoção do desejo em
dois de seus personagens: Brahma e Leopardi. No decorrer do seu estudo Calder afirma que a
"remoção" (ou "ablation") seria "the determination to resist the seductions of ambition and to
become nothing, to desire nothing, expect nothing and be nothing, along the lines advocated
by Arnold Geulincx in his Ethica" (2001, p. 4).
É então que surge o conceito de "nothingness", ou nada, na obra de Beckett. Para ele,
apenas o nascer e o morrer possuem verdadeiramente algum significado. O que está no meio
seria apenas uma existência desprovida de qualquer significado: a espera, a rotina, o declínio.
Em outras palavras, uma jornada que não importa ser bem ou mal sucedida nos leva
inevitavelmente ao mesmo fim: a morte. Logo:
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There is neither fault nor shame in failure. The cause, more often than not, is
accident, just as the situation into which one is born is an accident, part of
the chaos and general mess of all existence (CALDER, 2001, p. 9).
Assim, Breath, mais do que qualquer outra peça de Beckett, ouso dizer - inclusive
mais fortemente representada na adaptação de Hirst - apresentaria a vacuidade e o absurdo
presente na nossa existência, esta que alcançamos por um mero e fatídico acidente.
Lembremos que de nenhum modo pretendo igualar o pensamento de Beckett e Camus, pelo
contrário, apenas utilizar o conceito de absurdo formulado por Esslin.
Em The Theology of Samuel Beckett (2012), Jonh Calder dedica o último capítulo, que
chama de "The Meaning of Nothingness", ao estudo do conceito de "Nothingness" em
Beckett. Calder afirma que de alguma forma, Beckett estaria "echoing the last lines of
Macbeth's great speech defining life before he goes into his final battle: "a tale told by and
idiot, signifying nothing" (2012, p. 117).
O conceito de nada nos remeteria então a um sentimento de humildade. Deus seria
visto mais como um tirano, um rei ou um ditador - "to whom one must homage and obey" -
do que como um salvador, embora Beckett nunca tenha se nomeado ateu e tenha sido aberto,
assim como Geulincx à possibilidade de uma "far-away divinity, indefinable expect as a will,
but outside any human understanding" (CALDER, 2012, p. 123). Deus está sempre como um
background na obra de Beckett, mas não como uma divindade que deve ser admirada ou
amada, mas "as the cause of all suffering or as being indiferent to it" (CALDER, 2012, p.
121).
Em Breath, portanto, de Beckett e Hirst, em sua adaptação mais que condizente com a
estética beckettiana, há o que Casanova apresenta como um Beckett que:
[...] pursues the logic of abstraction to its most inhuman extremes; who
refuses the morphine of idealism even when in severe pain; whose work
represents a merciless onslaught on the pretensions of Literature; and who
preserves a compact with silence, breakdown and failure in the face of
historical triumphalism and the self-flaunting word (EAGLETON, 2006, p. 2
- grifo nosso).
Referências
ARAÚJO, Rosanne Bezerra de. Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e
recomeço da narrativa. 2009. 278 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós
Graduação em Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. 2009.
BECKETT, Samuel. The complete dramatic works. London: Faber and Faber, 2006.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CALDER, John. The Philosophy of Samuel Beckett. London: Calder Publications, 2001.
CALDER, John. The Theology of Samuel Beckett. London: Calder Publications, 2012.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
CLUNE, Kim. Hirst's version of Beckett's "Breath". Prática da pesquisa, jan. 2008.
Disponível em <http://atticfox.wordpress.com/2008/01/16/becketts-breath/>. Acesso em: 13
out. 2014.
EAGLETON, Terry. In Introduction: CASANOVA, Pascale. Samuel Beckett: Anatomy of a
Literary Revolution. London: Verso, 2006.
MAHIDA, Chintan A. Decoding world's shortest play Samuel Beckett's Breath. In:
International Referred Research Journal, 2011.
VARGAS, Vagner de souza. BUSSOLETI, Denis Marcos. Teatro do Absurdo e o Séc. XIX.
<http://historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=242>. Acesso em 12 out. 2014.
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Este artigo pretende, inicialmente, estudar a noção de paródia proposta por Linda
Hutcheon (1985) no seu livro Uma teoria da paródia. Depois de observarmos o conceito
proposto pela referida autora, iremos analisar como o uso de três pré-textos gregos será usado
como referência para o enredo do drama irlandês Ariel, de Marina Carr.
Linda Hutcheon (1985, p.6) estuda como a paródia se faz presente nas artes. À luz da
pós-modernidade, a autora irá desconstruir a noção negativa que o termo remete. Hutcheon
(1985) afirma que paródia é uma forma de imitação, no entanto caracterizado pela inversão
irônica, ou seja, paródia é uma repetição com uma distância crítica.
A fim de se distanciar dos conceitos negativos do termo que a paródia evoca. A autora
irá recorrer a raiz etimológica da palavra para recuperar o seu sentido inicial:
É a repetição com diferença e o caráter crítico que o texto paródico utiliza, que iremos
observar como em Ariel a autora Marina Carr utiliza dos mitos e textos gregos para reatualizar
as obras clássicas. Importando a temática, mas contextualizando a peça num cenário irlandês,
iremos perceber como as problemáticas e a crítica feita as instituições irlandesas, a saber,
família, igreja e Estado, tomam um aspecto mas universal devido ao uso das tragédias
clássicas como base para construção de Ariel.
Nesse contexto paródico, a dramaturgia irlandesa tem apresentado uma produção
significativa em relação aos números de peças produzidas nas últimas décadas, entretanto
pouco prestigiado no Brasil. De fato, o público brasileiro é somente familiarizado com textos
de dramaturgos já consagrados internacionalmente, a saber, Oscar Wilder, W.B Yeats,
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Ariel foi produzida em 2002 no Abbey Theatre em Dublin, Irlanda. A peça retrata
Ariel, filha de um rico homem de negócios, Fermony Fitzgerald. Sendo um fundamentalista
religioso, Fitzgerald considera um sacrifício de sangue como forma de ascender ao mundo
político. Dez anos depois, o pai de Ariel é uma celebridade, apontado como o próximo líder
da República da Irlanda. Fica, portanto, perceptível que a ascensão de Fitzgerald está
conectada ao desaparecimento da filha. A partir desse ponto, um ciclo de vingança familiar se
instaura na peça. Percebe-se que a trama é construída através da conjunção de três pré-textos
da tragédia grega, a saber, Ifigênia em Aulis, que remete ao primeiro ato de Ariel, o segundo
ato baseando-se em Agamêmnon e o terceiro ato, as Coéforas. “Ariel é o retrato de um mundo
em que os três pilares da sociedade – Igreja, Estado, Família – estão em avançado estado de
decadência “(O’TOOLE, apud (MESQUITA, 2005, p. 18).
Embora Marina Carr utilize mitos gregos como forma de universalizar conflitos e
temas, a escritora conserva a tradição de seu país, utilizando a linguagem local e a
demarcação de espaço que sinalizam uma identidade irlandesa. Em Ariel (2002) os conflitos
presentes no âmbito familiar se expandem para a esfera pública. Na peça, a temática da morte
se faz presente na obra.
Primeiramente, devemos reiterar que Ariel não se configura como uma “versão” da
peça de Euripedes, a ordenação do enredo e a utilização da peça somente no primeiro ato
reitera o traço paródico que mencionamos inicialmente no texto
Inicialmente, tanto em Ariel quanto em Ifigênia em Áulis, o sacrifício de uma jovem é
realizado, pelo próprio pai, a fim de cumprir uma ordem divina. Carr utiliza a morte como
mote da sua história, entretanto observa-se a distância que o texto irlandês em relação ao
grego, pois a forma como acontecesse esse sacrifício e a finalidade da morte de Ariel difere
do texto clássico. Na peça irlandesa, a ação estende-se para além do sacrifício da personagem
que dá origem ao título do livro. Se em Ifigênia em Áulis (2005) surge um mensageiro para
informar que a heroína não morrera, em Ariel a morte é definitiva, pois é a partir da morte
definitiva da personagem Ariel que ocorrerá o encadeamento para as outras peças de
Eurípedes.
Ifigênia em Áulis pertence ao ciclo troiano ou dos Atridas. Os Atridas são os filhos de
Atreu, Agamêmnon e Menelau. Atreu é inimigo do Irmão Tiestes. Agamêmnon mata Tântalo,
filho de Tieste e toma Clitemnestra (até então esposa de Tiestes) por esposa e com ela gera
três filhos, a saber, Ifigênia, Electra e Orestes. Ifigênia está ligada a Guerra de Troia. Ela é
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sacrificada para acalmar a cólera de Ártemis, por conseguinte, os ventos favoráveis para a
partida do exército fossem soprados.
Considerando o sacrifício na peça de Euripedes, em Ariel a peça se inicia in media res,
ou no meio dos eventos importantes, com a festa de aniversário da personagem-título. A
aniversariante está cercada pelo pai, Fermoy, a mãe, Frances, os dois irmão, Elaine e Stephen,
o tio, Boniface e a tia-avó, Sarah. O primeiro ato se inicia no presente na qual as rubricas
responsáveis pela caracterização do espaço situam o leitor em relação ao espaço-tempo: “Sala
de jantar da casa da família Fitzgeral, mesa, CD player, cadeiras” (CARR, 2009, p.66). Como
presente de dezesseis anos, Ariel ganha de presente de aniversário do pai um carro. Só mais a
frente é quando o espectador irá perceber a verdadeira intenção do pai, e a partir de então, o
clima harmonioso que estava presente na festa de aniversário se acaba e várias mortes são
instauradas em toda a trama.
Fermoy Fitzgerald é dono de uma fábrica de cimento e aspirante a uma vida politica.
Anteriormente, ele fora derrotado pelo seu oponoente, Hannafin, mas agora ele acredita que
seu Deus está do seu lado e o guiará para uma vitória certa. Contudo, para ocorrer essa vitória
Fermoy deve sacrificar sua filha, Ariel. Dez anos após a morte de sua filha, Fermoy que agora
está se candidatando a ministro da Irlanda, em entrevista, responde sobre a morte de sua filha
VERONA: Sua filha. Sei que isso é difícil, mas como você poderia nos
contar o que aconteceu com Ariel?
FERMOY: Ariel saiu dessa casa no seu aniversário de dezesseis anaos para
mostrar a amiga seu novo carro que demos de presente. Ela nunca voltou.
VERONA: Eles nunca a encontraram?
FERMOY: Não, eles nunca a encontraram.
VERONA: Você perdeu a esperança, ministro?
FERMOY: Sim, perdi.
VERONA: Você acredita que ela está morta.
FERMOY: Sei que ela está
VERONA: Como você sabe, ministro?
FERMOY: Em meus assos. Não me pergunte como sei, mas eu sei e
desejaria não ter conhecimento. Daria minha vida para vê-la entrar por
aquela porta novamente. Mas isso não irá acontecer. (CARR, 2009, p.109-
110. Tradução nossa)1.
1
VERONA: Your daughter. I know this is difficult, but could you tell us what happened to Ariel?
FERMOY: Ariel walked ouha this house on her sixteenth birthday to show a friend her new car that we’d goh
her as a presente. She never cem home.
VERONA: They never found her?
FERMOY: They never found her, no.
VERONA: Have you given up hope, minister?
FERMOY: Yes, I have.
VERONA: You believe she’s dead.
FERMOY: I know she is.
VERONA: How do you know, Minister?
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FERMOY: Você está chamando-os de algo que não foram. Deixe-me conta-
la algo, Frances. Antes de colocar os olhos em você, muito antes disso, eu
tinha um sonho. Um sonho tão bonito que eu queria ficar na cama até os fins
dos tempos. Estava num cemitério com Deus e essa garota com asas
apareceu ao lado dele. E eu disse: ‘Quem é o dono dela?’ E Deus disse: ‘Ela
é dele’. E eu disse, ‘Nos dê o empréstimo dela.’ ‘Não’, Ele disse, ‘ela não é
do sabor da terra’, como se estivesse falando de sorvete. Estupidamente eu
disse, ‘levarei-a de qualquer jeito’. ‘Tudo bem’, ele disse rindo para mim.
‘Agora se lembre que ela é só um empréstimo’. ‘Eu sei’, eu disse. ‘E chegará
FERMOY: In my bonés. Don’t ask me how I know, buh I know and wish I didn’t and wish ud was otherise. I
would give me life for her to walk through thah duur agin. Buh that’s noh going to happen. (CARR, 2008, p.109-
110).
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o tempo em que vou querê-la de volta’, ele disse. ‘Sim, sim’, eu disse
voando no cemitério com ela antes que ele mudasse de ideia. Ariel. Aquela
era Ariel
[...]
FERMOY: Eu tive que sacrificar Ariel (CARR, 2009, p.124-125. Tradução
nossa)2.
É através da anagnorisis, que Frances irá vingar a morte de sua filha, matando o seu
marido. Mesquita (2005) afirma que o segundo ato demonstra a ascensão e queda de Fermoy
Fitzgerald. Após arrancar as informações necessárias sobre a morte de Ariel, Frances obtém
dados da possível localização do corpo da personagem principal. Logo, essa informação irá se
configurar como o elo para o próximo ato.
O terceiro ato inicia dois meses após a morte de Fermoy. Esse ato remete para a
segunda parte da trilogia de esquilo, Coéforas. Nas Coéforas, a morte de Agamêmnon é
vingada pelo seu filho mais jovem. Em Ariel, irá acontecer a vingança, entretanto o crime não
será praticado por Stephen, mas sim pelas mãos de Elaine. Com o caixão de Ariel em cena,
revelações são feitas e o ódio que Elaine sente pela mãe é imenso.
ELAINE: Você parece não entender o que está acontecendo aqui, Stephen.
Ela matou nosso pai, cortou-o até o sangue espirrar pelas paredes. Tive que
enterrá-lo em pedações. Era a única de luto no funeral dele. Eu, Boniface, tia
Sarah e você estava consolando Mãe ao invés de ir no funeral do seu próprio
pai. Ela nem permitiu um funeral público. As pessoas amavam-no. (CARR,
.
2009, p.131)
Antes do confronte final entre mãe e filha iremos perceber o desajuste psicológico de
Elaine. Embora, ela foi a única a tomar consciência plena de todos os problemas familiares, o
excesso de conhecimento irá provocar o seu desequilíbrio (MESQUITA, 2005) e dará
tonalidade ao aspecto trágico da peça:
ELAINE: Bem, eu sou Jame. Sou o pai que você esquartejou. Eu sou a Ariel.
Eu sou Elaine com a sua morte na palma de minha mão.
3
Esfaqueia Frances na garganta. (CARR, 2008, p.145. tradução nossa) .
2
FERMOY: You’re callin them everthin except what they were. Leh me tell you something, Frances. Before I
ever laid eyes on you, long before thah, I had a drame, a drame so beauhiful I wanted to stay in it till the end a
time. I’m in a yella cuurtyard wud God and we’re chewin the fah and then this girl wud wings appears by hees
side. And I say, who owns her? And God says she’s his. And I say, give us the loan of her, will ya? No, he says,
she’s noh Earth flavour, like he’s talking abouh ice crame. And stupidly I say, I’ll take her anyway. Alrigh, he
says, smilin ah me rale sly, alrigh, buh remember this is a loan. I know, I know, I says, knowin natin. And the
time’ll come when I’ll want her returned, he says. Yeah, yeah, I say, fleein the cuurtyard wud her before he
changes hees mind. Ariel. Thah was Ariel.
[...]
Fermoy: Yeah, I had to. Ya thin I wanted to sacrifice Ariel? I had to ( CARR, 2009, p.125)
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Nos três atos de Ariel e de forma a construir a sua ação trágica, a autora se remeteu ao
texto clássico de forma a problematizar os problemas Irlandeses. De fato, ao observarmos o
aspecto paródico da peça, observamos que o aspecto risível do termo não é aplicado nesse
contexto. A paródia é um elemento bitextual na qual demanda uma decodificação da sua
estrutura.
3
ELAINE: Well, I am James. I’m james returned. And I’m me father that ya butchered to hees eyeballs. And
I’m Ariel. And I’m Elaine wud you deah ib ne oaknm carved inta my plain a Mars like stone.
Stabs Frances in the throat (CARR, 2009, p.145)
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Referências
Comunicações
Individuais
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Considerações Iniciais
O escritor José Saramago surgiu com maior expressão, na literatura lusitana, a partir
da década de 70, sendo o maior expoente do denominado grupo “pós-25 de abril” (MOISÉS,
2008, p. 525). Esses escritores celebraram o fim do regime totalitarista estipulado pelo Estado
Novo durante décadas com uma produção literária marcada pela pluralidade estilístico-
temática. Nesse viés, Saramago produziu poesia, drama e prosa (encontrando, certamente,
maior excelência estética nos romances), versando sobre os mais variados assuntos como: a
identidade portuguesa, a realidade social, o intimismo psicológico, a história, a religião, entre
tantos outros.
Em relação a essa temática religiosa, o autor parecia aficionado pelas crenças e pelos
dogmas judaico-cristãos e desenvolvia a sua atenção ficcional para episódios míticos ou
históricos que marcaram essas instituições eclesiásticas. Entre suas narrativas nessa tendência,
têm destaque os romances O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. Na sua dramaturgia,
são expressivos dessa propensão A segunda vida de Francisco de Assis e In nomine Dei.
Restringindo a nossa discussão ao drama In nomine Dei, verificamos que essa peça, ao
roteirizar em sua trama um episódio histórico, recria, esteticamente, em nossa
contemporaneidade, muitos preceitos do gênero dramático, sobretudo trágico, estabelecidos
pela teoria literária.
O nosso estudo se propõe, portanto, a analisar tal recriação dos elementos trágicos
nesse drama contemporâneo do escritor português. E, para isso, recorreremos a Hegel e à sua
teorização sobre o drama em A estética (1980), com o auxílio dos comentários sobre a teoria
hegeliana de Sandra Luna, em A tragédia no teatro do tempo (2008).
Em seu curso sobre Estética, Hegel parou para estudar a poética, tanto em suas
especificidades de características e de expressão como em seus principais gêneros: a poesia
épica, a poesia lírica e a poesia dramática. Ao introduzir a discussão sobre o drama, o filósofo
o considerou o gênero mais elevado por reunir, em sua ação, os elementos intimistas líricos e
o privilégio dos acontecimentos da épica (1980, p. 277).
Ao definir os detalhes da ação dramática, o autor chama a atenção para a
transcendência do drama sobre a simples progressão da ação. Para ele, de acordo com a sua
visão dialética do mundo, os sucessos dramáticos não prescindem de conflitos, motivados por
paixões opostas, de que se resulta a restauração da ordem, em forma de apaziguamento final
(1980, p. 279).
Em breve exposição da comparação feita com os outros gêneros, podemos inferir que
Hegel tem o entendimento de que o drama é resultado da ação individual abstrata,
diferentemente da motivação coletiva e nacionalista da épica, e essa interioridade está,
necessariamente, atrelada a uma sucessão de acontecimentos, o que não coincide com o canto
subjetivo do lirismo (1980, p. 280-1).
O gênero trágico
O capítulo que trata dos gêneros da poesia dramática diz que os tipos dramáticos são
estabelecidos pelas diferenças entre os caracteres e os fins de cada classe dramática. Essas
diferenças indicam duas variações principais: a tragédia e a comédia (1980, p. 321).
Embora nos possa ser útil algum entendimento do que o cômico, ater-nos-emos, de
acordo com o objetivo deste trabalho, a partir de agora, só sobre os comentários de Hegel
sobre a tragédia.
Como a realização dramática se dá no plano das individualidades, os motivos trágicos
são resultado de uma força motivadora: a vontade (1980, p. 322). O amor, a família, a vida
civil, a pátria etc. são apenas expressões distintas da vontade humana.
Os heróis trágicos são revestidos de uma imagem de elevada grandeza porque a
vontade que motiva a sua ação assume a feição de elemento moral (1980, p. 323), principal
responsável pela sugestão de individualidade nos dramas trágicos.
A ação individual, inspirada no desejo de realização de um fim, tenta se construir em
uma pretensa superioridade (1980, p. 323), o que provoca o isolamento do herói em relação
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[...] Talvez devêssemos considerar que, para Hegel, a dialética não era
somente uma lei do pensamento, mas uma lei do ser, uma lógica dinâmica
que se aplicava à dimensão física e natural, aos indivíduos e à sociedade, aí
incluída a história da raça humana, portanto, uma lógica passível de explicar
também o funcionamento do universo dramático, já que este se apresenta
como uma representação poética dessa realidade explicável pela dialética.
1
Podemos apreender que a ação dramática é fruto direto desse caráter moral que, ao motivar uma escolha, no
âmbito do livre-arbítrio do indivíduo, levará o sujeito da ação ao erro, de que resultará a catástrofe final.
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restabelecida objetivamente por uma força exterior e superior, como nas tragédias antigas, em
que um deus poderia assumir essa função (1980, p. 349); pode-se encontrar um meio de
solução subjetiva, na qual as personagens abandonam a unilateralidade por opção (1980, p.
349); e, ainda no campo da subjetividade, a conciliação pode aparecer quando a personagem
encontra o equilíbrio interior (1980, p. 350).
A ação trágica
entre os luteranos e os anabatistas e entre as personagens que formam o grupo principal, nas
vicissitudes próprias do poder político-religioso, indo do “quadro 6” do “primeiro acto” até o
“quadro 2” do “terceiro acto”; a última e decisiva parte mostra o bloqueio à cidade exercido
pelas tropas católicas, que representaram a lembrança do “macroconflito” durante toda a peça,
e a vitória destas sobre os líderes anabatistas em uma chacina violenta, nos três últimos
“quadros” do “terceiro acto”.
O conflito maior
A desgraça exposta nesse quadro revela o uso da linguagem não verbal para chocar o
espectador. A escuridão simbólica e a preponderância da morte sobre a vida revelam o quão
avassaladoras podem ser as lutas religiosas motivadas pela intolerância humana.
Curiosamente, esse também será o último quadro da peça, o que destaca mais ainda a
finalidade didática da imagem: pelo entendimento de que esse é um fenômeno cíclico ou pela
prolepse da catástrofe trágica do final, o público terá a sensibilidade afetada.
O mesmo fenômeno de repetição no final acontecerá com o “quadro 2”, em que uma
voz profética se eleva da escuridão que encerrou a cena anterior para repetir as previsões de
Daniel (SARAMAGO, 2010, p. 15): ‘“Por Aquele que vive eternamente, isto será num tempo,
tempos e metade de um tempo. Primeiro, a força do povo há-de quebrar-se inteiramente.
Então todas estas coisas se cumprirão’.” Agora, esclarece-se melhor a primeira cena: o poder
estabelecido pelos protestantes, que será apresentado a partir do próximo quadro, será
destruído na sucessão do tempo com muita violência, assim que a resistência da cidade for
vencida e tudo isso ocorrerá em nome d“Aquele”.
Depois dessa introdução, poética e incógnita, a ação efetiva da peça irá começar no
“quadro 3” – a lembrança de Hegel parece inevitável: o conflito a ser resolvido ao final é
aquele que se estabelece como referencial no começo (SARAMAGO, 2010, p. 16):
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KNIPPERDOLLINCK
O tempo em que se cumprirão as profecias é chegado.
Eis que o ouço, imperioso, bater às portas de Münster.
Vão já distantes os dias em que mal ousávamos protestar e combater os
mosteiros [...].
Os camponeses que os príncipes alemães andaram a matar no Sul
ressuscitam agora no Norte, mas, desta vez, não exigem somente o pão e a
justiça.
A língua morta deles reencarnou na nossa língua viva, e eis que uma e outra
estão reclamando o trabalho constante de Deus no meio dos homens.
Porque é hora de tornar-se cada homem num enviado e num profeta do
Senhor.
ROTHMANN
A reformada palavra de Deus soprou o ar dos meus pulmões e tomou o
caminho da minha boca quando ainda andava pregando fora das muralhas de
Münster, na Igreja de S. Maurício.
Dali me foi expulsar nefandamente Waldeck, o bispo dos católicos,
cometendo violência contra a minha liberdade e a minha alma.
Mas os mercadores da cidade, esses que na minha juventude, para benefício
da comunidade, me mandaram estudar em Wittenberg, deram-me abrigo e
protecção, e hoje a minha voz ressoa aqui, no coração de Münster, nesta
Igreja de S. Lamberto. [...]
2
Estaria Saramago sugerindo que a aproximação entre o pensamento mercantil crescente no século XVI e o
protestantismo também se deu na Alemanha? O conhecimento de outras obras suas, como A segunda vida de
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a cidade e a universidade em que Lutero ensinava, como também a influência que este
exerceu sobre os protestantes que lhes pospuseram (BARZUN, 2002, p. 24).
As perseguições do bispo Waldeck sofridas por Rothmann até chegar à Igreja de S.
Lamberto mostram a repressão católica à Reforma na Alemanha e antecipam os confrontos
entre católicos e protestantes que se estenderão por toda a trama.
Após o estabelecimento dos anabatistas na Igreja de S. Lamberto, haverá, no “quadro
3”, um novo confronto entre protestantes e católicos, entre os quais se encontram membros do
conselho municipal e teólogos, de que os reformadores sairão vencedores.
O que levará o bispo Waldeck, no “quadro 4”, a confiscar todas as mercadorias
destinadas a Münster e o líder radical Knipperdollinck a sequestrar os cônegos que estavam
na Catedral. Após a chegada do bispo com soldados armados, a divisão na cidade entre
católicos e protestantes parece óbvia e o confronto armado é iminente. Vejamos a resolução
desse embate (SARAMAGO, 2010, p. 29-31):
SÍNDICO
Busquemos uns com os outros uma solução justa para este conflito.
Embainhai as espadas e os punhais. [...] é nossa obrigação de conselheiros
tudo fazer para poupar a cidade aos sofrimentos duma contenda como esta.
Tanto mais que por Carlos, nosso Imperador, foi em Nuremberga
determinado que, até à realização do anunciado concílio, ninguém pudesse
ser molestado nas suas crenças religiosas.
Tomai então, para a resolução deste caso, vós, bispo Waldeck e nosso
príncipe, e vós, protestantes da cidade, o espírito de Paz de Augsburgo. [...]
KNIPPERDOLLINCK
Eis as nossas condições:
Desembargue o bispo as mercadorias e faça abrir as estradas, e nós
libertaremos os teólogos.
Quanto às paróquias, o que está, está, e assim continuará.
O bispo que tome conta da Catedral e dos conventos.
WALDECK
Há malevolência e atrevimento diabólico na vossa proposta, mas, tendo em
conta a vontade soberana do Imperador e a força das presentes
circunstâncias, condescendo em aceitá-la.
A Igreja esperará o seu dia, pois devíeis saber que o tempo lhe pertence.
E vós pagar-me-eis três vezes e trinta vezes esta ofensa. [...]
Francisco de Assis ou O evangelho segundo Jesus Cristo, que aproximam a prática religiosa ao pensamento
econômico, pode nos levar a crer que sim.
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que a fala do síndico traz algumas indicações históricas de ações do Imperador Carlos V: o
desejo político de Nuremberg, a tentativa apaziguadora de Augsburgo e a expectativa de
realização do Concílio de Trento, o que só se realizaria a partir de 1545 (ROBERTS, 2005, p.
467).
Após ter sido lembrado pelo síndico de sua situação política delicada como “príncipe”
e “bispo”, Waldeck vai acabar cedendo às imposições dos protestantes. Todavia, a parte final
de sua fala prenuncia uma ação militar mais efetiva pelas tropas católicas, o que não tardará a
acontecer – destaquem-se as presenças simbólicas dos números cíclicos “três”
(CHEEVALIER, GHEERBRANT, 2002, p. 899) e “dez” (CHEEVALIER, GHEERBRANT,
2002, p. 334) nas previsões de vingança do bispo e a sua alusão à propriedade católica do
“tempo” como indicadores da pertinência da profecia anunciada no “quadro 2”, em relação à
futura vitória católica.
Knipperdollinck, Rothmann e os outros protestantes terão a segunda vitória relevante
sobre os católicos, ficando o confronto final entre os anabatistas e as tropas de Waldeck
adiado para o “terceiro acto” da peça.
Os conflitos menores
Se Hegel nos diz que a solução de um conflito pode acarretar outros conflitos, também
nos será permitido dizer que o conflito principal do texto pode dar início a outros conflitos
menores, que serão resolvidos no desenrolar da trama, no tempo em que a solução final é
aguardada.
Então, enquanto não há uma solução definitiva para o confronto entre as duas
religiões, ocorrerá uma série de conflitos internos no grupo protestante: a subdivisão em
conservadores (luteranos) e radicais (anabatistas), as divergências em relação a práticas e
dogmas e as disputas e articulações pelo poder na cidade.
Destacaremos três episódios, agora, como indicadores dessas disputas internas. O
primeiro mostra a divisão do grupo protestante a partir do ritual da comunhão, no “quadro 6”
do “primeiro acto” (SARAMAGO, 2010, p. 35-36):
É nítido o confronto de ideias em relação aos ritos sacramentais, como ocorrerá mais à
frente na trama, no episódio do batismo de uma criança, entre os anabatistas, com a sua
postura mais radical, e os luteranos, com a sua postura moderada.
Em todo o início da peça, quem parece ter a função de representar os rituais e dogmas
dos radicais é Rothmann, que será contraposto a Van der Wiek, o novo síndico da cidade,
representante da vitória protestante na disputa pelo Conselho Municipal na cena anterior a
essa.
É-nos lícito dizer que a postura dos luteranos, embora menos agressiva, está mais
próxima a dos católicos, representados, nessa cena, pelo coro, indicando-nos que esse
conjunto de vozes assume uma função permanente na ação da peça.
Com a chegada de uma comitiva da Holanda, a fim de transformar Münster na Nova
Jerusalém, no “quadro 7” do “primeiro acto”, quem assumirá a posição de líder na cidade será
Jan Matthys. A passagem que destacaremos, a seguir, mostra como Jan van Leiden, apóstolo
batizado pelo próprio Matthys, vai articular a morte dele para poder tomar o seu poder, no
“quadro 3” do “segundo acto” (SARAMAGO, 2010, p. 77-79):
MATTHYS
O Senhor mostrou-me as fogueiras dos católicos e só depois ordenou:
“Levanta-te e caminha.” [...]
“Levanta-te e combate”, eis o que o Senhor quis que eu ouvisse. [...]
JAN VAN LEIDEN
Sem dúvida, é vontade claríssima do Senhor que de Münster saiamos a dar
definitiva batalha aos soldados de Waldeck.
Mas repara, Matthys, que Ele não disse: “Levantai-vos e caminhai”, como
seria o próprio se fosse Seu desejo que saíssemos, todos juntos, a lutar contra
os papistas.
A Sua palavra foi clara e imperiosa: “Levanta-te”, disse Ele, e a ti o disse,
“Caminha”, e era a ti que falava. [...]
MATTHYS
Deus iluminou o teu espírito e mostrou-me o que, por humildade, o meu não
tinha sabido compreender. [...]
Como um raio desferido pela irada mão do Senhor, reduziremos a pó e a
cinza o poder de Waldeck.
Tal como a cinza e pó reduzimos os livros e as imagens que ofendiam a
palavra e a face do Senhor. [...]
Adeus, Jan van Leiden.
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É irônico, mas eficiente, o modo como Jan van Leiden usa o suposto dom de Matthys
de se comunicar com Deus e o fundamentalismo deste para levá-lo à morte. O que vai definir
o convencimento do profeta é uma questão gramatical: o verbo está conjugado no singular, o
que exigiria o ato messiânico de Jan Matthys.
O entendimento literal do recado parece ser apenas um meio para satisfazer a vaidade
desse conhecedor dos desígnios divinos, o oposto satírico da “humildade” que ele diz ter em
sua fala. Então, ele parte, acreditando-se redentor de seu povo e herói maior daquela batalha
contra os “papistas” – a quem ele já afetou com a sua iconoclastia reformadora, como mostra
sua fala em “tal como a cinza e pó reduzimos os livros e as imagens que ofendiam a palavra e
a face do Senhor”.
O “adeus” de sua despedida é um indicador claro, não só do insucesso de sua empresa,
como também da morte violenta que lhe aguarda à frente, mostrando, além da intolerância
humana dos católicos, a estupidez do fundamentalismo religioso.
Após a morte de Matthys, será Jan van Leiden quem vai se “autoproclamar” o seu
sucessor no poder de Münster. E, sobre a sua regência, será proclamada a necessidade da
poligamia, no “quadro 1” do “terceiro acto”, Jan van Leiden mandará Rothmann pregar ao
povo a necessidade de as mulheres, que estão em maior número na cidade do que os homens,
casarem e procriarem, como no Antigo Testamento, mesmo que esses homens já sejam
casados. Vejamos o momento de tal enunciação e as suas consequências (SARAMAGO,
2010, p. 104):
ROTHMANN
Todas as pessoas núbeis ficam obrigadas a contrair matrimônio.
As mulheres solteiras aceitarão por marido o primeiro homem que as
solicitar.
Na pureza da aliança e sem luxúria carnal.
Assim constituiremos o Reino de Deus.
CORO MASCULINO (Alegremente)
O Senhor o quis, cumpra-se a vontade do Senhor.
CORO FEMININO (Tom de protesto)
Seremos nós como o gado não curral, que não se lhe pergunta com quem
quer acasalar?
ROTHMANN
Cuidado, mulheres, e homens que estiverdes do lado delas, pois todo aquele
que resistir a esta ordem será considerado réprobo e estará sujeito a ser
executado.
KNIPPERDOLLINCK
A quem anunciou o Senhor a sua vontade? A ti, ou a Jan van Leiden?
Se a ti, por que não está Jan van Leiden aqui presente para sabê-lo, sendo
ele, como sucessor de Matthys, o chefe reconhecido de Münster?
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Se a ele, por que foste tu encarregado de fazer este anúncio ao povo, sendo
eu o porta-espada, aquele que, em autoridade e em poder, vem depois de Jan
van Leiden?
O final trágico
A partir do “quadro 3” do “terceiro acto”, o cerco das tropas papistas é mais intenso,
fazendo com que Waldeck decida “apertar o bloqueio e fazer render a cidade pela fome”
(SARAMAGO, 2010, p. 119).
Embora o agora “rei”, Jan van Leiden, tente distrair o povo de sua cidade com
comunhões festivas e danças extraordinárias, nunca deixando de retaliar violentamente
qualquer oposição, os cidadãos de Münster parecem ter perdido a fé e a esperança em uma
possível reviravolta, como se vê no “quadro 4” (SARAMAGO, 2010, p.128-129):
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CORO GERAL
[...] Os meus inimigos insultam-me todo o dia, como dementes, proferem
imprecações contra mim.
Em vez de pão, como cinza, e a minha bebida mistura-se com lágrimas. [...]
JAN VAN LEIDEN
Que é isto, fiéis anabtistas? Que tristes palavras ouço eu das vossas bocas?
[...] A hora não é, pois, de lamentações, mas de júbilo, porque o dia da
salvação vem perto e, com ele, chegará o castigo dos ímpios.
CORO GERAL
Não duvides, ó rei, da minha paciência, não duvides da fé que me guia, mas
este corpo, de tão exausto e faminto que o levo, já mal pode reter o espírito.
WALDECK
Deus venceu, louvado seja Deus.
Eis que calcamos aos pés a hidra da heresia e lhe faremos pagar os seus
crimes.
Não invoqueis, malditos, a misericórdia do Senhor, porque é Ele quem vos
quer exterminados.
Eu sou apenas o braço da justiça de Deus. [...]
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Abjurai dos vossos erros, aqui, diante de mim, como diante da Santa Madre
Igreja Apostólica Romana, que, seu bispo, represento.
Abjurai!
A chacina que é posta na cidade, nesse momento, é para a glória de Deus, segundo a
passagem “Deus venceu, louvado seja Deus”, o que nos daria o último entendimento do título
da peça: “em nome de Deus”, será toda essa desgraça.
O levante protestante é considerado herético pelo ‘inspetor” da Igreja, que se julga
representante única da “universalidade” de Deus e dona exclusiva de sua onipotência e de sua
misericórdia, como se constata em “não invoqueis, malditos, a misericórdia do Senhor,
porque é Ele quem vos quer exterminados” ou em “eu sou3 apenas o braço da justiça de
Deus”.
O imperativo “abjurai!”, que encerra a fala do bispo Waldeck, ordena que os
anabatistas neguem a sua religião e aceitem o catolicismo como a única seita verdadeira. Os
conselheiros ainda vivos, Krechting e Knipperdollinck, não abjuram e são presos em gaiolas.
As esposas do rei não abjuram e são mortas. O único que abjura, tentando se livrar da morte, é
Jan van Leiden, mas também será preso.
A solução hegeliana é imprescindível: não havendo abandono da vontade ou acordo
entre as individualidades é preciso que haja a destruição da unilateralidade (1980, p. 325), o
que, nesse caso, será o fim trágico dos anabatistas.
Considerações Finais
3
Para que se entenda a real conotação de sincronia com Deus implícita na expressão “eu sou” ver BRANCO, R.
O poder transformador do cristianismo primitivo. Brasília: Teosófica, 2004.
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Tal embasamento nos faz pensar que essa peça, dentro de sua modernidade, reinventa
esteticamente esses padrões clássicos, em vários aspectos: além de corresponder às ideias de
vontade como motivadora do conflito e de fim trágico como restituidor do equilíbrio a partir
da destruição das individualidades em conflito; o tratamento dado por Saramago ao tema
religioso mostra como a vida religiosa, vinculada, aqui, não à ordem divina, como na
Antiguidade, mas às ações humanas – não nos esqueçamos de que a maioria das personagens
principais era ligada a alguma função religiosa –, assume uma sugestão de atividade
dramática, já que é a dualidade de crenças que irá motivar a ação ao conflito e deste à
catástrofe trágica final.
Podemos, então, encerrar este estudo com a conclusão que o escritor português José
Saramago tem a sua melhor realização dramática em In nomine Dei, na qual ele conseguiu
enlaçar elementos oriundos da tragédia clássica à peculiar reinvenção estética da
modernidade, sem se desprender do tom crítico do estilo neorrealista que o tornou célebre.
Referências
______. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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A exposição oral deve ser tratada como objeto de ensino de expressão oral...
Em alguns casos a exposição vem de uma longa tradição e é constantemente
praticada... Assim, a exposição permanece como uma atividade tradicional...
Ao citar as características gerais do gênero pode-se dizer, segundo Dolz,
Schneuwly et alli (2004), que a exposição é um discurso que se realiza numa
situação de comunicação específica chamada de “bipolar”, unindo o orador
ou expositor e seu auditório, assim, a exposição pode ser qualificada como
um espaço-tempo de produção onde o enunciador vai ao encontro do
destinatário, através de uma ação de linguagem que veicula um conteúdo
referencial. Mas, se esses dois atores encontram-se reunidos nessa troca
1
A partir de informações do próprio trabalho destas autoras, constata-se que, na época de composição do
mesmo, eram estudantes da Universidade Estadual de Londres.
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Refletindo sobre o exposto, selecionamos aqui o discurso de Jesus sobre “o sal da terra
e a luz do mundo”, quando estava assentado sobre um monte, junto aos seus discípulos que se
aproximaram dele (Mt. 5. 1).
É de nosso especial interesse compreender o processo de constituição e de
representação do sujeito discursivo, firmado o fato de que existam divergentes maneiras de se
representar o discurso de outrem no plano enunciativo. Deste modo, iremos adentrar no
entendimento de como se constitui e de como se re(a)presenta o sujeito discursivo Jesus
Cristo, em sua exposição oral sobre a “o sal da terra e a luz do mundo”.
Nesse direcionamento, Sobral (2009, p. 54) afirma que, segundo o Círculo, “(...) o
sujeito é essencialmente um agente responsável pelo que faz, agente que, em suas relações
sociais e históricas com outros sujeitos igualmente responsáveis (inclusive apesar de si
mesmos), constitui a própria sociedade sem a qual ele mesmo não existe.” O sujeito, dessa
forma, constitui um agente mediador entre os sentidos socialmente possíveis e os discursos
produzidos em situações concretas.
Acerca disto, é importante observarmos que a realidade do sujeito se apresenta como
um mundo de vozes sociais em várias relações dialógicas: “relação de aceitação e recusa, de
convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de intersecções e hibridizações.”
(FARACO, 2003, p. 80). É nessas condições de produção de suas enunciações que o sujeito
vai se constituindo discursivamente, pois vai apreendendo as vozes sociais, bem como suas
inter-relações dialógicas.
É o aporte teórico da Análise Dialógica do Discurso que subsidiará a análise do corpus
a ser utilizado nesta produção. A irrupção desse campo de investigação teórica abrange um
conjunto de conceitos elaborados no âmbito do pensamento do Círculo de Bakhtin, cuja
linhagem de pensamentos se embasa em pesquisas desenvolvidas em terreno brasileiro, como
as de Faraco (1993), Fiorin (2006) e Sobral (2009), entre outros.
V. 13: Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de
salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos
homens.
V. 14: Vós sois a luz do mundo: não se pode esconder uma cidade edificada
sobre um monte.
2
As beatitudes, no contexto sagrado Bíblico de Mateus 5, fazem referência às bem-aventuranças que estavam
destinadas, guardadas para todos aqueles que cumprissem o mandamento do Senhor Deus, e que os tivessem
cumprindo. Simboliza uma espécie de galardão/recompensa para os que sofreram/ sofrem por amor ao
Evangelho.
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mestre3. Isso muda totalmente o percurso interpretativo, pois nos permite entender o porquê
de Jesus lhes poder falar metáforas profundas:
Mt. 13, 10: E, acercando-se dele os discípulos, disseram-lhe: Por que lhes
falas por parábolas?
V 11: Ele, respondendo, disse-lhes: Porque a vós é dado conhecer o mistério
do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado;
V 13: Por isso lhes falo por parábolas; Porque eles, vendo, não vêem e,
ouvindo, não ouvem nem compreendem.
Neste instante, o sujeito falante teve o intuito de selecionar seu discurso de forma
metafórica e profunda porque sabia que a maior parte dos discípulos o compreenderia, e
estaria preparada para interpretá-lo e principalmente cumpri-lo. Com isso, entendemos que
existe um querer-dizer por parte do enunciador, e ao mesmo tempo um querer-ocultar através
de seu dizer. Neste momento em que Jesus enunciou sua parábola, vários enunciados ficaram
permeáveis à sua expressividade, ou seja, seu discurso poderia ter mais de um sentido ou
significado [a depender de como foi recebido por cada destinatário – o(s) outro(s)]. Como dirá
Bakhtin (1997. p. 318):
E onde está o princípio dialógico, neste ato enunciativo? Como testemunharemos mais
à frente, a dialogicidade deste discurso ocorre na própria enunciação, pois o discurso estava
sendo comum a todos os discípulos. Perceba-se, também, que ocorre sempre uma explicação
posterior, à proporção que cada metáfora é realizada, o que selecionamos aqui como o
segundo momento de cada enunciação. O primeiro momento consiste na exposição das
metáforas, e o segundo, na explicação ou contextualização de cada uma delas. Quando
adentramos, portanto, neste segundo instante dos enunciados de Cristo, entendemos que o
discurso se estabelece dialogicamente com todos os que se prestam a compreender as
metáforas. Demonstremos isso:
3
O termo mestre provém do hebraico “rabi”, e significa também instrutor. Refere-se em diversas passagens
bíblicas a Jesus, pelos seus discípulos, como em Mt 22. 16.
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A partir da tabela, podemos entender que, ao (a)firmar os discípulos como sendo o sal
da terra, Jesus os identifica como seres de sublime importância na divulgação de seu
evangelho4, dos quais depende o bom gosto, o “salgar”, e os benefícios para que o alimento5
da terra (o pão, que é o próprio Jesus Cristo, de acordo com João 6. 35) seja bom, perfeito e
agradável6. Este enunciado mantém diálogo pleno com o que é contextualizado na carta de
Paulo aos Colossenses, quando este último exorta o povo à oração e sabedoria: “A vossa
palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais como convém responder
a cada um.” (Col. 4. 6) (Grifos nossos). De igual maneira Jesus alerta seus discípulos,
afirmando que se não assumirem a função do sal, para nada mais prestarão, senão para serem
lançados fora do ministério, e serem pisados pelos homens, já que o mundo não os aceitará.
Desta forma, na explicação e contextualização desta passagem, quando a linguagem torna-se
comum a todos, dá-se o princípio dialógico.
4
A respeito disso, veja-se Mc 16. 15: “E disse-lhes: ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”.
5
Ao adentrarmos em estudos mais profundos a respeito deste alimento, perceberemos que se trata do próprio
Cristo, através de seus ensinamentos. É um alimentar-se do pão, que é Jesus Cristo, simbolizado pela sua
Palavra. Acerca disso, vejamos João 6. 35: “E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não
terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”.
6
Confirma-se esta afirmação na carta de Paulo aos Romanos 12. 2: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e
perfeita vontade de Deus” (Grifos nossos).
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Jesus, como enunciador, para constituir seu discurso, leva em conta o discurso de
outrem, utilizando-o no seu discurso. Essa compreensão mútua se perfaz a partir do instante
em que Jesus discursa em um plano enunciativo reconhecível a todos, ou pelo menos, à maior
parte das pessoas. Acerca deste aspecto, afirmará Bakhtin (1997):
O autor, nesse aspecto, é aquele que trabalha num espaço em que as palavras
apresentam-se móveis, flutuantes, polissêmicas, ocupando este ou aquele
espaço sócio-histórico e, para usar uma tese bakhtiniana, refletindo e
refratando tal espaço. O autor institui-se como tal nessa instância saturada
pelos enunciados outros, constituindo-se singular em meio à pluralidade e à
diversidade. (FRANCELINO 2013, p. 18).
Por fim, podemos articular que a individualidade de Jesus, como autor, é marcada na
expressão de seu querer-dizer, de sua projeção discursiva, e finalmente, de sua potencialidade
para o diálogo. Vez que é externado e saturado de enunciação, o discurso sobre a o sal da
terra e a luz do mundo é ressignificado pelo sujeito autor, no contato que estabelece com a
realidade sócio-histórica dos interlocutores que o recebem. Assim entendemos Jesus Cristo
como responsivo linguística e enunciativamente pelo seu discurso sobre o sermão do sal da
terra e a luz do mundo, configurando-se autor de uma construção dialógica.
Considerações finais
7
O autor, a partir do instante em que estabelece relações de pertencimento com a palavra, pode categorizá-las,
como faz Bakhtin (2000, p. 313):
Palavra neutra → que não pertence a ninguém
Palavra do outro → pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios;
Palavra minha → na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva,
ela já se impregnou de minha expressividade.
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Conforme se evidencia nesta produção, a autoria, entendida aqui como uma função,
tanto enunciativa quanto discursiva do sujeito (neste caso Jesus Cristo), é passível de ser
apreendida a partir do instante em que se estabelece contato com a materialidade linguística
do enunciado (no processo da enunciação), ou seja, quando nos reportamos para a sua
exposição oral sobre o sal da terra e a luz do mundo. Passamos a compreender como se
manifesta a dialogicidade do discurso a partir do instante em que são deixados rastros e pistas
padronizados e variáveis, de acordo com Bakhtin/Volochinov (1997).
É na ocupação de uma área linguístico-textual e enunciativo-discursiva que o autor se
coloca num terreno delicado e fluido de uso da linguagem, encontrando-se na zona de
intersecção entre a ordem do individual e a ordem do social. Em outros termos, o lugar da
constituição/ representação de Jesus Cristo é caracterizado pela forte tensão entre suas
palavras e o dizer (o silêncio é uma forma de dizer algo) do outro.
Findando-se esta produção, vale salientar que o universo discursivo deste sujeito
autor, responsável/responsivo pela relação que mantém com o outro – os discípulos (seus
interlocutores) – se mantém pelas interações com a exterioridade que o constitui, ou seja,
enunciados validados pela história e pela memória sociais: o interdiscurso.
Referências
Introdução
De acordo com Bakhtin (2012), a linguagem consiste em uma prática que tem sua
situação histórico-social concreta no momento da atualização dos enunciados. Assim, tal
concepção de linguagem é centrada nos interlocutores, apresentando, dessa forma, seu caráter
ativo no ato verbal em que o discurso é produzido. Posto que a enunciação seja o produto da
interação de “dois indivíduos socialmente organizados” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012,
p. 116), todo e qualquer texto, seja ele verbal ou não-verbal, tem uma natureza sociointerativa,
pois quem o produz tem uma intenção de comunicar, de dizer. Como afirma Bakhtin (2003, p.
282), “A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero
de discurso.”(grifos do autor)
Então, é adentrando e se aprofundando em um projeto de investigação a respeito dos
discursos humanos e da interação entre esses seres no processo de comunicação que surge(m)
o(s) conceito(s) de dialogismo, para Bakhtin. Em suas palavras,
1
Por uma questão estrutural de organização do trabalho, selecionamos, aqui, como sendo o primeiro momento
do discurso de Pedro sobre a descida do Espírito Santo o(s) enunciado(s) que comporta(m) dos versículos 14 ao
21 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos.
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outro, tornando-se um ser responsável e participativo pelo que enuncia, um agente produtor de
sentidos dos discursos produzidos socialmente em situações concretas.
Objetivamos, no presente trabalho, analisar a representação do sujeito Simão Pedro em
seu discurso - exposição oral – sobre a descida do Espírito Santo, segundo o relato que consta
nos Atos dos apóstolos (capítulo 2) por entendermos que, no gênero discursivo em foco, os
sujeitos criam (no ato da comunicação e da interação verbal) o efeito de sentido desejado de
compreenderem-se responsivamente, já que incorporam nos seus discursos os discursos de
outrem. Procuramos observar as possibilidades de sentido presentes em seu discurso, na busca
de compreender como ocorre a apreensão das vozes sociais pelo sujeito e observando os
efeitos discursivos a partir dos enunciados que se atualizam. Sob o viés do dialogismo,
buscamos, assim, discorrer sobre o discurso religioso.
A pesquisa é de caráter bibliográfico e documental e o corpus constitui-se de 8 (oito)
versículos bíblicos relatados por Lucas nos Atos dos apóstolos acerca de palavras de Simão
Pedro. A exposição oral geralmente se realiza numa situação de comunicação específica em
que o expositor une-se, pela interação verbal, ao(s) seu(s) destinatário(s). Dessa forma, a
exposição oral se caracteriza pelas diferentes formas de presença do outro, ou seja, presença
de diversas vozes sociais, estas resultantes de relações interdiscursivas. Trata-se, portanto, de
uma pesquisa de cunho qualitativo-interpretativo.
A análise deste trabalho tem por fundamento a Teoria da Enunciação de Bakhtin e o
Círculo (2011, 2012) e os postulados da Análise Dialógica do Discurso, representada por
trabalhos de alguns estudiosos em terreno brasileiro como Faraco (2003), Fiorin (2006) e
Sobral (2009). Primeiramente, abordaremos acerca do conceito de dialogismo de Bakhtin
caracterizado como princípio constitutivo da linguagem. Em seguida, sobre o sujeito Simão
Pedro para, posteriormente, analisar a sua representação no gênero em questão.
A exposição oral deve ser tratada como objeto de ensino de expressão oral...
Em alguns casos a exposição vem de uma longa tradição e é constantemente
praticada... Assim, a exposição permanece como uma atividade tradicional...
Ao citar as características gerais do gênero pode-se dizer, segundo Dolz,
Schneuwly et alli (2004), que a exposição é um discurso que se realiza numa
situação de comunicação específica chamada de “bipolar”, unindo o orador
ou expositor e seu auditório, assim, a exposição pode ser qualificada como
um espaço-tempo de produção onde o enunciador vai ao encontro do
destinatário, através de uma ação de linguagem que veicula um conteúdo
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v. 14: ... – Varões judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto
notório, e escutai as minhas palavras.
v. 15: Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a
terceira hora do dia.
2
“Pentecoste, gr. quinquagésimo. A segunda das três grandes festas anuais a que devia comparecer todo o povo
de Deus. Chamada pentecoste porque era observada no quinquagésimo dia depois do segundo dia de páscoa.
Chamada pentecoste porque era observada no quinquagésimo dia depois do segundo dia de páscoa. Conhecida,
também, como a festa das semanas, porque observada sete semanas depois da páscoa, Dt. 16, 9. Também se
denomina a festa das primícias, Ex. 23, 16; Nm. 28, 26. (BOYER, 2009, p. 414) (Grifos do autor).
3
A partir do que constatamos em leituras circundantes ao texto em análise neste trabalho, especificamente Atos
2, dos versículos 1 ao 13, percebemos que A descida do Espírito Santo (grifos nossos) foi uma manifestação
espiritual que aconteceu a todos os adoradores que se encontravam reunidos no mesmo lugar ( que simboliza a
Palavra de Deus). Na descrição desta manifestação, houve “línguas repartidas, como que de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles”, e isso representa um tipo de dom espiritual (veja-se I cor. 12, 10), o de falar em
línguas estranhas e de interpretar.
4
Nesse ponto, ao se dirigir às pessoas, Simão Pedro estabelece uma diferença entre dois povos, selecionando
Judeus de um lado e moradores de Jerusalém de outro. Para entendermos o porquê disso, temos de retornar um
pouco a acontecimentos passados. Se observarmos o versículo 5 do capítulo 2 de Atos, consta que “Em
Jerusalém estavam habitando Judeus, homens religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu” (ATOS 2,
5). Portanto, o termo Judeus, nessa condição de produção, não faz referência a moradores da Judéia, e sim a
seguidores da linha doutrinária da religião judaica, naquele contexto cultural. Logo, no discurso de Pedro, houve
divisão enunciativa por motivos de crença: de um lado os judeus, seguidores da doutrina religiosa das Tribos de
Israel dos hebreus do Antigo Oriente. De outro lado, todos os moradores de Jerusalém, uma referência a todos os
povos estavam presentes no momento da descida do Espírito Santo, e que são descritos dos versos 9 a 11 deste
mesmo capítulo: “Partos e Medos, Elamitas e os que habitavam na Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto,
Ásia, Frigia, Panfília, Egito e em partes da Líbia, junto a Cirene, e a forasteiros romanos, tanto Judeus como
prosélitos, Cretenses e Árabes” (ATOS 2, 9-11).
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homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia 5”: faliu-o no
intuito de recuperar um acontecimento (com toda sua densidade concreta) e de (re)configurá-
lo, prestando-lhe nova roupagem.
Vale frisar que, neste contexto, a representação do discurso de Pedro se faz pela
contradição, no ato de enunciar palavras que soaram em sentido contrário ao pensamento dos
judeus e dos moradores de Jerusalém. A partir do versículo 16, então, para sustentar seu
posicionamento de recusa em relação ao imaginário daquele(s) povo(s), Simão nos traz um
discurso que fora proferido outrora pelo profeta Joel6, ressignificando-o, atribuindo-lhe nova
vestimenta.
Por mais que o discurso trazido por Pedro seja o mesmo que o do profeta Joel, sem
mudanças no que se refere ao plano linguístico, está revestido de novo significado, pois está
sob novas condições de produção, inserido em um contexto (temporal-espacial) sacerdotal
diferente. A representação do sujeito, neste discurso, não está no fato de ter trazido as mesmas
palavras (forma composicional em que ela ocorre), e sim na atitude de inseri-las em um novo
processo comunicativo. “Todos os enunciados no processo de comunicação, independente de
sua comunicação, são dialógicos” (FIORIN, 2006, p. 19).
Ao recuperar o discurso de Joel, Pedro quis (a)firmar para os judeus e para todos os
residentes de Jerusalém que o acontecimento da descida do Espírito Santo e a manifestação
dos dons espirituais eram verdade, já que se tratavam de uma profecia Justa, tanto perante a
lei dos homens quanto perante a lei de Deus. Com isso, persuadiu os que duvidaram e
5
A terceira hora do dia, no calendário judaico, consiste nas 09:00 horas da manhã.
6
Joel é o autor do segundo livro, dentro da classificação dos doze pequenos livros, conhecido como um dos
“profetas menores” (grifos do autor, para explicar que o termo menores faz referência à dimensão dos livros, que
são pequenos em estrutura linguística)... Filho de Petuel. Em seu sermão no dia de Pentecostes (At. 2, 14 em
diante), Pedro cita a profecia de Joel acerca da redenção de Deus (Jl 2, 28-32), uma profecia de esperança e um
novo começo com Deus. (LOSCH, 2008, p. 264). “grifos do autor”
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zombavam (v. 13), já que os judeus se sustentavam na lei de Moisés (ancorada, por sua vez,
na lei e na(s) profecia(s) dos homens do Antigo testamento). Os outros povos traziam consigo
seus costumes culturais e religiosos. Novamente prestando crédito a Fiorin (2006, p. 19),
Para constituir seu discurso, portanto, Simão tanto levou em conta o discurso judaico
(no momento, contrário ao seu) quanto o de Joel, no qual se sustentou. É nessas condições de
produção de suas enunciações que o sujeito vai se “formando” discursivamente, pois vai
apreendendo as vozes sociais, bem como suas inter-relações dialógicas.
A concepção dialógica apresenta que, antes mesmo de falar, “(...) o locutor altera,
‘modula’ sua fala, seu modo de dizer, de acordo com a imagem presumida que cria de
interlocutores típicos, ou seja, representativos, do grupo a que se dirige.” (SOBRAL, 2009,
p.39). Neste viés interpretativo, segundo Sobral (2009, p. 51), o sujeito, dentre outras
características que o constituem, é aquele que
Age sempre (o que inclui todos os seus atos: cognitivos, verbais etc.)
segundo uma avaliação/ valoração daquilo que faz ao agir/falar, e pela qual
se responsabiliza, e o faz a partir tanto da identidade que forma e vê
reconhecida como das coerções que suas relações sociais lhe impõem ao
longo da vida e que vão alterando essa identidade que ele veio a formar.
(SOBRAL, 2009, p. 51).
O sujeito Simão Pedro, em suas enunciações, assume uma responsabilidade pelo que
faz, a partir tanto de sua identidade como das relações sociais que lhe são impostas e que vão
alterando sua identidade. Pedro, ao se engajar em seu discurso, a exemplo dos versos 14 e 15
(citados, p. 6 deste), reconstrói sua identidade. Ele está ao mesmo tempo considerando o
discurso do outro (o discurso judaico, ainda que discorde totalmente das opiniões alheias),
visto que o sujeito ocupa, na sociedade, múltiplas identidades, pois está sempre em contato
com diferentes interlocutores. Assim, por exemplo, neste momento não assume apenas a
identidade religioso, mas também de apóstolo e defensor da doutrina divina dos dons, do
ministro que está defendendo a espiritualidade profética da manifestação dos dons. Então, é
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assim que sua identidade é compreendida como uma construção socialmente organizada por
meio de outros discursos.
Simão Pedro, como enunciador, para constituir seu discurso, leva em conta o discurso
de outrem, utilizando-o no seu discurso, gerando maiores possibilidades de entendimento.
Essa compreensão mútua se perfaz a partir do instante em que discursa em um plano
enunciativo reconhecível a todos, ou pelo menos, à maior parte das pessoas, neste caso na
recuperação do discurso de Joel (que, por sua vez, já vinha ressignificando, em diversas
passagens, o discurso mosaico, de quem grande parte da multidão era seguidora).
Considerações Finais
Referências
LINGUAGEM E LITERATURA
[...]
Convém que antes que os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
[...]
Cláudio Manuel da Costa – Vila Rica, 1773.
José Maria do Espírito Santo, mais conhecido como José do Patrocínio (09/10/1853-
30/01/1905), nasceu em São Salvador dos Campos do Goitacazes, no Rio de Janeiro, cidade
mais conhecida como Campos. Filho do cônego João Carlos Monteiro (1799-10/01/1876),
principal figura do clero na cidade, dono de fazenda, maçônico, político (ora deputado
provincial, ora vereador da câmara municipal), que aos 54 anos encantou-se por uma de suas
escravas, Justina Maria do Espírito Santo (12 para 13 anos), que engravidou do menino
batizado como ‘exposto’, ou seja, de pais desconhecidos (ALVES, 2009).
Patrocínio fugiu para a capital do império muito cedo e lá estabeleceu proveitosas
relações que muito o ajudaram financeiramente e em seus estudos, até tornar-se jornalista
famoso e conhecido pela sua luta contra as injustiças sociais. Já no início da década de 1870
começara como colaborador da imprensa, mas foi em 1877 que se estabelece como
funcionário de um “[...] jornal vivo, popular, empenhado em dar aos leitores informações
colhidas por observadores diretos.” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 55), o Gazeta de
Notícias, jornal em que publicaria dois romances-folhetins, Motta Coqueiro ou a pena de
morte, o primeiro, e Os retirantes, o segundo.
03/03/1878, n. 62. O assunto do romance foi retirado de um fato verídico: Manuel da Mota
Coqueiro, senhor de escravos, fazendeiro em Macabu, no município de Macaé, mas residindo
em Campos, fora acusado de exterminar toda uma humilde família em 1852. É condenado à
morte e executado em 1855, mas muito tempo depois se descobre que a justiça havia
cometido um engano e condenado um inocente a morte.
A história composta de treze capítulos começa com a narração, em flash-back, do dia
do enforcamento de Motta Coqueiro, acusado como mandante do assassinato de Francisco
Benedito e sua família. Logo no início da história, o narrador deixa claro seu pensamento a
respeito da pena capital, como se vê nos trechos que seguem:
Observa-se que o narrador marca clara posição contra a pena de morte, de modo que
assinala a ideia capital do romance e procura desacreditar uma ação movida pela ignorância,
atraso cultural ou incapacidade de visão de determinado grupo. Nota-se também que o
narrador privilegia os erros do processo judiciário que culmina com a morte de um inocente,
mas, discretamente, também põe em cena a questão de assassinato político, pois deixa claro
que o fazendeiro fazia parte de um partido e que seria candidato nas próximas eleições,
hipótese levantada e trabalhada na análise de Bruzzi (1959) sobre o romance e sua relação
com o caso real. Segundo Magalhães Júnior (1957), a punição capital – a pena de morte –
sofreu impacto com o livro do jovem poeta e jornalista José do Patrocínio, pois após a
publicação do romance o carrasco não trabalhou mais, uma vez que os condenados acabavam
sempre ganhando indulgência.
Depois desse primeiro capítulo o narrador passa a relembrar, também em flash-back,
minuciosamente, o meio social e os personagens que cercaram Motta Coqueiro até o dia de
sua morte legal, mas essa reconstituição dos acontecimentos não é pertinente para a sua
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Acreditava mesmo que seria uma loucura, ele, pobre feitor de roça, e demais
disso homem de cor, ir afrontar os escrúpulos da família, quando
Mariquinhas era tão bonita que fácil lhe era escolher um marido entre os
robustos moços trabalhadores dos arredores. (PATROCÍNIO, 1877, p. 50)
Nesse momento, o narrador passa a discutir a problemática racial, pois o feitor mulato
coloca-se numa condição inferior a da moça desejada, principalmente pela sua cor e condição
social e acaba desconfiando do amor de Mariquinhas. Por não acreditar na moça, guiado pelo
ciúmes, até mesmo de Motta Coqueiro, acaba por violentá-la que, a partir desse momento,
passa a repudiá-lo. Ao longo de toda a narrativa, várias outras pequenas histórias dos outros
personagens vão sendo construídas e que, de algum modo, estão ligadas ao fazendeiro.
Outra personagem instigante na trama é tia Balbina, escrava no sítio de Macabu,
feiticeira ainda nova, e é mais respeitada entre os seus do que o próprio personagem principal,
era temida pelos seus conhecimentos de outra natureza, mais conhecidos como espirituais,
configurando uma personagem forte, como a descrição que segue:
Diziam que ela tinha nas suas mãos a vida e a morte de todos, e para dá-las
bastava apenas um olhar ou um assopro.
No eito tinham-na por vezes visto chegar-se junto as cobras adormecidas, ou
enraivecidas, e enxotá-las. Os répteis fitavam-na, agitavam as línguas e as
caudas, tomavam mesmo a atitude de dar o bote, mas de chofre
acovardavam-se e corriam amedrontados à voz da negra que lhes ordenava a
retirada imediata.
Alguns tímidos denunciaram a tia Balbina como feiticeira, e Motta
Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos próprios de
tal arte, para prevenir os envenenamentos possíveis, fez castigar severamente
a escrava. (PATROCÍNIO, 1977, p. 67-8)
Estes dois personagens, entre outros, marcam uma caracterização intensa do ambiente
da senzala e é aí, segundo Santiago (1977, p. 18), que o romance “[...] se afasta da rotina do
romance brasileiro do século XIX, e de certa forma é pioneiro nessa tentativa de configurar
socialmente e de descrever psicologicamente o ambiente da senzala”. Todos os personagens
pormenorizados pertencem, de algum modo, ao círculo social de Motta Coqueiro e as relações
dele com a família de Francisco Benedito e que, de algum modo, resultam e influenciam no
julgamento social da personagem principal que antes de ser julgada pela justiça o é pelo povo
e pela imprensa, condenado como “a fera de Macabu”.
Assim, esses personagens são descritos nos mínimos detalhes, em suas características
mais íntimas, psicológicas, como a paixão insólita de feitor, os rituais religiosos africanos da
tia Balbina, de modo que o negro aparece plenamente com todas as suas características
individuais, o que, afirma Santiago, provem do conhecimento específico de seu autor – José
do Patrocínio – nascido de uma escrava e criado em uma fazenda de muitos escravos, e que
conheceu de perto essas pessoas, presentes agora em sua “memória afetiva” (SANTIAGO,
1977, p. 20).
O personagem de Francisco Benedito é descrito como um homem que, por vezes, bebe
e cometi desatinos. O que a princípio parecia uma boa amizade, tendo Motta Coqueiro como
um bom compadre com o qual é grato, uma vez que ele o ajudou cedendo um pedaço de terra
para que fixasse moradia, com o desenrolar da narrativa torna-se uma relação de ódio, pois
Francisco é enganado por outros personagens da trama e passa a depredar o sítio, não
temendo a lei. Em capítulo intitulado “Como se pagam os benefícios”, assim se expressa o
novo sentimento da família para com Motta Coqueiro: “A família achava-se agora aumentada
por mais um membro, verdadeiro monstro encanecido desde o nascimento, feroz, sanguinário.
O seu nome era o ódio, o seu caráter a perfídia, o seu culto a vingança.” (PATROCÍNO, 1977,
p. 155).
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Alto, magro, com as faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande
mancha arroxeada, as pálpebras entrecerradas, completamente brancos os
compridos cabelos, as sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e
as barbas longas de sob as quais pendia-lhe de volta do pescoço até a cinta,
em torno da qual se enroscava, o baraço infamante; Motta Coqueiro tinha
mais a aparência de um mártir do que a de um celerado. (PATROCÍNO,
1977, p. 32)
Um romance de teses
contrário do texto de ficção, ele não exige a nossa reflexão, trabalhando antes com as nossas
emoções mais superficiais” (SANTIAGO, 1977, p. 12).
O que se observa no encadeamento do romance é a elaboração de uma ideia e, para
isso, o autor usa de algumas estratégias, tais como a caracterização e a ligação entre alguns
personagens, como se viu algumas anteriormente, os quais na ocasião do crime foram
importantes na condenação, primeiramente moral e depois judicial, do personagem central.
Outra construção interessante é a do próprio Motta Coqueiro, não só no dia da morte, mas
também no romance como um todo, símbolo de honestidade, trabalho e integridade moral.
Segundo Gomes (1988), na obra de cunho realista e de preocupação social outra tese
se insinua contra a escravidão, principalmente através da voz de uma personagem marginal
conhecida anteriormente – tia Balbina. Ela sutilmente deixa claro que a escravidão é ruim
para o negro, mas também não é boa para o branco, pois ela aparece como a personagem que
desmistifica e dessacraliza mitos relacionados, por exemplo, a “mãe preta”, tida como aquela
incapaz de se voltar contra seus senhores.
Balbina representa a negra que por um tempo serviu dentro da casa grande, como ama
de leite do filho da família, mas que acabada essa função tem de retornar ao trabalho difícil na
lida com a terra, como na passagem abaixo. Pode-se observar na voz da escrava:
Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos
brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho dos brancos estava
doente, Balbina sentia como se fosse filho dela. Menino já está grande; os
brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos
escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido;
Balbina é surrada, como negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é
Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia
soprar a casa grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o sangue que
correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada. (PATROCÍNO,
1977, p. 32)
- Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a mãe preta, e eles não
deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das
mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas
costas da feiticeira, e o menino nem olha mais para ela. A ririo machucada
morde, a escrava desprezada mata. (PATROCÍNO, 1977, p. 32)
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Agora a negra Balbina sofre a perda de um filho, arrancado de seus braços que, com o
tempo, a desconhece. Sente a ingratidão e a rejeição dos brancos e isso é imperdoável. A
vítima se torna, então, o algoz, a exemplo da narrativa As vítimas algozes (1869), de Joaquim
Manoel de Macedo (1820-1882), pois a vingança germina no coração da negra. A partir
dessas observações, a narrativa se torna interessante não só pela riqueza da composição da
vida na senzala, mas, principalmente, pela configuração de personagens como tia Balbina e o
feitor mulato Manoel João, que, mesmo não sendo escravo, tem-se e é tratado quase do
mesmo modo, ou seja, como ser inferior.
É de um modo original que a escrita abolicionista de José do Patrocínio floresce no
romance, sem estereótipos de escravos sofredores ou cruéis, mas figuras humanas que se
configuram em personagens diferentes, na construção de suas identidades, pois se fala mais
do escravo negro do que da instituição escravidão. A ideia da escravidão é sutilmente
contestada, péssima para ambos os lados da questão – negros e brancos.
Os leitores d’esta folha leram com avidez o romance, que foi aqui publicado
sob o título de Motta Coqueiro ou a pena de morte.
O auctor d’esse trabalho é um collega de real merecimento, e de risonho
futuro.
1
Segundo a Academia Brasileira de Letras, o maranhense abolicionista Joaquim Serra foi professor, jornalista,
político e teatrólogo, ocupou a cadeira número 21 no estabelecimento, que foi sucedido por José do Patrocínio.
Dirigiu e participou como colaborador de vários jornais durante toda a sua vida. Disponível em
<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=900&sid=225>. Acesso em: 30 Jul. 2014.
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Observa-se que Serra faz uma crítica positiva do romance e, para quaisquer outros
detalhes, justifica que o romance “[...] foi um trabalho escripto por trechos, destinado a servir
de libelo contra a pena de morte, subordinado a certas exigencias de nossa folha diaria, que
pretende agradar ao maior numero.” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 24/03/1878, n. 81, p. 01), ou
seja, esses pontos devem ser levados em consideração pela crítica na avaliação do romance
que, no todo, mostra-se razoável.
Já em 1880, encontra-se outro artigo da Gazeta de notícias intitulado “Bibliografia”,
assinado por “Da Saison”, em que o autor afirma o sucesso jornalístico do romance de estreia
de Patrocínio, Motta Coqueiro ou a pena de morte, mas com relação ao segundo romance do
jornalista, Os retirantes, a exemplo do trecho que segue:
José do Patrocínio, no Mota Coqueiro atirou-se para frente com toda a gana
do impressionado. Vê-se incontestavelmente, em mais de um capítulo do
livro, aliás escrito aujourlejour, que só lhe faltou liberdade para chegar às
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Araripe também critica o autor por escrever movido por uma espécie de verve
reformatória, contestatória e ainda por se mostrar demasiadamente ligado a uma tendência
literária específica, o realismo naturalismo. Não se encontra nenhuma análise literária da obra
que conte sua história e analise seus pormenores como personagens, espaço ou enredo e,
desse modo, Patrocínio entra nas histórias literárias como um grande publicista, orador e
crítico brasileiro e seus romances não são nem citados pelas antologias de literatura brasileira.
Esse é o modo de pensar, por exemplo, de críticos literários conhecidos como Silvio
Romero (1851-1914) em sua História da Literatura Brasileira (1954), onde Patrocínio
encontra-se entre “[...] os quatro representantes máximos das raças cruzadas no Brasil neste
século” (p. 1869). O autor concebia como literatura “todas as manifestações de inteligência de
um povo: - política, economia, arte, criações populares, ciências...” (ROMERO, 1980, p. 58),
assim, Patrocínio é classificado mais como um hábil jornalista político do Brasil do que como
escritor de narrativas.
José Veríssimo (1857-1916) também foi um crítico contemporâneo a Araripe Júnior e
Silvio Romero. O autor paraense também escreveu uma História da literatura Brasileira, em
1916, mas para ele a literatura reduzia-se a arte literária, o que limitava os escritos
selecionados, classificação na qual não cabia Patrocínio, mesmo afirmando que ainda era
necessário uma seleção mais rigorosa em nomes por ele mencionados. Assim como Romero
(1980), ele classifica o jornalista no capítulo que trata como publicistas, oradores e críticos.
Paulatinamente, percebe-se que Patrocínio vai perdendo o seu papel de literato, pelo
qual nunca obteve nenhuma espécie de reconhecimento, e continua “sobrevivendo” por outros
motivos que os “puramente literários”, a exemplo de seus escritos jornalísticos na luta contra
a abolição. Nas antologias mais atuais de literatura, como na Formação da literatura
Brasileira (1959), de Antonio Candido, Patrocínio não é mencionado, já na História concisa
da literatura Brasileira (1970), de Alfredo Bosi, o autor aparece listado entre os homens que
tomaram “as letras como instrumento de ação” (BOSI, 1982, p. 286), principalmente política,
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na luta pela liberdade, sem mais explicações sobre os seus escritos, e também nada é dito
sobre a literatura ficcional de Patrocínio.
Constata-se com essa pesquisa, que Patrocínio não contava à época com o que Augusti
(2010, p. 122) denomina de rede de relações, como o aval de um escritor já respeitado no
mundo das letras o que “não apenas auxiliava a divulgação da obra, como também a investia
de prestígio”, uma vez que a indicação era valiosa e normal entre os escritores do século XIX.
Nesse sentido, fora a crítica de Joaquim Serra, sob o pseudônimo Tragaldabas (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 24/03/1878, n. 81, p. 01), e os avisos sobre a venda do romance na Gazeta de
Notícias, encontramos apenas mais duas apreciações superficiais do romance: a apreciação
“Bibliografia”, assinada por “Da Saison” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 09/04/1880, n. 98, p. 02),
e o artigo de Araripe Júnior (NOVIDADES, 28/03/1888, n.69, p. 02).
Embora a crítica literária tenha surgido com a responsabilidade de ser mais um
instrumento de construção da nacionalidade brasileira, outros valores foram sendo
acrescentados e transformaram o termo literatura, que foi sendo construído historicamente, e
que se encontra bem diferente daquele vigente até fins do século XIX. Mesmo na época de
sua publicação, Motta Coqueiro ou a pena de morte não teve uma boa recepção por parte do
público e, segundo os valores estéticos atuais, também não é considerado um bom livro. É o
que afirma a escassez de trabalho sobre o livro e também as Orientações curriculares
nacionais (OCN’s), no trecho que segue:
[...] por transgredir por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de
determinado contexto, [...] ainda é insuficiente [...] se não revelarem
qualidade estética. [...] Muitas obras de grande valor cultural têm escasso
valor estético, até mesmo porque não se propuseram a isso: é o caso, por
exemplo, dos escritos de José do Patrocínio” (OCN’S, p. 56-7, grifos meus).
Ao fazer tal afirmação, de forma vaga, essa instância legitimadora, uma vez que passa
a intervir de maneira determinante na produção, circulação e recepção dos discursos
publicados (CHARTIER, 2011), acaba por afastar a leitura das obras de Patrocínio do cânone
literário e, por consequência, da sala de aula, privando muitos brasileiros de conhecerem um
escritor e jornalista que marcou com seus textos o fim do Império e o início da República, e
que pode ser tomado como parceiro tanto no processo de conhecimento histórico quanto
literário por ter trabalhado um tema relevante para o Brasil, mesmo nos dias atuais, como a
violência.
Assim, pensar a literatura como um simples prazer estético de ler uma obra fechada
em si mesma, desconexa com a realidade das condições de produção e recepção dos textos, ou
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seja, decretar uma leitura imanente dos textos e a procura de verdades eternas ou imanentes
aos homens, segundo Ginzburg (2012, p. 33), “[...] supõe desconsiderar as diferenças,
repressões e conflitos de perspectivas com que convivem as sociedades.”, uma vez que diluem
os conflitos humanos a ponto de se tornarem irreconhecíveis, em sua generalidade e
abstração.
Considerações finais
Referências
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Garamond, 2009.
BRUZZI, Nilo. José do Patrocínio: romancista. Rio de Janeiro: Edição Aurora, 1959.
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CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. 5ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.
GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, FAPESP, 2012.
GOMES, Heloisa Toller. O negro e o romantismo brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. 2ª ed. São
Paulo: LISA; Rio de Janeiro: INL, 1972.
______. O império em chinelos. São Paulo: Editora Civilização Brasileira S/A, 1957.
OCN: Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006.
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Instituto Estadual do livro, 1977.
REIS, R. Cânon. In: JOBIM, J. L. (Org) Palavras da crítica. Rio deJaneiro: Imago, 1992.
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Volume I. Rio de Janeiro: José
Olympio; Brasília: INL, 1980.
______. História da Literatura Brasileira. Volume 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
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Janeiro: F. Alves; Instituto Estadual do livro, 1977.
VERÍSSIMO, J. História da Literatura Brasileira. 5ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
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ZANELLA, Andréa Vieira. Sujeito e alteridade: reflexões a partir da psicologia histórico-
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Introdução
O presente artigo objetiva uma análise do poema “O morcego”, de Augusto dos Anjos,
sob o prisma da desautomatização proposta pelo formalista russo V.Chklovski (1978).
Segundo o autor, a construção poética necessita de um reforço perceptivo, isto é, o
procedimento para a criação artística não passa pela clareza de ideias, mas sim, pelo
obscurecimento. Dessa forma, amplia a percepção do leitor e desconstitui as imagens
previamente estabelecidas para, assim, alcançar um resultado de reflexão poética a partir da
imagem particularizada na significação criada pelo autor.
Para que essa criação poética promova a desautomatização do leitor, como explicitado
acima, é necessário, ao poeta, valer-se de diversos recursos, entre eles a metáfora.
Em “O morcego”, Augusto dos Anjos demonstra um claro exemplo de
desautomtização ao utilizar o animal “morcego” como uma metáfora equivalente à
consciência humana.
Sendo assim, a construção dos conceitos e imagens do senso comum a respeito da
consciência e do próprio morcego são revistas e associadas de forma inesperada e
surpreendente, possibilitando uma nova reflexão do leitor sobre as imagens paras as quais já
havia construído um significado.
O processo de desautomatização
1
Aluno da graduação, em licenciatura, do curso de Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista
do projeto FCPLP (Formação Continuada de Professores de Língua Portuguesa), da mesma Universidade.
2
Aluna da graduação, em licenciatura, do curso de Letras/Português, da Universidade Federal da Paraíba.
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As demandas diárias fazem com que se cumpram uma série de tarefas, ou que se
realizem diversas ações, desde as mais simples às mais complexas. Contudo, essa execução
excessiva faz com que o ser humano condicione-se, habitue-se. Ao habituar-se, diminui,
substancialmente, sua capacidade perceptiva, abrindo mão dos detalhes presentes na
observação desse ato quando executado pela primeira vez. Nisso consiste o processo de
automatização. Uma mecanização devida ao excesso de contato com um ato, seja ele simples
ou complexo, resultando numa diminuição perceptiva.
A maioria das atividades presentes no nosso dia a dia é cumprida irrefletidamente.
Quem nunca executou uma delas e ao fim perguntou-se como conseguiu chegar àquele
resultado? O processo intermediário, localizado entre o início e o término da tarefa, foi
perdido, ou melhor, suplantado pela mecanização do ato. Os primeiros passos dados na vida
de um ser humano não se comparam aos passos dados aos vinte, por exemplo. As sensações
epidérmicas e a emoção de ter seu corpo sustentado pelos membros inferiores pela primeira
vez são sensações perceptivas perdidas com o passar dos dias e da repetição do ato, pois as
demandas diárias exigem um infinito transitar entre uma parte e outra do espaço.
No filme Tempos Modernos, Carlitos tinha como tarefa apertar as porcas nos
parafusos, mas, ao fim do expediente ele saía a apertar parafusos, e não-parafusos, por toda a
parte, numa mera mecanização do ato.
O indivíduo automatizado, portanto, torna-se cada vez mais insensível às coisas
presentes no seu espaço próprio; executando tarefas mecanicamente. No fim, seria como se
não mais andasse, ou não mais visse, e o pior, não mais vivesse. A automatização perceptiva é
algo que assombra o poeta, razão pela qual ele utiliza recursos em seu fazer poético para
aumentar o tempo da percepção.
Neste sentido, “A arte é pensar por imagens” — como bem cita o formalista Vicktor
Chklovski, Potebnia, em A arte como procedimento —, nada mais é que o fazer poético, como
criação artística, carregado de um reforço perceptivo. Segundo o formalista, há dois tipos de
imagens: “a imagem como meio prático de pensar, de agrupar os objetos e a imagem poética,
meio de reforçar a impressão”, ou seja, a arte poética está longe de ser uma criação clara, pelo
contrário o que se busca é um obscurecimento do simples para que o tempo de percepção seja
aumentado. Então se a arte, no geral, é pensar por imagens, o valor da arte poética reside no
obscurecimento dessas imagens.
Para que o indivíduo detenha-se por mais tempo na leitura do poema, o autor utiliza
uma série de recursos para causar um aumento do tempo de percepção através do
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Assim, o estranhamento pode ser entendido como sendo o mesmo que visão, e esta
como o contrário de reconhecimento. O objetivo da imagem, logo, não é o de causar um
esclarecimento, mas um obscurecimento através da particularização do objeto. Particularizar,
ou singularizar um objeto é subverter a lógica simples da visão automática das coisas. Visão
automática, nesse caso, analisada como reconhecimento. No caso do recurso metafórico,
como meio desautomatizador, a particularização é feita através do comparativo, o que ocorre
no exemplo citado anteriormente “olhos de esmeralda”, ou seja, olhos comparados a
esmeraldas. Essa foi uma maneira de definir um objeto de uma forma não conhecida antes,
como o diz Chklovski:
Para o autor adivinhação não está ligada a mera interrogação “o que é, o que é...”, mas
a atribuição de um sentido não usual à coisas do cotidiano. Por exemplo: é como dizer que a
vida, algo que tem como sentido literal “estado funcional comum a todos os animais e
vegetais”, “é a vereda pela qual percorrem os bois o caminho do matadouro”². Esta é uma
imagem criada com intensão de fazer o leitor deter-se mais tempo sobre ela. No caso desta,
como em sua grande maioria, trata-se da comparação: Bois = seres humanos; veredas =
trajetória de vida; matadouro = fim comum a todos (morte). Então um comparativo como esse
não é por uma questão de floreio, nem muito menos de mera comparação, mas é uma forma
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de reforçar a impressão. A poesia, pois, é uma linguagem que não será obrigatoriamente
extensa para trazer consigo um imenso significado.
Contudo, vale mencionar que de nada adianta utilizar metáforas desgastadas para
causar um efeito singularizador nas coisas. Como a relação Amor-coração, que é algo tão
utilizado que já perdeu sua força de impressão. Além do mais, qual estranhamento poderia ser
causado numa expressão como: “eu te dou meu coração”? De novidade não há nada nessa
expressão, portanto, não é capaz de causar estranhamento, nem muito menos um reforço de
impressão. Isso não quer dizer, necessariamente, que a metáfora deva ser fresca, mas sim, que
deve ser reinventada. Como bem frisa o formalista, “a língua da poesia é uma língua difícil,
obscura, cheia de obstáculos”, desta feita, se o que se lê for algo simples, límpido e fluente,
deve ter algo errado, pode ter o título de poesia, mas anda longe de sê-la.
O discurso poético, neste sentido, pode ser entendido como um “discurso difícil,
tortuoso”, ou mesmo “elaborado”. Ora, como se identifica a arte poética senão no
obscurecimento de suas imagens. A poesia é, pois, uma forma de reviver o perdido, ou de
tatear por uma superfície que se subentende como conhecida, mas que, na verdade, está
mascarada pelas imagens criadas pelo poeta. Dessa forma, vê-se o corriqueiro por trás de uma
expressão estilística que o torna extraordinariamente novo.
Analisando O Morcego
Em toda a produção poética de Augusto dos Anjos, são recorrentes os usos de recursos
que proporcionam um aumento no tempo de percepção no leitor, como o recurso metafórico,
o qual daremos maior ênfase nesta análise.
No caso de O Morcego a grandiosidade da metáfora morcego = consciência reside em
sua revelação, que ocorre, precisamente, no primeiro verso do ultimo quarteto. Se fosse uma
metáfora pobre, ou mesmo gasta, esse revelar-se poderia ser um fator responsável pelo
comprometimento da beleza do poema, mas longe disso, a revelação de que o morcego é a
consciência humana funciona como fator estranho. Ora, a intenção do poeta quando se cria
uma forte metáfora é de proporcionar um obscurecimento, mas o eu lírico, antes de terminar o
poema, desmascara a imagem do morcego. Contudo, ao mesmo tempo em que ele faz essa
revelação o leitor é obrigado a retornar ao inicio do poema para conferir os detalhes que se
sobressaem na cena. Logo, a beleza do poema O Morcego está no estranhamento pela
revelação. Vejamos o poema desde o início:
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Neste início o eu lírico está narrando um fato. O mesmo recolhe-se a seu quarto com o
objetivo de dormir, não fosse este morcego que surge e o atrapalha, chegando a mordê-lo
ferozmente. Nesta primeira estrofe não há nada de estranho, ou obscuro. Vejamos, pois, a
próxima:
Nessa segunda estrofe parece ser uma solução não muito racional erguer uma nova
parede para conter uma simples ameaça como um morcego, o que pode denotar que o eu lírico
encontram-se em um estado entre sonho e realidade. Talvez por ser um horário tardio, de
transcendência entre um dia e outro. Notemos também o jogo de palavras da primeira e
segunda estrofes: rec(olho), m(olho), ferr(olho), olho(forma verbal) e olho(substantivo).
Todas elas apresentam em sua constituição a palavra OLHO. Como se todas carregassem em
si a figura do morcego, projetada em um olho que tudo vê.
Continuando a análise, no primeiro terceto, ele faz uma indagação. Vejamos:
Nesta estrofe o eu lírico dá ênfase ao último verso “que ventre produziu tão feio
parto?!”, numa clara intenção de reforçar as primeiras estrofes. Isto é, um ser tão pequeno
apoderar-se de um ambiente completo, desassossegando e desestruturando emocionalmente a
sua vítima, o eu lírico.
Por fim, no último terceto, surge a revelação da imagem do morcego, que é, na
verdade, a consciência humana. Vê-se que inexistindo essa revelação, de que forma
concluiríamos que o morcego é a consciência humana? A beleza do poema está, de fato,
contida na última estrofe, não por revelar o mistério, mas por ser a responsável em trazer um
novo significado ao restante do texto:
Assim, nos é exigida uma releitura a fim de verificar a relação entre o que diz o eu
lírico. A consciência é como o morcego, capaz de passar pelas frestas mesmo quando
achamos que estamos livres.
A imagem metafórica utilizada é de comparação morcego=consciência, mas não com
relação à estética do morcego, e sim com a característica da imperceptibilidade.
No caso do jogo entre as palavras com a terminação “olho”, não há relação direta com
o morcego, pois esses animais são praticamente cegos, mas sim pode estar relacionada à
consciência, pois é algo interior, implacável com os erros passados. Como o morcego é capaz
de encontrar seu alvo mesmo no escuro do claustro, assim também é a consciência, que chega
a nos atormentar por mais que tentemos nos desvencilhar dela. Não há como fugir da
consciência, por mais que se construam paredes e se fechem ferrolhos, nenhum desses
elementos é capaz de obstaculizar a entrada da consciência, do pensamento.
Deste modo, duas imagens são particularizadas, devido ao comparativo: morcego e
consciência. Ambas dentro do poema mantêm uma relação simbiótica, ou seja, isoladamente
não têm força para dar uma maior impressão, mas juntas fornecem ao leitor toda a carga de
significado que o poeta pretendeu.
Conclusão
Referências
ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
CHKLOVSKI, Viktor. A Arte como Procedimento. In.: EIKHENBAUM, B. Teoria da
Literatura: Formalistas Russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978.
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Palavras iniciais
1
Aluna do curso de Letras (habilitação em Língua Portugesa), da Universidade Federal da Paraíba.
2
Professor do curso de licenciatura em Língua Portuguesa da Universidade Estadual da Paraíba, Campus VI, e
professor do curso de Letras LIBRAS Virtual da Universidade Federal da Paraíba.
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Aquarela do Brasil
Compositor: Ary Barroso
Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
4 Vou cantar-te nos meus versos
Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim
Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim
24 Brasil!
Terra boa e gostosa
Da morena sestrosa
De olhar indiferente
32 Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim
45 Brasil!
Pra mim, pra mim
Brasil, Brasil,
Pra mim, pra mim
Brasil, Brasil, Brasil, pra mim...
A canção consiste num poema laudatório que exalta as belezas do país, usando de um
discurso referencial, evocando o sincretismo religioso em versos como “Terra de Nosso
Senhor” e logo em seguida “Tira a mãe preta do serrado”. As águas, o samba e a vegetação
também são exaltados como ícones da nacionalidade brasileira. Constroi-se o retorno a um
Brasil paradisíaco que se viu, talvez, na Carta do Descobrimento. O que se afirma reiteradas
vezes é que esse país, utópico Brasil, é um país pra mim e que com tantos atributos, é
impossível deixá-lo.
É com a copa do mundo de 1970 (no México) que surge o ufanismo na TV. A
população eufórica pela vitória na primeira transmissão ao vivo de uma Copa ia às ruas para
cantar versos patrióticos, unindo governo e futebol num carnaval fora de época.
A música Eu Te Amo meu Brasil foi gravada no período em que a ditadura estava
vendendo a imagem de um País promissor, veiculada nos meios de comunicação, através de
propagandas para adquirir prestígio junto à população. Composta por Dom e Ravel pela
conquista do tricampeonato mundial, teve forte influência no meio artístico e na crítica, fez
com que a dupla ficasse conhecida como os “filhotes da ditadura”, garotos propaganda de um
governo que oprimia a liberdade de expressão com a censura sem trégua, daqueles que não se
aderissem ao sistema.
Escola…
Marche…
REFRÃO
Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul, anil
Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Ninguém segura a juventude do Brasil
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Cálice
Compositor: Gilberto Gil/Chico Buarque
Composta em parceria com Gilberto Gil, expõe a angústia sentida por muitas pessoas
no período ditatorial, para isso, faz uso de um acontecimento bíblico: a crucificação de Jesus,
para fazer uma crítica aos eventos do momento e por que não de seus anseios?!
Considerações Finais
Referências
SÁ, Karina A. Ferreira de. Também Somos Brasileiros. 2000. Disponível em:
http://www.ecs.org.br/site/Interna/Images/hino_nacional.pdf. Acesso em: 29 Jun. 2014.
SOEIRO, Sergio. Análise da música Cálice. Disponível em: http://dialogolinguistico.
blogspot.com.br/2010/05/analise-da-musica-calice.html. Acesso em: 11 Jul. 2014.
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Lat.clás. ĩ ǐ ē ě ā ǎ ǒ ō ǔ ũ
Gal.-
i e ε a o/ ǒ o u
Port.
Ditongo-
œ æ
Lat.clás.
O o final fechou o /ó/ tônico para /o/: f ǒcum > fǒgo > fogo: metafonia entre /ó/ > /o/,
e fechou o /o/ tônico para /u/: tōtum > todo > tudo. Metafonia entre /o/ > /u/. Trata-se de caso
raro na língua portuguesa, de um o tônico passar a u.
Percebe-se que não houve metafonia em palavras invariáveis, como: lǒcum > l/ó/go;
como também não ocorreu metafonia onde não houve risco de ambiguidade, exemplo: dǒlum
> dó, mas em avozinhos (de auviǒlum), que evoluiu para avós, houve metafonia em
decorrência de: aviǒlum > avǒlos > avoos > avós que corresponde aos pais do pai ou da mãe:
meus avós. A metafonia ocorreu entre /o/ tônico de avôos e /ǒ/ tônico de aviǒlum, gerando
avós. O plural avós tem vogal aberta porque é o resultado da forma romance avǒlos, que pela
contiguidade do /o/ final de aviǒlos houve o fechamento do /ǒ/ tônico, causando a síncope do
l e apareceu avôos com três sílabas (a-vô-os) e, por contração gerou avós.
Na Idade Média, a queda do l intervocálico deu origem a avoos que se contraiu no
moderno avós, mas é uma forma que evoluiu de um masculino plural, único caso na machista
língua portuguesa, pois as línguas em que dois gêneros são tradicionalmente “machistas”,
ocorre sempre que nos referimos a um casal, recorremos ao masculino, por exemplo: mãe e
pai= meus pais; tia e tio= meus tios; prima e primos= meus primos; irmã e irmãos= meus
irmãos. No entanto avô e avó=meus avós no feminino, nesta ocorrência, tornou-se um plural
metafônico, devido ao singular masculino fechado e singular feminino aberto, resultando no
plural avós, lembrando que a metafonia realiza-se no singular.
A forma avós é também o feminino, que evoluiu de aviǒlas (avozinhas) diminutivo
plural por intermédio da forma medieval e ainda hoje galega avoas. A mudança da forma
feminina plural foi a seguinte: aviǒla > avǒla > avoa > avós. No feminino, a vogal tônica
manteve-se aberta, como ocorre em cola, bola, argola entre outras. Hoje corresponde as mães
dos nossos pais.
Há, portanto duas palavras latinas que convergiram numa única forma, avós. A forma
avôs teria aparecido para flexionar o masculino plural, correspondendo aos vários (avô),
ajudando a reduzir a ambiguidade existente em avós.
Percebe-se que a evolução das palavras avô, avó e avós da língua latina para a língua
portuguesa foi longa e muito complexa. Na língua latina, avus [ávus] corresponde a avôs e
avia [ávia] corresponde a avós. Só que avus no latim clássico quer dizer os antepassados,
corresponde avôs em português, havendo metafonia entre /o/ e /ǒ/ avôs (no latim) > avós (no
português) ambos significam os antepassados.
Observa-se, portanto que a forma avós na diacronia houve metafonia em:
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decorrência da vogal aberta ser o resultado da forma romance avǒlos, que pela
contiguidade do /o/ final de aviǒlos houve o fechamento do /ǒ/ tônico, causando a síncope
do l e apareceu avôos com três sílabas (a-vô-os) e, por contração gerou avós, significando
ambos – avô e avó: meus avós.
ele se fecha, assim como: mǒorio > mouro ou moiro; ǒcto > oito; ǒclu > olho > olhos; aviǒlus
> aviolos > avós.
Said Ali (1931, p, 23) disse que o ǔ breve do latim clássico para o latim vulgar,
tornou-se /o/ fechado.
Napoleão Mendes (1967, p, 97) menciona que são masculinos os substantivos
terminados em: o, i e u, como em: litro, caju, álibi. Exceto: avó que é feminino.
Carlos Eduardo (1926, p. 64-65) disse que o ǔ e ǒ > ô como em: pǒpulam > povo;
jǒcum > jogo; fǒcum > fogo; ǒculum > olho; sǔper > sobre.
Em Gonçalves Viana (1904, p. 157), na sua Ortografia Nacional, registra avô, avó com
os acentos circunflexos e agudos, tentando organizar à acentuação gráfica em Português. Ele
compreendeu que em avô, avó, há parônimo, como também em avós – plural de avó no
gênero; e avós – os antepassados; avós – meus avós, ambos.
Gonçalves Viana chama atenção, que no uso dos acentos agudo e circunflexo nesses
vocábulos avô, avó, avós, na distinção que podemos fazer entre esses parônimos, cuidado
para que não haja dúvida sobre o modo de ler-se, e, portanto de entender-se. O que se
diferencia na fala não deve, em regra, confundir-se na escrita. (GONÇALVES VIANA, 1904,
p. 175-176).
Na língua literária culta, especialmente na terminologia científica, aparecem o sufixo –
ulo, (-ula), no caso de aviǔlum (diminutivo) – avozinho, hoje encontra-se em palavras
eruditas, como em: gotícula, partícula, opúsculo, glóbulo, radícula, febrícula.
Nas 45 palavras da lista que Viana apresenta, suprimiu avô, por fazer avós no plural
dos dois gêneros, e observa que se cometem erros como “avôs”. Fora da lista, constam os
particípios, geralmente empregues como adjectivos ou substantivos, torto(s), torta(s), ambos
com o aberto, posto com o fechado e postos com o aberto, postas (com o aberto), que seguem
a regra dos adjetivos em -oso, como formoso, formosa, formosos, formosas, estes três com o
aberto. Ei-las então: abrolho, almoço, cachopo, caroço, choco, choro, composto, corcovo,
corno, corpo, corvo, despojo, destroço, escolho, esforço, esposo, estorvo, fogo, forno, foro,
imposto, jogo, olho, osso, ovo, pescoço, poço, porco, posto, preposto, reforço, renovo, rogo,
soro, socorro, suposto, tijolo, tojo, tordo, torno, tremoço, troco, troço.
Segundo Gonçalves Viana, a origem da mudança acha-se nos nomes latinos neutros,
que tinham a terminação -um no nominativo (grifo meu) singular e -a no plural. Trata-se, diz,
dum caso de refração (ou metafonia) que se estendeu a outras palavras por falsa analogia. Nos
adjetivos é excepcional o caso de tôdo, tôda, tôdos, tôdas, sempre com o fechado. Os nomes
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graves de vogal tônica e mantêm geralmente o som etimológico do e (ê < é, i latinos; é < e),
como em grego, seco, belo, certo, dedo, com femininos e plurais com iguais ee (és): cégo,
etc.; sêco, etc.; vélho, etc. A refracção ou metafonia, escreve, são as influências das vogais
átonas finais nas tónicas da sílaba precedente (Umlaut, em alemão): formôso, f. -ósa; pl. -
ósos, -ósas (por causa do -u final) (< lat. -um), escrito com o em português.
Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca, na sua pesquisa, verificou que em 1873,
Augusto Epifânio da Silva Dias, na 2.ª ed. da sua Gramática Portuguesa, nota que não abriram
o o da sílaba tônica no plural as palavras adorno, bolso, estojo, folho, globo e molho (ô). Mas
em 1883, dez anos depois, A. R. Gonçalves Viana, no Essai de Phonétique et de Phonologie
de la Langue Portugaise, diz que já se pronunciava geralmente adornos (ó) e até gostos (ó),
mas este termo só os algarvios o pronunciam assim.
Augusto d’Almeida Cavacas, em A Língua Portuguesa e sua Metafonia, publicada em
1920. Este acrescenta à lista dos plurais que abrem o ô do singular as seguintes palavras:
estojo, corvo, horto, novo, sogro, bolso, forro; por outro lado, não abre no plural o ô do
singular de esboço e de polvo, o que hoje muitos já fazem.
Há casos com hesitações, como em: estolho, escolho, esposo, poço, logro, tijolo,
tremoço, conforto, acordo, contorno, socorro, folho, troco, adorno, despojo e torno.
Entretanto, já Viana abria, e outros também já abriram, isto é, de 1920 para cá.
Para Cavacas também há o plural pescôços, e acrescenta o adjetivo môrno (mórnos).
Os adjetivos em -oso, tais como formoso, ansioso, animoso, famoso, honroso, etc., também
abrem o o tônico no plural. Posteriormente, os não registados, bisavô, estofo, desporto,
arroto, colono, cachopo, rosto, torto, etc., abrem o o tônico no plural.
Atualmente nos plurais com alteração de timbre da vogal tônica, alguns substantivos,
cuja vogal tônica é o fechado, além de receberem a desinência –s, mudam, no plural, o o
fechado [o] para aberto [ǒ ], assim como: caroço, caroços; olho, olhos; povo, povos; porco,
porcos. Entretanto em muitos substantivos conservam no plural o [o] fechado do singular,
como: bolo, bolos; namoro, namoros; rosto, rostos entre outros. Esses plurais, a norma culta
de Portugal e do Brasil, divergem. É o caso dos substantivos almoço, bolso e sogro, que, no
plural, apresentam a vogal aberta [ ó ] em Portugal e fechado [o] no Brasil.
As alternâncias metafônicas de plurais como nos vocábulos formoso > formosa >
formosos > formosas na diacronia têm o fechado em analogia com novos, novas, abre o o
pronunciando formósos, formósas. Esses casos de o fechado ou o aberto têm causado muito
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constrangimentos nos falantes e nos ouvintes, porque fica sempre a dúvida será se esse o
paroxítona é fechado ou aberto?
Os desenvolvimentos da língua latina residuada nas neolatinas refletem nos falantes,
frequentemente nas pronúncias das palavras que há metafonia, sobretudo, nos plurais e as
explicações pouco seguras por latinista nos deixa irritado, insatisfeitos com as explicações.
Considerações Finais
Sintetizando a evolução de avós:
Designou do diminutivo plural - auiǒlum
auiǒlum > aviǒlum > avǒlos > av/o/os > avós.
Houve metafonia entre av/o/o e avós
Entre auiǒlum e avós é o único caso na machista língua portuguesa que um vocábulo
masculino convergiu em um feminino. Exemplo: tio + tia: meus tios; primo+ prima: meus
primos e outros. Avô + avó: meus avós – significa ambos, neste caso não é o plural de avôs.
No gênero – veio do diminutivo plural – aviǒla > avǒla > avoa > avós – significa várias avó.
Na língua portuguesa, por ser flexiva, surgiu avôs para corresponder ao gênero masculino,
significando vários avôs. Estas formas avôs, avós houve metafonia entre o o fechado e o o
aberto. Na sincronia, ajuda evitar ambiguidade.
A forma: Avus era avôs em latim clássico, significando: os antepassados. Um caso de
pluralia tantum - são os substantivos que só apresentam forma plural. Avus no latim, avós em
português. Também não é plural de avôs.
Na Semântica
Há caso de Parônimo na forma avós.
Avós: antepassados
Avós: ambos - pai + mãe: meus avós
Avós: plural de avó para designar o gênero.
Caso de Psicanálise
As alternâncias metafônicas de plurais como nos vocábulos formoso > formosa >
formosos > formosas na diacronia têm o fechado em analogia com novos, novas, abre o o
pronunciando formosos, formósas. Esses casos de o fechado ou o aberto têm causado muito
constrangimentos nos falantes e nos ouvintes, porque fica sempre a dúvida será se esse o
paroxítona é fechado ou aberto?
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Com esta pesquisa esclarece as hesitações, como em: saber quando avós é feminino
plural de avôs, avós sem ser feminino plural de avôs e avós pluralia tantum.
Referências
ANEXO
Texto
Regime de engorda!
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Certa hora, uma jovem e leda senhora, muito amorosa, convidou-me para um almoço.
Já fui convidado a almoços muito saborosos na casa dela. No último deles teve salada de
miolo, ou melhor, de miolos de repolhos, ovos de codorna e deliciosas alfaces. Começamos
tomando uma sopa maravilhosa com pescoços de galinha. Como os sogros dela criam porcos
gordos a poucos metros de onde ela mora, era lógico que o prato principal foi um pernil de
porca sem ossos feitos no forno de tijolos (receita da sua sogra). Esta menina tinha dois
fornos. Estes fornos, um era a lenha e outro a gás. Meus olhos gulosos brilhavam quando
viram aquela mesa com todos os comes e bebes. Para a sobremesa, ela havia feito vários
bolos, tortas e umas bolas cremosas de chocolate. Além disso, ela ainda me oferece paçoca de
amendoim que ela soca aos socos no pilão. Ela sempre dizia: deves experimentar tudo, bebe
mais um copo de vinho, aquele vinho que está alí perto da porta é vinho do porto. Mas eu sei
que devo controlar-me, pois tomo remédios muito fortes. Carinhosamente ela retomava: perde
a vergonha, come bastante, pois sei que corres e te moves muito e o pior é que moras longe
daqui e deves subir muitos morros. Comi tanto neste dia que me senti como sete lobos fartos,
ou melhor, como porcos gordos sem piolhos. Ah, quase esqueci de dizer que esta graciosa
moça era a querida canhota dos meus avós (grifo meu) da minha avó.
Introdução
Este trabalho objetiva fazer uma análise semiótica da espacialização de dois poemas
do poeta sapeense Augusto dos Anjos, enfatizando nos mesmos o procedimento de
ancoragem, as noções espaciais (embreagem/debreagem), alguns aspectos relacionados à
referência e, ainda, observando a relevância do espaço para a constituição destes poemas
como textos discursivos.
O corpus consta dos poemas Debaixo do Tamarindo e Vozes da morte, presentes no
livro “EU: poesias completas” (1963), de Augusto dos Anjos.
A escolha do corpus é importante porque poder-se-á aplicar aos poemas angelinos, a
partir da semiótica francesa, alguns procedimentos textuais e extratextuais relacionados à
referência, à ancoragem, ao diálogo semiótico, à espacialização e ao espaço, já que existe uma
imensa fortuna crítica que trata das poesias deste autor, porém há pouquíssimos trabalhos que
utilizem a semiótica greimasiana como modelo prático de análise para tratar do mesmo.
A teoria considerada foi a semiótica de linha francesa, também chamada greimasiana,
que se atém ao estudo da significação, concebida como função semiótica, prevista e
manifestada em discurso. Esta teoria apresenta três níveis de análise: a estrutura fundamental,
as estruturas narrativas e as estruturas discursivas. No entanto, para este trabalho, priorizou-se
a categoria espacialização, a qual está contida na sintaxe discursiva (primeira componente das
estruturas discursivas).
A espacialização e o espaço
que estes funcionam como referentes a que a semiótica espacial faz referência textualmente.
Eles são visuais, físicos, porém, ao serem inseridos no discurso, os sujeitos os utilizam com
valores respectivos que lhes constituem como tal.
Além da espacialização narrativa e discursiva, a semiótica usa o espaço cognitivo que
relaciona os sujeitos com suas percepções intersubjetivas. Este espaço cognitivo faz parte do
discurso, cujo referente principal é o próprio sujeito, formado pelos procedimentos de
enunciação ou as relações intersubjetivas que ocorrem entre enunciador e enunciatário.
No poema Debaixo do tamarindo, nas duas primeiras partes, dois espaços são
confrontados pelo sujeito: um, o espaço onde ele e seu pai viveram; outro, o espaço atual onde
o mesmo ancora seu discurso, a fim de retratar que o presente traduz seu passado. Embora as
noções espaciais sejam distintas, posto que denotam momentos diversificados da vida deste
sujeito, no que diz respeito ao tempo interno do poema, percebe-se nitidamente que se trata da
mesma localização espacial, no caso o tamarindo, só que o sujeito observa de ângulos
inversos aos olhos e de posições distintas. No primeiro momento, o sujeito está localizado
debaixo do tamarindo, no segundo momento, ele encontra-se à frente da árvore,
provavelmente da mesma noção espacial referenciada textualmente.
Como se nota, na infância, numa primeira instância espacial, este sujeito usou o
espaço tamarindo para descansar à sua sombra, da lida do dia a dia, conforme conota a
linguagem hiperbólica usada pelo poeta nos trechos: “Chorei bilhões de vezes com a canseira
de inexorabilíssimos trabalhos”. Em outra instância espacial, especificamente no segundo
quarteto, já distanciado tempo-espacialmente, ele reflete e conclui que esta árvore, metonímia
de tamarindo, preserva sua memória e a dos seus antepassados. Deste modo, o ontem
pressuposto na passagem “No tempo de meu Pai” e o hoje, presente na passagem “Hoje, esta
árvore de amplos agasalhos”, o tempo ancorado pelo sujeito discursivo, geram uma oposição
também espacial. Porque ele, pelo processo de debreagem, evade-se no tempo e no espaço,
produzindo outras noções espaciais que explicam o presente vivido pelo mesmo, que agora,
embreado no hoje, portanto ancorado pelo próprio discurso, mostra que, embora seja o
mesmo espaço, tamarindo, o tempo do discurso é outro e as percepções espaciais são outras,
como também a perspectiva ou o ponto de vista do observador.
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espaços ancorados pelo sujeito do discurso podem conotar dúvida, imprecisão, ambiguidade
espacial, já que a percepção que este sujeito tem dos mesmos pode ser negativa ou positiva.
Ele pode querer permanecer ao lado dos seus antepassados e perto do tamarindo, então, o
aqui seria um espaço positivo; também o sujeito pode querer ficar enterrado longe daquele
espaço familiar. O aqui, no caso, seria um ponto negativo para este sujeito, correspondendo a
outro espaço, algum lugar alhures, não mais o tamarindo.
Nota-se, no entanto, que a primeira parte do poema influencia a segunda parte do
mesmo, visto que o espaço tamarindo é um espaço onde o sujeito chorou, onde ele trabalhou
incansavelmente e onde conserva sua memória e a dos seus antepassados. Neste caso, o aqui
ganha outra nuança significativa a qual denota uma noção espacial que é prejudicial a este
sujeito, pois é um espaço onde ele foi infeliz ou onde ele não se realizou socialmente. Assim,
de certa maneira, a imprecisão espacial sugerida pelo último verso do poema é desfeita.
Porém, independentemente do tempo futuro denotar o espaço da morte, o mais relevante é
observar a constituição metafórica do mesmo. Por isso o dêitico é fundamental para
confrontar o passado e o presente deste sujeito.
O poema “Debaixo do tamarindo” foi escrito em na Paraíba, em 1909 e publicado
pela primeira vez em 18 de abril de 1909, no jornal “A União”, na cidade de Paraíba, atual
João Pessoa (PB). Se se levar em consideração este espaço e este tempo externos,
relacionados tanto à publicação do poema, quanto à produção do mesmo, poder-se-ia dizer
que o sujeito, nos dois primeiros espaços produzidos pelo poema, está próximo do tamarindo
espacialmente, mas distanciado no tempo. Já em relação à segunda parte do poema, a
ambiguidade produzida pelo advérbio aqui é desfeita, já que aqui estaria relacionada ao lugar
que o poeta estaria inserido, no caso Paraíba, por sua vez, o tamarindo seria o lá, ou seja, o
espaço longe, distante do poeta. No entanto, caso só se considerasse estas relações tempo-
espaciais, empobrecer-se-ia o poema, posto que ele é um texto expressivo, polissêmico e
carregado de ambiguidades e riquíssimo em conotação ou linguagem conotativa. Daí a
necessidade de se priorizar inicialmente o espaço interno e, em seguida, confrontá-lo com o
espaço externo.
Neste poema, percebe-se que o sujeito encontra-se próximo do espaço tamarindo. Dois
fatores são importantes para que isto aconteça: um, a presença do adjunto adverbial de tempo
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agora; outro, por causa da presentificação verbal, disposta na forma indicativa vamos. Este
espaço, mesmo usado pelo sujeito para evitar uma morte solitária, pode ter dois sentidos
possíveis: primeiro, o tamarindo pode funcionar como um espaço responsável pelas
infelicidades deste sujeito, visto que o mesmo passou a vida inteira distante desta árvore
estimada; segundo, pelo fato do tal espaço representar um obstáculo a este sujeito, já que o
mesmo lhe foi nocivo na infância. Ainda que nos versos seguintes se note que este sujeito está
velho e pretende partilhar sua velhice com o tamarindo.
Outro espaço relevante presente no poema é o espaço da noite,, o qual sugere
desfalecimento, frustração, certeza, solidão, tristeza e pressupõe tanto a morte do sujeito,
quanto a do tamarindo. Nesta parte do poema, novamente surge o desejo que o sujeito tem de
morrer junto do tamarindo, a fim de afastar sua solidão, daí a explicação para o animismo ou
prosopopeia criada na passagem: “E essa futura ultrafatalidade de ossatura, a que nos
acharemos reduzidos!”. Posto que este sujeito crê que o tamarindo se assemelha a ele, no
aspecto mortal e físico. Agora, esta leitura somente é possível por causa de dois aspectos: um,
a presença da palavra ossatura que significa ossos de animais ou relativo à estrutura óssea. No
poema, esta palavra denota a ideia de esqueleto, caveira; outro, a frase “a que nos acharemos
reduzidos” que sugere a morte dos dois sujeitos. O tamarindo, nesta passagem, só é
considerado sujeito devido à sua personificação.
Na segunda parte do poema, o sujeito cria mais dois espaços possíveis e prováveis:
primeiro, o espaço do futuro que pressupõe sua eternidade espiritual e a perpetuação do
tamarindo; segundo, o espaço da morte onde haverá a completude dos dois sujeitos, embora a
eternidade da árvore já esteja discursivizada na passagem: “Não morrerão, porém, tuas
sementes!”. Todavia, segundo o sujeito, isto só é possível ocorrer por causa do amor mútuo
que os dois mantiveram em vida.
O poema “Vozes da morte” foi escrito no engenho Pau-d’Arco, em 1907 e publicado
em 24 de maio de 1907, no jornal “O Comércio”, na Paraíba. Percebe-se, neste caso, que há
uma compatibilidade entre o espaço interno do poema com o espaço externo, já que o sujeito
que fala no poema está junto do tamarindo, como se verifica na passagem: “Agora, sim!
Vamos morrer, reunidos, tamarindo de minha desventura!”; e o poeta também está próximo
do espaço tamarindo, como se percebe nos dados biográficos que foram explicitados
anteriormente. Todavia, o espaço externo só é relevante para se fazer uma análise superficial
do poema, visto que não é possível delimitar o espaço da morte fora do texto poético. Assim,
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mais significativo será mostrar a importância deste espaço externo para a construção do
poema como um todo discursivo.
Conclusões
Os dois poemas retratam de maneiras distintas a infelicidade de dois sujeitos que, ora
estão debreados, ora estão embreados do tamarindo, o qual, no primeiro poema, funciona
como um espaço onde o sujeito sofreu com a labuta diária, mas ainda guarda boas
recordações infantis e suas memórias familiares. No segundo poema, o tamarindo está
próximo do sujeito todo momento, isto porque o sujeito está infeliz e necessita da companhia
do mesmo.
Ainda nos dois poemas há a presença do espaço da morte. No segundo poema, este
espaço se mostra certo, preciso, mais evidente e mais presente, a começar pelo próprio nome
“Vozes da morte”. Por sua vez, a morte no primeiro poema aparece como algo possível,
hipotético, repleto de possibilidade, não como certeza absoluta.
Portanto, os dois textos apresentam várias circunstâncias espaciais que precisam de
uma atenção maior e mais cuidadosa. Entretanto, talvez em outro trabalho se possa explorá-
las, já que uma sistematização ou uma tipologia do espaço pressupõe um estudo de mais
fôlego.
Referências
ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.
ALMEIDA, H. Augusto dos Anjos. Razões de sua Angústia. Rio de Janeiro: Graf. Ouvidor,
1962.
AUGUSTO DOS ANJOS – A HETEROGENEIDADE DO EU SINGULAR (Organizadoras:
Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e Ana Isabel de Souza Leão
Andrade). João Pessoa – Paraíba: Mídia Gráfica e Editora Ltda., 2012.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Humanitas, 2002.
BATISTA, M. F. B. M. A enunciação: do fazer persuasivo ao interpretativo. In: XIX Jornada
Nacional de Estudos Linguísticos, 2002, Fortaleza. Programa & Resumos - XIX Jornada
Nacional de Estudos Linguísticos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. v. 1. p. 72-72.
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ANEXOS
Anexo 1
DEBAIXO DO TAMARINDO
Anexo 2
VOZES DA MORTE
Introdução
A literatura é utilizada pelo escritor como um meio para registrar um contexto sócio-
histórico-cultural de determinada época ou povo, e através do léxico divulga certas expressões
ou lexias que tornam conhecidas as características presentes em uma determinada região. Por
sua vez, o léxico de uma língua traduz a cultura, a história e as características de um povo,
presentes tanto na língua falada quanto na língua escrita.
Partindo dessa afirmativa é que este trabalho tem como proposta fazer um estudo
lexicográfico das expressões populares regionais presente na obra Morte e Vida Severina
(auto de natal pernambucano) de João Cabral de Melo Neto, com a finalidade de elaboração
de um glossário. A escolha da obra deve-se a relevância que a mesma tem na produção
literária doautor, bem como a fidelidade em retratar a região sertaneja, o homem sertanejo e
suas peculiaridades, tais como religião, condições sociais e culturais, enfim.
O glossário elaborado aqui tem como intuito proporcionar aos leitores da obra um
melhor entendimento das expressões e lexias bem peculiares utilizadas pelo autor, embora
não se esgotem os significados apresentados, podendo surgir outras interpretações.
Percebemos que os estudos relacionados ao fazer lexicográfico da obracitada é ínfimo, sendo
realizado alguns trabalhos no âmbito do contexto sócio- histórico, linguístico ou
literário,diante disso torna-se interessante e pertinente fazermos um estudo lexicográfico do
léxicopopular regional da obra citadaa fim de conhecer a cultura, o meio social e histórico da
região e do povo.
Para a realização do objetivo proposto, foram colhidas as lexias de cunho popular
regionale analisadas, de acordo com o contexto social e geográfico da obra, observando-se
também as características linguístico-gramaticais. Posteriormente registramos as lexias sob a
forma de um glossário, de acordo com a teoria lexicográfica. Os resultados mostraram que a
maioria das lexias são complexas e textuais, possuindo uma carga social e cultural bem típica
da região em que se passa a obra literária, tornando, assim a obra Morte e Vida Severina um
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registro lexical do falar típico das regiões sertanejas de Pernambuco, por vezes se
assemelhando as demais regiões sertanejas do Nordeste.
O presente trabalho está organizado em três partes, além da introdução e conclusão, a
saber: na primeira parte apresentamos,brevemente, os conceitos teóricos da Lexicologia, e da
Lexicografia, assim como o conceito e características de um glossário, pautados nos grandes
teóricos que discorrem sobre essas áreas; na segunda parte apresentamos um breve histórico
sobre a vida do autor e uma síntese da obra para melhor situar o leitor; e na terceira parte
teremos o glossário das expressões populares regionais da obra literária estudada.
Segundo Biderman (1998, p.11) o léxico é gerado através da nomeação dos seres e
objetos do universo,além da “cognição da realidade” que se cristaliza em “signos linguísticos:
as palavras”. Assim, o léxico representa os aspectos culturais, históricos e sociais pelos quais
passa um povo, e suas mudanças transformam e enriquecem o léxico, ampliando
sobremaneira o acervo linguístico.
No âmbito do léxico, é importante termos conhecimento sobre a unidade lexical, que é
o objeto de estudo tanto da Lexicologia como da Lexicografia. Segundo Lucena (2008, p.27),
Pottier chama de lexia a unidade lexical memorizada, que se distingue em formas simples,
composta, complexa e textual. Segundo o autor a lexia se concretiza no léxico da língua
através dos lexemas e dos gramemas, a primeira é “responsável pelo conceito e essencial para
existência da lexia”, e a segunda “geralmente indica(m) a função da lexia”. As lexias
presentes no glossário deste trabalho são complexas e textuais, havendo poucas lexias simples
e composta.
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A obra analisada no presente trabalho foi escrita entre 1954-1955 a pedido de Maria
Clara Machado com o intuito de ser encenada no Teatro Tablado. O autor João Cabral de
Melo Neto foi um dos principais representantes da “geração de 45”, época em que seus poetas
preocupavam-se com a construção do poema e sua forma visual.
Morte e Vida Severina (auto de natal pernambucano)é um poema composto de 18
trechos apresentados pelo personagem principal- Severino, trazendo imagens fortes e
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sensibilizantes, tanto dos personagens quanto dos locais em que se desenvolve a história,
como também, elementos característicos do social nordestino. A obra foi inspirada nos autos
pastoris medievais e possui uma linguagem que se assemelhaao registro oral do sertanejo
nordestino. Para Moura (2006, p.12) “Trata-se, portanto, de uma obra híbrida no que se refere
aos gêneros e formas, mas que apresenta uma harmonia perfeita entre a forma, o conteúdo e a
linguagem, que se tornam um todo indissociável.”
A obra apresenta a história do retirante nordestino Severino, que como outros de sua
terra natal, abandona o sertão rumo ao litoral em busca de melhores condições de vida. Em
seu trajeto ele encontra os “irmãos das almas”, expressão que designa as pessoas que
preparam o defunto e enterram, nessa ocasião Severino descobre uma oportunidade de
trabalho e consequentemente uma fonte de renda. Durante sua caminhada ele assiste a
enterros e cortejos fúnebres, sempre lidando com a dor e a morte. Desiludido com os
acontecimentos e ciente da sua condição miserável, Severino resolve se suicidar, porém, antes
conversa com José, mestre carpina a respeito da profundidade do rio Capibaribe. Quando, o
mestre carpina, recebe a notícia do nascimento de um menino Severino se alegra e com as
outras pessoas vai visitar e levar presentes ao menino, esta cena é uma referência nítida do
nascimento de Cristo. O diálogo final é uma resposta do mestre carpina a Severino sobre a
vida do nordestino, que embora seja frágil e dura é uma prova de resistência do povo do
Nordeste.
A obra Morte e Vida Severina é caracterizada pelas construções orais que representam
o léxico dos retirantes nordestinos, bem como as criações lexicais que em sua maioria são
neologismos semânticos, tais como metáfora, a metonímia e a sinédoque. Como por exemplo
em ave-bala, que é uma metaforização de um projétil, bala quevoa como uma ave. Segundo
Cotrim (2009,p.34) as criações lexicais características das obras do autor “engendram efeitos
de sentido que corroboram para a combinação entre expressão e construção, própria da
composição cabralina e demonstram a engenhosidade arquitetônica do poeta, justificando seu
cognome: “o poeta da construção”.”.
ALUGUEL COM A VIDA- tempo de vida: “...ao meu aluguel com a vida.” p.229
A MARÉ FEZ PARAR O SEU MOTOR- seguir o curso natural, baixar e subir: “Foi por ele
que a maré fez parar o seu motor...” p.234
A MEIAS- forma popular de meio a meio: “...trabalhávamos a meias” p.215
A MORTE AJUDAR- fazer com frequência os procedimentos fúnebres: lavar, vestir e velar o
defunto: “...vivo de a morte ajudar.” P.215
ARRANCAR ROÇADO DA CINZA- referência a esperança do lavrador nordestino no
plantio da agricultura no solo seco e rachado: “Somos muitos Severinos... a de querer
arrancar algum roçado da cinza.” p.204
AVE-BALA- metaforização da bala de uma arma de fogo que projeta uma trajetória
semelhante a um voo de uma ave: “... quem contra ele soltou essa ave-bala?” p.206
BALA VOANDO DESOCUPADA- bala (projétil) disparada para matar alguém a ermo:
“...sempre há uma bala voando desocupada.” p.206
BANDA DE MARUINS- bando de mosquitos; comum na linguagem popular: “E a banda de
maruins...” p.234
BEBEU O MOÇO ANTIGO- envelhecimento do sertanejo devido ao trabalho na lavoura:
“Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo).” p.220
BEBEU TEU SUOR VENDIDO- exploração do trabalho braçal do sertanejo: “Esse chão te é
bem conhecido (bebeu teu suor vendido).” p.220
BEBEU TUA FORÇA DE MARIDO- exploração do trabalho braçal do sertanejo: “Esse chão
te é bem conhecido (bebeu tua força de marido)” p.220
BRAÇOS DE MAR- curso de um rio seco: “...são grandes braços de mar?” p.231
CAIXÃO MACIO DE LAMA- caixão feito da lama do rio, referência as pessoas que morrem
no rio e nele se enterram: “...que o coveiro descrevia: caixão macio de lama...”p.230
CALVA DA PEDRA- parte mais dura da pedra: “...de terra pouco há; mas até a calva da
pedra.”. p.213
CEMITÉRIOS ESPERANDO- os cemitérios são as saídas das pessoas que esperam conseguir
uma vida melhor: “...poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando cemitérios
esperando.”. p.228
COISAS DE NÃO- algo negativo; uso da preposição de em vez do substantivo negativas:
“Dize que levas somente coisas de não...” p.210
CÔMODAS DE PEDRA- referência à habitações pequenas: “...com suas cômodas de pedra.”
p.225
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CONTA EM CONTA- referência ao nome dado aos nós que compõe a corrente do rosário
utilizado na prática religiosa da Igreja Católica: “...saltando de conta em conta...” p.209
CONTA MENOR- menor porção de terra: “...com palmos medida, é a cota menor...” p.218
DANINHA- algo ruim, negativo: “...há de ser sempre daninha.” p.238
DÁ VAU- maré baixa: “...a esta altura dá vau?” p.230
DEFUNTOS ENCOMENDAR- rezar pela alma de algum morto; expressão religiosa popular
nordestina: “...sabe cantar excelências, defuntos encomendar?” p.215
DE PIA- expressão utilizada no Nordeste do Brasil para referir-se a menino: “O meu nome é
Severino, como não tenho outro de pia.” p. 203
DERRADEIRA- última: “...derradeira ave-maria...” p.223
DE SOL A SOL- expressão popular com mesmo sentido que a expressão de dia a dia: “...mas
o sol, de sol a sol...” p.214
DESPERTAR TERRA- referência ao trabalho do lavrador nordestino na tentativa de plantar
na terra seca: “Somos muitos Severinos... a de tentar despertar terra sempre mais extinta...”
p.204
FACA SOLAR- referência a intensidade e força do calor do sol: “...e de outras escalavradas
pela seca faca solar”. p.214
FRANZINA- pessoa magra, frágil; comum na linguagem popular: “...é uma criança
franzina...” p.239
FUGIU DE TEU PEITO A BRISA- não há mais vida; não há ar nos pulmões: “...que fugiu de
teu peito a brisa.” p.221
GENTE FINA- pessoa culta, educada: “...e o bairro de gente fina...” p.225
GUENZO- pessoa magra, raquítica, fraca; comum na linguagem popular nordestina: “...é um
menino guenzo...” p.239
IRMÃO DAS ALMAS- pessoa presente nos rituais fúnebres do Nordeste, responsável por
lavar, vestir, velar e enterrar o defunto de forma gratuita: “A quem estais carregando, irmão
das almas...” p.205
LÁ DE CIMA- expressão usada para se referir a algum lugar mais alto. Faz referência aos rios
da terra do personagem: “Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima...” p.209
LÁ DE RIBA- expressão popular lá em cima: “E esse povo lá de riba...” p.228
LINHA DO RIO- curso do rio: “...que a linha do rio enfia...” p.223
LUTOU A BRAÇO- grande esforço físico realizado: “...e para quem lutou a braço contra a
piçarra da Caatinga...”. p.217
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MAGROS LÁBIOS DE AREIA- referência a pouca areia em meio as tantas pedras: “Nos
magros lábios de areia...”. p.206
MAIS MÍNIMA- aumentar o sentido de pequeno, mínimo; forma popular da flexão no
feminino do substantivo mínimo: “...a diferença é a mais mínima.” p.222
MINHA LINHA- referência à vida; destino; curso da vida: “...e como o Capibaribe
interromper minha linha?” p.211
MINHA SINA- meu destino: “...não plantarei minha sina?”. p.217
MISÉRIA É MAR LARGO- grande quantidade de pessoas que vivem em condições
consideradas miseráveis: “...sei que a miséria é mar largo...” p.231
MORRE GENTE QUE NEM VIVIA- pessoas sofridas, apáticas, mal nutridas, sem habitação,
entre outros: “...crescendo a cada dia; morre gente que nem vivia.” p.228
MORTALHA MACIA E LIQUIDA- morte no rio: “...caixão macio de lama, mortalha macia
e líquida...” p.230
MORTE MATADA- morte ocorrida por interferência de algum agente externo ao natural;
assassinato: “Até que não foi morrida... esta foi morte matada...” p.206
MORTE MORRIDA- morte ocorrida de forma natural: “... essa foi morte morrida...” p.205
MORTE SEVERINA- substantivo próprio Severina adjetivado; expressão refere-se aos tipos
e causas da morte da maioria dos nordestinos que, por sua vez, possuem em sua maioria o
nome Severino: “E se somos Severinos... morremos de morte igual, mesma morte severina...”
p.204
MORTO DE BALA- referência a causa da morte que ocorreu com bala (projétil) de arma de
fogo: “Este foi morto de bala...” p.206
NESTA CHÃ- forma popular reduzida do substantivo chão: “Conheço todas as roças que
nesta chã podem dar...” p.213
O MAU-CHEIRO NÃO VOOU- odor característico dos mangues encontrado nos rios: “...e o
mau-cheiro não voou.” P.234
OMBROS DA SERRA- metaforização da serra; local mais alto da serra, comparado com uma
parte do corpo humano: “...todas nos ombros da serra...” p. 207
PARAGENS BRANCAS- paisagens sem nenhuma composição, seja, de pessoas, bichos ou
plantas: “...há certas paragens brancas...” p.209
PÁSSARA- substantivo epiceno utilizado no feminino para se referir a bala (projétil): “...e o
que havia ele feito contra a tal pássara?” p.206
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PEDRA AVARA- flexão no feminino do adjetivo avaro; pedra mesquinha, que não dá:
“...que podia ele plantar na pedra avara?” p.206
PRAÇAS-DE-PRÉ- militar de categoria inferior na hierarquia militar: “...e praças-de-pré dos
comerciários” p.227
PUXÃO DAS ÁGUAS- correnteza da água: “...por que ao puxão das águas...” p.231
RIO DE ÁGUA CEGA- sem brilho: “E este rio de água cega...” p.234
RIO DE COMER TERRA- rio seco: “E este rio... de comer terra...” p.
RIO NA CHEIA- maré alta, cheia: “...ou como rio na cheia...” p.232
RIO NÃO CORTA- o rio não seca: “...o rio não corta em poços...” p.223
ROÇADOS DA MORTE- analogia entre as muitas mortes ocorridas no sertão aos roçados de
plantações: “...Só os roçados da morte compensam aqui cultivar...” p.216
SALA NEGATIVA- ambiente com pessoas que tem opiniões negativas: “...é tão belo como
um sim numa sala negativa.” p.240
SALTAR FORA DA PONTE E DA VIDA- suicidar-se na ponte e morrer: “...a de saltar,
numa noite, fora da ponte e da vida?” p.233
SALTOU PARA DENTRO DA VIDA- nascer: “...não sabeis que vosso filho saltou para
dentro da vida?” p.233
SANGUE DE POUCA TINTA- sangue fraco, sem nenhuma linhagem nobre: “Somos muitos
Severinos iguais em tudo na vida... e iguais também porque osangue que usamos tem pouca
tinta.” p.204
SEMENTE DE CHUMBO- projétil de arma de fogo cujo material é o chumbo; referência à
semente de plantas: “...com a semente de chumbo que tem guardada?” p.207
SERRA MAGRA E OSSUDA- referência às características físicas da serra da Costela: “Mas
isso: se ao menos mais cinco havia... vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu
vivia.” p.203
SOL COM SUAS LÍNGUAS-referência aos raios do sol a queimar: “...pelas roças, pelos
bichos, pelo sol com suas línguas?”. p.212
TÃO FEMININA- forma popular reduzida de estão: “...está aqui, tão feminina.” p.217
TAMBÉM CORTA...PERNAS QUE NÃO CAMINHAM- referência a seca nordestina que
assola os rios; metaforização do curso do rio: “...e no verão também corta, com pernas que
não caminham.” p.210
TERRA BRANDA E MACIA- mais serena, calma, com um clima ameno: “Bem me diziam
que a terra se faz mais branda e macia...”. p.217
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TERRA DADA NÃO SE ABRE A BOCA- paráfrase do provérbio popular cavalo dado não
se olha os dentes: “...mas a terra dada não se abre a boca.” p.219
TERRA DE LÁ- sertão; uso da preposição de em vez do substantivo natal: “...o que fazia o
compadre na sua terra de lá?” p.213
TERRA-MÁ- referência à terra seca e improdutiva do sertão nordestino: “...lavrador de terra
má...” p.213
VAZIOS DA FOME- estômago seco, sem alimentos: “...quando ao vazios de fome...” p.231
VENTO VIVE A ESFOLAR-a intensidade do vento: “Tirei mandioca de chãs que o vento
vive a esfolar...”. p.214
VESTIDO NEGRO DE LAMA- coberto por lama: “...na ilha do Maruim, vestido negro de
lama...” p.237
VIAGEM SE FINA- viagem acaba, termina; linguagem popular; próclise do pronome se em
vez da ênclise: “...e esta minha viagem se fina.” p.223
VIDA A RETALHO- vida construída a cada dia, tempo: “...há nessa vida a retalho...” p.232
VIDA SEVERINA- substantivo próprio Severina adjetivado; expressão refere-se ao modo e
qualidade de vida da maioria dos nordestinos que, por sua vez, possuem em sua maioria o
nome Severino: “...foi de vida severina...” p.211
VIVENDO NO MEIO DA LAMA- condições sub-humanas em que vivem os retirantes
nordestinos: “...fica vivendo no meio da lama...” p.228
VOAR AS FILHAS-BALA- referência ao projétil de arma de fogo; balas atiradas após outras,
seriam, pois, as filhas; vindas depois: “...tem mais onde fazer voar as filhas-bala.” p.207
Conclusão
Tendo em vista que a obra literária representa através de sua linguagemos diversos
aspectos sociais, culturais e históricos, percebemos, então, na obra de João Cabral de Melo
Neto características marcantes que permeiam o meio do popular regional nordestino. É
importante ressaltar as diversas criações lexicais, próprias da composição do autor, seja nas
lexias complexas, simples ou textuais, criações essas que fazem da obra analisada uma das
mais representativas na produção literária do poeta.
O glossário foi composto de 82 lexias, em sua maioria complexas e textuais, dispostas
em ordem alfabética para facilitar a consulta. O presente trabalho mostra a possibilidade de
elaboração do glossário e estudo das lexias, que carregam aspectos intrínsecos à sociedade.
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Podemos considerar a obra Morte e Vida Severina, um registro lexical, cultural e histórico da
oralidade das regiões sertanejas do Nordeste, embora existam alguns neologismos criados
pelo autor para enriquecer o poema. Vale salientar que os significados trazidos aqui não se
esgotam, podendo surgir outras possíveis intepretações.
Referências
MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas: 1940-1965. 2°ed. Rio de Janeiro, J.
Olympio, 1975. 385p.
MOURA, Maria José Acioly Paz de. O auto da morte e da vida: João Cabral de Melo
Neto e a forma dramática. 2006. 133 f. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade
Federal da Paraíba- Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, João Pessoa, PB, 2006.
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1
Professor Mestre da FABEJA – Faculdade de Ciências Humanas e Aplicadas de Belo Jardim e da Rede de
Ensino Estadual de Pernambuco.
2
Informações extraídas da obra História do Brasil, Nelson Campos e Jorge Hélio. Ed. Lowes. Ceará, 1997, p.
254.
3
NAVES. Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. 2001, p. 31.
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4
HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009, p. 11ss
5
FERNANDO, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional,
2009, p. 26
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simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de um
pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem
a ideia de como andávamos precisando de amor’. Nelson Rodrigues dirá, em
O Globo, que, ao ouvir a ‘marchinha genial’ de Chico, teve vontade de sair
de casa, ‘de sentar no meio-fio e começar a chorar’. Rubem Braga também
se manifesta. Considera Chico naquele momento ‘a coisa mais importante
em matéria de música popular’. E conclui, enternecido: ‘A Banda é algo que
todo mundo entende e que emociona todo mundo... ‘É uma boa crônica,
cheia de poesia.6
Esse artista que se notabilizou por composições como A banda, Apesar de você, Roda
viva, Cálice, Sabiá... que compôs canções consideradas como músicas de protestos, com
versos elaborados e uma veia de poeta revolucionário, apesar de comportado, também
escreveu belíssimos textos líricos, capaz de encher os olhos daqueles participantes mais
radicais e mais visionários. Suas composições, tanto as líricas como as de protestos,
arrancaram elogios dos mais renomados jornalistas e críticos brasileiros. A exemplo disso,
citamos aqui os nomes de Suênio Campos de Lucena, Tarik de Souza, Regina Zilberman,
Regina Zappa, Mário Chamie, Moacir Scliar, Luiz Tatit, Leonardo Boff, José Nêumane Pinto,
Antônio Carlos Secchin, Afonso Romano de Sant’anna, entre tantos outros que poderíamos
citar.
Mas, na impossibilidade de tratar aqui de todas as temáticas das composições de Chico
Buarque, podemos nos deter, nesse trabalho, àquelas canções em que o poeta/compositor, de
forma direta ou indireta, fez alusão às cantigas líricas do Trovadorismo português –
movimento literário da Idade Média.
Esse estilo de época compreende um período que vai do séc. XII até meados do séc
XIV e representou o surgimento de uma cultura leiga, já que naquele período poucas pessoas
tinham acesso aos livros; a igreja católica concentrava todas as atividades culturais em torno
dela e só incentivava a propagação da arte relacionada à ideologia cristã. Assim, no
Trovadorismo, o surgimento dessas cantigas – composições orais e de fácil memorização,
ligadas às expressões populares – possibilitou a manifestação das camadas populares tratando
a arte com temas mais voltados para o cotidiano das pessoas, separando-a dos valores
considerados sagrados pela igreja.7
As cantigas do Trovadorismo português podem ser divididas em dois grupos; um está
mais ligado às expressões afetivas, são as composições poéticas denominadas de poesia lírica
e podem ser divididas em cantigas de amor e cantigas de amigos. O outro grupo está mais
6
Idem, p. 27.
7
CEREJA, Willian Roberto e COCHAR, Thereza Magalhães. Panorama da Literatura Portuguesa. 2ª Ed. São
Paulo: Atual. 1997, p. 5.
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voltado para um tipo de composição que procura fazer críticas às pessoas e às instituições, são
as chamadas cantigas satíricas que se dividem em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. O
poeta, por sua vez, era chamado de trovador (troubadour) e o poema era denominado canto ou
cantigas.
As cantigas de amor tratavam de temáticas “dolorosas” onde o trovador falava de suas
angústias lamentando a irresolução amorosa; o amor era apenas idealizado, pois a dona
(senhora) era inacessível aos seus apelos sentimentais. Aqui podemos dizer que as investidas
do poeta classificam-se mais como uma espécie de confissão “quase elegíaca”, pois segundo
Moisés:
Esse sentimento de rejeição era comum, pois se tratava de uma senhora/dama que ou
pertencia a uma classe social superior a do trovador e, por este motivo, era alheia aos seus
apelos, pois não era comum pessoas de níveis sociais diferentes unirem-se, ou aquela dama
era comprometida, e, por isso, estava vetada a possibilidade da realização amorosa com o
trovador.
Nesse sentido, podemos inferir que Chico Buarque, enquanto compositor, também
escreveu diversas músicas na quais é perceptível a analogia que existe com as cantigas
trovadorescas daquele período. A exemplo disso, podemos pensar na composição da música
Quem te viu, quem te vê (1966). Vejamos:
Se pensarmos aqui que a mulher, na idade média, não tinha direito de relatar seus
desejos, suas angústias e seus sonhos, era apenas aquela que estava relacionada ao pecado. Ela
precisava casar logo cedo, para assim, ser considerada “dona” de alguma coisa. Nas cantigas
de amor a palavra “dona” estava mais relacionada com a questão lírica; a mulher passa a ser
vista como senhora/dona do coração do trovador, acontece uma espécie de vassalagem
amorosa, uma relação de servo (trovador) e senhor (senhora), fazendo uma analogia ao que
acontecia na situação envolvendo senhor e servo, característica comum nas sociedades
feudais.
Na composição citada acima, temos uma espécie de narrativa, onde o narrador assume
a função de trovador. É evidente que os tempos são outros, a sociedade e seus valores não são
mais os mesmos, assim, podemos dizer que o compositor é, nessa canção, um trovador
contemporâneo.
Nos versos da canção, apresenta-se um eu lírico movido por sentimentos do passado,
temos um mestre-sala completamente envolvido por um sentimento de perda, um amor
dilacerado outrora dedicado a uma mulher que, assim como nas cantigas de amor, permanece
inacessível aos seus sentimentos. Para o poeta trovador, a trova estava sempre voltada para
uma mulher/dama, uma senhora importante da sociedade que permanecia fria aos apelos do
poeta. O narrador da canção Quem te viu, quem te vê, meio que transforma a sua adorada em
9
TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de texto. Petrópolis: Vozes.
2009, p. 68. (a letra está na íntegra, fizemos modificações na estrutura dos versos).
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uma mulher também muito cobiçada na sociedade nos períodos carnavalescos, a “cabrocha”.
Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala, essa cabrocha também era “a mais
brilhante” e “favorita”, como o eu lírico deixa claro nos versos Todo ano eu lhe fazia uma
cabrocha de alta classe/ De dourado eu lhe vestia para que o povo admirasse. Dessa forma,
temos, nesses versos, um amor idealizado, não correspondido no momento presente pela
dona/cabrocha, pois ambos assumem uma relação de oposição no contexto social; ela, que
antes era dona do coração daquele sujeito que fala no texto, a morena faceira de bom rebolado
que acompanhava aquele mestre-sala nos ensaios, nos barracões e na avenida, agora, inserida
em outro contexto, pertence à “nata” da sociedade. Isso fica claro quando ele diz Hoje a gente
anda distante do calor do seu gingado/ Você só dá chá dançante, onde eu não sou
convidado10.
Temos então um sujeito sambista, que se encontra em uma posição social considerada
inferior, que apela pelos sentimentos de uma mulher e que permanece insciente à invocação
do eu lírico; esse, através do samba, estará sempre à procura da realização amorosa com essa
mulher que, segundo o narrador, procurou transformar a ficção em realidade, pois a morena
que brincava de princesa, no período do carnaval, acostumou na fantasia.11 Aqui, “o
sofrimento interior do trovador”, segue com a “certeza inútil da súplica e da espera dum bem
que nunca chega”.
Assim, Chico Buarque, manifesta pela palavra, “os valores sociais contraditórios”.12
Fica claro que a impossibilidade da realização desse amor dá-se através da contradição desses
valores.
Como acontecia no período medieval, no que diz respeito às realizações amorosas,
pessoas de classes sociais diferentes dificilmente se misturavam; isso é visível nas trovas em
que trovadores e menestréis, voltados para uma contemplação platônica, dedicavam versos de
amor às suas supostas senhoras.
Nessa canção, o poeta/trovador contemporâneo, a exemplo dos trovadores medievais,
procura mostrar, pela palavra, além da incapacidade das realizações amorosas, valores e
conceitos que são atribuídos às pessoas através da distinção de classe. A morena agora
pertencia à classe dominante, não estava mais nos morros, nos barracões, ou até mesmo na
avenida, lugar de certa forma privilegiado (apenas nos períodos carnavalescos), mas o espaço
10
www.revistazunai.com/ensaios/roberta_moura_cavalvanti_chico_buarque.htm. P. 08
11
Idem, P. 08ss.
12
BAKHTIN. Mikhail (1999) Apud. BAFFA, Alda Mendes. In. GEROLD, Nanci. Diálogos Bakhtinianos:
Bakhtin no texto, na Literatura e na sala de aula. São Paulo: Porto de ideias. 2011, p. 140.
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dela agora é na galeria, ambiente reservado àqueles que pertencem a um nível social mais
elevado.
Essas possibilidades intertextuais das canções de Chico Buarque com as cantigas de
amor do Trovadorismo português também podem ser observadas em canções como As
vitrines, Moto-contínuo, Será que Cristina volta... entre tantas outras que fazem parte do
repertório desse compositor.
Deixando de lado a questão que mostra a relação de algumas composições de Chico
Buarque com as cantigas de amor, podemos refletir também sobre a indagação de alguns
traços poéticos que suas canções possuem com as cantigas de amigos do Trovadorismo
português.
Essas cantigas apresentavam um caráter narrativo e, ao mesmo tempo descritivo; nelas
o trovador apresenta-se com o eu lírico feminino, a pessoa que fala narra o seu sentimento
pautado pelo sofrimento da ausência do amigo. Aqui, a palavra amigo significa namorado ou
amante. Vejamos as palavras de Moisés (1999):
13
MOISÉS, Op. Cit., p. 22.
14
Idem, p. 22.
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15
CEREJA e COCHAR. Op. Cit., p. 05
16
CEREJA & COCHAR, Op. Cit., p. 14.
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Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes.17
Temos nessa canção uma história de amor contida na voz feminina, configuração
muito comum nas cantigas de amigo do Trovadorismo, onde podemos perceber a presença de
elementos narrativos e, ao mesmo tempo, descritivos. O eu lírico apresenta suas lamentações
no momento em que seu amante, Calabar, está sendo executado como “traidor”.
Essa história de amor apresentada na enunciação do eu lírico pode ser observada,
especialmente, no verso quando a noite vem, onde podemos ver a expressão noite como
metáfora da morte, assim esse verso poderia ser entendido da seguinte forma: “quando a
morte vem. O sentimento feminino cria uma substância de apelo exagerado, pois essa mulher
estaria disposta, prontificada a seguir a mesma viagem do seu amado sentenciado. Aqui, como
nas cantigas de amigo, a amada lamenta a ausência do amante que está prestes a fazer uma
viagem. Desta feita, o sofrimento é mais angustiante, pois se trata de uma ida sem retorno.
Calabar, seu amante, está sendo executado.
Outro recurso frequente nas cantigas de amigo é o uso continuado de expressões
paralelísticas, como podemos ver nos versos de Martim Codax.
17
Abril Coleções. Calabar, o Elogio da Traição ou Chico Canta. São Paulo: Abril, 2010.
18
CODAX, Martim. In: Ledo, Teresinha de Oliveira. Manual de Literatura: literatura portuguesa. São Paulo:
DCL, 2001. Disponível em http://www.cci401.com.br/Util/HandlerArquivoBiblioteca.ashx?arq=122. P. 11
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Assim, na canção citada de Chico Buarque, observamos essa construção sintática nos
versos que iniciam a 1ª, a 2ª e a 3ª estrofes. Vejamos: Quero ficar no teu colo, Quero brincar
no teu colo e Quero pesar feito cruz. Temos aqui o mesmo sujeito, seguido do mesmo verbo e
do mesmo complemento. Podemos ainda observar essa repetição no quarto verso da 1ª, da 2ª e
da 3ª estrofes a expressão Quando a noite vem.
Percebe-se então que os significados mostrados por essas construções paralelísticas
servem para assegurar certo tipo de simetria na construção sintática.
Por fim, podemos nos deter agora em outro aspecto apontado por CEREJA e
COCHAR (1997), O motivo literário principal: o lamento da moça cujo namorado partiu.
Como foi mencionado anteriormente, a angústia da amada é profunda, pois, nessa canção, o
eu lírico tem a certeza de que a sua realização amorosa chegou ao fim, pois seu amado fora
enforcado e, posteriormente, esquartejado; o tema da ausência apresenta-se como uma
presença contínua em todos os versos da canção. A solidão apresentada por Bárbara, pessoa
que fala no poema/canção, ilustra bem o abandono perene representado no seu sofrimento.
A música apresentada pertence à trilha sonora da peça de teatro que tem como título
Calabar, o elogio da traição. O drama versa sobre uma suposta traição de Calabar
(personagem histórico), em relação aos portugueses. Por esse motivo ele é capturado e
condenado à morte por enforcamento. Bárbara, amante de Calabar, no momento da execução
do seu amante, começa a cantar essa a referida composição.
O lamento do eu lírico se constitui como o motivo literário principal, pois seu homem
foi para uma viagem sem volta.
19
FIORIN, José Luiz e PLATÃO, Francisco Savioli. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática.
2001, p. 341.
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Finalizando, dizemos então que, nessa composição musical, Chico Buarque exercita a
sua anima a serviço da arte apresentada em tons melancólicos através da saudade feminina, a
exemplo das cantigas de amigo do Trovadorismo português.
Referências
www.revistazunai.com/ensaios/roberta_moura_cavalvanti_chico_buarque.htm.
ABRIL, Coleções. Calabar, o Elogio da Traição ou Chico Canta. São Paulo: Abril, 2010.
BAKHTIN. Mikhail (1999) Apud. BAFFA, Alda Mendes. In. GEROLD, Nanci. Diálogos
Bakhtinianos: Bakhtin no texto, na Literatura e na sala de aula. São Paulo: Porto de ideias.
2011.
BOARQUE, Chico. E GUERRA, Ruy. Calabar: o Elogio da Traição. 35ª Ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque : análise poético-musical. Rio de Janeiro: Codecri,
1982.
CEREJA, Willian Roberto e COCHAR, Thereza Magalhães. Panorama da Literatura
Portuguesa. 2ª Ed. São Paulo: Atual. 1997.
CODAX, Martim. Apud. MOISÉ, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São
Paulo: Cultrix. 1998.
FERNABDO, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação
Biblioteca Nacional, 2009.
FIORIN, José Luiz e PLATÃO, Francisco Savioli. Para entender o texto: leitura e redação.
São Paulo: Ática. 2001.
HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009..
MADDALUNO, Fernanda Bastos Moraes. A intertextualidade no teatro e outros ensaios.
Niterói: EDUFF, 1991
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª edição. São Paulo: Cultrix. 1999.
NAVES. Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. 2001
Nelson Campos e Jorge Hélio. História do Brasil. Ed. Lowes. Ceará, 1997.
TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de texto.
Petrópolis: Vozes. 2009.
ZAPPA, Regina. Para Seguir Minha Jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
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VELOSO, Caetano. Literatura Comentada por Paulo francetti e Alcyr Pêcora. 3ª Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1990.
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Disponível no site: http://hemerotecadigital.bn.br/
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2
Os fragmentos transcritos mantêm a grafia original, bem como eventuais erros tipográficos e ortográficos da
época.
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romance na fase inicial da cultura romântica” (BOSI, 1994, p. 102). Mas estas informações
não constam nas publicações que circularam no jornal A marmota. Observemos:
O Filho do Pescador
Todo o publico conhece, tão bem como nós, o – Filho do Pescador – um dos
primeiros romances sahiados da fecunda imaginação do Snr. Teixeira e
Sousa (hoje escrivão do Juizo); romance tão procurado como desejado. Pois
bem, o vasio que existia entre nós, pela falta de exemplares d’essa
ingenhosaproducção, nós vamos agora preencher, fazendo uma nova edição
da que foi impressa em 1843 na nossa typographia.
Começaremos, portanto, a dar aos assignantes da Marmota, no
proximonumero, o mesmo folhetim que o periodicoBrasil deu aos seus, em
um dos mais bellosperiodos de sua não curta existencia.
3
No jornal A Marmota (RI), F. T. Leitão aparece como crítico e colaborador do periódico e, dentre seus escritos,
consta o artigo “Litteratura Patria – Romances Brasileiros”.
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Apesar de ter passado dezesseis anos de uma edição para a outra, nada pode garantir
ao editor do jornal A marmota que o sucesso de O Filho do Pescador de 1859 seja o mesmo,
ou maior de quando circulou em 1843, pois estamos tratando de outro público, outro contexto,
enfim; mas vale salientar que essa circulação e troca de textos e de escritos entre os jornais era
uma prática muito comum à época, sendo esta uma das “táticas para cativar o leitor”
(BARBOSA, 2007, p. 51).
Outra tática utilizada no romance O Filho do Pescador diz respeito à inserção da
“carta de Emília” como uma espécie de “proêmio” para a obra. Nesta missiva, que abre o
romance, Teixeira e Sousa de maneira sucinta estabelece alguns protocolos de leitura
(CHARTIER, 2011, p. 20). Primeiro ele “esboça seu leitor ideal”; em seguida “define quais
devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto”, constatemos:
(...) Que tarefa! Um romance para uma senhora casada e mãe; para um
marido e pai, e enfim para dois jovens!...
Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto posso de moral,
para que vos sejam úteis; junto-lhes as belezas da literatura, para que vos
deleitem (O FILHO DO PESCADOR, 1997, p. 01).
O que mais atraiu o leitor daquele tempo em matéria de romance parece ter
sido o de costumes, no qual ele encontrava a vida de todo o dia, sem prejuízo
dos lances romanescos que eram então indispensáveis. O brasileiro parecia
gostar de ver descritos os lugares, os hábitos, o tipo de gente cuja realidade
podia aferir, e que por isso lhe davam a sensação alentadora de que o seu
país podia ser promovido à esfera atraente da arte literária.
admirável, porém após o casamento Laura já começa a apresentar marcas avessas a moral e
aos bons costumes. Vejamos:
como não obteve êxito, a jovem então o matou envenenado. Laura confessa para Florindo, seu
cumplice e atual amante, todos esses crimes com muita frieza e desprezo, “[...] e em verdade o
sangue-frio com que esta mulher terrível acabava de proferir a última parte de seu discurso era
para horrorizar...” (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 54).
A mulher do século XIX “tinha de ser naturalmente frágil, agradável, boa mãe,
submissa e doce” (DEL PRIORI, 2012, p. 208), a paixão e o desejo por outros homens que
não fosse o marido, ou seja, o adultério era tido como uma doença, uma manifestação
histérica. Ainda de acordo com Del Priori (2012), no período oitocentista, os homens não
escondiam seus sentimentos, bem pelo contrário eles demonstravam o que Teixeira e Sousa
demonstrou muito bem no romance O Filho do Pescador, pois todos os homens com quem
Laura se envolvia, demonstravam amor, fidelidade e cumplicidade a jovem.
Em meio a tantos crimes, Laura conhece e se apaixona por Pedro, cujo pseudônimo é
Marcos. Assim como fez com os demais homens, a jovem enfeitiçou o rapaz, “Laura tinha
consciência do muito poder de seus encantos, o que obstava a mudança de seu coração!”
(TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 110). Ao ser chamada pelo antigo amante – Florindo – de
adúltera, e se sentindo ‘ameaçada’, Laura promete ficar com Marcos, seu atual homem, se ele
matar Florindo. Vale salientar que, no século XIX as mulheres adúlteras eram mal vistas pela
sociedade e, Teixeira e Sousa enfatiza isso no romance. Vejamos:
Apesar de ter cometido tantos delitos, e por várias vezes ter se mostrado como uma
moça cruel e vingativa, a representação de Laura é marcada por vários adjetivos que
funcionam como amenizadores, como – encantador sorriso, graciosa, formosa, anjo, bela etc.
De acordo com Vasconcelos (2007, p. 133),
Ao mesmo tempo em que Laura é representada como uma mulher de gênio infernal e
imprevisível, ela também pode ser um anjo; isso acontecerá de acordo com o momento e a
situação em que a jovem está inserida na narrativa, uma vez que o seu comportamento muda
em virtude dos seus interesses. Porém, a leitora que fantasia e que muitas vezes se coloca no
lugar da personagem, pode não entender que os crimes cometidos por Laura a levará ao
‘abismo’, ou seja, esse tipo de comportamento pode incitar as mulheres leitoras a uma
conduta inadequada, mesmo Teixeira e Sousa enfatizando a todo o momento o teor
moralizante de sua obra, como bem constatamos no prefácio da obra, nas epígrafes e no
capítulo nove, observemos:
Eu, pois, vos prometi, bela Emília, dar-vos uma história moral; é bem: sendo
assim, é justo que faça algumas reflexões sobre este desastroso passado que
acabastes de ouvir. À vista do quanto fica dito, difícil cosia, sem dúvida, é o
determinar qual destas duas criaturas, infinitamente criminosas, a mais
criminosa era (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 57).
As mulheres na sociedade são sempre o que nós queremos que elas sejam,
visto sermos nós os diretores delas. Nós, pois, somos os seus originais; nós
lhe damos o tipo de suas ações; seus costumes são obra nossa; nós as
exemplificamos; nós dirigimos a sua conduta, porque somos os motores de
seu pensamento pelo que respeita à sociedade. O gênio de uma nação nada é
mais que uma idéia que representa as mais fortes e decididas inclinações da
nação; esta idéia pertence a todos os indivíduos dela, salvas algumas raras
modificações (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 138).
Logo, a partir do discurso final de Emiliano, o leitor percebe que Laura não tem culpa
da mulher adúltera e criminosa que ela se tornou, pelo contrário, a jovem, que agora recebe o
atributo de fraca, é fruto dos homens que conviveram com ela. Assim, temos múltiplas
representações de mulheres no romance de Teixeira e Sousa, segundo o romancista, todas
estas representações tem o intuito de moralizar. Ao retirar a culpa da mulher, e atribuí-la para
os homens, Teixeira e Sousa acaba contribuindo para que sua obra não permaneça na história
da literatura, tendo em vista que a sociedade do século XIX era estritamente patriarcal.
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Considerações Finais
Referências
Paulo Alves
Universidade Federal da Paraíba-UFPB
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, sob a
orientação do Prof. Dr. Fabrício Possebon.
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especialmente com a teoria desta, conhecem muito bem. A história e teoria literárias eram
desenvolvidas segundo os moldes do autobiografismo, realizando uma crítica literária
impressionista, em que o plano sociológico e filosófico eram a concepção aplicada a literatura
o que mudará radicalmente com os formalistas que o texto é o objeto investigado em si
mesmo com a linguagem sendo o único aspecto considerado relevante e capaz de fazer
compreender o texto. Para isso, a linguagem fora analisada, dissecada mesmo à exaustão.
Na nova concepção, a linguagem tornou-se a senha de acesso à obra literária,
porquanto ela passou a ter nova importância nos domínios literários e, assim a linguagem
literária constituía-se um ser diferente daquela cotidiana dada ao vulgo. Esta era
automatizada, aquela, desautomatizada, era produzida ad hoc com sentido aditivado e
controlado para determinado efeito. O que para Chklovski era uma língua cheia de
particularidades conformando um discurso poeticamente singular (p.53).
Basicamente o que sugerem os formalistas russos sobre a cisão entre língua literária e
língua cotidiana é intermediado pelo que eles denominam de desautomatização. “A arte é
compreendida com um meio de destruir o automatismo perceptivo, a imagem não procura nos
facilitar a compreensão do sentido, mas criar uma percepção particular do objeto, busca a
criação de sua visão e não de seu reconhecimento”. E concluir afirmando: “Daqui deriva a
ligação habitual da imagem com a singularidade” (Eikhenbaum, p.14-5). Tanto imagem
quanto singularidade são conceitos importantes para o formalismo, no que toca à imagem, o
artigo de Chklovski, “A arte como procedimento”, aborda esta questão de maneira precisa,
postulando que sem a forma de comunicação imagética não há arte, essa pois é a forma
fenomênica da arte. Inicialmente parodia Potebnia, afirmando que “Arte é pensar com
imagem [...] Não existe arte e particularmente poesia sem imagem”. Em seguida, ele mesmo
afirma: “A poesia é uma maneira particular de pensar, a saber um pensamento por imagens;
essa maneira traz uma certa economia de energias mentais, uma ‘sensação de leveza relativa’,
e o sentimento estético não passa de um reflexo desta economia” (p.39). Isso, afirma ele,
pelas razões apresentadas logo a seguir: “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como
visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização
do objeto e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a
duração da percepção” (p.45). Isso tudo porque “para desenvolver a sensação de vida, para
sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama de arte” (p.45). Para
essa turma, arte é condição para que haja vida, sensação do entorno e certeza do
conhecimento produzindo e/ou adquirido.
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um texto prosaico. Forçoso é admitir que essa proposta dos formalistas cobre apenas o
literário enquanto poético. Esse estranhamento linguístico ocorre com frequência na poesia.
Não é possível afirmar que eles tiveram essa intenção, se tinham clareza dessa limitação, pode
se dizer, ou se nem se deram conta. Em Aristóteles, fica claro que em seu conceito de mimesis
está contido, como literário, apenas o poético “...do número e natureza das partes e bem assim
da demais matéria dessa pesquisa [...] A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o
ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo” (2005, p.19).
Para se obter o efeito da literariedade na prosa é mister considerar o todo da obra, é
recorrendo ao efeito artístico do todo da obra que se percebe se tratar de um conjunto
simbólico e formal literário. Pois apesar de um romance ter, por vezes, relações muito
estreitas com o referente social para dar o tom de mimético, ao mesmo tempo, ele apresenta
estranhez, que lhe conferindo singularidade diferencia-o da realidade, inclusive linguística. A
obra de arte constitui-se um mundo à parte do mundo que representa, como tal, não se pode
confundi-la com outros mundos: nem o da realidade social nem o da realidade ficcional. Bem
diferente é o universo poético. Grande parte de um poema ou mesmo o texto inteiro é envolto
numa atmosfera de extranheza, isto é, literariedade.
Por exemplo, os excertos que se seguem. “//Deus saiu pedalando sua bicicleta/ Pra
olhar melhor o que se passa nas esquinas/ Deus não entendeu nada/ Quando viu uma mulher
comendo coisas no lixo/ E um homem vendendo água/ (...)/ Deus largou a bicicleta/ Pegou
um foguete/ E voltou pra casa//” (Miró)1. Este poema, “Não esqueça da minha caloi” (sic),
apesar de estar calcado nos fatos da vida e constituir-se uma desconcertante crítica social,
traz como marca poética, a desautomação linguística, causando grande estranhez: o Deus
cristão andando de bicicleta e se surpreendendo como qualquer mortal. Ou neste outro
clássico exemplo de Cruz e Sousa, retirado do poema “Marche aux flambeau”. “//Essa marcha
a final penetrará aos urros,/ Titânica, sinistra e bêbeda, irrisória,/ Num caos de pontapés,
coices, vaias e murros,/ Na eterna bacanal ridícula da História.//” (2000, p.423). Todo o
poema, não só este excerto, consiste numa crítica ácida à sociedade da época, mas
textualmente é desautomatizado, apenas em situações bem restrita e extrema é que se usaria
esse discurso para descrever pessoas; e o autor se refere a pessoas, porquanto no último verso
três termos denunciam: “bacanal”, “ridícula”, “História”. Esses termos aplicam-se apenas a
1
Miró. “Não esqueça da minha caloi”. Poema disponível em: https://pt-
br.facebook.com/AgenciaBetonico/posts/160090847415928. Acessado em: 09/10/2014.
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pessoas, e aqui (as pessoas) são apresentadas pelo poeta como bestas em avançado estágio de
descontrole.
mundo imanente, desprovido de sentido externo. Qualquer tentativa de sentido deve ser
buscada ou construída internamente. É como se seguisse a linha de Nietsche: seja seu próprio
salvador, porque outro não há. Essas duas linhas seguem o homem nas duas concepções de
mundo, respectivamente, como visto acima.
Como na epopeia o herói é íntegro, inteiro, representante de toda uma sociedade,
porque assim era constituído, como exemplo que ilustra, farol que ilumina, e aponta o
caminho; no romance ocorre o inverso. No universo romanesco, o herói debate-se só com seu
destino, não representa ninguém, salvo a si mesmo e aos seus problemas. “Neste mundo a
totalidade é fragmentária ou almejada” (p.60), nunca conseguida e completa. O herói
romanesco não é exemplar, pode ter o efeito catártico para o leitor ou expectador, mas se se
aplicar o termo exemplo, em relação a ele, seria o exemplo a não ser seguido. “O romance é a
epopeia do mundo abandonado por Deus”; por isso “a psicologia do herói romanesco é a
demoníaca”, ou problemática (p.89).
Se se aplica essa teoria à obra de Lima Barreto, percebe-se que o escritor carioca
estava plenamente dentro da melhor tradição romanesca. A grande maioria dos seus
personagens é tomada por problemas e trilha um caminho envolto nas brumas da incerteza. E
todos seus protagonistas e antagonistas são ilhados, solitários, isolados num universo sem ter
a quem recorrer, isto é, num mundo sem Deus que possa salvá-los. Esse insulamento ocorre
das mais variadas formas: geograficamente, por inadaptação ao meio, por incompetência e
inaptidão de se integrar ao grupo de que faz parte, por não encontrar quem comungue das
mesmas ideias, por experimentar um drama que a ninguém interesse, ou por viver imerso num
segredo que a ninguém possa revelar. Seus grandes personagens todos sofrem desse mal.
Lima Barreto tinha objetivos claros em relação a sua literatura. Ele tinha bom
conhecimento prático e teórico da literatura, mas como era um autodidata, creio que ele nem
viu teorias de como se compor um personagem de romance. Por essa época, A teoria do
romance de Lukács nem imaginava-se existir. Esse livro fora escrito em 1914-15 e publicado
apenas em 1920, em Berlim e traduzido para o português somente em 1965. Quando o autor
de Policarpo Quaresma encerra sua obra em 1922, com a redação de Clara dos Anjos. Sua
obra, sua técnica, seu estilo, se assim se pode dizer, foram muito intuitiva e necessária. Sua
técnica de escrita, que alguns chamam de estilo, era simples, direta e eficiente; buscava ter
função expressa na sociedade. Como afirma Sevcneko, consistia em “captar um máximo de
realidade e compô-lo com um mínimo de ficção” (1983, p.200), porque literatura para ele não
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significava “o sorriso da sociedade”, como escreveu Afrânio Peixoto, mas militância, luta
contra a corrupção das elites em favor dos deserdados.
Motivo pelo qual queria uma literatura próxima ao referente, com pontos claros de
convergências e arcabouço alegórico que pudesse ser aplicado a várias situações semelhantes,
que pudesse chegar à memória do leitor, sem se confundir com fatos reais específicos. Para
tal, o texto deveria ser de fácil compreensão, como ele trata disso tanto em textos ficcionais
como em artigos e crônicas. Falando pela boca da personagem Isaías Caminha diz: “Se me
esforço por fazê-lo literário [um livro que escrevia] é para que ele possa ser lido, pois quero
falar [...] ao espírito geral e no seu interesse, com linguagem acessível a ele. É este é o meu
propósito”. E mais à frente: “mas, não é a ambição literária que me move o procurar esse dom
misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a
opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo” (IC, 1961, p.120)2.
Utilizando-se da personagem Gonzaga de Sá, prorrompe de forma impetuosa: “Se eu pudesse,
[...] se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao
meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor de violência, de força, de coragem calculada,
que lhe corrigisse a bondade e a doçura deprimente” (GS, 1956, p. 134).
Mas, num artigo datado de 31 de agosto de 1916, respondendo a uma carta anônima,
que lhe fazia reparos ao seu Policarpo Quaresma, expõe não sua concepção de literatura, mas
sua função que correspondia ao seu objetivo. Afirma ele: “Não desejamos mais uma literatura
contemplativa [...] não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em
deuses para sempre mortos”. E continua: “Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma
literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu [...] O meu
correspondente acusa-me também de empregar processos do jornalismo nos meus romances,
principalmente no primeiro”. E prossegue explicando a forma de sua literatura porque visava
a objetivos específicos.
2
As obras de Lima Barreto, utilizadas neste trabalho, serão citadas por iniciais que a identificam, para não criar
confusão pelo fato de a maioria ter o mesmo ano de publicação. Assim: BG=Bagatelas; CRI e
CRII=Correspondência Vols. I e II; GS=Vida e morte de MJ Gonzaga de Sá; HS=Histórias e Sonhos;
IC=Recordações do escrivão Isaías Caminha; IL=Impressões de Leitura; MG=Marginália; VU=Vida Urbana.
As mesmas citações trarão o ano de publicação da obra apenas na primeira vez que forem citadas, a partir de
então, serão fornecidas somente as iniciais da obra e página.
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Num texto que escrevera para ser uma palestra e que não chegou a apresentá-lo, criticando
Coelho Neto, Afrânio Peixoto e companhia que se queriam puros estetas e viviam embebidos
de imagens da Grécia antiga ele rebate.
Mesmo que a Grécia – o que não é verdade – tivesse por ideal de arte
realizar unicamente a beleza plástica, esse ideal não podia ser o nosso,
porque, com o acúmulo de ideias que trouxe o tempo, com as descobertas
modernas que alargaram o mundo e a consciência do homem, e outros
fatores mais, o destino da Literatura e da Arte deixou de ser unicamente a
beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser cousa muito diversa (IL,
1956, p.64).
Continuando suas considerações sobre o ser da literatura, que, de acordo com o tipo de
conteúdo, define a natureza da forma, Lima Barreto afirma que a literatura tem um destino. “E
o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de poucos a
todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina” (IL, p.68). Em carta a
Albertina Berta, datada de 31 de dezembro de 1916, parafraseia Carlyle afirmando, “Minha
senhora, a literatura é um perpétuo sacerdócio, diz Carlyle, desde que li isso, eu não me sento
na minha modesta mesa para escrever sem que pense não só em mim, mas também nos
outros” (CRI, 1956, p.284). Essa expressão, ele usa repetidas vezes em sua obra, era uma
concepção que lhe agradava. Se se tiver que extrair uma concepção de literatura barretiana,
não seria a de passatempo ou de pura estética formalista, mas sim de militante e
transformadora da sociedade. Vale ressaltar ainda que para este autor a literatura em si tomava
status de personagem animado como se fosse uma prosopopeia, tanto no texto “O destino da
Literatura”, como em outros artigos seus, inclusive o termo é grafado com maiúscula.
Então, definido o ser da literatura e posto o seu objetivo, como tinha desde sempre, o
conteúdo a ser desenvolvido, Lima tratou de procurar uma forma que comportasse a sua
literatura, tarefa pesada que o indispôs com todo um grupo de figurões autores e críticos
literários, segundo suas palavras “o mandarinato das letras”. Nem que para isso tivesse que
alterar a linguagem, a narrativa, o léxico, a sintaxe etc, de forma que seus textos não seguiam
o academismo reinante. Findou por criar um estilo literário mais moderno que o Modernismo,
que viria anos mais tarde. Nas palavras de Alfredo Bosi, “As realidades sociais e morais, isto
é, o conteúdo pré-romanesco [...] não parece de nenhum modo forçado a ilustrar inclinações
puramente subjetivas. O resultado é um estilo ao mesmo tempo realista e intencional, cujo
limite inferior é a crônica”. E enfatiza:
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Aliás, Lima era nada afeito à linguagem empolada e luxuriante vigente à época nem a
gramatiquices. Em carta a Jaime Adour, datada de 30 de março de 1919, considera que essa
questão de toillete literária é coisa de mesquinho. “Aqui, no Rio, já não há mais essa
preocupação boba de ‘escolas’ e a tal tolice de estilo, no ponto de vista do falecido Artur
Dias, que só julga isto o escrever à moda de Rui; será enterrada com o Coelho Neto”. E joga a
pá de cal: “Ainda há o óleo de rícino da colocação dos pronomes, mas desta questão só se
preocupam os ratés e despeitados” (CRII, 1956, p.160). A julgar por essa e outras passagens,
Lima Barreto não atribuía o menor valor a um escritor que cultivasse a forma pela forma com
os únicos objetivos plásticos e estéticos. E a excessiva preocupação com a gramática
implicava essa superficialidade quase frívola, que merecia total desprezo do escritor. Como
noutra carta, a Lucilo Varejão, datada de 18 de fevereiro de 1921, o autor diz: “Meu caro
Lucilo [...] Digo-te uma coisa: eu temo tanto esses clássicos e sabedores de gramática como a
qualquer toco de pau podre por aí” (CRII, p.226). Essa definição dos gramáticos fala por si só.
Considerando essas escolhas e definições de Lima em sua obra, percebe-se que ele
praticara algo que décadas mais tarde Antonio Candido veio a teorizar. Diz o tarimbado
crítico: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra”. E conclui: “Sabemos, ainda, que o externo [no caso, o social]
importam não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na construção da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (2000, p.4, grifos do
autor). Assim é que funciona forma e conteúdo na obra barretiana: uma unidade, exatamente
como afirma Yuri Tynianov. Para o teórico russo a relação forma x conteúdo não funciona
como a relação conteúdo x continente, especialmente no tocante aos líquidos que tomam a
forma do recipiente. “A unidade da obra não é uma entidade simétrica e fechada, mas uma
integridade dinâmica que tem seu próprio desenvolvimento; seus elementos não são ligados
por um sinal de igualdade e de adição, mas por um sinal dinâmico de correlação e de
integração”. Desse modo: “A forma da obra literária deve ser assentida como uma forma
dinâmica”. E conclui: “Mas, se a sensação de interação dos fatores desaparece [e ela supõe a
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A opção pelo artigo e pela crônica jornalísticos tem um apelo mais popular e mais
imediato ainda. Além de ser uma ajuda no seu ganha-pão, abordavam diretamente os
problemas sociais e políticos, que afetavam as pessoas, dando voz muitas vezes aos anseios,
desejos e necessidades populares, sendo ao mesmo tempo de mais fácil leitura e assimilação.
Outra escolha formal nesta mesma linha são as sátiras em que ele discorre gostosamente, de
maneira cortante, sobre os problemas sociais, os vícios políticos, imbecilidades dos figurões
poderosos e manias do povo, este formato de texto se encontra em Os Bruzundangas e Coisas
do reino do Jambon, e em alguns contos, sem falar na sua produção jornalística. Eis um
exemplo de vício da sociedade: “É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem. Todas as almas e
corpos são arrebatados [...] Os cofres das repartições e dos bancos sangram... as inteligências
trabalham, as imaginações associam elementos para estelionatos, peculatos e concussões...”
(GS, p.104). Segue-se uma outra passagem que chama a atenção para a parvoíce dos ditos
homens cultos. Os que conversam, segundo o narrador, são de classe abastada, que afetam
serem cultos: “O mais moço então perguntou, olhando os fios de transmissão elétrica: –
Porque será que os passarinhos tocam nos fios e não são fulminados? – É que de dia a
comunicação está fechada” (GS, p.111).
Já a escolha do léxico e da linguagem em tom menor é o que mais se destaca em sua
obra e a que maior tributo lhe exigiu. O vocabulário carregado de termos pouco usual na
literatura vigente, sentenças incisivas, por vezes, agressivas, mas revelando a verdade contida
na sociedade de então, segundo sua visão. Um pouco catártico pelo lado do escritor, mas,
sobretudo, empenho de narrar e representar a “tragédia” que gira de forma endêmica a
sociedade brasileira e que se abate sobre os pobres. “Quando saio da casa e vou à esquina da
Estrada Real de Santa Cruz, esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por esse Rio de
Janeiro” (MG, 1956, p.90). E mais: “Há centenas de pessoas que não têm um palmo de terra
para fincar quatro paus e erguer um rancho de sapê” (BG, 1956, p.90). Períodos curtos para
maior agilidade na leitura e facilidade na compreensão da mensagem é outra escolha do
escritor sempre procurando ajudar na “digestão” de suas ideias naqueles que o lessem.
Como uma das coisas que dificultam a apropriação intelectual de um texto é o
hipérbato, isto é, a inversão da ordem das palavras, ele primava, geralmente pela ordem direta
na frase. Como o hipérbato é uma figura de linguagem que embeleza o discurso e demonstra a
maestria do escritor sobre a língua, e não estando Lima Barreto preocupado com esses
recursos e tipos de penduricalhos da linguagem, ele agia de forma oposta, tanto porque seu
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objetivo literário era o maior número de leitores e uma maior compreensão, para transformara
o pensar do leitor e assim transformar a sociedade.
Ainda uma outra escolha formal na construção de sua obra é a ironia, essa, perpassa
toda a sua obra, seja a ficcional seja a de ocasião, seja ainda a de motivação íntima. Isso
quando não desanda em sátira ou sarcasmo. Contudo, suas sátiras, seguindo o que afirma os
teóricos, são plenas de poesia, lembremo-nos do Policarpo Quaresma, em que se mistura
tragédia e comédia com ironia, sátira e poesia, resultando em momentos alternados de riso e
lágrima. Mas também há de se fazer jus ao Gonzaga de Sá, sua obra mais equilibrada
humanamente, cerebrino, no seu dizer, muito irônico e o mais poético dos seus romances. No
trecho que se seguem, há ironia, crítica, poesia e tragédia.
ignominiosa. Era assim quando denunciava uxoricídios e toda a sorte de assassinatos contra as
mulheres, exigindo, contra a cultura corrente oficial e social, que punissem os assassinos.
Talvez, por isso mesmo, ele afirme: “Minha vida há de ser um protesto eterno contra todas as
injustiças” (VU, 1956, p.140). Assim, a forma em Lima Barreto não tinha outra função a não
ser adequar-se ao conteúdo e veiculá-lo, fazendo-o atraente e eficiente, para atingir o maior
número de pessoas, conscientizando-as e levando-as a agirem transformando a sociedade em
mais humana.
Referências
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______. Impressões de Leitura. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
______. Histórias e Sonhos. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
______. Marginália. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
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Literatura: formalistas russos. Editora Globo, 1971. p.99-103.
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Introdução
Teoria Greimasiana
O adjuvante é o actante narrativo que tem o papel auxiliar o sujeito, facilitando sua
busca. De modo contrário, o oponente tanto pode ser ele mesmo um incômodo como gerar
obstáculos para o sujeito, impedindo-o de realizar seu objetivo.
Opondo-se ao sujeito, tem-se o antissujeito que é o actante sintático que disputa com o
sujeito o mesmo objeto de valor ou cujo objeto-valor se opõe ao do sujeito. Este actante, da
mesma forma que o seu oposto, permite acionar mais dois outros actantes: o antidestinador,
que é seu destinador e o antidestinatário, que estabelece uma relação contratual com o
antidestinador.
O sujeito e o objeto se apresentam numa relação transitiva, que pode ser de natureza
conjuntiva ou disjuntiva. A partir disso, diferenciam-se os enunciados conjuntivos (sujeito
tem posse do objeto) dos enunciados disjuntivos (sujeito não obtém o valor desejado), que são
generalizados sob um eixo categorial denominado enunciado de estado.
Há ainda os enunciados de fazer que dizem respeito às transformações ocorridas na
narrativa e operadas pelo sujeito do fazer. Este fazer transformador é o resultado das ações
que o sujeito executa e que o põe em conjunção ou em disjunção com o objeto almejado.
A semântica do nível narrativo é o estudo das modalizações que estão na construção
dos valores disseminados na narrativa e também “determina a modalidade assumida pelo
sujeito no seu percurso em busca do valor” (BATISTA, 2009, p. 3).
São, portanto, cinco os tipos de predicados modais: querer, dever, saber, poder e crer.
Estes regem outros predicados de base que são o ser e o fazer. Da combinação dos predicados
modais com os predicados de base resulta na formação de predicados complexos: querer-ser,
querer-fazer, dever-ser, dever-saber, saber-ser, poder-ser, poder-fazer, crer-ser, crer-fazer.
Pelo exposto, vê-se que existem dois tipos de modalização: uma do ser e outra do
fazer. A primeira diz respeito ao predicado do ser que é chamada modalização do ser ou
modalização veridictória que incide nos enunciados conjuntivos e nos enunciados disjuntivos,
modificando, assim, as relações do sujeito com o objeto de valor. A outra modalização está
vinculada ao predicado do fazer e incide sobre a ação do sujeito que transforma o mundo.
A competência é a fase em que são atribuídos valores modais ao sujeito da ação. Neste
sentido, a competência do o sujeito realizador é constituída de um poder e/ou um saber. Esta
fase pressupõe a o seguinte, a performance, que é a fase em que ocorre a transformação
essencial da narrativa mediada por um fazer. É aqui que o sujeito entra em conjunto ou
disjunto do seu objeto de valor. Se a desempenho se realizou, então se tem a última fase do
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Análise do Corpus
O enunciador começa seu discurso estabelecendo um diálogo com outro sujeito, o seu
enunciatário, marcado pela desinência do verbo: -s, em dizes. Este não toma a palavra no
discurso, porém o acesso às suas percepções se dá através dos sentimentos do enunciador. Em
relação a este último, os primeiros indícios de seu estado de ser se constroem a partir de
proposições de aspecto breves e que sustentam a aparência de um ser lacônico, introspectivo,
além de estabelecer o tom melancólico do poema:
Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes/ Tudo que sentes.
pois o enunciador não está envolvido com felicidade alguma. Sendo assim, não se trata de sua
verdade, mas da verdade do enunciatário.
Portanto, em “não mentes”, essa possível mentira não tem a pretensão de afirmar uma
possível felicidade, pelo contrário, se configura como uma verdade que respeita apenas os
sentidos do enunciatário e não do enunciador. Esta mesma ideia, poderia ser parafraseada
como sendo: “não mentes para ti que sou feliz”. Ao isentá-lo deste estado, o enunciatário
afirma a sua completa infelicidade, argumentando que:
para mostrar que os indivíduos, além de serem sempre iludidos de que são felizes, assumem
uma postura falsa diante de si e dos outros. Trata-se de uma maneira de enxergar o ser
humano a partir de relações interiores que são transmitidas na aparência. Ao aceitar tal
condição, o ser se afirma no estado de infelicidade, o que poderia pensar que isto seria um
elemento disfórico para o sujeito, o que é exatamente o contrário, pois, como a completude do
ser é garantida através deste sentimento de infelicidade, esta passa a ser um fator positivo para
o enunciador, ou seja, um valor eufórico.
Não se sabe em que período histórico se encontra este sujeito, apenas tem-se a
convicção de que todo o soneto é construído no tempo presente que corriqueiramente se diz
que é o tempo da certeza. Como a intenção não é analisar o tempo e o espaço do soneto, neste
caso, em particular, será preciso apontar porque o enunciador transporta-se para o período da
antiguidade egípcia, a fim de estabelecer que relação se edifica entre este tempo e o aspecto
pelo qual o sujeito se encontra.
A remissão a um tempo tão antigo tem a função de mostrar primeiramente o aspecto
contínuo durante o qual o sentimento da infelicidade perdura, a sua permanência no sujeito,
visto que o mesmo não acredita em um estado de felicidade entre os homens.
Segundo, é mencionada Isis, deusa da mitologia egípcia que, além de muitas virtudes,
se caracterizava também por possuir a “felicidade perfeita1”. E este dado não é à toa, devido à
concatenação com a temática abordada, pois o enunciador, tendo a liberdade de citar qualquer
outro deus, preferiu esta para dialogar com sua condição atual. Tem-se, portanto, as escolhas
feitas pelo enunciador enquanto mecanismo de persuasão: enquanto a deusa, símbolo da
imortalidade, possui uma felicidade plena; o mortal, em sua limitação, é desprovido de
qualquer felicidade.
1
Cf. http://www.ocultura.org.br/index.php/%C3%8Dsis
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Percebe-se que o herói egípcio se identifica, do ponto de vista gramatical, como o ele,
a não-pessoa que Benveniste (1989 p.101) se referia. Enquanto as relações argumentativas se
dão por meio de um eu para um tu, o ele instaurado no discurso não participa do processo de
persuasão e, no entanto, a recorrência ao ele, pode ser interpretado como um mecanismo de
defesa do enunciador para que o seu argumento não seja refutado.
Conclusões
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Referências
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BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
BATISTA, M. F. B. M. O percurso gerativo da significação. Revista do GELNE (UFC),
Fortaleza, v. 3, 2001.
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BENVENISTE. Émile. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães
et al. Campinas: Pontes, 1989.
COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria
Almedina, 1979.
GREIMAS, A.J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Tradução de Ana Cristina Cruz Cezar
[e outros]. Petrópolis: Vozes, 1975.
Anexos
O que compreendemos como política linguística, refere-se a uma teoria que se aplica
às questões de planificação. De acordo com Kloss (1969), é preciso fazer uma distinção entre
a planificação do corpus e planificação do status. A primeira diz respeito às intervenções na
forma da língua (criação de uma escrita, neologismos), já a segunda refere-se às intervenções
nas funções de uma língua como status social diante de outras. Haugen (1983) adepto de
1
. In. Orelha do Livro: Retrato do Artista Quando Coisa. De Barros (1998).
2
“Minha poesia só se tornou conhecida quando Millor Fernandes a indicou para ser lida” (declaração dada pelo
próprio poeta em entrevista que nos concedeu).
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Kloss, adota as noções de status e corpus para distinguir a forma da língua (planificação
linguística) da função (cultura da língua). E Fasold (1984) estabelece sete funções
linguísticas: oficial, nacionalista, de grupo, veicular, internacional, escolar e religiosa.
Savedra e Lagares (2012) nos apontam para a relação de subordinação entre os dois conceitos
aqui apresentados:
De outra parte, recorrendo ao estilo literário, Castro (1991) defende que Manoel de
Barros é único em sua obra, não merecendo, uma vez que sua obra não aceita, qualquer rótulo
de classificação que force a natureza de sua liberdade sob argumentos de características
comuns. Se esta poesia merece o reconhecimento da crítica, manter-se-á como
individualidade artístico-poética dentro de suas características. Sua obra individualiza-o,
identifica-o, como portador de um universo e de uma dicção poética originais que lhe
alicerçam a perenidade, conforme segue a afirmação:
Castro (op. cit) entende, ainda, que as publicações barrenses podem ser divididas em
três períodos: primeiro, que compreende as três primeiras obras Poemas concebidos sem
pecado (1937), Face Imóvel (1942), e Poesias (1956), as quais representam o início de um
caminho poético, com características de uma poesia de vanguarda com verso funcional,
liberdade formal, técnicas surrealistas que se utiliza do poema-retrato e do poema-crônica
para retratar a vida pacata da cidade de Corumbá do início do século e de personagens que
conheceu na infância; já o segundo, com o surgimento de outras três grandes obras,
Compêndio para uso dos pássaros (1961), Gramática Expositiva do Chão (1969) e Matéria
de Poesia (1974) significa um marco, no qual o poeta se aprofunda na descoberta de sua
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poética, fixando-se nas coisas, nos pássaros, no chão e no vasto mundo vegetal; e o terceiro
que, como conseqüência, refere-se a uma inovação constante, por uma poética de
desvelamento de novas perspectivas, sem deixar de lado o pantanal, tornando-se, assim,
universal, compreendida nos livros: Arranjos para Assobio (1982), Livro de Pré-coisas
(1985), O Guardador de Águas (1989) e Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave (1991).
Analisa estas obras a partir da utilização da hermenêutica heideggeriana, por considerá-la apta
para interpretar um pensar autêntico, original como o do poeta Manoel de Barros.
Pelas citações ao conjunto da obra de Manoel de Barros, já em Castro, podemos
verificar as impressões imagéticas de uma paisagem ecológica nessa poética, o ciclo natural
da vida salta de cada obra. Nesse viés, recomendamos as entrevistas do próprio poeta que
rejeita todo e qualquer rótulo de poesia ecológica.
A questão não é rotular porque a poesia é livre de tendências, que podem representar
ciladas ao processo criativo, no sentido de não se dobrar à produção por encomenda, por
exemplo.
Entretanto, as marcas de discurso do natural e, ao mesmo tempo, combativo às normas
vigentes revela-se na poesia de Manoel de Barros como linguagem inaugural, como o próprio
poeta revela também em O guardador de águas:
É nessa mesma linha de pensamento que Silva (1998) faz uma leitura da obra de
Manoel de Barros a partir de parâmetros colhidos nas filosofias religiosas do extremo oriente
(o budismo e o taoísmo), confrontando os textos por meio de feixes temáticos, os quais
podem ser comparados analogicamente com o pensamento oriental como preferência pelos
cenários bucólicos, harmonização com o cosmos, aprendizagem como processo de abdicação
das coisas inúteis, concepção do homem como único elemento de desarmonia na Natureza,
caráter religioso do relacionamento com os elementos naturais, e a busca de uma linguagem
que não comprometa a relação direta com a realidade, uma vez que caracteriza a obra de
Manoel de Barros como uma busca às mais primitivas conexões entre a palavra e a realidade,
as quais proporcionam ao homem uma consciência de seu papel de estar no Universo.
Marques (2000) demonstra que a ordinariedade apresenta-se na poesia de Manoel de
Barros de forma coerente entre o que é temazidado e como isto é materializado no código
verbal: tanto a partir dos temas que sugerem o homem ordinário, aquele que é socialmente
marginalizado (bêbados, loucos, velhos insanos), ao lado das coisas que o circundam (latas,
pregos enferrujados); quanto por meio da linguagem da oralidade, distinta do conceito de fala,
correspondendo ao que Benveniste chama de l’oral tâtomont, como ocorrência de um discurso
de titubeios, que está na língua escrita espontânea. Esta linguagem está presente na poesia
contemporânea. Ao lado dessa análise, aponta o discurso poético de Manoel de Barros como
um discurso crítico, e até contestador da sociedade.
Dado o exposto, percebemos que os autores acima apontam características comuns da
poesia de Manoel de Barros, quando se referem à questão da oposição aos padrões da norma,
da utilização de paradoxos e subversões nessa obra de arte que retrata a realidade local (o
pantanal). Bem como, no tocante à originalidade e busca do novo, do que é inaugural na
linguagem poética. E que, a nosso ver, configura-se numa busca metalinguística pela criação
de uma nova poética.
Como vemos, também, apesar do hermetismo, também apontado por outros críticos, e
do reconhecimento tardio da crítica, a poética de Manoel de Barros vem sendo alvo de muitos
estudos com abordagens linguística e discursiva. O que só vem contribuir para a divulgação
de uma poética que se firma no cenário nacional e se harmoniza com o natural, a partir de um
veio filosófico, sociológico, erótico, psicológico, religioso, e que, acima de tudo, foge da
mesmice, da formalidade, rompendo com o sistema linguístico, estético e social.
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tarde está competente e o dia dorme, bem como o trevo assume a noite, e ainda o homem faz
sua primeira lagartixa e o sapo engole as auroras.
Enfim, toda poesia de Manoel de Barros é marcada por essa oposição à norma, ao que
é normal. Como nas poesias de vanguarda, a presença de paradoxo é o que caracteriza a
diferença, o caos, pois é através da crise que o universo evolui e não da harmonia. Ou seja,
identidade não existe numa poesia de cultura híbrida. A partir da crise tem-se dois, ou seja, de
uma reação, de uma tensão, surge a paixão, seja por paisagem, por animal, seja por qualquer
outra forma de paixão.
Referências
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Considerações iniciais
Indiscutível;
Insubstituível;
Infalível;
Ilegível.
Os paradigmas supracitados demonstram a abundância de lexias referentes ao processo
inventivo proposto pelo ministro Magri. Os estudiosos dessa área específica denominam esse
fenômeno lingüístico de neologia da forma. Ele é criado a partir de mecanismos existentes e
possíveis na língua portuguesa, ou seja, uma lexia que vem a tona por meio da virtualidade ou
potencialidade da língua.
Dentro dessa lógica explicitada, uma crítica deve ser feita. Isso é um neologismo ou
neovetusto? Acreditamos que seja um neovetusto, pois o processo de criatividade é mínimo
por parte do falante. Morfologicamente, tudo é previsto na estrutura da língua portuguesa.
Uma atividade salutar é imaginar a composição de uma lexia não existente nesse exato
momento. Em minha mente ocorreram duas palavras, a primeira é desguardar, a segunda é
bonitar. Sem nenhum desdobramento analítico, elas são possíveis na estrutura interna da
língua portuguesa.
Se buscássemos realmente uma inventividade por parte do falante e por parte do
sistema do português, as novas lexias deveriam obedecer uma configuração distinta daquelas
que temos até o momento. Se o ministro citado proferisse: o direito de greve é mexívelin.
Nesse caso, o paradigma composicional da formação de palavras da língua portuguesa teria
sido rompido, desse modo, teríamos efetivamente algo novo na formação de uma palavra.
Esse preâmbulo é significativo para inserirmos nossa proposta, o neologismo
semântico-literário1. Um dos primeiros estudos que versam essa vertente de neologismo foi
concebido por Gilbert nos anos 70. Um dos pontos significativos dos estudos desse teórico é a
discussão sobre a estrutura e semântica do neologismo. Assim como exposto anteriormente,
as estruturas dessas novas lexias cumprem sempre regras interna e tácitas. No caso do
neologismo semântico, a segunda categoria de Dubois, a lógica criativa segue um padrão
diferente do morfológico, pois a lexia passa por uma atualização semântica. Vejamos um
exemplo de neologismo semântico difundido na linguagem cotidiana.
Exemplo.: Sinistro
1
Gilbert (1975) abordou o fenômeno com neologismo literário. Nessa pesquisa, relacionaremos o termo
semântico ao literário e utilizaremos a nomenclatura neologismo semântico literário.
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2
Essa automatização aborda não somente os fatores semânticos, mas a relação de um fonema e outro. A língua
em si segue paradigmas predefinidos, a ruptura desses paradigmas acarreta um caos lingüístico ou
estranhamento.
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O morcego
objetivo é a informação precisa, objetiva. A linguagem poética não segue essa ordem, ela é
carregada de significado, subjetiva, pois o que é em um verso, não é em outro. O morcego
presente no verso número 2 é o mesmo do verso 12? Não é.
Notemos que o processo de neologia semântico-literária é distinto da neologia
semântica em geral. O ponto de divergência é a convenção abrangente em uma modalidade e
a singularidade em outro. Como destacado anteriormente, o neologismo semântico em geral
está centrado em uma convenção amplamente disseminada para que os falantes possam se
apropriar da lexia e utilizá-la com desenvoltura e pertinência.
No caso do neologismo semântico-literário, o sentido é interno, endofórico, ele só é
possível e compreensível dentro do texto. Somente nesse poema, o dito “morcego” é
atualizado semanticamente em consciência humana e vice-versa. No cerne da obra, essa
relação não é arbitrária, pois a construção artística do soneto aproxima essas duas lexias. O
que era uma relação semântica tão distante, por meio da verve do poeta, essa distância foi
superada pela lógica interna dos elementos artístico constitutivos do poema.
Outra referência significativa e curiosa é a construção semântico em torno da lexia
quarto. Abordaremos a aparição dessa lexia no primeiro e último verso da obra. Em sua
primeira aparição, temos a seguinte abonação: Meia-noite, Ao meu quarto me recolho. Nessa
referência ao quarto, o leitor não tem dificuldade em reconhecer que esse quarto é um espaço
físico em que o eu - lírico dorme, repousa. Nesse início, o poeta não utiliza o artifício
“desautomatizador” da linguagem. Porém, no último verso, toda a carga semântica é
artisticamente elaborada e o quarto assume uma significação outra, o quarto é a mente, cabeça
do eu – lírico. Essa edificação da lexia quarto é mais singular do que a metáfora Consciência
Humana e morcego, pois, neste caso, as duas lexia são dadas ao leitor. A relação entre quarto
e mente ocorre elipticamente e o leitor só chega ao entendimento através da lógica textual.
É necessário esclarecer que o neologismo semântico-literário só pode ser entendido,
em sua completude, dentro de uma obra específica. Logo, a configuração dessa modalidade
de neologia só serve para uma obra particular e o processo de transferência semântica dos
elementos citados nessa análise para outro poema de Augusto do Anjos é algo arriscado, pois
dificilmente a construção semântica presente em um soneto será a mesma em outro.
Observamos que o neologismo semântico-literário é fruto do entrecruzamento entre
uma definição linguística e acepções relacionadas à teoria da literatura. O texto artístico tende
a uma subversão da ordem imposta pela língua. Barthes identificou essa característica da
língua. O autor assevera que:
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Mas a nós que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta,
por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder no esplendor de uma revolução permanente de linguagem, eu a chamo,
quanto a mim: literatura. (BARTHES, 2013, p. 17).
Considerações Finais
Referências
Discografia
cidades, nos meios de comunicação de massa, do rádio à internet, ilustra, “as complexidades
das relações possíveis entre voz e escritura, tradição e criação” fundamentando-se nos termos
da comunicação que “podem ser modalizados pela voz e/ou pela escrita”, o que vem de
encontro às teorias que “insistem em ver no oral a infância da literatura e na escritura o
desembocar e a diluição da tradição oral”.
Por outro lado, a idéia de Nordeste que se pretende vislumbrar daqui, concordando
com Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999), se funda na tentativa de estabelecer outras
visibilidades e dizibilidades para a região, buscando movimentar-se, para dizê-lo com
palavras do autor, além da produção imagético-discursiva formada a partir de uma
sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente. Nessas bases, o estudo das
relações entre as poéticas da tradição e da contemporaneidade aqui tratadas não tenciona
abordar a poesia oral e as chamadas literaturas e culturas populares como manifestações “ao
lado (ou no fundo) da cultura dominante”, mas, conforme assinala Marilena Chauí (1987, p.
24), “como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela”.
O conceito de performance é, por sua vez, igualmente escorregadio devido à grande
abrangência de sua aplicabilidade. No que tange às poéticas da oralidade, somente a partir da
experiência sobre o funcionamento da voz poética com os griots do Burkina-Faso, os
rakugoka do Japão ou os repentistas do Nordeste brasileiro, entre outros, é que Paul Zumthor
(2000) apresentaria, de forma que se pretende mais conclusiva, uma idéia particular de
performance, antes tratada empiricamente como o único modo vivo de comunicação poética.
A performance compreenderia, então, um fenômeno heterogêneo, do qual se torna possível
dar uma definição geral simplificada. O próprio significado da palavra voz, em idiomas como
o espanhol, dá conta de aplicações mais amplas que aquelas correntes na língua portuguesa,
conforme observa a professora e pesquisadora Jerusa Pires Ferreira (2000), em nota de
tradução do texto de Paul Zumthor para o português, informação que se confirma através de
verbete específico:
Voz s.f. 1. Sonido que se produce al pasar el aire de los pulmones por la
laringe, haciendo vibrar las cuerdas vocales. 2. Grito: Al verle en la calle le
dio una voz. 3. Cantante. 4. Palabra: Walkman es una voz inglesa.
(DICCIONARIO escolar de la lengua española. Madrid: Editorial Santillana,
1996, p.910)
conceito de voz passa a assumir nesta discussão, envolvendo um caráter de som, grito, cantor
e palavra.
Na perspectiva de registrar outras formas de expressão cultural dinamizadas pela voz,
passaremos a referenciar a poesia dos vaqueiros cantadores entoada no Nordeste do Brasil e
inserida no conjunto maior representado pela arte dos cantadores e repentistas. Dentro do
universo da Cantoria nordestina, repentista seria o poeta que improvisa versos com ou sem
suporte musical. Na primeira situação, aparecem, por exemplo:
1. O poeta cantador ou repentista violeiro, que tem como suporte musical a viola, instrumento
de origem árabe introduzido na Península Ibérica e herança da colonização portuguesa;
2. O embolador de coco, fazendo uso do pandeiro, instrumento cuja origem também remonta à
cultura dos povos árabes, através do antigo adufe;
3. O tirador de coco-de-roda, de praia, de umbigada, samba de coco, mazurca etc, modalidades
que incluem a dança e outros instrumentos como o ganzá indígena, para marcar os versos
improvisados, além da percussão de bombos e pandeiro.
Na situação dos poetas improvisadores que não utilizam nenhum instrumento além da
própria voz, destaca-se o poeta do grito: o aboiador.
Classificado inicialmente como um canto de trabalho do vaqueiro, o aboio de gado,
não versejado, caracteriza-se por um canto de vogais que obedece a uma divisão assimétrica,
cheia de microtons, diferenciando-se da forma conhecida na escala musical do Ocidente. No
Brasil, ocorre principalmente na região compreendida entre o Norte de Minas e o sertão
nordestino, com variações conhecidas pelos nomes de aboio mineiro, aboio catingueiro etc. A
perfomance vocal do aboiador, para referir o pensamento desenvolvido na perspectiva de Paul
Zumthor, acaba sendo pontuada pelo ruído metálico produzido pelos chocalhos do gado em
movimento, se está em atividade de pastoreio.
Nos últimos anos, contudo, vem crescendo bastante a modalidade versejada do aboio
ou toada de vaqueiro, caracterizada por uma poesia entoada que se faz presente nos
campeonatos de vaquejada e outros eventos festivos. Vários poetas cantadores vêm se
dedicando ao aboio e às toadas em versos improvisados, como neste fragmento de Todo o
Nordeste entristece quando se acaba um vaqueiro, tirado por Galego Aboiador, de Ferreiros,
Pernambuco:
em festa de apartação
Se acaba a diversão
e o prazer desaparece
E logo tudo entristece
no Nordeste brasileiro
A falta de um guerreiro
que o amigo não esquece
Todo o Nordeste entristece
quando se acaba um vaqueiro, ô 1
Morena cor-de-canela,
bonita, do cabelão
Acabo todo o carvão
estando ao lado dela
Vendo o cavalo e a cela
só pra ganhar seu amor
E sentir o seu calor
com o seu corpo abraçado
Se amar for um pecado
quero morrer pecador, ê 2
Antes, durante o intervalo e após os versos improvisados que cria, o poeta aboiador
emite sons melodiosos e melancólicos, caracterizados pelo prolongamento das últimas sílabas
ou vogais. Esta prática vocal, na modalidade não versejada, funciona como uma espécie de
chamamento para as reses que, estando dispersas pelo mato, tornam a reunir-se atraídas pela
voz do vaqueiro.
1
ABOIADOR, Galego. Raízes Nordestinas. Rio de Janeiro, Copacabana 499876-2, s.d., digital, stereo, CD.
2
Idem.
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É preciso resistir
Aos desmandos da lei
Pesquisar, saber por quê
Sem ficar só de não sei
Refletir sobre o universo
Dos versos que aqui deixei, ô 4
Assim como o cante a palo seco, gênero de poesia oral realizado sem qualquer
acompanhamento pelos cantaores flamencos da Espanha, numa combinação de performance
vocal e recitação poética que, aliás, recebeu uma homenagem em versos escritos pelo poeta
3
GAGUINHO ABOIADOR. Canto Nordestino. Mega Music/Ouver Records, 3408120-2, digital, stereo, CD.
4
ABDIAS, Faces do aboio. In: Faces do Subúrbio, Como é triste de olhar. São Paulo: MZA 129742, digital,
stereo, CD.
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pernambucano João Cabral de Melo Neto, o aboio praticado no Nordeste brasileiro também
vai encontrar suas origens na tradição oral dos povos árabes e ciganos.
Considerando as perspectivas teóricas de Paul Zumthor expostas ao longo de seu
estudo (2000), segundo as quais a poesia parece residir em um fato de ritualização da
linguagem onde a palavra oral designaria as bases subjetivas da palavra escrita, poderíamos
sugerir que desde todos os praticantes da voz do passado e do presente, desde os griots
africanos, os cuicanis astecas, os rapsodos gregos, os haravicus incas, os medejs árabes, os
pajés indígenas, os bardos celtas até os repentistas nordestinos, os toasters jamaicanos, os
rappers da contemporaneidade, enfim, todos os meios que também em nosso tempo operam
uma ressurgência das energias vocais da humanidade, a transmissão da obra pela voz vem
promovendo uma multiplicidade de encontros entre ela e seu público.
Também através do aboio e da toada dos vaqueiros nordestinos, enquanto discurso
poético dirigido à comunidade humana parece fazer-se cumprir, através do poder da
linguagem, o papel performativo desta, reintroduzindo a voz nos funcionamentos
fundamentais do corpo social. Pela arte do aboio e da toada de vaqueiro se afirma, portanto, a
perspectiva zumthoriana das literaturas da voz e do uso performático desta como forma de
transmissão oral da poesia entoada, ilustrando e dignificando o sentido ampliado que a própria
palavra voz assumiu na discussão.
Referências
ABDIAS, “Faces do aboio”. Faces do Subúrbio, Como é triste de olhar. São Paulo: MZA
129742, digital, stereo, CD.
ABOIADOR, Galego. Raízes Nordestinas. Rio de Janeiro, Copacabana 499876-2, s.d.,
digital, stereo, CD.
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AYALA, Maria Ignez Novaes. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina. São
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CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 2a edição, 1987, p. 24.
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1
Mestrado em Letras no PPGL da Universidade Federal do Ceará –UFC.
2
Professora Doutora do PPGL da Universidade Federal do Ceará –UFC. Professora orientadora deste estudo.
3
Além das raízes lusitanas e peninsulares, Diégues Júnior (1973) aponta também a influência da tradição
africana de narrar fatos acontecidos, contar “estórias”, que se fundiu, sem muita dificuldade, com a tradição
lusitana em terras brasileiras: “Também os escravos vindos para o Brasil tinham não somente seus trovadores
como também o hábito de contar suas histórias, cantando ou narrando; são os famosos akpalô registrados pelos
especialistas em estudos africanos no Brasil.” (DIÉGUES JÚNIOR, 1973, p.11)
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Neste breve estudo, pretendemos analisar dois cordéis de três importantes autores
nordestinos, legítimos representantes da cultura popular: os poetas paraibanos Pedro Bandeira
e Antônio Araújo de Lucena; e o cearense, de Juazeiro do Norte, Expedito Sebastião da Silva.
Nossa proposta é identificar a presença de resíduos da mentalidade punitiva medieval na
escrita desses poetas populares, pois suas criações são importantes e refletem a cultura e o
imaginário de seus povos. Ambos os folhetos escolhidos trazem, em suas narrativas,
personagens transgressores de condutas morais estabelecidas e, por isso, punidas via
metamorfose corporal. Para tanto, utilizaremos como base teórica a Teoria da Residualidade,
sistematizada por Roberto Pontes, crítico literário, poeta, professor e estudioso de Literatura.
Sua contribuição vem sendo utilizada em importantes estudos literários, tanto no Brasil
quanto no exterior, pois a Residualidade tem por intuito explicar como se dá a permanência
de uma mentalidade de um povo em culturas subsequentes, de forma a preencher lacunas no
âmbito dos estudos literários e culturais.
Para compreendermos o papel do resíduo na formação das culturas, faz-se mister
observarmos as palavras do sistematizador da Teoria em apreço:
O resíduo é aquilo que resta de alguma cultura. Mas não resta como material
morto. Resta como material que tem vida, porque continua a ser valorizado e
vai infundir vida numa obra nova. Essa é a grande importância do resíduo e
da residualidade. Não é reanimar um cadáver da cultura grega, da cultura
medieval, e venerá-lo num culto obtuso de exaltação do antigo, do morto,
promovendo o retorno ao passado, valorizando a melancolia e a saudade,
como fizeram os portugueses durante a fase do Saudosismo literário; não é
isso. A gente apanha aquele remanescente dotado de força viva e constrói
uma nova obra com mais força ainda, na temática e na forma (PONTES,
2006, p. 09).
Elizabeth Martins (2000) assinala que “A Residualidade se caracteriza por aquilo que
resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes
mentais arraigadas no passado próximo ou distante” (MARTINS, 2000, p. 265). Logo, o
resíduo é tudo aquilo que fica de uma cultura antiga em uma nova cultura, porém cristalizado,
transformado, pois, ao longo do tempo, passa por um processo natural de modificação
denominado cristalização. Assim, embora os resíduos mantenham o substrato do período de
origem, estão sempre se modificando, afinal cada nova cultura possui um contexto diferente,
suas próprias especificidades. Por fim, vejamos o que nos diz Raymond Williams (1979): “o
residual foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não
só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente.”
(WILLIAMS, 1979, p.125).
Durante a Idade média, a noção de pecado foi amplamente difundida pela Igreja como
um modo de disciplinar as condutas a serem seguidas pelos cristãos. É quase impossível
discorrer sobre o período medieval sem falarmos em pecado, em sanções, em castigos e em
punições.
A Igreja tinha grande poder para normatizar e para moralizar a vida social cristã, era
ela, por exemplo, que especificava quais atos sexuais eram permitidos e como poderiam ser
praticados. Destarte, o “esforço da Igreja para controlar a sexualidade tinha um aspecto
positivo (...) canalizar a atividade sexual para o casamento e estender o controle da Igreja ao
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De maneira geral, as penitências aos desvios das normas estabelecidas pela Igreja
medieval eram diversificadas, porém, em nosso estudo, interessam-nos saber daquelas que
segregavam os grupos minoritários rotulados como transgressores, afastados e repudiados
pela sociedade cristã, como as prostitutas, os leprosos, etc. Segundo Martins e Pontes (2011),
Em A mulher que virou porca porque açoitou a mãe, de Pedro Bandeira e Expedito
Sebastião da Silva, encontramos a história de uma mulher de trinta anos, prostituta, que agride
a própria mãe, que com ela morava. Idosa muito religiosa, a mãe reclamava do modo como a
filha se vestia, pois, além de ela exercer a profissão do pecado, ainda andava quase despida. O
cordelista considera que o mundo está tal qual Sodoma, cidade destruída por Deus com uma
chuva de enxofre e de fogo, segundo o livro de Gênesis, pelos constantes atos pecaminosos.
Na corrupção o mundo
está igual a Sodoma
os exemplos que sucedem
não há quem saiba da soma
vive o povo encegueirado
num sofrer desesperado
e por castigo não toma
A figura do diabo, durante o Medievo, era, também, associada à prática sexual fora do
casamento pela Igreja medieval: “A Igreja associava o sexo ilícito ao Diabo e sua legião de
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Aí a bicha danou-se
disse: velha desgraçada
você diz que bate em mim
porém está enganada
como me desafiou
se apronte que eu vou
dar-lhe uma surra danada
A pobre senhora apanhou muito, gritou o quanto conseguiu, mas ninguém a socorreu.
A filha só terminou a agressão depois que viu a mãe inerte, estirada sobre o solo, sufocada
pelo sangue que de sua boca saía. Com grande esforço, a velhinha ainda conseguiu clamar a
Deus, confiante no poder divino, e jogou na filha uma praga, desejando-lhe que ela se
transformasse em uma porca que toda noite saísse a correr. Após algumas semanas, sem
nenhum tratamento de saúde, a mãe da jovem morreu, e o caso ficou encoberto, porque não
houve nenhuma testemunha do acontecido. A moça fica sozinha e, considerando-se livre,
resolveu que seu lar seria a rua, e que poderia andar vestida ou nua. Porém, em uma sexta-
feira, ao retornar de mais uma folia, ao passar por um local completamente escuro, sentiu uma
tontura e, sem conseguir equilibrar-se, caiu em agonia.
A mocinha chamava-se Creuza, e a punição recebida por ela deu-se em uma sexta-
feira da paixão, quando a mãe dela, dona Aurora, convidou-a para se confessar. A jovem,
todavia, esquivou-se do convite, dizendo que, se fosse para dançar, a mãe não a convidaria;
ela gostava de “farrear” e de namorar, por isso tinha três namorados, e ressaltava que velha na
viuvez é quem gosta de confissão: “Eu gosto é de namorado/ Pra isso já tenho três,/ Quando
um falta, o outro vem/ E não me falta FREGUÊS” (LUCENA, p.06, s/d). A mãe alertava-a
para os castigos de Deus e ensinava que o intuito do namoro é o matrimônio.
[...]
Creuza questionava tal ideia, falando para a mãe: “Quem se casa é quem se lasca!”.
Apontava a união matrimonial dos pais como exemplo, pois, para ela, o pai abandonava a
esposa para ficar no “meio do mundo”, do que a mãe discordava, porque, embora eles fossem
idosos, amavam-se, e ele saía apenas para ganhar o sustento da casa. A filha continuava
levantando suspeita sobre o casal, dizendo que até a mãe deveria aprontar quando o pai estava
fora. A velha senhora pediu que a filha a respeitasse, aconselhando-a a rezar e a pedir perdão
a Deus, acompanhar a procissão e confessar seus pecados e seus arrependimentos. A
protagonista, no entanto, afirmava ainda ser donzela, e que a religião dela era dançar e tirar
sarro, beber cerveja e quentão, pois tinha que gozar a mocidade, visto que o resto era ilusão. E
foi assim, por blasfemar da religião e preferir os prazeres mundanos, que a jovem
transformou-se em cadela:
Após a perda da forma humana, a cachorra rasgou o vestido, farejou objetos, uivou e
deu latidos. Aurora chorou muito ao ver a filha metamorfoseada. Dizia: “coitadinha, ficou
amaldiçoada!.../ O que será de minha filha/ Tão diferente e mudada?! (...)” (LUCENA, p.10,
s/d). A cachorra, porém, não achou ruim o castigo, achando aquelas palavras uma grande
besteira, e analisando que o bom daquilo tudo seria encontrar a cachorrada. Saiu alegre, de
rabo levantado, encontrou um par para si e, quando se lembrava, voltava à antiga casa muito
contente.
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Além disso, “o pecado, nas palavras dos pregadores, nas páginas dos tratados, nas
imagens pintadas e esculpidas no interior das igrejas, é representado: animais reais ou
imaginários, doenças imundas e contagiosas tornam-se pouco a pouco símbolos de sua ação
maligna (...)”. (CASAGRANDE & VECCHIO, 2002, p.339)
Acrescenta-se que a confissão proposta pela mãe à transgressora, no último cordel
analisado, era prática comum do mundo medieval, importante conduta cristã que aprofundava
o conhecimento da Igreja sobre as condutas e vícios humanos.
Concluímos esta análise, ressaltando que a Igreja tinha, no Medievo, grande controle
da vida social: ela regrava as condutas e as normas a serem seguidas pelos cristãos e ditava as
penitências para os que as infringissem. A mentalidade punitiva medieval ainda está presente
no imaginário popular contemporâneo, pois os resíduos daquele período histórico, de maneira
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Referencias
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In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente
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Autor, 1999.
PROPP, Vladímir. Comicidade e Riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
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RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Tradução:
Marcos Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.1993.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. Waltemir Dutra. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores, 1979.
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Introdução
Com o tempo, alguns estudos se voltam para obras de autores preocupados com uma
questão ancorada na relação de determinações sociais; autores com perspectivas que elevam
essa visão e a colocam de lados opostos. “O texto afrobrasileiro inscreve a mulher num outro
diapasão, no qual o corpo mais do que nunca expressa sua condição de vítima de uma ordem
social calcada na exploração e no preconceito”. (DUARTE, 2009, p. 16)
Essas obras, até então desconhecidas aos olhos da comunidade acadêmica, nos levam a
refletir sobre a condição da mulher negra nas diversas esferas que perpassam e perpassaram a
sociedade brasileira desde a sua origem. Elas “surgem para agregar um perturbador
suplemento de sentido ao conjunto de figurações marcadas desde sempre pela expressão das
fantasias sexuais aqui plantadas pelo discurso do colonizador”. (DUARTE, 2009, p. 17)
A literatura, com seus estereótipos, frequentemente reforça o grau de uma sociedade
patriarcal, sexista e racista em diferentes momentos e nos apresenta os lugares sociais
assinalados ao gênero feminino durante todo o período de formação. Tal afirmativa vai de
encontro com a seguinte formulação:
No final do século XX surgem cordéis com um novo enfoque da visão da mulher que
desvincula o discurso católico patriarcal, embora esse ainda persista, passando a apresentar
uma fusão de traços históricos, cômico e satírico, recriando novos hábitos e transfigurando a
conduta feminina, além da inversão de papéis dos gêneros masculino e feminino que
continuam presentes no século XXI. Até então, predominava um discurso com o objetivo de
ridicularizar a mulher, rebaixando-a, em relação ao homem. Neste sentido, objetivamos
apreciar a poesia de Renato Caldas destacando aspectos como a questão étnica e a
representação da mulher nas vertentes destacadas acima, que em uma leitura primeira pode-se
chegar à conclusão de que o sujeito lírico não apresenta esses traços; porém, ao
aprofundarmos nossas reflexões, constatamos que ele sugere as mesmas visões em relação à
mulher.
1
O termo potiguar remete à ‘potiguara’, denominação de tribo que habitava o litoral brasileiro à época da
chegada dos europeus ao continente americano. Atualmente existem cerca de 22 comunidades potiguara
distribuídas nos municípios de Marcação, Rio Tinto e Baía da Traição no Estado da Paraíba.
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Ou seja:
de outros assuntos, a mulher está sempre presente como elemento ratificador do discurso
proferido pelo sujeito lírico. Vejamos a expressão “Está certa a Dona Gena!”, constante no
poema “Trovas” (p. 96):
O eu-lírico volta-se em alguns poemas como para uma crítica às divisões sociais,
retratando essas diferenças e relatando que não existe felicidade maior do que no seu grupo de
convívio, ou seja, as classes menos favorecidas, como vimos no supracitado trecho do poema
Trovas. No poema “Avariantes” (p. 95) o poeta também expressa a lealdade de alguém
quando ama, ao ponto de aceitar qualquer possibilidade. Neste caso trata de um amor que não
pode ser realizado, pois o sentimento aqui referido seria um amor do negro pela patroa. Na
penúltima estrofe traz de volta a questão da representação social, quando afirma que o negro
não tem o mesmo cheiro do branco, mas o branco só cheirava por causa do trabalho do negro.
Os pontos de exclamação tem uma função intensificadora muito interessante: retratam um
desabafo, um grito reflexivo, expondo a sua angústia por causa dessas diferenças que faziam
com que o negro não tivesse o seu amor correspondido:
Nos poemas “Reboliço” (p. 47) e “Pra que oiá?” (p. 49) vemos que o poeta focaliza a
sensualidade da mulher, levando em conta aspectos que poderiam demonstrar uma visão
vulgar; destaca-se a beleza atribuída à menina, fazendo com que os homens fiquem seduzidos
pelo seu rebolado. No primeiro poema, o eu lírico questiona se a cabocla poderia explicar por
que, quando vê homens, remexe a cintura, provocando-os; afirma ainda que se tivesse algum
valor a prenderia para admirá-la:
Menina me arresponda,
sem se ri e sem chorá:
Pruque você se remexe
quando ver home passa?
Fica tôda balançando,
remexendo, remexendo...
Pensa tarvez, qui nós véio,
nem tem óio é e nem tá vendo?
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Nesse poema, o eu-lírico usa a expressão “Minha nêga” não para designar a condição
etnorracial da mulher, mas para denotar uma afetividade em relação à menina a quem se
dirige, afetividade esta carregada de um tom de censura, como fica evidenciado no último
verso: “remexe pro delegado”.
No segundo poema, o sujeito lírico expõe emoções provocadas pela passagem daquele
corpo maravilhoso. Em ambos os poemas, defende a ideia de que queria tê-la para si, apenas
para admirá-la, já que estava velho e não poderia “fazer nada”:
Me fazia de dengoso
Pachola, esperto, amorôso...
Porém, nada de avançá.
... Práquêfazêtraquinage?
Véio só tem pabulagem...
Farta na hora legá.
Mais uma vez o poeta vai utilizar o designativo “Cabôco” para referir um indivíduo do
sexo masculino, alvo do desejo da “Cabôca”, ou seja, para expressar afetividade. As
terminações “Cabôca” e “Cabôco” podem ser utilizadas pelo eu-lírico também para se referir
ao negro, como no poema “Inxurrada Mardíta”, onde ele destaca a cor dos olhos e dos cabelos
como pretos, descrevendo uma mestiça ou uma negra de fato:
No poema “Mulata”, mais uma vez o poeta traz uma descrição da beleza da mulher
negra nascida no pé de serra sertanejo; ao mesmo tempo em que se refere a essa denominação
também usa o termo “morena” na mesma poesia, cofirmando o que propõe na sua obra, uma
mestiçagem feminina.
No poema “Meu tudo” (p. 69), Caldas traz uma questão curiosa: ao tempo em que
trata do erotismo, expõe a valorização da mulher. Aqui o poeta faz um diálogo com o patrão,
descrevendo toda a riqueza do mesmo e a vida que leva com muita prosperidade sem
conhecer necessidade. Em seguida relata que mesmo na sua vida simples reinava a mesma
felicidade e que não trocava nada que tinha por toda a riqueza do patrão. Diz ainda que a
maior fortuna, o maior tesouro de ambos são as esposas, suas mulheres:
No poema “Lôvação à rainha dos estudantes” (p. 124) o autor começa relatando um
contexto histórico por meio do discurso que ouviu o avô contar: a época que Pedro II
governava o país. Em seguida lembra-nos da ditadura militar que ocorreu por volta de 1964 a
1985, fala da queda do regime e de uma nova eleição, temas que desagradaram o seu avô. De
forma subjetiva, trazendo as divisões dos poderes, faz uma crítica aos acontecimentos
históricos que não ajudaram em nenhum momento a vida do povo brasileiro.
Posteriormente, realiza uma quebra total da temática que vinha abordando e volta-se
para o poder da mulher sobre o homem, afirmando que elas são as verdadeiras representantes
da monarquia de uma nação, tendo poder supremo ao controlar o coração. Uma suposta
valorização da mulher pode ser relativizada no momento em que se distingue um tom
depreciador de um possível comando feminino:
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O poema Hirisia (p. 25) é uma representação da contradição estabelecida nesta obra,
ora especificando a mulher com características medonhas, ora com santidade. O termo usado
heresia significa algo que uma doutrina religiosa não aceita, nesse caso o fato dele colocar a
mulher acima da Mãe de Jesus que não teria os olhos tão bonitos quanto da morena do poema.
A mulher retratada em “Confissão” (p. 30) chega a ser comparada a uma santa que
mesmo fechando os olhos ainda assim consegue vê-la, uma idealização da perfeição da
amada. Já em “Juramento” (p. 33) o poeta fala de todo o sofrimento que ela proporcionou
para ele, mas, que um dia Deus abençoaria, ele esqueceria e nunca mais olharia para nenhuma
mulher.
O poeta demonstra ter uma fissura enorme por olhos, constantemente ele remete ao
prazer que tem na troca de olhares. No poema “Incandiado” (p. 41) destaca que é impossível
olhar nos olhos de Sá Dona que reflete uma luminosidade tão grande que não deixa ver nada
além dos seus olhos.
A mulher, o desejo, a malícia, estão presentes na poesia de Renato Caldas, mas um dos
pontos mais colocados em seus poemas é o cheiro e a beleza da mulher, no poema “Fulô do
mato” (p. 17), por exemplo, o poeta quer demonstrar uma exclusividade de um cheiro tão
forte que nenhuma superava:
No poema “Lagoa das moças” (p. 46) o poeta deixa em aberto por meio de perguntas,
por que, aquela lagoa cheira tanto, seria por causa das moças da região que tomavam banho
ali todos os dias? Ainda coloca que queria ser a lagoa para ter o prazer de olhar para elas.
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A mulher retratada será o monopólio masculino, à cabocla que ele canta, passa a ser
sublimado pela harmonia que ele busca destacar entre ela e a natureza, fundindo-a à flor, à
terra, à água, ao sagrado e ao profano. A poesia de Renato caldas, portanto, apresenta
representações da mulher que contemplam o erótico, o ético, o etnorracial, o social dentre
outras. Assim, uma possível valorização da mulher como objeto poético passa a ser
relativizada no momento em que percebemos traços de estereótipos machistas referentes ao
feminino.
Referência
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8.a ed. Coimbra: 1988, p. 116-
118.
ALVES, Miriam. Mulheres negras, militância e literatura. In: ______. Brasil Afro
Autorrevelado. Belo Horizonte: Nandyala, 2010, p. 60
BARBOSA, Clarissa Loureiro Marinho. As diferentes abordagens sobre a mulher no cordel.
In: ______. As representações indenitárias femininas no cordel: do século XX ao XXI.
Recife-PE: UFPE, 2010. Dissertação de mestrado.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Representações da mulher negra na literatura
brasileira. UERJ/PEN CLUBE DO BRASIL
CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em
perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; EDWIN,
Reesink; CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,
alteridades. Natal: EDUFRN, 2011.
DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade. Terra
roxa e outras terras - Revista de Estudos Literários. Volume 17-A (dez. 2009) – ISSN 1678-
2054. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa.
SILVA NETO, Lourival Bezerra da. Memorial da Mulher: perspectiva historiográfica. In:
Presença da Mulher na Literatura do Rio Grande do Norte .Academia Feminina de Letras do
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Em seu artigo “Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura” Ligia
Chiappini apresenta a seguinte constatação:
Dessa forma, mais que identificar um movimento que setores da crítica literária
consideram ultrapassado, o regionalismo pode ser lido no presente como um fenômeno
conectado à globalização, a despeito de retratar o que se costuma referir por “tipicamente
local". A estética dita regionalista, dessa forma, acabaria participando da construção de
identidades culturais outras, a exemplo do que se verificou em alguns momentos da trajetória
literária de países oficialmente lusófonos como Cabo Verde, nitidamente influenciada pelo
Regionalismo nordestino de 30, ou, como assegura Lygia Chiappini, alimentando pesquisas
atuais, “ganhando uma amplitude maior na intersecção dos estudos literários e artísticos,
históricos e etnológicos” (CHIAPPINI, 1995, p. 153).
Nesse sentido, identidades espaciais são construídas em um dado momento histórico,
dotados de uma visibilidade e de uma dizíbilidade por certos mecanismos de poder, a exemplo
da emergência de uma identidade para a região Nordeste do Brasil enquanto objeto de saber e
espaço de poder. Em A invenção do Nordeste e outras artes Durval Muniz de Albuquerque Jr.
trata do universo de imagens e estereótipos, positivos e negativos, que engendrou a própria
ideia de “região Nordeste”, para a qual concorreu decisivamente a literatura.
Assim, o chamado Regionalismo nordestino, ou Regionalismo de 30, estava
diretamente ligado a eventos históricos bem marcados, como a crise das economias açucareira
e algodoeira do final do século XIX e princípio do século XX, especialmente na região
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Nordeste do Brasil. Tal crise desencadeou um processo de declínio dos grupos políticos
dominantes dessa região, sendo que as principais características estéticas e ideológicas do
Regionalismo de 30 se configurariam como desdobramentos dos valores dessas elites em face
de tal declínio:
Com esse regionalismo, várias partes do Brasil foram mapeadas via literatura,
ganhando uma projeção nacional enquanto espaços socialmente reconhecidos e consagrados
como entidades ontológicas. No Nordeste, características comuns presentes em uma gama de
obras cristalizou certas imagens e discursos sobre a “região”. No Rio Grande do Norte,
ganhou certo destaque no cenário nacional o escritor José Bezerra Gomes através de obras
como Os Brutos e A Porta e o Vento. Nesses romances, o autor retratou, a partir de recursos
estéticos peculiares ao Regionalismo de 30 sua terra natal, a então Vila de Currais Novos,
localizada no sertão potiguar.
Com tal ambiência em seus textos, José Bezerra Gomes acabou projetando uma
microrregião para o país: o Seridó potiguar, região fisiográfica situada dentro de dois Estados:
Rio Grande do Norte e Paraíba. Retratando temas recorrentes da estética regionalista como a
seca, a migração, o memorialismo, Bezerra Gomes também projetou idiossincrasias dessa
região intra e interestadual, a exemplo da tradição patriarcalista e da cultura algodoeira,
“símbolo” econômico e cultural do Seridó.
Descendente de antigas elites decadentes da região, José Bezerra Gomes, como tantos
outros, projetou em seu trabalho literário, ensaístico e historiográfico todo um imaginário
oriundo de um grupo social específico. Assim:
Elite cuja “série genealógica legitimava-o como um individuo que não parte de um
lugar social [e étnico] qualquer” (MACÊDO, 2012, p. 112). Elite com a qual muitos dos
produtores literários regionalistas se identificaram, como o próprio José Bezerra Gomes, que
não deixou de legitimar o lugar social e étnico desse grupo social em sua obra literária e
historiográfica. Exemplos disto são poemas como “Sobretudo Currais Novos”, onde o autor
exalta a origem de sua terra natal: “cidade de Currais Novos/ Advinda do Capitão-Mor
Cipriano Lopes Galvão/Fundador/Filho/do Coronel Cipriano Lopes Galvão/Primeiro Coronel
do Regimento da Ribeira do Seridó” e arremata: “Unos/Ambos/Assumem/a paternidade/ de
Currais Novos/diante do testemunho do tempo percorrido” (in: SOUZA, 2011, p. 17-18). Já
em Sinopse do Município de Currais Novos, Bezerra Gomes aponta que:
1
Ver: CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
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Uma história buscada na tradição oral, na cantoria, nas vaquejadas vai ilustrar esse
Seridó pintado até o momento com tintas de documentário etnográfico. Então, “contava-se
que o negro Chico Luiz (...) juntamente com Zé Cardozo e Pedro Preto faziam uma rotineira
inspeção no gado (...) quando o barbatão apareceu pela primeira vez.” (MONTE, 1992, p. 10).
Aparecem os vaqueiros que caracterizam a paisagem humana desse Seridó representado no
texto, com destaque para aspectos etnorraciais de alguns. Um deles traz na alcunha a
identificação referente ao fenótipo de sua pele: “Pedro Preto”; outro é referido como “negro”.
Característica essa não recorrente com relação a outras qualificações étnicas, diga-se de
passagem. Personagens, a exemplo de Antônio Mulato e Ana Filomena, também vão ser
etnicamente identificados como negros.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas, ao tratar da alienação do negro, Frantz Fanon
ressalta a importância do fenômeno da linguagem para a “compreensão da dimensão para-o-
outro do homem de cor” (FANON, 2008, p. 33). No desenvolvimento de seu raciocínio,
Fanon aborda a adoção da língua francesa pelos seus compatriotas martinicanos e pela
maneira como os brancos se dirigem aos negros – forma de aproximação e distanciamento
entre negros e brancos, respectivamente. No caso do contexto de “A Negra da Cachoeira dos
Sapos”, os negros são nomeados, constituídos como negros: são etnorracialmente
identificados. Os coronéis, por exemplo, não são identificados dessa forma, o que nos leva
ainda para a questão de que é apenas o vaqueiro, o empregado que é distinguido pela sua
condição étnica. Uma posição social subalterna estaria também atrelada a essa mesma
condição étnica.
Seguindo a narrativa, alguns coronéis da região decidem que o barbatão deve ser
capturado. Reúnem-se, então, vaqueiros de várias localidades circunvizinhas para a
empreitada. O último vaqueiro a chegar ao lugar de onde partiria a expedição de captura é o
representante da fazenda Cachoeira dos Sapos. No entanto, quando este vaqueiro se apresenta
aos demais:
Todos ficaram pasmados. Ali estava, frente a eles, uma negra taluda, toda
encourada, segurando pelas rédeas um bonito cavalo alazão. O
encouramento, já bastante surrado, mal cobria uma enorme barriga, dando à
negra um aspecto hilariante e desajeitado. (...)
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No conto “A Negra da Cachoeira dos Sapos”, que integra a obra Veredas do Seridó de
Airton de Negreiros Monte, imagens e discursos emergem do texto apresentando uma
identificação etnorracial do Seridó potiguar que, de certo modo, ainda que permeado por
estereótipos e clichês, ensaiam uma desinstituição dos discursos que relegam o negro à
obscuridade histórica. Um Seridó rural, legatário de uma herança regionalista, fenômeno
histórico e cultural que o dotou de imagens e discursos “típicos”, um Seridó protagonizado
também por vaqueiros negros e mestiços.
Referências
ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 5 ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
ASSIS, Manoel Tomaz de. “Marco do Seridó”. In: SOBRINHO, José Alves (org.).
Romanceiro Popular Nordestino: marcos e vantagens. Campina Grande: UFPB, URNE,
1981, p. 195 a 217.
CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em
perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; EDWIN,
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Reesink; CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,
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CHIAPPINI, Ligia. Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. In:
Estudos Históricos. vol. 8, n. 15. Rio de Janeiro, 1995, p. 153-159.
FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, José Bezerra. Antologia Poética. Natal: Fundação José Augusto, 1973.
______. Sinopse do município de Currais Novos. Natal: Manimbu, 1975.
______. Obras Reunidas: romances. 2 ed. Natal: EDUFRN, 1998.
MACÊDO, Muirakytan K. de. A Penúltima Versão do Seridó: uma história do regionalismo
seridoense. Natal/RN; Campina Grande/PB: EDUFRN e EDUEPB, 2012.
MONTE, Airton de Negreiros. Veredas do Seridó. Natal/RN: Fundação José Augusto, 1992.
SOBRINHO, José Alves (org.). Romanceiro Popular Nordestino: marcos e vantagens.
Campina Grande: UFPB, URNE, 1981.
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Centenário de José Bezerra Gomes. Currais Novos/RN:
Fundação Cultual José Bezerra Gomes, 2011.
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Introdução
Essa visão é de maior tradição entre os lingüistas e considera a fala como “o lugar do
caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua”
(MARCUSCHI, 2003, p. 28). O autor rejeita esse ponto de vista, ressaltando a importância
dos textos produzidos e dos fenômenos dialógicos e discursivos, que representam a língua
real.
Uma outra perspectiva, a variacionista, apresenta o equilíbrio entre a fala e a escrita,
mostrando que, em ambas, se podem encontrar: língua padrão e variedades não-padrões,
línguas culta e coloquial, ou seja, a variação aparece nas duas modalidades, evitando a
identificação da escrita como padronização da língua. Sendo a escrita e a fala duas
modalidades lingüísticas, o aluno que domina a escrita, torna-se bimodal, no entender de
Marcuschi (2003, p. 30).
Características dessas duas modalidades foram encontradas, também, em Fávero et
alii, quando apresentam um quadro comparativo entre a fala e a escrita, permitindo-nos
perceber, com clareza, suas respectivas condições de produção, que, segundo as autoras, essas
condições “possibilitam a efetivação de um evento comunicativo e são distintas em cada
modalidade” (Fávero et alii, 2002: 74). Entre essas características, podemos citar a interação
que, na fala, é realizada face a face, enquanto que, na escrita, à distância, tanto no espaço,
quanto no tempo e o planejamento que, na fala, é simultâneo à produção e, na escrita, é
anterior.
populares. Pessoas pobres podiam viver dessa arte, mas o que tornava os textos populares,
acessíveis ao povo, não era o autor ou o público, mas, em essência, seu material, aparência e
preço.
A sua origem está relacionada não apenas à divulgação de histórias ainda armazenadas
na memória popular, como também à aparição de fatos recentes que chamavam a atenção do
público. Essa literatura também está relacionada como tipo de poesia encontrada no
romanceiro popular, que, por sua vez, não possui raízes apenas em Portugal, mas também em
toda a Península Ibérica, daí ser chamado “romanceiro peninsular”. Podemos identificar essas
narrativas não apenas no Brasil, país colonizado por Portugal, como também na cultura
popular dos países hispano-americanos, como o México, Argentina, Nicarágua e Peru, países
colonizados por espanhóis. Na Espanha, país peninsular, o folheto de cordel era conhecido
como pliegos sueltas, o que corresponde em português a “folhas volantes”. Quando chegam à
América, sobretudo nos países colonizados pela Espanha, o folheto era conhecido por “o
corrido” e possuía características semelhantes à nossa versão por tratarem de assuntos, não
apenas tradicionais, mas também de fatos circunstanciais, como revoluções locais, etc.
A diversidade temática dos textos produzidos era tão acentuada que poderíamos
encontrar cordéis que falassem de quase todos os acontecimentos, desde fatos rotineiros do
cotidiano até ocasiões especiais, como também, glosas, provérbios, narrativas históricas e
religiosas, muitos até transformados em teatro. Esses textos eram relacionados, em sua
maioria, com realidade popular, observada e transformada em literatura pelos autores. Os
folhetos conseguiam diluir o grande abismo entre cultura popular e cultura de elite, pois os
mesmos eram de interesse da elite econômica, sendo uma de suas principais fontes de lazer.
Portanto os folhetos dependiam da aceitação dos seus leitores para sobrevivência. Aqueles
que não tinham grande aceitação, não vendiam, portanto, não eram reeditados, nem
memorizados, desaparecendo rapidamente.
oral, com uma linguagem informal e descontraída, sobretudo quando o emissor sente que está
agradando” (Batista, 2001: 01).
Os romances orais tiveram sua origem aristocrática, mas foi apenas a partir dos
séculos XV e XVI que eles foram muito difundidos, adaptados ao gosto do povo. Vieram ao
Brasil com os portugueses na época da colonização, passando a se instalar, principalmente,
nas zonas interioranas. O nome romance provém do fato de terem sido escritos, inicialmente,
na língua do Império Romano, o romanço, que foi estágio intermediário entre o Latim e as
línguas neolatinas. Da designação dada a língua, passou-se, depois, às composições literárias
nessa língua (Batista, 2000: 20).
Análise do corpus
Procuramos fazer, nesse trabalho, uma análise comparativa entre as duas versões do
romance popular O Soldado Jogador: o oral, coletado em Aracaju, Sergipe, e a escrita, em
folheto de cordel, composta por Leandro Gomes de Barros.
A peça conta a estória de um soldado, de origem francesa, que era jogador
profissional, numa época em que a Igreja Católica acumulava os poderes político e religioso.
Ricarte é obrigado a assistir à missa, quando desejava jogar cartas. Em vista disso, ele fica
fisicamente presente, mas com pensamento no jogo. Retira do bolso as cartas e começa a
jogar, sem perceber que atrás dele havia um sargento que o observava. Após a missa, o
sargento o prende e o leva ao comandante. Ali, questionado sobre o motivo de estar na igreja
jogando cartas, o soldado explica ao comandante que se utilizava das cartas para rezar e dá
um significado religioso para cada carta, com grande astúcia, o que leva o comandante não
apenas a deixá-lo solto, como também a dobrar-lhe o soldo.
O texto oral segue o seguinte percurso temático: identificação do soldado (nome,
profissão e arte); descrição do serviço prestado à Igreja pelo povo francês; prisão do soldado,
que é levado ao comandante; questionamento do comandante sobre a atitude errada do
soldado; justificativa do soldado, que afirma estar agindo corretamente, uma vez que reza com
as cartas; explicação do soldado sobre o valor das cartas, convencendo magnificamente o
comandante; comparação do valete com o sargento; sanção dada ao soldado pelo comandante
(absolvição, promoção e aumento de soldo).
No texto escrito, acrescentam-se mais alguns momentos: descrição da situação
financeira de Ricarte, cujo soldo havia acabado; tentativa do soldado de descobrir onde
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poderia conseguir dinheiro; ida do soldado à missa; jogo do soldado durante a celebração;
desculpa do soldado sobre o motivo por que não tinha o missal.
Nos dois textos, os temas são recobertos pelas mesmas figuras de conteúdo e de
expressão:
I – Identificação
Versão Escrita
Nome do soldado
Lugar de origem
Profissão (soldado e jogador)
Esperteza no jogo
Versão Oral
Nome do soldado
Lugar de origem
Profissão (soldado e jogador)
Esperteza no jogo
Versão Escrita
Seguir a religião
Obedecer às leis que o Papa ditava
Versão Oral
Seguir a religião
Obedecer às leis que o Papa ditava
Versão Escrita
Observação do sargento
Erro agravante
Ida ao comandante
Versão Oral
Observação do sargento
Erro agravante
Ida ao comandante
IV – Explicação do soldado
Versão Escrita
Explicação do sentido das cartas
Sentido religioso para cada carta
Omissão do valete
Versão Oral
Explicação do sentido das cartas
Sentido religioso para cada carta
Omissão do valete
Versão Escrita
Pergunta do comandante pela carta
Exclusão do valete
Lembrança do sargento
Comparação da carta às características do sargento
Versão Oral
Pergunta do comandante pela carta
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Exclusão do valente
Lembrança do sargento
Comparação da carta às características do sargento
Versão Escrita
Liberdade
Promoção
Aumento do soldo
Versão Oral
Liberdade
Promoção
Aumento do soldo
IV – desculpa por não ter um missal: soldo mesquinho para a compra do livro, compra do
baralho por ser mais barato, reza com as cartas;
Pode-se pensar que o texto oral é o resultado de um texto escrito, memorizado pelo
informante que enxugou o texto, eliminando as passagens secundárias (excessos de descrições
ou repetições). O texto oral apresenta lacunas e, ainda, repetições de momentos já referidos,
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que deve ser atribuído a lapsos na memória do informante e, até mesmo, à necessidade de
rima para seu texto.
Versão Escrita
Versão Oral
(...)”
Versão Escrita
“(...)
— Não, senhor, eu estou certo.
Do princípio até o fim.
(...)”
Versão Escrita
“(...) O soldado na igreja
Chegou, se ajoelhou
Trouxe no bolso da blusa
Um baralho ele tirou
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E endireitando as cartas
Uma patota formou
(...)
— Pronto, senhor comandante
Está aqui preso um soldado,
Que foi ao templo ouvir missa
Lá estava ajoelhado
Encarmassando um baralho
Que traz no bolso guardado
(...).”
Versão Oral
(...)
Considerações Finais
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990.
BARROS, Leandro Gomes de. O Soldado Jogador. Fortaleza: Tupynanquim, 2002.
BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A Tradição Ibérica no Romanceiro
Paraibano. João Pessoa: Editora Universitária, 1999.
CASCUDO, Luis Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1984.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
GREIMAS, A. J. e COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4ª ed.
São Paulo: Cortez, 2003.
PAIS, Cidmar Teodoro. Texto, Discurso e Universo do Discurso. In: Revista Brasileira de
Lingüística. São Paulo: Plêiade, 1995.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 787
Introdução
O folheto O último dia de Lampião retrata, de uma forma geral, a vida de Virgulino
Ferreira, mais conhecido por Lampião, um nordestino que ganhou fama em todo o país pela
sua valentia e pelo ódio que conquistou de seus inimigos, representados por militares e
fazendeiros, que eram as maiores vítimas desse astucioso cangaceiro. O cordel traz toda a
trajetória de Lampião, seu nascimento, seu ingresso no cangaço, as batalhas violentas em que
se envolvia com seu bando, as mulheres que o acompanhavam e as perseguições que o
cercavam, a última delas, realizada pelo tenente João Bezerra, resultou na morte trágica do
valente Lampião e dos demais componentes do bando.
Análise do corpus
Percebe-se que o S1 iniciou e terminou seu percurso conjunto com seu objeto de valor
principal, que era sua inclusão no cangaço. Ele é o responsável direto pela continuidade do
estado de conjunção, ou seja, o próprio sujeito semiótico 1 realiza o fazer transformador que
mantém essa relação de conjunção.
O segundo momento do percurso surge em decorrência dos combates travados por
Virgulino, que atraiu ódio e fez muitos inimigos. Como consequência dessa inimizade, o
sujeito semiótico 1 passou a ser perseguido pelos seus adversários e se instaura pela
modalidade de um dever-fugir. Destinado pelo amor à sua liberdade, procurou esquivar-se de
seus perseguidores (OV1) e iniciou um estado de constantes fugas (OV2). Sem lugar fixo para
residir, o sertão nordestino se transformou em sua morada (OV3). Contudo, a determinação de
um inimigo em capturá-lo, o Tenente João Bezerra, representando aqui o anti-sujeito, pôs fim
à sua fuga. O militar foi informado por um delator sobre a localização do esconderijo do S 1
(OV4), é quando este é capturado e morto (OV5). O esquema seguinte oferece uma
sistematização do percurso:
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Nesse segundo momento, o S1 encontra-se num estado inicial de conjunção com seu
objeto de valor, passando para um estado final de disjunção com o mesmo.
O percurso completo do S1, com os dois momentos, é esquematizado no esboço a
seguir:
No início do percurso, o S2 achava-se numa posição disjunta com seu objeto de valor,
no entanto, após o fazer transformador efetivado por ele próprio, conclui o percurso conjunto
com o referido objeto.
Da mesma forma que o S3, cuja figurativização era composta por diferentes atores, o
sujeito semiótico 4 encontra-se numa situação análoga. Na narrativa, S4 está sob o
revestimento figurativo das mulheres que compunham o bando de Lampião: Enedina, Cila,
Maria Bonita e Bentinha. É um sujeito instaurado pela competência modal de um querer-ser
companheiro, porquanto, por amor aos cangaceiros e recebendo o auxílio da coragem que
detém, o S4 se absteve de uma vida calma e de um lar fixo para acompanhar esses homens
numa trajetória arriscada, regada a perigosos conflitos. Esse acompanhamento representa o
objeto de valor do S4.
juntivo advém do próprio S4 que adquire competência para realizar a performance e obter seu
objeto. Não existiu uma ação que impedisse a realização dessa obtenção.
Conclusão
O enunciador revela seu posicionamento em relação aos fatos que noticia e procura
representar os valores sociais e culturais de seu povo. No texto analisado, em particular, o
enunciador transmite um fato muito marcante do Nordeste, o cangaço, e, por representar o
povo nordestino, torna-se um sujeito defensor desse histórico movimento.
A análise das estruturas narrativas, com relação à quantidade de sujeitos envolvidas,
mostrou-se simples. Apresenta sincretismo actancial, ou seja, quando o mesmo ator funciona
como dois sujeitos semióticos. Em todos os sujeitos existentes, a maioria apresenta a
conjunção com seus Objetos de Valor no estado final, sendo, pois eufórico.
O que se percebe, ao analisar um folheto de cordel noticioso, é que, com o passar dos
anos, a função informativa do cordel está cada dia mais em crescimento. É grande a presença
de folhetos com essa função, nos dias de hoje, dispostos à venda. Retratam casos de corrupção
na política, escândalos no mundo dos famosos, fatos que chocam a população etc. Podemos
afirmar que a velocidade com que as informações são espalhadas se torna um fundamental
contribuinte na intensa produção desses folhetos.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. Sao Paulo: Atica, 1990.
BATISTA, Maria de Fatima Barbosa de Mesquita. O Discurso Semiotico. In: ALVES, Eliane
Ferraz et alii (org). Linguagem em Foco. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Ideia, 2001. pp.
133-157.
FIORIN, Jose Luiz. Elementos de Análise do Discurso. Sao Paulo: Contexto, 2001.
FUNDACAO CASA DE RUI BARBOSA. Literatura Popular em Verso. Estudos TOMO I.
Colecao de Textos da Lingua Portuguesa Moderna. Rio de Janeiro:, 1973.
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Página 794
Introdução
O Léxico
O léxico de uma língua mantém uma estreita relação com a história cultural da
comunidade, refletindo o seu modo de vida, como encerra a realidade e a maneira como os
seus membros organizam o mundo no qual vivem, bem como sistematizam os referentes, os
signos linguísticos que remetem ao universo referencial. Dessa forma, o léxico de uma língua
vive num processo de expressão permanente. Segundo Biderman o léxico é:
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Lexicologia
Lexicografia
A principal missão da Lexicografia será auxiliar os falantes nativos de uma língua com
as suas dificuldades de ortografia, de categorização e gramatical de palavras, além de prestar
esclarecimentos sobre o significado e o uso de uma palavra pouco utilizada, incluindo
algumas informações etimológicas.
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A Sociolinguística
Etnolinguística
A Etnolinguística como diz Pottier (1972): “É o estudo das relações entre uma língua e
a visão de mundo daqueles que falam”. É o estudo do próprio código de sua função e de suas
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“O povo tem uma cultura que recebeu dos antepassados. Recebeu-a pelo
exercício de atos práticos e audição de regras de conduta, religiosa e social.
O primeiro leite da literatura oral alimentou as curiosidades meninas”.
(CASCUDO, 1983, p. 678)
O autor
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“Quando o velho Borges botou a cabeça fora da janela, sentindo o tempo, a barra da
manhã nascia na Serra do Tará. O cinzento da madrugada diluía-se no clarão que vinha
surgindo, e o chão, distante, ia tomando formas entre as sombras da mataria detrás de casa.
Na frente, na burra-leiteira onde se amarravam os cavalos, os passarinhos cantavam.”
Seus contos poéticos provêm da essência das coisas, da firmeza das frases, dão
impressão de completa naturalidade; trazendo uma contribuição preciosa para prosa brasileira
é o humor peculiar, indireto e aparentemente casual, que se desprende dos pormenores da
narrativa, em circunstâncias mais imprevistas, que se assemelha a de José Lins do Rego.
O autor ainda ilustrou o livro com belas gravuras, as quais impressionam pelo frescor,
transmitidos pela emoção.
GIROZINHO – Andar, passar por um determinado lugar. Ex.: De tarde, o sol já pendendo, o
velho foi dar um girozinho por trás de casa.
GUENZO – Expressão nordestina que significa pessoa ou animal magro e doente; capenga,
caindo aos pedaços. Ex.: Já disse que tua mãe morreu guenzo.
JIRAU – Cama. Ex.: D. Marica dormia na camarinha, Zumba no jirau.
MAGOTES – Quantidade, coletivo de pessoas. Ex.: Formavam-se naturalmente os magotes,
uns aqui, outros lá adiante.
MARTELAR O JUÍZO – Pensar, ficar pensando. Ex.: O único pensamento que lhe vinha
martelar o juízo.
MATUTANDO – Pessoa pensando; absorto; falando com seus botões. Ex.: Matutando a
última coisa, Joaquim deu um murro com toda força.
MEIÁGUA – Casa de telhado de um lado único, inclinado com telhado inclinado. Ex.: Na
meiágua, um foguinho de cabeça de candeeiro.
MINGAU-DAS-ALMAS – Secreção saída da boca durante o sono. Ex.: Lavou o rosto,
bochechou, tirando o mingau das almas.
NATUREZA DE COBRA – Pessoa ruim. Ex.: Nem esta seca danada que abrasa tudo, tem
poder sobre a tua natureza de cobra.
PURGA DE CABACINHO – Planta com larga utilização como medicinal, outros usos, em
veterinária, parasiticida. Ex.: Até milho cozido eu dei. A purga de cabacinho foi mesmo que
nada.
QUIZILA – Quizila antipatia, inimizade, briga, rixa. Ex.: Ora vocês já viram uma quizila
dessas!
RABO DE OLHO – Olhar pelo canto do olho sem mover a cabeça ou mover muito pouco ou
levemente para o mesmo lado que o olho foi direcionado. Ex.: Joaquim passou um rabo de
olho em cima do cego.
RAPÉ – Ex.: Ouviam-se perfeitamente o resfolegar do velho, entupido de rapé.
REMANCHANDO – Remanchar andar devagar, atrasar, demorar, tardar, preguiças. Ex.:
Vocês estão remanchando, preguiças.
RESTIAZINHA – Pequena sombra. Ex.: Acaso o cego enxergava uma restiazinha qualquer.
TEMPEROU A GOELA – Pigarro, tosse seca. Ex.: O velho Borges temperou a goela.
VENTAS AGUÇADAS – Ventas, o mesmo que o nariz, nariz com olfato ativo. Ex.: Sentia
um cheiro diferente daquele com o qual suas ventas, aguçadas, pela ausência da vista.
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Conclusão
Referências
BIRDEMAN, Maria Tereza. Teoria Linguística: leitura e crítica. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, 341 p.
COSERIU, Eugenio. Principos de semantica estructural. Madrid, 1978.
______. Teoria da Linguagem e Linguística Geral. Trad. Agostinho Dias Carneiro. Rio de
Janeiro: Presença USP, 1979.
JARDIM, Luís. Maria Perigosa, Contos brasileiros. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1976.
POTTIER, B. Estruturas linguísticas do português. Trad. Albert Audubert e Cidmar Pais.
São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1972.
VILELA, Mário. Problemas de Lexicologia e Lexicografia. Porto: Livraria Civilização,
1979.
______. Estrutura lexical do português. Coimbra: Almeidina, 1994.
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Introdução
O estudo das ciências humanas, nos dias de hoje, é um verdadeiro desafio. A história
dos nossos dias aponta as ciências voltadas às áreas tecnológicas como donas da verdade no
mundo moderno, principalmente porque, para muitos, são elas capazes de resolverem os
problemas mais emergentes da humanidade.
Percebendo o crescente desenvolvimento das áreas tecnológicas, os teóricos e
humanistas, então, buscaram dinamizar as ciências humanas, preocupando-se de forma efetiva
com a pesquisa dos aspectos culturais como um todo e, cujas partes, ciência, tecnologia,
literatura, filosofia, arte, religião etc. apesar de traçarem seus próprios objetivos se
completam e, muitas vezes, se interpretam.
Na verdade, o homem não pode viver voltado apenas para o lado objetivo da vida;
necessita também de aguçar sua sensibilidade para construir seu mundo interior e reconstruir
um mundo sempre melhor, a fim de que, desenvolvendo-se cada vez mais, contribuirá
também para o desenvolvimento de seus semelhantes, pois a vida se compõe de fragmentos
que arranjamos em torno de um tema; tema que se apossa do nosso corpo, podendo ser uma
melodia, uma imagem, um toque, e as variações vão se repetindo, sempre iguais, sempre
diferentes. Às vezes o script é trágico, no entanto, ficamos fiéis a ele, por ser belo, já que é
isto que nos faz continuar a ouvir a música que nos corta a alma e a continuar a leitura do
livro que nos dilacera. A dor pode ser bela, mas todos estamos destinados à beleza. Pois,
antes de se acreditar em mitos, antes de termos tido a consciência do bem e do mal, já
estávamos enamorados da beleza...
Assim, as obras culturais, de um modo geral, comunicam algo de profundamente
humano: arma-se uma comunicação entre intimidades, uma comunicação integral. Isso
significa que, entre tantas obras, o apreciar de qualquer uma delas, não se faz
superficialmente, envolve-se emocionalmente com o autor, o tema, o colorido, os sons, as
imagens, as linguagens.
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A literatura, neste caso, também como arte, manifesta-se como meio para romper, de
certa forma, a solidão. Para desfrutar o prazer da literatura é necessário educar a sensibilidade
e apurar o espírito crítico, buscando as formas do passado em comparação com às do presente.
Quanto às obras culturais, elas apresentam um nível ideológico ou mental que se refere
às relações do homem com o plano superior, transcendental. Daí a necessidade de esse
homem explicar sua existência através das ciências, das artes, da filosofia e da religião.
A cultura objetiva, fruto dos produtos culturais, compreende o patrimônio de bens e
valores que se transmite de geração a geração: uma informa à outra suas descobertas,
conquistas, criações, invenções pesquisas e experiências, pelas mais diversas formas de
linguagem que, segundo Hjelmslev (1968), designa qualquer sistema semiótico.
Em se falando de linguagem, sabemos que um dos seus objetivos é a comunicação e a
informação. Do ponto de vista lógico, essa comunicação e essa informação se dão também em
um nível semântico e estético. Níveis esses que nortearão uma das funções da linguagem que
é a total integração do homem enquanto organismo, enquanto psiquismo e enquanto pessoa.
É levando em conta todos esses aspectos, que estamos a estudar o mito e o simbólico
nas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense - um subprojeto integrado ao
projeto: O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense-
IFNOPAP/UFPA, a fim de verificar de que forma o mito e o simbólico se intercruzam
nessas narrativas e em que medida a relação entre o mito e o simbólico atua como marca
interferidora no discurso das formas do imaginário popular do amazônida paraense. O suporte
teórico que sustentará a análise será os relacionados à literatura mítica e aos estudos sobre os
aspectos simbólico-semiótico-semânticos.
Para esse estudo, levantamos a seguinte hipótese: através das narrativas orais
populares da Amazônia paraense, o homem amazônico manifestará a crença e o sentimento
que lhe está arraigado culturalmente, e se elevará enquanto indivíduo amazônida, pela sua
realidade mítica e simbólica. Para isso, o corpus escolhidos para análise foram as narrativas
constantes da publicação: Abaetetuba Conta...
No entanto, para nos situarmos melhor, é necessário que se faça algumas considerações entre
esses dois elementos, a fim de entendermos como eles se interpõem nesse tipo discursivo.
Comumente alguns autores afirmam que um exame da palavra mito revela, de
imediato, que esta é empregada de modo ambíguo na linguagem contemporânea. Assim
podemos assinalar a existência de uma dupla valorização, negativa e positiva do termo.
O sentido negativo é evidente na linguagem comum, na qual o mito aparece como
sinônimo de mentira, falsificação intencional, ilusão, querendo significar que há uma
hipervalorizarão do sujeito, com base em qualidades às vezes de fato existentes ou vistas de
modo deturpada, hipertrofiadas. O sentido positivo do mito está na expressão simbólica, por
imagens de valores. Esta expressão é carregada de conotações afetivas, o que caracteriza o
poder de sedução do mito. Abrangendo uma totalidade dificilmente apreensível de modo
direto e imediato pela consciência discursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo,
conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede de absoluto e
de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude.
Para Eliade (1991), o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode
ser abordada e interpretada através de perspectiva múltiplas e complementares é nessa
perspectiva que, para Cassirer (1972: 18):
Sem nos afastarmos dessas concepções míticas. Neste trabalho, porém, não será esse o
caminho que pretendemos percorrer, em relação ao mito, nem tampouco aquele da rigidez
clássica que afirma ser o mito uma narrativa, um discurso, uma fala. A nossa percepção, sem
desprezar as demais concepções, é situarmos o mito como uma forma de compreender uma
determinada estrutura social já que o mito é capaz de revelar o pensamento de uma sociedade
a sua concepção da existência e das reações que os homens devem manter entre si e com o
mundo que os cerca. O mito não será ficção engano e falsidade, mas sim, um modo de falar,
de ver e de sentir as dimensões da realidade inatingíveis racionalmente, dando-lhes
significado e consistência.
Quanto ao simbólico, em seu sentido etimológico significa encontro, conjunção, é o
elemento que, no mundo mítico, eleva os indivíduos ao mais alto grau da realidade. É algo
vital e, portanto, frequentemente repetido, recriado pela sociedade. É a expressão simbólica,
por imagens, de valores. Esta expressão é carregada de conotações afetivas, o que caracteriza
o poder de sedução do mito. Abrangendo uma totalidade dificilmente apreensível de modo
direto e imediato pela consciência discursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo,
conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede do absoluto e
de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude.
O vigor do simbolismo em nossa cultura e a presença indubitável de um pensamento
racional em toda sociedade invalidam sem dúvida a concepção de uma humanidade primitiva
irracional ou por insuficiência ou por sistema; no entanto, não se invalidam a concepção de
um simbolismo irracional. Daí porque, estudar o simbolismo é postular que ele se constitui
em um sistema e procura os princípios que o regem. Afirmar que os princípios da
racionalidade nele intervêm insuficientemente ou não intervêm de modo algum não
apresentaria interesse a não ser que a própria racionalidade estivesse definida; de um modo ou
de outro, não seria uma definição do simbolismo em si. Nessa percepção o simbolismo,
enquanto sistema de signos está ligado, como a língua, a uma semiologia. A língua tem sinais
próprios, que não se definem a não ser por sua articulação recíproca e por sua relação no
sentido linguístico. O simbolismo utiliza como sinais os elementos, os atos ou os enunciados
que existem e também se interpretam independente dele.
Assim, segundo Spencer (1974), um mito se apresenta primeiro como um discurso
ordinário. Para quem conhece a língua em que ele é narrado, ele não é mais difícil de
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parafrasear que qualquer outro relato e sua interpretação não traz à baila nenhum problema
linguístico particular. Mas esta interpretação lingüística não lhe esgota o sentido; ela constitui
antes um sinal complexo, que deve constituir o objeto de uma segunda interpretação, desta
vez simbólica. O sentido manifesto, e muitas vezes absurdo, um mito, nada mais é que um
instrumento da significação simbólica.
O uso ordinário da linguagem utiliza as categorias para enunciar proposições sobre o
mundo. O pensamento simbólico, pelo contrário, utilizaria proposições sobre o mundo para
estabelecer relações entre categorias. Assim sendo, todos os elementos do mito se tornam
pertinentes desde que se encontre pelo menos um outro elemento com o qual eles estejam
numa relação de identidade, de implicação ou de contradição. O conjunto dessas relações
analíticas constituiria, senão a totalidade, pelo menos o essencial da interpretação simbólica
do mito.
Com essa visão entre o mito e o simbólico é possível, a partir de agora, verificar de
que forma a dualidade entre esses elementos se constitui nas narrativas orais populares da
Amazônia-paraense, especialmente, nas narrativas do Abaetetuba Conta... (1995). Dada
extensão territorial do Município de Abaetetuba, e a data de sua fundação, em 1724, é fácil de
nos apercebemos que os mitos que constroem a história de uma nação, de um estado, de um
município são, na verdade, a construção de sua própria identidade. É daí que vem, a nossa
disposição em nos atermos nos aspectos míticos e simbólicos que fizeram e continuam
fazendo a história do município de Abaetetuba.
E, para isso, faremos algumas considerações dos aspectos míticos e dos aspectos
simbólicos em algumas narrativas que constituem o acervo do material Abaetetuba Conta...
por nos parecerem mais importante a este trabalho, conforme os dados que se constituem
abaixo:
L1 Mariana, tem uma comida de veado muito importante. Vamos matar esse
veado hoje.(...) Foi, foi, eu ouvi uma zoada, assim. Não demorou muito
aquilo Ah...Ah...Ah...Ah...(...) Eu vou, eu vou ver parar com esse negócio
(...) Dessa vez quase eu morro de medo, sabe? Porque eu não não
acreditava que tinha visagem (p.11-13).
L2 E tinha um homem de bruços, aberto assim (...) Volta, Volta! (...) Aí, eu
cheguei, foquei, ele não estava mais. Essas coisas que eu [...] já vi, uma
visão, não? Uma visão, não sei... ( p. 14-15)
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L5 Aquele navio baixando vinha por cima da praia. Uma coisa nunca vista!
Era um canto de papagaio. Era conversa do povo. Era música. (p.96)
L8 Era uma vez uma moça virgem que morava numa casa deserta. Aí, ela
estava menstruada, ela foi tomar banho no rio (...) Quando ela estava
tomando banho, aí passou uma cobra, aí passou na perna dela e ela gritou.
Aí, a mãe dela veio e conseguiu tirar a cobra da perna , que estava trançada
na perna dela (...). Aí, ela pegou foi embora pra terra (...) aí começou a
crescer a barriga dela (...) aí, quando foram fazer exame, ela estava grávida
(...) Quando estava com dor, ela teve uma cobra, uma cobrinha (...) ela
pegou e jogou num rio (...) aí, ela cresceu, a cobra (...) aí, (...) uns nove
anos (...) apareceu um rapaz. Ele estava sentado numa ponte. (...) Aí, ela
disse bem assim, para o rapaz: Tu tem coragem? (...) Aí, ele disse tenho!
Então desce aqui. Aí, ele desceu (...) aí ela disse, assim, a cobra: (...) Então,
tu vem meia-noite, aqui e traz um terçado e um copo de leite (...) Mas tu
não conta pra ninguém, que tu vem aqui meia-noite (...Aí, quando foi meia-
noite, ele pegou o facão dele. É facão virgem. Pegou e foi pra lá. Aí, ela
colocou o rabo, e ele, ele cortou. Ai, ela se transformou numa linda moça
e casou com ele. (p. 141)
mulheres e homens muito lindos. Quase sempre não aceitam sua condição de animal cobra e
vivem implorando a coragem de alguém que se predisponha a ajudar a perder o encanto.
Sempre que pedem ajuda orientam o preterido que leve um facão virgem, isto é, um
facão que nunca tenha sido usado em uma única outra atividade, por esta razão, não está
contaminado por nenhuma bactéria evitando, assim, inflamação do ferimento causado pelo
golpe. Este facão, que é o símbolo do sacrifício, serve para a execução, para a morte, para a
vingança. Aqui, porém, tem a simbologia do afastamento das influências maléficas, no caso
da narrativa, da cobra-grande que deseja libertar-se do encantamento.
Ao ter o rabo cortado sangrará, sairá então o sangue do animal enquanto cobra e fica
esperando a restauração de sua identidade humana pelo leite materno que deve ser jogado em
cima o corte, assim que cortado.
O leite materno, obviamente, é o leite de uma mulher que ainda está amamentando.
Este leite representa a pureza, por ser um leite natural, isto é, puro tem o poder de cicatrização
imediata à imunização e à cura após o encantamento. No aspecto mítico temos uma cobra que
enquanto metamorseada poderá ter decisões súbitas, mas que no lado humano simboliza a
vida. É uma hierofania do sagrado natural, não do espiritual, mas do material.
Quanto à solicitação do desencantamento há dois caminhos, ou o agraciado assume o
compromisso, transformando a cobra em um ser humano (homem ou mulher) e é premiado
por ela, ou então desiste de praticar o ato prometido, redobrando o encantamento do/da
solicitante, segundo as lendas cada encantamento redobrado tem um período de 07 (sete)
anos. Dado que o compromisso assumido não foi realizado, o solicitado sempre morre e, sua
morte, é sempre em decorrência de uma forte dor na cabeça.
O matintaperera é um dom que as pessoas trazem. Durante a noite, elas saem para
cumprir sua penitência - ficar assobiando. As pessoas que ouvem o assobio, numa tentativa de
saber quem é a pessoa que está com o fado, prometem, na manhã seguinte, uma cachimbada,
isto é, uma porção de tabaco, que dá para encher um cachimbo. Em decorrência do
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oferecimento a matinta, quase sempre uma mulher, vai logo de manhã buscar a cachimbada
de tabaco, prometida. O tabaco tem um poder de transmutação por ter nicotina é um
alucinógeno, é um tóxico, capaz levar o homem a um estado de alucinação. No entanto, no
caso da oferta à matintaperera, o tabaco assume o papel de ser, dentre outros, um dos produtos
mais consumidos pelos caboclos, aqueles que não o têm, buscam com os demais vizinhos e
assim nessa roda viva, o fumo passa a ser quase que uma obrigação, um “passar o tempo”, um
reviver de um passado. No aspecto mítico a matinta representa um ser humano que quando
transmutada é conhecida pela forma especial de assobio. O tabaco simboliza a disposição, a
alegria, dando à matinta, força para continuar a cumprir o que a natureza lhe impôs.
L10 (...) Ela chegou na cabeça da ponte, e ficou olhando as águas do rio. De
repente, um rapaz muito lindo, e bem vestido, veio se encontrar com ela e
desceram as escadas da ponte. (...) O primo curioso foi atrás dela (...) No
outro dia, ele contou tudo a seu tio (...) Nessa mesma noite, precisamente,
meia-noite, a filha saiu para a cabeça da ponte (...) Ele aproximou-se com
cautela (...) E qual não foi o seu susto, ao deparar com um peixe muito
grande, que rodava e mergulhava nas águas do rio, fazendo piruetas e a
moça toda risonha, conversando com ele. Então o pai entendeu que a filha
estava sob o encanto do boto. (...) ele voltou a casa e reuniu alguns homens
(...) para fazerem um cerco e matarem o boto (...) ouve-se um estampido de
uma arma de fogo e o peixe boiou e tornou a fundar. A moça deu um grito e
jogou-se no rio, atrás de seu amado. (...) pularam na água e não mais
acharam nada, nem a moça, nem o peixe. (133)
por que sempre prefere continuar como boto, em nenhuma narrativa se ouviu caso em que ele
(boto) pedisse para ser desencantado.
Quando o boto é baleado vem à tona, emerge, a moça grita e atira-se na água, a partir
desse momento, ela passa a um outro plano o do encantamento.
L11 (...) O meu pai dizia que lobisomem era um porco. Ele se virava em
porco. (...) O meu pai dizia que o lobisomem só saía na noite de lua. (...)
Eles saíram pra lancear (...) Aí, eles lanceram um bocado. Que quando eles
viram, eles viram aquele passo, aquele andar pra perto deles. Um andar
igual um andar dum bicho, mas um bicho muito grande. Mas eles olhavam e
não enxergavam nada (...) Você quer saber de uma coisa, eu já vou acabar
com este... Com isto que está nos perturbando. Pegou a espingarda e deu um
tiro, assim, por baixo. Pegou a perna do lobisomem (...) pegou um bago de
chumbo na perna dele (...) Ele caiu (...) Mas eles não enxergavam (...)
Quando foi no outro dia, nós soubemos que o homem... O nome dele era,
era, era, pois, Pedro o nome dele. (...) ele estava malíssimo na casa dele,
com uma bala na perna.. (157)
Conclusão
uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz
reviver uma realidade primeira, que satisfaz as profundas necessidades do homem, suas
aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas.
Estudando o mito e o simbólico refletimos sobre o seu sentido e significado,
buscando sua constante atualização, procurando ter em mente que ele é um dos ingredientes
vitais da civilização humana e, apesar de ser uma realidade cultural extremamente complexa
pode e deve ser abordado e interpretado através de perspectivas múltiplas e complementares,
nas narrativas amazônica, em especial, nas narrativas de Abaetetuba Conta...
Referências
O presente trabalho tem como objetivo analisar a xilogravura que ilustra o folheto
popular impresso, denominado A velha que matou o filho pra ficar com seu dinheiro, ambos
de autoria de José Costa Leite. Este poeta paraibano, que nasceu em Sapé, no ano de 1927, é
um dos xilogravadores que melhor representam esse imaginário feminino, criando assim uma
expressividade própria. Na sua arte, apresenta mulheres que assumem diversos papéis sociais
ainda que ocupem o mesmo espaço nordestino. Nota-se que em sua obra permeiam-se
mulheres traídas, revoltadas, escravizadas, embora fortes, valentes, guerreira e outros. Nessa
análise, buscamos identificar valores dos sujeitos investidos na narrativa, bem como a
modalização, responsável pelo agir do sujeito.
A semiótica greimasiana, modelo teórico escolhido, tem como objeto de estudo a
significação que compreende um percurso que vai, segundo Pais (2003) da mente do falante à
mente do ouvinte, sendo constituída de três níveis de estudo de analítico: nível fundamental
ou profundo, nível narrativo ou intermediário e nível discursivo ou superficial. O primeiro
nível representa o primeiro momento do percurso gerativo, tratando de explicar a produção, o
funcionamento e a interpretação do discurso; O segundo nível acontece em torno do
desempenho de um Sujeito que realiza um percurso em busca do seu Objeto de valor, sendo
instigado por um Destinador que é o idealizador da narrativa e ajudado por um Adjuvante, ou
prejudicado por um Oponente; e o terceiro nível é encarregado de retomar as estruturas
semióticas de superfície e colocá-las em discurso. O sujeito enunciador organiza as categorias
de sujeitos do discurso, os atores, o espaço, o tempo, os temas, bem como as figuras que os
põem em discurso, para convencer o enunciatário daquilo que ele deseja afirmar. Vejamos a
xilogravura para análise:
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Essa xilogravura está em conformidade com o título do cordel que aparece ambíguo a
partir da ligação que o pronome possessivo “seu” possibilita. Ocorre que esses sentidos, a
mais, na mensagem enriquecem o objetivo do autor em conquistar o leitor. Num primeiro
momento, o título exposto em letra evidente envolve três circunstâncias. O pronome “seu”
funciona, numa primeira interpretação, como sendo o dinheiro posse do filho; numa segunda
concepção, a posse do dinheiro é da própria velha. A terceira interpretação que o pronome
“seu” gera é o dinheiro ser posse do próprio leitor que se depara com esse título e fica
desconfiado, principalmente, se coincidir com alguma economia que o mesmo possua, e
julgue que não está bem guardada. Na dúvida, prefere adquirir esse significante para ter
certeza da sua significação. Em resumo, isso reforça a capacidade do produto chegar até o seu
destino pleiteado: as mãos do seu público leitor.
O xilogravador chama atenção da sociedade para mostrar que dinheiro pode ser algo
muito perigoso. É por causa da sedução do fetiche do dinheiro que muitas pessoas tornam-se
assassinas e poderão perder a vida, cedendo lugar para a tragédia litigiosa, inclusive em
família. Dessa forma, a cena que poderia ser de afeto, com os membros da família se
abraçando e expressando amor, converteu-se numa imagem irreversível de horror que traz, em
sua estrutura narrativa, três Sujeitos Semióticos:
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O Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado pelo enunciador, tem por Objeto de valor
mostrar que, numa sociedade onde o dinheiro supera o valor da vida humana, há uma
passividade de erros. O Destinador desse sujeito é ele próprio e o Adjuvante, o conhecimento
colhido através da experiência de vida. Eis o programa narrativo de S1:
O Sujeito Semiótico 2 (S2), figurativizado pela velha, tem por Objeto de valor obter
uma vida boa. Para isso, S2 terá que sacrificar uma vida. O seu Destinador é a coragem para
cometer essa barbaridade. O Adjuvante desse Sujeito é a foice que utilizou para decepar a
cabeça de um ser humano, o filho. Eis o programa narrativo desse Sujeito Semiótico:
O Sujeito Semiótico 3 (S3), figurativizado pelo filho, tem por Objeto de valor viver
feliz com a família. Para tanto, S3 procura ficar perto da mãe. O Destinador de S3 é ele
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próprio. O Oponente é a mãe que lhe tira a vida. O programa narrativo do Sujeito Semiótico
S3 é configurado da seguinte forma:
um escudo. Ela está tão obcecada pelo dinheiro que nem mesmo os pingos de sangue que
largam da foice para caírem sobre o corpo chegam a assustá-la. Esse é um momento estático
em que os pingos ficam parados no ar entre a foice e o rapaz, de modo a se alinharem entre os
olhos da velha, o gume da foice e o corte certeiro no pescoço do filho.
A mulher aqui em análise, que tem o papel temático de mãe, deveria ser carinhosa e
dotada de ações maternais, no entanto retira da cabeça (lugar da razão) experiência e
conhecimento suficientes para realizar o que idealizou: obter dinheiro, mesmo que para isso
tenha que matar o filho. Se este estivesse no lugar da mãe, com toda a efervescência da
mocidade e vigor físico, não causaria tamanha estranheza um ato desse.
Com relação ao tempo nessa xilogravura, este fenômeno está marcado pelo branco que
sobrepõe a massa impressa, o que nos diz que a morte do rapaz ocorreu durante o dia. Já o
espaço é o sertão, identificado a partir da forma estética da foice da velha, pois em outros
lugares o instrumento mais utilizado para trabalhos agrícolas e atividades domésticas é o
facão ou uma roçadeira que tem a parte final volteada e longa, fazendo lembrar a forma de
uma interrogação. Já a foice é utilizada no sertão, através de uma prática primitiva e
antiecológica, na derrubada de árvores para as queimadas e, consequentemente, organização
do roçado. É um instrumento resistente que se aproxima do machado, servindo para cortar
árvores fortes, como Jucá, pau ferro, arueira e outras vegetações típicas da caatinga sertaneja.
Entre outras possibilidades, apreendemos alguns temas que ocorrem com muita
frequência nessa xilogravura: Família, figurativizado na mãe e no filho; Riqueza que se
expressa no traje do rapaz; Pobreza que tem como figuras a velha e a foice; Velhice,
figurativizado no cabelo da velha que está preso em forma de cocó, nas rugas, nos sapatos
masculinos, nas sobrancelhas grossas, nos peitos muchos que quase não se nota, na estatura
baixa, em sua pouca vaidade e em sua força masculina; Juventude, representado pelo rapaz,
que é alto, vaidoso, mas pouco experiente para se defender; Morte, figurativizado em gotas de
sangue, corpo sem cabeça, mão no coração e olhos abertos.
Dessa xilogravura, foram extraídos dois conflitos que serão, a seguir, representados
em forma de octógono.
O conflito, civilização versus barbárie, encontra-se internalizado no enunciador que,
de um lado, mostra a civilização na família unida e sem dinheiro enquanto meio para realizar
seus objetivos e serem felizes coletividade. De outro, expõe a barbárie na família desunida por
causa de um assassinato ocorrido no meio familiar, numa demonstração de tirania em
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ambição pelo dinheiro. Esta oposição, vista através do octógono, apresenta-se da forma a
seguir:
filho. Enquanto que desobediência e não-obediência definem a velha como um ser terrível
que mata o próprio o filho. Não-desobediência e não-obediência correspondem a inexistência
semiótica que está representada pelo zero cortado.
Referências
Elegemos para análise este romance tradicional, por ser eleito um dos cinco livros do
povo, e também por fazer parte das mais bonitas histórias que ouvia recitado, lido e cantado,
durante a minha infância, no sertão paraibano. Além do mais, outros valores de ordem
discursiva, histórica, cultural, envolvendo o saber empírico e tantas outras relevâncias para a
memória popular, conforme registra o folclorista Cascudo (1979, 38), que apresenta um
estudo aprofundado sobre todos estes cinco livros1.
De acordo com este pesquisador, que esteve pessoalmente pesquisando em Portugal, a
sua primeira impressão possível da História da Donzela Teodora data de 1712, assim como, é
provável ser a mais antiga das traduções portuguesas. No entanto, Portugal já recebeu essa
obra da Espanha, cujas impressões feitas por outros pesquisadores espanhóis2 da Donzela
Teodora. Assim como no Brasil, Consta um número vasto de publicações espanholas,
inclusive, uma que é a mais antiga, impressa na cidade espanhola de Toledo, no ano de 1498
por Pedro Hagembach.
Conforme Cascudo (1979, p. 48) que classificou a história da Donzela Teodora, um
dos cinco livros do povo – a origem dessa história deve ser considerada da seguinte forma:
1
História da Donzela Teodora, História do Grande Roberto, Duque da Normandia, História da Princesa
Magalona, História da Imperatriz Porcina, História de João de Calais e História do Imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França.
2
Segundo CASCUDO (1979, P. 37), a divulgadora essencial da DONZELA TEODORA foi feita por: Ticknor,
Gayngos, Salvá, Menéndez y Pelayo, e mais duas edições catalogadas por Fernando Colón, sendo uma datada de
1424 e outra, adquirida em 1420 em Medina del Campo e outra, provavelmente de 1520.
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Maomé e ao alcorão como fontes de sabedoria para as respostas, a segunda blinda-se com a
religião católica apostólica romana com os seus representantes divinos e humanos para vencer
aos sábios de El-rei.
Tomamos para análise uma Versão Portuguesa, o exemplar de Lisboa, traduzido do
castelhano para o português, em 1712, na Oficina dos Herdeiros de Antônio Pedrozo Galraõ,
constando no total de uma introdução e oito capítulos, transcrita integralmente para Os Cinco
Livros do Povo3, ocupando 23 páginas, contada por um narrador ou narradora anônimo(a) que
detalha a história de forma calma, como se estivesse rezando uma oração, inclusive,
dispensando a abertura típica das histórias comuns, geralmente iniciadas com “Era uma vez
...”. Durante a narrativa, é concedida a voz aos atores, no entanto, no final desta o ator-
narrador conclui com uma pequena oração que é típica das rezas: “Seja por tudo louvado
Nosso Senhor Jesus Cristo, para todo o sempre. Amém” (p.143).
Já a Versão Brasileira da História da Donzela está escrita ao estilo do Folheto de
Cordel Nordestino, que foi publicado em 1910, transcrito para a antologia Leandro Gomes de
Barros - No Reino da Poesia Sertaneja4 narrada em 142 Estrofes regulares em sextilhas
heptassilábicas. Em todas as estrofes as rimas seguem o modelo tradicional ocorrendo no final
do 2º, 4º e 6º versos de cada estrofe.
Na versão Portuguesa a narrativa inicia com a voz do enunciador narrador, contando
de um negociante anônimo, natural da Hungria, que encontra numa casa comercial de um
mouro uma escrava cristã à venda. Por achá-la interessante, compra e a leva para casa, daí em
diante investe bastante nos estudos da escrava, que se faz sábia pela capacidade de
inteligência e conhecimento em todas as artes e ciências.
De acordo com Cascudo (1979. P.45), esse negociante mercador anônimo que compra
a Donzela é um cristão da Hungria, um reino que já era constante nos romances e novelas
populares da Península Ibérica, chegando a ser o reino mais conhecido nos fabulários e
cancioneiros da Europa do século XVI. O ambiente onde ocorre a história é Túnis, muito
divulgada na tradição oral do sul da Europa e do mediterrâneo, enquanto centro de interesse
comercial, industrial e cultural, principalmente durante o domínio dos Hafsidas.
O rei comprador da Donzela5 é o sultão da Babilônia. Abomelique Almançor, Harum
Al Raxid em Bagdá ou Miramolin Almançor em Túnis, títulos estes que são peculiares a
soberanos orientais, nas histórias populares da idade média, em Bagdá. Esse sultão tinha
3
CASCUDO, 1979, ocupando as páginas entre p.120 - 143.
4
NEDEIROS, Irani (Org.). Idéia, João Pessoa, 2002, p 281 - 293.
5
Conforme o códices de Escurial.
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evidente lugar na sociedade sobre a qual exercia poderes e tornara-se figura literária e popular
nos romances e novelas francesas e italianas dos séculos XV e XVI.
Nesse ambiente, onde concentra o conhecimento científico, cultural, artístico, musical,
linguístico, religioso, que produziu mulheres com potencial de catalogar e produzir obras
livrescas, poderia também ter dado abrigo à Donzela Teodora, com os caprichos e a sabedoria
completa com que desafiou os sábios do rei Miramolin Almançor, provocando a sua mudança
residencial para morar entre as feras, em consequência da derrota para a musa casta da
Espanha.
Nessa passagem da história, a figura de Almançor era considerada contraditória, uma
vez que, de um lado era violento, fervoroso, destruidor impiedoso. Relatam os historiadores6
que suas investidas caracterizavam-se pela perseguição constante e pela política sistemática
de pilhagem e de destruição executada por suas tropas, no espaço de tempo entre 980 e 1002,
quando esse rei foi morto. De outro lado, Almançor aportou-se de uma administração
especializada, de modo que, mediante estreita vigilância, confiada a cristãos e escravos.
Todavia, mesmo com propósito de demonstrar poder e civilidade, Almançor reuniu em seu
palácio poetas, músicos, letrados, médicos e astrônomos que, no século X, contribuíram para
o engrandecimento da cidade de Córdova. Ambiente digno de receber uma sábia como a
Donzela Teodora que tão bem se identificava com essas ciências. Vale dizer que o fato de ser
uma Donzela cristã vendida por um mouro traz à tona um discurso chocante na história dessas
duas civilizações, que se juntam, mas não se misturam. Ato contínuo, a história fornece
elementos que contribuem para sedimentar a narrativa e suas evidências com a literatura.
Voltando à narrativa, quanto ao tipo de heroína, entende Cascudo7 que a Donzela
Teodora inaugura na Europa o perfil da moça sábia que tem voz nas tradições cristãs mais
populares do Oriente Médio, irradiando-se do Egito. A base essencial da Donzela Teodora
estaria associada à lenda da discussão entre a moça e os doutores que perfaz o tema central da
lenda de Santa Catarina de Alexandria8, que se tornou mártir no início do século IV da nossa
era cristã. Nessa discussão,
6
Rucquoi, 1995.
7
( CASCUDO, p. 52)
8
Comenta Cascudo (p.53) que o nome de Catarina concebido a Dorotéia, partir do batismo cristão (Cathara=
pura, casta) justifica a tríplice coroa do martírio, da virgindade e da sabedoria, conforme explicava São
Gerônimo.
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Vale dizer que, conforme esse estudioso10 já havia a tradição popular da Imperatriz
Teodora do reinado Bizantino, entre 527 e 548, que tinha poderes nas decisões políticas de
alto porte e demais atividades enérgicas, estendendo o seu nome por todo o Oriente, embora o
vocábulo Teodora seja passivo de interpretação grega, significando “Dávida de Deus”.
Existem essas raízes possíveis que consubstanciam a Donzela, na história, mas ela está
revestida dos valores cristãos, em postura de uma Santa justiceira que trama essa farsa toda
para refletir fatos ligados à história a fim de compensar valores subtraídos da sua gente, pelo
próprio El-rei, que era muçulmano.
Em todas as versões já conhecidas a história começa com a Donzela Teodora posta à
venda numa praça, por um mouro, que aqui, para efeito de análise, consideramos como
espaço 1 do ator Donzela Teodora. Já na versão brasileira de Leandro Gomes de Barros,
editada em 1910, além de ser adotado esse mesmo começo, o mouro ainda é agraciado com o
verso: alma pura e constante. Em ambas as versões a Donzela tem nacionalidade espanhola e
beleza casta, de modo a chamar a atenção e fascinar as pessoas que a olham. Mesmo na
humilde condição de escrava, apresenta figuras extraordinariamente fidalgas, num padrão de
formosura superior, de modo a despertar no comprador uma vontade de educá-la ao máximo
que pudesse. Como esse mercador anônimo era o mais rico da Hungria (Espaço 2), mandou-a
para a escola (Espaço 3) a fim de que a Donzela aprendesse a ler e escrever, e também, todas
as artes possíveis. Então esta aprendeu tanto, principalmente em filosofia, música e em
demais artes, que excedeu a todos os homens e mulheres da época. Aqui se observa que, na
versão brasileira, o enunciador-narrador opta por dar ênfase à narrativa, fazendo uso de
adjetivos e até deslocando trechos que se referem, por exemplo, às qualidades da Donzela nos
estudos, chegando ao exagero:
(...)
9
(Idem)
10
(CASCUDO, p. 53)
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Tal ênfase deve-se provavelmente pela forma rimada e metrificada como os poetas
cordelistas brasileiros tecem as suas obras, que implicam em buscar as respectivas palavras
rimáticas com extensão silábica exata.
Para a versão portuguesa, o que promove motivo é o fato de uma catástrofe marítima
ter arruinado bruscamente a vida do mercador, dono da Donzela. Nessa feita, o homem mais
rico da Hungria acha-se mergulhado em descabida pobreza. Dessa forma, o conflito
estabelecido no interior dessa personagem é ponto crucial para uma inquietação exaustiva de
remédio para tal pobreza, de modo que o enunciador, sutilmente revela suas pretensões
religiosas e persuasivas:
Vale observar que esta reflexão identifica um enunciador religioso que afirma ser o
mundo vulnerável (inconstante e mudável), diante dos poderes da vontade de Deus, o que
provoca uma sensação de temor religioso no enunciatário. Em seguida, este enunciador prima
pela veracidade e faculta diretamente a condução do discurso ao infortuno mercador para que
este se retrate e tome medidas seguras para o problema. á na versão poética brasileira (13ª
estrofe), o enunciador prefere intensificar esse efeito discursivo, abalizando o leitor no eixo
dos opostos, fazendo realçar os extremos:
Essa polarização aqui identificada é fruto da pregação religiosa, onde se opõem céu e
inferno, vida e morte, salvação e perdição. É para banir o mal entre as pessoas que foi criado o
Tribunal da Santa Inquisição. Na colonização brasileira, até a língua tupi, nativa dos Índios,
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não podia ser falada porque os catequistas consideravam como uma manifestação do diabo.
Conforme Silva11.
Em seguida, tanto na versão portuguesa, quanto na brasileira, a narrativa avança de
forma similar. O mercador vale-se das suas habilidades profissionais e, ao invés de invocar
sua fé em Deus, opta pelo resultado do investimento humano que fizera e tenta favorecer-se
do saber da Donzela como solução para o seu maior problema. Para tanto, adicionou uma
justificativa clamorosa, de modo a sensibilizar a Donzela e arrancar um magnífico conselho,
dentre tantos que constituíam aquela fonte máxima de sabedoria. Ao que a Donzela,
imediatamente, lhe oferece dois conselhos: ter fé em Deus e seguir fielmente o que ela vai
mandar. Vale dizer que esta tem lugar privilegiado nesse discurso, uma vez que alimenta o
tema da religiosidade, figurativizado em: cristã, donzela, alma pura, Virgem Santa, devota etc.
E pelo próprio comportamento de fé e justiça, nota-se protegida pelas forças divinas. Sua
direção aponta sempre para o que diz ser devota de Deus, através da única religião santa e
verdadeira, que seria o catolicismo ibérico. Interessante ver que essa narrativa traduz-se numa
linguagem aparentemente coloquial, popular, que permite ser entendida com mais facilidade.
Porém, essa mesma voz popular, linguisticamente permite uma estrutura sintaticamente
erudita, pondo em uso construções pronominais típicas do discurso bíblico (próclise,
mesóclise, ênclise), produzindo efeitos de respeito e temor.
Em outro momento, encontramos um terceiro espaço: a casa do mercador, onde a
Donzela vive. E é nesse espaço que esta transmite as instruções para o mercador, tornando-se
assim enunciador-ator: (...); e assim, levantai-vos, e ide ver se achais algum amigo que trate
em joias, ornatos e enfeites com que as mulheres se costumam compor, (...). Na verdade,
esses ornamentos são para ela própria se compor e poder chegar à presença de El-rei, que é
muçulmano. No entanto, a Donzela não se inclui no discurso ao omitir o pronome pessoal do
caso reto nós. Assim, a Donzela prefere ocupar, por si mesma, um lugar fora da sociedade das
mulheres que integravam a sua sociedade na época. Nesse panorama, Braga12 fala da moda
feminina, inclusive em época coincidente com a da Donzela, descrevendo lugares e classes,
por vias de folhetos publicados, constando um impresso em 1751, que promove uma lista de
utensílios, a saber:
11
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Histórias de Portugal – Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz,
Editora Estampa, 1995, p. 69.
12
BRAGA, Joaquim Teófilo Fernandes. OPOVO PORTUGUÊS NOS SEUS COSTUMES, LENDAS E
TRADIÇÕES, Volume I, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985, p. 288.
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(...), meias bordadas, espartilhos, fitas de cintura com ricas bordaduras, saias
de veludo, contas de ouro, roupinhas bordadas de prata e ouro, charpas
bordadas de ouro e prata, guarda-pés matisados de ouro e prata, leques de
marfim, pelatinas de arminho, pulseiras, manguitos riquíssimos, sapatos
bordados, caixinhas de sinais, frasqueiras de água de flor, alcanfor, circílios,
bordas de polvilhos, frascos de óleo de jasmim, papelinhos de pós da França,
frascos de água de Córdova e de Hungria, caixinhas de macilha, sabonetes
de cheiro, pomadas, etc.
Nesse caso, a Donzela, enquanto escrava não teria obrigação de conhecer tantas peças
que a tornassem digna de entrar no passo de El-rei. Mesmo assim, foi ela prática e direta ao
termo, resumindo tudo o que seria conveniente, reservando o seu lugar de sábia e esquivando-
se de ser uma mulher comum como as daquela sociedade. Por outro lado, o ato de ficar fora
daquela classe social (feminina|) deixa margem para alguém pensar que ela fosse Nossa
Senhora.
Na versão do Brasil, o enunciador-narrador utiliza um método mais prático, referindo-
se especificamente à Donzela:
Pelos dois primeiros versos dessa estrofe, subentende-se que a Donzela antevia o bom
resultado do plano, já que esta não mediu os riscos em contrair uma dívida grande para o seu
Senhor. Pois, se ocorresse um resultado contrário, isso arruinaria ainda mais a situação
econômica deste. Mas, ela foi confiante, categórica e decidida no plano, ordenando ao
mercador que trouxesse tudo o que lhe fosse oferecido. E ainda, a propósito que não se
esquecesse de transmitir aquela proposta com zelo e persuasão, de modo a sensibilizar a
compaixão do vendedor. Felizmente, o mouro de bom coração possuía os objetos de valor,
que eram meio para determinado fim. Dessa forma, as palavras da Donzela na voz do
mercador conseguiram provocar lágrimas que minaram a resistência de Maomé. Assim, este
passou a oferecer tudo quanto quisesse de tudo que ele tivesse.
A versão portuguesa também mostra que tudo se torna fácil nessa missão, ante a
sabedoria da Donzela em planejar o feito, considerando também pequenos detalhes como, a
roupa parecia ter sido feita para ela, de modo a ficar tão perfeita em formosura, conforme El-
rei gostava de apreciar essa virtude. Tanta elegância ampliou a credibilidade ao acesso ao rei,
que abriu as portas para recebê-los. Vejamos que esse ambiente menciona a riqueza, que se
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consagra num tema, permeado de figuras como: roupa elegante, El-rei, rico, mercador,
fortuna, ouro, vestidos, enfeites, joias, pedrarias, sedas, lãs, cabedal, dobras de ouro etc.
El-rei dirige-se ao mercador para saber o motivo de sua visita àquele passo, lugar aqui
denominado Espaço 4. Ao ser informado sobre os investimentos que culminaram com
supervalores da Donzela, olhou-a e ficou impressionado, por bastante tempo. Em seguida,
pediu-lhe que mostrasse a face e quando viu seus olhos ficou pasmo diante dela. Sua beleza e
formosura pareciam-lhe nunca ter visto em toda sua vida, em ninguém.
Já a versão brasileira ratifica essa ação e ainda destaca a habilidade do mercador em
negociar com El-rei, quanto ao preço da Donzela:
13
Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918), natural da cidade de Pomba, - PB. - Brasil, escreveu mais de mil
folhetos, com mais de dez mil publicações.
14
Ver: PE. ANTÓNIO VIEIRA - A MISSÃO DE IBIAPABA. Org. António de Araújo, Almedina, Coimbra,
2006.
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Já na versão brasileira, o número de perguntas feitas pelo terceiro sábio reduz-se para
27 perguntas, sendo 14 sobre sabedoria popular, 06 sobre religião, 05 sobre filosofia e 02
sobre história, embora as perguntas também envolvam as outras disciplinas. Dessa forma, na
versão brasileira do nordeste, o tema da sabedoria popular superou a religião, havendo uma
inversão com relação à versão portuguesa.
Quanto ao Mercador, tanto na versão portuguesa, como na brasileira, o mesmo solicita
da Donzela apenas um parecer, ao que obedece às instruções dadas por ela na estratégia para
encontrar remédio para a tamanha pobreza em que se encontra.
Quanto a El-rei, na versão portuguesa, há indícios de uma conversão deste ao
catolicismo, considerando que das 06 perguntas feitas à Donzela, com exceção da primeira,
todas são tocantes ao Catecismo da Doutrina Cristã.
No final das contas, o Rei saiu vencido ao aceitar como superados os valores
substanciais do Islamismo, diante da supremacia católica. Isso retoma os preceitos da idade
média, a exemplo da história de São Cipriano e outros, na esfera religiosa. Nesse caso,
Almançor foi vencido e convencido por uma mulher, o que seria uma desmoralização,
considerando os preceitos maometanos, bem como, a formação e a cultura do mesmo.
Foi assim que El-rei pagou o preço pela Donzela, mas não a teve para o seu mau
aproveitamento como queria de início. Esses resultados inesperados deixaram-no sem moral,
o que foi ideologicamente justo, tanto por ter devolvido parte dos tesouros saqueados à
península, como por se apresentar nessa história com cara de quem comprou, mas não levou,
como se diz nas expressões populares do nordeste brasileiro.
Além disso, no contexto da catequização em que se dão as respostas da Donzela,
ainda se presume a dilatação desse exercício, do que não ficou incluído no texto, mas que foi
anunciado na voz do próprio enunciador: Seja por tudo louvado Nosso Senhor Jesus Cristo,
para todo o sempre. Amém. Essa fala do enunciador-narrador caracteriza aqui uma expressão
conclusiva que se utiliza tipicamente no final das orações e rezas católicas, ritmada e
impostada num tom melódico que se encerra com a afirmativa convicta do coro: “Amém”.
Não é por acaso essa maneira de finalização dessa história, esta vislumbra, tanto em Portugal,
como no Brasil, relacionada entre outras narrativas de estrutura similar e que também
compõem essa coleção de novelas tradicionais citadas anteriormente. Ao mesmo tempo, sua
reprodução consta em tiragens diversas impressas e distribuídas principalmente no Brasil para
efeitos de catequização, dentre farto material de cunho religioso, incluindo orações e rezas
que integram o culto à Virgem Maria. Isso teve início desde 1549, quando os colonizadores
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jesuítas desembarcaram na Bahia, em longa missão religiosa, liderada por Tomé de Sousa,
José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e outros. Observa um investigador15, num comentário
referente à produção o Padre José de Anchieta, que, (...) a Arte de Gramática da Língua Mais
Usada na Costa do Brasil publicada no século XVI (1595), e noutro, as criações literárias de
objetivo pedagógico: poesias, canções, hinos, monólogos, diálogos e sobretudo autos,
escritos em português, espanhol e tupi-guarani (CASTELLO, 1960, p. 43). Já no que se
refere ao pleito espiritual, esse autor16 menciona que, com relação à obra catequizadora de
Anchieta, contam-se aqui os sermões e sobretudo, as poesias de sentimento ou inspiração
religiosa escritas em latim, destacando-se, no caso, o poema De Beata Virgine Dei Matre
Maria. Nos demais aspectos da obra desse missionário, configurava-se o uso de obras
literárias com objetivo pedagógico em relação à catequese, traduzidas, sobretudo pelo teatro
em verso e a poesia épica laudatória.
Já na versão brasileira ocorre uma diminuição nas perguntas e El-rei não precisa fazer
perguntas à Donzela para se tornar vencido. O debate tange para o banal e ganha feições
humorísticas de comédia, a partir de um vocabulário regional demasiadamente ousado. O
sábio não quis tirar a ceroula17, ficou com uma cara envergonhada e foi preciso a intervenção
de El-rei para sanar o problema:
E o caso se resolveu assim, porque com palavra de rei não se brinca. Dada a sentença
do valor do pagamento pela compra da moral do sábio, colhia enfim o que havia plantado com
suma sabedoria:
15
CASTELLO, José Aderaldo In: Manifestações Literárias da Era Colonial, A Literatura Brasileira. Editora
Cultrix, I Volume São Paulo, 1967, p. 43.
16
Idem.
17
Última peça das vestimentas que um homem tira para se despir por completo. Era assim que se chamava a
cueca, antigamente, no Brasil.
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A Donzela que havia provocado tudo isso, para sair igualzinho dessa maneira, no
flagrante do instante decidiu:
Foi quando El-rei procurou terra nos pés, mas não encontrou como se diz numa
situação dessas lá no interior nordestino. Tal qual a situação do sábio Abraão, já era tarde para
El-rei se recompor ou corrigir o que havia feito errado:
Após conversar muito com a Donzela e ficar ciente de tudo o que ela falou, não restou
ao rei outra escolha senão de mandar buscar o dinheiro e pagar uma fortuna à mesma. E ainda
como garantia ordenou que uma guarda de honra acompanhasse a Donzela e o Mercador até a
residência destes. Foi assim que a Donzela Teodora venceu ao rei mais temeroso e poderoso,
bem como aos seus sábios, pondo por terra o reinado mouro e erguendo sobre seus escombros
a supremacia ibérica cristã. Ninguém imaginava que viesse essa vitória através de uma mulher
tão sábia, pura, justa e casta! Esta é a Donzela Teodora, intercessora em favor da pobreza,
espelho de Nossa Senhora, Advogada dos pobres!
Feito este exame longa História da Donzela Teodora, com uma versão portuguesa e
outra brasileira, chegamos às conclusões que a narrativa da Donzela Teodora, aqui em análise,
envolvendo um conjunto de conhecimentos tradicionais recolhidos do da sabedoria popular,
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Referências
Início da Jornada
dramas vividos por seus personagens no ambiente sertanejo das Minas Gerais, revela na
verdade, dramas de caráter universal.
Em Grande Sertão: Veredas, a seiva elaborada que percorre toda a narrativa do ex-
jagunço Riobaldo está intimamente ligada à questão do pacto com o Diabo, se ele ocorreu
verdadeiramente, ou não. É de fato, o intrigante e evidente questionamento metafísico que
deságua no dilema da existência entre as forças do Bem e do Mal, de Deus e do Diabo.
Esse imenso romance relata a vida de um ex-jagunço e o estranho sentimento amoroso
por um companheiro de jornada no sertão brasileiro. A narrativa tecida por Riobaldo dá conta
de suas aventuras como jagunço, seu sentimento por Diadorim e a dúvida da conclusão do
pacto com o Diabo, na tentativa de concretizar a vingança contra seu rival – Hermógenes.
Assim, em meio aos sentimentos de medo e culpa, Riobaldo vai expondo suas
convicções e incerteza acerca da existência do Diabo. Agora, em decorrência do
direcionamento da pesquisa, achamos coerente deixar ao leitor o prazer de desfrutar da escrita
imaginativa de Guimarães Rosas, por entendermos que um resumo seja desaconselhável.
Muitos têm sido os enfoques pelos quais vem sendo abordada a produção literária de
Guimarães Rosa e há até mesmo os que tomam como objeto de análise o romance Grande
Sertão: Veredas e seu elemento pactário. Entretanto, o que aqui se busca é extrair os aspectos
residuais, ou seja, perceber os resíduos de outras épocas como elementos pujantes que
imprimem aspecto de vivacidade ao romance. Nesta análise, tais resíduos são os concernentes
à figura do Diabo medieval, do qual destacamos o pacto diabólico supostamente realizado por
Riobaldo.
1
Poeta, crítico, ensaísta. Doutor em Literatura pela PUC - Rio. Professor do Departamento de Literatura e do
Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
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Termo cunhado por Roberto Pontes que teve origem “na compreensão de que a identidade nacional de cada
povo se dá após uma transfusão de resíduos culturais” (MARTINS, 2003, p. 519).
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Com base nos conceitos aqui descritos, buscaremos assinalar como Grande Sertão:
Veredas, obra ímpar de nosso acervo literário, mantêm substratos mentais acerca do Diabo
próprio do medievo, especificamente na dúvida do pacto faústico, de acordo com o que é
relatado pelo narrador.
Nas terras brasílicas, o Diabo aportou junto com as naus portuguesas por volta de
1500, quando ocorreu o início da colonização, e estabeleceu sob estas terras seu domínio. O
choque cultural provocado pelo contato entre os colonizadores e os ameríndios, torna-se ponto
de partida para uma interpretação demonológica acerca dos costumes e crenças dos habitantes
das terras de além-mar, transformando o Diabo na “grande vedete da demonologia americana”
(SOUZA, 2001. p. 29).
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A leitura do romance Grande Sertão: Veredas nos revela a figura Diabo como
representação do mal. Naquele, a dualidade entre o Bem e o Mal é latente, principalmente, a
partir do reaproveitamento do mito faústico. Nesse sentido, nosso objetivo é a priori analisar
os aspectos residuais da representação do Diabo medieval, que se fazem presentes no
romance por meio de elementos que permitem entrever o imaginário diabólico, oriundo da
distante Idade Média europeia.
Este longo monólogo conta os acontecimentos na vida de um ex-jagunço, Riobaldo,
em meio ao sertão mineiro. A estória contada firma-se na exposição de suas aventuras como
jagunço, sua afeição por Diadorim e a dúvida quanto à concretização do pacto com o diabo,
no intuito de realizar a vingança contra Hermógenes, seu inimigo. É pelo fio da memória que
Riobaldo narra sua vida, e o processo de rememoração dá-se com uma palavra estranha e
compacta: “– Nonada”. Essa palavra parece querer significar uma dupla negação, o não que é
nada. Desse modo, mergulhamos desde o início em uma profusão filosófica da “existência em
meio a forças desconhecidas, internas e externas” (HELENA, 2012, p. 227).
Na narrativa de Riobaldo, instaura-se uma voz ancestral que se sobressai e é
ressignificada pela ficção. Essa voz que se mostra delineada por um espaço mítico, denso, e
arraigado em ensejos antigos e repetidamente ecoados por povos e eras, acende na
modernidade a chama do estranhamento e da inquietação:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão
é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas,
demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui
não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os
pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar
com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do
arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que
na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom
render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura,
até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem
tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em toda a parte (ROSA, 2001, pp. 23-
24).
No excerto, fica evidenciado que existe uma espécie de “código contratual”, no qual se
faz necessário que o leitor/ouvinte tome para si a crença nas tradições populares tal como
ocorria na sociedade medieval, atualmente substituída pela crença na racionalidade e no
combate às superstições.
A despeito de, no início do diálogo, Riobaldo asseverar: ”– Do demo? Não gloso.
Senhor pergunte aos moradores (ROSA, 2001, p. 24)”, percebemos que de fato, não é o que
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ocorre no transcorrer dos três dias de histórias narrados pela personagem. O romance possui
um caráter “polimórfico”, “em que a produção de sentido se faz valer enquanto metamorfose
inestancável” (HELENA, 2012, p. 223). Nele, a figura do Diabo está em toda parte, assim
como no pensamento medieval, “o diabo regula seu estado preto... nas plantas, nas águas, na
terra, no vento... O diabo na rua, no meio do redemoinho...” (ROSA, 2001, p. 26-27).
Encontramos ainda, a demonização do imaginário sertanejo, por meio de animais que evocam
uma aura de trevas, tais como a cobra cascavel, os corvos e aves de canto agourento, como a
acauã e a coruja.
A partir desses elementos, torna-se possível visualizarmos que os aspectos físico-
naturais fazem surgir no sertão uma espécie de locus horrendus diabólico, representativo da
alma sertaneja, como se encontra na fala de Riobaldo: “sertão: é dentro da gente” (ROSA,
2001, p. 325).
Em Grande Sertão: Veredas, o Diabo é apresentado desde a epígrafe do livro: “o
diabo na rua, no meio do redemoinho...”. João Guimarães Rosa apropria-se da cultura popular
para revelar a presença do Diabo no imaginário sertanejo. Em consonância com as crendices
popular, o “Dito-Cujo” encontra-se no meio do redemoinho, e também, nas deformidades da
natureza:
definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (ROSA, 2001, p. 58) e ainda, “Deus nunca
desmente. O diabo é sem parar” (ROSA, 2001, p. 325). É interessante percebemos a
existência de um embate dualístico entre Deus e o Demônio, tão característico do período
medieval, ― “onde a sociedade se divide sempre em duas facções em constante peleja”
(NOGUEIRA, 2004, p. 62).
Paulatinamente, se o Diabo pode ser definido, esse tem de certa forma, existência.
Embora, não haja um diabo em forma corpórea, ele existe no âmbito do universo mental, na
imaginação, no campo da conceituação, enfim, ele existe por meio da imanência oral. A esses
exemplos, podemos acrescentar os relatos de possessões, a ideia de que Hermógenes era
pactário e, ainda, as maldades de alguns jagunços.
Um dos principais penhores residuais que unem a obra em análise à efígie do Diabo
medieval é sem dúvida, o seu aspecto de onipresença. Ainda que no romance não seja
efetivamente corporificado, aquele encerra em Riobaldo um constante desassossego. E, além
disso, podemos perceber que o Tinhoso, isto é, o Diabo é evocado por meio de seus mais
variados nomes, progênitos da cultura popular, tais como: “Pai do Mal, o Tendeiro, o
Manfarro” (ROSA, 2001, p. 434), o que é caracterizado pelo temor em proferir o nome de
Você-Sabe-Quem, ocorrência muito trivial na Idade Média, e que permanece em nossa
cultura.
O Diabo surge nas diferentes culturas, sob variadas roupagens, basta ler o que escreve
Jérôme Baschet sobre tal personagem e sobre seu forte vínculo com o medievo. É válido
ressaltarmos que a afirmação se faz tendo como parâmetro a mentalidade cristã medieval
arraigada no ocidente peninsular:
Sob seus diversos nomes e com suas aparências multiformes, o diabo, satã e
seus demônios é seguramente uma das figuras mais importantes do universo
do ocidente medieval. Encarnação do mal, oponente das forças celestes,
tentador dos justos, inspirador dos ímpios e dos pecadores, verdugo dos
condenados, ele é onipresente e seu terrível poder se faz sentir em todos os
aspectos da vida e das representações mentais medievais, é o príncipe desse
mundo segundo João capítulo 12, versículo 31, aqui ele faz a festa (LE
GOFF, 2002, p.319).
Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro” (ROSA, 2001, p. 437). O
próprio espírito demoníaco já é evocado pelo nome do lugar, “Veredas-Mortas”, uma
encruzilhada.
Encontramos no romance, resíduos da tradição teológico-erudita e popular, no que
concerne à representação do Diabo. A seguir, veremos como Riobaldo imagina o encontrar na
primeira tentativa de chegar até o retiro da Coruja:
Após chamar pelo Diabo, a resposta que Riobaldo recebeu foi o silêncio. Todavia, o
ex-jagunço sentiu algo perpassar seu corpo, uma espécie de gozo acompanhado pelo
fenômeno do redemoinho, anunciador da presença do “Cão-Miúdo”:
culturais ao longo dos séculos. Isso porque esse fragmento cultural que permanece ativo,
independente da forma como se apresente a essência de seu modo de pensar e de agir – seu
caráter residual –, remanesce, por hibridação cultural e por cristalização, no imaginário
popular.
Com esta análise almejamos dar apenas uma mostra do rico compósito de temas para
investigação, contido no Grande Sertão: Veredas. Cabe lembrar de que estas páginas não
esgotam o assunto, como é óbvio, havendo muito mais a ser desvendado dentro dessa obra de
universo tão abrangente, pois se constitui de inúmeras veredas nos quais, a partir desta
análise, encontramos os aspectos da residualidade, da mentalidade, dos resíduos mentais, da
memória (individual e coletiva) e do imaginário cristão e pagão.
Portanto, muito mais fica para ser desvendado e analisado nesta e em tantas outras
obras relativas à questão do pacto diabólico na literatura, em geral, e na literatura brasileira,
em particular.
Por fim, “o diabo existe e não existe”? Nossa resposta encontra-se no próprio
pensamento de Riobaldo: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do
homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA, 2001, p. 26). E no fim,
o que existe é “Travessia” (ROSA, 2001, p. 624).
Referências
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Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. Ângela Vaz Leão; Vanda de
Oliveira Bittencourt (Org.). Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo: séculos XII a XX. Rio de Janeiro: Bom
Texto, 2001.
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: as práticas mágicas no
ocidente cristão. Bauru, SP: Edusc, 2004.
PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes,
concedida à Rubenita Moreira, em 05/06/2006. Fortaleza (mimeografado), 2006.
______. Lindes Disciplinares da Teoria da Residualidade. Fortaleza: (mimeografado) [s/d].
______. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Rio de Janeiro-Fortaleza: Oficina do Autor/EUFC,
1999.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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SÁEZ, Oscar Calavia. Deus e o Diabo em terras católicas: Brasil-Espanha. Taubaté, SP:
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SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
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______. Inferno atlântico: demonologia e colonização, sécs. XVI-XVIII, São Paulo,
Companhia das Letras, 2001.
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POESIA BRASILEIRA
Em 1930, Mário de Andrade, consolidado como escritor modernista, lança seu quarto
livro de poemas, Remate de Males. A obra colige versos datados de 1924 até o ano da
publicação do livro. Há um vasto campo possível de análise em Remate de males, de poemas
políticos, ligados à ideia do local e universal desgeografizados, como no “Canto do mal das
Américas”, a poemas de tom biográfico - o “Improviso do rapaz morto”, por exemplo, remete
à precoce morte do irmão mais jovem do escritor. Compõem a maior parte do livro os
conjuntos líricos que abordam três diferentes experiências amorosas: “Tempo da Maria”
(1926); “Poemas da Negra” (1929) e “Poemas da Amiga” (1929-1930), nos quais podem se
inferir os temas, respectivamente, da paixão idealizada e irrealizada, do amor pleno e cósmico
e do desejo realizado no plano erótico/sexual, seguido de insatisfação. Adianto que em
“Poemas da Negra”, segundo Gilda de Mello e Souza encontra-se o auge do lirismo amoroso
de Mário de Andrade (2005), motivo pelo qual foi eleito os ciclos de Remate de males para
tratar do tema.
Nesta comunicação, apresentarei um estudo breve dos três conjuntos, trata-se de uma
parcela da minha tese de doutoramento, Losango preto: o negro na criação de Mário de
Andrade, que desenvolvo no Programa de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo
com financiamento da FAPESP. O objetivo é demonstrar os recursos pelos quais o poeta,
conhecedor da tópica amorosa, serve-se para infringir as leis da tradição. Na verdade, é
preciso ressaltar que no estudo mais amplo que desenvolvo sobre a poesia do modernista, foi
possível observar que Mário de Andrade é um transgressor de tópicas em geral, não apenas da
amorosa, trata-se de um artista e intelectual erudito e inovador. Mário conhece bem as
fronteiras da literatura ocidental, e assim o modernista estende-as ou apaga-as.
Em “Tempo da Maria”, conjunto composto de sete poemas - “I- Moda do Corajoso”;
“II- Amar sem ser amado, ora pinhões!”; “III- Cantiga do ai”; “IV- Lenda das mulheres de
peito chato”; “V- Eco e descorajado”; “VI- Louvação da Tarde” e “VII- Maria” - o sujeito
lírico diante do sentimento não recíproco experimenta a diluição de si mesmo no amor.
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Pensando com Emil Staiger, o máximo do lírico amoroso acontece quando o poeta e a amada
amam-se mutuamente, formam “um coração e uma alma”, o amor não correspondido “diz um
‘você’ que o eu sabe não terá eco” (STAIGER, 1997 p.49). Essa imagem é usada
coincidentemente por Mário de Andrade no poema “Eco e descorajado”, com a figura de
personificação fictícia do “eco” como resposta negativa da amada:
O sujeito lírico sofre a paixão, o amor não correspondido está evidente nessa imagem.
Porém, o poeta está consciente de que se encontra em um estado amoroso que terá fim. Maria,
ainda que inalcançável como as musas da tradição, não recebe promessa de amor eterno, ao
contrário, a temporalidade do sentimento é prevista desde o título, no substantivo que no
singular referenda a contingência: “Tempo” e não “Poemas da Maria”. Refém do momento,
resta-lhe a resignação:
cantos dedicados às mulheres na terra distante, aspecto observado por Mário de Andrade
etnógrafo em “O sequestro da dona ausente”. Acrescento que, diferentemente da experiência
amorosa com a Amiga e com a Negra, de certa forma, Maria é também uma “dona ausente”,
pois com ela a relação física não se consuma - “Isto, em bom português, é amor platônico...”,
(“Louvação da tarde”; verso 82).
Antonio Candido estudou com afinco “Louvação da Tarde”, o crítico discute a
aproximação do modernista com a poesia romântica inglesa, principalmente no que tange a
tradição temática da “louvação” na literatura ocidental. Mário de Andrade bebe nas fontes do
romantismo para transfigurar uma nova poesia, “não se trata de recuo ou de apostasia, e sim
de uma demonstração de validade do modernismo por meio de seu entroncamento na
tradição.” (CANDIDO, 2004, p. 234). Há um diálogo com a tradição e também uma
inovação, Antonio Candido observou que, pela primeira vez na literatura, o passeio bucólico,
tão caro aos românticos, é realizado pelo modernista em um automóvel, ressalta-se que o
poeta brasileiro não faz apologia à velocidade, como Marinetti, ele insere nos versos
elementos de sua época, neste caso, a máquina, mas que não se sobressalta à natureza.
Como crítico literário, Mário de Andrade interessa-se pela poesia romântica brasileira,
nela investiga o amor vinculado ao medo (ANDRADE, 2002); conclui que houve, da parte
dos poetas, uma repulsa generalizada ao sexo, que, assustados, fugiam ante qualquer
possibilidade de encontro carnal. Na criação poética, o modernista dialoga com os jovens
líricos, por exemplo, em “Amar sem ser amado, ora pinhões!” que parodia o título do exaltado
desejo de “Amar e ser amado”1, no poema de Castro Alves. Como os poetas brasileiros do
século XIX, o sujeito lírico de “Tempo da Maria” também não se realiza, mas, neste caso, não
por receio de investir, e sim porque há uma barreira social entre o poeta e Maria; nos versos,
infere-se que ela é rica, casada e branca, o que impossibilita a aproximação amorosa.
No que tange à cor da pele, em “Tempo da Maria”, entre as mulheres, dos três
conjuntos de Remate de males, é a única descrita como branca: “ela é quieta e clara, ela é
rosicler” (“Cantiga do ai”; verso 15). E quando a questão envolve a “aceitação” no meio
aristocrata, o sujeito lírico se toma como um ridículo negro de suéter que não se encaixa no
modelo branco/europeu, desejado pela elite paulistana.
1
MA estudou com afinco os poetas românticos, em sua biblioteca encontrasse o exemplar, com rasuras do leitor:
ALVES, Castro. Obras Completas. Compilação de Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1921, v.1 e0 2.
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Nessa estrofe, duas vozes do mesmo eu poético dialogam e planejam uma forma de
fugir do sofrimento, a saída é olhar para o negro de suéter, isto é, distrair-se, mas ao buscar o
escape, o poeta arlequinal depara-se com mais uma parte dos “eus em farranchos”, pois o
sujeito lírico encontra em si mesmo, também, o paradoxo engraçado/triste que se reporta a
uma cena grotesca relacionada à origem racial.
Nos “Poemas da Amiga”, a transgressão da tópica destaca-se em dois elementos, o
amor que se realiza e a descrição da mulher que a afasta de um modelo idealizado:
Os olhos castanhos da Amiga, “mate costumeiro”, sem enigma, assim como as mãos
benfazejas e o mistério das palavras não cativam o poeta que visa o corpo da mulher; ela lhe é
puro erotismo. Nos “Poemas da Amiga”, é possível dizer que existe a progressão no desejo
“Se acaso a gente se beijasse uma só vez.../ [...] Sei que era um riacho e duas horas de sede,/
Me debrucei, não bebi.” (“II”; v. 1, 4-5), até a realização do encontro sexual sugerido no
poema “III”:
O sujeito lírico ainda que tenha o desejo sexual realizado, instala-se nele
imediatamente a insatisfação. Após esses versos que transfiguram o encontro íntimo do casal,
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o poema seguinte inicia-se com o lamento: “Ôh! Trágico fulgor das incompatibilidades
humanas! / Que tara divina pesa em nosso corpo vitorioso/Não permitindo que jamais a
plenitude satisfeita/ Descanse em nosso lar como alguém que chegou!...” (“IV”; verso 1-4). E
ao orgasmo sucede a possibilidade de outra experiência amorosa: “Um pensamento se
dissolve em mel e à porta/ Do meu coração há sempre um mendigo moço esmolando...”
(verso 13-14).
O termo “amiga” remete a seu sinônimo “amante”, consignado no dicionário e na voz
popular na época do escritor. Sendo essa “Amiga” talvez casada, esconde a interdição
determinada por uma regra social. Consequentemente, o ocultamento da relação recorre a um
espaço de utopia, o Grão Chaco, silenciando a consciência do poeta sobre seu país:
Para Adna Candido de Paula (2005), em seu estudo sobre alteridade na poesia
mariodeandradiana, os versos marcam uma “visão mítica do paraíso” onde não existe o bem e
o mal nesse lugar reinado por divindades indígenas, é preciso dar atenção ao pronome “nós”
que não contempla apenas o poeta e sua “Amiga”, há um desejo de comunhão que abarca
todos os homens: “O seu desejo amplo, é do espaço [idílico] para todos” (PAULA, 2005, p.
173). Diferentemente, nos “Poemas da Negra”, o poeta, ao lado de sua musa de azeviche,
constrói um espaço restrito ao casal.
Os “Poemas da Negra”, segundo ciclo na ordem do livro, ficam por último pela
relevância que têm, não apenas em “Remate de Males”, na obra do poeta. Em carta ao amigo
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Manuel Bandeira que não havia gostado dos poemas, datada de 31 de dezembro de 1930,
Mário de Andrade responde: “mas talvez haja no poema sobretudo pela falta de exotismo com
que valorizei, humanizei uma negra fazendo-a sair das facilidades da concepção
baudelaireana, talvez haja uma naturalidade nova que você, irredutível pessoal, inda não
concedeu aos poemas” (ANDRADE & BANDEIRA, 2001, p. 476). Mário provavelmente
está referindo-se ao poema “À une Negrèsse” de Charles Baudelaire que está em sua
biblioteca. O poeta francês elogiou a beleza de uma africana, mas não a retirou do lugar do
exótico e erótico, tão comumente dado às mulheres negras; no Brasil, pode-se observar esse
tratamento desde a literatura colonial (GRILLO, 2013) aos dias de hoje, como no programa
transmitido pela emissora mais assistida do país, intitulado “O sexo e as nega”, dirigido por
Miguel Falabela.
Os “Poemas da Negra”, composto de doze partes, têm Recife como cenário, não a
cidade, mas o mangue, no cais do porto, na época, zona de prostituição. Mário de Andrade
data o poema de 1929, ano de sua segunda viagem etnográfica de Turista Aprendiz. Em
fevereiro, passara o carnaval na capital de Pernambuco na companhia dos amigos Ascenso
Ferreira, poeta, e Cícero Dias, pintor a quem dedica os "Poemas da Negra". Este lhe agradece
em carta de 1930:
Mário, você não calcula como fiquei contente com os Poemas da negra[...].
Eu li aquela crônica sobre Murilo Mendes e você errou quando disse que ele
fechou com alguma chave de ouro o ano de livros poetas e poesias, foi você
Mário que fechou tudo com os Poemas da negra. (Documento IEB, série
correspondência MA)
Cícero Dias compreendera a beleza desses poemas que firmam a mais intensa
expressão amorosa do vate em toda sua obra poética. Os versos concentram-se em uma única
noite vivida com uma prostituta negra. Desde “Tempo da Maria”, vê-se que Mário de
Andrade desloca a tópica amorosa da tradição literária ocidental do amor pleno ligado à
eternidade, neste caso, os poemas concentram-se em uma única noite de amor, com uma negra
e prostituta que será deslocada de seu lugar social e torna-se a própria natureza. Mário
conhece, como prova sua biblioteca, os ícones das musas ocidentais: Laura, de Petrarca, e
Beatriz, de Dante Alighieri, amadas brancas e intocáveis. Em Clã do jabuti, obra anterior a
Remate de males, o poeta já anunciara seu desdém pelo modelo europeu:
Na literatura canônica brasileira, exceto na obra de Luis Gama, não se havia alçado a
mulher negra ao lugar de musa do poeta, lugar sempre ocupado pela branca. Além disso, na
poesia de Mário de Andrade, o poeta transgride a própria condição social dessa mulher,
prostituta que vive no mangue.
O encontro amoroso, inexistente no “Tempo da Maria”, e erótico nos “Poemas da
Amiga” inicia-se com a Negra no nível espiritual quando os dois primeiros versos insinuam
uma ancestralidade em comum, africana, responsável pela atração: “Não sei porque espíritos
antigos/ Ficamos assim impossíveis”. A Negra transcende a sua realidade na comparação e
nos adjetivos que a afastam da condição de prostituta.
Restrinjo-me a apresentar apenas um dos doze poemas na Negra, suficiente para
demonstrar a expressão lírico amorosa elaborada pela transfiguração do encontro, todo um
espaço cósmico permite retirar a mulher de sua condição social para o lugar de amada do
poeta:
O modernista que conhece profundamente a literatura ocidental brinca com ela na sua
criação poética, desconstrói o modelo hegemônico e realiza o amor junto à mulher negra
escolhida como grande musa de sua poesia.
Referências
A poesia é um gênero literário quase sempre associado ao estado anímico lírico, muito
embora saibamos que ela se manifesta igualmente através do épico e do dramático, como é
consenso entre os teóricos. Desse modo a poesia tem servido, ao longo de milênios, para
exprimir o clima lírico, ou seja, a disposição anímica decorrente de uma vibração interior do
eu dirigida a um destinatário disposto a fruir o prazer poético num momento único. O
requisito primeiro para a vibração do eu lírico é a solidão. A exclusividade do momento
captado e transbordado (PONTES, 1999, p. 24) é condição prévia sem a qual falha a fruição
do destinatário, sendo fundamental a disponibilidade deste para o gozo do poema escrito ou
falado. O poema lírico tem por essência a recordação, daí seu clima quase sempre
memorativo, evocatório.
O mesmo não acontece com o épico, pois a essência desse gênero é a representação de
fatos e ações, fundamentalmente associados a feitos históricos, de modo que no épico
predomina a objetividade da escrita e não a subjetividade.
Também o clima lírico não ocorre de forma decisiva no dramático, porque a essência
desse gênero vem a ser a fusão do lírico e do épico em suas formas expressivas.
Desses três conceitos, um deles, o épico, será mais aplicado nas páginas deste artigo.
Não o do recorte tradicional, que parte dos paradigmas greco-latinos, nem o renovado dos
tempos modernos, muito menos o correspondente ao modelo contemporâneo. O epos a ter
lugar em nosso trabalho é o presente em poemas curtos, que registram hoje, apropriadamente,
a luta dos homens contra as adversidades enfrentadas, sobretudo as de ordem política e social.
Tal fenômeno já tinha sido percebido por Bertolt Brecht por volta da década de 30 do século
XX, nos seguintes termos: “Así como la política es uma acción contra la imperfección del
planeta, puesto que simpre se hará política sólo porque nada es satisfactório sobre la Tierra,
así también la literatura es uma acción contra la imperfección del hombre” (BRECHT, 1973,
p. 78). Escrevendo sobre Maiakovski e sua geração, citando-o, Roman Jakobson observa: “O
apelo revolucionário do poeta é dirigido a todo aquele que se sente oprimido e que não
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suporta mais”; e noutra parte: “Segundo uma conhecida exigência de Maiakovski, o poeta
deve apressar o tempo” (JAKOBSON, 2006, pp.15, 12).
Estas considerações nos levam às feitas por Pedro Lyra em páginas dedicadas a definir
o que ele denomina “as 4 vertentes do discurso” da Geração 60, a saber: “A) a herança lírica;
B) o protesto social; C) a explosão épica; D) a convicção metapoética” (LYRA, 1995, p. 100-
111)
Presente nas quatro vertentes taxonômicas propostas por Pedro Lyra se encontra a
poesia de Roberto Pontes, objeto desse estudo. Por duas vezes, o autor de Literatura e
ideologia observa ser a poesia de Pontes, de protesto social, acrescentando que uma parte dela
é “protesto de procedência regionalista com Lições de Espaço, livro I”; (...) “protesto de
procedência política, fruto do enfrentamento direto da situação que a geração encontrou ao
entrar em cena” (LYRA, 1995, pp. 104, 105).
E Lyra encerra assim seu comentário relativo ao protesto de procedência política da
Geração 60 e de seus poetas, forma superior de dizer não aos rumos impostos ao país:
Portanto, embora Roberto Pontes também trabalhe com “um lirismo ostensivamente
erotizado” em Memória Corporal; em Lições de Espaço explore “um dos temas épicos do
nosso tempo – a conquista do Cosmos” (LYRA, 1995, pp. 105, 108); embora igualmente se
valha da metapoética, encontrável em todos os seus doze livros, é exclusivamente da poesia
insubmissa contida em Verbo encarnado que trataremos. Sobre essa obra escrevemos
anteriormente:
Para proceder a análise necessário se faz firmar o conceito de poesia insubmissa que
figura no título do artigo. Roberto Pontes, além de poeta, também é crítico e ensaísta, havendo
teorizado sobre assuntos que dizem respeito à literatura e à cultura. Dentre estes, estabeleceu
o conceito aludido que ora adotamos:
É nesse quadro de poetas participantes (ao qual faltam nomes como os de Thiago de
Melo, Vinícius de Moraes, Afonso Félix de Sousa e Geir Campos) que se insere a poesia
insubmissa de Roberto Pontes.
Vamos agora, tendo em vista estar a edição de Verbo encarnado (PONTES, 1996)
hoje esgotada, transcrever o texto de abertura da “Nota Posterior”, no qual o autor nos dá
esclarecimentos indispensáveis à compreensão da gênese dos poemas da coletânea:
1
Todos os poemas transcritos constam da edição referida. Portanto, daremos daqui por diante, nos parênteses,
apenas as páginas onde eles se encontram.
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de exceção instituído pelo golpe e o gesto de atingir o tempo com o punho deve ser lido como
ação efetiva dirigida contra o momento antidemocrático capitaneado pelo regime militar. Este
sinal de luta vem acompanhado do anúncio do movimento de oposição com “a fanfarra a
caminho”, ou o próprio som das ruas mobilizadas por todos os quadrantes do país, e ainda o
propósito ideológico da decisão de manter aceso o ânimo combativo através do símbolo
traduzido naquela “chama tão luzente”. As certezas são em si revolucionárias. Inclusive
aquela que sentencia: “Nada pode mudar/ o destino de um povo”.
A tanto se segue uma invectiva direta: “O meu poema condena/ a ti, torpe tirano” que,
dentro do contexto histórico no qual se insere, leva endereço certo. E o poema, provido em
sua dinâmica estrutural pela repetição, volta a fortalecer o ânimo daqueles a quem se dirige,
descartando o “cansaço” ao fazer da ação fraterna a tônica da luta comum. O poema se
encerra conativamente, com a proclamação da necessidade da luta armada e uma crença
imperativa na vitória sobre a opressão.
E passemos a um dos poemas mais conhecidos de Pontes, OS AUSENTES: “Os ausentes
necessitam sempre/ bilhetes, cartas e coisas/ vezes pequenas lembranças/ uma gravata, um
poema, um postal.// Os ausentes são tão necessitados/ que ninguém os lembra/ nem só por
saudade ou falta.// Os ausentes têm mãos invisíveis/ e figura tão diáfana/ que os versos para
eles/ já nascem feitos poemas.// Os ausentes por qualquer acaso/ jamais fogem ao nosso
convívio/ ainda que a distância seja tanta.// Dos ausentes fica sempre um sorriso/ como as
pinturas recheias/ de surpresa, reencontro e irreal.” (p. 43).
Datado de1969, vai dedicado ao colega do Liceu do Ceará, companheiro do autor na
Juventude Estudantil Católica. Frade da Ordem dos Dominicanos, Tito de Alencar Lima, ou
Frei Tito, cristão fervoroso da ala progressista da Igreja, puro e intrépido, que passou à
condição de mártir nos porões da ditadura. Seu esquife retornou ao chão de Fortaleza, como
semente de fé revolucionária, nos braços dos amigos e do povo. Este poema foi vertido pelos
monges do convento de La Tourette, L’Arbresle, Lyon, France. Circulou como abertura do
Dossiê Tito da Anistia Internacional, por iniciativa dos dominicanos franceses. Alguns versos
de “Os ausentes” foram superpostos pela família Alencar Lima à fotografia do rosto do
religioso, tão sordidamente destruído por seus algozes implacáveis. Foi ela distribuída no dia
da primeira missa rezada em intenção de sua alma. O livro se abre com o texto em francês.
Assim, o autor procurou ressaltar a dimensão humana de Frei Tito, hoje universal. Roberto
Pontes conseguiu nesse poema demonstrar que a ausência do amigo será sempre presença.
Seus versos revelam a certeza dos princípios religiosos e ideológicos não traídos, e da
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Esse poema, de 1974, é atinente ao acentuado pânico que toma conta de todos os
cidadãos brasileiros diante da perseguição oficial e oficiosa, as quais recrudescem a cargo dos
órgãos de segurança nacional e dos grupos paramilitares, contra os opositores do governo de
exceção.
“Fala sobre o medo” trata do receio generalizado, entre os brasileiros que viveram a
ditadura militar de 1964, de haver até entre os mais íntimos, informantes dos órgãos de
segurança encarregados de detectar “ações subversivas”, segundo o entender das autoridades
militares e policiais contrárias ao regime de força. Daí os versos em medida curta e irregular,
mas com o ritmo (ou arritmia) de quem se sente perseguido na própria casa. Pode haver algo
mais assustador do que um espião delator no jardim de uma residência? Pode haver algo mais
terrífico do que uma planta carnívora disposta a deglutir o espionado? A intensificação do
medo vai se dando progressivamente, através da repetição da palavra que o designa, ideia
disseminada por todo o poema, concluído com o símile do joio bíblico que deve ser arrancado
da boa seara. O poema de Pontes nos oferece uma noção do clima de terror vivido durante os
anos cinzentos da última ditadura ocorrida no Brasil.
Façamos agora a leitura de EXORTAÇÃO: “Se não te derem trabalho/ procura bem
depressa o sindicato/ ou funda um./ E, se te faltar a comida,/ planta à força mil sementes/ em
chão que não o teu/ para teres o alimento./ Se te faltar a morada/ vai três dias ao relento/ que
então vem a consciência./ Se não te derem ouvidos/ une-te a companheiros./ Faz um partido
na luta./ Se não te derem o medo/ mune-te de palavras/ e ensina aos outros./ Se não te derem a
morte/ faz desta Pátria/ um vasto paraíso./ E, ao não te sobrar mais nada,/ pressentindo ter-se
ido/ a LIBERDADE/ arranca a primeira pedra da calçada/ e luta/ pela única razão que vale a
pena.”(p. 73).
Esse poema é de 1978, marco temporal que assinala a conjuntura de articulação do
Partido dos Trabalhadores – PT, do qual Pontes foi fundador no histórico ato de instituição
em São Paulo, tendo depois se encarregado com outros militantes, de implantá-lo no seu
estado de origem, o Ceará. Assim, Pontes demonstra a mesma concepção de militância
literária de Pablo Neruda, José Gomes Ferreira, Bertolt Brecht, Maiakovski, Thiago de Mello,
Ferreira Gullar, e dos demais poetas citados nas páginas de abertura deste artigo.
Em novembro de 1979, caía um dos sustentáculos principais da ditadura estamental
militar: o bipartidarismo. Logo estaria aprovada uma reforma partidária que dava lugar ao
PMDB, criado a partir do antigo MDB; ao PDS, formado pelos ex-integrantes da ARENA; ao
PTB de Leonel Brizola – que fundou o PDT depois de perder a sigla na Justiça para a ex-
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Eis aí um poema de interveniência direta, escrito para um ato público, que continua a
causar grande impacto no ânimo dos ouvintes quando dito por grupos de poesia que o
interpretam. E como não poderia deixar de ser, “Anistia” é antes de tudo denotativo, pois
assim exigia a hora de sua gênese.
Vale registrar que Roberto Pontes é um dos anistiados, dentre tantos, que lutaram e
esperaram pela conquista desse estatuto legal necessário à consolidação do Estado de direito
no Brasil.
Dito isto, passemos a mais um poema, INCITAÇÃO À VERDADE: “Companheiro, põe
algo maior em tua vida./ Contorna a cordilheira de perigos/ e o vulcão de míseros desejos./
Não deixa a saudade te curvar/ nem tomba nas menores das fraquezas.// Há que pensar e,
sobretudo,/ na estrela dentro da estrela/ ou na frágil luz da vela/ que a luzir treme e resiste.//
Companheiro, se puseres/ algo assim em tua vida/ não valerá a tormenta/ a pele será couraça/
e os acenos fraternos/ virão dos braços dos campos/ dos que voam sem ter asas/ dos que
pescam pelos mares.” (p. 83).
Esse e mais sete poemas “transbordaram” nos meses de maio e junho de 1983. Em
maio Pontes conheceu o poeta Thiago de Mello, fato que influiu na feitura dos poemas
(PONTES, 1996, p. 107). O verbo transbordar, assim flexionado, consta de outro livro do
mesmo autor, onde lemos:
2
Autógrafo oferecido a Roberto Pontes no ano de 2001, por Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto e
A canção do amor armado.
3
Este poema de Thiago de Mello foi estudado detalhadamente pela Dra. Cássia Maria Bezerra do Nascimento,
da UFAM, na sua tese de doutoramento intitulada “A complexidade nos Estatutos do Homem Thiago de Mello”,
em 312 páginas. O texto, de 2014, está disponível no Banco de Teses da CAPES.
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com a Liberdade quanto Thiago de Mello:“Se não tens dignidade/ tu serves a qualquer
um./Tanto faz que seja ao néscio/ quanto ao fero ditador./ Tanto faz que seja ao próprio/ ou
qualquer de seus vassalos/ pois há mil formas distintas/ de vender e de comprar./ Em todas
vem o veneno/ com seus destilos mortais.// Quando o veneno é poder/ então ele é servido/ em
bandejas de ouro e prata./ Assim se disfarça o mal/ que vai ganhando as entranhas.// E é
sabido que o poder/ infeta somente a quem/ numa vaidade consente.// Mas a ter dignidade/ se
se tem roteiro certo/ não haverá concessão/ pois o longe é sempre longe/ e distingue bem
miragens.// A salvação não virá/ para quem servir negando/ as forças do temporal/ e o céu que
cobre o mundo./ Quando o veneno restar/ um dia subvertido/ serão bandejas de barro/cozidas
por mão de homem/ que servirão a verdade/ pra desespero do mal!// Aí, se não tens
dignidade,/ por favor, recolhe a mão!” (p. 89).
Félix foi um intelectual sério, poeta dos melhores, militante de esquerda, editor de
revistas da Editora Civilização Brasileira, sem as quais não se poderia hoje contar a história
das ideias no Brasil contemporâneo. Foi preso e torturado durante o regime militar.
Juntamente com Ênio Silveira desempenhou papel relevante ao lado de outros intelectuais que
se opuseram ao regime ditatorial alçado ao poder após a deposição de João Goulart. Moacyr
Félix foi poeta de intensa participação no período de que ora tratamos. Teve poemas
publicados nos Cadernos do Povo Brasileiro e publicou livros de títulos significativos como
Canção do exílio aqui (FÉLIX: 1977), Invenção de crença e descrença (FÉLIX: 1978) e Em
nome da vida (FÉLIX: 1981).
No “Prefácio” a Verbo encarnado escreveu o seguinte:
Roberto Pontes está convencido de que a fala insubmissa do poeta não deve
ser concebida “apenas como resistência” e sim “muito mais como incitação
das consciências”. E a partir dessas ideias estrutura neste livro uma
verdadeira lição do que deve ser verdadeiramente uma poética. (FÉLIX,
1996, p. 11-13)
O motivo do poema é a dignidade, que durante a ditadura de 1964 foi fruta rara, a não
ser entre os oprimidos, excetuados os delatores. Moacyr Félix, já falecido, permanece
exemplo vivo de homem digno. E o poema de Pontes é enfático: “Mas a ter dignidade/ se se
tem roteiro certo/ não haverá concessão/ pois o longe é sempre longe/ e distingue bem
miragens”. Outra vez a poesia do autor de Verbo encarnado aspira à integridade de caráter, à
persistência no propósito de vencer a opressão política em seu país.
Nos versos finais desse poema, o eu poético entrevê metaforicamente a derrocada do
poder ditatorial e a ascensão de outra condução política da sociedade. E no momento da
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mudança decisiva, adverte com desprezo: “Aí, se não tens dignidade,/ por favor, recolhe a
mão!”.
A leitura de Verbo encarnado repercutiu além-fronteiras, como se depreende do
seguinte trecho de Norma Pérez Martín, crítica e professora da Universidade de Buenos Aires,
que anseia pela divulgação universal do livro:
Un libro como este merece cruzar por todos los rincones del mundo. Ojalá
cada hombre, cada mujer leam estas páginas y dia a dia la humanidade
aprenda a ser más justa, más solidaria, más pacífica. La responsabilidad es
de todos. El poeta lanza la llamarada de su canto como una antorcha de
esperanza¡ Adelante Poeta!(MARTÍN, 2010, p. 106)
Conclusão
E o acolhimento de sua obra vai chegando, a cada dia, de lugares os mais inesperados,
por exemplo, Divinópolis-MG, de onde Pedro Pires Bessa em artigo recentíssimo nos
assevera:
Referências
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Fernanda, et al. Escritores cearenses: múltiplos olhares. Fortaleza, Premius Editora, 2013. p.
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Proposição
Justificativa
1
QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p.410.
2
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos Gêneros. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997, p.p. 15-24.
(Debates, 193).
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próprio. Sendo assim, o reflexo imprime na imagem refletida o “eu” que se tornará o “outro”
que olha para o “eu”. A identidade do sujeito, portanto, depende da total visão que vem de
fora do espelho.
A escolha da base teórica deve-se ao fato de apresentar conceitos relevantes que
elucidam a compreensão do poema; e o objetivo principal proposto neste trabalho contribui
para esclarecer de que forma o espelho associa-se ao funcionamento da duplicidade eu/outro
dentro do poema.
O espelho serve como um canal, um meio material que permite a passagem da
informação e fornece um caráter ilusório do duplo; as imagens do espelho reafirmam
provisoriamente uma identidade imaginária, porque permite que vejamos a nós próprios em
outros seres; o que ocorre no poema.
Com base nesses princípios, o eu- lírico fica devidamente caracterizado como tendo
um perfil de duplicidade em que a “alma exterior” absorve a “alma interior” e o sujeito não se
reconhece em “si mesmo” no seu estado de alma.
A categoria analítica escolhida é recorrente dentro do poema e fornece subsídios para
ser analisada, à medida que trata do estado de alma do eu-lírico, portanto, justifica-se a sua
escolha.
Análise crítica
Apresentação do poema
O poema a ser analisado está no livro Poesia Completa (2005). Eis o poema de Mário
Quintana:
“O VELHO DO ESPELHO”
Conforme Anatol Rosenfeld (1997, p. 17), o gênero lírico tem como pressupostos
básicos o eu-lírico, voz central dentro de um poema breve, que expressar seus sentimentos e
seu próprio estado de alma, essencialmente emotivo, e o traduz por meio de um discurso
ritmado; o tempo deve ser estático; o momento presente deve “eternizar-se”; o personagem
pode ser recordado para justificar seus sentimentos; a intensidade expressiva deve ser extrema
e subjetiva; o mundo objetivo é inexistente; a alma que canta funde-se com o mundo
subjetivo, evocado e nomeado, para com maior força exprimir sentimentos de um estado
interior e de um caráter imediato da voz lírica. Diz Rosenfeld:
“Que me olha e é tão mais velho do que eu?” (QUINTANA, 2005: 410).
O que o verso nos revela é que existe um caráter de duplicidade do Eu, que tem o
espelho como signo indicador e representativo na construção da sua identidade, associada à
construção sintática do verso, que é ritmado e sonoro, portanto, nos lembra a célebre frase de
um famoso conto de fadas: Existe alguém no mundo, mais bela do que eu? Dessa forma,
reforça a ideia de “diálogo” com o espelho, através de um questionamento subjetivo e do
caráter de duplicidade entre o eu/outro, também em conformidade com o caráter duplo do
belo/feio, do real/irreal.
Essa teorização é disposta da seguinte forma por Anatol Rosenfeld:
Outra marca que denota a contração dos ascendentes numa só imagem é o verbo
parecer, também usado na voz presente para enfatizar algo que é permanente, não é passado,
bem como demonstrar na voz lírica um sentimento de dúvida sobre a própria imagem
especular; evidencia cada vez mais o seu caráter de duplicidade, em que o “eu” se tornará o
“outro” que olha para o “eu”, no momento do encontro imaginário com o velho pai que já
morreu, agora fundido no seu próprio perfil e que está, também, associado com a duplicidade
morte/vida, negativo/positivo. Dessa forma, a identidade do sujeito dependerá da total visão
que vem de fora do espelho.
A junção do Eu com o mundo subjetivo é muito bem teorizado por Rosenfeld, que diz:
“Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância
entre sujeito e objeto. (ROSENFELD, 1997: 23).
Segundo Rosenfeld, esses elementos são apenas evocados. Vejamos como são
apresentados teoricamente:
Cabe aqui comentar, que o gênero lírico acima definido, é o mais subjetivo, pois no
poema lírico a voz central deve exprimir o estado de alma e traduzi-lo subjetivamente por
meio de orações, sem que se interponham eventos distendidos no tempo, e a extrema
intensidade expressiva dos sentimentos e emoções da voz central deve prevalecer como traço
estilístico fundamental. Nos versos seguintes do poema de Mário Quintana, podemos ver
como esse traço se configura.
O que Anatol teoriza é para reforça a tendência natural do gênero lírico de expressar
sentimentos subjetivos e nos levar a reflexões detalhadas sobre as questões da natureza
humana, quase sempre numa atmosfera negativa e desiludida, em que as intensas emoções e
os sentimentos de um estado interior são recorrentes em diferentes situações.
Tal relevância é pertinente e remete para o poema de Mário Quintana, pois tais
características se assemelham. Vejamos:
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Considerações finais
Diante do exposto, fica evidenciado que a escolha da base teórica merece atenção por
fornecer recorrentes e pertinentes situações que remetem para a compreensão do poema e para
as reflexões sobre os principais conflitos e questões da natureza humana.
Em compensação, a Lírica revela elementos específicos e peculiares para atingir o
objetivo proposto neste trabalho, porque demonstra o caráter duplo do eu-lírico, associado
diretamente ao espelho – meio material e representativo, que reafirma provisoriamente a
identidade especular e imaginária da voz lírica.
O Eu, dentro do poema, ganha sua importância a partir do momento em que expressa
todo seu estado de alma interior e emotivo, disposições psíquicas, sentimentos subjetivos e
não se constitui em um mundo à parte; em outro momento é dado grande destaque a vários
outros elementos constitutivos do poema lírico, como: à musicalidade, o tempo estático e aos
personagens, citados e nomeados, apenas, para justificar a manifestação dos sentimentos do
eu-lírico.
Outros elementos contraditórios e complementares como velhice/juventude,
experiência/imaturidade, belo/feio, real/irreal, morte/vida, negativo/positivo, menino/homem,
presente/passado, tristeza/alegria, aparecem em conformidade com o caráter do duplo da voz
poética; ajudam a demonstrar como a duplicidade eu/outro se configura nesse processo e
diferenciam, numa atmosfera desiludida e negativa, a inter-relação entre alteridade e
identidade existente no ser humano.
Referências
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QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p.410.
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos Gêneros. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1997, p.p. 15-24. (Debates, 193).
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Daíse Cardoso1
Introdução
1
Mestrando em Letras pela UESPI – daiseoliveira@hotmail.com
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(2012) e outros servirão de base para nossa analise estrutural do poema, nos oferecendo
subsídios para alcançarmos os objetivos propostos.
Não raro, encontramos nos escritos de poetas referencia à memória, seja enaltecendo-
a, maldizendo-a, ou até mesmo buscando, em uma tentativa lírica, defini-la. A poesia insere-
se no terreno da memória, revela, através dos versos, a relação intrínseca entre o sujeito lírico
e suas reminiscências do tempo passado. Tempo este não necessariamente ligado ao chronos,
mas sim em relação ao:
A poesia e a memória evidenciam esse dialogo entre um tempo que se presentifica por
intermédio do discurso subjetivo. Memória que não se reduz à rememoração fiel e
cronológica. Assim, como destacamos na citação anterior, se configura como um mecanismo
que dá suporte à criação, à imaginação, ou seja, a uma memória poética. O eu lírico se deixa
influenciar no presente pelos acontecimentos do passado. Nesse entremeio, a memória se
torna a responsável por selecionar aquilo que considera relevante e organizar de maneira
lógico-coerente.
Le Goff (2004, p. 423) define a memória como uma “propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
como passadas”. Esse jogo entre conserva e atualização de informações é responsável pelas
reminiscências do passado. Evocações do tempo vivido, ou até mesmo, como o próprio
historiador destaca, que se considera como passado.
Segundo o poeta Álvaro Pacheco (2001, p. 70):
A memória
...é um prólogo - um mastro solitário
esperando a bandeira e o vento
para as solenidades que passaram,
um processo elaborado do sono
no início de sua gestação, o começo
e também o fim do registro, mesmo
que não se percebam estes caminhos.
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Esse prólogo permite uma leitura pela via do tempo poético, descompromissado com a
linearidade, mas que mantém uma forte relação com o vivido, ou seja, com as lembranças que
pouco a pouco alcançam o reservatório da memória individual. Essa definida por Halbwachs
(1990, p. 42) como um ponto de vista das reminiscências vividas por um determinado grupo
social, tendo em vista que, “uma parte de nossas lembranças não se adaptaria a nenhuma
memória coletiva” e, não seria capaz de explicar todas as nossas lembranças. Assim, o
registro poético memorialístico assume a função de tornar permanentes os acontecimentos do
tempo pretérito.
Rever e relatar o que passou surge como uma a luta contra o esquecimento. As
narrativas, sejam elas orais ou escritas, atuam como forte mecanismo de representação das
lembranças. Porém, essas recordações podem ser representadas por intermédio de múltiplas
facetas e em diversas áreas, não somente pela história – bem como, estamos habituados a
pensar. Nesse sentido, a Literatura, aqui, entendida de maneira objetiva e sem minúcias, como
a arte da palavra, contempla os aspectos memorialísticos e nos permite um diálogo com a
memória.
A poesia, como parte integrante da literatura, de igual modo, também possibilita uma
leitura pelo viés memorialístico, uma vez que, desempenha um caráter natural da linguagem
por intermédio da forma poética. Apresenta marcas singulares na escolha vocabular,
organização frasal, estilo e outros aspectos. Estratos inerentes ao fazer poético, que nos
auxiliam na construção de sentido do texto escrito, aqui, em especial, referente à poesia.
A relação entre memória e poesia se mostra possível desde a Grécia períodos antes de
Cristo. Simônides de Céos, que “estava próximo de memória mítica e poética, compondo
contos de elogios aos heróis e cantos fúnebres” (LE GOFF, 2004, p. 440), foi o primeiro a
atribuir à mnemotecnia2 o caráter profissional à ação de escrever poesias. Com a progressão
da escrita em relação à oralidade, aperfeiçoou o uso do alfabeto, tendo em vista que, remorar e
transmitir acontecimentos passados apenas pela oralidade, não era uma tradução “palavra por
palavra”.
Para o poeta dois elementos são primordiais à memória artificial3: “a lembrança das
imagens, necessária à memória, e o recurso a uma organização, uma ordem, essencial para
2
Memória combinada com a invenção da escrita – nova técnica de memória – Le Goff (p. 440)
3
Classificação dada por Leroi-Gouhan que em sentido lato classifica-a em três tipos: memória específica (para
definir a fixação dos comportamentos de espécies animais), memória étnica (assegura a reprodução dos
comportamentos nas sociedades) e memória artificial (eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem
recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados). Le Goff, 2004, p. 420
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uma boa memória” (ibdem). Depois de Simônides, engedraram-se estudos que também
relacionavam memória e escrita através da mnemotécnica, chegando, durante o período da
Idade Média, a ser considerada a quinta operação da retórica – arte das palavras.
Neste sentido esquemático, Graça Aquino (20005, p. 34; 75), destaca que quando a
voz lírica faz uso dos resíduos do passado para estilizar sua escrita, está pautado em um
esquema de “vida-memória-poesia”. Assim, olhando para o passado, o sujeito lírico revela em
seus versos “ecos de um tempo abolido através dos anos, mas que resiste na memória”.
Angela Guida (2013, p. 47), ratifica que “o tempo que persiste na memória é o tempo
poético”. A deusa Mnemosine se torna a “responsável por revelar o passado, atuando como
antídoto contra o esquecimento” (LE GOFF, 1992, 438). Assim, os versos de Mater se
apresentam como uma organização poética de reminiscências, como verificaremos na seção
seguinte.
Nos versos de da Costa e Silva, elogiado pelo pesquisador Alfredo Torres (2010)
como um arquiteto do verso e engenheiro das palavras, o poeta amarantino propõe, em seus
registros, um regaste ao rigor clássico de versos alexandrino, que obedecem a uma métrica
exata. “Procura se pautar em uma estética na qual os sons são a base material do fazer
artístico. As palavras, desse modo, ligam-se umas às outras mais pela questão da afinidade
fônica do que mesmo pelo sentido que procura expressar” (TORRES, 2010).
Em Mater, poemas que nos propomos a analisar, a riqueza da sonoridade vocabular
expõe, com os versos, uma sequência de imagens que representam uma mãe de
comportamento terno e carinhoso. Uma mulher de ritos religiosos, que roga e intercede
sempre pelo filho. Sempre em prantos. A mãe representada em Mater é semelhante à maioria
das mães apresentadas na antologia do poeta, semelhante à mãe em Mater venerada, Saudade,
Carta à minha mãe e outro.. O eu lírico dacostiano busca sempre compor a imagem de uma
mulher que surge nos momentos de solidão e saudosismo. Há a presença latente do manto
protetor, intensificando o jogo imaginário, entre a mãe de Cristo e a mãe do eu lírico. “Tão
dócil, tão bela” (SILVA, 200, p. 322). O poeta destaca que “a saudade é vovozinha da
memória” (idem, p.100). Para ele, lembrar é diminuir ou diluir a saudade em versos. “O poeta
se vale da memória e a escrita surge experimentando um forte apelo ao exercício
memorialístico” (AQUINO, 2005, p. 86). Vejamos:
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Mater I
De lagrimas de mãe formou-se um rio...
Lenda que todo mundo desconhece,
Mas existe no sonho que enternece
A alma de um ser excêntrico e sombrio.
II
No poema, é frequente o jogo entre a saudade e a memória. Assim como a voz poética
chega a declarar nos versos do poema Tântalo do Infinito. “Pois a memória que há de quem
amamos/ Primeiro, é como sombra: aonde vamos/ Vai sempre nos acompanhando” (SILVA,
2000, p. 98; 13). O pranto da figura materna que clama pelo filho e roga por ele, “piedosa e
triste”, acompanha-o.
Nesta interface entre memória e suas evocações, encontra-se a memória lírica, de
natureza individual, que segundo o pesquisador Paulo Brito (2000, p. 125), expressa a
subjetividade inconfundível do sujeito. “Para o poeta lírico, a memória individual é um
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repertório de causas, explicações e justificativas que lhe permitem criar o seu mito pessoal de
individualidade única e singular”. Tais características ocasionam o prazer proporcionado pela
poesia lírica, pois, o leitor, entre diferenças e semelhanças, se reconhece nos versos, na
certeza da condição humana, que tanto o eu lírico que escreveu, quando quem lê, são
singulares, porém semelhantes diante das lembranças.
Essas recordações, quando poeticamente organizadas, evocam ilustrações que compõe
o repertório imagético do poema. Para Alfredo Bosi (2000, p. 29; 30), a imagem no poema é a
“palavra articulada”. Ou seja, a organização fônica que gera um novo código. Imagens que
podem suscitadas pelas reminiscências ou pelo sonho. As imagens seguem formando um
imaginário na mente do leitor, assim como “a oração não se dá toda, de vez: o morfema segue
o morfema; o sintagma, o sintagma. E entre a cadeia das frases e a cadeia dos eventos, vai se
urdindo a teia dos significados, a realidade do paciente do conceito”. Em outro poema, o eu
lírico afirma a contribuição da memória na construção das imagens. “Minha memória vai
reproduzindo:/ O céu azul... parece até mais lindo”; “As árvores... As casas... Vejo e sinto/
Quais se fossem imagens verdadeiras” (SILVA, 2000, p. 228).
O exercício memória-imagem/ imaginação – imagem do eu lírico, segundo Ferreira
(2010, p. 32) ocorre em dois momentos distintos:
A palavra busca a imagem. O campo semântico, formado pela escolha lexical dos
vocábulos do poema, auxilia uma leitura de significados reais. A “imagem de piedade” parece
formar um quadro imagético, pintado com as palavras da mescla entre religiosidade e “a alma
de ser excêntrico e sombrio”. À relação entre o concreto e o abstrato também merece
destaque, o dualidade indissociável das lágrimas de afeto e bondade/ rio invisível da saudade/
um rosário de lágrimas/ e outros. Uma sequência vocabular que remete-nos a concretude dos
acontecimentos do pretérito e a fluída da memória.
A persona lírica recorda sua mãe em momentos singulares. Sugere uma mulher que
pratica os costumes religiosos de um determinado meio social. O costume de rezar rosários
contando suas gotas. Ações que são representadas por intermédio dos versos. Para Octavio
Paz (1982), o poeta articula, por meio da linguagem, a consciência de si e do meio o qual está
inserido. A voz de si e do outrem. Vozes que se dividem no tempo. Nos versos de Mater é
perceptível o choro da mãe e o reconhecimento do filho por suas lágrimas. O eu lírico revela
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sua condição de perdido, mas também reconhece as lágrimas “de afeto e de bondade”,
“velando” pelo seu destino.
As vozes que ecoam dos versos, determinam o material fônico passivo de significação.
“A toada da linguagem afina as múltiplas situações emotivas e volitivas de quem fala” (BOSI,
2000, p. 119). Desempenha a função de portadora de uma significação e transmite-a
eventualmente na comunicação mental de muitos sujeitos conscientes. Personificar os seres
inanimados produz um forte efeito sob a palavra pronunciada. Deixando de ser apenas um
choro, mas um pranto que de “tantas lágrimas forma um rio”. Um rosário não mais de contas
simples, mas sim, de lágrimas. Que trouxe dor, tanto para quem o rezava quanto para quem se
lembrava da ação.
Quanto à melodia do poema, marcada fortemente pela presença das vogais, revelam a
subjetividade do sujeito lírico, suas angústias, sua melancolia, e a saudade do ser materno. As
sucessões de reticências nos conduzem, enquanto leitores, a uma pausa longa, sinônimo de
reflexão, ato semelhante ao clamor da mãe pelo filho. O intenso choro, os suspiros, a cisma
são exemplos de possibilidades expressivas, ligadas diretamente a sensações visuais e,
exequíveis pela persona representada – a mãe, a mater.
A última estrofe do último soneto, o eu lírico reconhece o sofrimento de sua mãe ao
velar pelo destino do filho. A afirmativa desmitifica a ideia proposta na primeira estrofe do
primeiro soneto, quando a voz lírica coloca à prova a veracidade da hipérbole do rio de
lágrimas. Rio que se transformou em memória, se não da mãe, mas certamente do filho, que
em registros poéticos eterniza a presença da mãe intercessora.
Considerações Finais
Mater, em sua conjuntura poética, representa mais que a imagem de uma mãe piedosa.
Apresenta uma leitura imagética que produz seus significados não apenas pela organização
formal dos vocábulos, mas principalmente pela estrutura dos versos. O sentido se constrói na
própria tessitura do poema.
Em nossa análise, apresentamos a inter-relação entre memória e a escrita poética. A
possibilidade de diálogo entre o discurso ficcional e o discurso real. Lembrar dos
acontecimentos do pretérito para, no presente, registrar e eterniza-los por intermédio dos
versos. Dando sempre ênfase à figura da mãe, ser materno que em prantos roga pelo filho.
Sentido que se presentifica na estrutura do poema e nos auxilia na compreensão do mesmo.
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Por fim, concluímos que o poema Mater, além da riqueza de imagens, é rico em
sentido semântico, e que essa mescla se apresenta de maneira interna. O eu lírico, retrabalha
as lembranças, constituído o todo poético, ou seja, uma poética da memória.
Referências
AQUINO, Graça. A memória como evocação: um estudo sobre a obra O Arada, de Zila
Mamede. Natal: A.S. Editores, 2005.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BRITTo, Paulo Henrique. Poesia e memória. IN: PEDROSA, Célia. Mais poesia hoje. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2000.
DA COSTA E SILVA. Poesias completas. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
GUIDA, Angela. A poética do tempo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro: 2013.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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Introdução
Caminhamos em direção ao estudo dos poemas dos quais nos ocuparemos neste
trabalho. Viajaremos, diga-se de passagem, não só no sentido de passear por cada verso,
compreendendo cada palavra, mas também no sentido de voltar no tempo, buscando perceber
traços de mentalidades de épocas anteriores que se cristalizaram ao longo dos séculos
podendo ser, dessa forma, apreciados na poesia viniciana. Esses traços foram observados
tanto numa perspectiva literária, quanto numa perspectiva histórica. Afinal, a teoria utilizada
nesse estudo, nos permite relacionar a Literatura com as mais diversas áreas de conhecimento,
seja a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicologia, enfim, a todas as áreas que lhe
forem lindeiras1. E tudo isso foi permitido, a partir do instante em que verificamos na obra do
poeta carioca a presença de imagens femininas diferenciadas, cada qual com peculiaridades
passíveis de estudos residuais a partir das próprias escolas literárias anteriores à de Vinicius.
A imagem da mulher em dado contexto histórico também foi ideia surgida com a percepção
singular do poeta em estudo que, muitas vezes, ao representar aspectos femininos fugia dos
moldes de sua época.
Não é novidade afirmar que as mulheres dos textos de Vinicius têm um lugar
privilegiado. Sendo o escritor considerado pelos críticos como “o poeta das mulheres”,
identificamos, desde o início de sua obra, o grande apreço demonstrado pelo ser feminino,
desde as mulheres mais puras, até as mais profanas: “O poeta é bom/ Ele ama as mulheres
castas e as mulheres impuras”. Os versos foram retirados de “O poeta”, inserido na primeira
obra de Vinícius de Moraes O caminho para a distância (1933). Desde então, vários são os
textos encontrados na obra do poetinha fazendo referências a diferentes tipos de mulheres,
variação esta perceptível até nos títulos de alguns deles: “A esposa”, “A uma mulher”,
“Minha mãe”, “A volta da mulher morena”, “Poema para todas as mulheres”, “A mulher que
passa”, “A mulher na noite”, “Uma mulher no meio da noite”.
1
A palavra “lindeiras” refere-se às áreas que estão às margens da Literatura.
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Entretanto, vale ressaltar, depois da leitura dos inúmeros poemas que tomam por base
o ser feminino, resolvemos organizá-los em diferentes tipologias, resultando na nossa
Dissertação de Mestrado intitulada “Representações femininas na lírica residual de
Vinicius de Moraes”. Analisamos em âmbito geral a relação homem-mulher numa
perspectiva amorosa. Portanto, as tipologias mãe, filha, Nossa Senhora, não entraram no
nosso estudo. Foram, de fato, cinco categorias escolhidas: a) A esposa; b) A amada; c) A
passante; d) A prostituta; e) A mulher fatal. Além destas, construímos outro tópico
denominado “A mulher que fica”, no intuito de acrescentar alguns comentários a respeito do
corpo feminino que não couberam nos pontos anteriores. Contudo, nesse momento, nos
debruçaremos, apenas, sobre uma tipologia: a mulher fatal.
É preciso considerar que a representação estudada insere-se na relação amorosa
homem-mulher. A mulher fatal, com todos os seus anseios, inquietudes e estímulos
proporciona ao eu-poético instantes de angústia e prazer, cada um segundo a fase estudada.
Utilizamos a expressão mulher fatal para designar aquela que provoca desejos.
Referimo-nos à mulher que aparenta muito mais corpo do que alma, e por isso estimula a
angústia dos seguidores da fé religiosa, comumente aflitos com os sentimentos ocasionados
pelos prazeres da carne. Poderíamos ter usado o termo profana2, tantas vezes empregado pela
crítica viniciana. Todavia, entendemos que esse termo, por exprimir aquilo que não está de
acordo com a religião ou não a tem como propósito, mantém um sentido originário e, no caso
de nossa pesquisa, na própria mulher. A designação fatal parte da perspectiva de quem analisa
aquela que assim foi nomeada. Portanto, para nós, a mulher não se posta como fatal, mas,
quem a observa pode denominá-la como tal, diferentemente da profana, que conscientemente
está longe dos preceitos religiosos.
Na obra de Vinicius essa ideia de “fatalidade” aparece desde o início de sua produção,
em O caminho para a distância, quando o eu-poético enxerga angústia nos olhos da mulher e
quando tenta afastá-la do “fardo da carne”:
A UMA MULHER
2
Segundo Massaud Moisés, profano é tudo aquilo que fica fora, “diante (pro) do templo (fanum)” (MOISÉS,
2008, p.53).
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[teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.
(MORAES, 2008, p.191-192)
Mais uma vez notamos a treva se sobrepondo à luz. E todos os elementos norteadores
dessa negrura dominam o corpo do ser angustiado, que desponta cheio de incômodos, como
se fervilhasse a cada contato com a mulher. O pecado, representado pela presença da cobra e
da luta contra o desejo carnal, é o responsável por conduzir o eu-poético às trevas e mais
ainda à morte. Segundo Elizabeth Dias Martins:
De fato, isso é perceptível nos dois poemas estudados até o momento nesse tópico.
Contudo, mais do que relacioná-los com a obra do romântico Almeida Garrett, podemos
estabelecer a similitude dessa ideia com a inovação introduzida pela Escola Romântica.
Deparamo-nos com o egocentrismo, por exemplo, nos poemas da primeira fase da produção
viniciana, haja vista a exagerada preocupação em resguardar-se dos prazeres mundanos. O
“eu”, desse modo, enfoca suas angústias, necessidades e medos, deixando a amada em
segundo plano. A imagem da mulher surge nos poemas como a responsável pelos tormentos
masculinos. Portanto, se tivéssemos que identificar o lado do Bem e o do Mal, de certo, este
seria feminino. Isso tudo só comprova o individualismo do “eu-poético”, que mesmo
colocando a mulher num plano de evidência, todas as imagens apresentadas são frutos de uma
angústia masculina pessoal, principiadas pelo temor de vivenciar o pecado. Massaud Moisés
comenta o sentimentalismo presente na era romântica, fato que contribuiu para a substituição
da fantasia pela especulação. O autor explica ainda que o “sentimentalismo implica
introversão, e os românticos se voltam para si, na sondagem do mundo interior, onde vegetam
sentimentos vagos” (MOISÉS, 2008, p. 117). E ao voltarem-se para si, os românticos acabam
submergindo na tristeza e melancolia, alcançando, dessa forma, o “mal do século”3.
3
MAL DU SIÈCLE – Fr., Mal do Século, sofrimento cósmico. Mal-estar existencial causado por certa feição do
romantismo, e com ele identificado. Enraizado na poesia da sensibilidade e no culto do “eu” em voga nas
literaturas anglo-saxônicas na segunda metade do século XIII e presente em Génie de Christianisme (1802), de
Chateaubriand, nos romances de Nodier (Les Proscrits, 1802; Le Peintre de Salzburg, 1803; em Obermann
1804, de Sénancour; MéditationsPoétiques ,1820, de Lamartine, - veio definir-se no prefácio de Vigne a
Gradeur et Servitude Militaires,1835, em La Confession d’un Enfant duSiècle, 1836 , de Musset. Pessimismo
extremo em face do passado e do futuro, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza,
culto do mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico, ausência
da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito “vago das paixões” (Chateaubriand), desencanto
em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentido vital, depressão profunda, abulia resultando
em males físicos, mentais ou imaginários, que levam à morte precoce ou ao suicídio, - caracterizam o mal do
século, que se prolongaria além da revolução romântica, até o fim do século XIX (PEYRE, 2004, p. 272-273).
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Nos textos do poeta moderno que se referem principalmente à sua primeira fase,
encontramos claros resíduos românticos. A angústia que se transforma tantas vezes em
desespero é um desses traços encontrados:
Outrora a amada concedeu uma paisagem calma. No entanto, após um contato maior
entre os corpos, tudo se transformou em angústia, visto que a tempestade passara destruindo a
beleza do corpo feminino. Consequentemente, “tudo era estéril, monstruoso e sem vida”.
Esses conflitos pessoais podem ser resumidos numa única angústia: a luta entre o
sagrado e o profano. Não à toa, a primeira fase da produção poética de Vinicius foi
denominada transcendental, posto que essa estreita relação do homem com o pecado é
constantemente resgatada em seus versos. O anseio por Deus em oposição às urgências
terrenas também esteve presente em uma época anterior à escrita dos textos vinicianos. No
caso, referimo-nos ao Barroco. Nesse período, a angústia, a tensão espiritual e o misticismo
eram algumas das vertentes que se destacavam. Além dessas, temos os diversos paradoxos,
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que também encontramos na obra do poeta carioca. Dentre estes: o Bem e o Mal; céu e
inferno; pecado e arrependimento. A propósito, Afrânio Coutinho afirma:
SONETO DE DEVOÇÃO
[...]
Ainda estamos numa fase intermediária, mas todas as amarras parecem libertadas. A
construção de poemas mais curtos ocorre ao lado de uma linguagem despudorada e da
representação de uma mulher bela por seus apetrechos eróticos. Observa-se um novo
Vinicius, isto é, o verdadeiro Vinicius.
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O texto apresenta uma mulher entregue totalmente aos carinhos e jogos eróticos do eu-
poético masculino. Trata-se de uma imagem fria e lúbrica; alguém que diz versos, mas
também diz nomes feios; é melancólica, mas ri; ela proclama tanto a miséria quanto a
grandeza do amor; é um mundo, mas também pode ser uma cadela. Esses paradoxos,
diferentemente do dualismo Barroco, enfatizam a relação da obra de Vinicius com a
concepção romântica, na qual a “imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade,
conquistam aos poucos o lugar que era ocupado pela razão” (COUTINHO, 1978, p. 141). São
termos contraditórios, mas enobrecem a construção erótica do texto. É, por certo, uma mulher
fatal, conquistadora dos melhores carinhos concedidos pelo ser masculino. Ela fez por
merecer. Entregou-se aos encantos da paixão e mais ainda aos prazeres da carne. Esse é um
aspecto completamente ausente na fase anterior da obra ora estudada. Segundo Afrânio
Coutinho:
A imagem de uma mulher subjugada aos desejos masculinos surge como forma de
enaltecimento feminino. É ela quem se arremessa nos braços do amado, quem faz juras de
amor e diz nomes feios, quem ri dos receios masculinos e guarda a marca dos dentes em seu
corpo. Além disso, é um mundo, mas talvez uma cadela, aspecto que momentaneamente faz
da mulher um ser inferior. É o retrato de uma entrega total. Contudo, esses aspectos que
podem reduzir a representação feminina, buscam, na verdade, enaltecê-las, pois o objetivo
primeiro é dizer que ela foi intensa, além de perfeita no ato sexual. O uso da palavra amor
surge no poema como sinônimo de sexo: “Essa mulher que a cada amor proclama/ A miséria
e a grandeza de quem ama”. Contudo, nesse último verso se contém a ideia de amor diferente
do primeiro já citado, fazendo com que esses conceitos se entrecruzem.
Num outro texto, a personagem feminina surge, de fato, subjugada ao eu-poético. Aqui
não há enaltecimento da imagem da mulher. Em vez disso, o homem é o destaque:
O “Soneto de Despedida”, desde o início, faz uma comparação entre a mulher e a lua.
Aquela, emocionada, entrega-se sem qualquer reação de seu amado, o qual, posteriormente,
largou-a depois de ter usufruído de seu corpo. Entretanto, tendo ele se apaixonado, deixou sua
marca em seus lábios e seios.
Referido texto nos evoca um poema de Alphonsus de Guimaraens, intitulado
“Ismália”. Este, os mais apreciados entre os simbolistas, se constrói de maneira narrativa e
envolve uma mesma imagem em duas instâncias distintas: no céu e no mar:
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…
Os versos breves e cadenciados, a forte musicalidade rítmica observada pelo uso das
rimas alternadas (abab) e as repetições, fruto de uma estrutura paralelística, demonstram o
resgate de uma tradição poética medieval. O interessante é que tais aspectos também se
encontram no “Soneto de Despedida”. E não se trata apenas de uma semelhança estrutural,
pois a temática da loucura se pronuncia em ambos os textos. Sendo um dos assuntos
recorrentes do Simbolismo, a loucura em “Ismália” se dá pela obsessão da personagem em
querer alcançar a lua. Já no texto de Vinicius, a loucura estava no amor concedido ao eu-
poético, fazendo a mulher entregar-se sem pudores sob aquela noite enluarada. Nos dois
poemas a ideia de que tudo é simples e possível é o que faz as personagens loucas, pois não
refletem sobre as consequências de seus atos.
Alguns versos vinicianos demonstram concreta relação com o texto de Alphonsus de
Guimaraens. O verso “Viu uma lua no céu” do poema Ismália, pode ser encontrado em outro
registro no texto de Vinícius: “Uma lua no céu apareceu”. Ao mesmo tempo em que Ismália
enlouquece, a personagem feminina do outro poema estremece. Percebemos, ainda, um
exemplo de paralelismo no “Soneto de Despedida” à moda de Guimaraens: “Perdida uma, a
outra abandonada”. O paradoxo encontrado em Ismália envolvendo o céu e o mar, em
Vinicius surge como terra e céu: “Uma nua na terra, a outra no céu”. Os desfechos evocam
mais uma estrutura paralelística: “Sua alma subiu ao céu/ Seu corpo desceu ao mar” (Ismália);
“Um sorriso de carne na sua boca/ Uma gota de leite no seu seio” (Soneto de Despedida). No
primeiro, a clara ideia de morte; no segundo, poderíamos constatar essa mesma ideia se
considerarmos o abandono como uma espécie de morte. Seria uma morte daquele momento,
do sentimento que apenas deixou marcas. Uma morte do amor passageiro, vivido numa única
noite de lua cheia.
Essa imitação de elementos presentes no texto de Alphonsus de Guimaraes, além da
intertextualidade, inevitável e nem por isso explorável, mostra-nos um resgate do modelo
simbolista. E este, por ora, apresenta resíduos medievais. Tudo isso, enfatiza aquilo que
expomos desde o início; ora, as escolas literárias não existem independentes umas das outras
e, muito menos, das diversas épocas históricas. Portanto, esse resgate confirma o processo de
hibridismo cultural encontrável nas diversas obras literárias, apresentando as diversas
influências adquiridas ao longo do tempo.
Considerações Finais
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Uma obra como a do poeta carioca precisa ser perpetuada. E isso se torna possível
quando produções, tais como as de Vinicius, são investigadas à luz de “novas” teorias.
Classificar o poeta carioca exclusivamente como moderno não se torna viável, quando
se sabe como multifacetada é sua obra. E não nos reportamos apenas a essas relações com
outras épocas. Na verdade, lembramo-nos das diversas temáticas utilizadas em seus poemas,
que facilmente se explicam quando tomamos por base as palavras de Antonio Candido:
Essa diversidade vem comprovar o que defendemos desde o início desse trabalho: os
tempos e as culturas estão em constantes entrecruzamentos. Não há como limitar Vinicius ou
qualquer outro autor à época em que produziu seus textos. Seria, desse modo, reduzir as
inúmeras possibilidades de estudos. A mulher fatal, presente na mentalidade de diversos
autores em diferentes épocas, é apenas um dos elementos que comprovam o exposto até aqui.
Referências
Introdução
[...] Costuma-se erigir Gregório de Matos como homem libertário dos textos
sempre supostos paródicos, porque satíricos. Encarnando-se no século XVII
como desejo do interprete e reencarnando-se no século XX como autor
barroco e liberal “progressista”, crítico do oficialismo das instituições
dominantes. (HANSEN, 2004, p. 39).
Embora o alvo maior de investigações em sua poesia seja por sua produção aguçada,
crítica e escrachada, que pelos aspectos histórico-sociais das mulheres de sua época, faz-se
necessária esta análise, pois, o desejo pela mulher provoca no poeta maldito a necessidade de
descrevê-la e, assim, revela a sua condição na sociedade do século XVII, isto é, Gregório, em
sua poesia, classifica a mulher colonial, tira de todas elas a independência e apresenta as
relações de dominância masculina através dos desejos eróticos, movidos pela busca incessante
do prazer.
Em sua poesia, as negras são tratadas de uma forma diferente das brancas, as escravas
das sinhazinhas, as prostitutas das damas, as profanas das religiosas, compreendendo uma
separação clara de condição social entre essas mulheres. Desta maneira, Gregório apresenta
seu ponto de vista masculino em uma sociedade patriarcal, ponto de vista este que tanto
inferiorizou a mulher na colônia.
Quatro séculos depois, cabe-nos perceber até que ponto a mulher foi explorada e
dominada na colônia, bem como até onde a mulher, coisificada, servia para a satisfação dos
prazeres da sociedade vigente. Os impulsos e atividades prazerosas são, sem pudor,
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trabalhados e pouco ou nada têm a ver com as leis da racionalidade que acabam por desvendar
os verdadeiros disfarces das personagens dos seus poemas.
O erotismo, do francês érotisme, designa não só um estado de excitação sexual, mas
também a exaltação do próprio sexo no campo de ação das artes, apresentando-nos o signo da
diferença de relação homem-mulher. Para isso, Alberoni (1989, p. 74) explicita que “o
erotismo é uma fantasia de identificação com as partes eróticas do corpo. Precisa falar delas,
ilustrá-las, desnudar o que está encoberto. [...] O erótico é, portanto, uma pornografia
pessoal”.
O termo nos é apresentado como o nosso lado mais agressivo e animalesco (FREUD,
2009), que se encontra dominado pelos desejos da natureza sexual e livre de qualquer
imposição cultural e social buscando sempre a satisfação de um desejo que causará prazer. O
poeta baiano sabe trabalhar implícita e explicitamente as questões sexuais e analisa a
sociedade e a cultura da época de uma forma viva e audaciosa.
Para que se analise as questões destes impulsos tratados nos poemas, deve-se ter
consciência de que Freud elaborou um modelo explicativo para a estrutura do sistema
psíquico humano de cada ser. Ele é visto como resultado de interação de três partes: ID, Ego e
Superego. Dentro da obra erótica gregoriana nos voltaremos apenas para o ID (em alemão es,
"ele, isso") e o Ego (em alemão ich, "eu"), isto é, a relação do inconsciente e do consciente,
que é fonte primária para florescimento do erotismo.
Esta prática de promover uma frequência erótica fora do âmbito familiar torna-se
ícone para o estudo da poesia erótica de Gregório de Matos, comprovando que à mulher, na
condição de mãe, lhe era proibida a prática erótica, enquanto ao homem sempre foi permitida
tanto a prática erótica quanto a prática reprodutora; contanto que tudo fosse bem dividido.
Percebe-se então que a prática erótica vigente em sua poesia pertence aos homens,
totalmente acobertado pela sociedade - pois, vive-se um sistema patriarcal, onde a dominação
do homem sobrepõe os desejos femininos - juntamente com as prostitutas que estão fora dos
padrões familiares de reprodução justamente por alimentar seus desejos eróticos.
No poema ‘Pica-flor’, a impossibilidade da religiosa de ceder a vez aos impulsos
torna-se peça chave para a sátira gregoriana, onde o poeta responde à ironia com outra,
envolvendo não só os aspectos relacionados às leis da Igreja, impedindo a irmã de ceder a
“sugestão” do poeta, como aos próprios pudores que a mesma escolheu para si, o celibato.
No segundo poema proposto, Gregório apresenta o descaso à mulher, onde o capitão,
intitulado Surucucu nos versos, realiza seus impulsos eróticos com a mesma, que só possui
contatos íntimos com o capitão pelo grau social dele; segundo o poeta, ela aparenta não ter
outra escolha, contudo, Gregório não livra o interesse da mulher ao ato. O poeta Baiano
também nos apresenta um capitão aparentemente forte no que diz respeito ao sexo, mas,
totalmente irresoluto no que diz respeito à política.
Já no poema de Maria Viegas, senhora sustentada pelo Capitão Bento Rabello,
Gregório de Matos nos revela uma mulher que falava palavras proibidas para as mulheres de
respeito daquela época, palavras de baixo calão que só eram permitidas que saíssem da boca
dos homens. O poeta revela sua posição patriarcal, rebaixando a mulher a condição de
prostituta pelo fato de dizer e fazer o que pensa e sente vontade.
desconhecemos que o poeta não se preocupa com a condição da mulher na sociedade em que
viveu, ao contrário, Gregório de Matos se revela um homem machista, que reduz a mulher a
condição de objeto e que valoriza o patriarcado, revelando não só a sua postura de aristocrata
e homem mas, acima de tudo, revelando o comportamento do povo baiano na era colonial.
Devemos nos voltar também para o comportamento da mulher colonial, a forma como
ela se posiciona frente ao patriarcado, sua condição submissa ou ainda o tímido
inconformismo de sua condição inferior.
Ousado, Gregório de Matos, no poema “Pica-flor”, devolve a sátira feita por uma
freira que compara sua fisionomia com a de um pica-flor, nome antigo do beija-flor. Pela
semelhança do nariz delgado do poeta com o bico do animal, a irmã debocha do “Boca do
Inferno” que andava desgostoso quanto ao comportamento da Igreja e, obviamente, não
deixaria de responder com uma inteligente sátira, construída não só para atingir e devolver a
zombaria, como para atingir a Igreja na figura da religiosa.
Décima
Se Pica-Flor me chamais,
Pica-Flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome que me dais,
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica,
Que fico então Pica-Flor.
(MATOS, 2010, p. 651).
Nesta perspectiva, o poeta acaba por “devolver na mesma moeda” a sátira afirmando
ser sim um pica-flor, mas que fará com que a flor que a mesma freira guarda, seja penetrada
pelo Pica, ou seja, pelo próprio poeta. A flor, nada mais é do que a genitália feminina e o bico
do beija-flor a genitália masculina.
Assim, Gregório personifica o pica-flor e escandaliza o pudor imposto pela igreja
católica às freira, maquiada pelas mais variadas questões sócio-culturais, através da genitália
da freira representada na flor (KEHL, 2008, p.53). Transforma a freira numa mulher sedenta
de prazer e ele no homem que satisfará os desejos físicos da mesma “picando sua flor” através
do sexo, caso ela permita que o faça.
Para tanto, Araújo (2009, p.68) explica que o comportamento das freiras devia ser
sempre de passividade , sem qualquer manifestação de sexualidade, vaidade ou sedução,
afinal, elas dedicam suas vidas a Cristo e a Igreja, e portanto, devem seguir a palavra sagrada.
O que acontece, no entanto, é a aparição de “freiráticos”, como Gregório de Matos, que
frequentavam as celas das religiosas, e num jogo de sedução, satisfaziam seus prazeres e os
das religiosas.
Na segunda análise, Gregório não maquia significado algum procurando ser o mais
direto possível; aqui, o social, o político e o feminino são as chaves da poesia:
Passou o surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luísa o cu:
Jesu nome de Jesu,
disse a Mulata assustada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da escolta
dê uma volta, e na volta
poderá dar-me a dentada.
Percebe-se então que a prática erótica promovida neste poema pertence a um homem
totalmente acobertado pelo social - pois, vive-se um sistema patriarcal, onde a dominação do
homem sobrepõe os desejos femininos - juntamente com uma mulher fora dos padrões
familiares de reprodução justamente por alimentar seus desejos eróticos.
Nota-se, primeiramente, que Gregório inicia sua sátira com a nomeação do capitão
referido: surucucu, um réptil das matas tropicais brasileiras que pode atingir 3,60m de
comprimento, sendo esta a maior cobra venenosa do Brasil (AURÉLIO, 1988 p. 618).
Portanto, Gregório inicia seu discurso poético atingindo diretamente o capitão
chamando-o cobra venenosa. Em seguida prossegue com a sátira, afirmando estar o mesmo
capitão no cio, estado de receptividade sexual extrema por que passam as fêmeas de
muitos mamíferos (AURÉLIO,1988 p. 152).
Torna-se visível a percepção da sátira unida ao erotismo de Gregório no que se refere à
construção da personagem no poema, onde o capitão encontra-se em estado de cio, estado este
que não pertence aos seres humanos. O incansável Gregório ainda se permite rimar cu com
Jesu, num vocabulário familiar e grosseiro. Ao dessacralizar o sagrado, Gregório quebra todos
os paradigmas direcionados à moral e boa conduta.
Prossegue Gregório com a picardia ao capitão informando-nos de que ele convidou a
negra Luísa ao ato sexual apenas por um assobio. Formam-se aí dois caminhos de análise,
pois, o poeta tanto satiriza o capitão, que fez uso de um gesto cotidiano do povo, o assobio -
podendo considerar um ato gentalha para um nobre – quanto inicia sua aspereza ao caráter
feminino exposto em Luísa, pois, a uma mulher dentro dos padrões sacrossantos da família, a
uma mulher destinada à maternidade, o capitão não chamaria com um assobio (BIRMAN,
2001, p. 72).
Gregório de Matos afirma que bastou um simplório assobio de um capitão para que a
mulher se dirigisse a ele, o ouvisse e pusesse em prática sua sugestão; o sexo promovido pelos
prazeres eróticos. Deve-se tomar cuidado com a questão sugestiva deste assobio, porque a real
intenção do poeta é informar que a mulher cede facilmente à chamada masculina sem
pestanejar.
O poeta permanece com a sátira e em seguida faz uso direto e escrachado do poder
erótico de persuasão informando ser o assobio forma de chamado do capitão para a
consumação do sexo anal com a mulher. Sendo esta uma forma sexual de alto grau
preconceituoso, ainda nos dias de hoje, o que faz do poema um texto forte e direto.
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Observa-se em todo o corpo do poema que a esta mulher que entregou-se aos desejos
do inconsciente lhe fora taxado não só um nome que a impulsiona a inferioridade, como a
todos os costumes e relações direcionados a ela. Totalmente desvalorizada, primeiramente por
sua posição de mulher e, posteriormente, por sua cor e pela preferência aos impulsos eróticos,
Luísa continua em sua posição subalterna em relação à superioridade patriarcal.
Dentro da mesma ótica de análise, no terceiro poema, Maria Viegas já sofre no título
porque falava obscenidades e porque dependia financeiramente do capitão Bento Rabello.
Diferentemente de Luísa, que é tratada como prostituta e negra, Maria Viegas é tratada de
início como senhora e dama, portanto, mulher de respeito. No entanto, no decorrer do texto
Gregório de Matos muda seu conceito e transforma Viegas numa mulher de nenhum valor,
que não se conforma com sua condição de subordinada e que por ceder à busca do prazer não
merece nenhuma consideração.
A huma Dama por nome Maria Viegas, que falava fresco e corria por conta
do Capitão Bento Rabello seu amigo
Senhora Cota Vieira,
Deus me não salve a minha alma,
se vós não me pareceis
uma linda, e gentil dama.
Tão risonha como a Aurora,
tão alegre como a Páscoa,
mais belicosa que o fogo,
e mais corrente que a água.
Picará como nascida
na picardia da França
e assim francesa nas obras,
Portuguesa nas palavras.
Tudo chamais por seu nome
tão propriamente , tão clara,
que ao cono lhe chamais cono,
chamais caralho à caralha.
Malditas da maldição
de Deus sejam as tavascas,
que de surradas nas obras
põem de bioco as palavras.
Há cousa como chamar,
o que uma cousa se chama,
porque sirva de sustento
à luxúria que desmaia.
Há cousa como falar,
como Pai Adão falava
pão por pão ,vinho por vinho,
e caralho por caralha.
Quem pôs o nome de crica
à crica, que se esparralha
senão nosso Pai Adão
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O poeta maldito inicia a sátira se voltando para Deus para que Ele não o salve caso o
próprio poeta esteja mentindo em relação à Maria Viegas, senhora linda e gentil. Faz uso da
comparação enaltecendo a aurora e a páscoa junto ao riso e a alegria da mesma dama.
No entanto, os problemas da senhora Maria Viegas, segundo o mesmo poeta, estão
inicialmente nas palavras, pois buscando inspiração na picardia francesa e astúcia portuguesa
a dama não se preocupa em falar palavras de baixo calão, palavras estas que estão diretamente
ligadas ao erótico, como “cono” e “caralho”, que só podiam ser proferidas pela boca de um
homem.
O boca do inferno amaldiçoa a mulher que a pouco cobria de elogios por ser repleto de
luxúria todo o posicionamento da mesma senhora Viegas. Como afirma Araújo (2009, p.73)
“Assim devia ser e assim era: a sexualidade negada em benefício do espírito irrompia na
clausura feminina, incontida, imoderada, impudica, mas exercida com a descrição possível”.
Portanto, a Maria Viegas é uma senhora que não se conforma com o posicionamento
masculino de imposição à submissão feminina e não teme em dizer palavras proibidas para
mulheres nem muito menos deixar de satisfazer seus prazeres porque os mesmos eram
considerados amaldiçoados, se vindos de uma dama.
Adão, homem e responsável pela criação dos nomes de todas as coisas, segundo a
bíblia, podia proferir as palavras chulas que a uma dama não era permitido pois Eva não o fez.
Desta mesma maneira, Gregório de Matos vai convencendo o leitor de que a senhora Maria
Viegas não merece mais nenhum prestígio e que ele, assim como Adão, pode proferir as
mesmas palavras que a dita senhora proferia, pois é homem.
E assim ele o faz e acrescenta outras tantas fazendo uma brincadeira com dois
personagens sagrados como Adão e Eva, descrevendo o ato sexual dos dois, justamente
quando Adão decidiu dar nome a genitália feminina: Quem pôs o nome de crica/ à crica, que
se esparralha/ senão nosso Pai Adão/ quando com Eva brincava.
O poema prossegue com Gregório de Matos revelando seu desejo em fazer sexo com a
Maria Viegas, já que ela não merecia mais respeito algum, e assim, satisfazendo seus
impulsos eróticos apresentados pelo id, o inconsciente, além de participar da satisfação do
prazer sexual da própria Maria Viegas.
[...] Segundo esta visão, temos de distinguir duas classes de instintos, uma
das quais, os instintos sexuais ou Eros, é, de longe, a mais conspícua e
acessível ao estudo. Ela abrange não apenas o instinto sexual desinibido
propriamente dito e os impulsos instintuais de natureza inibida quanto ao
objetivo ou sublimada que dele derivam, mas também o instinto
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autopreservativo, que deve ser atribuído ao ego [...]. (FREUD, 2009, Vol.
XIX p.53)
É através deste instinto sexual desinibido estudado por Freud que Gregório explicita
em seu poema. Tanto o poeta quanto a Maria Viegas são levados pelo impulso instintual de
natureza inibida; ela por fazer e falar coisas proibidas a senhoras respeitáveis e ele por expor
seus desejos e práticas na poesia.
Gregório prossegue com o texto e permanece indeciso quanto a satisfação plena de
seus desejos já que o respeitável capitão Bento Rabello era o legítimo possuidor da senhora
Maria Viegas e portanto ele não devia possuí-la.
Embebido aos prazeres e levado pelo inconsciente, pela busca incessante do prazer, ele
trai o amigo e capitão, taxando-o besta, e faz com a senhora Viegas o que ela merecia; rir e
folgar com ele a vontade.
O poeta conclui nomeando a senhora de Madrastra, por não respeitar o capitão
Rabello, e afirma que ela esteve condizente com o posicionamento dele. Gregório de Matos
não tira a culpa da mulher retratada no poema em nenhum momento, afinal sempre foi de sua
vontade a satisfação verbal e física de seus prazeres, e por isso, o poeta faz com que Maria
Viegas comungue das suas mesmas fantasias e desejos.
Sem se desligar da galhofa, o poeta maldito brinca com as mulheres de diferentes
classes sociais e afirma que tanto a velhinha, quanto à mulata ou à negra acorrentada, podem
seguir o exemplo da Maria Viegas se assim desejarem satisfazer seus mais ocultos e proibidos
prazeres eróticos. Quanto às damas, estas que assim o fizerem, usarão seu status para
mascarar a verdade mais vibrante impulsionada pelo id, a consumação do prazer estimulada
no inconsciente.
Considerações Finais
Analisamos três poemas e três mulheres diferentes: uma freira que através do celibato
se escondia sempre que podia, mas que não tinha liberdade para a satisfação erótica, uma
mulata e prostituta, que inicialmente pela condição social que pertencia, unida a sua cor de
pele, foi totalmente desrespeitada e como não estava dentro dos padrões sacrossantos
familiares que a sociedade e a igreja impuseram passou a ser tratada como objeto e, por
último, uma dama que também revela seu inconformismo por não poder satisfazer seus
prazeres e, portanto, passa a não ser mais respeitada como dama, e sim, como objeto fonte de
prazer.
O rebelde Gregório de Matos sabe como ninguém prender o leitor e apresentar suas
ideias de uma forma inovadora para a época, sempre num tom forte e sarcástico, na busca por
um leitor mais crítico e conhecedor das mazelas de seu tempo; mazelas estas que ainda estão
presentes, fazendo de Gregório e sua poesia ícones fortemente atualizados para a sociedade
pós-moderna.
Não há como não perceber que a alcunha de “Boca do Inferno” realmente tornou-se a
melhor apresentação para o poeta Gregório. Um homem que, mesmo com a proteção junto
aos conhecimentos políticos, teve coragem para expor suas ideias e não fez silêncio diante de
todos os problemas vividos em sociedade: seja a igreja, como fonte de privação eterna do
prazer, seja a política, como princípio de corrupção de uma sociedade ou, ainda, a relação
homem-mulher, causa primeira da diferenciação quanto à posição social, política e econômica
entre essas criaturas, ideias estas claramente apresentadas neste trabalho a partir dos poemas
propostos.
Talvez, análise mais crítica em relação à alcunha de “Boca do Inferno” seja revelar o
poeta maldito como homem nem um pouco preocupado com a posição da mulher em
sociedade, pela forma como o próprio poeta trata a mulher e sua condição de submissão e
posição inferior frente à dominação e ao poder masculinos.
O próprio Gregório de Matos é um dos contribuintes para a desvalorização da mulher
na colônia. Crítico em umas questões, totalmente acomodado e condizente em outras. Por isso
sim, boca do inferno.
Referências
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: História das
mulheres no Brasil. 9ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
BADINTER, Elizabeth. Um é o outro; relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
BIRMAN, Joel. Gramáticas do Erotismo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2001.
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id e outros trabalhos (1923 – 1925) In: Edição Completa 24
Volumes. Rio de Janeiro: Imago, 2009.
HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas/SP:
Editora UNICAMP, 2004.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2ª edição. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos – Obra poética completa. 2 Vols. 4. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2010.
MIRANDA, Ana. O Boca do Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 9ª edição. São Paulo: Editora
Contexto, 2009.
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Página 920
Apresentação do autor
O poema
Do ponto de vista formal, o poema caracteriza -se como soneto clássico, posto que em
sua metrificação - os versos são decassílabos , as rimas são regulares (ABBA; ABBA; CCD;
EED). Apresenta a estrutura fixa de 2 (dois) quartetos e 2 (tercetos).
A escrita erudita da língua fica marcada no soneto principalmente através das
expressões: ILUMINEIRA, CINZEL, JAVARDA. Características do estilo literário
parnasiano, estilo que se caracteriza pela utilização de vocábulos eruditos.
O poeta interpreta de forma real as seguintes abstrações: Cobra, Corça, Leoparda,
Anjo, Cinzel, Porco, Divino, Morte, Cutelos, Asas, Dragões. A personificação deste
elementos fica evidente por meio do uso de formas maiúsculas, na primeira letras, o que
provoca uma ambiguidade entre o real e o não- real.
“nossa busca da Beleza pela Arte, do Amor pelo Sexo, da Morte como fonte
de Vida, [são] os três ásperos e belos caminhos através dos quais o homem
mortal às vezes experimenta ainda nesse mundo escuro, o toque da
Divindade imortal “
(Suassuna, 2008, p. 227)
Já Augusto dos anjos no poema Cismas do destino descreve a morte como o ponto
final da última cena da vida.
Ambos expressão a mesma temática em suas obras, embora cada qual direcione ao seu
ponto de vista próprio criando poemas semelhantes e diferentes ao mesmo tempo.
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Página 922
O amor para Suassuna é como um prêmio que colorará o sofrimento de uma vida, uma
alegria para aquele que padeceu durante sua trajetória. O pessimista Augusto o enxerga como
uma ilusão, quiçá uma mentira.
Realidade e ficção
Nestes versos presencia-se uma oposição entre algo santo, o anjo, e algo profano, o
porco, causando uma dualidade entre os termos e o significado a que se propõem.
O segundo par surge no último verso do soneto que é ASAS x DRAGÕES, .que
remete a mesma ambiguidade do par anterior.
Suassuna cria uma ponte entre o real e o imaginário/ficcional, por meio de figura tais
como os pares descritos a cima, criando uma estética própria.
Considerações finais
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira, 33.Ed. São Paulo. Cutrix, 1994.
JOBIM, José Luis. História da literatura ,In: ______. Palavras de critica. Rio de janeiro:
Imago ed. pp.127-150.
MOISES, Massaud. A analise literária.7. Ed. São Paulo. Cultrix, 1998.
NEWTON JÚNIOR, C. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna.
Recife: UFPE, 1999.
SANTOS, I.M.F.dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o movimento
Armorial. Campinas, SP: UNICAMP, 1999.
SUASSUNA, A. Almanaque armorial. Seleção, organização e prefácio de Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
TAVARES, B. ABC de Ariano Suassuna. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
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Na escuridão da noite
Meu corpo igual
Bóia lágrimas oceânico
Crivando buscas e
Cravando sonhos
Aquilombando esperanças
Na escuridão da noite.
Conceição Evaristo
Além de Evaristo, outras escritoras como a própria Carolina Maria de Jesus, a Ana
Maria Gonçalves, fazem parte de um grupo de escritoras contemporâneas, negras, com uma
escrita singular que exprimem experiências vividas e herdadas de suas ancestralidades.
1
Entrevista de Conceição Evaristo concedida a Bárbara Araújo (Blogueiras Feministas) em 30 de Setembro de
2010. Disponível em http://blogueirasfeministas.com/2011/11/conceicao-evaristo/ Acesso em 13 de Outubro de
2014.
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Página 925
A Escrevivência de Evaristo
Por mais anti-colonial que seja qualquer busca de identidade (ou afirmação desta) é
preciso saber que na modernidade, tanto a cultura da metrópole como de toda a sociedade
europeia, assim como a americana e como a cultura local de África, fazem parte de um
compêndio de elementos fortes que estruturam um hibridismo cultural longe de um purismo
platônico. Essa ideia de puro foi mais um conceito criado pelo eurocentrismo como um status
irreal de existência em qualquer sociedade humana. Mesmo assim, foi propagado por muito
tempo como forma de hierarquização entre raças e culturas distintas.
Assim, semelhante a esta motivação do escritor africano, que se ver necessitado de
expor uma visão experienciada de seu continente, uma autora como Conceição Evaristo
escreve (re)construindo um lugar desrrotulado de sua história. A “escrevivência” de Evaristo,
termo criado por ela que transparece a mistura de ficção e memória histórica de um povo,
transmite uma reflexão sobre sua experiência vivida como mulher, negra e afro-descendente.
Além de sua narrativa em prosa, Evaristo também possui poemas que exploram de forma
2
Termo usado pelo autor Severino Elias Ngoenha, em seu texto Identidade moçambicana: já e ainda não,
presente no livro de Carlos Serra: Identidade, moçambicanidade, moçambicanização. 1998. p. 17-34.
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visceral essa temática, como poder ser visto no poema “A noite não adormece nos olhos das
mulheres”:
construção social, vista na formação ocidental judaico-cristã, mas sim como um dos
elementos que compõem esse ser-mulher.
É difícil se entender como o feminino e ter que permanecer inserida nesta sociedade
patriarcalista. No poema eu-mulher o eu-lírico demonstra esse reconhecimento “universal” do
sujeito feminino e da força geradora que este representa e movimenta na natureza, mesmo
ainda tendo que se perceber sob as forças do patriarcado:
Este poema é conhecido como uma espécie de manifesto feminino, que expõe
concisamente a força feminina que envolve todo o universo humano. Como aponta Rocha
(2014):
que permanecer por muito tempo ausente de casa, o que contribui para que a mulher seja o
centro, informalmente, do seio familiar neste contexto.
A personagem Ponciá Vicêncio tem nas mulheres de sua família, assim como da
comunidade onde nasceu, uma identificação ancestral, porém no seu universo de ser-mãe
existe uma frustração latente, pois ao gerar sete bebês, frutos da sua relação com seu homem,
todos estes nascem mortos. A experiência da maternidade cria uma frustração enquanto
mulher-indivíduo para Ponciá, que entrelaça sua subjetividade com o sentimento maternal e,
pressionada pelo seu marido, sente uma cobrança social em cima desta função, onde sua
própria identidade é posta secundariamente. A mulher-negra como mãe no centro da família
não é recorrente no histórico da literatura brasileira, onde essa mulher sempre, em sua
extrema maioria, foi representada como a babá ou a mulher de forma secundária. Ver-se,
então, que no romance citado de Evaristo, esta “tradição” literária é subvertida. Ponciá
Vicêncio é um romance de formação e por isso expõe uma imagem-histórica do Brasil que
identifica e situa o leitor na sua formação identitária. Há, portanto, um reconhecimento social
do leitor diante da protagonista.
Segundo Candido (2000) a literatura faz parte de uma tríade composta por: autor,
obra, público. Esta composição em sociedade demonstra que tal arte se estrutura de forma
dialética com estes elementos, sendo um reflexo dos discursos produzidos. A literatura afro-
brasileira espelha uma demanda discursiva de um passado histórico, ideologicamente
marginalizado. Aquilo que é marginalizado pela sociedade de elite, com o pensamento
hegemônico, na verdade faz parte de um centro, visto a sociedade a partir de como ela
realmente se configura miscigenada, e não a partir de um ideal euro-centrado de sociedade
branca, classe média. A literatura afro-descendente de Conceição Evaristo coloca em ênfase
as gerações futuras de mulheres negras com uma consciência de si e autoconfiança de suas
identidades históricas. Tal característica de suas narrativas se configura como um dos
elementos que expõem a autora para uma projeção universal. Ponciá Vicêncio é um dos
romances que compõem a bibliografia da autora, ao lado de Becos da Memória (romance),
Poemas da recordação e outros movimentos (poesia) e Insubmissas lágrimas de mulheres
(contos), além das publicações na coletânea Cadernos Negros.
A qualidade de uma obra literária, assim como sua entrada para o cânone da literatura
contemporânea atualmente, é uma tarefa complexa de se identificar. Devido a forte influência
do valor de mercado, que inclui valores estético-ideológicos, políticos e econômicos, torna-se
necessária uma reflexão crítica sobre a relevância de tais obras. A extensa produção é quase
incalculável, mas o crítico deve se ater a valores que não se percam da literariedade, para
assim analisar sua importância artística e, posteriormente, político-social para o público, como
aponta Ginzburg (2012):
ser único de avaliação para que a obra seja sempre posta e debatida a partir de sua
literariedade. Com relação a este tipo de crítica, Ginzburg (2012) diz que:
Últimas considerações
Referências
EVARISTO, Conceição. “Nos gritos d’oxum quero entrelaçar minha escrevivência”. In:
DUARTE, Constância Lima; MAIA, Claudia; ABREU, Laile Ribeiro de; BARROCA, Iara
Christina Silva; PERES, Maria de Fátima Moreira (org), Arquivos Femininos: Literatura,
valores, sentidos. Florianópolis: Ed. Mulheres. 2014.
GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: EDUSP, 2012.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. [Tradução de Irene Ferreira, Bernardo
Leitão e Suzana Ferreira Borges]. 5. Ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. p. 419-476.
ROCHA, Denise. “Um canto à maternidade: eu-mulher, de Conceição Evaristo”. In:
DUARTE, Constância Lima; MAIA, Claudia; ABREU, Laile Ribeiro de; BARROCA, Iara
Christina Silva; PERES, Maria de Fátima Moreira (org), Arquivos Femininos: Literatura,
valores, sentidos. Florianópolis: Ed. Mulheres. 2014.
SOUZA, Maria Florentina de. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU.
Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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Introdução
1
Mestre em Literatura e Cultura pelo PPGL/UFPB.
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A cômica retruca de Teresa aos versos de “Meu anjo” farão o leitor “ingênuo" de
Álvares de Azevedo nunca mais lê-lo da mesma forma. Mateus Andrade Pereira (2012, p. 63)
afirma que
Quando trabalha com fórmulas gastas mas que ainda têm validade para um certo nicho
de leitores, a paródia os coloca em desconforto. O pastiche denuncia a esse leitor a
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A metaficção não é, portanto, uma invenção moderna, mas uma forma que
muitos escritores contemporâneos julgam interessante, porque se sentem
sufocados por seus antecedentes literários, oprimidos pelo medo de que tudo
o que tenham a dizer já tenha sido dito antes e condenados pelo ambiente
cultural moderno a ter essa consciência. (LODGE, 2011, p. 14).
2
Sempre com tradução nossa.
3
“No original: “[...]metafiction offers the recognition, not that the everyday has ceased to matter, but that its
formulation through social and cultural codes brings it closer to the philosophical and mythic than was once
assumed.”
4
No original: “a fictional form that is culturally relevant and comprehensible to contemporary readers.”
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O manejo das fontes históricas e biográficas por Rubem Fonseca: uma imprecisão
consciente
alcançar a glória e morrer cedo, como Byron[...]” (FONSECA, 2004, p. 573-574) – e no fim
do conto, epifânico5, como todo o resto:
5
“Na ficção moderna, ao funcionar como clímax ou resolução de uma história ou episódio, a epifania assume o
papel que era desempenhado pelas ações decisivas na narrativa tradicional.” (LODGE, 2011, p. 155).
6
Boa parte da narrativa se passa na “Taberna do Sapo e das Três Cobras”, o mesmo estabelecimento que serve
de cenário para o pequeno poema dramático de Azevedo, Os boêmios (AZEVEDO, 2005, p. 48).
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Ainda não discutimos o evento histórico que ocupa posição central no conto – a ponto
de dar-lhe o nome. H.M.S. Cormorant era o cruzador da marinha britânica que, em 1850,
tinha carta branca do governo de “Her Majesty” para perseguir e afundar navios brasileiros
em nossa própria costa, por desobedecerem à “Lei Bill Aberdeen”, ou seja, continuar trazendo
escravos da África. Muitos brasileiros encararam essa postura como arrogante e um
desrespeito à soberania nacional. Ao aprisionar três navios em Paranaguá, os habitantes
daquela cidade portuária reagiram disparando os canhões do forte contra o “Cormorant”,
gerando um incidente diplomático.
Se imediatamente antes e imediatamente após a independência, a nação a ser rejeitada
era Portugal, ao longo do século XIX foi aflorando, ao que parece, uma forte anglofobia (o
que lembra o sentimento de muitos em relação aos Estados Unidos, mais recentemente,
acusando aquele país de manter uma política externa autoritária).
Um exemplo é a “Questão Christie”, da qual trata Ubiratan Machado no seu A vida
literária no Brasil durante o Romantismo, e que nos diz muito sobre a “diplomacia” britânica
do período.
Em fins de 1862, três marinheiros ingleses foram presos por baderna, no Rio de
Janeiro. Então, o ministro plenipotenciário inglês William Dougal Christie exige satisfações
do governo brasileiro, e, além disso,
punição dos policiais que haviam tido o topete de prender súditos de Her
Majesty, the Queen. As exigências, descabidas e ainda por cima formuladas
de maneira agressiva e desrespeitosa, desagradam o governo brasileiro.
Christie não se contém. Em boletim de 30 de dezembro, afixado na porta da
representação inglesa, informa o início de represálias, por meio de navios de
guerra[...]. Para começar, são apresados cinco navios brasileiros.
(MACHADO, 2010, p. 31).
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Karin Volobuef (1999, p. 284) observa que “a espinha dorsal do nosso Romantismo é
o cunho nacionalista; como resultado, ele tende a valorizar o que é brasileiro e criticar o que é
estrangeiro.” E “[...]seria errôneo considerar o Romantismo brasileiro um movimento cultural
que se teria subtraído a qualquer crítica da sociedade de seu tempo.”
Também para Antonio Candido (2002, p. 23, 39-40), o Romantismo no Brasil “se
confundiu em grande parte com nacionalismo, [...] destacadamente na sua primeira fase, mas
não se restringindo a ela”. O crítico também afirma, em outro momento, que “O Romantismo
corresponde ao momento histórico em que o homem adquire a ideia da liberdade.” (Idem,
1988, p. 2).
A liberdade não se restringiu ao plano ideológico, mas se refletiu em mudanças
estéticas significativas, conforme observa Marisa Lajolo (2001, p. 79): “A prática literária que
engessava o texto com normas e regras, cedeu lugar a outro figurino, que via a liberdade com
valor maior”. Bem humorada, a autora afirma que os românticos inauguraram a “poesia de
protesto”. (Ibidem, p. 80).
Luís Augusto Fischer vai pelo mesmo caminho. O crítico e professor gaúcho afirma
que essa “tendência libertária” que foi o Romantismo “reinventou quase tudo” e moldou o
conceito de artista que perdura até hoje no imaginário popular. “[...]até então, artista era um
sujeito hábil em repetir determinados padrões já assentados na tradição; a partir do
Romantismo, artista é o que inventa, o que cria aquilo que não existia.” (FISCHER, 2008, p.
134-35).
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Voltando ao conto, o incidente de Paranaguá coloca Manoel a favor dos revoltosos que
dispararam contra o navio de guerra inglês, ao passo que Byron (que no conto é uma espécie
de amigo imaginário de Manoel) sai em defesa de seus conterrâneos, por entender que tais
medidas extremas se justificavam face o horror da escravidão.
O brasileiro replica:
Álvares de Azevedo, por sua vez, não entrou para o cânone literário nacional por sua
obra transpirar ideais libertários. Mas ele não fechou os olhos à política, como comprova o
discurso que proferiu por ocasião da instalação da Sociedade Acadêmica Ensaio Filosófico
(1850), composta por acadêmicos de Direito da faculdade de São Paulo. O jovem estudante é
contundente ao cobrar ação das autoridades para elevar a educação formal do país e sonha
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Mas os motivos da eleição de Azevedo vão além. Afinal, a ligação do poeta ao caso
Cormorant não nasceu na cabeça de Rubem Fonseca (daí para temperar o conto com política
“foi um pulo”). Segundo o biógrafo Magalhães Júnior (1962, p. 152), no poema Pedro Ivo,
“Maneco” aproveita os versos de exaltação ao líder da Revolução Praieira, deflagrada em
Pernambuco, para atacar a subserviência do governo imperial à Coroa britânica. A epígrafe
desse poema, de Alexandre Herculano, já aponta nessa direção: “Tristes coroas, sob as quais
às vezes/ Está gravada uma inscrição d’Infâmia” (AZEVEDO, 2005, p. 91).
Nas duas estrofes transcritas abaixo, o tom sobe ao ponto de o Eu-lírico se referir aos
burocratas do Partido Conservador, os mesmos que mantinham o rebelde Pedro Ivo preso em
condições sub-humanas, de “malditos”, comparando sua atitude à de Messalina:
Agora, ao conto. Vejamos a técnica que Fonseca lança mão para transformar os versos
de Azevedo em prosa, no instante em que Manoel, na taberna, fica sabendo sobre o ocorrido
em Paranaguá e os frequentadores pedem um canto de protesto:
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Manoel faz uma reflexão em que associa a submissão política do Brasil à Inglaterra a
uma influência mais fluida, menos palpável - a dominação cultural:
Byron não precisa de mim, nem a Inglaterra do Brasil, ele é o meu paragon e
o Brasil uma colônia da pérfida Albion. Ser fraco custa um preço alto, chego
às vezes a pensar que o inglês é uma língua mais bonita do que a nossa.
Cormorant só invadiu Paranaguá porque Byron, Keats, Shelley invadiram
antes a minha mente. A colonização se faz em nome de Deus, da Lógica, da
Razão, da Estética e da Civilização. Os imperialistas levam o nosso ouro e
corrompem a nossa alma. Byron e Schomberg [comandante do H.M.S.
Cormorant] eram iguais – a Poesia e o Canhão a serviço da Dominação.
(FONSECA, 2004, p. 581).
7
A expressão é de Paul Van Tieghem (In COUTINHO e CARVALHAL, 1994, p. 93). Antonio Candido, por seu
turno, afirma que “Foi durante o movimento romântico que os nossos homens de letras começaram a consumir
considerável literatura em outras línguas.” (2002, p. 84).
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poderia dar como nenhum modelo de moral”, classifica de “primor” Don Juan em duas
ocasiões, e afirma que os cantos de Byron são “ardentes como o tremor do enlevo no sorver
dos beijos” (AZEVEDO, 2005, p. 119, 120).
É digno de nota, nesse sentido, que Fonseca toma emprestado a Álvares de Azevedo e
aos demais românticos o gosto pela epígrafe, como a pedir a bênção a quem lhe abriu
caminhos. Em “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, por exemplo, o contista adota
como epígrafe um trecho de “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro” (1862-3), de
Joaquim Manuel de Macedo, dando continuidade a uma tradição de flaneurs cariocas na
ficção.
A propósito, Ângela Prysthon (1999, p. 22) entende que:
Heloisa Costa Miltom (1996, p. 73), a respeito do “novo romance histórico hispano-
americano” (o qual, citando expressão de Emir Rodrigues Monegal, “goza de buena salud”),
afirma que:
O mesmo se pode afirmar do conto que ora analisamos. Por meio da paródia, aqui
vista como “forma irônica de intertextualidade” (HUTCHEON, 1991, p. 283), o pastiche é a
única possibilidade de reinserir de modo relevante em nossos dias uma forma cultural
d’antanho, como o Romantismo. “H.M.S...” é um pastiche, mas um pastiche sério, que faz rir
mas também lança luz sobre o passado e o presente - uma vez que, bem como na metade do
século XIX, somos ainda uma nação “em desenvolvimento”.
Essa atualidade, que pode escapar a uma leitura apressada, é mais uma característica
presente no conto que Heloisa Costa Miltom (Op. cit., p. 74) enxerga no romance histórico
latino-americano contemporâneo: “Com a narrativa histórica, o passado adquire uma
organicidade que propicia à visão do presente lidar com inquietudes e indagações, espelhá-las
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Referências
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor
Efetivo de Filosofia da Educação Básica 3 do Governo da Paraíba.
2
Misoginia, segundo Bloch, é o modo difamatório de falar sobre as mulheres, o que é diferente de fazer algo a
elas, embora o discurso possa ser uma forma de ação e mesmo de prática social, ou pelo menos um seu
componente ideológico. Uma tal distinção entre palavras e feitos, no que tange às relações entre os sexos, é o
fundamento necessário de uma compreensão dialética e política do fenômeno, historicamente inspirada, uma
compreensão de que outro modo permaneceria irremediavelmente emaranhada no literalismo de uma falsa
ideologia, um literalismo que se arrisca a tomar a diferença entre os gêneros sexuais, em vez do exercício
opressivo de poder por parte de qualquer um dos sexos, como a verdadeira causa histórica da injustiça social.
(BLOCH, R. Howard, Misoginia Medieval, 1995, p. 12).
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3
Les Lamentations de Matheolus: obra latina, traduzida em francês por Jean Le Fevre de Resoon, em 1724. A
edição mais recente da obra data de 1922, publicada pela editora Champio-Honoré.
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Desse modo, a autora em defesa da mulher, com grande habilidade, talvez inspirando-
se em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, Pizan ostenta , não o tema religioso, ou
místico, mas ilustra em sua Cidade das Damas, a boa reputação das mulheres, utilizando-se
de elementos históricos e lendários, trazendo à tona, a estética feminina, ressaltando também
temas morais, bíblicos, para justificar que a mulher considerada o “sexo frágil”, possui a
fortaleza da racionalidade e da inteligência equitativamente tanto quanto o homem,
desfazendo assim, a autora, a discriminação do sexo inferiorizado na literatura ao longo de
séculos na tradição literária.
O livro A Cidade das Damas, desenvolve um pensamento antimisógino de Christine
de Pizan desvencilhando-se do androcentrismo literário tão explícito na baixa Idade Média.
Christine de Pizan é considerada avant la lettre na história da literatura ocidental devido à sua
originalidade e coragem de escrever em defesa das mulheres em pleno medievo. Partimos da
indagação: até que ponto a narrativa de Pizan é uma resposta não só à sociedade misógina
medieval, mas também à nossa época contemporânea? A cidade das damas é um texto gerado
no ardor da transição medieval para o Renascimento. Podemos conceber com a meditação de
nossa autora que o seu pensamento antimisógino lança hoje luzes sobre as questões
contemporâneas acerca dos estudos de gênero em relação à crítica feminista.
Remontando-nos à Antiguidade, no tocante aos pontos de vista de Aristóteles (384-
322 a. C.) e Santo Agostinho (354-430) em relação às mulheres, constatamos que Christine de
Pizan foi uma leitora crítica e ávida desses pensadores apresentando em A Cidade das Damas,
seu descontentamento sobre a concepção da mulher escrita pelos filósofos, escritores e poetas.
Pizan pretende conceber nos textos de Aristóteles e Santo Agostinho uma filosofia isenta de
difamação das mulheres. Desse modo, não podemos separar o discurso filosófico do texto
literário, pois ambos estão imbricados sob um viés discriminatório acerca da mulher e sua
constituição física.
Christine de Pìzan como mulher e filósofa, ao utilizar silogismos e alegorias, afirma
uma filosofia hostil às mulheres, pois a própria filosofia antiga e medieval foi escrita por
homens eruditos e pensadores que retratam historicamente o androcentrismo literário
combatido por Pizan em A cidade das damas. A saber, os silogismos eram métodos de
dedução por meio de uma conclusão, a partir de duas premissas, por inferência lógica. As
alegorias eram recursos literários utilizado pelos autores antigos para representar idéias por
meio de imagens.
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acusação feita pelos pagãos em 410 de que os cristãos eram acusados do abandono do culto
aos deuses antigos na Roma pagã. Nesse intuito, o bispo de Hipona, empreende a defesa dos
cristãos apresentando uma série de argumentos sobre a natureza do bem e do mal e alega que,
embora a queda de Roma tenha sido considerada um mal, em contrapartida gerou de certo
modo um bem com a expansão do cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. Estes
argumentos foram apresentados para provar que os bens terrestres são perecíveis e que o
homem deve alçar sua fronte para o alto, para “A Cidade de Deus”, onde os bens espirituais
não perecem, e as virtudes cristãs e as boas obras são recompensadas e incomensuráveis.
Para Santo Agostinho, somente a providência de Deus é responsável pela glória de
Roma e não os deuses pagãos. Agostinho condena os pagãos pela idolatria dos deuses no
intuito de obterem bens materiais, e também os pseudos filósofos que justificam essas práticas
pagãs para assegurar aos infiéis a felicidade terrestre.
Considerando as reflexões acima, Christine de Pizan lança mão da estratégia
silogística para construir “A cidade das Damas”. O intuito de Pizan é confrontar os
sentimentos misóginos que cerceiam a humanidade desde o Gênesis, quando Eva na
concepção bíblica, desobedece as ordens divinas e levou Adão a pecar contra Deus. Tanto a
cidade de Santo Agostinho quanto a de Pizan falam de um lugar metafísico a partir de um
sentimento utópico que levará seus habitantes à felicidade plena. Esta concepção agostiniana
impulsiona Pizan a edificar A Cidade das Damas em um plano também elevado, a rigor um
lugar utópico e harmonioso garantido pelas três damas: a Razão, a Retidão e a Justiça.
A Cidade das Damas foi construída sobre alicerces sólidos, pois foi concebida com os
elevados princípios fortalecidos pelas três damas protetoras. Para Santo Agostinho, a cidade
terrestre (pagã), fundada no amor humano e no desprezo de Deus, não possui um ideal de
civilização, nem de felicidade em oposição à cidade de Deus. Para Pizan, a cidade das damas
opõe-se ao androcentrismo literário e à misoginia medieval empreendendo a edificação de
uma cidade em defesa das mulheres lutando pela visibilidade da mulher na literatura e na
sociedade.
Ademais, a tônica alegórica ganha forças logo no primeiro livro de A Cidade das
Damas, quando a narradora-personagem recebe a visita das três damas iluminadas a Razão, a
Retidão e a Justiça. Estas três damas vindas do trono de Deus, nos remetem à uma inevitável
comparação à civitate (divina) de Santo Agostinho, que se contrapõe à cidade terrestre.
Segundo Santo Agostinho, na cidade terrestre os homens se entregam aos vícios,
males morais e toda forma de concupiscência. Em oposição a este quadro, A Cidade das
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Damas, edifica-se sobre alicerces sólidos, uma vez que é simbolizada como uma construção
defensiva para as mulheres das mais altas estirpes considerando-se os variados contextos quer
sejam, o histórico, o bíblico e o literário.
De acordo com Deplagne (2012, p. 41), o termo “dama” utilizado por Pizan em sua
obra é fundamentalmente relevante e literariamente bem aplicado para distinguir que não se
trata de qualquer mulher que ela quer mencionar e/ou elogiar, mas de nobres damas, mulheres
guerreiras, virtuosas e sábias dadas a conhecer publicamente ao longo da história na obra de
Pizan. Na qualidade de dama e nobre, profundamente letrada e esclarecida, Pizan enalteceu a
mulher por meio de argumentos e de exemplos contundentes advindos de mulheres virtuosas.
Podemos, portanto referendar como nossas as considerações de Deplagne sobre a palavra
“damas” no título da obra A Cidade das Damas:
4
...todas vocês, que amam a glória, a virtude e a notoriedade, poderão hospedar-se; pois ela foi fundada e
construída para todas as mulheres honradas – as do passado, as do presente e as do futuro (PIZAN, 2012, p. 338).
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intuito de discutir o papel social e literário da mulher, refutando assim, a pseudo-imagem que
se criou em torno da mulher na Idade Média. Nesse sentido, O Roman de La Rose (1230),
poema francês medieval que alegoriza o amor, e constrói a imagem da mulher em uma escala
hierárquica inferior ao homem em todos os aspectos, fortalece a ideia de que a mulher foi a
porta de entrada de todos os males do mundo. (ALLEN, 2009, p.32).
No medievo, o poema Roman foi uma obra inacabada, mas teve ampla leitura e
divulgação à época. Ele falava do amor usando alegorias próprias daquele tempo. Pois, a
alegoria era uma figura de linguagem bastante recorrente na Idade Média. O livro é dividido
em duas partes e tem como autor Guilherme de Lorris, em 1230. Embora a mulher tenha sido
enaltecida através do L´esprit courtois nos romances de cavalaria com Lancelot e a rainha
Guenièvre, pelas lendas medievais como, Tristão e Isolda, vê-se em contrapartida que à
segunda parte do Roman, escrita por Jean de Meun cerca de 1275, assumiu um caráter
depreciativo da mulher diminuindo sua condição e o seu papel social feminino.
Totalmente imbuída do propósito de extirpar a hostilidade masculina contra as
mulheres na literatura, Pizan decide partir em defesa das mulheres através da literatura
epistolar. Utiliza-se das armas que dispunha, a inteligência e o conhecimento; deixando à
história das mulheres a utópica cidade das damas.
Christine de Pizan tem um papel decisivo em redefinir a memória da mulher na
literatura universal, buscando fontes históricas e literárias de autoras femininas em confronto
com o poder misógino antigo e medieval. Seu desafio é desconstruir a apologia de homens
autores nas diversas literaturas para enfatizar que a mulher também escreveu e tem sua
participação de certo modo, ofuscadamente, na contribuição livresca da arte da pena.
A narradora no seu projeto literário toma como base também o De mulieribus claris
(Sobre mulheres famosas), de Giovanni Boccacio, primeiramente publicado em 13745.
Embora tenha existido esse livro, com personagens femininas destacadas por esse autor, a
força impulsionadora do patriarcado, não permitiu a evidência das mulheres, caracterizando
assim, o preconceito em relação às mulheres e supervalorizando, como de praxe, a escrita
masculina na história da literatura. Nesse sentido, Pizan, elabora uma desconstrução desta
escrita misógina, para representar as mulheres em sua defesa que fora à todo custo relegada e
preterida pelo mundo livresco.
5
BOCCACIO, Giovanni. Concerning Famous Women (De mulieribus claris). Trad. E. J. Richards. London:
Allen & Unwin, 1964.
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Ah, Deus como é possível? Como acreditar, sem cair no erro, que tua infinita
sabedoria e perfeita bondade tinham podido criar alguma coisa que não fosse
completamente boa? Não é verdade que criaste a mulher com um deliberado
propósito? E, desde então, não lhe deste todas as inclinações que gostarias
que ela tivesse? Pois, como seria possível teres te enganado? (PIZAN, 2012,
p. 60).
Pizan indigna-se com Deus e desespera-se de ter nascido mulher e ser vitimada de
tantos preconceitos e escândalos face ao homem. “Que pena, meu Deus! Por que não me
fizeste nascer homem para que minhas inclinações estivessem a teu serviço, para que em nada
me enganasse, para que eu tivesse esta grande perfeição que os homens dizem ter?” (PIZAN,
2012, p. 60). Pizan lamenta-se de ter nascido mulher, de possuir um corpo feminino, que é
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Prezada filha, deves saber que a providência divina, que não faz nada ao
acaso, encarregou-nos de morar entre as pessoas desse mundo de baixo,
apesar de nossa essência celeste, para zelarmos na manutenção e na boa
ordem das leis convenientes aos diversos estados, e que fizemos segundo a
vontade de Deus, pois somos todas as três filhas de Deus e de nascimento
divino. (PIZAN, 2012, p. 64).
Vemos assim, em Pizan, as três damas como belezas morais, criadas diretamente por
Deus, e sendo femininas, residem nos meios dos homens norteando suas ações. Como pode
então ser afirmado pelos misóginos que a mulher é repleta de vícios se as fontes da beleza
moral emanam do próprio Deus? Eis o argumento da autora na sua obra.
Em suma, baseando-se nas leituras dos textos pertinentes a este estudo, veremos nos
dias de hoje que para o leitor contemporâneo mediante o discurso desconstrutor de Pizan
acerca do pensamento misógino, a mulher submissa aos ideais conservadores das sociedades
patriarcais ainda hoje sofre com o legado dos preconceitos misóginos. Apesar das
transformações da sociedade ao longo dos séculos, as iluminadas damas de Pizan perdem o
caráter extraordinário para darem lugar à mulher como sujeito inserido histórica e socialmente
na evolução das mulheres escritoras no fazer literário.
Referências
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A Literatura e o cotidiano
Dessa forma, o personagem literário, tal qual o homem que representa, ao abandonar
seus valores supremos e seus heróis como força representativa, como acontecia em épocas
anteriores, está diante do nada. Isso gera um estranhamento em relação a sua condição de
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existência no mundo, já que o ser humano já não coincide consigo mesmo, o mundo exterior
já não o representa mais. Isso o coloca frente a um universo de desilusão em que
são a continuidade dessa decadência. Abandonam a casa paterna, Raquel para ser prostituta e
Jeremias, para tocar saxofone num cabaré. Vivendo em meio à miséria, Jeremias funda uma
seita baseada na prostituição, na violência, na exploração infantil e no roubo. Com a ausência
dos filhos, Dolores assassina Ernesto com um tiro. Após cumprir pena pelo crime, retorna ao
casarão para vê-lo ser esvaziado por seu advogado que o vende em troca de honorários. Após
presenciar tal cena vai à procura dos filhos.
A obra Maçã agreste foi publicada em 1989 e inaugura uma nova fase da obra do
escritor Raimundo Carrero. Fase que se caracteriza pela ambientação dos personagens na
cidade do Recife e também por manter uma continuidade com as obras vindouras. As
personagens apresentadas nessa narrativa vão aparecer, muitas vezes, completamente
ressignificadas em obras escritas posteriormente. De forma, elas mantêm uma espécie de
intratextualidade que pode ser percebida num diálogo recorrente entre as obras, em alguns
casos, fatos que ficam obscuros num texto são elucidados em outro. Nesse sentido, destacam-
se, A minha alma é irmã de deus, Seria uma sombria noite secreta, O amor não tem bons
sentimentos e Tangolomango: ritual das paixões deste mundo. Nessas obras, personagens se
repetem, histórias são recontadas, mal entendidos são explicados. Tomamos como exemplo o
caso do assassinato de Ernesto, que em Maçã agreste fica meio obscuro, sendo esclarecido
melhor em O amor não tem bons sentimentos. Onde fica esclarecido que Dolores assassinou o
marido.
Esta obra foi caracterizada pelo jornalista, Carlos Menezes do jornal O Globo como
uma “sinfonia a cinco vozes”, pois “se impõe diante da violência, da crueldade e do cinismo
contemporâneos, e assim aprofunda e leva a conhecer melhor o abismo da condição humana”
(PEREIRA, 2009; p. 36). Trata de um personagem solitário em sua essência, que mesmo
quando está em meio a uma multidão sente-se só, o personagem Jeremias.
Em O delicado abismo da loucura, José Castelo caracteriza a obra de Raimundo
Carrero como uma escrita só lâmina, devido a sua configuração voltada a narrar, muitas
vezes, o lado obscuro do ser humano. O qual está sempre envolvido por uma espécie de
penumbra. Exemplo disso é o Judas de Sombra severa que vive com o rosto constantemente
escondido sob a aba do chapéu. Segundo Conceição (2004):
Pensava insistentemente na noite, nas duas noites, em que vagou pelas ruas
da zona em decadência, vazias, escuras e vazias, as mulheres paradas nas
esquinas, ostentando misérias e doenças, rindo, e rindo, e rindo sem dentes,
as mulheres implorando companhias, e ele andando, andando, andando, sem
conseguir parar, fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do
infinito. Rodopiando. Às vezes rodopiando pelo mesmo quarteirão, parava
junto de Alvarenga, em vigilância perpétua, e conversava, retirava-se sem se
despedir e continuava andando, fiel guarda da noite, incapaz de guardar a si
mesmo, ia até o princípio da ponte mas não conseguia atravessá-la, não
conseguia. Ali os pés chumbavam-se ordenando-lhe o retorno, e retornava,
era um desses cães perdidos, que farejam calçadas, cheiram o chão, mudam
de destino (CARRERRO, 1989; p. 213).
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Saí de casa, outro dia, ao anoitecer. Sem dizer nada a ninguém lamentava-me
por não ter permanecido no ventre de minha mãe para não ser obrigado a
assistir ao desespero do mundo, para não me ser imposta a visão de homens
e mulheres que vivem os grandes tormentos, que formam a contorção da
existência e que são incapazes de construir a estrada que nos leva à casa do
sacrifício (CARRERO, 1989; p. 29) (Grifo nosso).
Lamenta-se pelo fato de ter que presenciar o sofrimento do mundo. Um mundo em que
as pessoas estão famintas e desesperadas, se contorcendo em torno de sua própria existência.
Sem serem capazes de encontrar um caminho que as leve “à casa do sacrifício”, um caminho
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que conduza à salvação, que traga a esperança de dias melhores. Diante disso sagra-se profeta.
Afirma que sua missão é como um chamamento divino, que visa salvar da dor e da fome do
frio e do calor, da ira e da perseguição, os desvalidos que andam pelas ruas desnutridos e
desnudos. Cria uma seita e sai pelas ruas em busca de seguidores oferecendo falsos milagres.
É seguido por uma multidão de miseráveis que buscam livrar-se de seus males:
Considerações finais
de baixo meretrício. Como obra literária, o respectivo romance não busca desmerecer o valor
desses membros da sociedade. Apenas mostrar que eles estão na sociedade e fazem parte dela.
Apesar de serem mostrados como decadentes, não entendemos que haja alguma tentativa de
condená-los, mas de torná-los visíveis em sua condição ou forma/escolha de vida.
Referências
Caleidoscópio, 2009.
POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Histórias Extraordinárias. Tradução de P.
Nasetti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2000.
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O conto “A Bela e a Fera ou A ferida grande demais”, foi escrito por Clarice em 1977,
em seu último ano de vida, sendo publicada postumamente em 1979, depois de ser organizado
por Olga Borelli. Já a narrativa da escritora norte-america, Kate Chopin. “Emancipação: a
fábula da vida”2 foi escrita em 1869, no século anterior à obra de Clarice. Neste trabalho
usaremos como corpus os respectivos contos e analisaremos as alegorias presentes nas
narrativas em questão.
Clarice e Kate são conhecidas pelo grande repertório de contos que escreveram
durante suas carreiras literárias. Ambos os contos são bem fiéis ao gênero que se enquadram,
são narrativas curtas, com espaço e tempo bem delimitados, com poucos personagens. De
D’Onófrio define conto da seguinte forma: “O conto erudito distingue-se do romance e da
novela por ser uma narrativa curta. [...] Ele possui todos os ingredientes do romance, mas em
dose diminuta. O foco narrativo geralmente é único” ( D’ONÓFRIO, 1995, p. 121).
Como bem sugeriu Millet(1957) que “a fábula é uma narrativa alegórica que se terá
uma moralidade”, e complementa ainda sua definição da seguinte forma: “é afinal, uma
maneira agradável de explicar uma verdade, que de outro modo poderia chocar. A fábula
nunca deve desviar do seu objeto moral. Deve ser sempre a ilustração de um código de ética”
(MILLET, 1957, p. 27). É justamente o que ocorre nas narrativas estudadas, tanto no conto de
Clarice, quanto no de Kate Chopin, percebe-se esse caráter fabular que se manifesta com
intuito de transmitir uma moral, mas de modo mais discreto, através das alegorias.
Para explicitar e fundamentar melhor este trabalho, trazemos o conceito o seguinte
conceito de alegoria, definido por Kothe:
1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB
2
Tradução de Denise Mariné
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[...]o conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, escrito em 1977, traz
uma personagem feminina, Carla de Souza e Santos, tipicamente burguesa,
que ao deparar com a alteridade faz descobertas de si e constrói leituras
provocativamente poéticas e sociológicas da sua existência, das dos seus
supostos “semelhantes” e do diferente. O leitor se depara com o que há de
mais humano e ou inumano nas pessoas. (FROES, 2010, p.4)
Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta parou diante dela e
disse:
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
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A partir deste encontro com o mendigo, Carla começa divagar e refletir sobre sua vida.
De acordo com as palavras de Marli Silva Froes:
“Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi
esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo
pelo amor de Deus que me achem bonita, aceitável, e minha roupa de alma
está maltrapilha” (LISPECTOR, 1999, p. 103.)
(CHOPIN, 2011, p. 70). A alegoria do animal enjaulado não representa somente a liberdade
de um ser que passou muitos anos preso. A alegoria está justamente nas estrelinhas, no que
não é dito diretamente. De acordo como Marcela Silvestre significa:
Referências
CHOPIN, Kate. Emancipação: uma fábula da vida. Trad. Denise Mariné. In: BROSE,
Elizabeth, R. Z. ; CARDOSO, B. M; VIEGAS-FARIA, B. (orgs). Kate Chopin: contos
traduzidos e comentados – estudos literários e humanidades médicas. Porto Alegre: Casa
Editorial Lumiara, 2011
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1 – prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo:
Ática, 1995.
FRÓES, Marli Silva. A Bela e a fera ou A ferida grande demais: da perplexidade produtiva e
de quando o texto literário é arquivo. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina
/files/2010/01/Marli-Silva-Froes.pdf. Acesso em: 13 Out. 2014
KOTHE, Flávio R. A alegoria. SP: Ática, 1986.
LISPECTOR, Clarice. A Bela e a fera ou A ferida grande demais. in: A Bela e a Fera. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p. 95- 105.
MILLET, Sergio.Obras primas da fábula universal- seleção introdução e notas. São Paulo:
Martins Fontes, 1957
OLIVEIRA, Luciene Guimarães. “A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais”, de Clarice
Lispector: transtextualidade e transcriação. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.
br/index.php/emtese/article/view/3694. Acesso em: 13 de outubro de 2013
SILVESTRE, Marcela. Fábula da emancipação . In:KNOP, Márcia e GUERRA, Henrique.
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Iniciação a Kate Chopin (tempo e espaço). In: BROSE, Elizabeth, R. Z.; CARDOSO, B. M;
VIEGAS-FARIA, B. (orgs). Kate Chopin: contos traduzidos e comentados – estudos
literários e humanidades médicas. Porto Alegre: Casa Editorial Lumiara, 2011.
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À Guisa de intuição
Ao introduzir-se nos campos de estudos literários, este trabalho tem por finalidade
abordar as questões da bestialogia e da precocidade nas formações das poéticas de Augusto
dos Anjos (1884-1914) e de Arthur Rimbaud (1854-1891). A partir do entendimento de que
criações elaboradas por poetas muito jovens, em formação de caráter, ambos tendo começado
a escrever muito cedo, ainda na infância, e escrito a maioria de suas mais importantes peças
sem sequer haver atingido a maioridade, ou pouco mais que isso. E lê-los sob a ótica da
poesia bestialógica que, como quis Massaud Moisés: “A poesia bestialógica ou pantagruélica,
jorrando das profundezas do subconsciente ainda mal desperto, se destinava ao riso
inconseqüentemente estúrdio e as fugas sem retorno.” (MOISÉS, 1983).
Veremos entre os conceitos que guiaram a formulação do trabalho, os de precocidade e
de bestialogia, que definem-se por:
a) Precocidade: característica ou estado do que é precoce.
a.1) Precoce: 1- que frutifica ou amadurece antes do tempo normal ou antes dos demais;
temporão. 2- que acontece muito cedo para os padrões normais, prematuro, antecipado,
extemporâneo. 3- que muito cedo demonstra capacidades ou habilidades próprias de crianças
mais velhas ou de adultos.<músico p.><gênio p.> (HOUAISS, 2001, p. 2282)
b) Bestialogia: ato ou capacidade de proferir bestialógicos.
b.1) Bestialógicos: 1- sem nexo, estapafúrdio, asneirento, disparatado. 2- escrito, discurso ou
afirmação cheia de absurdos ou asneiras, béstia. (HOUAISS, 2001, p. 439)
Na literatura, o bestialógico ou pantagruélico é um tipo de poesia cujos versos não têm
nenhum sentido aparente, ainda que bem metrificados, se utilizam do burlesco, do satírico, do
nonsense, do tom grotesco, da poética do absurdo; remontam à sátira menipéia e têm suas
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sementes plantadas no Brasil pelo poeta Bernardo Guimarães, da segunda geração de poetas
românticos.
A ideia central deste trabalho é fazer ver, através da análise dos estudos da fortuna
crítica de Augusto dos Anjos, elegendo o de Fausto Cunha, - que é, aliás, o único estudioso a
sugerir a possibilidade de estudos das obras destes dois vates, a partir da perspectiva da
bestialogia: “A interpretação do bestialógico augustiano como intencional viria colocá-lo num
grupo extraordinário, onde já se encontram Artaud e Jarry, e o aproximaria ainda mais de
Baudelaire, de Verlaine, de Rimbaud.” (CUNHA, p. 168).
De maneira geral intencionamos, dentro da questão da precocidade, destacar as
semelhanças entre ambos no que concernem questões de caráter pessoal e extrínseco às
obras, sem, entretanto, explorar os desdobramentos de caráter psicanalítico, por entendermos
não ser esse o intuito deste trabalho.
Devemos lembrar que Rimbaud viveu muito próximo de uma casta de poetas
excepcionais; tão próximo, que manteve, por anos, relação homoafetiva com o grande poeta
Paul Verlaine. E que, ainda em Charleville, sua cidade natal, teve a influência do amigo,
professor e poeta Georges Izambard. Somado a isso, temos a ascensão e a flanerie ou
“perambulação criativa”, como defino, por Paris, em uma época riquíssima de criação
artística.
Em contraponto, a formação quase que espontânea da poética de Augusto dos Anjos,
que teve na figura do pai, o Dr. Alexandre, um amante das letras, as primeiras influências e
estímulos em direção à literatura, sobretudo, no tocante à possibilidade de acesso a jornais
vindos periodicamente da Europa trazendo resumos dos mais variados assuntos, incluindo, é
claro, poesia.
Muito embora ambos estivessem perdidos, como tratou Edmund White (2010), sendo
um em sua “cidadezinha sonolenta, isolada do grande mundo”; o outro, em um engenho
decadente no sertão de uma Paraíba do Norte em fins de século; pontos em comum costuram
e descosturam as vidas dos dois poetas.Todavia, a linha que os une não é uma linha invisível e
não se precisa de muito para lê-la e percebê-la. Sobre o poeta francês e a a vida dupla de um
rebelde, Edmund White (2010), nos diz “o certo é que Rimbaud, mesmo antes dos dezesseis,
estava tentando se lançar ao mundo.” (WHITE, 2010, p.35).
Por sua vez, Augusto, aos quinze, já viajava com frequência à capital do estado e
começava a sua sempre difícil relação com a intelectualidade local.
Vale destacar que Augusto dos Anjos foi um flâneur à sua maneira, pois ao pensarmos
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que, se à época, um jovem sair de sua cidade natal para alçar estudo em alguma capital era
algo corriqueiro, e ele o fez, indo estudar direito no Recife aos dezenove,. Daí a se ultrapassar
as fronteiras do nordeste de um país continental, se arriscar na “Paris brasileira”, o Rio de
Janeiro, e assim como Rimbaud, não encontrar significativo apoio... Pode-se calcular grande
distância e notar uma disposição de espírito, ainda infinita e socialmente menos adaptável que
a de Arthur, mesmo assim pouco comum aos jovens de sua época.
Já em 1870, aos dezesseis, Rimbaud dizia ao amigo Delahaye que iria escrever em
uma linguagem nova, inventada: “Para criar uma linguagem poética que fale de todos os
sentidos, vou pegar palavras dos vocabulários eruditos e técnicos, de línguas estrangeiras, de
onde for possível...” (WHITE, 2010, p.33).
Não podemos nos furtar de lembrar que essa linguagem nova, técnica e cientificista foi
a pedra de toque da poesia de Augusto. E é essa a mesma pedra que a grande maioria da
crítica de sua época, e ainda depois, não cansou de jogar sobre o poeta do Eu.
Entretanto e entre tantos, alguns poucos conseguiram destarte captar a essência de sua
poesia. Em 1912, ano do lançamento do livro, uma das poucas vozes de peso, o ilustre
Hermes Fontes, se levantou a favor do poeta: “É um trabalho de fôlego novo e de feitio
moderno(...) Todo o livro está cheio de dessas curiosidades, desse alvoroço de idéias novas,
harmonias novas, aspirações novas” (FONTES, 1994, p. 50).
Quero ainda citar afirmações do estudo “Origens de uma poética”, de Alexei Bueno
(2004), a respeito dos poemas de Augusto; em que se diz
Mas em que me baseio para afirmar que existe no poeta do Eu, elementos
que antecipam a linguagem moderna da poesia brasileira? Para responder
essa questão, devo primeiramente esclarecer o que entendo por poesia
moderna ou nova linguagem da poesia.
O abandono das formas clássicas do poema - a estrofe regular, o verso
metrificado, a rima obrigatória(...) Para conseguir isso, o poeta moderno
lança mão de uma série de recursos que constituem as características de sua
nova linguagem: construção sintática inusitada, ruptura do ritmo espontâneo
da linguagem, choque de palavras e de imagens, enumeração caótica,
mistura de formas verbais, coloquiais e eruditas, de palavras vulgares com
palavras poéticas, etc.
Alguns destes recursos foram utilizados por Augusto dos Anjos (GULLAR,
1978).
Desmistificando o envolvimento
1
Sabe-se que em vida, Rimbaud publicou às custas de sua mãe um só livro, o volume Uma temporada no
inferno, por um editor belga. O volume Iluminações foi posteriormente publicado por Verlaine. Na ocasião,
Rimbaud se [des]encontrava em algum lugar da África, sendo por seus conterrâneos considerado morto, antes de
morrer, o que ocorreu vias de fato em 1891.
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Lembrando que o poeta francês escrevera toda sua obra entre os quinze e os dezenove
anos, e depois literalmente, sobremaneira literariamente; a abandonou. O que reforça, em
meu entender, a questão da precocidade em Rimbaud, ao pensarmos que tal produção seminal
tenha se dado em tão tenra idade. O mesmo pode valer para Augusto, que teceu, com apenas
dezessete anos., seu “Versos íntimos”, poema que o alçou para um lugar entre os cem
melhores da história de nossa literatura, popularizou e eternizou-o.
Dentre outras similaridades curiosas e pouco estudadas, há também o fato de haverem
publicado seus primeiros poemas quando ambos tinham exatamente quinze anos. Rimbaud
com seu “A consoada dos órfãos”, em La Revue pour Tous, em 1870 e Augusto, o soneto
“Saudade”, no Almanaque do Estado da Paraíba, no ano de 1900. E mais: a de terem em vida
publicado um só livro: Saison en Enfer, de Rimbaud , em 1873; e Eu, de Augusto dos Anjos,
em 1912.
E pode-se ainda, cogitar como uma possível origem psicológica da poética de ambos, -
e o viés psicanalítico deste estudo se estende até aqui- um rancor não declarado por suas
mães, por terem ambas um caráter severo, tido como quase ditatorial.
Exemplo disso é o que se especula sobre o primeiro grande amor de Augusto, a Srta.
Amélia. Augusto apaixonara-se por essa moça e a engravidara. Sinhá mocinha, como era
chamada a mãe de Augusto, mandara alguns capatazes darem um corretivo na moça que
perdeu o filho e veio a falecer. Em outra versão da história, a srta. acabou simplesmente se
casando com um outro rapaz da região dada a proibição do relacionamento pela mãe de
Augusto.
Segundo Filho (1997), “reporta-se a José Lins do Rego, quanto a um depoimento em
que o afamado romancista admite haver o poeta escondido 'uma mágoa secreta, um rancor
que não confessa, contra a própria mãe'” (FILHO, 1997).
Não me parece que se possa comprovar qual seria a verdadeira versão, fato é que
mesmo tendo mantido até o fim de sua vida estreita correspondência com a mãe, haveria de
ter ficado com este ocorrido, mesmo que a simples interdição, eternamente magoado o
coração sensível do poeta.
Em Rimbaud, podemos dizer, a título de ilustração, que em seus últimos dias foi
praticamente extorquido pela mãe, que comprou terrenos com grande parte do dinheiro que
ele juntou em dez anos de trabalho na África. E que foi deixado pela mãe aos cuidados da
irmã, no leito de morte, pois a mesma alegava ter negócios inadiáveis a tratar na ocasião. O
que por si só demonstra a distância que ambos guardavam entre si, sob a máscara de um bom
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Depois dos dezessete anos entrou noutro regime de leituras, isto é muniu-se
de Darwin e Haeckel, Nietzsche, Spinoza e Max Nordau, devorando tudo
quanto eles escreveram. Rousseau e Renan, os poetas franceses e
portugueses, anjos do céu e anjos infernais, Rimbaud e Leopardi, nada ficou
sem passar pelos seus olhos, lendo, apreendendo e interpretando com
inteligência sutil (VIDAL, 1967).
Os dois poetas guardam ademais inúmeras semelhanças, como, por exemplo, uma
curiosíssima que percebi no acaso da pesquisa e de leituras comparativas, e que no meu
entender, aproxima-se de uma prova quiçá cabal à filiação de Augusto dos Anjos à Arthur
Rimbaud, se não a de uma influência direta e inequívoca entre eles.
Em um poema rimbaudiano intitulado “H”; de Iluminações, me deparei no penúltimo
verso com a seguinte frase: “L´hydrogène clarteux!”, a qual, em uma tradução literal, ter-se-ia
como: “O hidrogênio luminoso!”
Lemos no conhecido poema Augustiano, “Solilóquio de um visionário” (ANJOS,
1963, p.92), o famoso verso:
Vemos aqui uma quase tradução literal feita por Augusto, que por uma questão
bastante evidente de manutenção da rima, incandescente / improficuamente, optou por
traduzir “Clarteux”, por “incandescente”, palavra que é perfeitamente cabível como opção de
tradução a “luminoso” e que se encontra no mesmo campo semântico.
Há ainda outra, se não coincidência, que é com relação ao que Montgomery (1996)
chamou de “quantidade excessiva de exclamações, reticências e travessões” na poesia de
Augusto. Podemos também observar, sobretudo na prosa poética de Rimbaud um uso
“exagerado” dos mesmos três elementos. Questão ainda que por muito interessante, está mais
ligada ao campo dos estudos linguísticos e que pretendo neste apenas citar como mais um
elemento de aproximação estilística e estética (MONTGOMERY, 1996, p. 58-68).
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Como é sabido, e ainda em Fabiano Santos (2009), a influência francesa foi uma
determinante para o desenvolvimento do romantismo no Brasil. Entretanto nossos poetas
herdaram dos franceses características mais ligadas ao nacionalismo e ao civismo, não
desenvolvendo as características mais contestadoras que o movimento apresentou. Talvez
somente a partir de meados de 1850 podemos perceber o surgimento de uma poética de
inspiração grotesca, com Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa,
segundo Antonio Candido (1993).
Como atesta o próprio nome “Pantagruel”, o gigante glutão, advém do ciclo de
narrativas de François Rabelais e trata-se de uma poesia que busca no absurdo, no
escatológico, na blasfêmia e no grotesco os elementos de sua poética.
Podemos doravante afirmar que ambos tenham se influenciado por sua vez pelas
conhecidas baladas grotescas de tradição anglo-germânicas de escritores mundialmente
famosos como Rabelais, Goethe e Hoffman. Todavia é inegável que foram sobremaneira
influenciados pelo, dentro da tradição moderna, incontornável Baudelaire.
Ao transportarmos tais impressões à poesia de Augusto, filiando-o como herdeiro de
Cruz e Sousa, vemos que a influência do grotesco, ou pantagruélico, de Bernardo Guimarães,
neles, segundo Fabiano Rodrigues, é de linha completamente diferente, uma vez que temos
em Bernardo algo mais próximo do viés cômico e, por sua vez, burlesco.
No caso das poéticas de Cruz e Sousa e Augusto, por sua vez, lemos um grotesco de
caráter mais sério, pessimista e introspectivo, com, pode-se dizer, um fundo mais psicológico,
trágico e próximo ao sublime.
Segundo Antonio Candido (1993):
O que restou dela (da poesia pantagruélica) é muito pouco, ou quase nada.
Tratando-se de um discurso heterodoxo, os seus próprios praticantes não lhe
davam importância prática, como advogados, magistrados, funcionários,
parlamentares, diplomatas ou simples chefes de família, punham de lado as
provas de loucura da mocidade e com certeza destruíram, como fizeram com
a poesia obscena, que jamais pensariam em assim assumir, muito menos
publicar, o que aliás seria impossível no tempo. Só Bernardo Guimarães,
bem menos convencional, guardou, publicou ou deixou reproduzir
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Conclusão
Referências
BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos - Obra completa. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1994.
CANDIDO, Antonio. A poesia pantagruélica. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
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Cidades, 1993.
COUTINHO, Afrânio. Brayner, Sônia (Orgs). Augusto dos Anjos: Textos Críticos. Brasília,
INL, 1973.
CUNHA, Fausto. Augusto dos Anjos – Obra completa.
FILHO, Antônio Martins. Reflexões sobre Augusto dos Anjos. Vol. XV. Coleção
Alagadiço Novo. 1997. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/amartins01c.html>
Acessado em 25/04/2013.
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Toda Poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.15-60.
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Vol. único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp.116-127.
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WHITE, Edmund. Rimbaud: A vida dupla de um rebelde; Marcos Bagno; São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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RICOEUR E A TRADUÇÃO
Introdução
Essas discussões legadas pelos romanos deram origem a uma das duas abordagens (a
normativa e a descritiva) surgidas ao longo da história, com as quais já se estudou a tradução,
qual seja àquela que preconizava a maneira como cada época via ser adequada à ação de
traduzir: a abordagem normativa. Enquanto essa primeira teorização tomou força e se
universalizou na Europa durante a Renascença, a abordagem puramente descritiva do
processo tradutório só viria efetivamente a surgir na segunda metade do século XX. Nesta
nova abordagem, julga-se que a tradução é uma matéria demasiado complexa para poder ser
regulada por regras simplistas e impressionistas que arbitrem erros e acertos (LEFEVERE,
2002, p. 9). É de interesse assinalar que foi nesses dois períodos, Renascença e
Contemporaneidade, que também se deram os maiores crescimentos exponenciais no volume
de traduções publicadas no mundo ocidental (BERMAN, 1988, p. 23), o que explica e
justifica os surgimentos dessas tentativas de teorização.
Um dos primeiros a empreender um estudo sistemático da Teoria da Tradução num
padrão descritivo científico, conforme se entende contemporaneamente, foi Antoine Berman
(1988), no seu artigo intitulado De la Translation à la Traduction. A escola francesa de
teóricos, que se formaria a partir desse marco inicial, buscaria compreender a tradução como
esta se faz, do ponto de vista do tradutor e do processo (re)criativo envolvido no ato de
traduzir.
É no esteio dessa escola que aventa Ricœur o seu opúsculo Sur la Traduction, sobre o
qual se debruçará brevemente este trabalho, para tecer alguns comentários acerca do
fenómeno da tradução a partir do tratamento que lhe é dado pelo teórico.
O próprio e o alheio
A tradução perfeita
Entretanto, continua-se a ver um texto B chamar-se pelo nome dum texto A, ser lido
como se fosse o texto A, ser dito como sendo o próprio texto A. E é nisso que subsiste aquilo
a que Ricœur (2004, p. 11) chama «o fantasma da tradução perfeita»: um sonho de que uma
tradução poderia ser o original duplicado — sonho que traz consigo (como subproduto)
também o medo de que a tradução, por ser isso mesmo, só poderia ser uma má tradução. Isso
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porque se deseja que o produto da tradução seja diáfano (apresentando-o como não se
tratando senão de uma transposição incólume da mensagem original), mesmo que as suas
caraterísticas sejam, todavia, bem mais prismáticas do que parecem. O ato de traduzir
significa decompor o texto original, eleger as feições que se afigurem transmissíveis, para
enfim compor um outro texto, em outra língua, voltado para outro interlocutor (via de regra,
em outro lugar e outro tempo), que será usado para outros fins. É de se esperar que, nesse
processo, haja uma relocalização discursiva, causada intencional ou inadvertidamente pelo
agente tradutório. E, numa análise que procure erros e acertos, o próprio ato de reescrever o
texto descarateriza-o como idêntico ao original.
Mas a tradução carrega uma aura de messianidade: Ricœur (2004, p. 18) cita
novamente Walter Benjamin com a sua ideia de que o próprio processo tradutório traz em si a
esperança fetichista num caráter salvífico, no qual é necessário que se acredite para que se
possa aliviar a tensão produzida pela receio de não nos entendermos uns aos outros quando
nos inserimos em diferentes sistemas linguísticos.
O dilema da tradução é, assim, o de que: ou as diferentes línguas têm uma
heterogeneidade irreconcilíavel entre elas (e, portanto, a tradução é, em teoria, impossível), ou
existe um fundo comum subjacente que explica e possibilita o facto da tradução. A primeira
alternativa, a da intraduzibilidade, segundo Ricœur (2004, pp. 27-28), é a única conclusão que
decorre da linha de pensamento linguística protagonizada por Sapir e Whorf, a qual insiste
sobre o caráter não imbricável dos sistemas linguísticos. A segunda alternativa advém da
constatação da realidade de que a tradução é, sim, praticada e, portanto, é preciso que ela seja
praticável. Essa possibilidade implicaria, para Ricœur, na existência de estruturas profundas
ocultas que seriam ou o resquício duma língua primeva (e aqui remete-se novamente ao mito
de Babel) ou códigos inatos a priori, universais semânticos transcendentais que podem ser
reconstruídos.
A procura por esse fundo comum deveria levar, destarte, à língua originária, cuja
reconstituição forneceria a linguagem universal das linguagens. Essa quimera seria o único
parâmetro infalível para mensuração e auferição do êxito do processo tradutório. Nada menos
que a possibilidade da tradução perfeita. E isso é o que está na raiz do conceito de absoluto
literário (RICŒUR, 2004, p. 16), esse terceiro texto contra o qual se poderiam verificar as
correspondências entre a língua de chegada e a língua de partida. Na falta dele, somente se
pode dar lugar ao trabalho de luto de que já se falou aqui. Nas palavras de Ricœur (op. cit., p.
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1 O que se pode traduzir por: «abandonar o sonho da tradução perfeita continua a ser a confissão da diferença
infranqueável entre o próprio e o estrangeiro».
2 O que se pode traduzir por: «não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes não são
equivalentes, as construções de frases não veiculam as mesmas heranças culturais».
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enunciado, mesmo aquele cujo referente seja fisicamente indutível (QUINE, 1970, pp. 178-
180).
Pode-se por isso afirmar que há sutilezas consideráveis no jogo tradutório, e que a
licença social que o tradutor tem de não ser visto como o Eu do texto traduzido (PYM, 2010,
p. 5) é ilusória e lhe permite liberdades potencialmente perniciosas. Não é simples verificar
até que ponto um texto traduzido coaduna com a formação discursiva do texto-fonte e em que
momento ele passa a convergir em outro discurso, exclusivo do tradutor. Esse fenómeno
torna-se mais claro, principalmente, quando se leva em consideração o dito de Bakhtin (2003,
p. 311) que a reescrita de um texto (com isso entendendo-se a sua retomada, repetição e afins)
perfaz «um acontecimento novo e singular na vida do texto», em que se acresce e reconfigura
a cadeia discursiva a que pertence.
O ato de repetir (ou de tentar repetir, por meio da reordenação das palavras a que se
chama tradução) determinado texto em outra língua que não a sua original é, sem dúvida, um
«acontecimento novo e singular na vida do texto» e, como tal, seria estranho imaginar que
conseguisse isentar o produto de qualquer infusão de outros valores e interpretações. Seria
idealizar o tradutor como dotado de uma passividade em cuja existência não há razão
nenhuma parar crer (HERMANS, 2007, p. 84).
Conclusão
Referências
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Paulo: Martins Fontes, 2003.
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Introdução
O mangá tal como o conhecemos hoje encontra sua origem nas xilogravuras do
período Heian (794 – 1185 d. C.) no Japão (NAGADO, 2011, p. 11). As ilustrações eram
caricaturas e tinham cunho humorístico. O trabalho mais antigo conhecido é o Chōjū-giga
que, através de imagens de animais com atributos humanos, caricaturava a sociedade da
época, além de retratar o ofício dos sacerdotes budistas. No século XX Osamu Tezuka, ou o
“Deus do Mangá” como ficou conhecido, foi o responsável pelo impulso dado à publicação de
mangá no Japão pós-guerra.Shin Takarajima (1947), sua primeira obra publicada, vendeu 500
mil cópias (SATO, 2005, p. 33)e a partir dela houve uma revolução no modo de fazer
quadrinhos no Japão. De fato, Tezuka introduziu técnicas cinematográficas em seus desenhos,
além dos “olhos grandes” dos personagens, hoje, uma das principais características dos
mangás.Com a economia abalada e o trauma da guerra ainda tão próximo, os mangás serviam
como um meio de abstração para os japoneses (FONSECA, 2011, p. 240).
Atualmente os mangás e os animês (animações, geralmente adaptações de mangás)
têm um grande impacto na economia japonesa. Os animês são responsáveis por 90% da
exportação televisiva do Japão (SUZUKI, apud. COOPER-CHEN, 2011). E estima-se que o
mangá Dragon Ball,da autoria de Akira Toriyama, publicado entre 1984 e 1995, vendeu mais
de 200 milhões de cópias somente nos países ocidentais (COOPER-CHEN, 2011).Pode-se
assim dizer que a grande difusão de mangás e animês serve como elemento propagador da
cultura japonesa no mundo.
Os mangás chegaram ao Brasil através dos imigrantes japoneses sob a forma de
edições importadas na língua original, servindo como ponte entre os imigrantes e seu país de
origem (FURUYAMA, 2008, p. 28). Desse modo, os habitantes das comunidades nipônicas,
mesmo longe, conseguiam manter uma ligação com o Japão, visto que os mangás, muitas
1
Bolsista Capes
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2
Disponível em: http://www.editorajbc.com.br/2014/04/04/sailor-moon-finalmente-chega-ao-brasil/ Acesso em:
10 de outubro de 2014.
3
Disponível em: http://www.genkidama.com.br/gyabbo/2014/06/02/kuroko-no-basket-e-confirmado-pela-
editora-panini/ Acesso em: 26 de setembro de 2014.
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Lawrence Venuti (2002) afirma que a tradução tem o poder de formar identidades
culturais, ou seja, ela orienta o modo como o leitor estrangeiro vai apreender e então se
relacionar com a cultura que o texto original transmite. Em algumas traduções o texto
traduzido tende a se afastar do original para que possa se “acomodar” à cultura de chegada. A
tradução também é criadora de estereótipos. Para Venuti, “a longo prazo, a tradução penetra
nas relações geopolíticas ao estabelecer as bases culturais da diplomacia, reforçando alianças,
antagonismo e hegemonias entre as nações” (Ibid., p. 130).
Na tradução de mangás, tanto o texto traduzido como também as imagens reforçariam
o modo como o leitor da cultura de chegada percebe a cultura de partida. Em nosso
entendimento, o leitor de chegada, através da leitura, é exposto a vários elementos da cultura
japonesa. Relações de gênero, modos de falar e de se portar em público, transparecem nas
narrativas, fazendo com que o leitor absorva esses elementos como uma “regra” de vida, ou
mesmo uma realidade concreta da cultura de partida, já que alguns deles são recorrentes em
vários mangás. Assim, por exemplo, o modo de tratar as pessoas mais velhas, ou o simples
fato de os personagens tirarem seus sapatos antes de entrar em casa. As falas e as imagens não
somente passam ao leitor um pouco do modo de vida naquela cultura, mas também
contribuem para a criação de estereótipos. Longe de ser somente um modo de abstração, a
leitura de um mangá (ou a visualização de animês) reflete uma cultura que tanto difere da
nossa, levantando questões referentes a diferenças culturais, representações do outro e criação
de estereótipos.
Como exemplo, teríamos a utilização dos honoríficos. A grande maioria dos mangás
traz em sua narrativa alguns honoríficos usados no dia adia do povo japonês e que, mais do
que polidez, determinam e demonstram a posição hierárquica entre os personagens, bem
como o grau de relacionamento entre eles. Entendemos que, através dos honoríficos, o leitor
da língua de chegada pode entender melhor as relações interpessoais na sociedade
nipônica.Sobre os honoríficos, o site da embaixada japonesa no Brasil afirma:
No contexto dos mangás e animês, são mais comuns os honoríficos san, chan, kun,
senpai, sensei e sama.5 De acordo com informações extraídas do site TVtropes.org:
San (さん) é o honorífico mais usado já que pode ser empregado tanto para homens como
para mulheres. Seria o equivalente ao nosso “senhor”, “senhora”, “senhorita”.
Chan (ちゃん) é usado geralmente para se referir a meninas, também servindo para a
composição de apelidos. O honorífico kun (くん) é usado para tratar de pessoas do sexo
masculino, podendo ser utilizado por superiores para se referir a seus subordinados,
homens ou mulheres.
Senpai (先輩; せんぱい)seria o nosso “veterano” e é usado para se referir a pessoas que
são mais velhas que o interlocutor, não propriamente na idade, mas pessoas que, por
exemplo, estão trabalhando há mais tempo em alguma empresa.
Sensei (先生) geralmente se refere a professores, mas também pode se referir a escritores,
por exemplo, os mangakás (autores de mangás) são tratados por sensei. Sama (さま) é um
honorífico que demonstra um grande respeito por parte do interlocutor.
Todos os honoríficos citados acima são sufixos e são inseridos após o sobrenome da
pessoa a quem o interlocutor se refere (ex: Hyuuga-san, Kuroko-kun). Senpai e sensei são
honoríficos que acompanham o sobrenome, mas também podem ser usados sozinhos, dentro
de determinado contexto. No Japão, tratar uma pessoa pelo nome de “batismo” ou “nome
dado” releva uma grande intimidade entre os interlocutores; quando não houver essa
intimidade, deve-se sempre utilizar o sobrenome seguido do sufixo san.
Tendo em mente os honoríficos e o modo como as relações interpessoais são
apresentadas por meio deles, buscamos observar de que forma, na tradução, as editoras de
mangás no Brasil lidam com essa questão. Separamos, então, para a análise, as traduções dos
mangás Sailor Moon e Kuroko no Basket, das editoras JBC e Panini respectivamente, que
constituem modelos diferentes no que diz respeito à tradução (ou não) dos honoríficos. Nas
obras analisadas encontramos duas estratégias tradutórias distintas: a domesticação e a
4
Disponível em: http://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/linguajaponesa.html. Acesso em: 10 de setembro de
2014.
5
Disponívelem:http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/UsefulNotes/JapaneseHonorifics?from=Main.JapaneseHo
norifics. Acesso em 10 de setembro de 2014.
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de um grupo de garotas adolescentes que, com poderes especiais, buscam salvar a terra do
mal.
Em linhas gerais, as traduções da editora JBC tendem a seguir um modelo mais
domesticador. Em Sailor Moon, vemos uma tentativa de “acomodação”, na qual alguns
aspectos da cultura japonesa são deixados de lado para que a cultura brasileira venha à tona.
Essa domesticação é mais evidente na tradução dos honoríficos. Sufixos tais como san
são,por vezes, adaptados à cultura de chegada e, em outros casos, os honoríficos são excluídos
da tradução. Vejamos um exemplo.
Na imagem apresentada (fig. 1), a protagonista Usagi Tsukino interage com sua
professora e seus colegas de classe. A professora que aparece reclamando no primeiro
quadrinho chama Usagi de Tsukino-san. Mais abaixo vemos uma interação entre Usagi,
Umino (o menino de óculos) e Naru (a menina com um laço de fita nos cabelos). Usagi se
refere a Umino sem honoríficos o que, em determinados contextos, pode ser explicado por
certa inimizade entre os personagens, mas em Sailor Moon essa omissão do honorífico pode
indicar um maior grau de amizade entre eles, pois vemos no mangá que Umino é amigo de
Usagi, embora às vezes ela o ache irritante. Por sua vez, Umino se refere à protagonista como
Usagi-san. Embora Usagi seja o seu “nome de batismo”, com a adição do san o tratamento
torna-se mais formal e não tão “íntimo” como seria se somente Usagi fosse utilizado. A
melhor amiga de Usagi é Naru Osaka, que é tratada por Naru-chan. Novamente vemos o
primeiro nome junto com um sufixo, desta vez demonstrando a proximidade entre as
personagens.
Na edição da JBC, Tsukino-san foi traduzido como senhorita Tsukino. Na fala do
personagem Umino, não há presença do honorífico san, e Naru-chan é somente Naru. Ao
longo da narrativa, a tradução adapta alguns honoríficos (san é traduzido como senhor,
senhora ou senhorita, dependendo do personagem) ou até mesmo exclui alguns, como no caso
de Naru. Entretanto, percebemos que a exclusão dos honoríficos não impede o leitor de
compreender o mangá como um todo, pois no desenrolar da ação é possível perceber os
diferentes graus de relacionamento entres os personagens, mesmo sem a presença (ou com a
adaptação) dos honoríficos.
Um exemplo da não tradução dos honoríficos se encontra no mangá Kuroko no Basket,
da editora Panini. O mangá mostra os desafios de um time de basquete que luta para ser o
melhor entre todos os outros do Japão.
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Conclusão
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Original aqui no que tange o modo de leitura, poisna tradução os honoríficos são transcritos da língua japonesa
(hiragana, katakana ou kanji) para o romaji, que seria a transcrição fonética para o nosso alfabeto.
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As duas traduções aqui analisadas mostram como essas editoras administram alguns
aspectos culturais da narrativa. Em linhas gerais, podemos afirmar que há um equilíbrio no
quesito domesticação e estrangeirização. Por exemplo, a manutenção do modo de leitura
oriental já constituiria uma estratégia estrangeirizadora. Já o tratamento dado aos nomes, tanto
dos autores na capa do mangá, quanto dos personagens, segue certa domesticação, pois no
Japão o nome de família aparece antes do “nome dado”, ao passo que na tradução essa ordem
não foi mantida. Então a personagem Usagi Tsukino, no texto traduzido, é Tsukino Usagi no
original, assim como Tetsuya Kuroko é Kuroko Tetsuya. Nesse caso, se as editoras tivessem
optado por deixar os nomes na ordem oriental, o leitor teria uma visão de como a cultura
japonesa é organizada nesse aspecto, acentuando, assim, as diferenças e podendo contribuir
para reflexões sobre a diversidade cultural.
No que diz respeito aos honoríficos, acreditamos que, a exclusão ou a adaptação
dessas expressões para o português, não afeta a compreensão do texto, mas priva o leitor de
um maior conhecimento sobre a cultura na qual a obra foi concebida.
Referências
Introdução
Concepções de amor
desespera, que está sempre carente. Mas quando Eros consegue o objeto
almejado, ele perde a força, esvai-se de sua intensidade. Podendo advir até o
desinteresse e o tédio. Por isso, Eros é sempre insatisfeito e nunca se
contenta. (p. 336)
Consoante o trecho recortado, entende-se que o Eros é efêmero e, por isso, logo se
extingue. Em outras palavras, ainda que ele seja avassalador, possui caráter de fragilidade e de
inconstância. Assim o sentimento que a paixão evoca, ainda que seja verdadeiro, não é sólido.
Em sua origem mitológica, o Eros representa um dos mais fortes e imponentes deuses.
Alguns mitos concebem sua existência anterior ao surgimento do mundo grego, Caos,
representando, dessa forma, a força da criação em oposição à desorganização. Na tradição
latina, o Eros era retratado pela imagem do cupido: uma criança irresponsável que ocasionava
transtornos ao flechar corações incompatíveis.
A partir do exposto, compreendemos que não é um tipo de amor físico e que, por ser
mais evoluído, pode e deve ser compartilhado com a humanidade. Birchal (1990) apud
Marcondes (2008), o define como “o amor altruísta, o amor doação, entrega, por vezes
mesmo o amor incondicional, transcendente”. Nesta manifestação do amor, são ressaltadas e
motivadas algumas qualidades, tais como: bondade, generosidade, tolerância, humildade e
perdão. Seguindo esse pensamento, seria um erro impor que se ame apenas uma pessoa, pois
ele deve ser entregue sem seleção.
Historicamente, o termo Ágape faz menção às reuniões estabelecidas e perpetuadas
pela tradição cristã, mais especificamente, pelos fiéis. De acordo com Marcondes (2008),
mesmo sob o ponto de vista aporético, essas atitudes de confiança ao desconhecido,
constituem a abertura que permite nos aproximar de outros e aceitá-los como tais. É nisto que
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Como é sabido, Augusto dos Anjos é conhecido, sobretudo, pela construção do belo
através do feio. Seu arcabouço literário configura-se de características como: beleza áspera e
estranha, termos científicos que corroboram seu intelectualismo; angústia e outros elementos.
No poema Idealismo, especificamente, é retratada uma visão pessimista de amor na
sociedade: o amor corrompido pelos prazeres desenfreados da carne, constituindo-se um amor
fútil, vulgar e superficial. Como se pode observar:
Idealismo
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
A partir disso, temos que o meio social influencia as concepções que um fato de
natureza também social pode adquirir. Esse amor, como se tornou socialmente concebido, é
demasiado fugaz para o eu-lírico. Ele demonstra, a partir dos exemplos, que esta forma do
Eros é autodestrutiva e limitada. No trecho a seguir, fica evidenciado o repúdio à
configuração erótica que o amor possui: “O amor na humanidade é uma mentira.” Neste
trecho, podemos observar a negação categórica do amor na humanidade. Entretanto, é
necessário salientar que o eu-lírico critica a forma vulgarizada de amor que a humanidade
pratica. A forma como as relações amorosas se dão, de maneira sexualizada e estritamente
carnal, não é para o eu-lírico o amor propriamente dito. Sobre o amor que o eu-lírico rejeita,
Incontri e Bigheto (2008) postulam:
Por outro lado, ágape significa “afeto profundo e afeição”. Para sermos
breves e um tanto simplistas, eros corresponde a “estou apaixonado” e ágape
corresponde a “eu amo”. O primeiro termo pressupõe paixão, e o segundo,
serenidade e profundidade. (p. 21 e 22)
que o amor difundido e vivido socialmente constitui uma forma de amor dignificante de se
manifestar. Por isso, revela sua apatia, através do desprezo poético pelo tema. O eu-lírico
critica o amor decorrente da cristalizada concepção social, da falta de perenidade e demasiada
concentração nos prazeres físicos. Incontri e Bigheto (2008) discutem sobre a configuração
que o amor possui socialmente: “Tudo se tornou tão excessivo e prolífero que caímos em um
vazio. Na nossa sociedade, tudo se erotizou, acaba-se até mesmo a referência do que é
prazer.” (p. 348) Os teóricos tencionam evidenciar o exagero que tudo adquiriu nas
sociedades ocidentais: um caráter amiúde fugaz. O amor não foge dessa tendência e as
exemplificações no poema servem de respaldo para a visão pessimista que o eu-lírico
manifesta perante o amor:
transcendente de verdadeiro amor para o eu-lírico. Ou seja, um sentimento que esteja liberto
de quaisquer interesses, sejam o erótico ou o de autobenefício. Ele defende a posição de que o
amor mais profundo é vivenciado pelas almas e, desta maneira, torna-se louvável, porque é
direcionado a algo mais nobre e perene. Sobre esta forma atemporal e etérea de amor, é
exposto que: “Pois é mister que para o amor sagrado, / O mundo fique imaterializado /
Alavanca desviada do seu fulcro.” De acordo com essa estrofe, podemos depreender que, para
o eu-lírico, a única forma existente de amor é através de renegação da carne e dos valores
mundanos. Podemos estabelecer relação entre estes versos e o título do poema: Idealismo é
uma corrente filosófica que afirma que o mundo material só pode ser compreendido
plenamente a partir de sua verdadeira essência espiritual, mental ou subjetiva. Seus opostos
seriam representados pelo Realismo e Materialismo. A corrente Idealista supõe que a única
realidade plena e completa é a de natureza espiritual, sendo a compreensão materialística ou
sensível dos objetos um estágio pouco evoluído e superável. Ou seja, o amor como é
vivenciado socialmente, físico e sexual, é pouco evoluído e carente de se transcender. Para
que possamos visualizar melhor o conceito de amor evoluído que é defendido pelo eu-lírico, é
preciso compreender, de acordo com Incontri e Bigheto (2008) que:
A partir dessa exposição, observamos que para os autores, assim como para a persona
do poeta, o amor só se dá verdadeiramente no campo espiritualístico. Temos também que o
amor é, ao mesmo tempo, aprendiz, porque está sempre em busca de entender-se e entender o
mundo, e mestre, porque direciona a coisa amada para a sabedoria, para a compreensão do
universo. Por último, temos que o eu-lírico critica de maneira mais latente após as
considerações feitas ao longo da poesia, o tempo em que se praticará a verdadeira forma de
amor: “E que haja só amizade verdadeira, / Duma caveira para a outra caveira / Do meu
sepulcro para o teu sepulcro?!”. No segundo e último terceto, observamos uma crítica a
respeito de quando se porá em prática a forma verdadeira de amar. É necessário que
esperemos a morte para que haja mudança na forma como tratamos nossos semelhantes.
Compreendemos, portanto, que, na ótica do eu-lírico, o amor é um encantamento que
se sobrepõe aos deleites carnais. Este fenômeno só se concretiza com o amor ao próximo e
com a total renegação do prazer imediato, para que se consiga algo mais consistente. Dessa
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forma, possibilitará a passagem do amor físico, do ato carnal para um processo de elevação
espiritual, alcançando a verdadeira natureza de amar.
Considerações Finais
Com este trabalho, pretendeu-se ampliar as discussões acerca da obra de Augusto dos
Anjos e da visão poética abordada no poema Idealismo. Observamos uma tendência a
defender o amor no campo espiritual, de forma abstrata, em detrimento da paixão carnal,
passageira e superficial. Nesse sentido, o autor dá vida a uma voz poética que concebe o amor
no plano etéreo.
Compreender a poesia de Augusto dos Anjos como dialética e passível de ensejar
discussões profundas sobre a existência humana e temas que continuam sendo relevantes para
a sociedade é sempre um instigante desafio.
Analisar, mais especificamente, o poema Idealismo e as representações do amor
presentes nele constituiu o escopo do nosso trabalho. Ansiamos, além disso, percorrer e
repensar a poesia de Augusto dos Anjos, suscitando discussões sob diferentes perspectivas, a
fim de mantê-la viva, dinâmica e atual.
Referências
Alexandre Alves
UERN
de um “efeito” tanto na composição do poema pelo artista quanto na leitura do texto pelo
leitor, este por sua vez ligado a um determinado “tom”:
A poesia de Augusto dos Anjos teria esta mesma ligação com a melancolia, uma vez
que para críticos como Chico Viana (1994), ao comentar um dos poemas (“Os gemidos da
arte”) do livro Eu, percebe que o Eu lírico mostra certa dubiedade ao relatar o seguinte fato:
“Se em alguns passos a personagem lamenta sua tristeza, noutros transparece o desejo que ele
tem de cultivá-la. [...] Ela acaba se constituindo de não apenas em refúgio como também em
alimento, fonte de integração afetiva [...]” (VIANA, 1994, p. 63). É mais que notória a
denominação sobre a obra de Augusto dos Anjos como sendo mórbida ou insistentemente
triste, mas Viana aponta que por trás deste senso comum há mais do que simplesmente um
apego à morbidez, procurando revelar que há uma melancolia em evidência no poeta
paraibano está ligado a uma espécie de “chave psicológica” que envolve a nostalgia por um
objeto perdido, ausente, que gira em torno de uma situação de unidade e também de efeito:
Enfrentar os versos de Augusto dos Anjos é, sim, encontrar o tom melancólico de Poe,
mas igualmente achá-lo junto a esta “pulsão de morte” apontada pelo estudioso paraibano
Chico Viana como uma via crucis lírica que margeia tanto uma beleza marcada pelo objeto
perdido, pela nostalgia, quanto pela culpa voltada ao “problema das origens”, um dos quais
pode ser caracterizado pelo medo, especialmente do desconhecido. Neste viés, há a
possibilidade de interpretar os efeitos poéticos acerca dessa temática que engloba melancolia,
medo e morte através dos símbolos de dois animais de aspecto, no mínimo, negativos: o
morcego e o corvo.
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A figuração dos animais no gênero lírico tem sua importância desde antes de Cristo,
quando os primeiros líricos romanos, como Vergílio (71-19 a.C.), expunham em seus textos
“grande delicadeza e revelam a capacidade do poeta de esboçar paisagens rurais e compor
caracteres” (CARDOSO, 2003, p. XIV). Na verdade, em obras como as Bucólicas, traça um
breve perfil das dicotomias entre cidade e campo, com os animais como personagens da parte
I da obra citada (VERGÍLIO, 2003, p. 43):
1
Entre suas mais conhecidas obras figuram Nas montanhas da loucura, A maldição de Sarnath e O horror em
Red Hook.
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O poema “O Corvo” – no original “The raven”, contendo pouco mais de cem versos –
é tido como um dos textos essenciais da lírica estadunidense, embora sua própria
engenhosidade na feitura dos versos o faça não estar relacionado, pelo menos, de forma
explícita “a nenhuma das influências então correntes – nem ao romantismo germânico que em
seu tempo dominou a poesia americana […] nem a uma preferência, em seus cenários, por
qualquer terra ou povo determinado” (NABUCO, 2000, p. 51). Elaborado em sextetos, os
quais em cada um deles são ressaltadas as negativas expressões “nothing more” (nunca mais)
e “nevermore” (nunca mais), “O Corvo” apresenta um eu lírico que se depara com a presença
de uma “ave de mau agouro”, como sentencia o próprio autor em “A filosofia da
composição”.
Poe acaba criando um ambiente fantástico com o pássaro servindo de figura central:
“Tinha, pois, de combinar as duas ideias, a de um amante lamentando sua morta amada e a de
um Corvo continuamente repetindo as palavras “Nunca mais'. […] mas a única maneira
inteligível de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregando a palavra” (POE, 2009,
p. 120). Leia-se as duas estrofes iniciais de “O Corvo” (POE, 2009, p. 65):
cujos vocábulos escolhidos mantém uma linguagem culta, mas que, em breve, irá se ladear
nesse mesmo poema com expressões coloquiais, criando um escape da linguagem canonizada
da lírica parnasiana, romântica ou simbolista reinante nos poetas brasileiros da época. Os
versos, na verdade, conduzem a uma visão de repulsa diante da imagem pavorosa do
morcego, cujo ápice é a sensação de medo.
Em sua terceira estrofe, o autor paraibano revela a repulsa do eu lírico frente ao
mamífero voador enquanto o nervosismo se junta ao medo como fator crescente e
claustrofóbico ("Vou mandar levantar outra parede..." / – Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o
ferrolho / E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, / Circularmente sobre a minha rede!).
Há de se notar aqui a mesma técnica usada pelo norte-americano em utilizar do discurso
direto colocado entre aspas, para simbolicamente dar maior verossimilhança ao que é narrado,
justamente para recriar um ambiente psicológico e soturno ao mesmo tempo. Por outro lado, o
referencial do cotidiano brasileiro se impõe no derradeiro verso, em que está deitado em um
objeto corriqueiro (uma rede).
Retomando o poema de Poe, em suas décima quinta e décima sexta estrofes, há um
clímax que se dá pela voz exclamativa do eu lírico, que de mero pensamento sobre a ave
noturna, passa a esbravejar e indagar a ela, como se a mesma estivesse personificada, além de
reforçar a ideia negativa, plena de referências cristãs2, sobre o pássaro que mantém a mesma
resposta sobre a figura feminina trazida desde a segunda estrofe (POE, 2009, p. 68-69):
2
Na obra O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (2011), Cláudio Abramo
aponta as diversas possíveis fontes predecessoras que o norte-americano utilizou em seu famoso poema, desde
as puramente literárias – como o poeta alemão Gottfried August Bürger, autor de um poema com o título de
“Leonora” em 1773 – até as claramente bíblicas, citando trechos de Jeremias, Jó e Isaías, entre outros, para
comprovar uma filiação e leitura religiosa na construção do corvo de Poe.
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direcionados ao verso “mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo a verdade:”.
É aqui que a esperada indagação ao Corvo alcança a consciência do eu lírico, a de que a
mulher amada, de nome Lenora, não será vista novamente, tudo planejado pelo norte-
americano como um mote mais do que melancólico, observado que “[…] a morte, pois, de
uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca
mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor” (POE, 2009, p.
120). É justamente essa consciência acerca da morte da figura feminina amada que conduz ao
horror proporcionado por um amor que não pode mais ser alcançado, convencionando o
sentido do poema, como um todo, “na procura de um par que se ajuste com o tom de
melancolia que percorre todo o poema, em toda sua extensão” (ARAÚJO, 2002, p. 96).
Trazendo de volta o poema de Augusto dos Anjos, após o introito repleto de uma aura
“de angústias e obsessões que o poeta encontrava no mundo do próprio 'eu'” (BOSI, 1979, p.
51), em especial a repentina aparição do morcego em meio ao descanso noturno do homem,
nas duas últimas estrofes do poema, existe um percalço similar ao de Poe, ainda que
mantendo certas diferenças na linguagem e na concisão temática. Daquilo que se impõe como
semelhante está a angústia – misturado ao horror – diante da visão do morcego, cuja primeira
reação é o medo, ainda na segunda estrofe (– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho).
Na estrofe seguinte, isto se transforma em repugnância, fazendo o eu lírico partir para
a tentativa de se defender de algo que ele tem como ameaça, mas não sem antes utilizar uma
expressão coloquial logo no início da terceira estrofe, que aproxima os versos da linguagem e
tema prosaicos do futuro Modernismo nacional (Pego de um pau. Esforços faço. Chego / A
tocá-lo. Minh'alma se concentra.). A técnica do enjambement também é outro indício de
modernidade no texto do paraibano, que quebra a sequência frasal em versos distintos, fato
similar ao posicionamento da indagação do derradeiro verso da terceira estrofe (Que ventre
produziu tão feio parto?!), somente respondido na seguinte, como se o sentido tivesse sido
partido pelo espaço em branco entre as estrofes.
Antes que se faça uma resposta, o evidente símbolo do morcego consegue se coadunar
com uma imagem de horror, mas o ambiente noturno – como se fosse o “efeito” almejado por
Edgar Allan Poe – está bem próximo daquilo que Lovecraft aponta como sendo a causa
primordial de tudo, que é o medo:
No começo era o medo, noite antes da luz. Desde sempre e para sempre, a
mais antiga das emoções, da humanidade e dos seus integrantes, […] o medo
tem suas raízes na infância, seja da espécie ou de cada um, originalmente
desamparados. Como do desconhecido, por definição, não se tem nenhum
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Entre os três versos da última estrofe do soneto de Augusto dos Anjos, está um termo
associado ao âmbito da Psicologia, especificamente aquela relacionada a Sigmund Freud 3,
mas que pode muito bem ser tomado como um aceno àquilo de que todos estamos cientes em
determinado instante (A Consciência Humana é este morcego!). A figura do morcego seria
também a própria consciência do ser humano, que procuraria desprezar o lado repugnante da
vida, embora sob a atmosfera noturna e enclausurada de um quarto à meia-noite venha a se
tornar a aparência – sinistra, feia, repulsiva – desse mesmo homem, amedrontado diante de
sua própria condição de horror. No vocábulo coloquial do penúltimo verso está a humanidade
inteira e seu forçoso auto retrato (Por mais que a gente faça, à noite, ele entra), escondido em
meio à escuridão, entretanto, mesmo na ausência da luz, a percepção sobre os fatos se dá de
maneira sorrateira no espaço íntimo do homem (Imperceptivelmente em nosso quarto!), tanto
físico quanto internalizante, psicológico, como se relembrasse que “Os primeiros instintos e
emoções do homem foram sua resposta ao ambiente em que se achava” (LOVECRAFT, 2009,
p. 14).
O efeito, para usar do termo que Edgar Allan Poe tanto prezou em “A filosofia da
composição”, produzido pela leitura dos versos de “O morcego” atenta para o fato de que o
ser humano talvez não possa recusar “de se ater ao mundo das aparências e o anseio de
penetrar a intimidade das coisas e da sua somatória” (PAES, 1985, p. 89). De modo
semelhante ao corvo de Poe, que põe sob pressão um eu lírico ue parece não estar ciente da
morte da amada – e, para isto, a ave aparece para retomar de modo insistente a aura de
negação em torno de um amor agora impossível –, no soneto de Augusto dos Anjos o ato de
apresentar o morcego de modo crescente sob diferentes sensações e emoções (visão, paladar,
medo, tato) se sobrepõe em uma constância que, em suma, revela que o horror de estar diante
do morcego é o mesmo horror de estar diante de si mesmo.
3
De notória expansão e influência no século XX, o psicólogo austríaco publicou no começo do século citado
algumas obras (entre elas estão Interpretação dos sonhos e Psicopatologia da vida cotidiana) que, de um modo
ou outro, vieram a popularizar termos como “consciente”, “inconsciente” e “subconsciente”, o que revela um
linguajar cientificista com o qual o poeta paraibano é geralmente identificado.
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De conhecida fonte sobre Augusto dos Anjos estão as respostas do poeta quanto a um
“inquérito” feito por Licínio dos Santos e publicado em 1914 na obra A loucura dos
intelectuais, de autoria do autor supracitado. Entre as indagações feitas, realizadas após a
publicação de Eu, uma resposta chama a atenção pela evidência da voz do escritor paraibano:
“Quais os autores que mais o impressionaram? – Shakespeare, Edgar Poe” (SANTOS apud
ANJOS, 2010, p. 11). Esse mesmo inquérito é, para alguns estudiosos, “sem dúvida, da maior
importância para o conhecimento da personalidade do poeta” (BARBOSA apud ANJOS,
2010, p. 83) e no pequeno trecho a citação do autor estadunidense sendo lembrado por
Augusto dos Anjos como um dos que mais o marcaram na literatura surge como uma
incólume certeza de influência.
Diversos outros estudiosos de Augusto dos Anjos determinam outros referenciais
anteriores para a poesia dele, sem citar o britânico e o norte-americano que vieram a
impressionar o paraibano. É comum ser notada a existência de um quadro ambíguo sobre a
poesia de Augusto dos Anjos, simultaneamente única, porém sendo relacionada a outros
autores de renome:
Os nomes do simbolista europeu – não por acaso ensaísta e tradutor de vários textos de
Edgar Allan Poe para a língua francesa4 – do escritor lusitano e do simbolista catarinense
podem impor um conhecimento de uma tradição literária que venha a se relacionar com a
poética de Augusto dos Anjos, especialmente no que tange respeito ao ideário romântico-
funéreo do poeta paraibano – fator típico do chamado Ultrarromantismo5 – e do decadentismo
dos simbolistas, estes de forte presença nos poemas do paraibano:
4
Uma das edições brasileiras na qual se encontram alguns dos textos de Charles Baudelaire acerca do autor
estadunidense está em Ensaios sobre Edgar Allan Poe (2003).
5
Tal corrente é costumeiramente ligada a uma das “gerações” do Romantismo brasileiro, cuja melancolia era
uma de suas marcas, mas Massaud Moisés (2004) anota que a expressão foi usada antes no Romantismo de
Portugal.
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Considerações finais
Como um efeito – tão necessário à composição poética na visão de Poe – desta leitura
comparativa, surge a tensão provocada pela presença dos dois animais citados nos poemas, o
morcego e o corvo, ambos sendo símbolos de uma procura por um lirismo que margeia o
grotesco como recurso iminente do horror, inclusive presente na poesia finissecular que
geraria a modernidade na Literatura no século XX. Para os conceitos de H.P. Lovecraft, a
presença dos animais em cada poema poderiam se encaixar, em nossa visão, a um instante que
o escritor, de um modo geral, reage a ponto de fazer nascer “um conjunto composto de
emoção aguda e provocação imaginativa cuja vitalidade deve necessariamente durar enquanto
existir a raça humana” (LOVECRAFT, 2009, p. 15).
Para a lírica de Augusto dos Anjos, os versos dele permanecem como um retrato único
na poesia brasileira, uma vez que “falar sobre ele é um exercício de busca, de descobertas, de
renovação e modificação de conhecimentos, havendo, sempre, mais dúvidas que certezas”
(ARAGÃO, 2012, p. 45). O poeta paraibano paira sua criação poética justamente sobre um
conflito, “essa tensão polarizadora entre razão e emoção, entre conhecimento e fantasia,
enfim, entre o eu e o mundo, um dos cernes semânticos que garantem a modernidade na
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poesia de Augusto dos Anjos” (BARBOSA FILHO, 2001, p. 154). E é nessa “tensão
polarizadora” na qual expõe o crítico que o autor de Eu continua fazendo ecoar seus versos
fora do padrão que o cercava nas primeiras décadas de um século que viria nascer a Primeira
Guerra Mundial no mesmo ano em que Augusto dos Anjos viria a falecer.
O que interessa perceber aqui são as sombras do grotesco no voo de uma modernidade
literária – tanto na temática grotesca quanto em uma linguagem nova que começava
timidamente a se espraiar no século que viria nascer o Modernismo – que nascia em ambos os
poetas, de origens distintas, mas também com a dupla de escritores já pronta para antever os
rumos que a linguagem poética tomaria nas primeiras décadas do século XX, época na qual
poesia e o cotidiano se agrupariam em um influxo psicológico sem precedentes. Seria o início
de um posicionamento lírico raro no Ocidente e cuja poética une Augusto dos Anjos e Edgar
Allan Poe sob hemisférios distintos em sua geografia real, mas amalgamados na busca do
homem e do horror presente nas circunstâncias da existência.
Referências
CARDOSO, Zélia de Almeida. Introdução. In: NERI, Maria Luiza. NOVAK, Maria da Glória
(orgs.). Poesia lírica latina. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CESAROTTO, Oscar. A estética do medo. In: LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural
em literatura. Trad. Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2007.
FONSECA, Deize Mara Ferreira. Sentir com a imaginação: Edgar Allan Poe, Augusto dos
Anjos e um gótico moderno. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 2, abril/junho 2009, p.
40-48.
LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. Trad. Celso M. Paciornik. São
Paulo: Iluminuras, 2007.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
NERI, Maria Luiza. NOVAK, Maria da Glória (orgs.). Poesia lírica latina. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
PAES, José Paulo. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Trad. Milton Amado/Oscar Mendes. 4. ed. São Paulo:
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SANTOS, Lícinio dos. Resposta ao inquérito de Lícinio dos Santos em “A Loucura dos
intelectuais”. In: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 48. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
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SHELLEY, P.B. Ode ao vento leste e outros poemas. Trad. Péricles Eugênio da Silva
Ramos. São Paulo; Hedra, 2009.
______. Uma defesa da poesia e outros ensaios. Trad. Fábio Cyrino/Marcella Furtado. São
Paulo: landmark, 2008.
VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos.
João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 1994.
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Introdução
1
A cultura dominante, ou cultura oficial, nesse caso, diz respeito àquela formada pelo clero e pela nobreza
durante a Idade Média e o Renascimento.
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Por causa desse caráter conflituoso e interiorizado, essa sensibilidade pode ser
considerada uma categoria universal, mas, ainda segundo Benedito Nunes (2013, p.52),
« somente na época do Romantismo, esse modo de sentir concretizou-se no plano literário e
artístico, adquirindo a feição de um comportamento espiritual definido, que implica uma
forma de visão ou de concepção do mundo ».
É sabido que a obra de Augusto dos Anjos passeia por algumas estéticas literárias.
Verificamos isso por meio da observação dos críticos em geral, os quais evidenciam a
independência estética desse poeta, ou seja, Augusto dos Anjos não se filia de modo
definitivo a nenhuma escola literária, porém sua poesia revela um eu poético fragmentado, na
medida em que partes integrantes de diversas escolas aparecem unidas em seus escritos,
formando um todo, ao mesmo tempo, estranho e inovador.
Com isso, compreendemos a dinamicidade e a fragmentação da obra desse brasileiro
que deixa entrever uma estética moderna como uma colcha de retalhos. Mas, aqui nos
interessa, sobretudo, a estética romântica. Algumas características românticas são esboçadas e
resumidas por Roberto Pontes (2012, p. 47-51), quando o autor analisa a obra do poeta
português Mário de Sá Carneiro. Primeiramente, observa (a) a herança dos românticos
alemães no que diz respeito à (I) interioridade, (II) construção estética parcelar, (III)
centramento do real pela ótica subjetiva, (IV) redução da realidade ao ângulo individualista,
ególatra, narcísico e megalômano, (V) exacerbação do eu. Em seguida, observa (b) a herança
do grotesco romântico. Segundo Pontes, alguns poemas de Sá são como “esgares convertidos
em poesia pela dor humana” (2012, p. 48). Depois, mostra que (c) a preocupação com o
singular e a procura constante da genialidade são também herança dos românticos, bem como
(d) a auto ironia e a morbidez próprias do ultrarromantismo. Utilizamos a mesma taxonomia
para realizar nosso estudo acerca dos aspectos românticos em Augusto dos Anjos.
Conforme as características românticas citadas por Pontes, bem como do panorama do
Romantismo feito no início dessa seção, compreendemos que o poeta Augusto dos Anjos
deixa claro que o espírito romântico remanesce nos primeiros anos do século XX, no Brasil,
por meio de sua poesia.
Compreendemos que a mentalidade romântica povoa o imaginário artístico brasileiro
do início do século XX. Vemos isso por meio dos processos de endoculturação e hibridação
cultural, os quais colaboram para a presença de resíduos românticos numa época pós-
romântica. Esses conceitos estão na base da Teoria da Residualidade proposta pelo teórico
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Roberto Pontes. A teoria diz respeito ao resíduo2 de uma cultura passada encontrado em uma
época posterior. Significa que todos os objetos culturais hoje presentes no nosso meio têm
restos de outra época e cultura próxima ou distante. Isso acontece por causa do que falamos
acima: o processo de endoculturação e o processo de hibridação cultural. Durante esses dois
ocorre também a cristalização do fato cultural. Vejamos detalhadamente cada um dos
conceitos.
A mentalidade define-se como:
A mentalidade romântica traz o sujeito como foco. A realidade não passa de uma
extensão desse sujeito. Por se focar tanto em si mesmo, o indivíduo romântico acaba
envolvido por imensa solidão e mergulha numa intensa busca de si. Esse modo de pensar
romântico ultrapassa os limites do tempo e, residualmente, viaja por épocas e lugares. Ou
seja, resíduos do Romantismo europeu remanescem no início do século XX no Brasil,
fazendo-se perceber no imaginário de uma nova época, de um novo lugar. O imaginário é,
portanto:
Esse sistema de imagens pode ser visto em seu conjunto em diversas partes da cultura
de um povo. Dessa forma, a obra de Augusto dos Anjos traduz o imaginário repleto de
remanescências da mentalidade romântica.
O processo de endoculturação é mais individual. É um caminho pelo qual todos os
seres humanos passam desde o nascimento. É aquilo que se recebe como herança e
internaliza. Tudo que é passado de pai para filho. Todos nós somos endoculturados, quando
entramos em contato com outros indivíduos e culturas não apenas olhamos para esse ou esses
outros, mas passamos por um novo processo de endoculturação. Esse processo nos persegue
2
O resíduo não pode ser visto aqui como algo negativo. Esta palavra foi importada de outra área, mas possui
uma nova significação, embora traga traços da primeira. Ele é a prova de que uma mentalidade de uma época
antiga pode povoar o imaginário doutra época e, assim, formar uma nova mentalidade, mas híbrida.
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durante toda a vida. E é por isso que a mentalidade do passado encontra-se, por meio de
resíduos, no presente. Mário de Sá-Carneiro passa por esse processo. Certamente, o poeta foi
educado dentro do ambiente artístico. É sabido que o pai de Sá costumava patrocinar suas idas
a Paris e a contemplação artística do filho, visto que durante sua curta vida, o poeta viveu para
a arte.
A expressão hibridismo cultural foi desenvolvida por Peter Burke (2003). Para este
professor de história cultural da Universidade de Cambridge, o hibridismo cultural ocorre
quando há a fusão de duas ou mais culturas diferentes, formando uma nova cultura. Roberto
Pontes prefere o termo hibridação em vez de hibridismo. Segundo ele, o primeiro termo
denota uma ideia maior de ação, passa a ideia de constante mudança. Esse é um detalhe
interessante, pois o contato constante entre culturas provoca mudanças contínuas.
A hibridação cultural trata de todas as fusões que envolvem a cultura. São exemplos
disso: “as fusões raciais ou étnicas denominadas mestiçagem, o sincretismo de crenças e
também de outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o culto e popular, o
escrito e o visual nas mensagens midiáticas” (CANCLINI, 2003, p. 7). Ao analisarmos as
diversas estéticas literárias em Portugal, observamos a confluência com diversos países do
continente europeu. Por diversos motivos, entre os quais, a proximidade e a facilidade de
acesso entre esses países, a confluência cultural é muito comum. Por isso, encontramos
diversos aspectos do Romantismo, seja alemão ou inglês, na obra de Augusto dos Anjos, bem
como de outros autores do chamado Pré-Modernismo e do Modernismo brasileiro, é o caso de
Guilherme de Almeida.
Na Teoria da Residualidade, o termo cristalização diz respeito ao polimento de um
elemento cultural, até chegar a uma nova forma. No entanto, deve-se entender esse processo
de refinamento ou polimento como uma mudança pela qual toda cultura tem de passar, porém
essa ação sempre traz e refaz algo do passado. É um processo de atualização do elemento
cultural. No processo de cristalização o resíduo é a essência que remanesce através dos anos.
.
« Solitário » e « O Poeta do Hediondo », elementos grotescos advindos da presença forte
de elementos românticos em Augusto dos Anjos
diante da ânsia de infinito. Isso nada mais é que a influência do espírito romântico que se
prolonga pela modernidade. O eu poético afasta-se do homem comum e, dessa forma, já se
torna um indivíduo estranho o que facilita o aparecimento do elemento grotesco. É um eu
estilhaçado, sozinho com as vozes que arquiteta. Sua inquietude é fruto da busca de infinito
que se faz presente em boa parte da obra de Augusto dos anjos. Porém, o poeta tem
consciência da impossibilidade de se alcançar o infinito, ou seja, um plano mais elevado.
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas (ANJOS, 1994, p. 155).
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Conclusão
Como vimos a partir dos poemas brevemente analisados, Augusto dos Anjos deixa
entrever traços românticos, os quais colaboram para o nascimento de uma poética grotesca.
Como isso é possível? Explicamos através da Teoria da Residualidade, proposta por Roberto
Pontes. Ficou claro, diante do exposto, que os resíduos da estética romântica presentes no
início do século XX, no Brasil, culminaram em uma criação poética repleta de elementos que
se caracterizam como grotesco.
Referências
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Introdução e comentários de A. Arnoni Prado. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: UNB, 1999.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo:
Unisinos, 2003.
Dicionário Houaiss de língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.
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Introdução
entre os séculos XIX e XX, nesta peleja de penas e tinteiros, quem ganhava era o público
leitor com grandes obras de autores que se destacaram a exemplo de Olavo Bilac
(parnasianismo) e Cruz e Souza (simbolismo). Em meio a esta “guerra literária”, em 20 de
abril 1884 nascia o poeta paraibano Augusto Rodrigues Carvalho dos Anjos, inicialmente
alfabetizado pelo pai, logo tomou gosto pela leitura e pela escrita, e sua poesia foi se
desenvolvendo igualmente ao seu ser. O conjunto desses versos, criados no decorrer dos trinta
anos de sua curta vida deram origem ao livro EU e Outras Poesias. Primeira e única obra
impressa do poeta, mas que obteve um brilho próprio em meio à diversidade de autores e
obras já consagradas. O poeta Augusto dos Anjos se destacou na escrita poética em relação às
demais escolas literárias de sua época, porém, com certeza absorveu um pouco de cada uma
delas, como nos relata Alcides:
A leitura do EU, obra do escritor paraibano Augusto dos Anjos, instiga o leitor a
explorar e criar mentalmente imagens e cenas ao qual está presa exclusivamente às letras de
sua poesia, partindo apenas da vivência em torno da escuridão, da tristeza, da morte e de
tantos outros elementos amargos do qual conhecemos. E o que dizer quando essas ideias são
transcritas ao papel em forma de desenhos dando uma nova vida a poesia de Augusto dos
Anjos? É a partir desse ponto que exploraremos as histórias em quadrinhos, que tem uma
grande força em comunicar na junção de texto e imagem, onde podem funcionar
independentes um do outro.
As HQ’s são perfeitas nessa liberdade de criar e recriar, fazendo surgir uma grande
variedade de histórias em torno de um mesmo tema. Augusto dos Anjos pode ser recriado em
uma grande gama de histórias, tanto em torno de sua vida como em sua obra. Podendo ser
específico para públicos distintos dependendo do roteiro, da arte e tipo de impressão,
explorando o horror, humor, biografia, filosofia e cotidiano. Essa liberdade de expressão e
recriação pode ir bem além da linguagem dos quadrinhos, sendo transposto ao cordel, a
música, ao cinema e ao teatro. Devido a essa liberdade que os quadrinhos oferecem, muita
coisa pode surgir a partir da poesia do referido poeta. Alguns artistas já recriaram imagens
para ilustrar livros e HQ’s inspirados nos poemas do poeta paraibano, seja em adaptação
literal ou livre. Artistas renomados como Mike Deodato Jr. (ou Deodato Borges Filho), Shiko,
Alexandre Jubran e também amadores - ou mesmo aqueles admiradores da poesia -
contribuíram com trabalhos para impressos, exposição ou mesmo produções na internet como
blogs e sites. Já no caso de Sávio Roz, fã de do poeta e de Batman, recriou uma HQ de quatro
páginas inserindo o super-herói no poema O Morcego.
Na sequência, amostras das artes de Deodato Jr., Jubran, Shiko e Sávio Roz, entre HQ’s e ilustrações.
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A leitura, através do livro Literatura Comentada Augusto dos Anjos – Zenir Campos
Reis (1982, Editora Abril), para um trabalho da escola em 1993, foi onde teve o primeiro
contato com a escrita deste poeta. Desde então essa admiração só cresceu, e por gostar de
histórias em quadrinhos, começou a produzir algumas delas de apenas uma página inspirado
nestes poemas. Uma destas HQ’s, intitulada “Mas que ideia?”, foi uma releitura do poema
“A ideia”, do livro EU, onde trata da busca da inspiração e da criatividade do homem em suas
produções artísticas. A outra foi uma página de uma série chamada Árvores, onde fala do
tamarindo (fruta e árvore) interligando a infância, vida e obra de Augusto dos Anjos.
Na sequência, páginas das HQ’s “Mas que ideia?” de 2012, e outra da série “Árvores” de junho de
2013. Ambas podem ser vistas neste link: www.gibiarte.blogspot.com.
trabalho nos quadrinhos, foi criada uma série de tiras intitulada “Augusto & Eu”, que trata do
próprio poeta, de sua obra e a Morte (fã incondicional do escritor) como companheira. O
“Eu” do título é dúbio, fazendo referência a Morte e ao livro. Em geral, a ação transcorre com
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Tiras de “Augusto & Eu”, publicação no jornal A União, João Pessoa, PB.
2
Gag’s, efeito cómico que, numa representação, resulta do que o ator faz ou diz, jogando com o elemento
surpresa. Nas HQ’s, a gag (do inglês, “piada rápida”) é a alma da história, é a “piada” principal. Quanto mais
original e criativa ela é, mais envolvente a história fica. Pode ser transformada em enredo, ou seja, narrativa com
apresentação, conflito, clímax e desfecho.
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Partindo para outras publicações, em 2008, o poema “A Ilha de Cipango” foi adaptado
em quadrinhos por Samuel Casal na coletânea Domínio Público – Literatura em Quadrinhos
(DCL – Difusão Cultural do Livro), trazendo também Olavo Bilac, Machado de Assis e
outros escritores também adaptados por vários autores entre texto e arte. Recentemente, duas
novas edições em quadrinhos abordando a vida do poeta paraibano foram lançadas,
direcionadas ao público em geral. A primeira foi Augusto dos Anjos em Quadrinhos (Editora
Patmos), do autor Jairo Cézar e Luyse Costa (arte). A outra obra foi lançada pela MVC
Editora intitulado Vida e Poesia de Augusto dos Anjos – Para crianças, jovens e adultos,
escrito por Juca Pontes e ilustrado por Lelo Alves.
Capas das HQ’s das editoras DLC e Patmos, adaptando poema e vida em quadrinhos,
respectivamente.
Capa e página da edição em quadrinhos da MVC Editora, com a biografia do poeta paraibano.
Cada leitor (receptor) captará a leitura de forma particular, e perceberá contidas nelas
fatos comum ao nosso cotidiano, principalmente no que diz respeito a morte e a outras
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situações sofridas pela sociedade de um modo geral. A HQ mostra essa realidade de forma
criativa, dinâmica e divertida, e extrai do leitor momentos de reflexão sobre a vida e todo o
meio em que vive.
É sobre esta óptica que os quadrinhos surgem como instrumento didático na sala de
aula, fugindo do estigma de ser apenas objeto de leitura, diversão e entretenimento, e do
preconceito que os cercam por parte de muitos adultos por achar que é coisa de criança. Obras
literárias, há décadas, são adaptadas para os quadrinhos, objetivando inicialmente a inserção
da leitura na formação de público e trazendo material de boa qualidade.
Essa rica cultura literária em poesia e prosa também traz em seu conteúdo uma vasta
carga histórica, social e cultural. E esses fatos históricos também são relevantes na produção
quadrinística somado a uma boa pesquisa e boas ideias no desenvolvimento de novos álbuns.
Nosso país tem muita história pra contar, com personagens e fatos reais que podem ser
transcritos com maestria aos quadrinhos, com excelente texto e desenhos de leitura agradável
e fluida. É o caso da graphic novel3 Chibata! A Revolta que Abalou o Brasil (Olinto Gadelha
e Hemeterio, Editora Conrad, 2010), em desenhos preto e branco, que conta a história do
marinheiro almirante João Cândido Felisberto (1880-1969), que em 1910, reagiu contra as
chibatadas que a tripulação sofria como castigo pelos seus erros. Este fato ficou conhecido
como “a revolta da chibata”, onde ele se tornou o símbolo dessa libertação.
Augusto dos Anjos também marcou na história de nossa literatura, de nossa cultura
brasileira, surgindo como um inovador numa poética rica e exótica. Suas poesias, resumidas
em um único livro foi suficiente para eternizá-lo nas letras e nos futuros estudos, pesquisas e
3
Graphic novel (novela gráfica), termo criado por Will Eisner (1917–2005), autor de quadrinhos norte
americano criador do personagem The Spirit. Essa denominação foi para o álbum Um Contrato com Deus, de
1978, que diferenciou a obra das revistas comuns, tornando um trabalho autoral e direcionado a um público mais
adulto e de livrarias.
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renovações em torno de sua vida e obra, originando novos leitores e admiradores. Nos versos
de Augusto dos Anjos há também outros enfoques de grande potencial bem relevantes que se
destacam: a psicologia e a filosofia. Ambas são áreas de estudo bem diferenciadas, mas que
de certa forma tem interligações no comportamento humano psicossocial, assim como a
literatura em torno dos psicólogos e filósofos da antiguidade e modernos. A psicologia está
entranhada na poesia do livro EU, de forma a ser pesarosa, obscura e triste, sendo assim
desagradável a muitos leitores, talvez por se deixar levar ou influenciar como se fosse uma
“marionete” ou “personagem” daquilo que leem. Por outro lado, existe uma reflexão nestes
poemas, principalmente naqueles que tratam da morte, levando-se a filosofar sobre algo que
faz parte de nossas vidas profundamente. A maioria dos seres humanos não gostam da ideia
de morrer, uns tem medo e outros não, e essa discussão profunda e filosófica faz parte da
poesia de Augusto dos Anjos e podem dar vasão aos “quadrinhos poético-filosóficos”. Trata-
se da mesma usabilidade de texto e imagem, porém fugindo um pouco da tradicional
sequencialidade de quadro-a-quadro, dando mais liberdade e expressividade na arte através de
experimentações, de forma que a leitura do todo eleve o leitor a reflexão existencial de cunho
filosófico.
A produção desse tipo de HQ é bem restrita a pequenos grupos e artistas como Gazy
Andraus e Edgar Franco, inicialmente publicando em fanzines como o Barata, e em revistas
como a Tyli-Tyli e Camiño de Rato. A editora Marca de Fantasia, mantida pelo professor
doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Henrique Magalhães, já lançou entre
outros Os quadrinhos poético-filosóficos de Edgar Franco: textos, HQs e entrevistas, livro
que aborda a produção nesse tipo especifíco de quadrinho.
Há tempos e até aos dias atuais, a imagem tem um forte apelo no que diz respeito a
comunicação visual como embalagens, placas, livros, anúncios etc. Sobre o que se diz que,
“uma imagem vale mais que mil palavras”, justifica-se muito na rápida informação e as várias
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interpretações, mesmo que seja acerca de um mesmo assunto. A linguagem gráfica não é algo
novo, ela se reflete nas pinturas rupestres, por exemplo, onde os acontecimentos do cotidiano
eram narrados em desenhos sucessivos, e que até hoje são admirados e estudados no contexto
da arte e da história.
Nestes conceitos de continuidade a partir das pinturas das cavernas e também de
hieróglifos nas pirâmides egípcias, a arte sequencial faz uso substancialmente desse poder,
principalmente aquelas histórias que vem sem nenhum texto de fala ou legenda, onde a leitura
se faz única e exclusivamente das imagens, transmitindo mensagem e ação. É por essas razões
que muitas obras literárias estão sendo adaptadas aos quadrinhos, com formatos, estilos e artes
diferenciados. Tomaremos como exemplo Moby Dick de Herman Melville, que muitas vezes
já saiu em livros por diversas editoras, a mesma também já foi adaptada em quadrinhos por
diversas vezes, como em gibis da série Classics Illustrated, Tio Patinhas 580 a até mesmo
uma versão de Will Eisner (A Baleia Branca). Mesmo nesta diversidade de adaptações, seja
literal ou paródia, ela terá a obra como embasamento, pois muitos detalhes serão
condensados, o que antes foi descrito em palavras, serão substituídos por imagens, através de
cenários e ação, dando vida e movimento em todo o decorrer de cada edição. Outro
diferencial será como cada escritor e ilustrador irá adaptar estes gibis, o que fará de cada um
deles singular na pluralidade em torno da obra original.
Na primeira fila, capas de livros de diversas editoras. Na segunda fila, as várias adaptações em quadrinhos,
das editoras Abril, DCL e Cia das Letras, produzidas por diferentes artistas.
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Outro fator importante sobre esse aumento de gibis adaptados de obras literárias se
deve também ao PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), que dentre a compra de
diversos livros, também são incluídos edições em quadrinhos destas obras, de forma a ampliar
a prática da leitura aos educandos. A poesia do livro EU de Augusto dos Anjos, pela sua
mórbida beleza, transcende a barreira da palavra e pode perfeitamente elevar-se a imagem da
arte sequencial, atendendo a uma renovação da linguagem, expandindo a obra do autor. Um
fator importante da adaptação em gibi é que se pode instigar o aluno em buscar a obra original
ou mesmo apenas pesquisar e conhecer melhor o autor. Como já citado anteriormente, a
transição entre a vida e a morte de Augusto dos Anjos entre os séculos XIX e XX, traz as
marcas de um tempo, no desenvolvimento de novos criadores em evolução das escolas
literárias anteriores de nosso país, que neste contexto é um jogo de ideias e que,
posteriormente, é convertido em letras para o consumo educativo, erudito e cultural.
Se a leitura é um dos caminhos a adentrarmos no mundo do saber, devemos instigar as
crianças a uma leitura de forma prática e lúdica, fazendo um bom uso das revistas em
quadrinhos. Os pais, por serem os primeiros educadores da criança, devem ser também os
fomentadores da leitura, introduzindo não só livros tradicionais, mas também os gibis. Na
escola, as HQ’s podem ser introduzidas na educação no desenvolvimento de leituras coletivas,
originando-se uma infinidade de atividades como escrita, desenhos, teatro, contação de
histórias e o que mais se desejar. O local de leitura pode ser em sala de aula ou em gibiteca
com doações dos próprios alunos, e dessa forma estimulando a interação e leitura na formação
de leitores, e quem sabe no futuro, poetas e escritores!?
Referências
Introdução
1
Graduado em Letras e Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, Portuguesa e Africana de
Língua Portuguesa, pela Universidade Regional do Cariri – URCA, e Mestrando em Estudos Comparados –
Literatura e Teoria Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail:
emersoncardoso.cardoso@hotmail.com.
2
Graduada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, e Mestranda em Estudos Comparados –
Literatura e Teoria Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: sdcastro7@hotmail.com.
3
PLATÃO. O Banquete. Rio de Janeiro: Editora Abril, 2001.
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capazes de desafiar os deuses, foram punidos. Como punição, Zeus 4 decidira que eles seriam
cortados ao meio.
Em decorrência desse corte, as duas partes que constituíam os andróginos, ao serem
separadas, passaram a viver uma busca constante da sua outra metade, do seu complemento.
Todos os que teriam resultado do corte de um “macho” perseguiriam o “macho”; todos os que
teriam resultado do corte de uma “fêmea” perseguiriam uma “fêmea”; a mesma regra seria
aplicável para as metades que tendiam para o sexo oposto. Essa ideia nos remete à visão de
que o homem busca mais que seu complemento, busca sua integridade perdida, e que essa
busca seria uma tentativa de retornar a algo que seria essencial e imutável.
Estaria confirmada, assim, a ideia de Aristófanes que defendia que da perda nasceria,
por excelência, o amor.
Com essa concepção, como afirma May (2012, p. 76)5, “está preparado o terreno para
Eros, aquele que é o maior dos impulsos de vida, ser – paradoxalmente – um impulso para a
morte”. Desse modo, para May (ibidem, p. 76 – 77):
[…] Eros deseja então uma satisfação que, literalmente, envolve a superação
da vida humana na única forma em que a conhecemos: como indivíduos
cujas vidas são estruturadas pelo tempo e a transitoriedade, e pela
possibilidade de solidão, perda e incompletude em todos os sentidos. Em
outras palavras, nos textos de Platão está preparado o terreno para que o
amor se torne uma imensa força para a destruição – não em resultado de ira,
ciúme e possessividade louca, mas motivado e justificado por nada menos
que seus ideais mais nobres; não de uma maneira abertamente violenta, mas
com uma brutalidade refinadamente sublimada.
O indivíduo, por este ângulo de visão, apoia-se na ideia de que o amor seria algo
indispensável e que precisaria ser buscado, ansiosamente, caso contrário este sofreria as
consequências advindas do vazio, da angústia e da solidão.
Acontece que, ao mesmo tempo em que um indivíduo estaria fadado a sentir
necessidade de encontrar-se com alguém que poderia representar seu complemento, este
estaria, também, predisposto a criar idealizações, falsas expectativas e, por vezes, sofrer
frustrações. Caso a busca não cessasse – por nunca ser encontrada em outrem a possibilidade
do amor –, ou a busca terminasse com o encontro de alguém cujas características não fossem
compatíveis com a expectativa criada a partir das idealizações a que o indivíduo está sujeito, a
frustração seria inevitável.
4
Sobre a figura de Zeus, Vasconcellos (p. 88) afirma que: “Com o raio em uma das mãos e o cetro de rei na
outra, Zeus velava pela ordem do universo, pela concórdia entre os deuses e o cumprimento das promessas e
juramentos. Era o soberano do céu [...]”.
5
MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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Uma das emblemáticas imagens do amor que o Ocidente tem propagado – neste caso,
o amor caracterizado como algo que impulsiona o indivíduo a viver uma busca profunda e
irrefreada, que coaduna com a proposta de Aristófanes –, surge no mito de Eros e Psiquê.
Psiquê desposara, sem ter ciência disto, o deus Eros. Este, que aparecia apenas à noite
para a esposa, advertiu-a de que ela não deveria vê-lo. Instigada pelas irmãs, Psiquê deu vazão
à sua curiosidade e decidiu ver o esposo. Para isto, utilizou-se de uma lucerna e, ao aproximá-
la ao deus, sofreu as consequências de seus atos. Grimal (2000, p. 400)6 descreve esta cena da
seguinte forma:
Desse momento em diante, Psiquê passaria a procurar o seu amado pelo mundo,
sofrendo as consequências de ter descumprido a promessa que o fizera. Impelida a encontrar
seu amado, e afrontada pela inveja da deusa Afrodite, Psiquê chega a ir ao Hades como uma
das condições para que tivesse de volta o seu esposo.
A sina de quem ama, pelo que colhemos nos mitos acima apresentados, seria andar
errante pelo mundo em busca da sua outra metade para, encontrando-a, vivenciar
devotadamente seu amor. O ato de amar, portanto, constrói no indivíduo uma condição de
profunda entrega e uma desenfreada necessidade de apoderar-se, aproximar-se do objeto
afetivo para, dispondo de sua presença, preservá-lo.
Bauman (2004, p. 24) confirma nossa assertiva, ao discorrer sobre o amor num
contexto atual, o que reforça a ideia de que as concepções sobre o amor, bem como as
experiências de quem o vivencia, parecem, de certa forma, ter sofrido poucas alterações ao
longo dos anos. Ele afirma que: “O amor [...] é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto
cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo”. Para ele, enquanto o
desejo estaria direcionado à ideia de “consumir”, o amor estaria centrado na ideia de
“possuir”. Além disso, Bauman (ibidem, p. 25) afirma que: “O amor aprisiona e coloca o
detido sob custódia. Ele prende para proteger o prisioneiro”.
Neste contexto, seria pertinente, para remetermo-nos ao que pretendemos observar nos
poemas recortados para nosso trabalho, levantar os seguintes questionamentos: como reagiria
6
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
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o indivíduo que devota seu amor a alguém ao deparar-se com a não reciprocidade ante o amor
despendido? Se o amor impele o indivíduo à busca, constrói no amante a necessidade de
possuir o ser amado para, em seguida, protegê-lo, o que resta ao indivíduo que não encontra
no ser amado a mesma dedicação e demonstração de amor?
Ao discorrer sobre o amor, e a ideia propagada pelo senso comum de que o ódio seria
seu contraponto, May (ibidem, p. 323) assinala que não o ódio, mas a repulsa seria o
contraponto do amor. Segundo May (ibidem, 324), “a repulsa é, na direção de suas reações, a
antítese do amor”. Desse modo, onde “o amor reage à promessa do outro com atenção e
paciência máximas, a repulsa reage com um afastamento imediato que foge de qualquer
atenção e paciência”.
Para nosso recorte, discorreremos, por meio de uma abordagem comparatista, sobre os
poemas Frieza7, de Florbela Espanca, e Solitário8, de Augusto dos Anjos. Sugerimos que
ambos os textos apresentam vozes líricas que, numa busca irrefreada, se remetem dramática e
rancorosamente aos seres que representam seus respectivos objetos amorosos e deparam-se,
não sem dor e sofrimento, com uma resposta que é assimilada como repulsa, preterimento e
rejeição.
Passemos, portanto, à análise dos poemas. Faremos, num primeiro momento, a análise
do soneto de Florbela Espanca e, em seguida, do soneto de Augusto dos Anjos.
7
ESPANCA, Florbela. Melhores poemas. Seleção de Zina C. Bellodi. São Paulo: Global, 2005. (Coleção
melhores poemas).
8
ANJOS, Augusto dos. Eu. Organização Fabiano Calixto. São Paulo: Hedra, 2012.
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Sobre a temática dessa poetisa, Bellodi (2005, p. 20)9 afirma que “seu grande tema é a
expressão da dor em várias situações, e com nuances diversificadas, expressão da dor que se
dá no confronto eu-outros”. Bellodi (ibidem, p. 22) enfatiza, ainda, que a obra de Florbela
Espanca está permeada por esse tema e aponta os aspectos através dos quais a dor se
manifesta em seus versos. Ela se manifestaria por meio da “mágoa”, “solidão”, “amargura”,
“frustração”, “busca incessante e intensa”, “entrega irrestrita” e, paradoxalmente, “medo e
recusa de encontrar”.
No soneto Frieza, poema que integra o Livro de Sóror Saudade (1923), localizamos
uma das principais temáticas da poetisa: o amor. Este surge como resultado de uma profunda
sensação de “mágoa” advinda de uma “entrega irrestrita” que não tem a reciprocidade do ser a
quem o amor é direcionado.
Façamos a leitura, a seguir, do poema sobre o qual discorremos:
FRIEZA
O título Frieza traz componentes semânticos que muito nos auxiliariam para melhor
compreender as ideias expressas no poema. “Frieza”, numa acepção comum, poderia indicar a
ausência de calor, o frio; por outro lado, e este elemento é mais pertinente para o que
discutimos, o vocábulo “frieza”, fora da sua acepção literal, remete-se à ideia de indiferença,
descaso, desprezo, irrelevância que um indivíduo, por algum motivo, parece demonstrar em
relação a outrem.
9
BELLODI, Zina C. Florbela – Vida e obra: uma apresentação. In: Melhores poemas– Florbela Espanca. São
Paulo: Global, 2005. (Coleção melhores poemas).
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O título dessa obra está, portanto, vinculado diretamente ao que o texto propõe, pois
nele há uma voz lírica que denuncia, em suas quatro estrofes, seu interlocutor como um ser
indiferente, capaz de demonstrar descaso, desprezo e preterimento ante sua manifestação de
amor.
Do ponto de vista formal10, podemos dizer que esse texto trata-se de um soneto
decassílabo com rimas ABBA / ABBA / CDC / EDE. Nos quartetos, localizamos rimas
interpoladas e, nos tercetos, rimas encadeadas.
Nas duas estrofes introdutórias, percebe-se a recorrência da consoante fricativa
alveolar11 /s/ que poderia sugerir, nas camadas profundas do texto, a fluidez de espadas que,
em contato com o ar, ocasionariam a produção de sons sibilantes. Isto poderia indicar,
também, numa acepção metafórica, que a indiferença dispendida pelo interlocutor causaria, à
voz lírica, a sensação de ter a alma cortada por espadas tão frias quanto cortantes. Além disso,
a sensação de profunda mágoa, e intensa angústia, poderia ser sugerida pela recorrência de
sons nasais /m/, /n/, /ã/ e /nh/, sugestivos do forte teor melancólico que surge ao longo do
texto.
Outro aspecto a ser considerado nesse texto é o uso exaustivo de adjetivos. Com isso,
o poema adquire teor descritivo apresentado por um ângulo de visão que busca utilizar o
descritivismo como reforço para a expressão das sensações que experimenta. Além disso,
conjunções aditivas sugerem a necessidade de afirmar, como se a voz lírica tentasse expressar
suas insatisfações em um só fôlego, os sofrimentos em profusão que, ao sentir-se preterida,
esta vivencia.
Partiremos, após essa breve explanação de caráter formal, para o que nos interessa
discutir na obra.
Podemos dizer que esse poema apresenta o resultado de uma declaração de amor
proferida por uma voz lírica que, após exprimir seus sentimentos ao ser amado, mostra, em
decorrência do preterimento, seu total inconformismo.
Inicialmente, essa voz lírica passa a estabelecer comparações entre o modo de olhar do
interlocutor e a frieza e violência que seriam peculiares aos metais cortantes. Os vocábulos
“espadas”, “punhais”, “metais” e “lâminas”, que estão no campo semântico de objetos
cortantes, muito utilizados como material bélico no período medieval, aparecem, no texto,
adjetivados pelos vocábulos “claros”, “brilhos” e “fulgores”. Este excesso de claridade seria
10
AZEVEDO, Rafael Sânzio de. Para uma teoria do verso. Fortaleza: EUFC, 1997.
11
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.
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uma metáfora para os olhos do amado que, com seu brilho natural, passa a ter conotação de
armas cujo poder destrutivo seria capaz de perfurar o corpo e, mais que isto, a alma do ser a
quem esse olhar é direcionado.
Nos primeiros versos da segunda estrofe, poderemos nos deparar com a seguinte
imagem: “Vejo neles imagens retratadas / De abandonos cruéis e desleais”. O dêitico “neles”
retoma o vocábulo “olhos” e é como se a voz lírica olhasse para o espelho dos olhos do seu
amado e visse, neste olhar, a reprodução do abandono assimilado como algo “cruel” e
“desleal”. Ao vislumbrar-se num espelho, o indivíduo consegue, é óbvio, ver a si mesmo.
Portanto, ao olhar para os olhos do amado a voz lírica vê, em verdade, a si mesma e,
personificando a imagem do abandono, ao mesmo tempo em que realiza uma perceptível
chantagem emocional, tem piedade de si mesma a ponto de perceber no olhar do seu amado,
não sem rancor e mágoa, a sensação que vivencia em seu próprio íntimo.
Poderíamos, no entanto, considerar também outra leitura para a imagem que esses
versos propõem. Neste caso, poderíamos pensar que a voz lírica apenas aponta, com teor de
recriminação, para o que estaria por trás dos olhos do seu amado: um comportamento
antípodo ao que ela busca em sua visão idealizada do amor.
No olhar do seu amado, ferino como cortantes espadas, estariam: abandono, crueldade,
deslealdade, desejos irreais – teria ele dito que a amava quando, em verdade, apenas a queria
consolar, criando nela falsas expectativas? – e uma vida boêmia – supomos que o “oiro e o sol
das madrugadas”, a que a voz lírica alude no texto, diz respeito às claridades da noite
propensa à boemia e às aventuras amorosas descomprometidas.
Como se quisesse manter seu brio, ante a humilhante constatação de que era preterida,
a voz lírica mantém-se altiva e afirma, ironicamente: “Mas não te invejo, Amor, essa
indiferença / Que viver neste mundo sem amar / É pior que ser cego de nascença”. Em
seguida, ainda projetando no ser amado aquilo que ela vivencia, esta afirma, numa tentativa
de sentir-se superior quando, em verdade, sentia-se inferiorizada, que seu amado “inveja a
dor” que nela seria vívida, intensa.
Preterida, enganada e impotente ante a frieza do seu amado, a voz lírica esparge,
porque lhe resta a palavra como meio através do qual expurgará sua desilusão, sua indignação
contra o homem que a pretere afirmando, como se recorresse a um argumento tão pueril
quanto improvável, que este teria inveja pela dor que ela sente.
A esta, numa tentativa última de externar sua inconformidade, resta impetrar contra
seu amado uma espécie de praga. Ela deseja, amargurada, e em tom vingativo, que no futuro o
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homem que a destrata – isto é confirmado pelo uso do verbo no futuro do presente “dirás” –
seja vitimado pela mesma dor que tumultua sua vida: “Quanta vez dirás a soluçar / Ah! Quem
me dera, Irmã, amar assim”.
Em suma, dentre as temáticas encontradas no texto, podemos destacar: o amor não
correspondido, a frieza por vezes presente nas relações afetivas, a sensação de inferioridade
que o preterimento pode causar a quem confessa seu amor a um ser que não corresponde tal
sentimento e, sobretudo, a dor ocasionada pela incompatibilidade de afetos advinda de quem
busca, de forma idealizada, o seu complemento, seu amor e cai, inopinadamente, na
frustração.
A propósito, se pensarmos esse poema em comparação com o soneto Solitário, de
Augusto dos Anjos, em que aspectos poderemos relacioná-los? Vale lembrar que tanto
Florbela Espanca quanto Augusto dos Anjos foram considerados exímios produtores de
sonetos e inovadores, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo, sendo
considerados, assim, autores de obras inclassificáveis, por amalgamarem aspectos diversos da
estética de várias escolas literárias.
Em ambos os autores, percebemos a recorrência, para ficarmos apenas em um
exemplo, de traços pertinentes à obra Simbolista. Florbela Espanca, assim como Augusto dos
Anjos, recorre ao uso de iniciais maiúsculas no início de alguns vocábulos em vários textos.
No soneto Frieza, poderemos destacar os vocábulos: “Amor” e “Irmã”. No soneto Solitário,
analisado em seguida, percebemos essa característica na escrita do vocábulo “Desgraça”. Em
ambos os autores, essa marca representa uma ênfase que amplia o valor semântico do
vocábulo.
Além disso, Florbela Espanca apresenta nesse soneto a recorrência de aliterações que
propiciam perceptível musicalidade ao texto, algo bem ao gosto dos simbolistas, o que
também acontece na obra de Augusto dos Anjos.
O tema do amor, desta feita expressa na incompatibilidade dos afetos vividos pelas
vozes líricas desses textos, em relação aos objetos a quem estes devotam suas pulsões
amorosas, caracteriza-se como outro aspecto que os aproximaria na criação dessas obras.
Por essas razões, para não nos estendermos, consideramos que seria possível realizar
esta – bem como diversas outras – análise de caráter comparativo entre obras de Florbela
Espanca e Augusto dos Anjos.
SOLITÁRIO
12
BARBOSA FILHO, Hildeberto. Arrecifes e lajedos: breve itinerário da poesia na Paraíba. João Pessoa:
Editora Universitária / UFPB, 2001.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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Atentemos para o termo “Desgraça” que, como é típico dos simbolistas, traz a inicial
maiúscula para enfatizar a mensagem que este termo evoca.
Na estrofe final, que nos apresenta uma das marcas por excelência do estilo de
Augusto dos Anjos, o preterimento amoroso não só representa o dilaceramento da voz lírica,
também a aproxima à imagem de um caixão em que, em seu interior, jazeria um defunto já
carcaça, cujos restos mortais – ossos – estariam a chacoalhar funestamente.
Percebemos, portanto, que em Augusto dos Anjos a sensação de preterimento
experimentada pela voz lírica que este insere em seu soneto passa por uma desilusão tão
profunda quanto a que a voz lírica de Florbela Espanca. Pelas imagens criadas por Augusto
dos Anjos, no entanto, somos levados a crer que a voz lírica do seu poema passa por uma
experiência que o impele a uma visão mais derrotista, pessimista e desencantada da vida.
Enquanto no soneto de Florbela Espanca a voz lírica é capaz de, por meio de um discurso de
desforra e inconformismo, querer se sobrepor ao ser que a pretere, a voz lírica do soneto de
Augusto dos Anjos entrega-se à desilusão e cai numa introspecção que invalida seu gesto
anterior de ir, como num impulso, à casa de sua amada exprimir seu amor. Este entrega-se à
desilusão, sente-se despedaçado, mas não parece querer reivindicar, antes parece restringir-se
à conformidade e lamentar, ao invés de retrucar, ou mostrar seu inconformismo.
A frieza do ser amado conduz essas vozes líricas, como pudemos constatar, à solidão e
à perda de perspectivas em relação aos seres a quem direcionam seus afetos. Como
andróginos partidos que buscam suas metades, ou como Psiquê que busca, errando pelo
mundo, o seu Eros, essas vozes buscam o amor, porém deparam-se com reações inopinadas:
são vítimas de preterimento, ou seja, caem nas sendas amargas dos que amam sem serem
amados.
Condiserações Finais
As vozes líricas desses poemas, ao que supomos, estariam fadadas a lidar com a
rejeição, com a sensação nada agradável de sentirem-se frustradas em decorrência de
mostrarem-se suscetíveis ao amor sem, contudo, serem correspondidas. Estas, longe de
repudiarem seus objetos afetivos, tentam criar, pateticamente, um teor de chantagem
emocional na intenção de comovê-los e suscitar, neles, o mesmo amor que experimentam em
si. Elas trazem em si, portanto, o desejo de encontrar suas metades – assim como nos sugere o
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mito proposto por Aristófanes – e empreendem uma busca nada sutil em direção ao ser amado
– como o fizera Psiquê.
No poema de Florbela Espanca, no entanto, a busca se manifesta por meio da ação
verbal que encontra na retórica um meio através do qual evidenciará toda amargura que traz
em si, ante o evidente preterimento; e no poema de Augusto dos Anjos, além de recursos que
estariam num plano da ação verbal, também é perceptível uma ação prática – a voz lírica neste
autor vai até a casa de sua amada.
Além de serem conhecidos expressivamente pela produção de sonetos, ambos
constroem poemas que perpassam a mera formalidade ao introduzir aspectos inovadores em
suas obras.
Augusto dos Anjos – cuja obra tanto apresenta traços do Simbolismo quanto do
Parnasianismo, bem como aspectos formais e conteudísticos modernistas –, em sua lírica,
como afirma Gouveia (2007, p. 160), “já integra as vertentes estéticas mais radicais do século
vinte, no sentido da adesão à fealdade, à iminência da morte como constitutiva da consciência
em graus inconsoláveis, à irreversibilidade de todo um processo destrutivo inerente à
existência”.
Florbela Espanca, por sua vez, produz uma poesia, como aponta Bellodi (2005, p. 19),
“que pode ser entendida como um corpo estranho na História da Literatura Portuguesa, pois é
difícil classificá-la”. Assim como o poeta brasileiro, a obra de Florbela Espanca remete-nos às
características de obras clássicas, românticas, simbolistas e, sobretudo pela abordagem de
alguns temas, e pela época em que foi produzida, modernista.
Consideramos valorativo, e instigante, pensar a obra desses poetas numa perspectiva
dos estudos comparados. Estamos certo de que muitas abordagens, além das que observamos
neste breve estudo, poderiam ser desenvolvidas. O preterimento amoroso, que se caracteriza
como nossa categoria analítica, em ambos os textos pode ser compreendido como o resultado
frustrante de uma busca amorosa empreendida por vozes líricas que se dispõem a confessar o
amor que sentem sem, contudo, obter uma resposta que correspondesse às expetativas que
alimentam. O discurso lírico, construído sob a égide de imagens dramáticas originais e
criativas, apresentado por esses poetas reforça a ideia de que eles são exímios sonetistas e
devem figurar como os mais representativos da Língua Portuguesa.
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Referências
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Paulo: Global, 2005. (Coleção melhores poemas).
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GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4.
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