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A literatura & tempo: cem anos de encantamento

II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS


ISBN: 978-85-6641465-3
Página 1

Maria do Socorro Silva de Aragão


Organizadora

II CONALI
Congresso Nacional de Literatura
A literatura & tempo: Cem anos de encantamento

ANAIS

João Pessoa – PB
Novembro de 2014
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 2

Todos os textos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Diagramação:
Paulo Aldemir Delfino Lopes

ARAGAO. Maria do Socorro Silva de. (Org.). II CONGRESSO


NACIONAL DE LITERATURA – II CONALI – Anais. João
Pessoa: Mídia, 2014, 1054 p.

ISBN: 978-85-6641-465-3

1. Literatura Brasileira – Dos Anjos, Augusto.

CDU: 869

Mídia Gráfica e Editora Ltda.


Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal
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APRESENTAÇÃO

Maria do Socorro Silva de Aragão1

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,


Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Vozes da Morte - Augusto dos Anjos

No ano de centenário do falecimento de Augusto dos Anjos um conjunto de


instituições organizou uma programação durante todo o ano de 2014, com conferências,
aposição da estátua de Augusto na Academia Paraibana de Letras, Homenagens nas diversas
Academias de Letras e Artes da Paraíba, Homenagens em Órgãos do Poder Legislativo da
Paraíba, terminando em novembro com a realização do Congresso Nacional de Literatura –
II CONALI: “Augusto dos Anjos, a Literatura e o Tempo: Cem Anos de
Encantamento”.
O Congresso, ponto alto das homenagens a Augusto dos Anjos, foi um forum onde se
discutiram temas ligados à Vida e Obra do Poeta; à Poesia Brasileira; Literatura Regional;
Literatura Popular; Análise do Discurso Literário; Linguagem e Literatura; Literatura e
Cultura e Tradução.
A programação do II CONALI foi organizada em:

Seis conferências:
 Prof. Dr. Sergio Alcides Pereira do Amaral (UFMG): “Augusto dos Anjos e a poesia
moderna nesta América”
 Prof. Dr. Álvaro Santos Simões Jr.– Universidade do Estado de São Paulo – UNESP Assis
- São Paulo:” A Crítica de Poesia nas Primeiras Décadas do Século XX”
 Prof. Dr. Chico Viana – Universidade Federal da Paraíba: “Sobre a Modernidade de
Augusto dos Anjos”

1
Dra. em Linguística. Professora da UFPB e da UFC. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste –
Núcleo da Paraíba – ALANE-PB. Membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba. Membro da
União Brasileira de Escritores – UBE-PB. Membro da Associação Amigos de Augusto dos Anjos. Presidente da
Comissão Organizadora do II CONALI.
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 Prof. Dr. Hildeberto Barbosa Filho - Universidade Federal da Paraíba – “Augusto dos
Anjos e História Literária”
 Prof. Dr. Antônio Dimas – Universidade de São Paulo – “Augusto dos Anjos lido por
Gilberto Freyre”
 Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin – Universidade Estadual Paulista – UNESP –
Araraquara – “Literatura, Discurso e Produção de Identidade”

Sete Mesas-Redondas:
 José Américo entre o real e o ficcional;
 Augusto dos Anjos: A tua sombra há de ficar aqui;
 Ariano: a parte e o todo;
 Ensino de língua e literatura: um diálogo possível?;
 Benditos frutos da literatura popular nordestina;
 Análise do discurso, Literatura e Mídia;
 Produção de Sentidos na mídia e na literatura: abordagens discursivas

10 Sessões de Comunicação Coordenada:


 Discursos Pós-modernos e relações de identidades
 Literatura Regional Popular
 Situações do romance de expressão portuguesa e de expressão espanhola
 Literatura e Psicanálise: signos do erotismo
 Ficção científica e a crise de identidade
 Nas teias do discurso e da cultura: literatura, cinema, música e sociedade
 Língua e Cultura do Maranhão
 Memória, História e efeitos de sentido no discurso literário
 Estudos sobre Augusto dos Anjos
 Dramaturgia Irlandesa: Estética, Religião e Política em cena

13 Sessões de Comunicação Individual, nos Eixos Temáticos:


 Vida E Obra de Augusto dos Anjos
 Análise do Discurso Literário
 Linguagem e Literatura
 Literatura Popular / Regional
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 Poesia Brasileira
 Literatura, Cultura e Tradução
Os trabalhos aqui apresentados mostram a diversidade de aspectos e visões dos
estudos literários e linguísticos, por professores, escritores, especialistas e estudantes de dez
estados de todas as regiões brasileiras, numa demonstração do interesse, da importância e da
oportunidade da realização de eventos como este.
Apenas como uma amostragem, temos textos sobre autores brasileiros e estrangeiros,
músicos, cineastas, filósofos e poetas populares, como, por exemplo: Augusto dos Anjos,
Ariano Suassuna, Carlos Drummond, Gilberto Freyre, Wirginia Woolf, Câmara Cascudo, F.S.
Key Fitzgerald, Kieron Gillen, Jamie McKelvir, Yeats, Samuel Beckett, Damien Hirst, Sean
O’Casey, Marion Carr, Gottfried Benn, Isaac Asimov, Antônio Olinto, Domingos Vieira
Filho, Felipe Alface, Eça de Queiroz, Gilvan Lemos, Leonardo Mota, Zé Vicente da Paraíba,
Caio Fernandes Abreu, Mary Shelley, Luiz Gonzaga, Ernesto Sábato, Romeu Correia, Manuel
da Fonseca, Onjaki, Luis Silva, José do Patrocínio, Cíntia Moscovich, Chico Buarque,
Antônio Gonsalves Teixeira e Silva, Júlia Lopes de Almeida, Lima Barreto, Renato Caldas,
Airton de Nogueira Monte, Luís Jardim, José Costa Leite, Antônio Klévisson Viana,
Guimaráes Rosa, Rubem Fonseca, D.H. Lawrence, Christine de Pizan, Arthur Rimbaud,
Annie Proulx, Paul Ricoeur, Kate Chopin, Micheliny Verunschky, Eduardo Strezi, Roberto
Pontes, Mário Quintana, Cora Coralina, Vinícius de Morais, Alphonsus de Guimarães, Da
Costa e Silva, Gregório de Matos, Maria do Socorro Silva de Aragão. Clarice Lispector,
Edgar Allan Poe, Florbela Espanca, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José
Américo de Almeida José Saramago, Ligia Fagundes Teles, Machado de Assis, Manoel de
Barros, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Rachel de Queiroz,
O lançamento de 25 Livros, 02 Revistas e 02 Folhetos de Cordel, além das
Homenagens a Ariano Suassuna e Manuel Monteiro, falecidos em 2014, e a programação
artístico-cultural complementaram as homenagens a Augusto dos Anjos nesse centenário de
seu Encantamento.
Assim, é com alegria e grande honra que a Coordenação Geral do II CONALI entrega
à comunidade paraibana e brasileira o resultado desses estudos, em forma de Anais do
Congresso.
Nossos agradecimentos especiais, em primeiro lugar a todos os participantes, que
atenderam ao nosso convite e vieram à Paraíba apresentar seus trabalhos, discutir com seus
pares a literatura brasileira e universal, lançar seus livros e confraternizar conosco nos
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momentos de lazer, na bela terra de Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, José Américo de
Almeida, Ariano Suassuna e de tantos outros paraibanos ilustres. Vocês é que, na realidade,
fizeram este Congresso.
Queremos agradecer à Universidade Federal da Paraíba, na pessoa de sua Magnífica
Reitora, Professora Margareth de Fátima Formiga Melo Diniz; ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFPB, através de sua Coordenadora Professora Socorro de Fátima
Pacífico Barbosa que aceitou sediar o Congresso; ao Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes da UFPB, na pessoa de sua Diretora, Professora Mônica Nóbrega, que nos apoiaram em
todos os momentos.
Um agradecimento especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES, do Ministério da Educação e Cultura - MEC, na pessoa do Professor
Dermeval da Hora Oliveira, que aprovou o nosso projeto, alocando recursos para o II
CONALI.
Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, na pessoa do seu
Magnífico Reitor, Professor Cícero Nicácio do Nascimento Lopes.
Merece destaque, ainda, a Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de
João Pessoa, na pessoa de seu Secretário, Professor Luís de Souza Júnior e a Secretaria de
Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Sapé, na pessoa de seu Secretário, Professor
Kildare André Lima de Freitas.
Finalmente queremos agradecer aos nossos colegas da UFPB, aos alunos de Pós-
Graduação em Letras e todos os funcionários da UFPB que nos apoiaram e vestiram conosco
a camisa deste evento, tão significativo para todos nós e para a Paraíba.
Queremos terminar com versos de nosso homenageado maior deste Congresso,
Augusto dos Anjos, em seu Centenário de Encantamento:

Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

Debaixo do Tamarindo – Augusto dos anjos

Para nós, Augusto continua aqui.


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Conferências
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AUGUSTO DOS ANJOS E A CRÍTICA DE SEU TEMPO

Alvaro Santos Simões Junior


(UNESP/CNPq/FAPESP)
Introdução

Pretende-se aqui, nestas poucas páginas, modestamente apresentar aspectos do


contexto que precedeu a publicação do Eu, de Augusto dos Anjos, em 1912 e, além disso,
comentar alguns dos principais textos da crítica contemporânea a respeito do livro.

Passado ainda vivo

A leitura do hebdomadário O Álbum (1893-1895), dirigido por Artur Azevedo,


indicava que, na década de 1890, a maneira dos poetas estudados por Antonio Candido em
“Os primeiros baudelairianos” ainda encontrava os seus seguidores, nos quais se notava o
gosto pela depravação e certa perversidade com laivos de sadismo, que seriam próprios do
poeta das Flores do mal, e também a violência devoradora do impulso amoroso, que seria, nos
poetas brasileiros, um desenvolvimento original de certos traços sutis do poeta francês.
Assim como seu irmão Aluísio, Artur Azevedo muito provavelmente esteve ligado aos
baudelairianos Carvalho Jr., Teófilo Dias e Fontoura Xavier por laços de amizade e afinidade
ideológica. Note-se que Fontoura Xavier foi homenageado pel’O Álbum com biografia escrita
pelo próprio editor, além do retrato costumeiro. Artur Azevedo e os três baudelairianos foram
estudados por Machado de Assis em “A nova geração”, ensaio publicado na Revista
Brasileira em dezembro de 1879. Dos integrantes desse grupo de poetas, foram honrados n’O
Álbum com retrato e biografia Valentim Magalhães e Afonso Celso, além do já mencionado
Fontoura Xavier.
Entre os poetas que recuperaram o exacerbado erotismo dos primeiros baudelairianos,
conta-se Cunha Mendes (1875-1934), que estampou n’O Álbum, sob a epígrafe “Poema da
carne”, dez sonetos1 dedicados a Artur Azevedo, dos quais se transcreve abaixo o quarto:

Que delicado olor vai-se espalhando em torno!


E o acre aroma gostoso, esse aroma de carne
Dá-me o ímpeto brutal por que louco descarne
Teu belo corpo ideal, acetinado e morno...

1
Três anos depois (1896), Cunha Mendes lançaria livro de versos com o título de Poemas da carne.
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Sangue! Belo seria em cada leve adorno


Uma gota sanguínea! Ah! o delírio se encarne
Nessas veias azuis mais que os jardins de Marne
Cheirosas. Patenteia o nítido contorno,

A plástica serena, os assombrosos traços


Da beleza triunfal: dá-me a grandiosa cruz,
Para eu morrer feliz em teus formosos braços!

Deixa o beijo picar-te os lábios de romã:


Que eu sinta o casto amor do místico Jesus
Com as delícias brutais do trágico Satã!
(n. 32, ag. 1893, p. 252)

Nota-se, nesse soneto, que o sadismo, manifestado no impulso de devoração


espicaçado pela iminente posse da amada e na insólita sede se sangue, associa-se a anseios
masoquistas. O poeta deseja lançar-se aos braços da amada abertos em cruz para conciliar,
numa crucifixão de nova espécie, os satânicos prazeres sensuais com o divino amor
sublimado. A propósito, as duas últimas estrofes apresentam elementos caros à estética
simbolista: um símbolo religioso, — a cruz, — e duas personagens que personificam os
princípios metafísicos do Bem e do Mal. Entretanto, enquanto no simbolismo o impulso
amoroso é sublimado, nos versos de Cunha Mendes concepções transcendentes são
empregadas para traduzir sensações físicas, o que configura uma clara reversão do impulso
ascensional da estética simbolista.

Expectativa por uma nova poesia

Em 3 de agosto de 1899, Paulo Barreto estrearia como crítico literário sob o


pseudônimo de Claude na Cidade do Rio, de José do Patrocínio. O primeiro texto por ele
publicado seria dedicado à resenha de Terra dolorosa, livro de contos de Oliveira Gomes, que
Claude identificaria como um dos líderes simbolistas. O crítico iniciou seu texto
reconhecendo que o autor “editou o seu livro preciosamente com uma capa lembrando
missais”, mas logo afirmou que o artifício não passava de “uma imitação das edições do
Mercúrio de França, fonte centralizadora da decadência espiritual latina”. Ao tratar do estilo
do autor, Claude não foi menos impiedoso: “São quase nevroses aquelas frases cheias de
reticências com uma porção de palavras começando por letras maiúsculas”. Terra dolorosa
discreparia, segundo o crítico, da positividade científica do século XIX:
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Quando, em plena Europa no começo deste século, a cruzada de uma arte


forte, que fosse a vida, propagou-se por uma dezena de grandes homens,
quando o experimentalismo surge com Claude Bernard e Chevreul fundando
um método novo da positividade; quando Comte fez uma enciclopédia
tremenda de saber, reformando toda a matemática, fundando a lei dos três
estados, e Darwin, um desdobramento de Lyell e Lamarck, demonstra o
evolucionismo e a seleção; os cérebros impotentes para pensar, atacados de
uma degeneração mental trazem à publicidade pedaços esparsos da sua
pobreza cerebral, trapos dolorosos da decadência de uma raça, revivendo a
sensualidade mórbida de Salomão, a decrepitude romântica.

Na Cidade do Rio, Paulo Barreto ainda examinou livros de românticos retardatários e


de parnasianos, mas na resenha dos Cantos, de J. H. de Freitas, publicada em 4 de setembro,
revelou que seu ideal de poesia ainda não se realizara, apesar do brilho fugaz dos primeiros
parnasianos:

O Parnasianismo, única forma de verso aceitável, desde que ainda não houve
poeta capaz de nos dar o verdadeiro naturalismo, ora pecando pela
exageração com Richepin, ora pela timidez com Coppée; nunca ficam
perfeitamente estabelecidos aqui, estiolando-se naqueles mesmos que a
aclimaram  a arte teve um momento de elegância do verso, de qualquer
cousa de fino, rápido e brusco, como um fogo de vistas: a aclimação dos
delírios de Catulle Mendes e Banville, sendo a geração de 1880 a única que
se pode orgulhar disso.

Independência diante da crítica contemporânea

Na virada do século, os simbolistas já tinham criado anticorpos para resistir às


zombarias e ao desprezo de seus adversários. Ao tratar da monografia de Nestor Vítor sobre
Cruz e Sousa, publicada em 1899, Gustavo Santiago insurgiu-se contra os críticos dos jornais,
aos quais acusou de leviandade e má-fé:

Nem os seus juízos, se a tais coisas se deve de dar tal denominação, se


pautam em uma verdade, embora agressiva por certeza intelectiva; nem as
suas opiniões resultam de horas longas enfebrecidas, em estudo sério e
nobilitante. Há sempre por trás, a mostrarno-los simiescamente ridículos em
o seu dogmatismo de mestres-escola, quando não o interesse ocasional, o
medo oficializante e oficial da Opinião.

O resultado da atividade dos chamados críticos de rodapé seria, segundo Santiago,


simplesmente deplorável:

[...] a sua crítica é sempre um arrastar de muletas, um notar engraçado de


erros de gramática e senões sem importância alguma, um desconhecer
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capciosamente aparvalhado de causas e elementos diversos e múltiplos, em


outros um vazio absoluto de idéias e argumentos, um arrojo cretino de frases
sem nexo e insultuosas, um antes achincalhamento da reputação alheia. Não
vêem, não sabem ver ou não querem ver, obsedados por isto ou por aquilo;
entendem, entretanto, que podem e devem julgar; julgam desse modo; o
resultado é o perfeito desprezo do criticado pelo crítico em algumas ocasiões
até a sua revolta afirmada solenemente na ponta de uma bengala.
.................................................................................
A crítica, [...] legitimamente crítica, fundamentalmente, não pode estar
a preocupar-se com essas minudências, com essas ninharias de colocações
pronominais, rigorismos sintáticos, regrinhas balofas, só demonstrativos de
cômodas preguiças mentais, deturpações vergonhosas das altas funções do
espírito.

Augusto dos Anjos, herdeiro da poesia científica

Em um dos primeiros textos publicados na imprensa, em 14 de junho de 1912,


Augusto dos Anjos foi logo identificado como seguidor da “poesia científica”, cujo iniciador
no Brasil teria sido José Isidoro Martins Jr., que estudara na Faculdade de Direito do Recife.
Porém, o crítico da Gazeta de Notícias, Nazaré Meneses (1882-1926), julgava que essa escola
havia passado, assim como o mais recente “nefelibatismo”. Fugindo à “expressão verdadeira”
da poesia brasileira, Augusto dos Anjos teria apenas produzido mais um “ensaio” revelador de
talento e de qualidades como a de saber produzir o “verso sonoro e cantante”. Exemplos
desses momentos felizes seriam os sonetos dedicados ao pai e o intitulado “O morcego”.
Apesar desses elogios mais ou menos convencionais, Meneses apresentou suas restrições
quanto ao “amontoado de palavras difíceis” e às “extravagâncias” do livro, que seriam
resultado de sua adesão à “poesia técnica, muito imprópria e muito postiça”.

Perplexidade da crítica contemporânea

Em 17 de junho de 1912, o parnasiano Osório Duque-Estrada (1870-1927) avaliaria o


Eu para o Correio da Manhã. Naquela ocasião, o crítico já discernia com clareza dois grupos
entre os leitores do poeta paraibano. Alguns o proclamavam “artista incomparável,
extraordinário, único, original e perfeito” por julgarem, segunda a irônica observação do
crítico, “que o inédito é sempre lastro do gênio, ainda mesmo quando se confunde com a
incongruência e o disparate”. Outros, ao contrário, rejeitavam os versos de Augusto dos Anjos
e dirigiam contra ele as “setas envenenadas da zombaria e do remoque” porque na poesia
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procuravam “o veio puro do lirismo e da espontaneidade” e detestavam “todo artifício de


forma ou qualquer extravagância de conceitos”.
O testemunho de Duque-Estrada já comprovava que a intelectualidade carioca não
ficara indiferente à nova obra poética. Da sua parte, o crítico do Correio da Manhã pretendeu
demonstrar que os critérios dos dois grupos eram “destemperadamente injustos e exagerados”.
Em sua opinião, a “equidade para o julgamento sereno” deveria ser procurada no “meio
termo”.
O novo poeta não deveria ser confundido com “uma certa escola nefelibata”, de que
seria representante B. Lopes, porque não se resumia a ser “rimador de dispautérios e de
sandices sem nexo” e, no fundo de sua “complicada poesia”, se encontraria o “lastro de um
cientista e de um esteta de raro merecimento”.
Osório Duque-Estrada reconheceu no poema “Monólogo de uma sombra” um
“manifesto” ou “programa” do poeta; o longo texto seria a “pedra de toque para aferir os
defeitos e as qualidades principais do artista do Eu”. Nele se encontrariam, lado a lado,
“ideias estapafúrdias e estrofes opulentíssimas em que tanto se admira a elevação do conceito,
como o requintado da forma”.
Para o crítico do Correio da Manhã, “As cismas do destino”, “Os doentes”, “Vozes de
um túmulo” e “Noite de um visionário”, entre outros poemas, seriam “verdadeiras
monstruosidades, aleijões abortados de uma fantasia delirante e de uma torturada imaginação
que se obstina em parecer única e original”. Duque-Estrada também condena a prática de
deslocar a “acentuação dos vocábulos” e, em suma, a “prosódia deturpadora e anárquica”, da
qual resultariam tantos “versos errados”.
Como declarara de início pretender alcançar o “meio termo”, o crítico, após formular
tais restrições à poética do autor, iria finalmente considerá-lo “cientista e filósofo conhecedor
de todo o monismo de Haeckel”, “pensador inspirado de tão elevados conceitos”, autor das
“belas estrofes da poesia ‘Mater’” e do “admirável soneto ‘Versos a um cão’”. A sua
apreciação final é, essencialmente, negativa pois nela os defeitos reais são contrabalançados
por qualidades meramente potenciais: “Um grande talento transviado pelo cientificismo; a
promessa de um extraordinário poeta, abortada na alma de um filósofo ...”.

Augusto dos Anjos dandy


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Em sua revista Fon-fon, o poeta simbolista Mário Pederneiras (1868-1915) publicou


breve notícia a respeito do Eu. Saído em 6 de julho de 1912, o texto vinha acompanhado de
um belo instantâneo do poeta a caminhar pela Avenida Central no Rio de Janeiro. Além da
fotografia, o texto pouco trazia de relevante, atribuindo a Augusto dos Anjos “certo abuso
exagerado na exibição de conhecimentos científicos” e reconhecendo em seu livro “belezas
intensas” e “uma encantadora nota de originalidade”. No entanto, Pederneiras garantia que o
estreante não deveria ser classificado entre os “Poetas Macabros”, pois sua “emoção” era às
vezes “de uma delicadeza que só pode ser atingida pelos temperamentos de escol”. Como
manifestações dessa qualidade citou os poemas “Debaixo do tamarindo”, “Solitário”,
“Idealismo”, “Ricordanza della mia gioventù” e “Vencedor”. Estes dois últimos foram
transcritos na íntegra.

O pessimismo como tendência predominante

Em 7 de agosto de 1912, a Gazeta de Notícias voltaria a ocupar-se do poeta paraibano.


Dessa vez, a crítica ficou a cargo do simbolista Antônio Joaquim Pereira da Silva (1876-
1944), que considerou a poética de seu conterrâneo Augusto dos Anjos “extravagante,
esquisita, exdrúxula”, mas essas qualidades revelariam a “profunda sinceridade do poeta
complexo”. Pereira da Silva ensaiou uma interpretação geral do Eu, em cujas estrofes notava
“desespero incontido”, e atribuiu ao poeta uma “intensa angústia inédita e incontida” e uma
“concepção filosófica um tanto pessimista”. De um lado, em Augusto dos Anjos, a “Ideia”
não se sobrepunha à sua “enorme sensibilidade, quase doentia de tão acicatada”; de outro
lado, porém, a espontaneidade do poeta prejudicava “a profundeza do conceito no arrevezado
da forma”.
A resenha da Gazeta de Notícias continha uma comparação de Augusto dos Anjos
com o português Antero de Quental; ambos os poetas possuiriam um “psiquismo dominante”
por força do qual sempre se via o mundo “sob a mesma projeção sombria do próprio espírito”.
Porém, enquanto Antero de Quental era “um místico”, Augusto dos Anjos se revelava um
“poeta de viva imaginação, corroído [...] por uma impenitente filosofia naturalística”. Em
ambos, a “concepção restrita da filosofia” restringia “como um guante de ferro” os
“movimentos espontâneos do verdadeiro espírito livre”.
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Para Pereira da Silva, os poemas “de caráter abstrato” do Eu eram todos escritos sob a
influência de Ernst Haeckel, por cujos óculos Augusto dos Anjos tendia a ver a natureza
excessivamente “escura”.
Em sua conclusão, o crítico da Gazeta de Notícias declarou que o Eu seria a
“expressão viva de um estado d’alma” coletivo: o dos “espíritos voluptuosamente fascinados
pela ciência positiva”.

Augusto dos Anjos, o maior dos novos

No diário A Época, edição de 6 de outubro de 1912, José Oiticica (1882-1957)


publicou extensa apreciação do Eu em que considerou o livro “uma promessa respeitável” e o
seu autor, “um estreante de larga envergadura, talhado a honrar as nossas letras”. Tendo
estreado com Sonetos em 1911, Oiticica julgava que a “qualidade essencial” do poeta novo
deveria ser colocar-se no “rumo da arte universal” e distanciar-se do “racionalismo de
fancaria e ainda mais do indianismo tacanho de um Gonçalves Dias”. Muito curiosa e
extemporânea é a prevenção do crítico contra o poeta maranhense, autor, em sua opinião, do
“tragi-cômico e cacetíssimo ‘I Juca-Pirama’”.
Augusto dos Anjos, no entanto, apresentava-se como “um decisivo pesquisador de
novos moldes na interpretação do mundo”, dotado de “acuidade singular” que lhe permitia
perceber nitidamente “correlações não entrevistas pelo comum dos homens”. Juntamente com
Hermes Fontes e Heitor Lima, o poeta paraibano confirmava para o crítico a tendência da
poesia brasileira de então para as “sínteses vastas dos fenômenos naturais”. Porém,
comparado aos seus colegas, Augusto dos Anjos demonstrava “preparo muito mais sério e
não menor originalidade”. Na opinião de Oiticida, esses poetas novos praticavam a
“integralização do homem no universo”, compreendendo o homem como um dos
“inumeráveis fenômenos” da natureza e, assim, corrigindo o secular “erro antropocêntrico”
que colocava o homem no centro do Universo.
O crítico de A Época transcreveu fragmentos de “Monólogo de uma sombra” e
“Psicologia de um vencido” e todo o soneto “Mater originalis” para demonstrar que, na obra
do poeta, “a integralização do homem no universo é o tema quase contínuo”. Lamentou, no
entanto, que a filosofia de Augusto dos Anjos fosse “ultrapessimista” e que visse no mundo
apenas “a dor, a podridão, os intestinos e os vermes”. Seguindo os parâmetros da crítica de
então, Oiticica também condenou problemas de versificação e correção gramatical que notou
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no Eu: versos “duríssimos” ou “frouxos”, incorreções de ortografia e prosódia e vocabulário


“rebarbativo”.

Conclusão

Assim como O Álbum (1893-1895) acolhera poetas que em meados da década de 1890
ainda cultivavam o realismo poético, não seria absurdo que no início do século XX, quando
Augusto dos Anjos produzia a sua obra, a assim chamada poesia científica pudesse ser
recolocada em circulação. A propósito, João do Rio, no vespertino Cidade do Rio, ainda
ansiava por uma poesia que correspondesse aos avanços científicos e à filosofia positivista do
seu tempo. A irreverência e a insubmissão de Gustavo Santiago davam testemunho de que
havia entre os jovens disposição para romper com os rígidos ditames da poesia parnasiana e
da crítica militante de então.
Ao estrear, Augusto dos Anjos foi logo identificado como herdeiro da poesia
científica, contemporânea do realismo poético, criticado por seu acentuado pessimismo,
condenado por suas extravagâncias, “palavras difíceis” e “incorreções” de vária natureza, mas
foi também valorizado pela originalidade e amplitude de seu pensamento, o que lhe permitiu
ser saudado como um “estreante de envergadura” e um poeta “complexo”, dotado de uma
nova visão de mundo.

Referências

CLAUDE. Crítica literária. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p.1, 5. col., 3 ag. 1899.
______. _______. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p. 2, 1. col., 4 set. 1899.
DUQUE-ESTRADA, Osório. Registro literário. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 1, 5.-
6. col., 17 jun. 1912.
MENDES, Cunha. Poema da carne. O Álbum, Rio de Janeiro, v. 1, n. 32, p. 252, ag. 1893.
MENESES, Nazareth. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 4, 1.-2. col., 14 jun. 1912.
OITICICA, José. A poesia dos novos. A Época, Rio de Janeiro, p. 7, 1.-3. col., 6 out. 1912.
P., M. [iniciais de Mário Pederneiras] O momento literário. Eu – versos de Augusto dos
Anjos. Fon-Fon, Rio de Janeiro, n. 27, p. 23, 6 jul. 1912.
SANTIAGO, Gustavo. Cruz e Sousa. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p. 2, 7. col., 26 abr.
1899.
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 16

SILVA, Antônio Joaquim Pereira da. A poesia e a poética do Sr. Augusto dos Anjos. Gazeta
de Notícias, Rio de Janeiro, p. 3, 5. col., 7 ag. 1912.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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SOBRE A MODERNIDADE EM AUGUSTO DOS ANJOS

Chico Viana1
(UFPB)

Devido aos elementos novos que trouxe à literatura brasileira, não é de admirar que Eu
tenha chocado e ferido as sensibilidades ainda afeitas ao ideário parnasiano-simbolista. O
livro gerou um novo tipo de expectativa, abriu um outro horizonte temático-estilístico para a
poesia brasileira. Os poucos que viram isto saudaram-no com entusiasmo; os que não
perceberam a novidade limitaram-se a manifestar o seu desprezo ou espanto. Segundo Álvaro
Lins, Augusto “é, entre todos os nossos poetas mortos, o único realmente moderno, com uma
poesia que pode ser compreendida e sentida como a de um contemporâneo”.
O Eu surgiu num momento em que Parnasianismo e Simbolismo conviviam, mas a
rigor não se filia a nenhum desses estilos. Os historiadores terminaram incluindo-o no Pré-
Modernismo, já que ele constitui uma ponte entre os simbolistas e os modernos. Conserva dos
primeiros a musicalidade e o tom soturno, que lembra Cruz e Sousa. E tem dos segundos o
vocabulário prosaico, por vezes apoético, em que palavras de uso cotidiano (vinagre, tesoura,
sorvete) se alternam com vocábulos científicos. Sua modernidade está mais nisso do que no
uso de versos que não rimam ou na metrificação livre. Como em termos de métrica e de rima
Augusto era convencional, foi praticamente ignorado pelos modernistas de 22.
Apesar de versejar em decassílabos e utilizar-se do recurso das rimas – procedimentos
que os modernistas abominavam –, Augusto era moderno por adotar recursos que subvertiam
a nossa tradição lírica. Nele, ao vocabulário oriundo da filosofia e da ciência, aproveitado
como matéria poética, aliavam-se o mau gosto resultante da obsessão escatológica em seu
duplo sentido, o grotesco das imagens e, no domínio fônico, a dissonância que o fazia, por
exemplo, multiplicar aliterações e sinéreses. Aos acostumados com a cadência e a harmonia
parnasianas, o Eu vinha-lhes violentar os ouvidos com versos como estes, de “Monólogo de
uma Sombra”:

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda


Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete

1
Chico Viana é doutor em Letras pela UFRJ e autor de “O evangelho da podridão; culpa e melancolia em
Augusto dos Anjos”.
http://www.bookess.com/read/17097-o-evangelho-da-podridao-culpa-e-melancolia-em-augusto-dos-anjos/
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Com a violência mavórtica do aríete


E os arremessos de uma catapulta.

Neles, como se percebe, a expressividade resulta de uma espécie de contorção dos


elementos linguísticos. Já no início, o proparoxítono sôfrego imprime ao decassílabo uma
cadência espasmódica. Percebe-se em toda a estrofe um atropelo, um entrechocar de fonemas
que se apertam ou deslocam (como a diástole que muda a pronúncia de aríete para ariete),
dando como resultado uma impressão de dinamismo e excesso. Sons e imagens concorrem
para sugerir um ímpeto e uma violência que são também reiterados nas comparações finais.
Nessa perfeita sincronia entre fundo e forma, a expressão como que tonifica a impressão, que
nos alcança e atinge devido, em grande parte, à intensidade da camada fônica.
Versos como os transcritos acima sem dúvida chocaram ouvidos acostumados com a
musicalidade de um Bilac. Isto porque havia “nas palavras sobrecarregadas de consoantes,
usadas pelo poeta inovador, (...) uma poesia que, a seu modo, científica, não se harmonizava
com a castiça e latinamente brasileira”. Daí a surpresa que tais versos causaram, a qual foi
ainda maior levando-se em conta a letargia que então imperava no ambiente literário da
metrópole.
A literatura brasileira, no princípio do século XX, era um caldo em que se misturavam
reflexos tardios dos estilos de época vigentes no final do século anterior. Se havia novidades
na prosa – com Os sertões, de Euclides da Cunha, ou Triste fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto –, na poesia encontravam-se ecos retardatários do Simbolismo e do
Parnasianismo, misturados a um poetar científico que era antes um reflexo dos conceitos e
postulados positivistas irradiados da Escola do Recife.
Os primeiros críticos e intérpretes de Eu logo perceberam que estavam diante de algo
diferente. Entre os que se manifestaram sobre o livro, pouco depois de lançado, estavam
Hermes Lima e Euricles de Matos. O primeiro percebia nele “a afirmação de um grande
espírito e o anúncio de um grande poeta”. O segundo, entusiasmado, saudava o aparecimento
da obra como uma lufada de vento novo a sacudir o torpor literário da metrópole.

Sobre Augusto dos Anjos existiram, de início, alguns equívocos. Um deles


foi considerá-lo um bom poeta apesar da estranheza de algumas de suas
imagens e do vocabulário inusitado de que se utilizava. Os adeptos ou
cultores da poesia científica certamente esperavam mais um versejador que
se utilizasse da linguagem metrificada (confundida com linguagem poética)
para divulgar princípios e conceitos da ciência e da filosofia da época. Não
compreendiam que no uso subvertido e inusitado dos termos científicos,
então valorizados pelo seu potencial de estranheza, contundência semântica
e impacto fônico-expressivo, estava a revolução poética trazida pelo poeta.
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Augusto começou simbolista, mas aos poucos foi-se despojando do convencionalismo


que o fazia imitar Cruz e Sousa e, sobretudo ao contato com o positivismo da Faculdade de
Direito do Recife, incorporou aos seus versos os elementos científicos e prosaicos que lhe
marcariam a obra. Do ponto de vista léxico-semântico, e tendo em vista os peculiares efeitos
poéticos, há que distinguir entre os vocábulos de cunho científico e os de uso comum,
prosaico. Embora concorram para a originalidade expressiva do poeta, eles têm efeitos
diferentes e até contrastantes. Os vocábulos tomados à ciência e à filosofia concorrem para
certo preciosismo que, pelo menos em tese, afastaria o poeta do leitor comum (em tese porque
a obscuridade desses termos, de forte apelo musical, veio a se constituir em motivo de
fascínio). Os vocábulos prosaicos, além de propiciar uma maior comunicação, concorrem para
distanciar o poeta dos estilos imediatamente precedentes (naturalismo e simbolismo), fazendo
de Augusto um antecipador da modernidade.
Se os termos científicos realçam a dimensão intelectual, sugerindo às vezes uma falsa
profundidade, os vocábulos prosaicos, representando objetos, sentimentos e atos cotidianos,
ligam-se à experiência imediata do poeta e do homem - sendo, por via disso, facilmente
apreendidos pelo leitor comum. Tais palavras visam à expressão da realidade circundante e
próxima - tanto quanto possível - do real concreto e vivido. E consubstanciam a tendência do
lirismo moderno em extrair os efeitos poéticos do simples, do trivial e do “intranscendente”;
“Se há algo de realmente específico, original na poesia mundial do último século e meio, é
essa conquista do território do banal, essa capacidade nova a extraordinária de extrair o
sublime das áreas mais reles da realidade.” A poesia de Augusto dos Anjos articula esses dois
polos - o intelectual, em que a angústia do poeta se alimenta e se confronta com os postulados
da filosofia e da ciência positivas; e o prosaico-sentimental, em que o apelo aos elementos
concretos, cotidianos, quase vivenciais, serve de veículo à nostalgia e ao desespero
metafísico-existencial do poeta.

Uma forma de entender a modernidade da poesia de Augusto dos Anjos é


aproximá-lo da alegoria, um modo também de explicar a melancolia que
permeia sua Segundo Walter Benjamin, a representação alegórica é marcada
pela fragmentação e a ruptura. O alegórico não persegue o harmônico, o
sublime, o proporcionado; ele se volta para as coisas, para os objetos, que
visa resgatar. E os resgata, justamente, constituindo-os em alegorias. É pela
transfiguração alegórica que os objetos, por assim dizer, se salvam.
Como fragmentos, esses objetos indiciam uma totalidade perdida, da
qual o artista é nostálgico e que só se reconstitui no plano da beleza, ou seja,
por intermédio da sublimação – já que, pela sublimação, o objeto adquire
uma espécie de transcendência, ascende a uma forma de absoluto. No caso
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de Augusto dos Anjos, a nostalgia da totalidade, ou mais propriamente da


Unidade perdida, reveste-se de algum misticismo, que se torna patente, por
exemplo, na angústia com que ele procura “esse danado Numero Um/ que
matou Cristo e que matou Tibério”.

Uma das diretrizes da estética da dissonância é a construção do belo através do feio; é


a incorporação de elementos tradicionalmente apoéticos e de mau gosto no tecido poemático.
Neste sentido, ao incluir o escatológico e o trivial em seus poemas, Augusto dos Anjos revela-
se um herdeiro de Baudelaire, para quem era importante “representar com exata clareza o
inferior, o trivial, o degenerado.”. E se aproxima do francês, inclusive, no juízo acerca da
função e do prazer estéticos; em um dos seus textos em prosa, Baudelaire escreve: “O
maravilhoso privilégio da arte é que o espantoso, expresso com arte, torna-se beleza, e que a
dor ritmizada, articulada, preenche o espírito com uma alegria tranquila.”. Augusto dos
Anjos expressa opinião semelhante e quase coincidente, ao referir, em “Monólogo de uma
Sombra”, que “Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,/ Abranda as rochas rígidas,
torna água/ Todo o fogo telúrico profundo...” E sobretudo, um pouco adiante, que “a mais alta
expressão da dor estética/ Consiste essencialmente na alegria.” (grifos nossos).
Dentre as imagens pelas quais a alegoria se manifesta, destacam-se as que referem a
obsessão pela morte e, para usar uma expressão de Julia Kristeva, a “desconstituição da
matéria”, já que o alegorista tende a projetar na natureza, nas coisas, a dissolução dos seus
elos psíquicos.
A obsessão pela morte, também para Walter Benjamin, é um traço característico da
alegoria. Segundo ele, “... a alegorização da physis só pode consumar-se em todo o seu vigor
no cadáver.”. E Rouanet observa que “...o esquema básico do alegorista é transformar o vivo
no morto.”. É próprio dele ver nos objetos as ruínas, e nas pessoas, a imagem do “cadáver
potencial” que todos somos. E somos cadáveres potenciais porque a morte já está inscrita em
nossas vidas, comprometendo-as desde o início. O olhar melancólico jamais se alheia dessa
lúgubre evidência.
Augusto dos Anjos refere a obsessão pela morte em vários de seus textos, nos quais
são visíveis tanto a recusa ao erotismo quanto a fixação no cadáver em que iremos nos
transformar. Em “Mistérios de um fósforo”, o poeta (vê), como nunca outro homem viu,/ Na
anfigonia que (o) produziu/ Noniliões de moléculas de esterco”. E adiante, no mesmo poema,
remata: “... eu vejo enfim, com a alma vencida,/ Na abjeção embriológica da vida/ O futuro de
cinza que me aguarda!”.
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Um dos exemplos típicos de alegoria barroca está nestes versos de Cristoph Männling,
que vê o mundo como “uma grande loja/ Um posto aduaneiro da morte/ Em que o homem é a
mercadoria que circula/ A morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador
consciencioso,/ E a sepultura, um armarinho e armazém credenciado.”. Sem nunca ter
possivelmente lido o poeta alemão, Augusto quase repete um dos termos dessa imagem, ao
afirmar que “a morte .../ é a alfândega, onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o
último imposto!”. “Posto aduaneiro” em um, “alfândega” em outro – efeito de sombrias
afinidades eletivas. Em ambos, a mesma ideia de que o imposto da vida é a morte, e de que
esse ninguém vai conseguir sonegar. Melhor aceitá-lo, afeiçoar-se a ele, conforme o eu lírico
de “Último credo”, que diz amar o coveiro, “ – este ladrão comum/ que leva a gente para o
cemitério”.
Se o homem evolui para a morte, o corpo marcha para se transformar em esqueleto –
em caveira. Daí outro traço característico do olhar alegórico, que é transpor a superfície
corporal e se concentrar nas vísceras ou, sobretudo, nos ossos. Estes constituem o espólio a
que a morte nos reduz. O esqueleto é concreção, limite, estágio último da “ultrafatalidade de
ossatura” a que estamos submetidos; a personagem do soneto “Decadência” constata que,
após haver perdido tudo, “... Só lhe restam agora o último dente/ E a armação funerária das
clavículas!”. Esse tipo de representação envolve também o corpo feminino, cuja sensualidade
exacerba a culpa do melancólico; Gustave Flaubert chega a confessar: “...A contemplação de
uma mulher nua me faz sonhar com o seu esqueleto”. E o próprio Augusto descarna o corpo
da meretriz, radiografando-lhe o ato sexual na irônica e grotesca imagem que se segue:
“Nesse espolinhamento repugnante/ O esqueleto irritado da bacante/ Estrala... Lembra o ruído
harto azorrague/ A vergastar ásperos dorsos grossos./ E é aterradora essa alegria de ossos/
Pedindo ao sensualismo que os esmague!”.
O soneto “Apóstrofe à Carne”, de Outras Poesias, é um dos que melhor exemplificam
a estética dissonante, segmentada e alegórica de Augusto dos Anjos. Nesse poema estão
presentes alguns dos tópicos preferidos do poeta, como o sentimento da morte próxima, a
antevisão da própria decomposição física, o julgamento negativo e moral da carne (sexual e
perecível) em confronto com o espírito, o desconforto com a hereditariedade (cujo veículo - a
conjunção carnal - o eu lírico rejeita). Eis o texto, que a seguir brevemente comentamos:

Quando eu pego nas carnes de meu rosto,


Pressinto o fim da orgânica batalha:
-- Olhos que o húmus necrófago estraçalha
Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...
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E o Homem -- negro e heteróclito composto,


Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas,


Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,


Em tua podridão a herança horrenda
Que eu tenho de deixar para meus filhos!

Na primeira estrofe, a segmentação evidencia-se em típicas imagens alegóricas, que


traduzem a ruína do corpo como objeto de decomposição. O pressentimento do final não
aparece como um temor vago, ligado ao mistério do que pode vir depois, e sim como uma
expectativa concreta da dissociação física. Daí que o horror apareça materializado, tangível,
pois o próprio ato de “pegar na carne do rosto” é que prenuncia, ou deixa implícito, o destino
da matéria.
Ressalte-se que a iminência agônica do fim não advém apenas dos órgãos referidos no
terceiro e no quarto versos - olhos, diafragmas -, mas também da própria enunciação verbal,
no presente (eu pego), que sugere a ação provisória, momentânea, de alguém fadado a morrer.
Auscultando a própria carne perecível, com a qual se confunde, o eu lírico “sabe” que morre
com ela. O horror acentua-se na medida em que olhos e diafragmas não aparecem apenas
como restos, partes de um corpo já desfeito, mas como objetos de um processo destrutivo. E
concorre para acentuar a dinâmica destrutiva dos vermes, com os quais as vísceras se
confundem (formando tudo um húmus necrófago), o uso dos verbos estraçalhar (no presente
do indicativo) e decompor (no gerúndio).
Na segunda estrofe, o efeito dissonante decorre basicamente da antítese e do assíndeto.
A partir da transição de eu (primeiro verso da primeira estrofe) para o Homem (primeiro verso
da segunda), a dimensão individual cede lugar à coletiva (embora essa individualidade já
estivesse comprometida pela referência, no plural, a diafragmas). À angústia particular do eu
lírico, defrontado com o temor concreto da morte, sucede a referência ao homem como um
todo, ou seja, à própria espécie humana. Esse processo de converter o eu em nós é comum em
Augusto dos Anjos; ele confirma a amplitude do seu lirismo, que não se confina a temas
pessoais, e reflete uma das obsessões mais caras ao poeta: a obsessão de, enquanto indivíduo,
converter-se em arauto dos sofrimentos do grupo e, sobretudo, em instrumento regenerador da
espécie humana. Liga-se ao seu desejo de ser Cristo para redimir o homem decaído.
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A segunda quadra do soneto é, pois, homóloga à primeira, dela se distinguindo pelo


tratamento mais geral dado à perspectiva da morte. Considerado não mais em sua
individualidade, o Homem é concebido como uma antítese biopsicoquímica em que uma parte
negra e heteróclita alberga (e colide com) outra alva e luminosa - tudo se submetendo, de
igual modo, à evidência da dissociação. A mortalha envolve o sombrio e o grandioso, o físico
e o psíquico. Harmonizando-se com o caráter genérico desta segunda estrofe, o espólio
humano não é mais anatômico, material (como na primeira, em que se fala de olhos e
diafragmas), e sim abstrato; está representado pelos órgãos dos sentidos enquanto abstrata
capacidade sensorial, os quais aparecem segmentados, em sequëncia assindética, no último
verso (O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!).
No primeiro e no segundo tercetos realiza-se a apóstrofe à carne, de que fala o título.
O eu lírico contrapõe à efemeridade da vida a certeza da morte, sentida como deterioração da
matéria. A antítese não é propriamente entre a vida e a morte, mas entre a carne e a podridão.
A primeira, percebida em seus transitórios lampejos de sensualidade, representa-se
expressionisticamente através da aliteração (flâmeo fogo efêmero - 10o verso) e da metáfora
com matiz hiperbólico (A dardejar relampejantes brilhos - 11o verso ). Já a podridão, na
última estrofe, aparece como o irônico e paradoxal destino do homem votado ao prazer. É
significativa a equação que se estabelece, no verso penúltimo, entre a podridão e a herança;
esta supõe o genesíaco prazer (pois o sexo é que propicia a hereditariedade), sendo por isso
alvo do desprezo do eu poético.
O vocábulo podridão é palavra-chave no poema, e deve ser entendido para além do
seu sentido comum. Ele não se refere apenas à deterioração do corpo, ou melhor, não diz
respeito apenas à decomposição material. Na visão de uma consciência culpada e melancólica
como a de Augusto dos Anjos, esse termo alude sobretudo à mancha, ao legado vicioso que o
homem transmite aos seus filhos. Nisto reside, como se sabe, o núcleo do pecado original, que
supõe uma falta, na origem, a qual se transmite por hereditariedade. Ou seja: supõe uma
transgressão, perpetrada por nossos primeiros pais, na qual todos acabamos implicados e para
cuja propagação todos concorremos. O traço de podridão/perversão a que se resume a herança
é enfatizado, no primeiro verso do primeiro terceto, pelo uso do vocábulo bastardas aplicado
a mônadas (de que a carne é um feixe). Enquanto marca de uma filiação ilegítima, a bastardia
define metaforicamente o caráter transgressivo de uma espécie que se rebelou contra a
Natureza.
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Em nossa tese, “O evangelho da podridão”, observamos que um dos traços


da poesia do paraibano é o “excesso de representação” Com isso,
procuramos mostrar Augusto como um herdeiro (também) do Barroco.
Segundo Omar Calabrese, comentando a estética neobarroca, “... qualquer
ação ou indivíduo excessivo quer pôr em causa uma ordem qualquer, talvez
destruí-la, ou construir outra nova”. O paraibano é um bom exemplo disso.
Em seus torneios excessivos, alegóricos, através dos quais “deforma” a
linguagem, ele rejeita a nossa transgressão primeira, o pecado original, e
fantasia o emergir de um homem novo. Uma das passagens que melhor
ilustram essa atitude é sem dúvida o final de “Os Doentes”, onde às imagens
de destruição sucedem-se estes versos, de renovação e esperança: “O letargo
larvário da cidade/ Crescia. Igual a um parto, numa furna,/ Vinha da original
treva noturna,/ O vagido de uma outra Humanidade!// E eu, com os pés
atolados no Nirvana,/ Acompanhava, com um prazer secreto,/ A gestação
daquele grande feto,/ Que vinha substituir a Espécie Humana!”.
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AUGUSTO DOS ANJOS POR GILBERTO FREYRE

Antonio Dimas
(USP-IEB)

Em crônicas de juventude, recolhidas, anos mais tarde, sob o título de Tempo de


aprendiz (São Paulo: IBRASA, 1979. 2 vols.), Gilberto Freyre (1900-1987) revela sua
voracidade pelo novo, sua sede de experiências existenciais, sua forte curiosidade por espaços
geográficos e recantos históricos muito, muito além daqueles que palmilhava em sua Recife
natal. Parte significativa dessas mais de 250 crônicas foi escrita bem longe de seus rios
pernambucanos, uma vez que, aos 18 anos, o moço se transferira para uma universidade
batista em Waco, no interior do Texas.
São tateantes como ele, essas crônicas, destinadas ao Diário de Pernambuco. São
desiguais entre si também, porque buscam, como o autor, uma forma de melhor se ajustar ao
assunto, de viabilizá-lo de modo sedutor. É material extenso, mas com margem experimental
visível. Experimental em termos de forma; experimental em termos de assunto; visivelmente
experimental, sobretudo, em termos de um jovem intelectual empenhado em escolher e
montar uma tábua de valores e de critérios através dos quais pudesse avaliar e julgar o
universo literário e artístico no qual ensaiava entrar. São crônicas que valem por um
Bildungsroman involuntário e inesperado.
Lidas em seu conjunto, depreendem-se delas temas e mais temas que bem poderiam
formar um espécie de repertório preliminar dos tantos assuntos com os quais se envolveria,
anos depois, o seu autor. Ora aparecem de raspão tais assuntos; ora, de modo mais ostensivo,
mesmo que descontínuo, porque a natureza do gênero não comporta a insistência repetitiva,
sob pena de se deformar e de se tornar panfleto. O que importa, aqui, é que ziguezagueiam
elas entre forma e conteúdo, sem a predominância exclusiva de uma ou de outra, em
alternância frequente.
Em dois momentos, nesses anos de aprendizado do jovem Gilberto Freyre, o cronista
se ocupa de Augusto dos Anjos.
Em 1924, por exemplo, Gilberto comenta escritores que desapareceram sem deixar
repertório bibliográfico de envergadura (Tempo de aprendiz, v. 2, p. 75). São os“Autores que
não têm livros”, sintetiza o próprio cronista, em texto um tanto prolixo e dispersivo. Para
ilustrar seu ponto de vista, o futuro sociólogo, na plenitude de seus 24 anos, convoca quatro
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autores que exemplificam suas considerações: Carlos de Laet, Afonso Arinos, Lafcadio Hearn
e Augusto dos Anjos.
Pulando os demais e me concentrando apenas em Augusto dos Anjos, Gilberto aprecia
o poeta de Eu como carta com o endereço errado; desgarrada num meio que não podia ser o
seu destino. Por isto esse meio a rasgou: porque não a compreendia. (Tempo de aprendiz, v.
2; p. 79).
Nessa primeira consideração, o que se sobressai é o caráter nitidamente deslocado do
poeta, cujos versos não encontraram ressonância num meio despreparado para ouvi-lo, tônica
aliás, de boa parte da crítica que dele se ocupou. Num momento de nossa história intelectual,
no qual os resíduos do determinismo eram ainda fortes, Augusto dos Anjos mostrava-se
inadequado, porque sua poesia estava lastreada num arsenal vocabular nitidamente patológico
e avesso às louçanias parnasianas. Sua poesia voltava-se para a distorção repulsiva em vez de
celebrar a harmonia convidativa, como mandava a praxe literária de então. Mais para
Euclides da Cunha, enfim, que para Olavo Bilac.
Um poeta que - é paradoxal isso - repercutiu de modo assustador com suas 30 edições
em quase 50 anos, mas que foi entre nós carta com o endereço errado, afirma o cronista.
Num segundo momento, em artigo destinado a uma revista literária norte-americana
de aspiração internacional, The Stratford Journal (Boston, v. 2, n. 3, set. 1924) e recolhido,
anos mais tarde, em Perfil de Euclydes e outros perfis (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1944),
Gilberto Freyre avança na apreciação crítica e incide sobre a camada sonora dos poemas de
Eu, sobre sua sonoridade áspera:

Em muitos de seus versos a aspereza de sons não é evitada nem mesmo


disfarçada, mas procurada; Augusto dos Anjos tira, às vezes, efeitos
verdadeiramente surpreendentes de dissonâncias, de combinações fonéticas
extravagantes, de consoantes julgadas anti-musicais e anti-poéticas pela
maioria dos versejadores em língua portuguesa e até de polissílabos
pedantemente científicos. Há nele alguma coisa que faz pensar em Euclides
da Cunha. (Perfil..., p. 150).

Parece antecipatório demais e generoso demais pretender que esse inconformismo


gilbertiano diante dos polissílabos pedantemente científicos de Augusto dos Anjos ou que seu
arrepio diante dos matutos de pronomes engravatados de Mario Sette possa ser tomado como
grito de guerra contra o formalismo engessado que marcava nossa cultura à espera de sua
modernização. Era cedo demais para isso. No entanto, não se pode deixar de ver nessas
restrições formais a incipiência de uma atitude crítica que não compactuaria, anos mais tarde,
com a herança beletrista que nos cercou até os anos ’20.
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Quando salienta a adstringência sonora e épatant de Augusto dos Anjos ou torce o


nariz para a pompa de tabaréus que escandem pronomes meticulosos e impecáveis, como os
de Mário Sette em Senhora do Engenho (Tempo de aprendiz, v. 1, p. 151), Gilberto está
antecipando um de seus motes favoritos e reivindicando um despojamento lingüístico que
valoriza a oralidade em vez do formalismo congelado da escrita herdada; que atenta para a
fala corrente e cotidiana, em vez do discurso tribunício e distante; que dá ouvidos à
misturança e ao híbrido, em vez de cultivar a suposta pureza vernacular, expediente que até
hoje afasta e distingue, aliás, seus usuários da grande massa informe; que registra, em suma,
uma variante lingüística que não se modela de modo rígido pelo padrão lusitano e que se
eleva, portanto, como alternativa ao português europeu. Insinua-se, pois, nessa restrição à
linguagem dos personagens não apenas a questão da adequação entre expressão oral e posição
social, como também a preservação de um valor lingüístico, cuja feição específica exige
respeito. Em germe, nessa rápida anotação crítica, enxerga-se a defesa de uma circunstância
social própria da qual não se dissocia a oralidade, tão presente na obra posterior de Gilberto
Freyre.
Lembre-se, no entanto, que a lupa crítica do cronista não se deteve apenas na questão
intrínseca da sonoridade poética de Augusto dos Anjos ou no exame delicado da sua minúcia
artesanal. Sua lupa foi mais além. Foi até à circunstância social que rodeava o poeta de Pau
d’Arco, fosse em sua intimidade doméstica, fosse em sua territorialidade telúrica.
Valeria a pena contrastar a crônica prolixa com o artigo da revista especializada,
ambos os textos de 1924.
Se na crônica, destinada ao público inespecífico de um jornal, fica evidente o exercício
especulativo que se permite juntar alhos e bugalhos para referendar a tese de autores sem
currículo bibliográfico de monta, no artigo publicado em revista especializada norte-
americana e, portanto, dirigido a leitores mais afeitos à literatura internacional de qualidade, o
caminho é outro e concentrado: toda a argumentação foca a carreira literária e - bem depois -
pessoal de Augusto dos Anjos, cujo Eu saíra em 1912.
Neste artigo para The Stratford Journal, o andamento é bem mais incisivo e mais
objetivo. Nele não há argumentos colaterais ou digressões que possam distrair a atenção do
leitor. Seus muitos parágrafos carregam frases fortemente afirmativas, no começo ou no fim,
às vezes no começo e no fim do parágrafo, de forma a não permitir a dúvida, nem a dispersão.
É texto que dispensa o lúdico cabível na crônica, mas deslocado em artigo que anseia por
leitor diferenciado. Nele ocorrem afirmações tão categóricas, vez ou outra, que desmentem a
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malemolência argumentativa e o relativismo intenso que haveriam de caracterizar seu autor a


partir da publicação de Casa Grande & Senzala, em 1933.
Dessa dureza discursiva, onde não se abre espaço para a interrogação, porque o tom é
taxativo, recolham-se alguns exemplos:

Não houve nunca na literatura brasileira contemporâneaexpressão mais viva


do gosto de introspecção pessimista que os poemas de Augusto dos Anjos (p.
147)

O mundo para ele não era alegria de criação nem festa de renovação, mas
constante dissolução de vida. (p. 147)

Augusto dos Anjos não era homem normal. (p. 148)

Augusto dos Anjos era um sensitivo anormal. (p. 148)

Augusto dos Anjos não deu batalha às suas doenças. Entregou-se a elas.
Submeteu-se ao seu jugo. (p. 148)

A morbidez de Augusto dos Anjos alterava tudo que ele via e ouvia. (p. 149)

Havia em Augusto dos Anjos alguma cousa de um moderno pintor alemão


expressionista. Um gosto mais de decomposição do que de composição. (p.
149)

Augusto dos Anjos foi poeta mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Mais
pela análise do que pela síntese. (p. 149)

Augusto dos Anjos foi um místico que substituiu nos seus versos o latim
mole da Igreja pelo latim duro da história natural. Um latim com sotaque
inglês e com sotaque alemão. (p. 149)

Há nele alguma coisa que faz pensar em Euclides da Cunha. (p. 150)

Augusto dos Anjos não amou a natureza tropical. Afastou-se dela quanto
pôde. (p. 150)

Nenhum amor pela natureza tropical revela Augusto dos Anjos em seus
poemas. A natureza brasileira não o empolgou. (p. 151)

Em seus poemas, o sexo aparece sempre manchado de culpa. (p. 152)

Augusto dos Anjos não soube nunca o que fosse alegria de sexo. (p. 152)

Isolo entre tantas afirmações uma que me interessa mais de perto, não por causa de sua
forma categórica, mas sim porque seu sumo haveria de se constituir em um dos temas
favoritos de Gilberto Freyre em sua carreira posterior: o ajustamento simbiótico entre o
homem e o seu meio. Dessa relação harmoniosa ou desajustada, Gilberto Freyre daria
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demonstração convincente e sensual, anos mais tarde, em “A cana e a água”, um dos seus
ensaios de Nordeste (1937).
Precocemente às turras com essa correlação homem-natureza, o jovem estudante de
Pernambuco assinala o descaso e a indiferença do poeta Augusto dos Anjos pela natureza que
o rodeava. Repetindo:

AA não amou a natureza tropical. Afastou-se dela quanto pôde. (p. 150)

Nenhum amor pela natureza tropical revela Augusto dos Anjos em seus
poemas. A natureza brasileira não o empolgou. (p. 151)

Em tom de ressentimento mal disfarçado, de quase ofensa, Gilberto reconhece a


peculiaridade literária do poeta paraibano, mas ressalta sua excentricidade em relação a um
cânone que prescrevia a adesão à natureza, tão cultivado no romantismo, como o de Alencar,
por exemplo.
Não é tanto a morbidez de Augusto dos Anjos que incomoda Gilberto Freyre. Mais
que ela, o que o incomoda é a indiferença do poeta pelo chão de Pau d’Arco e de seus
arredores. Pelo chão caseiro e social. Se à morbidez do poeta, o crítico associa o patológico, à
sua indiferença telúrica, Gilberto associa a falta moral, o pecado. A morbidez, lê-se nas
entrelinhas, é problema pessoal e individual. Mas a indiferença é problema mais
transcendente, de caráter religioso quase. Pensar no Brasil é uma espécie de pecado
intelectual (p. 150), divaga Gilberto, em determinado momento de sua reflexão, talvez já
acometido pelo banzo. Ou, quem sabe, em plano menos pessoal e mais literário, por
ressonâncias juvenis da leitura de Les déracinés de Maurice Barrès.
“[...] não foi somente da natureza do trópico que Augusto dos Anjos divorciou-se,
anota Gilberto. Ele afastou-se também do ritmo da vida crioula. De suas amenidades e dos
seus repousos. A doença fez dele um inquieto sempre enjoado de tudo”. (p. 152). Tuberculoso
retardatário, enfezado com o mundo e disposto a retomar a linha romântica da desilusão
permanente, o poeta de Pau d’Arco isolava-se pela doença, pela poesia e pelo fastio insolúvel.
Um desenraizado, enfim.
Nessa etapa juvenil, em que ainda construía sua tábua de valores, Gilberto mal reprime
seu espanto diante de tamanha indiferença pela natureza. Ainda que não denuncie, nem
explicite a ausência de luz natural na poesia de Augusto dos Anjos, isso se faz pelo princípio
do contraste, da oposição, do contraponto.
Ao longo do ensaio que lhe dedicou, são algumas as vezes em que Gilberto Freyre
lança mão da palavra sombra para caracterizar a poesia do nosso homenageado de hoje.
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Exemplos não faltam, retirados da passagem em que o soneto clássico de Augusto dos Anjos,
“Debaixo do tamarindo”, serve de apoio às explicações do cronista: “à sombra do tamarindo,
o menino passava horas esquecidas” (p. 151); fora do poeta “existia apenas o seu eu e a sua
sombra (p. 151); uma sombra enorme que se confundia com a do pai morto” (p. 151).
Recupere-se, por inteiro, o soneto:

Debaixo do tamarindo
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei biliões de vezes vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,


Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!
(A. dos Anjos - Eu. Rio de Janeiro: São José, 1965. p. 67)

Na exaltação dessa árvore mais caseira que do mato (Perfil de Euclydes, p. 151), o
poeta decide encará-la como cofre inerte, no qual são abrigados registros e segredos. Essa
escolha esvazia a árvore, portanto, de sua eventual imponência e utilidade. Sua vida se vê
adulterada, então, porque aquela massa vegetal não se impõe mais como manifestação da
natureza e, sim, como artefato transformado e desbotanizado. Por causa de sua envergadura, o
tamarindo zeloso retém dentro de si um passado coletivo - o da nossa flora - e um passado
individual - o da família do poeta. Ambos fossilizados, no entanto. Inteiramente despida de
seus atributos botânicos, a frondosa árvore perde sua condição original. Embora destituído de
seus atributos naturais e botânicos, o tamarindo imponente conserva, no entanto, sua
capacidade de abrigo, de armazenamento, de proteção, porque encarcera a sombra do poeta.
Diz ele: A minha sombra há de ficar aqui.
Ora, a sombra é impalpável, fugidia e imaterial. É leve e escorregadia, por natureza.
Nesse contraste entre a árvore e a sombra, assoma um descompasso evidente de forças, uma
vez que tamanha massa física supera e encobre, de longe, a fragilidade dessa sombra
individual e já inofensiva, por estar morta.
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Caudatário da palavra sombra há uma récua de outras que a ela se associam. Uma
simples inspeção em dicionário analógico nos sugeriria outros termos como fumo, névoa,
sonho, espectro, fantasma, assombração etc. Em suma, um vocabulário mais propício a
Tânatos do que a Eros.
Essa obscuridade, esse gosto pelo sombrio não é difícil de se perceber em nosso poeta.
Isso é óbvio, é até mesmo estridente. O curioso e paradoxal é que Gilberto Freyre, em pleno
aprendizado juvenil e imerso em vivência pessoal e acadêmica no estrangeiro, viesse a se
deter nessa poesia exatamente no momento em que organizava seu catálogo de critérios, como
já disse acima, para avaliação das mais variadas experiências intelectuais e artísticas. Daí não
parecer abusivo pensar-se esta leitura como exercício de contraste para afirmação do gosto e
construção de parâmetros de valor.
Escapando deste reduto imediato, dedicado a Augusto dos Anjos, e olhando para os
lados, verifica-se que esses valores emergiam, devagar, nos textos que Gilberto ia dedicando a
Cícero Dias ou a Francisco Brennand, pintores pernambucanos que lhe serviam de pauta para
suas reflexões entre a produção artística e o meio circundante do artista.
Não me cabe estender-me aqui mais que o razoável. Mas, à guisa de argumentação,
permitam-me escolher o exemplo de Brennand para ilustrar a construção do ideário crítico de
Gilberto, elaborado sempre em cima da arte local, nacional ou estrangeira.
Num dos artigos de seu Vida, forma e cor (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962), Gilberto
Freyre toma Francisco Brennand como assunto e, em determinado momento, expõe, de modo
nítido e indiscutível, sua percepção das relações entre a arte do Nordeste e a fartura solar deste
entorno.

A verdade é que em Francisco Brennand se vem desenvolvendo um pintor


que, mais do que um puro intérprete de sua província ou de sua região,
começa a ser um novo intérprete do Trópico: de um Trópico úmido cuja
especialíssima luz é um desafio aos pintores e à sua capacidade de
desenolverem novas técnicas de captarem essa luz, nos seus vários efeitos
sobre formas e cores, libertando-se, assim, tanto de técnicas especificamente
européias como de técnicas convencionalmente tropicalistas. Novas técnicas
de captação de luz tropical, tal como se apresenta em certa partes
umidamente tropicais do mundo: um tanto diferentes das áridas e não apenas
muito diferentes das temperadas. (Vida, forma ... p. 241)

Se Augusto dos Anjos se aborrece com a natureza e se mostra introspectivo, Gilberto


Freyre reconhece-lhe o direito do gosto. E vai ainda mais além: usa esse enfado como
argumento a favor de si mesmo, dizendo que não se submete ao determinismo tão em voga
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ainda ainda nesse começo de século. Muito menos o determinismo ecológico, garante-se ele
em seu ensaio “A propósito de pintores e das suas relações com a luz regional”:

Aliás, todos os meus desajeitados escritos sobre assuntos de relação entre


Natureza e Cultura, entre meio físico e dinâmica cultural, trazem a marca de
antigo repúdio, em mim confirmado por algum estudo de campo desde os
dias de moço e não apenas por indagações de gabinete realizadas em idade já
madura, a qualquer doutrina mais rígida de determinismo. Inclusive o
determinismo ecológico. (Vida, forma e ... p. 216).

Trago este exemplo à baila como recurso de contraste para comentar o segundo ponto
específico em que o autor de Casa Grande & Senzala toca, quando avalia nosso poeta
paraibano.
Já no final de seu artigo sobre Augusto, Gilberto diz:

Morreu Augusto dos Anjos aos trinta anos. Desde os vinte e poucos anos que
ele via a sua “sombra magra” a “caminho da Casa do Agra”, a velha casa
funerária do Recife imortalizada num dos seus poemas mórbidos. (Perfil de
Euclydes..., p. 154)

Como se fossem duas pontas de enorme e extenso novelo, junto a passagem acima
com outra, supostamente escrita em 1923, mas publicada muitos e muitos anos depois em
Tempo morto e outros tempos (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975), as memórias de Gilberto.
Nelas, ao evocar o gosto paterno pelos almoços de Alfredo Freyre na Casa Agra,
velho estabelecimento funerário do Recife, Gilberto repele, mais uma vez, o gosto pelo
escuro, pelo noturno, pela falta de claridade. Recorda-se ele:

Isso de almoçar entre caixões de defunto, tochas para enterros, coisas


fúnebres, é uma experiência macabra. É rotina para meu Pai. Almoça com
frequência na célebre Casa Agra, amigo fraternal que é dos Agra. [...]
A esses almoços, entre dourados e pretos fúnebres, eu próprio me habituei,
sendo ainda menino. Voltei ontem a participar de um deles. [...]
Almocei ontem entre os caixões de defunto da Casa Agra - a Casa Agra dos
versos de Augusto dos Anjos: sempre na Rua do Imperador - tocado um
tanto por essa angústia. (Tempo morto e ..., p. 128-129).

Em verbete tão curto, a ocorrência de termos associados à ideia de pesar e de


escuridão - preto / morte / noite / caixão / fúnebre / defunto / enterro - reforça a aversão do
memorialista, que não hesita em evocar Augusto dos Anjos como parâmetro literário e
poético de sua ojeriza pela morte e pela eventual escuridão que a ela se associa, de modo
automático.
Em jovem à cata de novas experiências existenciais, temporariamente afastado da
abundância solar de suas origens geográficas e em processo de construção de parâmetros para
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um cânone intelectual próprio, Gilberto Freyre escolhe um poeta de sua região, reconhece-lhe
os méritos poéticos, aproxima-o do expressionismo alemão (Perfil de Euclydes ... , p. 149),
mas não endossa seu distanciamento telúrico e menos ainda seu gosto pelo macabro e pela
ausência de cor. De forma subliminar, “A nota sobre Augusto dos Anjos” não é tanto sobre
Augusto dos Anjos, mero pretexto temático, parece. Ainda que justa, a apreciação crítica
parece apenas recurso. O que essa nota sugere e encarece vai bem além dela. Sua inserção
numa revista de alcance internacional pode camuflar o desejo de marcar posição do jovem
autor, já se preparando para traçar os contornos de uma estética alternativa, fora do eixo EUA-
Europa.
Sob a camada evidente e patente dessa apreciação, o que essa nota encaminha é uma
postulação, embora latente, de fé juvenil a favor da multiplicidade e do policromatismo,
suscetível de tomar forma e de se encorpar anos mais tarde, na extensa obra do historiador de
nossa cultura.
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AUGUSTO DOS ANJOS E A HISTÓRIA LITERÁRIA

Hildeberto Barbosa Filho


(UFPB)

A história literária nem sempre caminha no compasso das obras, sobretudo quando
estas detêm marcante singularidade. No relevante escopo de contextualizar historicamente
obras e autores, classificando correntes, identificando grupos e movimentos, enfim,
documentando e selecionando, a história literária não raro passa ao largo de certas
personalidades, privilegiando o fenômeno comum da expressão ficcional e poética, ao mesmo
tempo em que engaveta ou obscurece certas vozes, numa indiferença interpretativa e
axiológica que somente a crítica, com a metodologia teórica e a análise das dicções
individuais, é capaz de equacionar e corrigir na sua intrínseca função pedagógica.
Caso curioso é o de Augusto dos Anjos, com o Eu e outras poesias, que, a partir da
terceira edição, de 1928, a cargo da Livraria Castilho, transforma-se em fenômeno editorial,
uma vez que os jornais da época chegaram a noticiar 5500 exemplares vendidos em menos de
dois meses ou 3000 volumes, em menos de 15 dias, conforme assinala Ângela Bezerra de
Castro, no ensaio “A travessia do Eu”, que introduz a edição comemorativa dos 100 anos da
obra, em publicação conjunta da Academia Paraibana de Letras e do Senado Federal, em
2012.
O fato parece não ter tido a devida repercussão na sensibilidade dos historiadores.
Uma rápida visada em algumas histórias literárias publicadas na primeira metade do século
XX sinaliza para o descompromisso e o descaso com que tratam a poesia de Augusto dos
Anjos, quando, mesmo que fosse sob o prisma do espanto e do desconforto, já havia uma
fortuna critica considerável acerca do poeta do Pau d `Arco. Umas há que nem mesmo
mencionam o nome do poeta, como a Pequena história da literatura brasileira (1919), de
Ronald de Carvalho, e a História da literatura brasileira (1939), de Bezerra de Freitas. Esta,
no entanto, no capítulo sobre o simbolismo, refere os nomes de dois paraibanos; Carlos Dias
Fernandes e Pereira da Silva.
José Osório de Oliveira, por sua vez, na História breve da literatura brasileira (1934),
regista o nome do poeta na “Cronologia” final, com data de nascimento e de morte, porém,
sem tecer nenhuma consideração de ordem reflexiva a respeito de sua poesia ao longo dos
capítulos anteriores. Já Afrânio Peixoto, em suas Noções de história da literatura brasileira
(1931), também no capitulo final, denominado “Nomenclatura”, escreve este breve registro:
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“Augusto dos Anjos, n. na Parahyba a 20 de abril de 1884 e f. em Leopoldina (Minas) a 12 de


novembro de 1913. Poeta de original expressão e idéias scientíficas. Publ.: ´Eu`, poemas.
Rio, 1912; ´Eu e outros Poemas`. 3. Ed. Rio, 1928”.
Como se pode observar, Afrânio Peixoto comete alguns equívocos imperdoáveis para
um historiador. A data de falecimento do poeta é 1914 e não 1913. De outra parte, o título da
terceira edição não é “Eu e outros poemas”, mas “Eu e outras poesias”, conforme a matriz da
segunda edição, de 1920, acrescentada, selecionada e organizada por Orris Soares. Quanto ao
lacunoso comentário (“Poeta de original expressão e idéias scientíficas”), não chega a
esclarecer nada. Em primeiro lugar, porque o historiador não elucida, para o leitor, em que
consiste tal originalidade e, em segundo lugar, porque não discute, como deveria, em que
sentido Augusto dos Anjos é um poeta de ideias científicas. Não se sabe, por exemplo, se o
científico, aqui, é pelo fato de Augusto pertencer a chamada “escola da poesia científica”, na
linha de um Martins Júnior, o que seria, de resto, um contrassenso, ou de problematizar as
categorias conceituais das múltiplas vertentes da ciência moderna, numa abordagem mais
pertinente, na perspectiva crítica de um Ferreira Gullar, de um José Paulo Paes, de um Mário
Chamie, entre tantos outros exegetas.
Talvez seja Nelson Werneck Sodré, com a História da literatura brasileira: seus
fundamentos econômicos (1938), o primeiro a perceber a relevância poética de Augusto dos
Anjos, embora também não escape a certos mal-entendidos no que concerne a dados
biobibliográficos. De um lado, afirma que a primeira edição, de 1912, foi feita na Paraíba; de
outro, que a segunda é de 1929. Tais senões permanecem, no entanto, sem corrigenda, até as
mais recentes edições da obra.
Não obstante, Nelson Werneck Sodré, em seu pequeno comentário crítico, aponta para
questões essenciais à poética de Augusto dos Anjos. Embora não recorra a exemplos textuais,
chama a atenção para a “barreira” da “linguagem especializada, colhida em compêndios e
habilmente manipulada”, vendo, no poeta, “uma realização que chega a ser perfeita em muitos
casos e em alguns”, atingindo o nível “de uma beleza indiscutível”. Reconhecendo que o
autor de “Versos íntimos” é mais confundido do que estudado, identifica, no movimento
renovador da Escola de Recife e em seu contexto de ideias e debates, o ambiente formador da
sua personalidade cultural. Para ele, Augusto é “um cantor exato e até minucioso da
decadência de uma classe, a dos senhores de engenho, de que traça, em poucos versos, a
magistral mortalha”. Se para uns, sua poesia poder ser classificada como simbolista, para
Nelson, Augusto seria um parnasiano, destacando-lhe, principalmente, a “perfeição formal” e
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a “clareza das ideias”, embora a estranheza dos motivos e da inspiração, assim como sua
inegável singularidade.
O problema básico de Nelson Werneck Sodré reside evidentemente na falta de
comprovação com a matéria prima dos próprios poemas e versos de Augusto. A ideia de que o
poeta, à semelhança de José Lins do Rego, com todo o ciclo da cana de açúcar, faz uma
espécie de radiografia poética da decadência de uma classe me parece pertinente e bastante
sugestiva para novas e fecundas leituras de sua poesia. Certamente mais fecunda do que o
lugar comum das discussões em torno das escolas e das vertentes poéticas e estilísticas que
poderiam contemplar a singularidade de sua dicção.
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Mesas-Redondas
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JOSÉ AMÉRICO ENTRE O REAL E O FICCIONAL

JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA E OS POEMAS DA MADUREZA

Neide Medeiros Santos1

O universo literário de José Américo de Almeida compreende romance, novelas,


memórias, crônicas em jornais e revistas, discursos e poesia, mas, se entendemos poesia em
sentido amplo, podemos dizer que ela permeia todos esses gêneros. Cavalcante Proença, em
estudo crítico sobre “A bagaceira”, já afirmava que era um livro poético. A poesia também se
faz presente nos relatos memorialísticos e até mesmo em certos discursos
“Quarto Minguante”, único livro de poesia de José Américo, foi publicado quando o
escritor contava 86 anos, estava no fim da jornada, daí em nota explicativa nas primeiras
páginas do livro o autor afirmar que escreveu esses versos no “apagar das luzes”.
Se examinarmos o título do livro – “Quarto Minguante”, verificamos que depois do
esplendor da lua cheia, ela procura se esconder minguando de tamanho até se transformar em
uma pequena nesga. O título também nos remete ao poema de Augusto dos Anjos – “Tristezas
de um quarto minguante”. José Américo foi contemporâneo na Faculdade de Direito de
Augusto dos Anjos e sempre revelou profunda admiração pela poesia de Augusto, justifica-se,
assim, a intertextualidade do título do livro.
O gênero lírico comparece com mais frequência na poesia e o valor dos versos
líricos, como bem afirma Emil Staiger (1975: 22), reside justamente na unidade entre a
significação das palavras e sua música, uma música espontânea, marcada pelo ritmo e
sonoridade.
Para Staiger (1975: p. 49), um trecho lírico só desabrocha inteiramente na quietude de
uma vida solitária. Diz o teórico: “A poesia lírica manifesta-se como arte da solidão, que em
estado puro é receptada apenas por pessoas que interiorizam essa solidão.”.
José Américo publicou “Quarto Minguante” no momento em que se sentia solitário,
sua companheira,” o anjo da guarda” como gostava de referir-se à sua mulher havia partido,
arrefecera o calor da política e até a visão estava comprometida, impedindo-lhe de ler e
escrever. O que lhe restava? A natureza, o mar, o jardim, o pomar, os pássaros e as gratas
lembranças do passado.

1
Doutora em Estudos Literários; professora da UFPB; leitora votante da FNLIJ.
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É ainda Staiger (1975: p.55) quem nos lembra de que “o passado como objeto de
narração pertence à memória. O passado como tema lírico é um tesouro de recordações”.
Alguns críticos vislumbraram a presença da natureza em diferentes formas nos poemas
de “Quarto minguante”, preferimos caminhar ao encontro das recordações, do passado
abrangendo poemas que remetem à infância, à idade adulta e à velhice. A morte do pai,
quando o escritor contava doze anos de idade, foi um golpe muito duro para o menino que
estava começando a descobrir o mundo. O poema “A nuvem comovida” remete a esse
momento da infância:

Toda casa chorou alto


E, caído na orfandade
Na idade de se chorar.
Eu tinha os olhos enxutos.
Foi o corpo para a igreja
E se apagaram as luzes;
Ficou a cama sem dono
E o futuro escureceu.
Minha dor era a vigília,
O coração a velar.
E, às tantas, houve silêncio.
Então, eu despertei
Falei só: meu pai morreu!
Doeu-me o sono dos quartos,
Olhos molhados e cegos,
Vozes mortas num soluço.
E aí chorei por todos,
Chorei tanto, chorei tanto,
Que amanheceu chovendo.

Neste poema, o poeta relembra o dia da morte do pai. Esse fato marcante da vida do
menino José Américo está registrado no livro de memórias – “Antes que me esqueça”. José
Américo estava com doze anos. Muitos anos depois, na idade provecta, transformou a dor
daquele momento em poesia. Utilizando-se de uma linguagem metafórica, coisas inanimadas
são personificadas, como nestes exemplos: “Toda casa chorou alto” e “Doeu-me o sono dos
quartos”.
Quanto ao “menino antigo”, o sentimento de perda do ente querido se revela,
inicialmente, com os olhos enxutos sem compreender bem a morte do pai, só depois, passado
o instante de perplexidade e de espanto, ele chora e chora tanto que a natureza se associa a seu
pranto, como podemos constatar nesses versos:

Chorei tanto, chorei tanto,


Que amanheceu chovendo.
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Vale lembrar aqui o poema “Lágrimas de cera”, de Raul Machado, poeta paraibano,
que, ao relembrar a morte da noiva querida, se utiliza da mesma imagem poética:

Quando Estela morreu, choravam tanto!


Chovia tanto nessa madrugada!
- Era o pranto dos seus, casado ao pranto
Da Natureza-mãe desventurada!

“Areia” é um poema de louvor à sua pequenina terra natal. O eu lírico apresenta a


cidade sob o ponto de vista de um adulto:

Minha cidade é pequenina,


Mora banca e risonha na serra.
E não cresceu. Teve essa sina,
Sempre e sempre a mesma terra.
Nunca mudou – cidadezinha do norte –
Com sua figura doce e calma,
Nem mudará até a morte,
Para ter sempre a mesma alma.
Minha cidade serrana
É a mesma desde eu menino,
Mas sendo, como é, sensível e humana,
Está também cumprindo o seu destino.
Se não cresce, é pela idade,
Já sendo o que tem de ser.
Não cresceu na mocidade
E já passou a idade de crescer.

O poema “Areia” se prende a gratas lembranças da infância e a cidade é descrita como


“sensível e humana”. Adulto, ao contemplar a cidade, ele sente que nada mudou, continua
“pequenina, cidadezinha do norte”. Um tom nostálgico e musical perpassa por todo o poema-
é uma saudade que dói - o que foi permanece, mas como disse outro poeta – “Como dói!”
A leitura desse poema nos leva ao encontro das paisagens de Alberto da Veiga
Guignard, pintor radicado nas cidades serranas de Minas Gerais, que soube muito bem trazer
para o universo pictórico todo o encanto que as cidadezinhas do interior encerram. Areia é
também uma cidade serrana, uma das mais altas do brejo paraibano e conserva, com seu
casario colonial, características das cidades mineiras tão bem retratadas pelo pincel de
Guignard. Um clima bucólico impregna suas ruas ladeirosas ornadas de casario colonial. José
Américo soube traduzir, poeticamente, o amor à terra natal de modo carinhoso e afetivo.
O poema “A única voz” é denunciador do clima de solidão que se abate sobre o eu
lírico e representa os últimos anos de vida do escritor. A leitura do texto comprova esta
afirmativa:
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Eu só aqui, mais ninguém,


Nas noites de solidão.
E, se chamar, ninguém vem
E, se falar, falo em vão.

Penso. E a voz intrometida


Vem cortar meu pensamento
Não é ninguém, não é vida,
É um vagabundo – o vento

Ele tem medo da hora,


Da noite e sua feiura.
Pede socorro de fora,
Sopra pela fechadura.

Quem era seu companheiro nesses momentos de quietude? Apenas “o vento


vagabundo”. Ele se instala na solidão da noite e o vento não é ninguém, não tem vida, é como
o eco do apito do trem que grita na noite, o vento é apenas uma “voz intrometida” que “sopra
pela fechadura”.
Nesse universo de quarenta poemas, não poderia faltar um texto dedicado a Augusto
dos Anjos, poeta/companheiro por quem José Américo mantinha a mais profunda admiração.
José Américo foi seu contemporâneo na Faculdade de Direito do Recife. Vejamos o poema:

Amigo, a tua poesia plasmas.


Com teus problemas e filosofias,
Ou então, conversando com fantasmas.
Que são teus visitantes e teus guias.
Passeastes com Haeckel, ombro a ombro,
E tomaste lições com Edgar Poe.
Foram teus nervos, foi teu assombro.
Não foi ninguém, nem Poe nem Rimbaud.
Tiveste, Augusto, apenas um irmão,
Com Euclides da Cunha és parecido,
A mesma febre, a mesma exaltação
E a música irreal que fere o ouvido.
Tu em verso fizeste a sua prosa
E ele na sua prosa fez o verso.
Em tudo a mesma flama dolorosa,
O mesmo lume aceso no Universo.

No poema “Augusto”, José Américo vislumbra a presença de traços euclidianos na


poesia anjiana, aspecto que depois foi ressaltado por Ariano Suassuna. E José Américo
afirma que, embora Augusto tenha passeado com Haeckel e tomado lições com Edgard Alan
Poe, o irmão literário que lhe deixou marcas foi realmente Euclides da Cunha.
Ainda há que se destacar a pertinência de uma musicalidade que “fere o ouvido”,
presente tanto na prosa euclidiana como na poesia de Augusto dos Anjos.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 42

“Quarto Minguante se compõe de quarenta poemas. O crítico Hildeberto Barbosa


Filho, no prefácio da 2ª edição deste livro, ressalta que, do ponto de vista temático, a poesia
de José Américo incide sobre três motivações fundamentais: o mar, a infância e a natureza.
Nesses breves comentários sobre o livro de José Américo, preferimos examinar o “tesouro de
recordações”.
Se os poemas que compõem o livro “Quanto minguante” foram escritos na
maturidade, no dizer do poeta, no “apagar das luzes”, não faltou a versatilidade, traço que
marca a prosa, as memórias e os discursos de quem soube exercer com “engenho e arte” a
verdadeira profissão de um homem ligado às letras.

Referências

ALMEIDA, José Américo de. Quarto Minguante. 2 ed. João Pessoa: Fundação Casa de José
Américo, 1994.
______. Antes que me esqueça. 3ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005.
______. Discursos do seu tempo. 3ª ed. João Pessoa: Interplan [196-]
BARBOSA FILHO, HIldeberto. Arrecifes e Lajedos: Breve Itinerário da Poesia na Paraíba.
João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
______. José Américo de Almeida e a Poesia de Quarto Minguante. João Pessoa: Fundação
Casa de José Américo, 1994.
Staiger, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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ISBN: 978-85-6641465-3
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O ROMANCE AMERICISTA

Maria do Socorro Silva de Aragão


ALANE – PB
UFC / UFPB

Fostes, Senhor José Américo, o criador de um novo estilo.


Daí a vossa importância na história de nossas letras modernas.
Vosso estilo não era apenas vossa personalidade.
Como o dos Sertões excedeu de muito a pessoa de Euclides da Cunha.
E por isso é que sua obra se libertou de seu autor e hoje vive por si.
Como tendes de admitir que a Bagaceira já não é só vossa.
É de todos. E desde 1928 vive uma vida alheia à vossa.
Sois hoje a obra da Bagaceira. Não mais a Bagaceira obra vossa.
E o destino de todas as obras-primas da humanidade.1

Introdução

O Estado da Paraíba, um dos menores da Federação, é conhecido não só por sua


capacidade de luta e resistência, mas, principalmente, por seus filhos ilustres, que se
destacaram e ainda se destacam nacionalmente na política, nas artes e na literatura.
Nomes como João Pessoa, Epitácio Pessoa, José Américo de Almeida, José Lins do
Rego, Ariano Suassuna, Pedro Américo e Augusto dos Anjos ilustram a afirmação acima.
Porém, a própria Paraíba muitas vezes não se dá conta, não reconhece e
consequentemente não reverencia seus filhos ilustres, com as exceções de praxe.
José Américo de Almeida, além de político, é um dos mais importantes escritores
paraibanos e nacionais, com uma obra multifacetada que abrange do romance às memórias,
passando pela poesia.

José Américo de Almeida, o homem e o escritor

José Américo - o homem

José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de janeiro de 1887, no Engenho Olho


d’Água, no município de Areia, Estado da Paraíba, filho de Ignácio Augusto de Almeida e
Josepha Leopoldina Leal de Almeida.

1
Alceu Amoroso Lima. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 25.
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Em suas palavras, diz José Américo:

Sou de Areia, Estado da Paraíba, na encosta oriental da Borborema, terra


alta, de chuvas copiosas e verões suavíssimos, em plena fogueira tropical.
(Em suas memórias, André Rebouças compara esse clima aos da Bélgica, de
Paris e de Petrópolis.) A altitude de 622 metros modifica a temperatura,
fenômeno pouco sensível em outras latitudes.2

Em 1901, aos 14 anos José Américo é levado pelo tio, Padre Odilon Benvindo de
Almeida, para o Seminário da Paraíba, onde permaneceu por três anos, iniciando o Curso de
Humanidades. O tio Padre foi muito importante na formação de José Américo.
Em 1904, José Américo deixa o Seminário e faz, de uma só vez, todos os
preparatórios no Liceu Paraibano. No mesmo ano matricula-se na Faculdade de Direito do
Recife.
José Américo de Almeida formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade
de Direito do Recife em 1908, aos 21 anos de idade.
Foi Promotor Público, Procurador-Geral do Estado da Paraíba, Consultor Jurídico do
mesmo Estado e Ministro do Tribunal de Contas da União.

José Américo - o Escritor

A vocação literária de José Américo de Almeida revelou-se aos vinte anos quando em
1907 – juntamente com Simão Patrício e Eduardo Medeiros edita, em Areia, o jornal
CORREIO DA SERRA.
Nesse mesmo período publica sonetos no Jornal A UNIÃO, diário da Capital.
José Américo escreveu romances, relatórios, ensaios, crônicas, discursos e memórias.
Algumas das obras de José Américo vêm tendo novas edições e A BAGACIERA
possui versões em Inglês: Trash; Espanhol: La Bagacera e Esperanto: La Bagasejo.
Escreveu, também, em diversas revistas da Paraíba e do Brasil, como Era Nova, A
Novella e O Cruzeiro. Deu entrevistas em revistas como Manchete, Veja e em jornais,
algumas delas que abalaram a República, como a entrevista concedida a Carlos Lacerda.

2
ALMEIDA, José Américo de. Apresentação. In: Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1976, 171p., p. 11.
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José Américo - o Romancista

O romance escrito por José Américo e que o tornou famoso foi A Bagaceira. Falando
sobre sua condição de como se tornou romancista, diz o autor:

Notava-se meu ar distante. Se não houvesse noite,


seria preciso inventá-la e, mesmo de olhos abertos,
eu sonhava. Inventava meu mundo e convocava meus mitos.
Fugindo do meu ambiente para montar outros quadros.
Nesses momentos de fuga ia ao ponto de plantar
minha paisagem e gerar outras vidas, por obra da imaginação.
Cultivava essa linda mentira e sentia-me realizado.
A fantasia que transfigurava as coisas construía meu universo.
Demorava-me nessa atmosfera fictícia e meus sonhos
tomavam corpo. A imagem estava sempre
presente e eu brincava com essa ilusão.
Só me concediam criar, como um direito meu.
E assim me fiz romancista.3

Segundo os críticos literários da época, A Bagaceira iniciou o movi- mento


regionalista da Literatura Brasileira e causou sensação junto ao público especializado naquele
momento.
Tristão de Athaíde disse sobre A Bagaceira:

Pois esse livro é um romance da seca, e embora considerando apenas em


suas repercussões e não diretamente – talvez o grande romance do Nordeste
pelo qual há tanto tempo eu esperava. Se não completo, ao menos intenso. O
romance que Euclides da Cunha teria escrito se fosse romancista. De um
Euclides da Cunha sutil e bárbaro a um só tempo. O romance daquilo de
que os Sertões foram a epopeia.4

Outros escritores e críticos também se pronunciaram sobre A Bagaceira, como João


Ribeiro, que escreveu:

A Bagaceira – é de agora em diante o livro clássico da literatura do norte


porque alia à perfeição dos seus temas a correção da linguagem sem dano
do idioma nacional, Alí está debuxada a vida dos engenhos, o flagelo da
migração forçada dos retirantes, com a fragrância da verdadeira realidade.

3
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, 171
p., p. 25 - 167-168).
4
Tristão de Ataíde. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 13-14.
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José Américo de Almeida não é só um romancista, é um grande romancista,


5
um grande intérprete da vida brasileira.

José Lins do Rego, contemporâneo e amigo de José Américo disse sobre A Bagaceira:

Começaria dizendo da Bagaceira que este romance me foi uma forte


surpresa. Deu-me uma impressão, para melhor, que não esperava do seu
autor, deixando a alegria de quem descobrisse em mãos de amigo uma
loteria premiada de sorte grande. E porque não dizer, alegria misturada
6
com uma muito humana pontinha de inveja.

Assim, toda a produção literária de José Américo, que daria milhares de análises, sob
os mais variados aspectos, será aqui representada apenas por seu romance A Bagaceira.
Alguns autores consideram romances as Novelas, como as chamou José Américo,
Reflexões de uma Cabra, O Boqueirão e Coiteiros, classificação que seguimos o autor,
como Novelas.

A linguagem de A Bagaceira

Este trabalho trata das variações regionais populares do autor paraibano José Américo
de Almeida. O estudo baseia-se nos princípios teórico-metodológicos das ciências da
linguagem Dialetologia, Sociolinguística e Etnolinguística, analisando o léxico do autor.
Sabe-se que todas as variações e mudanças linguísticas são evidenciadas, imediatamente, pelo
léxico, uma vez que ele acompanha a mobilidade sociocultural da comunidade. As relações
entre língua, sociedade e cultura são muito fortes e a língua pode revelar o sentir e o pensar da
sociedade e de um povo, seus valores culturais e sua visão de mundo. O autor aqui estudado
representa, em seus personagens a língua, a sociedade e a cultura do povo paraibano.
Se partirmos, como pretendemos, das variantes regionais, no caso, as paraibanas, e
direcionarmos nosso olhar para a perspectiva cultural desses falares poderemos afirmar que a
linguagem utilizada nessas variações, marca ou é marcada pelos aspectos socioculturais que
revestem essas realizações.
Em se tratando de falar regional nordestino da Paraíba, o léxico e a fonética são os
aspectos onde mais se percebe as diferenças entre esses falares e os de outras regiões

5
João Ribeiro. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A
União, 1977, p. 38.
6
José Lins do Rego. (In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João
Pessoa: A União, 1977, p. 55.
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brasileiras. Aqui trataremos dos aspectos léxicos do falar paraibano, que é uma marca dessa
cultura regional.
Como corpus para esta análise utilizaremos itens lexicais da Linguagem Regional da
Paraíba na obra de José Américo de Almeida, autor paraibano, que, apesar de erudito, usou
nos personagens de sua obra a linguagem do povo simples e muitas vezes não escolarizado de
nosso Estado.
O próprio autor diz:

A língua nacional tem rr e ss finais... Deve ser utilizada sem plebeísmos que
lhe afeia, a formação. Brasileirismo não é corruptela nem solecismo. A
plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir [...].7

As relações entre Léxico, Sociedade e Cultura

Ao se estudar a língua, os contextos socioculturais em que ela ocorre são elementos


básicos e, muitas vezes, determinantes de suas variações, explicando e justificando fatos que
apenas linguisticamente seriam difíceis ou até impossíveis de ser determinados.
No caso específico do léxico, esta afirmação é ainda mais verdadeira, pois toda a visão
de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas socioculturais das comunidades
humanas são refletidos em seu léxico.
Segundo Barbosa (1992, p. 1):

[...] o léxico representa, por certo, o espaço privilegiado desse processo de


produção, acumulação, transformação e diferenciação desses sistemas de
valores.

Para se apreender, compreender, descrever e explicar a “visão de mundo” de um grupo


sócio-linguístico-cultural, o objeto de estudo principal são as unidades lexicais e suas relações
em contextos.
O léxico enquanto descrição de uma cultura está no seio mesmo da sociedade, reflete a
ideologia dominante, mas, também, as lutas e tendências dessa sociedade.
Os itens lexicais aqui estudados poderão mostrar a diversidade de visões de mundo, e
como o autor elabora lexicalmente esse universo.

Análise do corpus
7
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1987, 215 p. p.2.
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A publicação em 1928 de A Bagaceira, do escritor e homem público paraibano José


Américo de Almeida foi um marco na literatura regional brasileira por sua linguagem regional
nordestina e por ter, também, uma linguagem popular, ligada às pessoas simples do interior da
Paraíba e projetou-lhe o nome em todo o país, com o destaque dado à literatura regionalista.
Falando sobre regionalismo, tão bem representado em sua obra, diz José Américo:

O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque


é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode
competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só
interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos
despercebidos.8

A obra de José Américo é riquíssima para análises do ponto de vista da


Sociolingüística, ciência que estuda as relações entre a língua e a sociedade, suas inter-
relações e o papel que cada uma exerce sobre a outra, determinando os níveis ou registros de
fala, que vão desde o nível mais informal da modalidade falada ao mais formal da modalidade
escrita, que é o literário, correlacionando-os com o nível sócio-cultural de seus usuários. São
as variações sócio-culturais, também chamadas diastráticas, que determinam as diferenças
entre a linguagem erudita e a popular, entre outras.
A integração das três ciências da linguagem, a Sociolingüística, a Dialetologia e a
Etnolinguística é que nos permite analisar a linguagem do autor vendo-lhe os aspectos
erudito, popular e regional.
Assim, José Américo de Almeida, autor da linha regionalista da literatura brasileira é
fonte da maior significação para o estudo das variações linguísticas, diatópicas e diastráticas,
ou seja: variações regionais, sóciais e culturais. Outro tipo de variação que também pode ser
estudada em José Américo é a diafásica ou estilística.
A temática, a estrutura literária e a linguagem de sua obra caracterizam, com rara
precisão, o nosso povo, seu falar, costumes, crenças e tradições, e seu modo de ser, viver,
pensar e agir, dentro do seu universo sócio-lingüístico-cultural.
Sua linguagem popular se manifesta, basicamente, no léxico, com um vocabulário de
palavras e expressões regionais/populares.

Aspectos Léxicos

8
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1987, 215 p. p.2.
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Falar Regional-Popular

É no léxico onde o caráter regional-popular da obra de José Américo de Almeida


aparece mais fortemente em "A Bagaceira". Os termos e expressões regionais/populares
marcam, de forma inequívoca, o escritor nordestino que usa a linguagem de seu povo e de sua
terra de forma magistral também nesta obra. Vejamos alguns exemplos ilustrativos:

 Aboletar-se – alojar-se, instalar-se, aquiartelar-se em casas particulares. “Abolete-se moço.


Tome a tipóia.
O vocábulo está registrado em (AB) e (HA), com o mesmo sentido.

 Brote - bolacha grande e dura. “Deitavam-se a elas nos fundos das bodegas por um rabo
de bacalhau ou um brote duro”.
O termo brote foi introduzido no vocabulário nordestino numa adaptação da palavra
holandesa brood (pão), durante o período da dominação holandesa no nordeste. Apenas
Horácio Almeida registra o termo, mas com outro sentido.

 Bangalafumenga – João – ninguém, indivíduo sem importância. “Ela não dança com
bangalafumenga daqui”.
O dicionário de (HA) registra com o mesmo sentido e (CF) registra: banga-la-
fumenga.

 Celé - atordoado, estonteado. “Caiu ciscando, ficou celé”.


Dos dicionários consultados apenas Horácio de Almeida registra este termo. Os
demais não o registram.

 Chumbergada - pancada, açoitamento, golpe dirigido contra uma pessoa ou animal.


“Arrochei-lhe outra chumbergada”.
Dos dicionários consultados apenas Horácio de Almeida registra este termo. Os
demais não o registram.
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 Cruviana – friagem, frio intenso. “Você fala de mim e treme de frio, que nem eu [...]. Que
cruviana”.
Dos dicionários consultados, (AB), (HA), (CF), registram, outros registram com
sentido semelhante.

 Embiocar – entrar, entocar. “Quando Fifi me avistou embiocou pra dentro”.


Os dicionários de (HA), (AB) e (CF), registram com o mesmo sentido do autor.

Provérbios e Frases Feitas

 Andar com uma mosca na orelha – estar suspeitando de alguma coisa. “Papai já anda
com uma mosca na orelha, é capaz de fazer uma das dele”.
Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão.

 Acatitar os olhos - arregalar, fixando os olhos. “Acatitou os olhos e escumava, como juá”.
Expressão registrada apenas por Horácio Almeida na variante encatitar.

 Andar de capas encouradas - disfarçado, dissimulado, mascarado. “Há gente que anda de
capas encouradas; quando menos se pensa. Bota as mangas de fora.”.
Nenhum dos dicionários consultados registra esta forma.

 Calcanhar – de - Juda – Lugar muito afastado, muito distante. “Eu arrenego da bondade
deste calcanhar-de-juda.
Os dicionários de (HA), (AB), registram com sentido semelhante.

 Dar de mamar à enxada – apoiar-se no cabo da enxada. “Só vive dando de mamar à
enxada.”
Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão.

Uso de elementos da cultura popular

Numa cena de festa do engenho, os cantadores de coco cantavam:

Cabra danado,
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Se não tem corage, eu tenho


De pegar numa pistola
E atirar no senhor de engenho...

Minha senhora,
De que chora este menino?
Chora de barriga cheia
Com vontade de apanhar...

Ou ainda numa trova de Fabião das Queimadas, o violeiro puxava a alma com os
dedos:

A minha alma de velho


Anda agora renovada
Que a paixão é como o sonho,
Chega sem ser esperada.

Pirunga improvisou:

Não se vê um olho-d’água,
Quando há seca no sertão
E enchem-se os olhos d’água,
Quando seca o coração...

O xexéu de minha terra


Que me ensinou a cantar
Antes me tirasse o canto
E me ensinasse a voar...

Considerações Finais

Ao trabalharmos com a linguagem regional popular do nordeste do Brasil, especialmente a do


Estado da Paraíba, podemos nos perguntar, como muitos dos colegas dialetólogos e sociolinguistas
certamente também o fazem: o que é regional, o que é popular, o que é criatividade não só dos
escritores, dos personagens, mas do povo em geral, ao utilizar sua linguagem para se comunicar, para
se expressar, para afirmação do eu ou como função estética?
As respostas a estas questões são, muitas vezes, difíceis, senão ambíguas, pois o homem usa
sua linguagem com todas estas funções, intercalando-as, mesclando-as, dando maior ênfase ora a uma,
ora a outra, mas sempre partindo de sua realidade, realizando adaptações que têm uma motivação
muito específica, com o objetivo final de transmitir aquilo que deseja, criando e/ou modificando sua
linguagem para atingir esses objetivos.
O estudo e análise do romance A Bagaceira de José Américo de Almeida mostra-nos essas
variações e oferece possibilidades as mais variadas, fato comprovado pelas centenas de trabalhos
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publicados sobre sua obra, em vários níveis, abordando novos e diferentes aspectos, desde artigos e
ensaios até teses de doutorado.
Concordamos com Tritão de Athaíde quando diz sobre A Bagaceira:

E todo o livro é escrito em brasileiro ora culto, ora bárbaro, mas sempre em
brasileiro, sem transição brusca artificial entre a linguagem dos que sabem
e a dos que não sabem. Uma língua só e nova, em todas as suas gradações.
De um sabor e de uma vida admiráveis.9

Referências

ALMEIDA, Horácio de. Dicionário popular paraibano. Campina Grande: Grafset, 1984.
ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1976,171 p.
______. A Bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 215 p. p.2.
ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. Cartilha literária José Lins do Rego. João
Pessoa: FUNESC, 1990.
______. Glossário aumentado e comentado de A Bagaceira. João Pessoa: A União, 1984.
ATHAÍDE, Tristão de. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977.
______. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 23ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1987.
BARBOSA, Maria Aparecida (1998): Relações de significação nas unidades lexicais, em:
______. O léxico e a produção da cultura: elementos semânticos. I ENCONTRO DE
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DE ASSIS. Anais. Assis; UNESP, 1993.
CLEROT, L.F.R. Vocabulário de termos populares e gíria da Paraíba: Estudo de
glotologia e semântica paraibana. Rio de Janeiro: s. ed. 1959.
FERREIRA, A. Buarque de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
LIMA, Alceu Amoroso. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977.

9
ATHAIDE, Tristão. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987,
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de.; ISQUERDO, Aparecida N. (Orgs.) As ciências do léxico:


Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. Campo Grande: UFMS, 1998, p. 133.
OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de. Regionalismos brasileiros: a questão da distribuição
geográfica. In: OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de; ISQUERDO, Aparecida N. (Orgs.) As
ciências do léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. Campo Grande: UFMS, 1998.
REGO, José Lins do. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem
público. João Pessoa: A União, 1977.
RIBEIRO, João. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem
público. João Pessoa: A União, 1977.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA – UMA ABORDAGEM SOBRE O POLÍTICO


PARAIBANO

Ana Isabel de Souza Leão Andrade


(Bibliotecária, Arquivista, Escritora, Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste –
ALANE -Núcleo da Paraíba e da União Brasileira de Escritores -UBE-PB)

“A política ceva-se na administração,


absolve crimes e encobre escândalos.”1

Escrever sobre José de José Américo de Almeida é sempre difícil porque José
Américo “é um monumento vivo dele mesmo” como disse o escritor Juarez da Gama Batista
em entrevista a Aspásia Camargo publicada no livro O nordeste e a política, 1984. Fui
Diretora do Departamento de Documentação e Arquivo da Fundação Casa de José Américo e
primeira arquivista daquela Casa, quando iniciei em 1981 os trabalhos de implantação e
organização do Arquivo de José Américo de Almeida, com documentos espalhados por toda a
Casa logo após a sua morte, em março de 1980. Naquela Casa trabalhei com afinco durante
23 anos. A documentação do Arquivo de José Américo é de uma riqueza extraordinária para a
história da Paraíba e do Brasil e está custodiada na Fundação Casa de José Américo.
Por ocasião do II CONALI-Congresso Nacional de Literatura com o tema A literatura
& tempo: Cem anos de Encantamento, em homenagem aos cem anos de morte de Augusto
dos Anjos, realizado no período de 16 a 19 de novembro de 2014, na cidade de João Pessoa,
as pesquisadoras e professoras Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e
Ana Isabel de Souza Leão Andrade, que há vários anos vem realizando trabalhos em conjunto
sobre Augusto dos Anjos e atualmente escrevendo o livro “José Américo de Almeida: uma
fotobiografia”, se reúnem nessa mesa redonda intitulada “José Américo, entre o real e o
ficcional” para apresentar temas que falam sobre José Américo. Para mim coube falar de José
Américo: o político. O tema é muito abrangente, mas, me deterei fazer uma pequena
abordagem.
José Américo de Almeida nasce às duas da madrugada de uma sexta-feira, 10 de
janeiro de 1887, no Engenho Olho d’Água, município de Areia, Estado da Paraíba. Filho do
casal Ignácio Augusto de Almeida e Josepha Leopoldina Leal de Almeida. É o quinto filho de
onze irmãos. Aos 11 anos de idade falece o seu pai Ignácio e José Américo aos 12 anos foi
morar no engenho na cidade de Areia com seu tio paterno, o vigário Odilon Benvindo que o
1
ALMEIDA, José Américo de. In: Discursos do seu Tempo. A hora das consciências, 1963. p.147. João
Pessoa:Iterplan, [s.d].
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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assume com as funções paternas. Mesmo contra a vontade de José Américo aos 14 anos ele é
enviado para o Seminário com a finalidade de seguir os passos de seu irmão mais velho,
Inácio e permanece por três anos. Abandona o Seminário por não ter vocação para o
sacerdócio. Em entrevista a Aspásia Camargo disse José Américo: “Eu nunca pensei ser
Padre; fui coagido. Quando estava no Seminário sonhei coisas de menino.” (CAMARGO,
Aspásia et.al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.71)
Fez de uma só vez os estudos preparatórios no Liceu Paraibano. Os exames do Liceu
Paraibano nessa época eram o que se chamava jubileu. No mesmo ano, 1904 matricula-se no
Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito do Recife e recebe do titulo de
Advogado em 1908 com 21 anos de idade. Foi político, escritor e advogado. Como político
assumiu vários cargos importantes na vida nacional: Secretário Geral do Estado da Paraíba,
Secretário do Interior e Justiça e de Segurança Pública. Interventor do Estado da Paraíba,
chefe do Governo Central do Norte, Ministro da Viação e Obras Públicas por dois mandatos,
Candidato à Presidência da República em 1937, Senador, Governador da Paraíba eleito em
1950.

Ignácio (pai de JA) Josepha(mãe de JA) Casa onde nasceu José Américo

Iniciação Política

Segundo seu irmão Augusto de Almeida em entrevista a Aspásia Camargo, 1983 e


publicada no livro “O nordeste e a política: diálogo com José Américo, 1984, diz que os
“pendores literários e políticos de José Américo se manifestaram desde cedo e caminharam
juntos.” Aos dez anos de idade redige seus primeiros versos “Eurico”. Escreve no jornal da
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escola e também compõe letras para hinos da tradicional festa da Conceição da cidade de
Areia. Funda, na cidade de Areia, com Simão Patrício e Eduardo Medeiros o jornal “O
Correio da Serra”.
Em 1907, na cidade de Areia, José Américo inicia a sua trajetória política. Era ainda
acadêmico, quartanista de Direito, e juntamente com seu primo Antônio Simeão Leal já se
filia ao partido que era chefiado pelo Senador Gama e Melo, partido de oposição ao seu tio e
padrinho Monsenhor Walfredo Leal, então presidente do Estado da Paraíba. Ambos apoiaram
a candidatura dissidente de Gama e Melo. O partido perdeu a eleição e a dissidência levantou
sua bandeira. A briga com o tio e o partido oficial quase o induz a emigrar para o Rio Grande
do Sul deixando a política, mas a família insiste para que fique na Paraíba. Pouco tempo
depois é nomeado promotor em Sousa em pleno sertão paraibano.
E, em 1915, José Américo volta a se envolver nos conflitos entre as facções políticas
do seu Estado, na cidade de Areia com a ruptura entre Epitácio Pessoa, líder ascendente de
Walfredo Leal, herdeiro político do ex-Governador da Paraíba Álvaro Lopes Machado. José
Américo apoia seu Tio Walfredo Leal contra Epitácio Pessoa.
Em entrevista a Aspásia Camargo José Américo diz: Mas aberta a luta fui dos mais
aguerridos. (CAMARGO, Aspásia et al. . O nordeste e a política: diálogo com José Américo
de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.25)
Destaca-se como figura de proa do walfrederismo, graças a ferinas polêmicas contra
os epitacistas divulgadas na imprensa. Mesmo assim, Epitácio Pessoa admira os discursos do
jovem José Américo quando estava no cargo de Procurador. O cargo de Procurador-Geral do
Estado era um cargo político e José Américo, mesmo contrário ao governo, continua
exercendo essa função por mais alguns anos. Seu saber jurídico estava acima das querelas
políticas.
José Américo enquanto estava no cargo de Consultor Jurídico, nomeado por João
Pessoa, merece o seguinte elogio de Epitácio Pessoa: “Estou informado de quanto tem sido
brilhante e proveitosa a sua colaboração no cargo de Consultor [...] não vai nisto um simples
cumprimento mas o reconhecimento de uma verdade por todos proclamada” (CAMARGO,
Aspásia et al . (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo de Almeida: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 226). Nesse período o Presidente do
Estado da Paraíba Solon de Lucena sabedor de seu interesse pelos estudos paraibanos
encomenda a José Américo para que faça um inventário sobre o meio geográfico e social do
Estado, do qual resultou no livro: “A Paraíba e seus Problemas”. Este livro trata dos
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problemas nordestinos sobretudo a seca, livro que veio a ser publicado com a 1ª edição em
1923. Atualmente já está na quarta edição e mais a edição especial publicada pelo Senado
Federal. Este tema foi à tônica de suas gestões políticas futuras. Esta obra segundo José
Américo, “tinha como objetivo expressar ao Senhor Epitácio Pessoa o reconhecimento da
Paraíba pelos benefícios outorgados como solução dos problemas das secas... e perpetuar
num livro a história desse esforço redentor.” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a
política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1984. 579 p.,
p.28)

Secretário Geral

Em 1928, selada a Aliança entre walfredistas e epitacistas, desde que Walfredo Leal
apoiara Epitácio Pessoa para Presidente da República, o presidente do Estado, João Pessoa
que era sobrinho de Epitácio Pessoa, convida, José Américo, com 41 anos de idade, consultor
prestigiado, próspero advogado, e escritor já reconhecido, para ocupar a pasta da Secretaria
Geral do Estado. Esse convite ocorre poucos meses após o lançamento do livro “A bagaceira”
atualmente com 44 edições. Mesmo afastado da política José Américo, por não concordar
com alguns procedimentos desenvolvidos na época, aceita o convite feito por João Pessoa que
desejava fazer uma reforma política no Governo. Sobre o assunto, José Américo comenta em
entrevista a Aspásia Camargo que teve o seguinte diálogo com João Pessoa: “[...] Por que me
convida? O que vai fazer lá? Ele me respondeu: Vou dar uma “vassourada.” (CAMARGO,
Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro
Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.115 ). A reforma foi realizada e este ato fez com que João
Pessoa se tornasse impopular por um bom período.
Por sugestão do próprio José Américo, o Presidente João Pessoa desmembra a
Secretaria Geral do Estado, criando a Secretaria do Interior e Justiça e a de Segurança Pública.
A princípio, José Américo é nomeado Secretário do Interior e Justiça, depois é acionado pelo
próprio João Pessoa para ocupar a segunda pasta- Secretária de Segurança Pública.

Deputado Federal

Com o apoio de João Pessoa, foi candidato a Deputado Federal pela Paraíba. Eleito
nas eleições de março de 1930, com a maioria de 28 mil votos, teve seu mandato depurado
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com toda a bancada situacionista da Paraíba e de Minas Gerais, em favor de um candidato que
contava apenas com pouco mais de 3 mil votos. Isto ocorre como reação contra a Aliança
Liberal de que fazia parte. Foi um episódio de muita decepção para José Américo. Narrando
os fatos em entrevista a Aspásia Camargo sobre que ele mesmo chamou de “A degola”, diz:
[...] deixei a Secretaria do Interior e fui o deputado mais votado da Paraíba, com 28.000
votos. Mas organizaram uma junta apuradora inteiramente facciosa. Eleito, vim para o Rio,
mesmo sabendo que era tempo perdido. Da maneira como agia a Comissão de Poderes, vi
que ela era inteiramente facciosa, porque chegaram a mudar os seus membros. Chequei aqui
e fui depurado, com toda a bancada situacionista da Paraíba e a mineira. (CAMARGO,
Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 579 p., p. 136-137).
Ainda sobre a eleição diz: Comecei acompanhando os trabalhos de apuração que me
encheram as medidas. Não pude suportar a farsa: só voltei para um desagravo. Demócrito de
Almeida um dos candidatos a deputado, avisou-me que tinha sido revistado, à entrada do
edifício. Tomei-me de tal revolta que corri até lá e penetrei armado, sem me deixar
desfeitear. Ainda subi e lavrei meu protesto. [...]. Vi João Pessoa pálido de cólera. Havia um
brilho estranho em seus olhos. E levantou um protesto que era uma objurgatória retumbante
contra os que tinham traído o seu gesto romântico. (ALMEIDA. José Américo de. O ano do
nego. 2 ed., João Pessoa: A União 1978, 245 p., p. 59-61).
Pergunta Aspásia: - Quando o senhor saiu da Paraíba ainda não estava diplomado?
— Não. Mas eu cheguei, e Epitácio Pessoa resolveu, aqui, que Tavares Cavalcanti, que era
candidato a senador, falasse por todos diante da Comissão de Verificação de Poderes. Mas
aconteceu que nós fomos surpreendidos. Um dia disseram: “É hoje”. Eu então disse a
Tavares: “Chegou a ocasião”. Ele falou: “Não tenho nenhum documento feito”. Respondi:
“Bem, então vou dizer desaforos. Não tenho documentos, não deu tempo me documentar: vou
dizer desaforos”. Fiz um discurso terrível. [...].
O relator me explicou: “É a política, são coisas da política...” E eu respondi: “E é
isso a política? Política, para mim, é uma coisa direita...”. (CAMARGO, Aspásia et al. O
nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984, 579 p., p. 137).
- E depois de tudo isso, como foi sua volta à Paraíba?
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Diz ele: — Fiquei decepcionado com a política. [...] Mas fui ficando no Rio, até que
João Pessoa me mandou chamar... [...] porque a resistência do governo da Paraíba contra a
revolta estava sendo destruída: tinham desertado trezentos homens numa única semana.
Cheguei lá e ele me pediu para voltar. Eu disse: “Não. Estou desencantado, deixe-me
voltar para a minha banca de advogado”. Ele disse: “Eu quero mais um sacrifício seu. Não
será mais secretário do Interior. Você vai para a Secretaria de Segurança”. Mandou que o
secretário de Segurança pedisse demissão – eu relutei muito – e me nomeou. [...]....”.
(CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 579 p., p. 140).

Secretário de Segurança Pública

Após o episódio da eleição para Deputado Federal, Aspásia pergunta: — E como


encontrou a Paraíba, ao voltar para o Estado?
— Naquela ocasião, a luta armada já havia sido deflagrada. Em Princesa, José
Pereira se levantara, apoiado pelo presidente eleito, Júlio Prestes. (CAMARGO, Aspásia et
al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, 579 p., p.140).
Neste cargo de Secretário de Segurança Pública, comanda no interior do Estado as
operações contra a Revolta de Princesa até a vitória da Revolução de 1930. Com o assassinato
de João Pessoa, Presidente do Estado (1930), foi solicitado pelo 1º. Vice-Presidente, Álvaro
Carvalho a permanecer no cargo, nesses dias turbulentos. Vitoriosa a Revolução, José
Américo projeta-se no cenário político em nome da Paraíba e não hesita em desafiar o
Governo de Washington Luís apoiando a chapa oposicionista de Getúlio Vargas.
Sobre esse fato revela José Américo: [...]. De volta do centro de operações,
inesperadamente, num dia que coincidia com a morte de João Pessoa, como um toque
misterioso, procurou Álvaro de Carvalho, 1º Vice-Presidente em exercício para pedir-lhe
demissão, alegando que o seu Compromisso era com João Pessoa. A resposta foi decisiva:
“Se deixar a Secretaria eu deixo o Governo”. O 2º Vice-Presidente, Júlio Lyra era
adversário e aliado do Catete. Teve, assim, José Américo de Almeida de permanecer no
cargo durante os 70 dias que mediaram entre a morte de João Pessoa e a vitória da
revolução, num quadro de verdadeira loucura coletiva, dando garantias aos elementos
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contrários ameaçados pela fúria popular. (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo
de Almeida: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 215).

A Revolução de 1930

A Revolução de 1930 foi o movimento armado, liderado pelos Estados de Minas


Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que culminou com o Golpe de Estado, chamado Golpe
de 1930, que depôs o presidente da República Washington Luís em outubro de 1930. Impediu
a posse do Presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim a República Velha. Em 1929, lideranças
de São Paulo romperam com os mineiros, conhecida como a política do café-com leite e
indicaram o paulista Júlio Prestes como candidato à presidência da República. Em reação o
Governador de Minas Gerais Antônio Carlos Ribeiro de Andrada apoiou a candidatura
oposicionista de Getúlio Vargas. Em 1º de março de 1930, foram realizadas as eleições para
Presidente da República que deram a vitória ao candidato governista Júlio Prestes, que era
governador do Estado de São Paulo. Ele, não tomou posse em virtude do golpe de Estado
desencadeado em 03 de outubro de 1930, e foi exilado. Getúlio Vargas assumiu a chefia do
Governo Provisório em 03 de novembro de 1930, data que marca o fim da República Velha.
Na Paraíba, José Américo de Almeida era o líder da Revolução.

Interventor do Estado da Paraíba e Chefe do Governo Provisório

Com a deposição de Washington Luiz, José Américo foi aclamado Interventor da


Paraíba e Chefe do Governo Provisório do Norte pelas forças revolucionárias. Até a posse de
Getúlio Vargas, fica como Governador da Bahia ao extremo Norte.
Sobre o cargo de Interventor da Paraíba, José Américo explica a Aspásia Camargo:
[...] Depois de vitoriosa a revolução, eu fui aclamado Interventor da Paraíba e, ao mesmo
tempo, tive um cargo um pouco caricaturado de governador-geral do Norte. Getúlio não
tinha tomado posse ainda; [...] constituí "ministério”, chamei auxiliares, sugeri nomes de
outros estados, Pernambuco, de Sergipe e Alagoas e, esse governo durou até a posse de
Getúlio. Eu fui com Juarez Távora pelo Norte todo, empossando os interventores que
nomeava. Fui até Belém como governador – geral.. (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste
e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1984.579., p189.)
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Diante dos fatos Aspásia Camargo comenta sobre a atuação de José Américo na
Revolução de 1930:
“[...] José Américo projeta-se no cenário político em nome da Paraíba, como ele
mesmo diz “pequenina e louca” que não hesitara em desafiar o governo Washington Luís,
apoiando a chapa oposicionista de Getúlio Vargas e em seguida aderindo à revolução que o
leva ao poder em 1930.” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com
José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.579., p.31 )
Juarez Távora dá poderes a José Américo como Chefe da Revolução no Nordeste,
através de carta datada de 3/10/1930, um dia antes de deflagrar, na Paraíba o movimento de
1930. Da Paraíba, como foco da Revolução de 1930 no Nordeste projetaram-se, dois nomes,
o de José Américo como civil e o de Juarez Távora como militar. O seu filho General
Reynaldo Almeida, quando da entrevista dada a Aspásia Camargo faz a seguinte avaliação:
“A aproximação entre os dois dá-se na fase conspiratória, quando Juarez dirige
clandestinamente, da Paraíba, o movimento militar no Nordeste. [...] Na realidade, Juarez
era um instrumento do campo militar no desenvolvimento da revolução. E meu pai” José
Américo” representava o contato entre o movimento armado e o movimento político, uma
vez que João Pessoa era meio afenso à ilegalidade, a todo problema que significasse
revolução” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo
de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p.362)

Ministro da Viação e Obras Públicas

Cargo que exerce por dois períodos. Em 1930, nomeado pelo Presidente da República
Getúlio Vargas para Ministro da Viação e Obras Públicas, lugar que se manteve até encerrar-
se o ciclo do Governo Provisório em 1934. Deu grande relevo à ação dos poderes públicos no
combate aos efeitos devastadores da seca de 1932 completando a obra que Epitácio Pessoa
havia deixado inclusa.
Em 1953, a convite de Getúlio Vargas José Américo volta pela segunda vez a assumir
o cargo Ministro de Viação e Obras Públicas. Deixa por um período o cargo de Governador
do Estado da Paraíba:
“Na metade do período, governamental, foi chamado, outra vez, para ocupar o
Ministério da Viação. Relutou o quanto pôde, mas a seca, que conflagrava todo o Nordeste,
obrigou-o a ceder. Disse então: “Em vez de pedir, vou dar”. Ao saltar no Galeão, foi
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interpelado por jornalistas que estranhavam sua atitude, depois do que se passara em 1937:
“Por que veio?”. A resposta foi simples e direta: “Porque me chamaram. “Porque precisam
de mim” (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). O político. In: José Américo: o escritor e
homem público. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 217).
No mês de setembro de 1954, após o suicido de Getúlio Vargas retorna ao cargo de
Governador do Estado da Paraíba.

Embaixador junto ao Vaticano

Em 1934 deixa o Ministério, tendo sido nomeado Embaixador junto ao Vaticano,


cargo que não chegou a assumir, por renúncia.

Senador da República

Em 1935 foi eleito pela Paraíba Senador da República, renuncia três meses depois o
mandato como também a Chefia do Partido dominante em seu Estado. Desiludido da reforma
política que o Brasil esperava, José Américo solicita a Getúlio Vargas a sua nomeação para o
cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União.

Candidato a Presidente da República

Em 1937, sai do Tribunal de Contas da União e candidata-se à Presidente da


República. O nome de José Américo foi lançado inicialmente por Assis Chateaubriand, por
Juracy Magalhães e os antigos tenentes que disseram: “Nós podíamos reabilitar a Revolução
de 1930 se tivéssemos um elemento autêntico.” [...] Chateaubriand me procurou . Eu estava
em casa quando ele entrou e me disse: “Você é o candidato à Presidência da
República.”[...] os tenentes acham que a revolução de 1930 não deu o que devia dar.
(CAMARGO, Aspásia et. O nordeste e politica: diálogo com José Américo de Almeida. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 589p. p 255.).
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José Américo apresenta-se à convenção nacional de 25 de maio de 1937 e recebe o


apoio de 17 Estados contra três que ficaram com o seu competidor Armando Sales de
Oliveira. Na campanha José Américo pronuncia discursos de grande repercussão nacional, a
exemplo do “Discurso na Esplanada do Castelo” onde pronunciou que era candidato do povo
brasileiro: “O que sou, consequentemente, é candidato do povo brasileiro, dos ricos e dos
pobres, sobretudo dos últimos, dos que não esperam ser ricos mas esperam ser mais
felizes.(ALMEIDA, José Américo. A palavra e o tempo. Discurso da Esplanada do Castelo.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p. 47) disse ainda a expressão que se tornou famosa: Eu
sei onde está o dinheiro. Em vez de um arranha-céu serão duzentas casas”. Essa expressão
repercutiu no cenário nacional e foi motivo da Charge de vários Caricaturistas do Brasil.
Sem a conivência de José Américo, em 10 de novembro de 1937 Getúlio Vargas dá o
Golpe de Estado, não permitindo a eleição e permanece no Poder. Com o Golpe de Estado e
estabelecido o Estado Novo, José Américo retorna à judicatura fiscal na Paraíba.
José Américo relata em entrevista a Aspásia o que ocorreu com a retirada da sua
candidatura à Presidência: “Para a família, o saldo da campanha frustrada foi doloroso,
traumático. Com o golpe, a casa, que até então estava sempre cheia, esvaziou-se do dia para
a noite, demonstrando a prioridade dos interesses sobre as lealdades políticas.”:
(CAMARGO, Aspásia et. al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.p.370)

Candidato para Presidente da República

Caderno Especial do Jornal O NORTE, de João


Pessoa, com uma retrospectiva da vida de José
Américo, quando de seu falecimento em 1980.
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Entrevista de 1945

Em 1945 José Américo concede a famosa entrevista ao jornalista Carlos Lacerda e é


publicada no Jornal Correio da Manhã. A entrevista determina a queda da censura à imprensa
que vigorava no Estado Novo de Vargas.

Candidato a Vice-Presidente da República

Em 1946 Candidata-se a Vice-Presidente da República pelo voto indireto. Perde para o


Senador Nereu Ramos, por uma pequena margem de votos.

Senador pela Paraíba e Presidente da União Democrática Nacional

José Américo, em janeiro de 1947, foi eleito Senador pela Paraíba. Nesse mesmo mês
foi escolhido para a presidência nacional da União Democrática Nacional - UDN, e desligou-
se do partido em maio de 1948 por não concordar com a aproximação do Partido com o
governo do General Dutra.

Governador da Paraíba

Em 1950 é eleito Governador do Estado da Paraíba, pelo Partido Social Democrático –


PSD contra o candidato Argemiro de Figueiredo, com uma vitória esmagadora de votos,
tendo uma diferença de 37.000 votos, maior vitória eleitoral do Estado à época. Toma posse
no Governo em 31 de janeiro de 1951 substituindo o Governador Oswaldo Trigueiro de
Albuquerque Mello.
O pleito de 1950 foi profundamente desagregador, o clima de guerra se propaga aos
poucos nos comícios. Os conflitos se tornam de proporções alarmantes em todo o Estado. Um
dos maiores confrontos ocorre em Campina Grande – Praça da Bandeira- domingo, dia 09 de
julho de 1950 -, onde a polícia atirou em várias pessoas que participavam do comício.
Diz Jose Américo:
“Fiz a campanha mais vivo e vigoroso do que nunca. Varava o sertão com o sol
batendo na cara, comendo poeira, como nos dias combativos de 1930. Havia conflitos.
Derramou-se sangue nas ruas. Jogaram lama na minha comitiva, antes que eu passasse, para
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saltar do carro e desafiar esses selvagens. Nomearam, demitiram, fizeram tudo isso e
perderam feio. Deu-me trabalho, mas venci, por uma grande margem de votos” (ALMEIDA,
José Américo de. A palavra e o tempo. (1937-1945-1950) Rio de Janeiro: José Olympio /
Fundação Casa de José Américo, 1986, 325 p., p. 297-298).

Campanha para Governador-Areia.PB Diploma de Governador e Jose´Américo no Palácio da Redenção como


Governador da Paraíba.
O seu período de Governador do Estado da Paraíba foi interrompido pela volta ao
Catete, a convite do Presidente Getúlio Vargas. José Américo atende ao chamado para voltar
ao Ministério da Viação e Obras Públicas, motivado pela severidade da seca que assola o
Nordeste.
Com o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de outubro de 1954, José Américo volta ao
Governo da Paraíba e termina sua gestão em triunfo, diante do povo que praticamente o
carrega nos braços até a sua residência na praia de Tambaú. Fica no cargo de Governador do
Estado da Paraíba até 31 de janeiro de 1956.

Senador Federal – 2ª Vez

Em 1958 José Américo candidata-se mais uma vez ao Senado Federal pela Paraíba.
Perde a eleição, por ter sido contra o governo Estadual e Federal e coincidindo com uma seca
em que todos os serviços de assistência foram mobilizados contra seu nome, com ameaça de
suspensão. Com a sua derrota para o Senado, afasta-se da política e da vida pública. O pleito
foi entre José Américo e Ruy Carneiro.

Solitário de Tambaú

José Américo recolhe-se na sua casa na praia de Tambaú, e passa a dedicar-se


inteiramente à família e à literatura. Quando do seu afastamento voluntário, ficou sendo
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chamado “O solitário de Tambaú”. Apesar da insistência do seu filho Reynaldo de Almeida


em levá-lo para residir no Rio de Janeiro, ele se recusa pelo apego que “ele tinha a terra, a
Paraíba”, independente dos homens.
Entrega-se ao trabalho literário, que era um dos seus maiores prazeres. Sempre lúcido,
patriótico, oportuno era procurado por políticos e amigos para dar os melhores conselhos nas
horas difíceis da política paraibana, fazendo renascer a esperança na alma dos brasileiros.

Alguns depoimentos

O escritor Ozias Nacre Gomes em entrevista a Aspásia Camargo faz o seguinte


depoimento: “José Américo recolheu-se a vida privada e era muito visitado. Era o oráculo. A
casa vivia sempre cheia de intelectuais e políticos. Ele era grandemente representativo da
Paraíba. [...] Era um Chefe político de tal influência, que a palavra dele nunca deixou de ser
ouvida.” (CAMARGO, Aspásia et. O nordeste e politica: diálogo com José Américo de
Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 589p. p 463).
O escritor Monteiro Lobato faz um depoimento reconhecendo o valor politico de José
Américo: “O Nordeste é uma vítima que só deixará de ser no dia em José Américo for o
Presidente da República. Fora de José Américo não há salvação para o Nordeste.
(PEREIRA. Joacil de Brito. José Américo de Almeida: a saga de uma vida. Brasília: Instituto
Nacional do Livro, Senado Federal, 1987. p. 162.
Juracy Magalhães em depoimento, assim se manifestou: “Sinto-me bem em afirmar ao
Brasil e à gloriosa Paraíba ser José Américo a figura ímpar entre quantas a Revolução
confiou a execução de seus altos objetivos patrióticos.” (PEREIRA. Joacil de Brito. José
Américo de Almeida: a saga de uma vida. Brasília: Instituto Nacional do Livro, Senado
Federal, 1987. p. 165.
José Américo, escritor de grande reconhecimento nacional publicou vários livros
entres eles: Reflexões de uma cabra, Coiteiros, Boqueirão (novelas) A Paraíba e seus
Problemas; A bagaceira; As Secas do Nordeste; O ciclo revolucionário do Ministério da
Viação; O ano do Nego; Sem me rir, sem chorar; Discursos do seu tempo; A palavra e o
Tempo; Ocasos de Sangue; Antes que me esqueça-memórias; Quarto Minguante; entre
outros.
Como preservação da sua memória foi instituída pela Lei nº 4.195, (D.O.E. de
11/12/1980) do Governo do Estado da Paraíba a Fundação Casa de José Américo de
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Almeida, na Casa de número 3.336, da Avenida Cabo Branco, João Pessoa-Paraíba, antiga
residência do escritor e politico José Américo de Almeida e onde viveu seus últimos anos de
vida. Faleceu em 10 de março de 1980 aos 93 anos de idade.

José Américo em frente a sua Casa, hoje transformada na Fundação Casa de José Américo.

Referências

ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1928.
______. Antes que me esqueça- Memórias.. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
______. O ano do nego. João Pessoa: A União, 1978.
______. Eu e Eles. João Pessoa: A União, 1974.
______. Discursos do seu tempo. 3 ed. João Pessoa: ITERPLAN [,s.d].
______. A palavra e o tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
______. Política. In: Sem me rir, sem chorar. (1) O Cruzeiro, Rio de Janeiro, ano XXV, 28
dez. 1957.
ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão. Catálogo da Correspondência de José Américo de
Almeida - Cartas. 1915 a 1952. v.1. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo. 1983.
______. José Américo visto pelos caricaturistas. João Pessoa, FCJA. 1989.
ARQUIVO José Américo de Almeida. João Pessoa: FCJA.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de, MEDEIROS, Neide Santos, ANDRADE, Ana Isabel
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CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida.
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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PEREIRA, Joacil de Brito. José Américo: a saga de uma vida. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, Senado Federal, 1987.
SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.). José Américo: o escritor e o homem público. João Pessoa:
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ISBN: 978-85-6641465-3
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ARIANO: A PARTE E O TODO

ARIANO SUASSUNA, O DECIFRADOR

William Costa

Na verdade, o que trago hoje, para o nosso debate, não é propriamente um estudo; uma
tese ou dissertação sobre a obra deste homem maravilhoso. Este paraibano admirável. Este
artista extraordinário e de múltiplos talentos, cujo nome, Ariano Vilar Suassuna, figura hoje
no panteão dos gênios brasileiros.
Intitulei este texto de Ariano Suassuna, O Decifrador, porque, para mim, tudo o que
ele criou tem como sentido ou objetivo final encontrar a chave que o ajudasse a elucidar o
mistério superior da vida, que seria a Morte. Ou: Pra que tudo começou/Quando tudo acaba,
como diz Chico Buarque, na música “Almanaque”.
Canta o poeta armorial, no soneto “O Sol de Deus”:

Mas eu enfrentarei o Sol divino,


o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque o laço do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Desde que o conheci, há dezesseis anos, procuro conhecer e entender Ariano. Daí o
contato permanente com sua prosa e poesia, seus ensaios e textos teatrais; os filmes, aulas e
entrevistas que protagoniza. E sinto que apenas vislumbro o abismo... É como estar à beira-
mar, imaginando a nau ancorada em porto distante.
Como todos sabem, Ariano nasceu na capital da Paraíba, mas viveu os primeiros anos
de sua vida no Sertão. A paisagem o encantava. E o ambiente familiar, repleto de afetos e
atenções, moldava, aos olhos do menino, o horizonte do mundo como um campo alvissareiro
para o galope alegre e colorido do sonho.
No entanto, muito cedo ainda, aos três anos de idade, Ariano se depara com a face
trágica e cruel da vida: seu pai e principal mentor, o ex-presidente João Suassuna, é
assassinado. O fato abre no peito do menino uma profunda e jamais cicatrizada ferida, cuja
dor seria apenas atenuada, mais tarde, pelo riso.
Ariano faz o inventário e, de certo modo, “apropria-se” do espólio paterno: uma
estante básica universal, de preciosa prateleira regional, que, a partir dos 12 anos de idade, vai
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ajudá-lo a construir a Catedral do Reino ensolarado onde cavalga, transfigurado, o Rei


Cavaleiro, e sob cujo teto de pedra habita o Imponderável.
Será este Sertão – quente, áspero, pedregoso - do qual será exilado e sobre cujo chão
erguerá a Catedral onde receberá unção e sagração, para elevar-se ao Reino da “Efígie
coroada”, onde galopa, para além do Tempo, o “Cavaleiro ensolarado” - que lhe forneceu os
mitos, os símbolos e os enigmas que deram feição única à sua literatura.
“O mundo como teatro e a vida como representação”. Sim, esta foi a base na qual
Ariano assentou sua “cosmovisão”. Mas, de quem seriam os dedos que manipulam os cordões
do mamulengo humano? Do Destino? Do Acaso? Quem ou o quê determina a imprevisível
hora que Fernando Pessoa nos assegura que há?
Ariano perscruta o mundo. Espia sob a lona do circo. Desvela o Romanceiro Popular
Nordestino. Ouve o baião de viola. O repente. Lê o cordel. Nada cria do nada. Sua poesia,
teatro e romance nascem do belo e absurdo chão real em que pisa, no qual floresce, também, a
longa tradição mediterrânea e ibérica. A commedia dell'arte...
Percebe que, para decifrar o mistério, seria necessário conhecer profundamente sua
terra e amar desinteressadamente seu povo. E assim o fez, transformando-se em um dos mais
importantes pensadores (e defensores!) da cultura brasileira, base indissolúvel de sua arte,
fruto do amálgama com a manifestação erudita.
Na busca incansável da chave do Grande Mistério, legou ao moderno teatro brasileiro
alguns de seus momentos mais expressivos, no trágico e no cômico, de que são exemplos,
respectivamente, os espetáculos Uma mulher vestida de sol, O desertor de Princesa, A pena e
a lei e Auto da Compadecida.
A suntuosa catedral erguida por Ariano intitula-se, salvo engano, A ilumiara –
Romance d’A pedra do reino - Introdução ao romance de Dom Pantero no palco dos
pecadores. Dela faz parte a série epistolar inédita O jumento sedutor, que esperamos ver
publicada em breve. De certo modo, ainda estamos para ler, efetivamente, Ariano Suassuna.
Tenho para mim que A ilumiara traz a chave do enigma, abrindo a porta que cada um
traz dentro de si, com suas características individuais, para a transcendência. Entendo que
Ariano imortalizou-se por mímese. Seu espírito habita na pedra, cujos átomos têm como
núcleo a mais cara memória de seu país.
Para encerrar, vou ler um trecho do Folheto XLIV (A Visagem da Moça Caetana) d’A
Pedra do Reino, que, para mim, diz tudo dessa ideia que aqui trouxe, de Ariano Suassuna
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como O Decifrador. O próprio autor definia esse trecho como o núcleo poético do romance e
uma espécie de súmula de sua literatura.
Neste folheto, a Moça Caetana, representação popular e sertaneja da Morte, aparece a
Quaderna, o protagonista-narrador d’A Pedra do Reino, e, com o dedo indicador, escreve na
parede, com palavras de fogo, o poema em prosa que vou ler, para vocês, agora. É belíssimo,
exatamente por refletir a forte simbologia da poesia suassuniana.

A sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o tabuleiro pedregoso. Só


lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o Fogo na taça de pedra dos
Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo vermelho da
Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pássaro com sua
flecha aurinegra e a Tocha incandescente das macambiras cor de sangue.
Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a
luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo. O que foi marcado
de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para
sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a Coroa
pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com as mãos
ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu
Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você
caminha no Inconcebível. Faça isso, sob pena de morte! Mas sabendo,
desde já, que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Prisão já foi
decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia.
Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do Machado. O
Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo
de sono ensangüentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão
reedificar seus Dias, para sempre destroçados.

Muito obrigado pela atenção!


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AS ODES DE ARIANO SUASSUNA

Hildeberto Barbosa Filho

“{...} Somos seres terríveis, majestosos,


mas ainda incompletos,
soltos no seio áspero da terra
em que abrimos primeiro os parcos olhos”,

enuncia o eu lírico na primeira das “Odes”, de Ariano Suassuna, dirigida ao amigo José
Laurênio de Melo, e publicada pelo Gráfico Amador, em 1955.
O tom sentencioso destes versos, que vai perdurar nas outras odes, num total de sete,
parece marcar um momento singular na poética do autor de “A pedra do reino”. Cadenciando
a “expressão especial da apóstrofe lírica”, para me valer das palavras de Wolfgang Kayser,
em sua “Análise e interpretação da obra literária”, estabelece, assim, uma espécie de diálogo
com os seus destinatários (José Laurênio de Melo, Zélia, a esposa, Francisco Brennand, José
Paulo Cavalcanti, Aloísio Magalhães, Antônio Montenegro e Gastão de Holanda), ao mesmo
tempo em que convoca o lirismo filosófico para refletir sobre a vida, o amor, a arte e a morte.
A ideia da incompletude do ser e o sentimento da finitude associados à ânsia do
absoluto desvelam a consciência trágica do eu poético, numa dicção em que temática e
discurso se correspondem, objetividade e subjetividade se conformam e razão e emoção se
equilibram. Tudo, dentro dos princípios retóricos que a ode, a ode moderna e livre, consagra
no itinerário interno e específico de sua tradição estética.
Essa contradição, ou melhor, esse paradoxo entre vida e morte como que sustenta a
melodia grave da “Ode” a Laurênio, sem descurar o eu lírico, em instância alguma, da
contenção do entusiasmo emotivo que, vista a história desta forma poética, tende a cristalizar-
se como substância retórica essencial. À maneira eliotiana, diria que Ariano Suassuna, aqui e
em tantas outras incursões poéticas, contém a emoção, doma a personalidade, e faz de sua
composição lírica um complexo aforisma no qual as ideias, as imagens e a sua intrínseca
musicalidade atingem o ponto máximo da estesia, abrindo também o leque da cognição. Ou,
como diria Horácio, uma das suas referências na enunciação ódica: deleita e ensina.
Se “procuramos, sem falha de esperança,/aquilo que é sem nome”, continua o eu
poético, constatando, mais à frente e ao compasso do Eclesiastes, a possibilidade de se chegar
o “momento do desvelo,/que vai se desvendar todo o segredo”, onde “tudo há de aclarar”,
pois “é tempo de saber e de saciar-se”, é porque
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“esse instante grave e definido


tem tanta força e ardência
que no mesmo momento em que se gera
- forte e temível, medo e descoberta –
o dom amadurece
e o tecido da morte que formava
como que a própria trama da existência,
nesse clarão exato
cumpre o fruto em que tudo se consuma”.

Somos seres para a morte, afirma Martin Heidegger. Ariano Suassuna, aqui e em
outros passos líricos, aceita e confirma este postulado e o retoma sempre, no corpo de sua
poesia, como forma de expressão do seu sentimento trágico diante da vida. Não obstante, sem
o travo amargo do pessimismo puro, conforme sugerem os versos finais desta ode, senão
vejamos:

“{...} E se esse testamento


parece, antes, legado de infortúnio,
saibamos nos conter, que a própria vida
é, de si, sem apelo,
turva na sua luz pura e selvagem,
áspera e bela como a voz dos homens
ou o hálito das feras
e é mesmo nessa falha que consiste
seu cerne de promessa e conclusão”.

A segunda ode, escrita para Zélia, é toda uma reflexão poética acerca do amor.
Reflexão cheia de dúvidas, de indagações e de hipóteses, através de uma técnica de
composição em que à lógica, quase silogística dos versos, soma-se o impacto estético das
imagens. Na concepção do eu lírico, se o amor não escapa à “corrução” e caminha junto “ao
som da morte”, ainda assim vale a pena. É o tema latino do carpe diem que se imiscui na
ordem do poema, pois, como enuncia a voz poética,

“qualquer previsão falha no mundo:


não sabemos de nada para a frente
e o que passou se apaga
sem querer ou por medo ou por defesa.
Durai, então, semente e juventude!
E cresce tu, ó frágil
sentimento do fogo e do sagrado!”.

As três odes que se seguem, destinadas a Brennand, a José Paulo Cavalcanti e a


Aloísio Magalhães, trazem à tona o tema da arte, o tenso confronto entre a criação e a
realidade. À insatisfação dos três face aos limites da linguagem perante o inapreensível
movimento do mundo e o inexprimível fluxo existencial, Ariano responde, sem escamotear a
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dimensão trágica deste embate, porém fiel, nietzscheanamente fiel, aos imperativos
inamovíveis da vida.

“Nossa vida, Francisco, é muito estranha:


tudo nela é restrito e se desgasta
{...}
o que se tem é pouco
ante o que se deseja e se pressente
{...}
louvemos fielmente a dura vida
nas formas e nas cores.
Quanto ao mais, não pertence a nossa alçada:
olhemos sem rancor e emudeçamos”.

Este tom de sugestão, mais que de conselho; esta fala que se assume – tudo leva a crer
– inteiramente hipotética, em nenhum momento abdica da condição trágica, embora consiga
vislumbrar o prêmio de algum sentido, a brisa de alguma transcendência, principalmente por
meio da expressão artística, esta virtude de “palpar os destroços da beleza”, como diz o poeta
na ode a Laurênio.
Nas duas últimas, dirigidas a Antônio Montenegro e Gastão de Holanda, o poeta
retoma a incursão filosófica mais aberta, tratando das perdas e insistindo no motivo da morte
enquanto elemento que integra o tecido da vida. Repito: o sentimento trágico que penetra o
olhar do poeta, sobretudo emoldurado em algumas imagens realistas, como que coaguladas no
fogo e no sangue, não elide o sopro intenso e constante de uma visão redentora, somente
possível num poeta cuja voz não se limita à estreita geografia da imanência materialista.
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O CINEMA E A ESTÉTICA ARMORIAL

Claudio Marzo Cavalcanti de Brito


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba

Introdução

A relação do escritor Ariano Suassuna com o Cinema foi estabelecida muito cedo, por
intermédio de seu pai, João Suassuna, que, quando era Presidente (hoje, Governador) da
Paraíba (1924-1928), saiu em uma expedição pelo Sertão paraibano, para conhecer mais a
fundo os problemas da região, e levou consigo seu amigo Walfredo Rodriguez, que realizaria,
durante essa excursão, a primeira produção cinematográfica em terras paraibanas, o
documentário Sob o céu nordestino (1928).
Ao publicar, nos anos 1970, sua teoria estética dedicada à Arte Armorial, Suassuna
esboça um Cinema Armorial prenhe de narrativas e situações cênicas oriundas do teatro, da
dança e dos folguedos populares, agregadas à música, às vestimentas e à arquitetura
sertanejas, ou seja, um Cinema que poderia propiciar uma fruição estética nos moldes da que
é usufruída a partir do contato com as narrativas épicas e trágicas do Romanceiro Popular do
Nordeste.
Essa mescla de diferentes expressões artísticas em uma única obra é fruto de uma
concepção agregadora das artes, presente nas reflexões suassunianas acerca da cultura
brasileira. Suassuna gostava de dizer que se considerava um homem barroco, uma vez que era
“receptivo a todas dissonâncias” e gostava de unir, harmoniosamente, “termos antinômicos”,
evitando, assim, a razão exacerbada e realista do pensamento clássico e a paixão desmesurada
e ilusória do sentimentalismo romântico. Buscava, então, o equilíbrio estético, o caminho do
meio, a integração dos saberes. “Continuarei a acreditar, sempre, que a idéia de ‘harmonia’,
em arte, tem que ser aprofundada até a união dos contrários, grande lição da corrente
tradicional brasileira, desde o barroco colonial e mestiço até os dias atuais” (SUASSUNA,
1964, p. 11). Por isso, segundo SUASSUNA (2004, p. 25), a Estética pode ser vista como
uma Filosofia da Beleza (concepção clássica), mas sem estar a Beleza associada unicamente
ao Belo – fundamentado na harmonia e na fruição prazerosa –, pois poderia contemplar
também o “amargor e a aspereza”.
Partindo dessa concepção integradora da arte, Suassuna, a partir da década de 1950,
principalmente após entrar em contato com as obras cinematográficas Os sete samurais
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(1954) e A fortaleza escondida (1958), do cineasta japonês Akira Kurosawa, começa a


formular uma concepção de estética armorial direcionada à narrativa fílmica. O esboço dessa
estética é discutido em duas oportunidades com Glauber Rocha: na primeira, em uma visita
informal realizada por Glauber à casa do escritor, no Recife, em 1958; na segunda, em
Salvador, em 1961, quando Suassuna é entrevistado pelo cineasta baiano para o jornal Diário
de Notícias.

Falei, sobretudo, na minha convicção de que um cinema épico nordestino, de


“cangaço”, tinha mais possibilidades artísticas do que o americano de
“faroeste”. Minhas idéias vinham, naturalmente, de minhas reflexões sobre o
teatro nordestino. Eu achava que os espetáculos populares do Nordeste – o
Bumba-meu-boi, o Auto dos Guerreiros, a Nau Catarineta etc. – poderiam
fornecer, ao teatro e ao cinema nordestinos, as roupagens imaginosas, a
música, as danças, as lutas de espada, as máscaras, as histórias, os heróis e os
mitos que lhe dariam espírito realmente brasileiro, como acontecera com o
Teatro Nacional e Popular Japonês, em relação ao cinema épico de
“samurai”. (SUASSUNA, 2008 [1972], p. 190-191).

Suassuna, um dramaturgo, via um grande parentesco entre o Teatro e o Cinema.


Considerava-os duas artes baseadas na síntese do espetáculo visual criado coletivamente,
(logo, de natureza circense), em que as ações devem ser executadas por personagens em
cenários específicos. No entanto, enfatizava que, embora parecidos, no aspecto da produção
cênica, os dois possuem “características próprias e diferenças bastante acentuadas”. No
Teatro, o aspecto visual é menos importante que a ação narrada por meio das falas e atos dos
personagens, já o Cinema é inerentemente cênico, plástico. Nesse aspecto, o Teatro depende
mais do texto, por isso tem maior valor literário (não à toa muitos textos teatrais, consagrados
nos palcos, são publicados, em forma de livro, enquanto os roteiros cinematográficos, salvo
raras exceções, não o são). Portanto, a diferença fundamental entre Cinema e Teatro seria a
seguinte: “o primeiro é mais visual e plástico, o segundo, mais verbal e literário
(SUASSUNA, 2004, p. 347).

A teoria do Cinema Armorial

O Cinema, pelo fato de ser uma arte pouco literária, no que se refere à escrita dos
roteiros, pouco despertou interesse de Suassuna. Chegou a escrever o roteiro de A
Compadecida (1969) e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), em parceria com os
respectivos diretores, George Jonas e Roberto Farias, mas, provavelmente, muito mais para
evitar uma adaptação distorcida de sua obra mais conhecida do que, propriamente, por
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motivações criativas e estéticas. No entanto, esse desinteresse pela escrita cinematográfica


não o impediu de exercer uma atividade crítica sobre o Cinema e de refletir sobre uma
narrativa cinematográfica que expressasse o Nordeste e, consequentemente, o Brasil. Nesse
aspecto, consciente da capacidade massificadora do Cinema, alertava para a necessidade de
diferenciar a obra de arte dos produtos da cultura de massa:

Se uma obra é feita para o Cinema, em termos de criação da Beleza, através


de uma ação narrada principalmente através da imagem, temos o Cinema
como Arte, colocada em pé de igualdade com todas as outras. Se, porém, o
aspecto predominante é o da divulgação ou da informação, então temos o
Cinema como Arte menor ou mesmo como mero meio de comunicação de
massas, caso em que perde toda, ou quase toda, sua importância estética.
(SUASSUNA, 2004, p. 349).

Então, agora devemos considerar como, sob a influência da Arte Armorial,


preconizada por Suassuna desde o final da década de 1940, e oficializada em 8 de outubro de
1970, por meio do lançamento do Movimento Armorial, o escritor começou a esboçar o que
poderia ser uma estética cinematográfica armorial.
A concepção artística que fundou o Movimento Armorial, vinculada aos princípios
barrocos da integração das artes e seus contrastes, está ética e esteticamente comprometida
com uma reflexão sobre a vida, em sua alegria e tristeza, dos despossuídos e explorados do
Brasil e do mundo. Por isso, essa estética armorial sente a necessidade de estabelecer um
diálogo aberto, transparente, genuíno, entre a produção artística erudita do Brasil oficial (das
elites privilegiadas) e produção artística espontânea do Brasil real (do povo), ao conceber uma
arte erudita inspirada nas raízes da arte popular. Na verdade, o Armorial propõe uma reflexão
sobre o preconceito e a discriminação contra a arte popular, que, vale salientar, sempre se
sentiu à vontade para expressar as obras consideradas eruditas (os folhetos, por exemplo,
acolhem tudo: filmes, obras literárias clássicas, fábulas, peças teatrais etc.). Assim, inspirado
no universo criativo e imaginário popular, Suassuna estabeleceu os princípios gerais da
criação armorial:

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do
Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano
que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas,
assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com
esse mesmo Romanceiro associados. (SUASSUNA, 1977, p. 39)

Como a principal expressão artística fundadora da Arte Armorial são os folhetos, as


reflexões de Suassuna sobre a estética armorial estão centradas no arcabouço artístico oriundo
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dessa literatura: a música seria inspirada nos instrumentos que acompanham os cantadores nas
feiras populares (viola, rabeca, pífano etc.), as artes plásticas (pintura, cerâmica, escultura,
gravura e tapeçaria) se inspirariam nas xilogravuras, nas paisagens e nos “bichos estranhos”
(dragões, pavões, onças, cachorros loucos, anjos, demônios etc.) relacionados ao Romanceiro.
O Cinema Armorial, para Suassuna, deveria envolver todo universo épico, trágico e cômico
presente nas narrativas populares tradicionais, a maioria registrada em folhetos, com ênfase
maior às ações épicas, utilizando um tratamento visual que, da mesma forma que as artes
plásticas, teria como referência principal o “espírito mágico e poético” do Romanceiro
popular. Mas, considerando a natureza multiexpressiva do Cinema, a sua estrutura cênica
também deveria ser baseada nos folguedos, nas danças ou espetáculos populares do Nordeste,
com suas roupagens e bichos fabulosos (a Onça, o Jumento, o Jaraguá etc.).
Para Suassuna, da mesma forma que os japoneses recriaram o gênero western, por
meio dos filmes de samurai, agregando às suas narrativas a plasticidade de suas danças e
cantos populares, o cinema épico nordestino, de “cangaço”, poderia conter elementos
narrativos relacionados às estórias tradicionais populares: ações épicas; vestimentas
encouradas e fabulosas – numa alusão aos Vaqueiros e folguedos, como o Auto dos
Guerreiros e a Nau Catarineta –; músicas inspiradas na poética dos cantadores sertanejos, nos
cantos indígenas, na tradição ibérica; danças carnavalescas, míticas e místicas. Outro aspecto
a destacar é que o Cinema é uma arte de exploração espacial. Por isso, os cenários, a
princípio, dentro da concepção armorial, deveriam conter uma os elementos da arquitetura
armorial, que é “imaginosa, meio demente, colorida, violenta, irregular, ardente e forte em
certos casos, e, noutros casos, tranqüila e acolhedora” (SUASSUNA, 1977, p. 50).
Vinculado à formação de uma identidade genuinamente nacional, desde a publicação
de “Os Sertões” (1902), de Euclydes da Cunha, o Sertão e sua “civilização do couro”
passaram a ser protagonistas da literatura regionalista brasileira na década de 1930 e a
influenciar toda uma geração de cineastas preocupados em formular uma estética
cinematográfica que retratasse e criticasse a realidade brasileira dos despossuídos e
marginalizados do campo e da cidade (DEBS, 2007, p. 107-108). No entanto, mais do que um
ambiente de reflexão sobre a realidade social, para Suassuna, o real motivo da atração dos
cineastas brasileiros pelo Sertão deve-se principalmente à grandeza mítica e mística da região.

Desde que tentaram, no Nordeste, as primeiras experiências no campo do


Cinema, que o Sertão vem exercendo enorme fascínio sobre os cineastas
brasileiros. É fácil imaginar a causa: a beleza áspera da terra, a coragem dos
homens e mulheres e a criação anterior de tipos, mitos e heróis, pelo
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Romanceiro popular, propiciam oportunidade à épica – e o Cinema é uma


arte épica por natureza. (SUASSUNA, 2008 [1972], p. 349)

O fato de Suassuna incentivar a utilização do espírito mágico dos folhetos nas


composições artísticas armoriais não o impedia de admirar e exaltar obras cinematográficas
de narrativa documental e realista, como Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), Memória do
Cangaço (Paulo Gil Soares, 1964) e O País de São Saruê (Vladimir Carvalho, 1970). Esse
último, inclusive, teria sido o filme que mais próximo havia chegado, naquele momento
inicial em que a Arte Armorial estava sendo teorizada, de uma estética destinada ao Cinema
Armorial.

O País de São Saruê é das coisas mais sérias que já vi em cinema, o que
digo porque esse filme possui, exatamente, de fato ou em potencial, todas
aquelas características com que eu sonhava para o cinema nordestino,
quando conversei com Glauber Rocha em 1958 e 1961. (SUASSUNA, 2008
[1972], p. 191)

Suassuna (2008 [1972], p. 191-195) então relaciona as características observadas em


O País de São Saruê: “o despojamento, a pobreza feroz dos sertanejos, a aspereza pedregosa,
seca e espinhosa da terra, [...] em toda a sua violência, grandeza e ameaça”; a arquitetura
sertaneja do século XVIII, representativa da “civilização do couro”; a “música verdadeira do
povo sertanejo”; as “roupagens, coroas e máscaras do teatro nordestino”; e, por fim, a “épica
cotidiana do povo, malograda pelas dificuldades e injustiças, e a épica dos senhores [feudais
sertanejos], malograda pelo tempo”.
Se as características mágicas do Cinema Armorial, num primeiro momento, opõem-se
ao neonaturalismo do Cinema Novo dos anos 1950, não podemos dizer o mesmo do Sertão
representado pelo cinema de Glauber Rocha. Mesmo sendo um cinemanovista, podemos
encontrar em suas obras, principalmente Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), uma estética muito afinada com os
pressupostos teóricos defendidos por Suassuna nas duas conversas que tiveram sobre o
cinema nordestino: a forte influência da narrativa mágica dos folhetos, os folguedos
populares, a presença do cangaço, do catolicismo sertanejo, a música espontânea de raízes
sertanejas etc. Se considerarmos que não existe, a princípio, um cinema puramente armorial,
mas um Cinema influenciado pela concepção estética relacionada à Arte Armorial,
poderíamos ser tentados a incluir as obras de Glauber Rocha dentro de uma concepção
estética armorial. Não estaríamos cometendo nenhum equívoco, mesmo sabendo que o
cineasta baiano está histórica e conceitualmente vinculado ao Cinema Novo. No entanto,
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devemos alertar para o fato de que, embora haja afinidades estéticas entre o filmes de Glauber
Rocha e o Cinema Armorial teorizado por Suassuna, este nunca concordou com o uso da arte
para propósitos políticos, prática comum nas obras de Glauber, principalmente Terra em
transe (1967). Sempre se colocou contra a arte engajada, militante.

Eu tenho um medo enorme de arte militante. Não gosto. Acho legítimo que
as idéias políticas, religiosas, filosóficas etc. e um autor apareçam na obra,
mas não como militância. Eu gosto muito de um romance que tenha
problemas filosóficos, políticos e religiosos implícitos. Mas gosto menos de
um romance filosófico, político ou religioso. Quando o escritor carrega
muito na idéia, quem paga é a arte. (SUASSUNA apud CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 38).

A realização de um Cinema Armorial

Já dissemos que Suassuna, embora aparentemente não tivesse muito interesse em


escrever para o Cinema, por ser uma escrita pouco literária, sempre se preocupou em refletir e
escrever sobre uma possível narrativa cinematográfica, de natureza inerentemente épica e
cômica, voltada principalmente para o Nordeste do Brasil, pois utilizaria elementos culturais
mais fortemente enraizados nessa região, que ele conhecia tão bem. Por isso, nas duas
adaptações cinematográficas do Auto da Compadecida das quais participou – A Compadecida
(1969) e Os Trapalhões no Alto da Compadecida (1987) – fez questão de incluir, no roteiro,
os elementos que caracterizariam uma obra armorial: o caráter circense da narrativa; a
integração das artes (por exemplo, os cenários e os figurinos foram do artista plástico
Francisco Brennand, no primeiro, e a música, no segundo, é de Antonio José Madureira); a
presença de artistas populares e a recriação de espetáculos como o Bumba-meu-boi
(SANTOS, 2009, p. 43).
Embora as duas primeiras adaptações do Auto da Compadecida tenham tido uma boa
recepção do público e da crítica, Suassuna acreditava que o resultado final não ficara
completamente fiel à concepção armorial que ele defendia. Se, em relação a Os Trapalhões no
Auto da Compadecida, sentia reservas em relação à interpretação de João Grilo e Chicó ficar
a cargo de uma dupla (Renato Aragão e Dedé Santana, respectivamente) com identidade
televisiva pré-definida e sem vínculos estreitos com os espetáculos populares nordestinos
(embora Renato Aragão fosse cearense, em geral seu personagem Didi Mocó atuava regido
por uma comicidade urbana), em A Compadecida sua decepção foi mais forte.

O diretor [George Jonas] era húngaro e tinha uma formação no cinema


expressionista alemão. [...] Partiu de uma concepção minha, mas aplicou
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errado. Até ali o Auto da Compadecida tivera encenações européias


convencionais de um teatro brasileiro, e eu queria que elas partissem das
roupas do espetáculo popular do Nordeste, do Bumba-meu-boi. João Grilo
deve partir do Mateus; Chicó, de Bastião. Em vez disso, ele fez uma espécie
de balé. As camisas dos dois personagens têm um outro problema. [...] O
diretor botou camisas novas, parecia uma coisa luxuosa. Eu não gosto de
realismo, meu teatro não é realista, mas tem que partir do real. E isso Guel
Arraes fez muito em, recriando a estética do teatro popular. (SUASSUNA
apud NOSSA HISTÓRIA, 2004).

Na terceira adaptação cinematográfica do maior sucesso de público de Suassuna,


intitulada O Auto da Compadecida (1999), de Guel Arraes, o escritor não participou da escrita
do roteiro. Curiosamente, entre as três adaptações cinematográficas, foi a que, aparentemente,
mais procurou respeitar suas convicções estéticas, embora tenha alterado substancialmente a
personagem da Compadecida, ao trocar a personagem original (jovem e bela) por uma Nossa
Senhora bem mais velha, na perspectiva de passar ao espectador a impressão de que a
personagem é mais experiente, madura e sábia, características próprias de quem tem de tomar
decisões importantes, como é o caso do episódio do julgamento de João Grilo e companhia.
A necessidade de retratar ou de estar muito próximo à realidade sempre foi uma
característica do Cinema, desde o seu surgimento, no final do século XIX. Por ser a arte da
fotografia em movimento, o Cinema vinculou-se a um tipo de arte realista que procura ser
muito fiel à realidade. O próprio contexto positivista em que foi criado, com as idéias
científicas e racionalistas influenciando toda produção cultural vigente da época,
principalmente a literatura, facilitou a eclosão de uma arte realista em detrimento de uma arte
mágica, fantástica, ilusória, em que a fábula, a encantação e o mistério permeavam as
narrativas. Para Suassuna, “a ilusão e a encantação” são fundamentais para a arte cênica. A
arte extremamente realista é muito “cerebral, fria, crítica e ideológica”. Não me interessam
nem o Drama psicológico e burguês, nem o Drama politizado [...]. Sempre preferi a Tragédia
e a Comédia, formas mais preferidas pelo Povo, mais próximas do espírito do nosso
Romanceiro. (SUASSUNA, 1977, p. 48).
Se o caráter realista dos documentários de Vladimir Carvalho serviu de referência para
o desenvolvimento de uma concepção imagética para o Cinema Armorial, no campo ficcional,
somente com obras televisivas Uma mulher vestida de sol (1994), Farsa da boa preguiça
(1995) e A Pedra do Reino (2007), de Luiz Fernando Carvalho, inspiradas em obras de
Suassuna, é que uma proposta mais próxima da concepção estética cinematográfica defendida
pelo escritor assume um formato mais concreto (inclusive, na adaptação da Farsa da boa
preguiça, Suassuna trabalha na escrita do roteiro, com Braulio Tavares, que seria também um
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dos responsáveis pelo roteiro de A Pedra do Reino). Luiz Fernando Carvalho, cineasta diretor
de TV de forte influência literária, desenvolve uma criação imagética permeada de elementos
que fazem alusão às estórias fabulosas e mágicas presentes na memória e no imaginário
popular, integrando todo universo da arte popular (músicas, danças, figurino, cenários etc.),
uma marca barroca da arte armorial. No entanto, Luiz Fernando Carvalho não é um artista
vinculado diretamente à estética armorial. Novamente, como vem ocorrendo desde o início
dos anos 1960, quando o embrião do Cinema Armorial começou a se desenvolver, o que
vemos é uma “apropriação” de uma estética, apregoada por Suassuna, por artistas que
necessariamente não criam vínculos permanentes com a Arte Armorial, mas se sentem à
vontade para usufruir de seus preceitos para, pontualmente, realizarem alguma obra no campo
do audiovisual. O longa-metragem Brincante (Walter Carvalho, 2014), sobre o versátil artista
armorial Antonio Nóbrega, é um claro exemplo de apropriação pontual da estética armorial
para a concepção de uma obra cinematográfica vinculada, em função da formação do artista
intérprete do filme, à Arte Armorial.

Conclusão

A concepção de um cinema armorial fez parte das reflexões de Ariano Suassuna,


mentor intelectual da arte armorial e seus preceitos teóricos, desde a década de 1950,
principalmente a partir do contato do escritor com os filmes de samurai do cineasta japonês
Akira Kurosawa. Suassuna acreditava que o cinema armorial deveria ter características épicas
e cômicas, inspirando-se nas narrativas mágicas do Romanceiro Popular do Nordeste,
presente nos folhetos, e nos espetáculos de rua festivos e carnavalescos, como o Bumba-meu-
boi, o Auto dos Guerreiros e a Nau Catarineta. Se, no campo documental, principalmente com
O País de São Saruê (1970), de Vladimir Carvalho, o cinema armorial já apresentava um
universo imagético próximo da concepção teórica formulada por Suassuna, no campo
ficcional, apesar do relativo sucesso obtido com as três adaptações cinematográficas do Auto
da Compadecida, Suassuna somente começou a enxergar um avanço a partir das adaptações
televisivas de obras suas pelo cineasta e diretor de TV Luiz Fernando Carvalho. As obras
Uma mulher vestida de sol (1994), A farsa da boa preguiça (1995) e A Pedra do Reino (2007)
adquiriram um formato próximo à concepção estética sonhada por Suassuna, com a
valorização, principalmente, da narrativa mágica, circense e do princípio barroco de
integração das artes. No entanto, apesar de alguns resultados bem-sucedidos, não podemos
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afirmar que exista um Cinema Armorial permanentemente atuante, principalmente no campo


ficcional. O que vemos, esporadicamente, de maneira pontual, são produções de alguns
artistas do meio cinematográfico que, no processo de adaptação principalmente de obras
suassunianas, sentem a necessidade de utilizar o arcabouço teórico esboçado por Suassuna
para o Cinema Armorial.

Referências

DEBS, Sylvie. Cinema e literatura no Brasil: os mitos do sertão, emergência de uma


identidade nacional. Trad. Sylvia Nemer. Fortaleza: Interarte, 2007.
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira: Ariano Suassuna, n.
10. São Paulo, nov. 2000.
NOSSA HISTÓRIA. Ariano Suassuna: Eu sou é imperador! (Entrevista). São Paulo:
Editora Vera Cruz, dez. 2004.
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2009.
SUASSUNA, Ariano. Prefácio do autor. In: ______. Uma mulher vestida de sol. Recife:
Imprensa Universitária, 1964. p. 11-17.
______. O movimento armorial. Recife, CONDEPE, 1977. Separata da Revista
Pernambucana de Desenvolvimento, Recife: 39-64, jan./jun. 1977.
______. Iniciação à estética. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
______.Cinema e sertão. In: ______. Almanaque armorial. Rio de Janeiro: José Olympio,
2008.
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ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA (LP) NA EDUCAÇÃO BÁSICA: O DESAFIO


DE FORMAR ALUNO LEITOR E PRODUTOR DE TEXTO

Josete Marinho de Lucena


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Notas introdutórias

O presente trabalho é fruto da experiência vivenciada por alunos e professores nas


disciplinas de Estágios Supervisionados VI e VII no curso de Licenciatura em Letras
Português do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB).
A pesquisa tem como objetivo analisar o entrecruzamento de Língua e Literatura
durante a realização dos Estágios supracitados nas aulas de Língua Portuguesa (LP) do Ensino
Médio. Apesar de, no DLCV, as disciplinas de Estágio Supervisionado VI voltar-se para a
docência em língua e de Estágio Supervisionado VII voltar-se para o ensino de Literatura,
ambas no Ensino Médio, e serem ministradas por diferentes professores, a prática docente do
estagiário nas escolas aconteceu de forma integrada, por meio de minicursos que
contemplavam Língua e Literatura concomitantemente, criando no futuro professor a visão de
que Língua e Literatura não são componentes curriculares de áreas distintas, mas que
complementam-se e ajudam-se na compreensão de Língua como interação e que têm como
objeto o texto, podendo este ser visto tanto na perspectiva literária, quanto na linguística.
O trabalho tem como base teórica os estudos Geraldi (2002), Antunes (2003),
Segabinazi (2011), Cosson (2012). O estudo respalda-se empiricamente no levantamento nos
Portfolios1, sobretudo nos projetos de minicursos elaborados pelos estagiários e nos relatórios
finais das disciplinas, quando os estagiários posicionam-se quanto à experiência de interação
de Língua e Literatura.
A partir das pesquisas bibliográficas e documentais, tivemos como resultado parcial a
necessária e urgente desconstrução do mito de que Literatura e Língua precisam ser encaradas
como componentes curriculares separados e distintos no contexto da aula de Língua
Portuguesa.
1
O conjunto de atividades realizadas durante o semestre 2012.2 e 2013.1 nos Estágios VI e VII foram
organizados e entregues no final do semestre.
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O trabalho encontra-se organizado da seguinte forma: inicialmente contextualizamos a


realidade do ensino de língua portuguesa no ensino médio, com Literatura e Língua tratadas
como disciplinas a parte e a experiência das licenciatura em relação ao ensino, sobretudo, por
meio de como acontecia o estágio e como era e é tratado esse componente curricular.
A segunda parte do trabalho é dedicada à apresentação e análises dos projetos, em
diálogo com pontos de vistas de estudiosos sobre estágio, ensino de Língua e Literatura.
A terceira parte analisa uma atividade específica em que está contemplado o objetivo
central deste trabalho que é observar possibilidade da integração da Língua e Literatura
durante as aulas de LP.
Ressaltamos a importância, mesmo que de forma subliminar, de entender a aula de
Língua Portuguesa como aula de leitura e escrita, advém de tal pensamento a concretização da
língua por meio do texto e o necessário diálogo entre aspectos linguísticos e literários do
texto.

Contextualizando a conversa...

O curso de Licenciatura em Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba


(UFPB), como tantos outros no Brasil, forma docentes para o ensino básico que devem
lecionar tanto Língua quanto Literatura nas aulas de Português no Ensino Médio.
A grade curricular do curso de Letras/Português, segundo Projeto Político Pedagógico
(PPP), conta com pelo menos 09 (nove) componentes curriculares relacionados à Língua e 09
(nove) à Literatura e mais 07 (sete) componentes curriculares de Estágio Supervisionado, suas
ementas trazem possibilidades de abordagens linguísticas e literárias.
Com esta configuração do Curso, o licenciando de Letras/Português tem oportunidade,
pelo menos em tese, de vivenciar experiências tanto de língua como de literatura durante sua
formação inicial, mesmo se na universidade, muitas vezes, é estimulado a realizar pesquisa
em uma dessas subdisciplinas e que, nem sempre, o enfoque da pesquisa é a docência.
Como acontece a todo curso de formação inicial, é necessário que a experiência
profissional aconteça sob a forma de estágio. Durante muito tempo, nas universidades
brasileiras, o estágio, nos cursos de licenciatura, ou seja, os cursos que formavam professores
para os Ensinos Fundamental e Médio, eram realizados pelo curso de Pedagogia.
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A Pedagogia dava conta não só de todas as disciplinas de prática pedagógica2 nas


Licenciaturas que formavam os professores que lecionariam nos anos inicias3, mas de todas
as disciplinas de prática pedagógica, ministrada nos cursos que formavam professores para os
Ensinos Fundamental II e Médio. Logo ficava a cargo dos professores das demais
licenciaturas ensinar as chamadas disciplinas teóricas, sem nenhuma relação com a formação
docente. A transposição do que se aprendia na teoria não se formalizava na prática de sala de
aula.
A partir da autonomia universitária concedida pela LDB/1996, os cursos de
licenciatura puderam optar por assumir os componentes curriculares de Estágio
Supervisionado. Fato que só aconteceu no curso de Letras UFPB, em 2008, após a aprovação
do PPP. Portanto, a concretização da formação docente para o ensino ser realizada por
professores da licenciatura em Língua Portuguesa (língua e/ou literatura) só iniciou no curso
de Letras/Português, no final da primeira década do ano 2000, quando começam os
componentes curriculares de Estágio Supervisionado a serem implementados nas turmas do
currículo novo4.
Nesse novo currículo, como mencionamos anteriormente, os componentes curriculares
de Estágio Supervisionado apresentam ementas de Língua e Literatura separadamente. Fato
que acontece, mais notoriamente, nos Estágios em que as ementas preveem a efetiva
“intervenção” em salas do ensino básico, como acontece aos Estágios Supervisionados IV, V,
VI e VII, descritas no quadro1.

Quadro 1: Descrição do Estágios Supervisionados com intervenção. Fonte: autora.


Nível em que acontece a
Estágio Supervisionado Abordagem voltada
intervenção
IV Língua Fundamental II
V Literatura Fundamental II
VI Língua Médio
VII Literatura Médio

2
Disciplinas que equivaliam ao Estágio Supervisionado antes da LDB 1996
3
Hoje considerado Ensino Fundamental I.
4
São consideradas turmas do novo currículo, as turmas com as quais foi realizado o processo de transição do
chamado currículo antigo, que contava, entre outras distinções, com o fato de ter apenas 200 horas de prática
pedagógica, sob a responsabilidade de professores da educação. Com a aprovação do PPP de Letras, a disciplina
de Prática passa a Componentes Curriculares, denominados agora Estágios Supervisionados, ministrados por
professores do curso de Letras.
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Pelo quadro acima, podemos constatar que, a depender da compreensão que os


professores de Estágio têm da relação Língua – Literatura no Ensino Básico, sobretudo, na
aula de Língua Portuguesa, a distância pode ser diminuída ou aumentada.
Nos casos específicos dos Estágios Supervisionados IV e V, temos uma situação
inusitada, pois a separação perde o sentido, visto que no Ensino Fundamental II, segundo a
visão das escolas, dos professores e dos próprios estagiários e até de alguns professores do
estágio, não se trabalha literatura, ora entendida como estudo de escolas literárias e da ordem
cronológica, como acontece no Ensino Médio. Nesse sentido, não conseguimos perceber
como afirma Cosson (2012, p. 21) que,

No ensino fundamental, a literatura tem um sentido tão extenso que engloba


qualquer texto que apresente parentesco com a poesia. O limite, na verdade,
não é dado por esse parentesco, mas sim pela temática e pela linguagem:
ambas devem ser compatíveis com os interesses da criança, do professor e da
escola, preferencialmente não na ordem inversa.

Ao falarmos em sentido “extenso”, poderíamos inicialmente acreditar que teríamos a


relação Língua – Literatura dentro da aula de Língua Portuguesa, porém, o que acontece nessa
realidade é a exclusão quase que total da Literatura, em detrimento da preponderância de se
ensinar a gramática normativa.
Desta forma, constatamos que mesmo mediante constantes apelos em se praticar
interdisciplinaridade, tem sido cada vez mais crescente o isolamento de partes de uma
disciplina em subdisciplina. No caso especial da disciplina de Língua Portuguesa, temos a
divisão velada de Língua e Literatura, sobretudo, no Ensino Médio, quando há uma
focalização de preparar o estudante para entrar na Universidade, como se essa fosse a única
função do Ensino Médio.
A divisão também tem sido defendida em larga escala nos cursos de Licenciatura em
Letras, inclusive com criação de departamentos distintos para língua e para literatura, como
tem acontecido dentro do nosso departamento.
Na defesa de uma situação de ensino de Língua Portuguesa contrária a esse
pensamento - separação entre Língua e Literatura - propomos que as atividades dos Estágios
Supervisionados VI e VII fossem realizadas em conjunto, pois entendemos que o objeto de
ensino de Língua e Literatura dá-se por meio do texto e que, ao abordar a linguagem
podemos, ao mesmo tempo, fazê-la nas perspectivas linguísticas e literárias. Assim,
enfrentamos o desafio de elaborar, com os alunos dos componentes curriculares de Estágio
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Supervisionado, projetos e sequências didáticas que contemplem a um só tempo Língua e


Literatura.
Na seção a seguir, faremos algumas considerações sobre atividades que buscam
efetivar a relação Língua - Literatura constantes em Portfólios produzidos pelos alunos dos
Estágios VI e VII.

Entre as teorias e projetos de intervenção

O momento da realização do Estágio Supervisionado na Licenciatura pode ser


considerado o de maior crescimento para todos os envolvidos: o professor orientador (na
Universidade), o professor supervisor (na escola), os estagiários (graduandos da
Universidade) e os alunos da escola. Prevendo o envolvimento desses sujeitos e a função que
tem ou deveria ter o componente curricular Língua Portuguesa, refletimos como as atividades
deveriam ser planejadas, vivenciadas e aplicadas. Para isso, antes de elaborar o material, o
estagiário precisaria conhecer a realidade na qual faria a intervenção. Pois como afirma
Geraldi (2002, p. 40) é necessário

Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula,


é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino
articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e
interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula.

De posse dessa realidade e de pressupostos teóricos sobre linguagem, texto, Literatura,


Língua entre outros aspectos basilares para o ensino de Língua Portuguesa, o graduando tem o
desafio de elaborar e aplicar atividades que possam corresponder às necessidades do aluno do
Ensino Médio prevendo, sobretudo, a função que esse componente curricular tem na
formação leitora e de produção textual.
Nesse sentido, ressaltamos as atividades consideradas, a grosso modo, como essenciais
a uma “aula de Língua Portuguesa: falar, ouvir, ler e escrever textos em LP”, como afirma
Antunes (2003, p.11). A autora ainda ressalta que falar, ouvir, ler e escrever são elementos
que se concretizam no texto, e o que é o texto senão linguagem?
É, portanto, com a função de aprimorar as competências de ouvir e ler e falar e
escrever do aluno do Ensino Médio que as aulas de LP podem dar suporte para esse
aprimoramento, como podemos ver descrito no Portfólio 1, 2012.2
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Com base na realidade vivenciada pelos alunos do Ensino Médio


procuramos trabalhar com temas que pudessem despertar o seu interesse, por
meio de minicurso abordamos a temática “A violência contra a mulher”,
promovendo debate com os alunos para que os mesmos possam dialogar e
expor o que eles acham do tema em questão.
Como também procuramos trabalhar dentro dessa temática gramática e a
literatura, buscando assim textos que falem da violência sofrida pelas
mulheres, mas que com esse textos possamos trabalhar a análise textual,
oralidade e as próprias ideias trazidas pelos alunos. (Portfólio 1, 2012.2)

Há, portanto, no excerto acima, a proposição de desenvolvimento de uma sequência de


atividades a partir de uma temática de interesse do grupo de alunos do Ensino Médio e uma
explícita preocupação em fazer com que os alunos opinem, usem a oralidade bem como a
tentativa de trabalhar, ao mesmo tempo, Língua e Literatura. Um projeto ou sequência
didática que tem sua motivação no tema, possibilita o uso de textos diversos, orais ou escritos,
podendo constituir-se como motivação para a discussão. Como corrobora Cosson (2003, p.
57)

[...] compor a motivação com uma atividade de leitura, escrita e oralidade


parece ser uma medida relevante para a prática no ensino de língua materna
na escola. Além disso, essas atividades integradas de motivação tornam
evidente que não há sentido em separar o ensino de literatura do ensino de
língua portuguesa porque um está contido no outro.

O autor coloca assim a necessidade lógica de se trabalhar na aula de Língua Português


a Literatura em consonância com a Língua. Fato constatado nas propostas feitas pelos alunos
em seus projetos, como podemos ver na etapa da sequência didática descrita a seguir:

Na sétima aula, faremos uso do conto contemporâneo “Um túmulo para


chorar” de Dalton Trevisan, o qual também trata de traição, aliando e
contrapondo ao conto “A cartomante”. Aqui faremos a leitura de parte do
conto e pediremos aos alunos para que criem uma continuação e um
desfecho para o conto. O objetivo aqui é iniciar o processo de escrita a partir
de um estímulo, que, no caso, é o próprio conto. Levaremos para casa as
produções textuais dos alunos para identificar os conteúdos linguístico-
textuais que eles têm mais dificuldade. A partir desse diagnóstico
selecionaremos os conteúdos de análise linguística a serem trabalhados em
sala de aula, na aula seguinte. (Portfólio 2, 2013.1)

A atividade a ser realizada na turma do Ensino Médio se desenvolve a partir do(s)


texto(s) literário(s), com previsões de atividades de leitura e da continuidade da escrita do
mesmo. Tanto no momento da leitura quanto no momento da escrita são ativados
conhecimentos linguísticos e literários, bem como afloram inferências advindas dos
conhecimentos de mundo do aluno da escola e do estagiário. Nessa atividade, é
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completamente possível termos a aula de LP em que Língua e Literatura são integrados, pois
para realizar leitura e escrita de textos é necessário descobrir, por meio do que está escrito, as
pistas para a compreensão dos aspectos literários. Nesse sentido, podemos afirmar que
projetos e/ou sequências didáticas não poderiam ou deveriam restringir-se à análise linguística
ou a ordem cronológica das escolas literárias.
Pois como afirma Segabinazi (2011, p. 51), ao se referir à metodologia usada para
trabalhar a literatura com base no que propõem grande parte dos livros didáticos, que se
constituem basicamente por

[...] breve exposição dos movimentos literários e suas principais


características, com datas limites e seus principais autores; apresentação dos
fatos históricos para a contextualização dos autores e obras, com aspectos da
biografia de cada um. Por último, realiza-se a leitura de fragmentos que
exemplificam os estilos literários e o estilo individual de cada autor.
Dificilmente, ocorre o espaço para o debate e discussão das leituras
literárias, até porque essa não ocorre na íntegra dos textos. Além disso, as
aulas, em tese, são centradas no conhecimento do professor que,
eventualmente, realiza a sua interpretação e repassa aos alunos.

Com esse olhar compartilhado do ensino de língua, no qual o professor torna-se o


centro da aprendizagem, vemos a negação da relevância que tem a leitura e as possibilidades
de ver o potencial que texto e aluno-leitor possuem. É nítida a ausência de uma visão global
do texto e, assim, é praticamente impossível perceber o jogo, a cooperação entre o linguístico
e o literário que se desenrola durante a leitura e/ou a produção textual.
Para dar relevo, ao que propomos trabalhar nos Estágios VI e VII, contrapondo ao
comportamento descrito acima, na próxima etapa do trabalho, faremos uma análise mais
pontual do objetivo descrito no Portfólio 2, 2013.1.

Análises reflexivas e perspectivas para o ensino Língua Portuguesa no ensino Médio

A proposta feita pelos estagiários do Portfólio 2, 2013.1, na sétima aula, acima


descrita, estabelece como objetivo “...iniciar o processo de escrita a partir de um estímulo,
que, no caso, é o próprio conto.” A escolha do objetivo volta-se, pelo menos, para três
aspectos do ensino de língua, promovendo as competências e habilidades linguísticas e
literárias a um só tempo:
1º. ao dar continuidade à escrita do conto, além de possibilitar a criatividade do aluno,
promove o desenrolar de uma leitura efetiva do texto iniciado, visto que ao continuar a
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escrever um texto já iniciado, é necessário manter a unidade textual, evitando a incoerência e


a falta de coesão textual;
2.º para conservar essa coerência, o aluno produtor de texto precisa permanecer no
mesmo estilo, atento às suas escolhas lexicais, o que implica nas adequações semânticas,
sintáticas, morfológicas, conhecidas pelo aluno do Ensino Médio que tem como língua
materna a língua portuguesa (da norma culta ou não). Portanto, a oportunidade de continuar a
escrita do texto, pode proporcionar bem mais que classificar e reconhecer elementos sintáticos
e semânticos da língua, mas a reflexão sobre o que fazer para escrever;
3º. as escolhas lexicais feitas para darem continuidade ao texto permitem que a escrita
mantenha o estilo do autor e as características que são inerentes ao gênero literário - conto,
isso sem, necessariamente, a preocupação de apontar essas características, mas com a
incumbência de permanecer mantendo a coesão ao gênero literário/textual. Para isso, são
utilizados artifícios como as retomadas do lugar onde se passa, da(s) personagem(ns) a que se
refere(m) o conto, a continuidade da narrativa.
Há, portanto, a viabilidade de alcançar o objetivo que consideramos essencial para o
ensino de LP: falar, ouvir, ler e escrever, oportunizando ao aluno refletir sobre sua
necessidade real de aprender a Língua e distanciando-se do mito de que “aprender Português”
é saber as normas gramaticais e saber autores e obras que se destacaram em determinada
época no Brasil. E ainda mais, que o texto, sobretudo, o literário possui uma riqueza maior
que a simples função de pertencer a uma época histórica e/ou de fazer exploração gramatical.
Como temos visto nesse texto a aula de Língua Portuguesa precisa ser aula de fala e de
audiência (exercício de ouvir o pares), de leitura e de escrita, na qual, sobretudo, o texto
literário é lido e discutido, tornando-se objeto privilegiado para o jovem e o adulto, que está
em sala de aula, encontrar-se e, até trazer a realidade que o circunda para o texto. Podemos
ver, pela realização da atividade proposta pelos estagiários, que a partir do momento que é
dada ao aluno o poder de produzir texto (orais e/ou escrito), dar-lhe também a permissão para
que traga para o seu texto os construtos sócio-históricos pertinentes à sua realidade,
independente do domínio de língua que tem.
Dessa forma, concordamos com o ponto de vista de Cosson (2012, p. 17), quando
afirma que “Na leitura e na escrita de textos literários encontramos o senso de nós mesmos e
da comunidade a que pertencemos.” E é exatamente esse entrelaçamento que leva o aluno do
Ensino Médio encontrar sentido para ler obras literárias ou mesmo os textos que o livro
didático traz.
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Vemos nesse ponto o ganho que podem ter os alunos da última etapa do ensino básico,
no Brasil, em termos de aquisição de saberes. Pois trata-se de construção de conhecimento
que servem para “manipular” a língua e a literatura em prol da formação cidadã, tão
propagada nas Orientações Curriculares Nacionais (OCEM, 2002) e nos objetivos que
permeiam documentos oficiais que regem o ensino médio no Brasil.

Notas conclusivas

Ao finalizarmos a escrita deste texto, vemos que a proposta inicial de analisar projetos
de ensino e sequências de aulas elaboradas pelos graduandos de Letras/Português nos
Componentes Curriculares dos Estágios Supervisionados VI e VII, que contemplassem a um
só tempo o ensino de Língua e Literatura e que víssemos nessa relação o texto e as
possibilidades de leitura, oportunizou iniciarmos uma discussão mão só sobre a relação
Língua e Literatura, mas também refletir sobre a realidade dos estágios nas licenciaturas e o
ensino de LP no Brasil. Por isso, já na primeira etapa do trabalho, contextualizamos a
realidade a formação do professor de Língua Portuguesa e o histórico do Estágio
Supervisionado na formação inicial, para depois localizarmos as atividades que foram foco de
análise e reflexão dentro do Portfólio.
Em uma segunda etapa do trabalho, à medida que apresentamos as atividades que
contidas nos projetos, apresentamos o posicionamento de alguns estudiosos do assunto,
realizando paralelamente a análise reflexivas das atividades. Finalmente trouxemos uma
análise de como a realização da atividade poderia auxiliar na integração de Língua e
Literatura na aula de Língua Portuguesa e na formação do leitor e produtor de textos na aula
de LP.
O percurso do texto nos faz vislumbrar possibilidades de atividades concomitantes de
Língua e Literatura (se é que, em algum momento possam essas subdisciplinas podem
aparecerem dissociadas). Isso tornou-se evidente quando nos debruçarmos precisamente sobre
dois projetos que se ajustavam ao recorte exigido pelo objetivo da pesquisa. Observarmos a
produtividade que podemos ter se dermos maior credibilidade à aula de Língua Portuguesa no
Ensino Médio, cujo objetivo é a formação do leitor e do produtor de texto que usa a língua e a
literatura, para aprimorar seus conhecimentos não só de normas gramaticais e de conteúdos
literários restritos a questões da Teoria da Literatura, mas que os leve a usá-los para ouvir,
falar, ler e escrever com liberdade de fazer escolhas, não porque alguém lhes disse que assim
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deveria ser, mas por estarem conscientes de que as possibilidades de manipular Literatura e
Língua, segundo suas necessidades, formá-los-ão não apenas para dar respostas ensaiadas,
mas para usarem a aprendizagem no exercício da cidadania, como almejamos para os jovens e
adultos que terminam o Ensino Médio no Brasil.
Referências

ANTUNES, Irandé. (2003) AULA DE PORTUGUÊS: encontro e interação. São Paulo:


Parábola, 2003.
BRASIL. (2002) PCN+ENSINO MÉDIO: Orientações educacionais complementares aos
Parâmetros Curriculares Nacionais. Vol. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC/Semtec.
COSSON, Rildo. (2013) LETRAMENTO LITERÁRIO: teoria e prática. 2. Ed. São Paulo:
contexto.
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GERALDI, João Wanderley. O TEXTO NA SALA DE AULA. 3. Ed. São Paulo: Ática.
SEGABINAZI, Daniela Mª. (2011) EDUCAÇÃO LITERÁRIA E FORMAÇÃO DOCENTE:
ENCONTROS E DESENCONTROS DO ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA E NA
UNIVERSIDADE DO SÉCULO XXI. Tese (Doutorado em Letras), Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa.
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BENDITOS FRUTOS DA LITERATURA POPULAR NORDESTINA

O GÊNERO LITERÁRIO DE EXPRESSÃO POPULAR

Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista


CNPq/UFPB/PPGL/PPLP

Os gêneros são formas mais ou menos fixas de utilização da língua e, portanto, de


natureza reconhecidamente social e discursiva, ou “tipos relativamente estáveis de
enunciados” (Bakhtin, 2000: p 279). A confirmação desse fato é dada por Greimas (1979:
p.202) quando o define como “uma classe de discurso reconhecível graças a critérios de
natureza socioletal”. Desde a Antiguidade clássica que o assunto foi discutido (MOISÉS,
1974: p.240) destacando-se a célebre sistematização feita por Aristóteles dos gêneros
literários, embora, à época, também houvesse sido reconhecida a existência de gêneros da
comunicação cotidiana e, não apenas, os poéticos. Assim, Bakhtin (2000: p. 281) inclui, na
classificação gêneros dos discursos os dois tipos mencionados a que chamou de primários
(catálogo, relato familiar, cartas, etc) que aparece em situações de comunicação mais simples
e os secundários, próprio de uma situação de comunicação “mais complexa, relativamente
mais evoluída, principalmente a escrita” sendo exemplos: a literatura, o discurso científico e
ideológico.
Na Modernidade, o estudo dos gêneros do discurso vem sendo aprofundado, não só
pelos literatos, mas por antropólogos, sociólogos, lingüistas e outros, sendo indispensáveis em
qualquer orientação de estudo. É que eles constituem, segundo Marchuschi (apud Sadoyama,
2009: p. 12) “fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social”.
Ignorá-los diz (Bakhtin, 2000: P. 282):

“desvirtua a historicidade do estudo, o vinculo existente entre a língua e a


vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam e é, também, através dos enunciados concretos que a vida penetra
na língua.”

Este estudo está vinculado a um projeto amplo que desenvolvemos para o CNPq desde
2010 cujo objetivo é analisar, do ponto de vista semiótico, os textos literários de expressão
popular que fazem referências às figuras étnicas que entraram na composição do povo
brasileiro, a fim de descobrir a ideologia subjacente aos discursos. Aqui, discutimos,
especificamente, os gêneros literários de expressão popular cuja maioria teve origem numa
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oralidade fecunda, de tradição milenar, que os ampliou, recriou, ou restringiu sua significação.
Além da teoria semiótica dos gêneros dos discursos, utilizamos, também, o suporte teórico da
etnoliteratura que vêm se debruçando sobre a análise dos textos recolhidos na tradição oral,
comparando variantes, em busca de explicação para este ou aquele fenômeno.
Vejamos, agora, os gêneros literários populares mais encontrados no Nordeste que,
pela modalidade do código linguístico utilizada, podem ser bipartidos em orais e escritos.
A literatura popular escrita é comumente chamada de literatura de folheto ou
literatura de cordel. O último nome se deve à venda dos folhetos em barracas de feira, portas
de igrejas, mercados públicos, pendurados numa corda fina que, em Portugal, denominava-se
cordel. Na verdade, hoje, preferimos nomear o gênero cordel e reservar o nome folheto para o
suporte onde o gênero é escrito, mesmo porque muitos outros gêneros podem utilizar o
mesmo suporte sem serem poéticos, nem populares.
Este tipo de literatura apresenta algumas características que a diferenciam da literatura
popular oral. O eixo da comunicação acontece entre escritor e leitor. Existe uma indicação
precisa de tempo, espaço e ator com foco narrativo em 3ª pessoa. A capa traz uma xilogravura
(palavra derivada do grego xýlon que significa madeira e gravura). Na última estrofe, aparece,
na maioria das vezes, um acróstico indicando o nome do autor. Este é geralmente conhecido e
determinado na capa do folheto.
Sua origem é lusitana, vinculada à tradição escrita ou à tradição oral. Da tradição
escrita, são referência às folhas volantes ou folhas soltas (pliegos sueltos). Antes de haver
uma impressão, eram feitos em cadernos manuscritos. Da tradição oral, as narrativas de cordel
mais antigas provêm dos romances tradicionais orais: Carlos Magno e os Doze Pares de
França, Roldão e Oliveiros. Esta tradição romancística surgiu no Norte da França (na langue
d´oil) com a publicação de La Chanson de Roland que deu origem ao ciclo carolíngio de
narrativas orais no século XI.
Os mais antigos poetas eram rigorosos na métrica. Os mais modernos perderam essa
característica por estarem mais preocupados com o conteúdo. A maioria dos folhetos se
compõe de estrofes de seis versos, chamadas sextilhas. Outros são feitos em septilhas e
décimas. As quadras são mais raras.
Vejamos, a seguir, como exemplo, algumas estrofes do folheto Suspiros de um
Sertanejo de Leandro Gomes de Barros, escritor popular paraibano que descreve a tristeza do
migrante longe do Sertão, lugar em que cresceu e viveu. Em sua narrativa, fala de belas
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imagens da natureza como as manhãs e tardes sertanejas, a variedade dos pássaros, a


liberdade das crianças, além das premonições de chuva e das "apartações".

A minh´alma triste suspira


em deslumbrante desejo,
Eu choro por minha terra
A tempos que não a vejo
São suspiros arrancados
Do peito de um sertanejo.

Não posso deixar de cantar a terra


De lá uma serra não deixo passar
Meu amor, meu lar
meu bem, meu prazer
Para que eu viver estando ausente dela
Olhando para ela, queria morrer

Lá as tardes são tão bela


E chamam tanto atenção
Que engrandecem de momento
O mais duro coração
Não sabe contar do mundo
Quem nunca foi no sertão

Quem nunca passou pelo Seridó


E no Piancó nunca viajou
Não saboreou o mel do Abreu
Um desses nasceu
Em hora esquecida
Passou pela vida
Porém não viveu

A literatura popular oral engloba as criações do povo, bem como, as criações


eruditas popularizadas. Resultante de processos de comunicação entre homens, situa-se no
eixo: falante  ouvinte. Caracteriza-se, primordialmente, pela sua transmissão oral. O autor é
conhecido ou anônimo. É tradicional e funcional. É viva e integrante das atividades humanas.
Sua formação se prende a fontes as mais variadas possíveis e a diferentes épocas. Define-se
em termos sociológicos mais do que lingüísticos. Modifica-se para adaptar-se à língua, à
época, à cultura e ao indivíduo. Apresenta-se sob dois tipos de forma: prosa (contos, lendas,
mitos, adivinhações, orações, etc) e verso (cantorias de viola, romance (cantado ou recitado),
cantigas, quadras, desafios, abecês, parlendas.
O conto, também chamado estória de trancoso, é o representante mais importante
da prosa popular oral. Trata-se de uma narrativa não muito longa, mas que possui uma
sucessão de motivos ou episódios tendo como figura central um herói que desenvolve um
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percurso cheio de peripécias para buscar o seu valor. ARAGÃO (2004: p.44) cita como
característica dessa peça popular:

“a antiguidade, o anonimato da autoria, a capacidade de resistir ao tempo, o


processo de divulgação, a convivência do homem com o mágico-
maravilhoso, a ficcionalidade sem compromisso com a realidade, o reflexo
de situações sociais”.

Segundo CASCUDO (CTB: p. 26)

“é um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades,


decisões e julgamentos. (...) o primeiro leite intelectual, os primeiros heróis,
as primeiras cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade.”

Psicólogos e educadores compreendem a importância do conto na formação da


criança: cada ação praticada pelo herói tem um significado positivo que vai influenciar na
fantasia das crianças, ajudando-as a solucionar os problemas. Bruno Bettelheim, em
Psicanálise dos contos de fada, descreve os significados inconscientes dos contos e sua
importância para a psicanálise infantil.
Certa vez, uma senhora, desejosa de que o filho fosse bem sucedido como cientista,
perguntou a Einstein que livro lhe daria para ler. Einstein respondeu que desse contos de fada.
A mãe insistiu: e depois, quando ele houver acabado de ler os contos de fada? Einstein
insistiu: dê-lhe sempre contos de fadas (Apud NASCIMENTO, 2009: p. 13). Isto nos nos leva
a compreender a importância do conto na formação da identidade infantil e no aguçamento de
sua capacidade de raciocínio. Mostramos, a seguir, um exemplo típico dessa narrativa
prosáica que recolhemos no Cariri paraibano.

A MULHER QUE ERA BONITA E TINHA CIÊNCIA


Contado por Maria José Cordeiro, Fazenda Malhada da Panela - 1982

Era uma vez um homem bem velhinho que morava com sua filha
numa casinha bem pobre junto da floresta. A filha era muito bonita e
inteligente, mas o velho era muito pobre. A filha lavava, passava, cozinhava
e era muito prendada. O velho era lenhador. Um dia, o velho chegou muito
cansado e, sentindo que ia adoecer, disse para a filha: minha filha,estou
muito preocupado com você. Sinto que a morte vai chegar e não sei como
você vai ficar. Ao que a filha respondeu: tem nada não, papai, Deus
proverá. No mesmo dia passou por ali um arauto do rei que dizia que o rei
estava procurando moça para firmar casamento, mas só queria uma que fosse
bonita e tivesse ciência.
O velho escutou e correu para avisar à filha. Ele disse: minha filha,
bonita eu sei que você é, mas não sei se tem ciência. Ela respondeu: Que
tenho, eu tenho. Precisa só que o senhor vá lá avisar ao rei. O velho foi e
como era muito esmulambado, não deixaram ele entrar. O velho voltou
muito triste. A filha disse:tem nada não, papai.O senhor volta e fica na
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frente do palácio, perto da janela do rei, gritando – Minha filha é bonita e


tem ciência.O velho foi, o rei escutou e mandou chamá-lo. Como é, disse o
rei, tua filha é bonita e tem ciência mesmo? O velho confirmou:tem sim,
majestade. Olha, velho, respondeu o rei,se for mentira tua te mando matar.
O velho assegurou: Pode acreditar que é verdade, majestade. O rei, então,
disse: Diga para ela vim aqui, nem de noite, nem de dia, nem num pingo de
meio – dia, nem a pé, nem a cavalo, nem nua nem vestida. O velho ficou
muito triste: Vou morrer, o que será de minha filha? Chegando em casa,
contou tudo para ela. A filha respondeu: Que nada, papai, nem se aperrei.
Nem de noite, nem de dia, significa de madrugada; nem a pé, nem a cavalo,
significa montada num jumento; nem nua, nem vestida, vou passar mel no
corpo e me deitar naquele folharal. Assim ela fez e apresentou-se ao rei. O
rei viu a beleza da oca e a inteligência. Contratou casamento, mandou fazer
uma grande festa e foram felizes para sempre. Fui convidado, ia trazendo
para vocês um potezinhos de doce, mas escorreguei na ladeira e o pote se
quebrou. Entrei pela perna de pinto, saiu pela de pato e o senhor rei mandou
dizer que contasse mais quatro.

A literatura oral em verso comporta, de um lado , poemas populares,feitos no hoje da


lígua, como cantorias de viola,ou desafios, quadras etc e, de outro,os poemas tradicionais que
,elaborados em um passado longínquo, atravessaram gerações até chegarem à atualidade.
Trataremos, agora, da poesia oral tradicional que corresponde às cantigas e romances orais e
constituem o cancioneiro e o romanceiro de uma região.
O romanceiro compreende um conjunto de romances populares que vêm sendo
difundidos, oralmente, desde épocas antigas da literatura. Os romances são narrativas curtas
que apresentam as seguintes caracteristicas: a natureza poética–musical; a forma dialogada ou
dramatizada; o conteúdo épico ou épico–lírico e um processo variacional muito rico,
motivado por sua natureza oral. O texto seguinte, que levantamos no sítio Azavém – Natuba
constitui um exemplo de romance tradicional:

LA CONDESSA
Cantado por Joana de Araújo Mendonça (Eci), 53 anos, do lar.

— Ô de casa — Ô de fora onde mora a La Condessa?


— Que quereis com a La Condessa que por ela perguntais?
— De três filhas qu’ela tem eu quero casar com ela
— Eu não dou a minha filha pelo estado qu’ela está
Nem por ouro e nem por prata e nem por sangue de Aragão
— Tão alegres que cheguemos tão triste que vou voltando
A filha de La Condessa nós com ela não casamos
— Volta, volta, cavalheiro por ser homem de bem
Escolha nesse jardim a moça que lhe convém
— Esta cheira e esta fede esta é flor da laranjeira
Esta eu levo comigo para ser minha rendeira
— Te assenta aí, menina a coser e a bordar
Que do céu há de vir uma agulha e um dedal
Palmatória de marfim para Deus te castigar.
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(BATISTA, 2014: Romanceiro do Brasil)

A forma dialógica do romance levou o estudioso português Teófilo Braga(1986, Vol


III:253) a considerá-lo “ verdadeiramente um drama, digno de ser estudado como um
elemento orgânico do teatro português”. Os autores dão como originário da Península Ibérica,
reputando sua criação ao século XIII. Romero (1960:160) é desse parecer ao afirmar que:

O tema é puramente herdado dos velhos romances da Península Ibérica que,


de fragmentos épicos que eram em principio, passaram a simples pretextos
de folguedos infantis.

O Cancioneiro comporta um conjunto de cantigas tradicionais, usadas em brincadeiras


infantis, em hora de trabalho etc. No início da literatura portuguesa, a palavra foi usada para
designar a coletânea de cantigas de amigo, de amor e de escárnio e maldizer. São exemplos de
cancioneiros antigos: Cancioneiro da Ajuda (310 cantigas – século XIII), Cancioneiro da
Biblioteca Nacional ou Colocci Brancuti (442 cantigas – século XV), Cancioneiro do
Vaticano (1.205 cantigas – fins do século XV), Cancioneiro Geral ou de Resende (1.516
cantigas – do século XVI).
Os temas abordados são elementos líricos, distância, saudade, ciúme a que o brasileiro
acrescenta tons humorísticos. Santos e Batista (1993: 32-40), considerando sua
funcionalidade, propõem a seguinte classificação para as cantigas no cancioneiro da Paraíba:
cantigas de brincar, parlendas, cantigas de ninar, cantigas de folguedo, cantigas religiosas,
orações e crendices, aboios e toadas de vaquejada, cantos políticos e de costume.
Vejamos, a seguir, um exemplo de uma cantiga, bastante utilizada em brincadeiras
infantis, que é a parlenda. São versos constituídos de palavras, às vezes sem muita
significação, mas ricos em sonoridade e que devem ser entoados em ritmo acelerado,
acompanhados de movimentos corporais.

O dó da viola:
Cantado por Lisbete L. de Oliveira, 20 anos João Pessoa. Gravado em
16/05/1983 por Mª. de Fátima Batista

Eu perdi o dó da minha viola


Da minha viola eu perdi o dó
Dormir é muito bom
É muito bom
Refrão
É bom, minha gente
É bom, minha gente
É bom, é bom, é bom
Eu perdi o ré da minha viola
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Da minha viola eu perdi o ré


Rezar é muito bom
É muito bom
Refrão
Eu perdi o mi da minha viola
Da minha viola eu perdi o mi
Mingau é muito bom
É muito bom
Refrão
Eu perdi o fá da minha viola
Da minha viola eu perdi o fá
Falar é muito bom
É muito bom
Refrão (etc)

(SANTOS e BATISTA, 1993: p.261).

A literatura popular oral constitui um jeito tradicional de construir bens relacionais Os


bens relacionais — segundo a concepção de Marx (Apud BRUNI, 2005:62) — são bens
porque satisfazem necessidades humanas e têm valor, mas não são mercadorias: não têm
preço, não há mercados onde se possa comprá-los. São capazes de contribuir, relevantemente,
na formação de bem-estar. Trata-se de um conceito econômico, difundido na atualidade pela
Economia de Comunhão, mas que se presta, perfeitamente, ao estudo da literatura popular
uma vez que esta tem por finalidade estabelecer, criar e ampliar os relacionamentos humanos.
Desde as primeiras cançõezinhas que ouvimos no acalento das nossas mães, até as
brincadeiras infantis com as coleguinhas de calçada, aos cantos de trabalho, de lazer, o
objetivo é manter a relação dialógica entre os participantes. A literatura popular se aplica
perfeitamente ao caso.

Referências

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biblioteca da vida rural brasileira in BATISTA, et all. Estudos em Literatura Popular. João
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BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita et al. Estudos em Literatura Popular II.
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CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro:
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MACHADO, A.R. Gênero de textos, heterogeneidade textual e questões didáticas. Abralin,
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BENDITOS FRUTOS DA POÉTICA POPULAR: O CASO DO GALOPE À BEIRA-


MAR

Lindoaldo Campos1

Introdução

Quando não completamente desprezada pela academia, a poesia popular tem sido alvo
de interpretações equivocadas, derivadas, modo geral, de uma perspectiva eruditocêntrica,
pautada em elementos que se revelam no mais das vezes inconvenientes e em todos os casos
absolutamente improfícuos.
Trata-se, no caso, daquilo que já se logrou denominar de “polido menosprezo” com
que a academia trata a poesia popular:

Alijada do movimento histórico, confinada numa periferia idealmente


imobilizada, expurgada de toda relação dinâmica com a cultura viva, ela se
presta docilmente à manipulação reificadora. Reificada, desloca-se
discretamente do âmbito da Arte e da Cultura para o da Natureza.
A entronização da poesia popular na esfera imaculada da palavra volátil
pode representar um mecanismo sutil de exclusão: conceituar um objeto de
maneira a revesti-lo de uma aura inefável, de uma natureza inapreensível,
equivale em certa medida a confiná-lo longe de nossos olhos e de nossas
mãos, guardá-lo intacto e frágil na redoma do passado, interditar-lhe toda
possibilidade de conexão com o presente vivo e ativo.2

Concepção errônea, equivocada, e, mais que isso, deletéria. Trata-se de uma imagem
distorcida, carregada de esquematismos que à evidência não dão conta dos múltiplos e
singulares aspectos da poética popular, que possui elementos, arquétipos e propósitos
próprios, que por isso mesmo a distinguem e a nobilitam. A exemplo da oralidade,
característica que, ao contrário do que comumente se imagina, possui o condão de
sempiternamente avivar o fogo telúrico da verve do menestrel do povo, e que desta forma é
preciso considerar em qualquer análise que se pretenda justa.

1
Pesquisador e escritor.
2
Cláudia Neiva de Matos, A poesia popular na república das letras, p. 172 e 194. Em outra parte de sua obra,
esta pesquisadora acentua: “O conceito de poesia popular é elaborado de maneira a mantê-la à distância no
tempo e no espaço, separando irrevogavelmente sujeito e objeto da pesquisa. Pesquisador e pesquisado
encontram-se de saída prudentemente distanciados e interditados para qualquer diálogo. O diálogo, ou a
polêmica, só se trava entre os participantes credenciados pela instrução livresca, na discussão de teses / teorias
das quais os acentos específicos da voz popular ficam via de regra excluídos”. (op. cit., p. 197)
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Consideradas, pois, as especificidades da poética popular e resguardando-se de


considerar a literatura popular como ingênua, queda manifesto que, longe de constituir uma
ameaça à liberdade inventiva, a análise dos variegados aspectos que a compõem consiste, na
verdade, em uma defesa de sua autonomia e, por sua vez, do próprio afazer poético. Isto
porque a obra corporifica a visão de mundo do autor e a autonomia que possui está em que, ao
solicitar nosso juízo acerca do conteúdo de sua representação, não apenas permite mas impõe,
mesmo, que tornemos notórias as múltiplas e proeminentes implicações que possui sobre a
nossa visão de mundo, cuja tenebrosa e apertada vereda é assim iluminada e alargada pelo
poder fecundante das imagens que assimilamos.
Compreende-se, com isto, a importância da utilização de métodos e técnicas próprias,
a ser pensadas e repensadas pela Teoria Literária, uma vez que, longe de constituírem
qualquer limitação à compreensão da atividade artística, permitem, isto sim, o devido
aclaramento e a adequada apreensão da mundividência do poeta sem a apelação para qualquer
sentimentalismo inócuo, rebarbativo e estéril, cujo único intento consiste, no mais das vezes,
em tentar fazer sobressair fumaças poetástricas que se pretende mais densas que a própria
obra que se alega apreender.
Desta forma, revela-se premente a necessidade de estabelecer um diálogo entre a
poesia popular e a academia, diálogo certamente enriquecedor, em todas as dimensões, para
todos aqueles que estejam dispostos à escuta e ao aprendizado. Um tal diálogo só se faz
possível e profícuo, no entanto, a partir de umoutra condição: que se compreenda as
especificidades da cultura popular, que o estudioso se desarme de seus preconceitos lógicos,
de sua couraça ideológica e reflita sobre a poesia popular a partir de suas peculiaridades, que
estão a lhe exigir uma percepção a partir de elementos da própria poesia popular, guardadas e
respeitadas as suas idiossincrasias, sejam quais forem elas, mas apenas e forçosamente por
que são elas.
Consideradas tais circunstâncias, o presente texto pretende-se uma incipiente
contribuição ao correto equacionamento desta questão, onde faremos um sumário das teorias
atinentes às origens da poesia popular do Nordeste brasileiro, apresentando, após, alguns
gêneros, dos quais destacamos a décima e uma de suas mais expressivas espécies: o galope à
beira-mar, assinalando suas espécies, sua métrica e seu ritmo, tudo com o intuito de assinalar
alguns dos aspectos que, pensamos, deva constituir as lentes do pesquisador.
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Origens

Existem basicamente duas teorias sobre a origem da poesia popular brasileira:

A teoria greco-romana, que a atribui ao amœbeum carmen (canto amebeu


ou canto alternado), que existia na Grécia e que teria se conservado, na
Idade Média, através do trovadorismo provençal (de Provença, região do
Sudeste da França), sobretudo com o tenson, “verdadeira batalha poética
entre improvisadores” e com o desafio português, “recordação teimosa dos
amebeus gregos”3;

A teoria arabista, que a atribui à profunda influência que a Península Ibérica


(território situado a Sudoeste da Europa, que inclui Portugal e Espanha)
sofreu com a ocupação árabe, que perdurou por mais de 800 anos,
estendendo-se do ano 711 até o início da Idade Moderna, com o início das
Grandes Navegações, de que faz parte a colonização do Brasil.

Como se percebe, trata-se de questão muito delicada, cuja dificuldade de aproximação


aumenta ainda mais pelo fato de que as referências mais antigas sobre a poesia popular
brasileira datam de inícios do século XIX, ou seja, quando já decorridos quase três séculos
desde a vinda dos portugueses para o Brasil – o que se deve, em grande parte, é preciso notar,
à proibição de funcionamento de gráficas no país, que perdurou do “descobrimento” até o ano
de 1808.
Malgrado tais circunstâncias, consideramos mais plausível a teoria arabista, ou seja,
que a verdadeira raiz da poesia popular brasileira não é o Trovadorismo mas a poética árabe,
oriunda de “um sangue e uma cultura que explicam muito do que no brasileiro não é europeu,
nem indígena, nem resultado do contato direto com a África negra através dos escravos… que
até hoje persiste até mesmo no tipo físico...”4.
Dentre os estudiosos que defendem a teoria arabista destacam-se Alberto da Cunha
Melo5 e Luis Soler6, sendo que este último aponta, em síntese, que:

O Trovadorismo, a tenson e os jeux partis provençais, as desgarradas e


desafios portugueses, os contrasti italianos e as payadas de vários países
hispano-americanos têm origem em territórios vizinhos àqueles que foram
ocupados, durante muito tempo, pelos árabes;
Na poesia greco-romana, a rima é encontrada como circunstância ocasional,
enquanto a poesia árabe é quase toda rimada;

3
Luís da Câmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores, p. 178 e 181.
4
Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, p. 211.
5
Cfr. A oficina de Almanzor, in Um certo Jó, p. 57-71.
6
Cfr. Origens árabes no folclore do sertão nordestino.
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A maior produção artística da cultura arábico-ibérica corresponde à poesia


improvisada, acompanhada de um instrumento musical;
Os elementos musicais árabes têm, dentre outras, as seguintes características:
Predomínio da música profana em relação à religiosa;
Repetição obstinada de uma forma melódica;
Apreço maior pelos valores do verso, em relação aos valores propriamente
musicais;
Absoluta dependência do ritmo em relação à métrica.
O desafio foi (e é) característico da tradição poético-musical árabe e, como
os árabes também são chamados genericamente de mouros, “não podemos
estranhar que seja precisamente chamado de ‘mourão’ um tipo de cantoria
baseada no diálogo”

Um dos elementos poéticos mais referenciados pela teoria arabista para estabelecer a
relação entre a poética árabe e a poesia popular brasileira é o zejel (ou zajal, também
conhecido como hino sonoro ou bailada, ainda hoje cantado na África do Norte), gênero que
deriva da chamada muaxafa (mwwaxaha ou muwashah), mas enquanto esta possui uma forma
erudita, o zejel é expresso em árabe vulgar, ou seja, em uma linguagem popular.
O zejel foi bastante desenvolvido pelos poetas muçulmanos Mucaddam ben Muàfa e
Ibn Quzman, que viveram nos Séculos IX a XII na Andaluzia, região da Espanha ocupada
pelos árabes, e consiste em uma técnica poética que se antecipou em pelo menos 2 séculos aos
modelos idênticos (ou ligeiramente alterados) compostos pelos primeiros trovadores. Trata-se
de uma estrofe que, em sua forma mais simples, possui a estrutura de rimas AA BBBA AA
CCCA AA e que teria dado origem, por sua vez, ao vilancete (ou vilancico, em castelhano),
forma poética comum na Península Ibérica da época da Renascença (ou Renascentismo,
período da História da Europa que assinala o final da Idade Média e o início da Idade
Moderna)7.

Gêneros

Como se disse, a poesia não é algo petrificado, imutável; ela se modifica ao longo do
tempo, sofrendo transformações de acordo com a constante impermanência das coisas.
No que respeita aos gêneros, atualmente são utilizados pelo menos 50 formas poéticas,
das quais se destacam:

7
Cfr., a respeito, Ramon Menendez Pidal, Poesia Árabe y Poesia Europea; Slimane Zeghidour, A poesia árabe
moderna e o Brasil; Yara Frateschi Vieira, Poesia Medieval (literatura portugues) e Michel Sleiman, A poesia
árabe-andaluza (Ibn Quzman de Córdova).
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Quadrões – de que são subgêneros: Quadrão antigo, Quadrão à beira-mar,


Quadrão alagoano, Quadrão trocado, Quadrão mineiro, Quadrão dialogado e
Quadrão perguntado
Mourões – de que são subgêneros: Mourão de 7 linhas, Mourão voltado,
Mourão trocado, Mourão de pé quebrado e Mourão respondido
Martelos – de que são subgêneros: Martelo alagoano, Martelo de seis pés e
Martelo miudinho
Galopes – de que são subgêneros: Galope por dentro do mato e Galope
miudinho

Para o propósito delineado neste trabalho, destacamos o galope à beira-mar, dadas as


suas especificidades e qualidades que o notabilizam como uma das mais belas e completas
formas da poética popular.

O galope à beira-mar

Criado pelos cantadores Zé Pretinho do Crato e Souzinha e aperfeiçoado pelo poeta


João Siqueira de Amorim, o galope à beira-mar é uma décima, ou seja, uma estrofe com dez
versos, que rimam da seguinte forma:

o 1º rima com o 4º e o 5º
o 2º rima com o 3º
o 6º rima com o 7º e o 10º
o 8º rima com o 9º

Portanto, o galope à beira-mar possui a estrutura de rimas ABBAACCDDC8.


Dados os propósitos explicitados para este trabalho, passaremos a apresentar algumas
particularidades do galope à beira-mar, que, repita-se, à toda vista devem ser levados em
consideração pelo pesquisador da poética popular que se pretenda judicioso.

a) O Refrão
Alguns gêneros de poesia terminam com um refrão, ou seja, com versos que se
repetem no final de todas as estrofes. É o caso do galope à beira-mar, em que cada estrofe
termina com a expressão “na beira do mar”.

8
A décima possui também os seguintes modelos de estrutura de rimas: ABBAACCDDC (conhecida como
espanhola ou espinela, pois sua criação é atribuída ao poeta espanhol Vicente Espinel), ABABCCDEED
(conhecida como portuguesa ou recitativa) e ABBACCDEED (estilo de Assu).
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b) A Deixa
Deixa é o último som deixado no derradeiro verso de uma estrofe, com o qual deve
rimar o primeiro verso da estrofe seguinte. É justamente isso o que significa a expressão
“pegar na deixa”, muito utilizada pelos poetas improvisadores: rimar o primeiro verso da
estrofe que se vai fazer com o último verso da estrofe anterior9.
A deixa é muito utilizada na poesia popular (sobretudo na sextilha10, na setilha11 e no
martelo agalopado12), mas também no galope à beira-mar.
Ocorre que, como dissemos, o galope à beira-mar possui um refrão (“na beira do
mar”), de modo que o último verso da estrofe não pode servir de deixa, uma vez que a mesma
rima se repetiria no 1º e no último versos de cada estrofe. Portanto, no galope à beira-mar vale
como deixa o final do verso que fica imediatamente antes do refrão, ou seja, o 9º verso da
estrofe.
Veja um exemplo, para que isso fique mais claro:

Quisera viver como um passarinho


Bebendo na fonte, voando na flora
Cantando cedinho, saudando a aurora
Nos garranchos secos da concha do ninho
Fazendo, no espaço, meu próprio caminho
Tendo trânsito livre pra ir e voltar
Com as flores virgens me comunicar
Perfumando o bico nas pétalas das rosas
Pousando nas copas das árvores frondosas
Cantando galopes na beira do mar
Observe que Ivanildo Vilanova “pegou na
deixa” do 9º verso da estrofe de João
9 Paraibano (–osas)
A origem da deixa é a leixa-pren (deixa-e-toma ou deixa-e-prende), muito utilizada na poesia da chamada
Idade Média. Pela leixa-pren, o poeta deveria começar sua estrofe repetindo todo o último verso da estrofe
feita por seu adversário. A deixa, como a conhecemos hoje, em que se repete apenas o último som da estrofe
anterior, foi introduzida na cantoria pelo poeta Silvino Pirauá de Lima (1848-1913).
10
O próprio nome o denota: trata-se de uma estrofe com seis versos, em que, na estrutura mais comum, rimam
entre si os versos pares, ou seja, o 2º, o 4º e o 6º (aBcBdB).
11
A setilha é uma estrofe com sete versos, que rimam da seguinte forma: o 2º com o 4º e o 7º; o 5º com o 6º
(aBcBDDB). A rima entre os versos 5º e 6º oferece acentuada musicalidade a este gênero, o que faz com que
seja muito utilizado nas cantorias e nos folhetos de cordel.
12
O martelo agalopado é uma espécie de décima mais utilizada para a “arenga” entre os cantadores, mas sua
denominação não vem desta circunstância: ela está ligada ao nome de Jaime Pedro de Martelo (1665-1727),
professor de Literatura da Universidade de Bolonha, Itália. O martelo agalopado atual é uma adaptação feita
pelo poeta Silvino Pirauá de Lima (1848-1913).
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(João Paraibano)

Que bom se eu fosse nuvens volumosas


Que na densidade se transportam mansas
Levando aos sedentos milhões de esperanças
Peneirando a água nas fendas rochosas
Nos grandes cerrados, nas serras viçosas
Embebendo a terra, esfriando o ar
Jorrando aguaceiro por todo lugar
Alagando açudes, inundando latas João Paraibano deve “pegar na deixa” do 9º
verso da estrofe de Ivanildo Vilanova e
Vazando barreiras, enchendo cascatas começar sua próxima estrofe com ela (–atas)
Nos dez de galope da beira do mar
(Ivanildo Vilanova)

c) A Métrica
A poética popular é construída, toda ela, por gêneros que obedecem a formas
definidas, tanto no sentido da quantidade dos versos quanto no tamanho deles.
A medição do tamanho dos versos é o que se chama de métrica, palavra que vem de
metro, medir. Na poesia, significa, então, ajustar os versos de uma estrofe para que tenham o
mesmo tamanho, com o objetivo de que sua leitura e a sua audição fiquem mais fáceis e
agradáveis, como uma espécie de pontuação dos versos, para que sua leitura seja feita de
forma pausada, com o controle da respiração. É algo semelhante ao que acontece na prosa,
onde os sinais de pontuação são necessários para que a leitura das frases seja feita de forma
tranquila, com as pausas e entonações mais adequadas à nossa respiração.
Existem basicamente dois sistemas de metrificação:

 O sistema greco-latino, em que a unidade básica de contagem é o pé, que significa um


agrupamento de sílabas
 O sistema românico, em que a unidade básica de contagem é a sílaba poética
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A poesia popular (e, de resto, a poética brasileira) segue o sistema românico, onde
predomina a sílaba poética. Ora, como sabemos, sílabas gramaticais são aquelas que obtemos
quando dividimos as palavras conforme elas são escritas (essa é a primeira providência para
verificar se o verso está metrificado). Já as sílabas poéticas são aquelas que obtemos quando
dividimos as palavras de acordo com a nossa fala, ou seja, conforme elas são lidas, e são elas,
as sílabas poéticas, que contamos, portanto, para definir o tamanho do verso. Desta forma,
para que um verso esteja metrificado, basta que ele possa ter o mesmo número de sílabas
poéticas que os outros versos da estrofe13.
Pois bem: os versos de galope à beira-mar possuem 11 sílabas poéticas. Ou seja, são
versos hendecassílabos, também conhecidos como versos de Arte Maior ou Datílicos14.

d) O Ritmo
Na poesia, o ritmo é a ordenação, a distribuição das sílabas tônicas e das sílabas átonas
nos versos. É como se, na “pulsação” do verso, as sílabas tônicas representassem as “batidas”
e as sílabas átonas representassem as “pausas”.
Cada gênero poético tem seu próprio ritmo, ou seja, seu próprio modelo de
distribuição de sílabas tônicas. É como na música: o forró, o samba, o frevo, o baião, cada
gênero musical tem seu próprio ritmo; na poesia, como existem vários gêneros com a mesma
quantidade de versos (que por sua vez têm a mesma quantidade de sílabas poéticas e a mesma
estrutura de rimas), é principalmente através do ritmo que é possível perceber a diferença
entre eles.
Em cada gênero, as sílabas tônicas que estão nas mesmas posições em todos os versos
de uma estrofe de determinado são chamadas de sílabas tônicas obrigatórias (ou ictos) e
formam o seu ritmo15. Isso quer dizer que, para que fiquem num ritmo adequado, bom de se
recitar e de se ouvir, todos os versos de uma estrofe devem ter sílabas tônicas nessas posições
obrigatórias.

13
Outro ponto a ser considerado é que a versificação brasileira segue o padrão francês, segundo o qual a
contagem das sílabas poéticas é feita até a última sílaba tônica do verso.
14
Segundo Hênio Tavares (Teoria literária, p. 282), hendecassílabo iâmbico-anapéstico é o nome que se dá, em
teoria literária, ao verso de 11 sílabas poéticas com acentuação em 2, 5, 8, 11, ou seja, ao verso de galope à
beira-mar).
15
Na linguagem dos poetas repentistas, o ritmo também é chamado de acentuação, cadência ou toada.
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Pois bem: cada verso de galope à beira-mar as seguintes devem ter as seguintes sílabas
tônicas: 2ª, 5ª, 8ª e 11ª. A título ilustrativo, vejamos o exemplo de uma estrofe em que o tema
é chuva:

Gerada ao calor e das águas nascida


Amiga da terra, dos ventos amada
Sou água, sou neve, sou tudo, sou nada
Conduzo comigo o mistério da vida
Germino a semente na gleba exaurida
Transformo o deserto num verde pomar
Do cloro consigo o verdor variar
Douradas ramagens, azuis, amarelas
Criando paisagens, formando aquarelas
Na flora, nas ondas, na beira do mar
(Dimas Batista)

Façamos, agora, a escansão de cada um de seus versos (as elisões estão sublinhadas16):

16
Escansão é como se chama o processo de separação das sílabas poéticas de um verso. Elisão, por seu turno, é
o nome que se dá aos “ajuntamentos” que podem acontecer entre palavras, em que uma termina em vogal e a
outra inicia em vogal, e de acordo com a velocidade da leitura. Ressalte-se também que, na escansão, utilizamos
o símbolo ř para significar o som (fonema) que a letra r tem quando é escrita, sem duplicidade, no meio da
palavra (como, por exemplo, na palavra coroa → co / řo / a).
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Comparando estes versos, percebemos que, em todos eles, as seguintes sílabas são
tônicas: a 2ª, a 5ª, a 8ª e a 11ª. Esta é a acentuação dos versos de galope à beira-mar, o que
significa que, para que todos fiquem no ritmo próprio deste gênero galope, cada um deles
deve ter sílabas tônicas nessas posições, o que garante um ritmo bem característico, que
lembra o galope de um cavalo.

Um mestre

A estrofe que usamos ao estudar o ritmo no galope à beira-mar é de autoria do poeta


Dimas Batista, dos maiores cultores deste gênero poético e sobre quem, ao ensejo, faz-se
mister trazer a lume algumas informações complementares.
Descendente de poetas repentistas17, Dimas Batista Patriota (1921-1986) nasceu em
1921 em São José do Egito/PE, município localizado da microrregião do Vale do Pajeú e
conhecido como Berço Imortal da Poesia, por haver gerado tantos outros consagrados poetas,
como Lourival Batista, Otacílio Batista (irmãos de Dimas), João Batista de Siqueira (Cancão),
José Lopes Neto, Job Patriota, Antônio Marinho e Rogaciano Leite.
Como ele mesmo afirma18, começou a cantar aos 15 anos de idade, havendo
enfrentado mais de 300 competidores sem jamais ser vencido. Consagrou-se ao vencer
(juntamente com Domingos Fonseca) o I Congresso de Cantadores do Nordeste, realizado em
1948 no Teatro Santa Isabel (Recife/PE) sob a organização de Rogaciano Leite e Ariano
Suassuna
Considerado por muitos como o cantador mais culto de todos os tempos, Dimas
Batista tem seu nome inscrito como Rei dos Violeiros na prestigiada publicação Enciclopédia
Delta Larousse (edição de 1970, vol. II, p. 800). De temática acentuadamente lírica e
filosófica, seus galopes à beira-mar merecem figurar nas antologias de poesia brasileira de
qualquer tempo:

17
De acordo com Francisco das Chagas Batista (Cantadores e poetas populares, p. 227), Dimas Batista é filho
de Severina Batista Guedes (1890 – 1956), por sua vez filha de Cecílio Batista de Melo, que é filho de Ubadilna
Camila de São Mateus, irmã de Ugolino Nunes da Costa (1832 – 1895), por seu turno irmão de Nicandro Nunes
da Costa (1829 – 1918) e filho de Agostinho Nunes da Costa (1797 – 1858), este último um dos primeiros
povoadores da Serra do Teixeira/PB e dos primeiros cantadores de que se tem notícia. Por outro lado, como o
noticia o próprio Dimas Batista (Desafio – Dimas e Cabeleira, Apresentação), sua mãe é prima legítima dos
poetas Francisco das Chagas Batista, Pedro das Chagas Batista e Antônio Batista Guedes.
18
Desafio – Dimas e Cabeleira, Apresentação.
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(Nuvem) (Filosofia)
Nos mares, nos rios, nos lagos, nas fontes Percorro os quadrantes do Sul e do Norte
Eu tenho meu berço e na hora em que nasço Buscando a verdade jamais atingida
O vento me leva no brando regaço Percebo que a morte precisa da vida
Acima de vales, colinas e montes Assim como a vida precisa da morte
Colhendo energia, rasgando horizontes No campo da luta, só vence o mais forte
Pintando o arco-íris do prisma solar No entanto, o vencido não pode parar
Mas quando a saudade me obriga a voltar Prossegue na vida dos filhos, no lar
Desfaço-me em chuvas, cobrindo de afagos Produz outras formas de vida na cova
Montanhas e rios e fontes e lagos Conforme o processo que a tudo renova
Colinas e vales e a beira do mar Assim como às ondas na beira do mar

(Espírito) (Pensamento)
No Espaço da vida, tangendo rebanhos Meu raio de ação tem um campo sem fim
De nuvens pesadas, perdidas ao léu Precedo à ciência, que em tudo se expande
Habito a um só tempo a terra e o céu Atinjo, no espaço, um impulso tão grande
E corpos celestes de vários tamanhos Que a luz não se move diante de mim
Converso em silêncio com vultos estranhos Desvendo no escuro segredos e, assim
Vestidos de neve, neblina e luar Supero em ação magnética o radar
Liberto do peso, suspenso no ar Eu sou o Pensamento – meu nome é
vulgar
Volvendo volúvel, divago nas vagas Mas guardo invioláveis segredos avulsos
E ouvindo o murmúrio das coisas presagas Cadeias de ferro não prendem meus
pulsos
Soluço meu canto na beira do mar Mais livres que a brisa na beira do mar

(Mãe) (Filho)
O Centro do Grande Sistema ilumina As flores e frutos no verde da flora
Os corpos celestes com rara beleza O salto das águas polindo o granito
A massa gravita, no círculo presa O dia que nasce e, no palco infinito
Repete-se o quadro da luz vespertina A policromia suave da aurora
Perpassa, no espaço, visão peregrina São quadros que o Artista Divino elabora
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De estrelas cadentes na curva polar Tão belos de a todos e a tudo encantar


Mas tudo se apaga diante do olhar Mas nada consegue jamais superar
Da mãe que divaga saudosa do filho Em graça expressiva, pureza e pujança
Mais belos que os astros, têm muito mais brilho Um gesto, um sorriso, um olhar de
criança
Seus olhos em pranto na beira do mar Que brinca, inocente, na beira do mar

(In)Conclusões

A um só tempo rainha e mendiga: rainha, assenta-se, esfíngica, em pedestal donde


parecem emanar algumas das mais importantes questões sobre cultura; mendiga, é à força do
mirrado amparo que vez por outra algum esboço literário lhe concede, a poesia popular só
pede e exige o lugar e o desamparo que lhe é de direito: desapego por parte daqueles que se
autoproclamam defensores aguerridos mas cujas táticas mostram-se contraproducentes e lugar
na linha de pesquisa de pesquisadores acadêmicos que lhe respeitem os modos próprios. Em
um e noutro caso, requer apenas que se lhes respeite as vestes, os adereços, os trejeitos seus,
que são o que lhe personalizam.
Muito se tem feito, muito ainda está por ser feito, e quiçá seja este, hoje, o papel do
verdadeiro defensor da poesia popular: destroná-la e simultaneamente despi-la dos andrajos
que lhe foram (im)postos, para que, a final, nas palavras de um imenso escritor, possamos
entrevê-la assim como ela é: vestida de sol.
O galope à beira-mar, como se vê, faz parte desta indumentária, quiçá um de seus mais
preciosos detalhes, dadas a sua composição modelar, suas múltiplas facetas, que mais
florescem à medida em que se tem em mira que no mais das vezes é elaborado de improviso,
ao calor de uma peleja entre titãs da poesia.
Será de valia imensurável, cremos que fique minimamente registrada a historicidade
do afazer poético de nosso povo (o Povo do Sertão Profundo, a Elomar) e as características
básicas deste nobilíssimo gênero poético, como forma de, mais que responder, incitar
questões, dúvidas, anseios e novos caminhos para aqueles que se sentirem tocados pela
necessidade de não se deixar perder no limbo tais e tantas expressões de nossa irredenta
cultura.
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Referências

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BATISTA, Francisco das Chagas. Cantadores e poetas populares. 2 ed. João Pessoa: Ed.
Universitária, 1997.
BATISTA, Otacílio. Os Três Irmãos Cantadores (Lourival, Dimas e Otacílio). 1995.
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 34 ed.. Rio de Janeiro: Record, 1998.
MATOS, Cláudia Neiva de. A poesia popular na república das letras: Sílvio Romero
folclorista. Rio de Janeiro: FUNARTE / UFRJ, 1994.
MELO, Alberto da Cunha. A oficina de Almanzor. In: ______. Um certo Jó. Recife: Uzyna
Cultural, 2002.
PIDAL, Ramon Menendez. Poesia Árabe y Poesia Europea. Buenos Aires: Espasa – Calpe
Argentina, 1943.
SLEIMAN, Michel. A poesia árabe-andaluza: Ibn Quzman de Córdova. São Paulo:
Perspectiva; FAPESP, 2000. (Col. Signos; 28).
SOLER, Luis. Origens Árabes no Folclore do Sertão Brasileiro. Florianópolis: Editora da
UFSC, 1995.
TAVARES, Hênio Ú. da Cunha. Teoria literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987.
(Col. Literatura em perspectiva).
ZEGHIDOUR, Slimane. A poesia árabe moderna e o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
(Col. Tudo é História).
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ANÁLISE DO DISCURSO, LITERATURA E MÍDIA

ENTRE O DISCURSO, A HISTÓRIA E A LITERATURA: MARCAS DA


VIOLÊNCIA NA OBRA VIDAS SECAS

Cristiano Cezar Gomes da Silva1


(UNEAL)

Atualmente, no Brasil, a Análise do Discurso (AD) tem sido marcada por uma
pluralidade de temas e enfoques, sendo balizada por uma consistente abordagem teórica e
metodológica acerca dos seus objetos, constituindo um mosaico de olhares multifacetados. Na
perspectiva do estreitamento das fronteiras entre os diversos saberes na contemporaneidade,
este trabalho busca, através do suporte teórico da AD, investigar um momento importante da
História do Brasil, elegendo como objeto de análise uma obra literária. Intentamos a
compreensão de como as condições de produção se descortinam e deixam as suas marcas na
materialidade textual da literatura, constituindo sentidos. A partir do estudo da obra Vidas
secas, publicada originalmente em 1938, e de alguns fragmentos não-ficcionais, de Graciliano
Ramos, escritos na década seguinte, revisitamos a conjuntura social e política brasileira da
década de 1930.
A escritura de Graciliano Ramos é perpassada por representações da violência. Em
vários momentos no decorrer da narrativa de Vidas secas, observamos marcas de tal
abordagem. Destacamos que o conceito de representação, aqui tomado, está intrinsecamente
ligado ao de ideologia cuja composição se dá através do conjunto de representações. Nessa
direção, Stuart Hall assinala:

os sistemas de representação são os sistemas de significado pelos quais nós


representamos o mundo para nós mesmos e os outros. Reconhece que o
conhecimento ideológico resulta de práticas específicas – as práticas
envolvidas na produção do significado. [...] cada prática social é constituída
na interação entre significado e representação. Em outras palavras, não
existe prática social fora da ideologia (HALL, 2003, p. 179).

Assim, em Vidas secas, percebemos uma discursividade emergente na urdidura de sua


escritura, desvelando e instituindo sentidos sobre a violência mediante significados e
representações ideológicas. São formas de dizer o mundo a sua volta nas quais os enunciados,

1
Professor Adjunto na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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ISBN: 978-85-6641465-3
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aqui analisados, materializam os efeitos de sentido que a sua obra nos permite estudar. Existe
uma relação entre a sua discursividade que emerge da materialidade literária e a exterioridade
do texto, elo entre a sua escritura e a conjuntura da época: a violência do período varguista
institui sentidos e constitui a própria discursividade elaborada pelo sujeito-autor.
Na sequência discursiva (SD) seguinte, podemos ver a violência mostrada pela palavra
“pontapés”: (SD 1): “Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e
não dissipavam a imagem do osso” (RAMOS, 2000, p. 55). Aqui encontramos a violência na
materialidade do texto. Os pontapés narrados trazem, metaforicamente, o sentido de violência,
uma atitude de agressão desmotivada. A recorrência à exterioridade elucida parte do
significado que essa narrativa literária, aqui tomada pela sua discursividade, encerra, através
dos pressupostos da Análise do Discurso (AD). Como aponta Eni Orlandi, a AD “reconhece a
impossibilidade de um acesso direto ao sentido e tem como característica questionar a
interpretação considerando-a como objeto de reflexão” (ORLANDI, 2004, p. 21). Desse
modo, buscamos esse acesso ao sentido, aos seus deslizamentos, as suas possibilidades.
A personagem Baleia, uma cachorra, um animal, um bicho, portanto, desprovida da
condição de pensar ou agir, que na narrativa recebe os pontapés sem motivo, é alegoricamente
utilizada pelo sujeito enunciador para, simbolicamente, representar a violência experimentada
por muitos durante o contexto exterior de produção da narrativa – o governo de Getúlio
Vargas. O enunciado “os pontapés estavam previstos” manifesta a condição de submissão e
aceitação à violência do regime, uma condição de impotência e resignação. O período era de
repressão, de violência, vivia-se sob um regime de exceção que se desenhava antes mesmo da
instituição do Estado Novo, em novembro de 1937, conforme ressaltado pela historiadora
Maria Helena Capelato:

As vítimas da repressão não foram poucas. Ela já mostrara suas garras a


partir de 1935 e a Carta de 1937 conferiu-lhe legalidade. Nas masmorras do
Estado Novo muitos permaneceram presos e muitos foram torturados. Os
revolucionários de 1935 foram torturados e receberam penas altas. Muitos
foram espancados, tiveram os corpos queimados. A mulher do líder
comunista Luís Carlos Prestes, Olga Benário, foi entregue aos alemães e
acabou morrendo num campo de concentração (CAPELATO, 2003, p. 131).

A visibilidade da violência figurada pelos pontapés em Vidas Secas remete-nos às


condições de produção da escritura, uma vez que, analogamente, espera-se essa violência de
um regime autoritário, totalitário e de exceção. Nesses governos, a violência é esperada como
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forma de persuasão e de controle social e político, como forma de evidenciar a todos quem
está no poder e no controle político.
O totalitarismo, pelo qual havia simpatia de Getúlio Vargas, mostra-se, além de
violento, um sistema político que se apodera do Estado e estabelece as suas ramificações no
corpo social a fim de exercer o seu controle. A manipulação de informações sobre os
opositores em potencial se torna uma das principais estratégias. A polícia possui um
importante papel de controle e repressão para a manutenção da ordem. Assim, temos “a
importância da polícia como único órgão de poder” (ARENDT, 1989, p. 470), em que a
manutenção da “ordem” justificava os meios utilizados em um regime totalitário. Para Arendt,

Nos primeiros estágios do regime totalitário, porém, a polícia secreta e as


formações de elite do partido ainda desempenham um papel semelhante
àquele que as caracteriza em outras formas de ditadura e nos antigos regimes
de terror; e a excessiva crueldade dos seus métodos não tem paralelos em
toda a história dos países ocidentais modernos. O primeiro estágio, de
desencavar os inimigos secretos e caçar antigos oponentes, geralmente
coincide com a arregimentação de toda a população em organizações de
vanguarda [...] (ARENDT, 1989, p. 472).

Dessa forma, a importância da polícia como único órgão do poder e a violência


exacerbada utilizada pelo regime de Getúlio Vargas eram marcas de práticas dos regimes
totalitários. A conjuntura do período estava envolta em uma onda de violência cometida pelo
Estado que se impunha à sociedade brasileira. O Estado aparelha-se para exercer o controle e
a vigilância dos cidadãos e, em especial, dos opositores do regime.
Não é fortuita a criação de um Departamento estatal que vai se encarregar dessas
questões como foi o caso do DOPS – Departamento da Ordem Política e Social durante a Era
Varguista. Dessa maneira, o discurso presente na obra de Graciliano Ramos faz emergir os
sentidos que o sujeito-autor constrói naquele importante momento histórico do Brasil,
descortinando as contradições do regime instituído por Getúlio Vargas, que, para o historiador
estadunidense Thomas Skidmore, era uma “versão brasileira atenuada do modelo fascista
europeu” (SKIDMORE, 1982, p. 52).
A violência, literariamente descrita e materializada em Vidas Secas, tem uma
constituição forjada a partir da realidade na qual se inserem as personagens. As condições de
produção da escritura mostram-se, no decorrer da narrativa, como vários dizeres que se
repetem e se atualizam na própria urdidura da narrativa. A trama, o enredo e as personagens
constituem um amálgama que contêm em si os enunciados produzidos pelo sujeito-autor no
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momento de seu acontecimento discursivo. As várias repetições, em momentos diversos da


narrativa, remetem-nos à atualização do já-dito no interior da rede de formulações existentes
no próprio texto literário. Dessa maneira, esse já-dito evidencia-se mediante as metáforas
presentes na literatura e que atravessam toda a obra construída pelo sujeito-autor Graciliano
Ramos aqui analisada, como no trecho “às vezes recebiam pontapés sem motivos”, presente
na SD-1.
A seguir, abordamos a naturalização da violência como uma forma de sentido que
desliza no texto, produzindo efeitos de sentidos que se manifestam na materialidade literária:
(SD 2): “Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até
que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta convicção
tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles” (RAMOS, 2000, p.
60).
A naturalização da violência, observada na SD-2, presente na fala da personagem
“menino mais velho”, remete-nos à percepção de que a conjuntura da escritura interfere na
sua produção. Essa conjuntura é constitutiva da trama literária e encerra em si uma
discursividade presente em Vidas Secas. Quando o menino mais velho “achava as pancadas
naturais quando as pessoas grandes se zangavam”, traz um leque de reflexões possíveis a
partir da Análise do Discurso.
Inicialmente as condições de produção da escritura são bastante significativas. O
período varguista foi um período marcado, dentre outros aspectos, pela violência e pela
perseguição política que culminariam com o Estado Novo, em 1937. O menino mais velho
pode ser percebido como uma representação simbólica de uma parte significativa da
população brasileira daquele período, que enxergava a ditadura como esse pai que tinha a
legitimidade de utilizar a violência mediante “as pancadas naturais”.
Um pai materializado nesse chefe de família, de uma grande família como se instituía
o próprio Vargas cuja ideologia era manifesta em seus escritos, a exemplo do trecho abaixo
do Catecismo cívico do Brasil Novo, elaborado pelo governo varguista, mencionado por
Capelato:

Pergunta: O exercício da autoridade suprema por um chefe não contraria a


vontade do povo em uma democracia?
Resposta: Absolutamente, não. O Chefe do Estado em um regime
democrático como o que foi estabelecido no Brasil pela constituição de
novembro [de 1937 – início do Estado Novo], é o expoente do povo, o seu
representante direto [...] Obedecendo, portanto, ao Chefe que o representa, o
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povo, apenas, se conforma com aquilo que ele próprio deseja e é executado
pelo depositário de uma autoridade por ele conferida. (CAPELATO, 2003, p.
124)

O trecho acima enfatiza a obediência do povo em relação ao chefe do Estado que,


como veremos a seguir, é o chefe da “grande família feliz”. Temos, então, uma associação da
nação à família que simbolicamente representa o povo no discurso varguista. Já em Vidas
Secas, temos uma antítese dessa família feliz exaltada nos escritos do governo Vargas. Há
uma relação familiar em que os membros são infelizes, analfabetos, não possuem moradia
nem emprego fixo, são excluídos e marginalizados por completo.
A violência naturalizada na SD-2 simboliza a legitimidade do uso da força para
repreender e reprimir aqueles que haviam deixado zangado “as pessoas grandes”. Em uma
conjuntura política, na qual a sociedade brasileira é comparada e equiparada a uma grande
família cujo grande chefe se personifica no chefe do Estado – Getúlio Vargas – inferimos que
os efeitos de sentido da SD-2 estão associados à violência do regime. Vejamos o que diz
Capelato (2003):

O sentimento de agregação e pertencimento foi muito valorizado através da


associação entre Estado, Pátria, Nação e povo, como bem mostra a lição 3 do
livreto O Brasil é bom: Se todos os brasileiros são irmãos, o Brasil é uma
grande família. Realmente, é uma grande família feliz. Uma família é feliz
quando há paz no lar, Quando os membros não brigam. Quando não reina a
discórdia [...] O chefe do governo é o chefe do Estado, isto é, o chefe da
grande família nacional. O chefe da grande família feliz [...] (CAPELATO,
2003, p. 123-125).

Esse chefe da “grande família nacional” legitima-se no local de violência, objetivando


o bem-estar comum, no qual assume a tutela dos seus filhos que necessitam de correção dos
rumos. Semelhantemente em Vidas Secas, o núcleo das personagens está constituído por uma
família: Fabiano, a esposa – sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo. Nela,
Fabiano é apresentado como o chefe da família e utiliza a violência como forma de “educar”,
impor o seu ponto de vista, a sua forma de ver o mundo. Contrapondo-se a essa realidade
violenta, presente nas condições de produção da sua escritura, o sujeito-autor enuncia, a partir
da literatura, um discurso que vai evidenciar essas práticas, deixando entrever a violência
vivida pela sociedade no período Vargas.
A desconfiança do menino mais velho em relação aos pais e a sua convicção de “que
a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas” (RAMOS, 2000, p.
60), narrada no texto literário, produz efeitos de sentido. A desconfiança do menino mais
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velho ao se aproximar dos pais pode ser vista como um deslizamento de sentido trazido no
enunciado destacado neste parágrafo. Esse deslizamento de que falamos, pode ser atribuído ao
medo de sofrer violência, dos cascudos e puxavantes de orelha que simbolizam a violência
familiar e, também, aquela instituída pelo regime político vigente no período. O sujeito-autor,
desse modo, enuncia o medo em relação ao governo, ao regime que impõe um “respeito” ao
governo, personificado na figura de Getúlio Vargas. A narrativa literária encerra em suas
metáforas, uma discursividade que constrói efeitos de sentido sobre a violência vivida no
período. Veremos a seguir outra recorrência da violência:

(SD 3): Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os


olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e
necessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-
na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saía
latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de
realizar o desejo, aquietava-se (RAMOS, 2000, p. 60, grifo nosso).

Neste recorte, vemos a personagem Baleia dar voz aos oprimidos metaforicamente
abordando o tema da violência. Uma violência que se repete e (re)significa os sentidos das
formulações discursivas produzidas pelo sujeito-autor, ao longo da materialidade textual
literária: uma violência, representada simbolicamente pelos pontapés, definida como fatos
presentes na ditadura varguista.
Essa necessidade da violência, simbolizada pelos pontapés, representa a interpelação
ideológica que transforma o indivíduo Graciliano Ramos em sujeito-autor. Dessa forma, a
SD-3 estabelece um espaço de reflexão e discussão a partir dos sentidos que são produzidos
pela discursividade que lhe constitui, pois surge em um contexto sócio-histórico do regime da
época onde se insere o sujeito-autor Graciliano Ramos.
Em um regime autoritário, a fuga constitui uma das estratégias para não sofrer com a
violência física e moral imposta aos opositores do regime político que está no poder. Dessa
forma, a discursividade do enunciado “só tinha um meio de evitá-los, a fuga”, remete-nos à
construção do sentido político de que a fuga, vista como um afastamento que, em muitos
casos, foi concretizada pelo asilo político, foi uma das estratégias utilizadas durante o regime
varguista. Como assevera o historiador Edgard Carone, “com o fracasso do golpe, muitos
integralistas são presos, mas vários se refugiam nas Embaixadas. As da Itália e de Portugal,
países fascistas, são as mais procuradas” (CARONE, 1976, p. 206). Há uma relação entre a
realidade exterior, a conjuntura do período e a discursividade da literatura de Graciliano.
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Nessa direção, o discurso de Graciliano Ramos pode ser analisado. Pelos seus efeitos
de sentido, tentamos compreender os significados dos sonhos e da narrativa relativos à
cachorra Baleia, uma das principais personagens do seu livro, personificada pela
discursividade pretendida pelo sujeito-autor. Embora a fuga fosse uma estratégia na luta pelo
poder que se desenrolava no Brasil na década de 1930, o discurso presente na narrativa de
Graciliano aponta que muitas vezes a personagem Baleia era apanhada de surpresa. Da
mesma maneira, vemos marcas da violência existente naquele dado contexto histórico
brasileiro. O seu enunciado possui efeitos de sentido que representam literária e
metaforicamente as dificuldades políticas vividas.
A figura de Baleia permite gestos de interpretação pela sua riqueza estética, literária
ou semântica. Sentidos que deslizam e se tornam diferentes do/no enunciado, pois, “todo
enunciado é intrinsecamente suscetível a tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2006, p. 53).
Sentidos deslizados e possíveis de serem observados nos enunciados do sujeito-autor,
inseridos nesse jogo de palavras que carregam em si toda uma discursividade de
contraposição à ordem instituída desde o início da década de 1930.
Dessa forma, entendemos que o sujeito-autor Graciliano Ramos pode ser revisitado em
seus escritos como contraponto ao governo centralizador e populista. Governo esse que visa à
permanência e continuidade mediante a força, a violência do Estado que, simbolicamente, é
representado nos enunciados de Graciliano, por exemplo, quando a cachorra Baleia sentia
“uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato,
com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se” (RAMOS, 2000, p.
60). Percebemos a estratégia da fuga emergindo da materialidade textual da literatura no
momento em que o sujeito-autor dá voz, a partir da sua criação narrativa, à personagem Baleia
que se mantém desejosa de morder, representando a resistência, a revolta dos oprimidos.
Todavia, outros sentidos aparecem na escritura de Graciliano Ramos. A
impossibilidade de enfrentamento, simbolizada pela incapacidade de poder realizar o desejo
de morder por parte da cachorra Baleia, mostra a resignação pela qual é tomada parte da
oposição ao regime autoritário. A fuga, o desejo de enfrentamento e a quietude dos opositores
do regime metaforizam, nas tramas do texto, a realidade de repressão vivida no Brasil,
naquele período histórico denominado Era Vargas. O controle dos opositores deu-se
principalmente porque “houve repressão forte – prisões, tortura, exílios, censura –, que atingiu
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tanto os considerados subversivos (comunistas, socialistas, anarquistas) como os opositores


liberais” (CAPELATO, 2003, p. 131). A imprensa, também, foi alvo da repressão em que,
continua a historiadora, “[...] jornais foram controlados e O Estado de São Paulo acabou
sendo expropriado pelo governo” (2003, p. 131), evidenciando, dessa forma, algumas das
ações autoritárias do governo Vargas. Graciliano Ramos vê, portanto, na literatura um meio
de apontar as repressões vivenciadas na época.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do nacional-
estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. v. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 107-143.
CARONE, Edgard. O Estado-Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1976.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik.
Tradução Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília:
Representação da UENSCO no Brasil, 2003.
ORLANDI, Eni P. Cidade dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2004.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Orlandi. 4. ed.
Campinas- SP: Pontes, 2006.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Tancredo (1930-1964). 7. ed. Tradução
coordenada por Ismênia Tunes Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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Comunicações
Coordenadas
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DISCURSOS PÓS-MODERNOS E RELAÇÕES DE IDENTIDADE

MORFOLOGIA DO CONTO MODERNO: ENTRE AS VEREDAS NARRATIVAS DE


LYGIA FAGUNDES TELLES E EDGAR ALAN POE

Gladson Fabiano de Andrade Sousa1


(UFMA)
Naiara Sales Araujo Santos2
(UFMA)

O presente trabalho tem por finalidade uma análise comparada dos contos O barril de
montilado de Edgar Allan Poe, publicado em 1846 na Godey's Lady's Book; e Venha ver o
pôr-do-sol de Lygia Fagundes Telles, publicado pela primeira vez em Histórias do
Desencontro, de 1965, e, cinco anos depois, reunido no aclamado Antes do Baile Verde.
Notamos que os esforços dos teóricos, desde a transição do conto folclórico para o conto
enquanto criação literária, foram no propósito de descrever a natureza do que torna conto um
conto, ou seja, a busca da essência a qual distingue o conto dos gêneros, como a novela ou
romance, por exemplo. Registra-se a “criação do conto e sua transmissão oral. Depois, seu
registro. E posteriormente, a criação por escrito” (GOTLIB, 2006, p.13). Neste ponto temos
o conto enquanto criação, não de uma coletividade, mas de um escritor consciente de recursos
criativos. No confronto dos contos aqui analisados, buscamos os caminhos narrativos que
traçam cada autor para se chegar ao que o próprio Poe definiu, no século XIX, como sendo o
principal objetivo do contista que é o efeito de totalidade ou efeito único. Segundo Poe, um
escritor hábil procede da seguinte forma:

Se foi sábio, não afeiçoou os seus pensamentos para acomodar os seus


incidentes, mas, tendo concebido com zelo deliberado um certo efeito único
ou singular para manifestá-lo, ele inventará incidentes tais e combinará
eventos tais que melhor o ajudem a estabelecer esse efeito preconcebido.
(POE, 1999, p.409)

Não deve haver no conto, pelo objetivo de causar um efeito emocional no leitor ao
final da leitura, e também pela própria natureza breve do conto, nenhuma palavra cuja

1
Graduando do curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão - gladdking@hotmail.com
2
Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres. Atualmente é professora
titular da Universidade Federal do Maranhão onde é professora de Língua e Literatura Inglesa.
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tendência, direta ou indireta, não se ponha em função do desígnio preestabelecido. Na história


dos estudos críticos sobre o gênero conto, Poe goza de prestígio como o inventor do conto
moderno, sendo, a partir de então, feita uma tradição do conto a Poe, com seu estilo de
começo, meio e fim bem definidos, progressivos e intensos.
Lygia Fagundes Telles, paulista, contista já consagrada apresenta-se não apenas como
herdeira de tal estilo, mas renovadora, adicionando elementos pessoais a tal estrutura. Como
pressupostos, além das observações de Poe a respeito da estrutura do conto, apresentamos o
argentino Ricardo Piglia, para o qual na arte do conto apresenta-se duas histórias paralelas,
uma em superfície, outra em profundidade.

O conto conta sempre duas histórias, uma contata em primeiro plano


(história aparente), ocultando em seu interior, a segunda história (história
cifrada). A história visível esconde uma história secreta, narrada de forma
elíptica e fragmentária. O "efeito surpresa" se produz quando o final da
história secreta aparece na superfície. (PIGLIA, 2002, p.59)

Evidenciamos que Piglia não contradiz Poe, mas o coloca em nova perspectiva; o
efeito surpresa nada mais é do que o efeito único previamente premeditado.
Esquematicamente podemos visualizar esta dinâmica narrativa no seguinte gráfico 1:

A linha contínua refere-se à história que é contada em primeiro plano, ou seja, a


história que o leitor capta de imediato na primeira leitura. A linha segmentada refere-se a
história em segundo plano. Os ápices são os pontos de cruzamento entre as duas histórias,
pois, para Piglia, há elementos que possuem dupla função no conto, tendo, assim, uma lógica
própria em cada plano narrativo. A análise destes elementos nos contos aqui analisados é de
fulcral relevância, pois neles que encontramos as características técnicas de cada autor, uma
vez que cada um articula os dois planos narrativas de formas diferentes, e, também porque
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nesses elementos de cruzamento revelam-se a compreensão do enredo dos mesmos. Note, por
fim, que a linha segmentada ao final ascende: é a representação gráfica para o "efeito
surpresa" que se produz quando o final da história secreta aparece de forma intensa na
superfície da primeira.
A aproximação dos contos não é apenas estrutural mas também temática, podemos
resumir o enredo dos contos coincidentemente como: uma personagem que deseja vingança
(Montresor e Ricardo), mas sem que o outro (Fortunato e Raquel) saiba de sua intenção a
princípio, assim, guia a vítima para a sua última morada. Confessa Montresor que deseja
vingança por ter sido ofendido pelo amigo Fortunato; Ricardo vinga-se da ex-namorada por
trocá-lo por um ricaço.
O procedimento metodológico aqui apresentado, visto a intertextualidade presente dos
contos, é apresentar tais intertextos intercalados a fim de confrontar suas características
temáticas e técnicas, conforme a peculiaridades de cada autor.
O leitor familiarizado com os contos de Poe conhece bem a afabilidade, humor, e por
que não, o carisma de seus narradores personagens. São personagens que ganham a confiança
do leitor para o acontecimento insólito que está prestes a narrar. Recorrentes casos como o
narrador de O gato preto: “Não espero nem peço que se dê crédito à história sumariamente
extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar.” (POE, 2002, p. 39). Não
pede confiança, mas em tom como quem confessa para um amigo suas profundas angústias (e
neuroses) é sincero: “Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os
meus próprios sentidos se negam a aceitar.” (Idem). Ou ainda o assassino que se esconde no
canto escuro do quarto enquanto observa sua vítima em O coração denunciador; o conto é
uma espécie de monólogo do personagem-narrador, obcecado pelo olhar de abutre de sua
vítima, um velho, apavorado na penumbra do quarto. O velho só se manifesta no conto
através do “olho de abutre” e o som do seu coração que bate – ao menos o assassino crê que
seja o coração do velho – (CALVINO, 2004, p. 279). Poe, inaugura um tipo de fantástico, que
será dominante na segunda metade do século: o fantástico obtido com os mínimos meios, todo
mental, psicológico; método o qual Lygia Fagundes Telles é uma exemplar representante: “É
verdade – nervoso -, eu estava assustadoramente nervoso e ainda estou; mas por que você
diria que estou louco? A doença tinha aguçado os meus sentidos...” (POE, 2002, p.280)
Narrador tão extremamente lúcido quanto perturbado pelo “olho de abutre” de sua vítima que
repousa em seu leito. “Como posso estar louco? Ouça com atenção! E veja com que sanidade,
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com que calma sou capaz de contar a história.” (Idem). Assim é a personagem Montresor,
assassino (ou justiceiro?) do conto O barril de Amontillado, mais um exemplo de narrador
que se confessa, lúcido, e visivelmente perturbado por pela ideia fixa da vingança.

Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou


insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza do meu
caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido alguma
ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente
assentado, e a própria decisão com que eu assim decidira, afastava toda e
qualquer ideia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune.
Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se
vinga. Permanece, igualmente, sem reparação, quando o vingador deixa de
fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que é ele quem se vinga.
(POE, 2002, p.29. Grifo nosso)

O leitor - ou algum interlocutor - é invocado no discurso pelo narrador, que declara ter
certa intimidade para com o narrador-personagem. “Pois, conheceis tão bem a natureza do
meu caráter”. O “castigar ficando impune” é a nota do crime perfeito, insuspeito. Por fim,
deveria proceder da forma que só no momento derradeiro a vítima ficasse consciente que está
sendo punido. Aqui encontra-se, de forma condessado, o enredo que o conto irá desenvolver.
Este conto de Poe configura uma narrativa onde encontramos, no entendimento geral
deste, uma característica que é frequente em Lygia Fagundes Telles, que é o desfecho que não
conclui; não fecha a história. No caso, a discussão poder-se-ia nutrir da questão da
legitimação da “vingança” de Montresor, pois jamais é deixado revelar a natureza das injúrias
que insultara tanto o narrador. Vejamos agora, como Lygia, nas palavras de Poe, adquire o
controle da alma do leitor nas primeiras linhas de seu conto.

“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. Á medida que avançava, as casas
iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos
baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato
rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a
única nota viva na quietude da tarde. (TELLES, 2009, p.135)

Em primeira leitura podemos passar de forma despercebida pela riqueza e densidade


apresentadas no início do conto Venha ver o pôr-do-sol, porém atentemos para os detalhes
minuciosos que já antecede a ambientação (física e psicológica) de todo o conto. Os contos
lygianos, em sua maioria, não são relatos de um passado, mas sim marcados por um tempo
presente, contos que estão acontecendo, o leitor vivencia o tempo real narrado. As
personagens e o enredo vão se apresentando e se construindo juntos. Assim se explica a
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impressão que o conto começa de algum ponto do meio, pois o leitor pega o bonde andando.
Não é construindo todo um cenário para só depois o drama (ação) realizar-se.
“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira.” Um pronome pessoal de antemão é
apresentado, como se já tivera sido citado um nome de quem seria “ela”. Ela que sobe “sem
pressa” a “tortuosa ladeira”. Já sabemos que ela que sobe, mas reluta em ir para onde quer
que seja. Não anseia por chegar. Enfim, o caminho não é um dos mais convidativos. Mas para
onde irá esse caminho tortuoso? O leitor atento se perguntará. Para um lugar onde tem-se “rua
sem calçamento” e “mato rasteiro”, um lugar onde a única nota viva seria das poucas crianças
que ali brincam. Observemos que Lygia minunciosamente constrói o clima do conto com
pinceladas sutis, construindo uma espécie de simbologia que anuncia de forma sugestiva o
que está prestes a se contar. Descobrimos a seguir que a personagem está indo encontrar o ex-
namorado no cemitério, mas o clima soturno já estava presente desde o primeiro parágrafo.
Podemos dizer que rua sem calçamento e mato rasteiro são elementos do campo semântico de
cemitério, e por antítese a morte, temos a “cantiga infantil que era uma nota viva na tarde”
Notemos, como, em ambos, bem como aludiu Poe, o senário é construído com rigidez
matemática. “Na composição toda, não deve estar escrita nenhuma palavra cuja tendência,
direta ou indireta, não se ponha em função de um desígnio preestabelecido”. (POE, 1999,
p.409). Porém, devemos atentar não somente as semelhanças, mas sim o que torna cada autor
peculiar. Poe faz o leitor consciente de sua trama, o narrador declara seu procedimento de
vingança; Lygia, apenas incita, tanto através de recursos simbólicos quanto de insinuações e
ambiguidades. Como apontou a professora Regina Dalcastagnè em seu ensaio Renovação e
Permanência: o conto brasileiro da última década:

Há duas vertentes principais no conto moderno, aquela inaugurada por Edgar


Allan Poe (1809-49), que dizia que a literatura causava a excitação da alma,
cabendo ao escritor a dosagem e manipulação dos sentimentos que pretende
evocar no leitor, o que implica um certo andamento e suspense até o clímax
final; e a de Anton Tchekhov (1860-1904), que afirmava poder escrever
sobre a borra do café e impressionar o leitor. Se o primeiro lançava mão do
estranho, e até do sobrenatural, para garantir os efeitos pretendidos,
Tchekhov preferia se deter na lenta construção de determinado clima,
frustando muitas vezes a expectativa do leitor, principalmente no final, onde
nada de muito extraordinário costuma acontecer — triste reflexo da vida.
(DALCASTAGNÈ, 2001, p.7)

Percebe-se que o conto lygiano expressa tanto características do conto na tradição de


Poe, pela manipulação dos elementos em direção ao final (efeito único) e surpreendente;
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quando de Tchekhov pela criação de uma atmosfera que engana o leitor onde pensa-se que
nada demais está a acontecer.
No conto clássico à Poe, nos termos de Piglia (2004), contava-se duas histórias de
forma declarada, contava-se uma, anunciando o que estava por trás, no conto contemporâneo
as duas histórias fundem-se, ao exemplo de Katherine Mansfield em The Garden Party, onde,
o clima de céu azul ideal uma festa no jardim sobrepõe tacitamente o velório logo do outro
lado da rua. Os dois planos que se imiscuem exaltam temas duais como morte-vida,
sensibilidade-insensibilidade. Como não aludir à personagem Tatisa de Antes do Baile Verde
que se prepara para o carnaval enquanto o pai está moribundo no quarto ao lado? Lygia
constrói sua narrativa concentrando discursos velados que se misturam na forma de
desencontro. Desenvolveremos tal princípio a seguir ao analisarmos a relação dialógica dos
amantes em desencontro na autora.
Já aludimos a respeito da preferência de Poe por narradores-personagens; vamos
analisar as propriedades da escolha do foco narrativo em terceira pessoa em Venha ver o pôr-
do-sol. Tal foco instala uma relação diferente da relação em primeira pessoa entre o leitor e o
narrador. Lembrando que as teorias de Poe, inaugura a presença do leitor na narrativa, pois o
efeito único é o efeito emocional que a narrativa causa no leitor. Narrar em terceira pessoa
não apresenta mais tanto o contrato de confiança naquilo que é dito, como acontece em
primeira pessoa; mas sim um olhar externo, em câmera, do que está acontecendo no exato
momento. Porém, em Lygia, este “olhar em câmera” é apenas aparentemente imparcial.

A câmera não é neutra. No cinema não há um registro sem controle, mas,


pelo contrário, existe alguém por trás dela que seleciona e combina, pela
montagem, as imagens a mostrar [...] O que pode acontecer é que se queira
dá a impressão de neutralidade [...] a exatidão não apaga, embora possa
disfarçar, a subjetividade. (LEITE,1993, p.63)

A narrativa flutua para uma espécie de discurso indireto livre onde as descrições do
narrador esconde pensamentos e intenções, tão propenso ao fluxo de consciência, o narrador
funde-se à personagem, porém não é dado ao leitor conhecer o que a personagem pensa. Esta
dinâmica narrador-personagem-leitor confere um visualismo ambíguo ao conto.

– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei,
se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos.
Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em
redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se
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aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem
como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem
deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –
Você fez bem em vir. (TELLES, 2009, p.139.Grifos nosso)

O narrador descreve a mudança de aparência de Ricardo. Notamos a disparidade do


que a personagem fala, e algo que passou por seu pensamento, que no momento ainda não
sabemos, no caso, a premeditação do assassinato da ex-amante. Instaura-se um clima de
insegurança, não conseguimos ver com clareza no sutil jogo narrativo de mostrar-esconder, ou
apenas sugerir. Histórias como esta, em que o leitor não é consciente, Piglia (2004) chamou
de história cifrada. Não se processa o contato direto do leitor com a interioridade da
personagem, como acontece comumente em Clarice Lispector, ou mesmo no presente Barril
de Amontillado. Mas como o conto de Lygia alcança o patamar de narrativa psicológica?
Neste ponto entra o virtuosismo técnico da autora: o seu universo narrativo simbólico, que faz
o contato entre o mundo exterior e o mundo interior. Esses elementos servem para o que
Piglia declarou como questão central da técnica do gênero:

Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos
de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em
duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto
têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das
duas histórias. Os pontos de cruzamento são a base da construção. Conta-se
uma história enquanto se está contanto outra, e a maneira como as duas se
articulam encerra os problemas técnicos do gênero. (PIGLIA, 1992, p.60)

São objetos-símbolos, gestos-símbolos, ou até, ações-símbolos, do universo


concêntrico – apresentam início meio e fim ligados – do conto em Lygia e Poe, que constroem
simultaneamente suas lógicas narrativas.
Sumariamente vemos como se dão o tempo e o espaço nos contos: em ambos o tempo
transcorre cronologicamente, não há retardo com ponderações ou flashbacks nem avanços em
flashforward, assim o ritmo dos contos é fluido, caminham para algum lugar inexorável. Os
leitores, juntamente às vítimas, são guiados para algum lugar, e neste caminho a apreensão e
expectativa são crescentes. Ritmo de suspense muito ao gosto das histórias policiais, que tem
Poe como seu criador, - The Murders in the Rue Morgue (1941) por exemplo, onde o leitor
caminha freneticamente para um final intenso e surpreendente, onde o clímax coincide com o
desfecho. A respeito do espaço notemos que em ambos temos unicidade de lugar, sobre esta
concentração Poe, em seu ensaio Filosofia de Composição, declara:
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“Sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é


absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de
uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para conservar
concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera
unidade de lugar. (POE, 1999, p.918)

Tais unidades de tempo e espaço contribuem para que os contos caminhem em direção
ao efeito único. Os elementos manipulados (tempo, espaço, foco narrativo, descrições,
sucessão de incidentes) circunscritos nessa “moldura” espaço-temporal são meios que
potencializam o efeito e tensões das narrativas.
Uma vez situados o tempo, o espaço e de que maneira se dão os focos narrativos nos
contos, vamos trazer à luz o estatuto simbólico, pertinente a responder a questão levantada por
Vera Maria Tietzmann Silva: “Mas como esse efeito (efeito único), que também poderíamos
chamar de atmosfera emocional, é construído com palavras num dado conto? (SILVA, 2005,
p.177) Na perspectiva aqui apresentada, os elementos simbólicos caracterizam os pontos de
cruzamento entre a história aparente e a história cifrada – os ápices do gráfico inicialmente
aprestado (Gráfico 1). A questão do intercruzamento das histórias, que segundo o teórico
argentino, encerra a problema técnico do gênero (PIGLIA, 1992, p.60), nos dados contos,
encontram-se nesses vértices, onde a história que o leitor somente irá ficar ciente no final do
conto no “efeito surpresa”. Vemos essas pistas narrativas da história submersa em história em
primeiro plano.
Analisando o primeiro parágrafo de cada conto encontramos consubstanciado o plot
(enredo) de cada conto. Porém antes mesmo destes temos os títulos que simbolicamente já
representam uma forma de morte. Amontillado é um vinho espanhol produzido desde o século
XVIII, na região de Andaluzia (Espanha). A tradição faz inúmeras referências ao vinho
enquanto uma bebida divina; para o cristianismo simboliza o sangue de Cristo; para os
gregos, substituía o sangue de Dionísio, porém ambos como valor de imortalidade. No conto,
a bebida é apresentada de forma jocosa, já que está ligado diretamente à morte e não, e a
imortalidade, de Fortunato, que é encontrado ébrio em meio a rua numa noite de carnaval, e
ainda consome mais da bebida nas catacumbas induzido por Montresor. O vinho também
aparece com representante da vingança, “causador de embriaguez [...] é símbolo da loucura
que Deus provocou nos homens e nas nações infiéis e rebeldes para melhor castiga-las”
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p.957). Além de constituir a passagem de um estado
de lucidez para a inconsciência, da luz a escuridão da razão, como um pôr-do-sol.
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Vemos que Lygia optara, fortuitamente, para título de seu conto por um convite ao
pôr-do-sol, convite que exprime fim de um clico e início de outro. O crepúsculo é uma
imagem espaço-temporal: o instante suspenso. Momento de suspensão que é morte de um e
anúncio do nascimento de um outro: um novo espaço e um novo tempo sucederão aos antigos,
Para além da noite esperam-se novas auroras.

O crepúsculo reverte-se, também para si mesmo, da beleza nostálgica de um


declínio e do passado, beleza essa que ele simboliza. É a imagem e a hora da
saudade e da melancolia. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p.300).

Aludimos então, aos diálogos nostálgicos dos ex-namorados, onde surge um Ricardo
que tenta dissimular suas mágoas. O encontro representa a morte de Raquel e a morte das
mágoas de Ricardo; a hora da saudade onde as lembranças são passadas a limpo para nunca
mais, então, o amante vingado, em novo espaço-tempo, acende “...um cigarro e foi descendo a
ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda” (TELLES, 2009, p.144). Expressa
tranquilidade e renascimento.
Outro elemento que podemos encontrar em ambos os contos é a representatividade dos
sorrisos, que jamais são sinceros. Os sorrisos servem tão somente para esconder as
verdadeiras intenções de vingança.

Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a
Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a
rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da
ideia da sua imolação. (POE, 2002, p.29)

O narrador em Poe, de forma direta, declara que o riso é falso, o que nos faz inferir
que o narrador é cumplice ciente do desenrolar da trama. Em Lygia, Ricardo ri “afetando
encabulamento como um menino pilhado em falta." (TELLES, 2009, p.136.) A afetação da
personagem tem a intenção de dissimular a premeditação do crime, tanto para Raquel quanto
para o leitor.
Comparemos outros dois símbolos de morte que aparecem nos contos: a colher de
pedreiro e o cipreste. Fortunato questiona, de forma desafiadora, Montresor sobre o seu
pertencimento à Maçonaria, então ele responde sarcasticamente mostrando-lhe uma colher de
pedreiro. Fortunato entende como um ato jocoso, e o leitor também, porém no final quando a
colher é usada para emparedar a vítima, vemos que representa um elemento da história
cifrada. Vemos aqui a possibilidade de encontrar o motivo pelo qual Montresor jura vingança;
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a injuria que a Fortunato cometera talvez tenha sido as provocações pelo amigo não fazer
parte da Maçonaria, ou ainda, pela vaidade de sempre se dizer o melhor conhecedor de
vinhos. Em contrapartida, podemos atestar também as invejas de Montresor para com a
vítima: “Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos.
Você é um homem cuja falta se sentiria” (POE, 2002, p.30). Esse consiste o mistério do
conto, não é possível afirmar os reais motivos dos atos de Montresor e nem se realmente é
uma vingança. Vejamos narrador Lygia:

- Eu gostei de você, Ricardo.


- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
(TELLES, 2009, P. 140.Grifo nosso)

É recorrente o tema do desencontro entre os seres na autora, seus contos desenvolvem


indivíduos em diálogos incomunicantes, falas no presente que se referem a um passado, ou,
que, simplesmente não se dirigem ao interlocutor, mas a si mesmos, em um monólogo que
revisita relações falidas, que se sustentam em um limite prestes a se esvair. Há um senso de
pura imanência. Não há saídas nem para o círculo do sujeito fechado em si mesmo nem para o
inferno das relações entre os indivíduos. Tudo tem peso, já caiu ou está preste a cair. (BOSI,
2013, p.113). São Os objetos de Miguel e Lorena, peças reminiscentes de viagens que
perderam o sentido de ser, como o próprio casamento sem amor. O limite da tensão velada
está ao cabo do alusivo suicido com a saída do amante para comprar biscoito portando uma
adaga. A sutileza simbólica no fragmento anterior está no fato de Raquel estremecer logo
depois que um pássaro quebra um galho de cipreste, está árvore

“Para os gregos e romanos, estava em comunicação com as divindades do


inferno. É a árvore das regiões subterrâneas. E está ligada por isso mesmo ao
culto de Plutão, deus dos infernos. Orna, também, os cemitérios.”
(CHEVALIER, & GHEERBRANT, 2005, p. 236)

Raquel sente a nota de agouro, o frio psicanalítico da morte iminente, pois o cipreste,
não escolhido pela autora por acaso, é o símbolo da morte. Outro ornamento comum em
cemitérios seria as figuras de anjos, posto a representatividade destes como mensageiros de
Deus. Raquel termina “atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça
decepada” (TELLES. 2009, p.138). Reside neste ponto a simbologia da interrupção do mundo
divino com o mundo humano; os anjos, em sua qualidade de mensageiros, são sempre
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portadores de uma boa notícia para alma. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p. 61), mas
este, de cabeça decepada, não transmite boas-novas.
Como em Lygia as duas histórias (cifrada e aparente) são contadas como se fossem
uma só, vemos um discurso que emerge sobre outro. O narrador dá pistas da história cifrada:
outro ponto de cruzamento destas são as rugas e alguns gestos das personagens. Ricardo que é
descrito inicialmente como “jeito jovial de adolescente”, a cada momento que é provocado
pela ex-namorada, muda de expressão e surgem as rugas, enquanto ela tem gestos de distração
e de pouca importância para com ele, este a todo momento dá pistas de suas reais intenções
através desses símbolos - desatenciosa baforeja fumaça de seu cigarro na cara de Ricardo que
fala que ainda lhe ama, ao passo que no final, vingado, ele quem fuma intrépido saindo do
cemitério. Raquel esnoba-o declarando que o atual e rico namorado é riquíssimo e lhe levará
par ao Oriente, então

Ele apanhou uma pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas


voltou a se estender em redor do seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram. (TELLES, 2009, p.139)

Como passar despercebido com a destinação do pedregulho apanhado firmemente por


Ricardo?! Este, após Raquel desdenhar do amor eterno declarado em uma lápide, atira o
pedregulho num canteiro ressequido em plena expressão de raiva.
O último símbolo, ressaltado neste ensaio encontra-se profundamente ligado aos dois
contos aqui tratados. Não seria estranho a recorrência de escadas dando acesso às respectivas
catacumbas em Venha ver o pôr-do-sol e em o Barril de amontillado, pois são lugares
subterrâneos, contudo, flagramos as seguintes descrições dessas escadas; em Lygia “Na
parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de
pedra, descendo em caracol para a catacumba. (TELLES,2009, p.140), em Poe: “Desci uma
grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia.” (POE, 2002,
p.31). Ambas as escadas são em formato em caracol. Nos diferentes aspectos simbólicos, a
escada está ligada ao problema das relações entro o céu e a terra, entre dois planos.
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p. 378). A recorrência deste elemento na obra de
Lygia, já havia sido apontado pela estudiosa Vera Maria Tietzmann Silva:

Os degraus da escada, que sempre supõem um movimento, seja ascendente


ou descendente, têm o valor simbólico da gradação e da passagem de um
nível existencial a outro. A passagem implica ruptura. Subir uma escada é
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afastar-se do plano da realidade. [...] e ganhar um espaço privilegiado onde


coisas extraordinárias podem ocorrer. (SILVA, 2005, p. 180)

Vemos, então, que quando cada vítima nos respectivos contos desce suas escadas em
caracóis já estão simbolicamente assinando suas sentenças, estão passando de um plano
terreno para um espiritual. Nota-se que a relação dicotômica morte-vida é enfaticamente
revisitado, tanto no próprio tema dos contos, que acaba pela morte de Fortunato e Raquel,
quanto nos elementos simbólicos envolvidos no mesmo campo semântico como cipreste,
catacumba, cemitério, vinho e pôr-do-sol.
Evidenciamos deste modo, como cada autor articula os pontos de cruzamento entre as
histórias aparentes e cifradas. Ambos chegam ao efeito único, Poe, com sua densidade e
tensão psicológica, joga o leitor nas zonas abissais das neuroses de seus personagens. O leitor
é cúmplice das duas histórias que se articulam. Lygia realiza essa dinâmica de cruzamento,
chegando a tal efeito único com seu caminhar felino; os pontos de cruzamentos aparecem
como sugestões, como ambiguidades. Sua narrativa é fluida, levíssima, onde o silêncio dos
gestos e dos objetos pesa mais do que o dito. O leitor, em Lygia, não é cúmplice, mas outra
vítima que, como Raquel, é enganado e aprisionado surpreendentemente no mausoléu da
narrativa.

Referências

CALVINO, Italo. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das letras,
2004.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19ª Edição. Rio de
Janeiro: Ed. José. Olympio, 2005.
CORTAZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1974
DALCASTAGNÈ, Regina. Renovação e permanência: o conto brasileiro da última década.
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea,2001. Disponível em:
http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846121.pdf. Acesso em: 01/11/14.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 6ª Edição. São Paulo: ática, 1993.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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PIGLIA, Ricardo, “Teses sobre o conto”, in: Formas Breves, São Paulo: Ed. Cia das Letras,
2002.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. São Paulo: Globo, 1999.
______. Histórias Extraordinárias. Ed. Nova Fronteira. 2002.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. Transitando nos limites: uma leitura de As Formigas, de
Lygia Fagundes Telles, 2005. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/organon/article/ view/30067.
Acesso em: 04/11/14.
TELLES, Lygia Fagundes, Antes do baile verde, Rio de Janeiro, Ed. Cia das Letras, 2009.
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O DISCURSO ALÉM-MAR: EM BUSCA DA IDENTIDADE EM O CONTO DA ILHA


DESCONHECIDA

Luan Passos Cardoso 


UFMA

Introdução

O ser humano, por natureza, é um ser curioso, que sempre demonstrou esta
característica desde a sua gênese quando buscou não apenas adaptar-se as situações mais
adversas possíveis, mas também fazer dessas adversidades instrumentos que pudessem levá-lo
a dar um salto evolutivo.
Com o passar do tempo alguns seres humanos permanecem com essa instigante sede
pelo desconhecido, enquanto outros foram levados a ficarem estagnados de forma a não
conseguirem se perceber diante da sociedade. É evidente que essa estagnação foi
incrementada por diversos elementos de repressões sociais que foram engendrados durante a
construção da sociedade até os dias atuais.
Por cima dessa estagnação intelectual da humanidade que se tece a linha crítica da
José Saramago quando escreve O Conto da Ilha Desconhecida. Pois, ao apresentar um
homem que exige que o rei o receba pessoalmente para pedir-lhe um barco, porque acreditava
que ainda faltava um a ilha a ser descoberta, mesmo sendo oficializado que todas as ilhas já
foram descobertas, o autor expõe a necessidade da humanidade em indagar-se, mesmo quando
essa indagação se contrapõe ao “discurso oficial”.
São esses elementos supracitados que servem de alicerce para discutir, neste trabalho,
o papel do sujeito desse “homem que queria um barco” na sociedade e os discursos que dão
forma a obra. Como o discurso e o poder podem levar uma sociedade, aparentemente
esclarecida, se comportar de acordo com os mandos e desmandos de um comando central.
E como guias dessa navegação pelo desconhecido as figuras de Zygmunt Bauman,
Michel Pêcheux e Eni P. Orlandi se fazem importantes, pois serão os responsáveis por
explanarem teoricamente o estudo sobre a Identidade e a Análise do Discurso e como são


Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão e integrante do Grupo de Estudos Ficção
Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital – FICÇA.
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formadas as ideias de sujeito, assujeitamento e a identidade dos personagens do conto e os


seus discursos.
Análise do Discurso

A Análise do Discurso surge como uma prática que faz parte dos pressupostos
científicos da Linguística e da Comunicação. Pois observa as manifestações, individuais e de
grupos, pontuando como a formação dos falares, dos textos, das imagens, são meras
representações discursivas que necessitam não apenas de destaques, mas também de estudos
aprofundados.
Nos anos de 1960, as pesquisas e os estudos sobre a linguagem, e contexto em que
estavam inseridas, se desenvolvem de maneira única e bem precisa quando buscavam
identificar, no texto, o papel da linguagem estruturada na relação de poder existente na
sociedade.
Essa situação abre margem para que, na França, Michel Pêcheux e Jean Dubois
desenvolvam uma abordagem da análise do discurso que se alicerça nos estudos do linguista
Zellig Harris e na reelaboração da teoria marxista sobre a ideologia, feita por Louis Althusser.
Assim nasce a Análise do Discurso de linha Francesa.
O que se observa nesse momento na França, com a análise do discurso, é a união de
duas concepções científicas que possuem características distintas, A Linguística e as Ciências
Sociais, mas que não podem de estudas de maneira separadas quando se trata da análise do
discurso, como destaca ORLANDI (1999, p. 53):

É justamente a natureza e o estatuto dessa relação que dão singularidade à


forma de conhecimento que é a Análise de Discurso. Ela se constitui na
relação da Linguística com as Ciências Sociais não enquanto
complementação de uma pela outra, ou melhor, como se ela pudesse superar
o limite (a falta) necessário que define a ordem de cada uma dessas
disciplinas. Como sabemos, a Linguística, para se constituir, exclui o sujeito
e a situação (o que chamamos exterioridade), e as Ciências Sociais não
tratam da linguagem em sua ordem própria, de autonomia, como sistema
significante, mas a atravessam em busca de sentidos de que ela seria mera
portadora, seja enquanto instrumento de comunicação ou de informação. Em
suma, a Linguística exclui a exterioridade, e as Ciências Sociais tratam a
linguagem como se ela fosse transparente. A Análise de Discurso, por seu
lado, ao levar em conta tanto a ordem própria da linguagem como o sujeito e
a situação, não vai simplesmente juntar o que está necessariamente separado
nessas diferentes ordens de conhecimento. Ao contrário, ela vai trabalhar
essa separação necessária, isto é, ela vai estabelecer sua prática na relação de
contradição entre esses diferentes saberes. Desse modo, ela não é apenas
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aplicação da Linguística sobre as Ciências Sociais ou vice-versa. A Análise


de Discurso produz realmente outra forma de conhecimento, com seu objeto
próprio, que é o discurso. Este, por sua vez, se apresenta como o lugar
específico em que podemos observar a relação entre linguagem e ideologia.

Desta forma observa-se que a AD é uma ciência que se constitui em seus estudos a
interdisciplinaridade, pois trabalha conjuntamente com a participação de várias de várias áreas
das ciências humanas, e que no trecho supracitado se dar destaque a Linguística e as Ciências
Sociais.
A Análise do Discurso, desde o seu surgimento, vem colaborando muito para a
compreensão mais profundas dos textos principalmente por trabalhá-los evidenciando o (s)
discurso (s). Pois, leva em consideração os aspectos constituintes dos textos pontuando a
maneira como foram construídos e a forma como são apresentados, a ideologia, o social, a
história e o discurso coletivo e/ou individual. Conquanto, a figura que permeia o discurso
coletivo e o discurso individual é o sujeito. O sujeito discursivo, que pode ser caracterizado de
forma livre e/ou submissa, que no caso da submissão é caracterizado como assujeitado.

Sujeito e assujeitamento

A discussão sobre a figura do sujeito é permeada por ideias bem filosóficas e também
teóricas, por isso, da amplitude de se tratar de tal assunto. Entretanto, a amplitude sobre a
posição do sujeito na produção de sentido, quando discute a si próprio, amplifica-se ainda
mais no momento em que esbarra na Análise do Discurso.
Segundo o Mini Dicionário Aurélio o sujeito é um ser escravizado, cativo, obrigado,
constrangido que se sujeita à vontade alheia, passível. Sujeito esse que segundo Eni P.
Orlandi corresponde ao sujeito da Idade Média que era submisso aos discursos religiosos –
dogmas da Igreja – que correspondia ao comportamento do sujeito religioso.
Na gênese dos estudos da linguística, na esfera dos formalistas da língua, a forte
influência estruturalista, com Ferdinand de Saussure, o sujeito é posto como uma
subordinação do código linguístico, como ressalta a doutora professora em psicolinguística
Priscilla Peixoto Florindo, no seu artigo “As diferentes faces do Sujeito na Análise do
Discurso” publicado na Revista Língua Portuguesa. O sujeito passa a ser um enunciador
individual a partir dos estudos da pragmática textual, onde também se torna um ser
consciente. Todavia, o fio que tece o sujeito com a ideologia atrelado ao contexto sócio
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histórico ainda não existia. E é neste momento que aparece a Análise do Discurso criando
esse fio condutor.
A partir do momento em que esse sujeito ideológico surge com a AD ele passa por três
fases. A primeira fase, chamada de AD1, tem como destaque o sujeito relacionado “a
exploração metodológica, de uma noção maquinaria”, pois neste momento tem-se grande
efervescência dos ideais comunistas que estavam em grande oposição as políticas capitalistas
onde o sujeito tem seu aspecto de assujeitamento de maquinaria, pois o sujeito é preso por
regras específicas que delimitam o discurso em um dado momento (FLORINDO, 2013).
Na segunda fase, AD2, a formação discursiva é definida por Michel Foucault, onde
está marcada as regras controladas pelo social e que se constrói a partir de outras formações
de discursos. O sujeito discursivo continua com a característica de assujeitado, pois ainda não
é livre. Conquanto, se difere do sujeito discursivo da AD1 porque o seu discurso não é mais
pontuado de acordo com o momento histórico que vive, mas pelos papéis sociais (funções)
que exerce, por exemplo, o professor, o juiz, o motorista, etc. Mesmo podendo mudar de
funções esse sujeito discursivo fica preso a determinações de cada função que delimitam o
que ele pode ou não pode fazer.
No terceiro momento a AD3, toma como perspectiva os diversos discursos que
circunda a formação do discurso, não mais adotando o pensamento de independência do
discurso, mais sim o discurso sendo formado no seu interior, o interdiscurso. Mas, antes de se
analisar o conto faz necessário conhecer o seu enredo, por isso, iniciar-se-á a navegação pela
busca da ilha desconhecida.

Navegando pelo conto: visão geral

O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, foi lançado em 1997 em poucas


páginas onde exprimem as frustrações humanas, a burocracia da sociedade contemporânea o
medo pelo desconhecido (o novo), as imposições sociais entre outros, descritos de maneira
simples e fluída, mas com esplendidas metáforas que somente Saramago sabia fazer.
O Conto narra a história de um homem que deseja que o rei receba-o pessoalmente
para poder fazer-lhe um pedido. O homem se depara com uma porta chamada de “porta das
petições”, só que o rei sempre estava sentado perante a “porta dos obséquios”, pois a casa do
rei possuía várias portas de acordo com as necessidades da côrte.
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Perante a porta das petições o homem diz que desejava um barco porque queria ir à
procura de uma ilha que ainda não tivera sido descoberta. A partir deste momento é que o
enredo do conto se desenvolve.
Os personagens no conto não possuem nomes próprios. Eles são identificados de
acordo com a posição social que eles assumem dependendo do momento em que aparecem na
obra. Por exemplo, o homem que vai de encontro ao rei no início do conto, é caracterizado
apenas como “o homem”, no momento em que ele faz o pedido o homem se torna “o
suplicante”, após a este momento, o suplicante, muda para “o homem que queria um barco”, e
assim por diante.
Essa mesma situação acontece com outra personagem. Logo que o homem está diante
da porta das petições quem o atende é “a mulher da limpeza” que depois de descobrir o que
homem desejava, decide acompanhá-lo em sua viagem assumindo, no final do conto, a
posição de “a mulher”.
José Saramago, com “O Conto da Ilha Desconhecida”, não tece críticas apenas aos
comportamentos sociais, mas também a própria situação em que o indivíduo se encontra
quando busca sair das amarras psicológicas e discursivas que não o deixam observar além das
possibilidades impostas por alguém (o discurso oficial) ou algum sistema (a ideologia).

Minha identidade é minha função

Como já referido neste artigo um dos elementos que compõe a crítica de Saramago no
conto é a sua oposição ao modo de vida capitalista, que também é uma das principais
características do assujeitamento dos personagens.
Essa crítica ao capitalismo é marcada pela maneira como os personagens são
apresentados. Eles não possuem nomes próprios, os seus nomes são as funções que cada
personagem exerce de acordo com a situação em que são expostos. Já que no sistema
capitalista o ser humano é reconhecido pela função que exerce e não pelo o que ele realmente
é.
No início do conto já é possível se observar a crítica do autor ao modo de vida do
capitalismo, pois o primeiro personagem é apresentado como “um homem”, o demonstrando,
desta forma, que se trata de uma pessoa qualquer. O uso do artigo indefinido destaca muito
bem esse sujeito homem.
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No decorrer da história, quando um homem demonstra que desejava algo ele passa a
ser chamado de “o suplicante”. Depois de dizer o teor do pedido, um barco, o suplicante se
torna “o homem que queria um barco”. O rei, depois de uma longa conversa, resolve atender
ao pedido do homem que queria um barco que, após esta nova situação, se torna “o homem
que ia receber um barco” e assim por diante.
Essas constantes mudanças de função até poderiam ser demonstração de certa
liberdade desse personagem, conquanto José Saramago escolhe nomear seus personagens de
acordo com a situação que eles vivenciam porque é um reflexo do comportamento capitalista,
pois as pessoas ficam aprisionadas a amarras sociais que são delimitadas pelo o que elas
fazem.
Sendo assim, esse “dinamismo” oriundo de um discurso ideológico capitalista leva o
personagem a um assujeitamento, ou seja, um sujeito “livre”, mas ao mesmo tempo submisso,
como cita ORLANDI (2002, p. 51): “Essa é uma submissão, [...], menos visível porque
preserva a ideia de autonomia, de liberdade individual, de não determinação do sujeito. É uma
forma de assujeitamento mais abstrata e característica do formalismo jurídico do capitalismo”.
O próprio homem que muda várias vezes o seu nome (função) durante a história
demonstra claramente esse aspecto citado pela Eni Orlandi. O principal fator do conto é a
busca por uma identidade, como pode ser observado no seguinte trecho SARAMAGO (2012,
p. 40): “[...] mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela
estiver [...]”. Zygmunt Bauman, no livro Identidade, argumenta que:

As pessoas em busca de identidade se vêem invariavelmente diante da tarefa


intimidadora de “alcançar o impossível”: essa expressão genérica implica,
como se sabe, tarefas que não podem ser realizadas no “tempo real”, mas
que serão presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – infinitude...
(BAUMAN, 2005, p. 16-17).

Corroborando com Bauman, encontrar a ilha desconhecida representa – para “o


homem que ia receber o barco” – encontrar uma identidade que não seja imposta. É o
exemplo do mais contemporâneo dos conflitos da humanidade, ser reconhecido como
indivíduo, e não somente pelo que exerce (função) na sociedade. Porém, segundo o mesmo
autor, a busca pela identidade é uma “tarefa intimidadora de alcançar o impossível”. Ainda
citando Bauman, ele diz:

O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um


sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo,
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cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não


vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar
teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, tornar-se a longo
prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade (BAUMAN, 2005,
p. 35).

Porém, é essa ansiedade – mencionada por Bauman – o principal elemento do


“homem que ia receber o barco” que impulsiona o seu desejo de encontrar a tal ilha
desconhecida. E é essa busca pela ilha o próximo tópico a ser discutido.
Em busca da ilha

Encontrar a ilha desconhecida não representa apenas um novo local geográfico a ser
descoberto, é mais do que isso, ela representa a coragem de um homem que decide ir além dos
limites impostos pelo discurso oficial. É a materialização da busca de um homem que até
certo momento permanecia cômodo com a situação, mas que após refletir sobre o seu papel na
sociedade sai à procura de sua identidade.
O ato do homem querer mudar, fugindo do sistema imposto, causa espanto, pois levam
a todos os envolvidos pelo sistema a se comportarem de maneira estranha. É justamente o que
ocorre com um homem quando decide procurar a tal ilha desconhecida, pois diante de um ato
tão incomum, o rei muda seu comportamento, recebendo esse homem suplicante, na tentativa
de manter a situação controlada temendo que algo acontecesse fora do programado. Isso é
observado no seguinte trecho:

[...] porem, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se


que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar
gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas
e negativas consequências no afluxo dos obséquios. No caso que estamos
narrando, o resultado da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter
ido o rei, ao cabo de três dias, em real pessoa, à porta das petições, para
saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o
requerimento pelas competentes vias burocráticas. (SARAMAGO, 2012, p.
10-11)

O trecho supracitado também evidencia o quão importante se tornou encontrar a ilha


desconhecida porque até o rei mudou suas ações em função de um homem e sua
determinação.
Descobrir a ilha não significa provar para o rei que ele estava errado, nem tão pouco
ser mais um mero descobridor de terras, pois o que move um homem a navegar pelo
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desconhecido é nada mais e nada menos que a tentativa de procurar descobrir a si mesmo.
Sobre isso Bauman comenta:

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm


a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante
negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio individuo toma,
os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se
manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento”
quanto para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17).

A ilha desconhecida representa justamente o pertencimento e, principalmente, a


identidade tão procurada almejada pelo “homem que ia receber o barco”. Conquanto, se são
as decisões do indivíduo são os fatores que determinarão o seu pertencimento e a sua
identidade uma das ações primordiais para encontrar a ilha é não temer o desconhecimento, e
este é o tópico da próxima discussão.

Desconhecimento: o medo do novo

Talvez o grande elemento que faz todo o conto se movimentar nem seja pela situação
de se procurar uma ilha desconhecida, e sim o fato de ser desconhecida. É o que se observa na
seguinte passagem conforme SARAMAGO (2012, p. 16-17):

[...] E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de fato
perguntou [...], Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem,
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, [...], A ilha
desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas,
Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas
nos mapas, Nos mapas estão as ilhas desconhecidas, E que ilha desconhecida
é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria
desconhecida, [...]

O desconhecido é o que verdadeiramente move as ações dos personagens. O


desconhecido faz com que o homem saia de uma situação para vivenciar outra. O
desconhecido fez com que o rei saísse da sua zona de conforto para saber o que se passava em
seu reino, porque um completo desconhecido estava causando tanto alvoroço. O desconhecido
foi o responsável por tornar um homem cada vez mais conhecido diante de cada nova
situação.
Mas, por que o desconhecido é a engrenagem matriz? Porque o desconhecimento faz
parte do novo. E o novo, é aquilo que se diferencia dos demais, representando o maior temor
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daqueles que constituem o poder central e daqueles que não tem coragem de sair da
comodidade.
Quando o homem recebe o barco a única que embarca na ideia dele é a mulher da
limpeza. Ainda assim ele vai à procura de marinheiros que estivessem dispostos a segui-lo
nessa viagem rumo ao desconhecido. A questão que, assim como o rei, os marinheiros
também não acreditavam no homem, como pode ser observado no seguinte trecho:

[...] E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver,
Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-
me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não
iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de
carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um
impossível [...] (SARAMAGO, 2012, p. 39)

Observa-se, no trecho acima, como o novo causa medo. Mesmo os marinheiros


recebendo uma proposta de mudança que poderia trazer-lhes mais benefícios, a incerteza do
que será encontrado, ou não, limita-os ao ponto de chegarem a recusar algo sem sequer
comprovar. No livro A Ordem do Discurso, Foucault (1970) explica que toda sociedade
possui uma produção de discurso simultânea que é controlada, selecionada, organizada e
redistribuída. Esse aspecto elucida claramente a situação vivenciada pelo homem e os
marinheiros.
Conquanto, acontece uma pequena reviravolta na história, pois os marinheiros que se
recusaram em navegar com o homem do barco acabam aceitando a proposta no dia seguinte,
como mostra o seguinte trecho: “Não percebia como podiam ali estar os marinheiros que no
porto e na cidade se tinham recusado a embarcar com ele para ir à procura da ilha
desconhecida, provavelmente arrependeram-se da grosseira ironia com que o haviam tratado”
(SARAMAGO, 2012, p. 56).
O fato é que, após ocorrido esse momento, os marinheiros - depois de algum tempo no
mar - revelam a verdadeira intenção deles de terem aceitado a proposta do homem do leme,
como se observa na seguinte passagem:

O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se


avistaram alguma ilha desabitada, e eles responderam que não veem de umas
nem das outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra
povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma
taberna onde beber e uma cama onde folgar, [...], Andávamos a procura de
um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem [...]
(SARAMAGO, 2012, p. 56-57).
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O trecho supracitado é mais uma das demonstrações do comportamento capitalista


imperando o discurso das personagens. No momento que o marinheiro utiliza a palavra
“aproveitar” marca o principal sentimento dos marinheiros diante do homem do leme. Pouco
importava encontrar ou não a ilha desconhecida, e quais os sentimentos do homem do leme
perante isso, o que de fato importava para os marinheiros era o bem estar deles.
Observando mais profundamente essas passagens, percebe-se que é o homem do leme
é o único a querer mudar a sua situação de assujeitado. A decisão de seguir navegando pelo
desconhecido mesmo sem saber se realmente vai encontrar a ilha representa a superação do
medo em ir à busca do novo.

Terra a vista!

Quando o homem do leme percebe que o barco está abarrotado de areia e que os
animais e plantas que os marinheiros trouxeram para a embarcação haviam ficado, o barco
começa a sofrer modificações. O trecho a seguir ilustra esse momento: “Por causa do atropelo
da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela
como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais chuva para que seja
um bom ano agrícola” (SARAMAGO, 2012, p. 61).
A ilha que o homem do leme tanto procurava na verdade vai sendo criada no decorrer
de toda a navegação que se iniciou em busca da ilha desconhecida. Como pode ser observado
no seguinte trecho conforme SARAMAGO (2012, p. 62):

É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde,
sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos
por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja
madura e é preciso ceifa-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu
ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras
espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra.

No trecho destacado acima é possível perceber a última mudança de situação ocorrida


com o homem do leme. Quando ele deixa o leme preso já não há mais uma característica pelo
o que ele faz, mas pelo o que ele realmente é. Pois quem desce ao campo não é mais o homem
do leme, e sim o homem, que mesmo segurando uma foice não recebe tal qualificação.
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Esse é o primeiro momento em que o homem faz aquilo que ele realmente quer sem
ter que algo que o determinam fazer.
No final do conto o homem do leme percebe que não estava sozinho. A mulher da
limpeza foi a única a permanecer, desde o início, ao seu lado. Como pode ser visto no trecho a
seguir:

Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos,


confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de
estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram
pintar na proa do barco, de um lado e de outro, em letras brancas, o nome
que ainda faltava dar a caravela. (SARAMAGO, 2012, p. 62)

Neste momento o homem percebe que não estava mais diante da mulher da limpeza, e
sim diante de a mulher. O mesmo ocorre com a mulher que agora via o homem.
Porém, a busca pela identidade não é algo que se conseguirá tão fácil. Talvez ela seja
algo incessante e instigante, como elucida a passagem a seguir: “Pela hora do meio-dia, com a
maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma”. (SARAMAGO,
2012, p. 62). Pois ir de encontro a ela seja, quem sabe, ir à procura da essência do “SER”.
Todavia, o fato de não encontrar a verdadeira identidade não signifique que a identidade que
se adquire não seja própria.

Considerações Finais

O processo de assujeitamento comentado no início desse trabalho pode ter sido


neutralizado, pois no final do conto as personagens não estão mais diante de um sistema que
os submetem a serem classificados de acordo com o papel social que assumem. A escolha, no
final do conto, partiu da decisão de cada um. Num espaço fora da ficção, talvez esse processo
do sujeito deixar de ser assujeitado e a identidade deixar de ser imposta pelo outro e passar a
ser “verdadeiramente” própria não seja possível de ocorrer.
O autor do conto não deixa evidente se de fato ocorreu ou não o descobrimento da ilha
desconhecida. Pois, no final do conto, o barco que levava o homem e a mulher é que recebe
esse nome. Ainda assim, o homem e a mulher continuaram a navegar na tentativa incessante
de encontrar a ilha desconhecida.
Por mais que o discurso do rei imperasse perante a sociedade, nem todos aceitam isso
de maneira natural. Ou se aceitam em algum momento alguém irá discordar e aí se instaura a
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oposição aos discursos oficiais. Mesmo assim, não se pode deixar de ressaltar que o homem
só conseguiu realizar o seu desejo de ir à procura da ilha com a concessão do rei que permitiu
que o homem levasse um dos barcos da doca, que se não fosse por esse fato talvez a viagem
de descobrimento da ilha desconhecida nunca teria sido iniciada.
Com isso, Saramago deixa a indagação sobre a real possibilidade da sociedade
contemporânea em conseguir encontrar um novo rumo, para a essência humana, que possa
acalmar seus anseios. O homem da ilha desconhecida, e todas as outras personagens do conto,
são impressões quase perfeitas do comportamento do homem pós-moderno, da ansiedade
gerada pelos paradigmas dessa pós-modernidade e da quase inexistência ou apagamento da
identidade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2005.
FIORINDO, Priscila Peixinho. As diferentes faces do sujeito na análise do discurso. Revista
Língua Portuguesa, São Paulo, p. 1-4. Disponível em: <http://linguaportuguesa.uol.
com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/38/as-diferentes-faces-do-sujeito-na-analise-
do-discurso--273503-1.asp>. Acesso em: 05 fev. 2013.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Edmundo Cordeiro. Paris:
Éditions Gallimard, 1971.
MARTINS, Suzana Oliveira. Análise do discurso. Disponível em: <http://www.revista.ajes.
edu.br/arquivos/artigo_20110220121606.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2013.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas,
SP: Pontes, 4ª ed. 2002.
______. Discurso, imaginário social e conhecimento. Brasília: Em Aberto, 1994. p. 53.
Disponível em: <http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/911/817>.
Acesso em: 05 fev. 2013.
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PÊCHEUX, Michel. O discurso. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Pontes
Editores, 6ª ed. 2012.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 31ª
ed. 2012.
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THE ROARING TWENTIES: A DECADÊNCIA DO SONHO AMERICANO EM “O


GRANDE GATSBY”

Flávia Pereira Serra


UFMA

Introdução

O Grande Gatsby, um dos principais romances de Scott Fitzgerald, foi escrito em 1925
e retrata a sociedade americana dos anos vinte de maneira realista e um tanto negativa em
uma dos períodos mais glamorosos da história ,The Roaring Twenties ou, Loucos Anos Vinte.
O romance, narrado por Nick Carraway, rapaz recém chegado à cidade e primo de um
dos personagens principais, Daisy Buchanan. Ele narra a história de um misterioso homem
chamado Gatsby e de seu imensurável amor por Daisy, mulher por quem se apaixonou
durante a Primeira Guerra Mundial e que, depois de 5 anos, seguiu sua vida cansando-se e
tendo filhos, enquanto Gatsby ainda nutria um forte sentimento por ela e a esperança de ainda
ficarem juntos.
Gatsby nutria por Daisy um sentimento semelhante ao que muitos nutrem pelo Sonho
Americano. E, assim, como a concretização do amor de Gatsby por Daisy era utópica, o
Sonho Americano, ideologia fortemente enraizada na cultura americana, principalmente nessa
época, também era impossível de se alcançar, ao menos de acordo com o romance de
Fitzgerald.

Os Estados Unidos nos anos vinte

Os Estados Unidos viveu nessa época um período de grandes mudanças marcado


inicialmente pelo fim da Primeira Guerra Mundial. Durante esse período, os EUA serviram de
âncora para a Tríplice Entente e, se aliou à mesma dando o fim a guerra como vitoriosos, o
que proporcionou uma alteração significativa e positiva em sua economia.
Um dos fatores que contribuiu para o contínuo crescimento econômico foi a intensa
fabricação de automóveis. Isso proporcionou uma grande disputa entre os principais
produtores - General Motors, Ford e Chrysle -, o que consequentemente levou à uma baixa
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nos preços dos veículos e fez com que mais pessoas os adquirissem com mais facilidade.
(Brogan, 2001, p. 493). Dessa forma, a industrialização foi intensificada, o que também
expandiu o processo migratório. Muitas pessoas saíram de suas cidades e países em busca de
empregos.
A população da cidade, consequentemente, cresceu em grandes proporções,
provocando mudanças físicas no cenário social, como a criação de subúrbios, já que os não
havia espaço suficiente nas cidades para os imigrantes morarem; a construção de mais hotéis e
restaurantes mais afastados dos grandes centros, pois como muitos possuíam automóveis,
estes começaram a se deslocar com mais frequência.

O aumento do consumo de bebida alcóolicas e a Lei Seca

A guerra havia acabado, porém suas marcas afetaram significantemente a sociedade


americana, principalmente no que tange o psicológico dos soldados e de suas famílias. Muitos
perderam familiares durante os combates, e os soldados que conseguiram voltar teriam que
conviver com lembranças dos terríveis massacres e mortes que os acompanhariam para
sempre. Uma maneira que muitos encontraram para fugir dessa realidade foi o alcoolismo.
O consumo de bebidas alcóolicas aumentou consideravelmente, o que obrigou o
governo a tomar medidas para diminuir tais índices. Em 1920 o governo americano impôs a
Lei Seca, proibindo a venda e transporte de bebidas alcóolicas para consumo. Essa medida, no
entanto, não foi efetiva, pois a mesma instigou o contrabandismo do álcool. Essa forma ilícita
de ganhar dinheiro, muito comum na época, foi a forma pela qual Gatsby adquiriu sua
fortuna.
Com a grande reviravolta econômica, grande parte da população que não tinha nada,
acabou contraindo fortunas, fato que proporcionou aos novos ricos, donos de fábricas e
contrabandistas, principalmente, um lugar de maior destaque na sociedade. Isso também
incentivou a disputa entre a aristocracia e burguesia, retratada também no romance O Grande
Gatsby.

A figura feminina e as transformações sociais


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O papel da mulher também sofreu mudanças físicas e sociais durante a década. Em


relação a vestimenta, o espartilho que fazia parte do vestuário feminino, deu lugar ao sutiã; os
vestidos ficaram um pouco mais curtos – bem abaixo do joelho -, e o corte de cabelo de quase
todas a mulheres era o a la garçonne, cabelos bem curtos, na altura das orelhas. Houve
também uma mudança em seu comportamento e posição social. A mulher se tornou mais
ativa, passou a exercer algumas funções consideradas anteriormente masculinas e passou a ter
mais liberdade de expressão. Essa revolução nos moldes femininos também é representado na
obra, principalmente na personagem Jordan Baker, melhor amiga de Daisy e jogadora de
golfe, mulher bastante presente e de opinião.
E assim se estruturava a América nos anos 20. Claramente houve uma transformação
valores da sociedade, como podemos perceber em Brogan, (2001, p.490), quando afirma:
“Nova Iorque tinha conquistado: o símbolo da vida americana não era mais uma cabana de
madeira ou uma família interiorana, era na verdade um cigarro gigante”1.
Considerando Nova Iorque como uma representação do país, pois desde aquela época
a cidade era considerada um grande centro cultural, percebe-se como a visão da família
americana perfeita, a imagem que perpassava mundialmente, o sonho americano, evoluiu
paralelamente ao país.
Com as modificações econômicas, a sociedade americana sofreu alterações em seu
estilo de vida. Muitos possuíam bastante dinheiro, e o contrabando do álcool, além de
enriquecer alguns, aumentou consideravelmente o consumo de álcool entre os americanos. O
estilo boêmio tomou o lugar da vida bucólica. As pessoas festejavam com mais frequência do
que trabalhavam, pois estavam mais interessadas em ostentar riquezas e viver intensamente
enquanto podiam.

Fitzgerald e a sociedade americana

Assim como grande parte dos romancistas, Fitzgerald pôs em sua obra muito de sua
vida pessoal. Ele conheceu sua futura esposa, Zelda Sayre, enquanto era tenente na Primeira
Guerra Mundial. Zelda era uma moça rica e considerada por ele “a garota dourada” assim
como Gatsby considerava Daisy. Como Fitzgerald não pertencia a alta sociedade e nem

1
Tradução nossa. “New York had conquered: the symbol of American life was no longer to be a log cabin or a
family farm, it was to be a gigantic cigar.”.
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possuía muito dinheiro, Zelda não aceitou se casar, pois a mesma exigia do tenente uma
ascensão financeira.
Após algumas dificuldades eles se casaram e adotaram o estilo boêmio da época, o que
levou Fitzgerald ao alcoolismo e, mais tarde, Zelda à insanidade mental. Talvez por esse
motivo o autor faça uma crítica negativa à sociedade da época, pois de fato ele experienciou o
que escreveu, como afirma o crítico John Callahan.

“As contradições que ele experienciou e colocou em suas histórias


aumentaram as implicações do sonho [americano] para a vida das pessoas: a
promessa e as possibilidades, violações e corrupções dos ideais de
nacionalidade e personalidade do ‘sonhava em ser’, como colocou Ralph
Ellison, ‘fora do caos e escuridão do passado feudal’. Fitzgerald incorporou
em seus tecidos e sistema nervoso as polaridades fluidas da experiência
2
americana: sucesso e fracasso, ilusão e desilusão, sonho e pesadelo”
(CALLAHAN, 1996, p.374)

Assim como Fitzgerald, Gatsby também se interessou durante a guerra por uma moça
que não pertencia ao seu extrato social, e, para consegui-la, Gatsby buscou durante anos a
riqueza, achando que assim poderia comprar o seu amor.
Nick, narrador da história, ao descrever a sociedade da época, diz: “Nesse verão, todas
as noites havia música na casa do meu vizinho. Em seus jardins azulados pelo luar, homens e
garotas iam e vinham como mariposas entre murmúrios, champanhe e estrelas.” (Fitzgerald,
2013, p.51).
A citação acima demonstra como a sociedade era vazia em termos de valores. Nick
acabara de chegar em West Egg e ainda não conhecia Gatsby, mas percebera o grande
movimento em sua casa. Na obra, não vemos nenhum personagem de fato trabalhando, além
Nick e George, mecânico marido da amante de Tom, morador do Vale das Sombras.
Gatsby está sempre sendo o anfitrião de festas glamorosas e fazendo ligações
misteriosas, e Tom é um jogador aposentado que provém de uma família rica. As pessoas são
geralmente retratadas em festas ou momentos ociosos, evidenciando que nos anos 20 isso era
o mais comum.

2
“The contradictions he experienced and put into fiction heighten the implications of the dream for individual
lives: the promise and possibilities, violations and corruptions of those ideals of nationhood and personality
‘dreamed into being,’ as Ralph Ellison phrased it, ‘out of the chaos and darkness of the feudal past.’ Fitzgerald
embodied in his tissues and nervous system the fluid polarities of American experience: success and failure,
illusion and disillusion, dream and nightmare.”
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 155

As pessoas que frequentavam as festas de Gatsby são retratadas como “mariposas


entre murmúrios, champanhe e estrelas”. Elas, na verdade, não conheciam Gatsby e tão pouco
haviam sido convidadas, mas, mesmo assim, estavam presentes em todas as festas para sentir
que tinham dinheiro e que faziam parte da alta sociedade. Estavam ali como mariposas,
apenas cercando algo que já não possuía mais valor.

O sonho americano

O Sonho americano é uma ideia que foi construída pelos Estados Unidos desde muito
antes da década de 1920. O país sempre pregou a imagem de “Terra Prometida”, ou seja,
“Terra das oportunidades”, lugar onde qualquer um poderia reconstruir sua vida e viver
alegremente.
Porém, para se reconstruir, o homem precisaria trabalhar arduamente. É a ideia do
Self-made man, ou seja, “o homem que se constrói”, aquele que pode obter sucesso na vida
independente do seu histórico familiar ou extrato social, se trabalhar bastante para isso.
A ideia já existia antes da Primeira Guerra Mundial assolar o país, e durante esse
período a população começou desacreditar nos Estados Unidos como o melhor lugar para se
viver. Os políticos, no entanto, tinham consciência que precisavam restaurar essa imagem
americana, como afirma Bayan (2001, p.3). “O objetivo dos políticos era reafirmar ao público
que o idealismo dos ‘bons anos antigos’ poderia voltar à consciência americana. Agora que a
guerra acabou, a América poderia voltar ao normal”3
E isso também pode ser notado na obra, quando Gatsby escolhe não considerar tudo o
que Daisy viveu enquanto ele estava na guerra. Gatsby fazia planos de se casar na casa dos
pais de Daisy e formar uma família, sem considerar que ela já tinha uma.
Nick tenta abrir seus olhos, afirmando que não se pode repetir o passado, mas Gatsby
o contraria dizendo: “Não se pode repetir o passado? – ele gritou, incredulamente. – Mas é
claro que se pode!” (Fitzgerald, 2013, p. 127). Desse modo, Gatsby acreditava que poderia
voltar aos bons tempos, assim como os políticos afirmavam que a América poderia voltar aos

3
Tradução nossa. “The goal for politicians, accordingly, was to reassure the public that the idealism of the "good
old days" could return to the American consciousness. Now that the war was over, America could go back to
normal.”
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tempos de glória, a ser a Terra das oportunidades mesmo depois de ser assolada pelo período
bélico.
O conceito do Sonho Americano havia sido alterado pelo capitalismo. As pessoas não
buscavam apenas ter uma vida confortável e um emprego que pudesse os sustentar. Elas
queriam mais, pois “Não era suficiente afirmar que ter dinheiro era, por si só, o bastante.
Dinheiro proporciona as pessoas o capital necessário para comprar bens. Em termos da
individualidade dos anos 20, dinheiro define alguém como pessoa.”4 (Bayan, 2001, p.8). A
riqueza fazia parte da realidade da época, e era exatamente isso que as pessoas mais
almejavam.
Na época, como muitos começaram a ganhar dinheiro e precisavam aplica-lo para
fazer render, muitos começaram a investir em ações, que era uma das áreas mais lucrativas
dos anos 20. Por isso Nick se muda para a cidade, para tentar fazer parte dessa atividade tão
lucrativa. “Eu decidi ir para o Leste e aprender o ofício de corretor de ações. Todas as pessoas
que eu conhecia estavam trabalhando com ações,” (Fitzgerald, 2013, p. 15).
Talvez a partir dessa visão capitalista, o Sonho Americano dos anos 20 começou a
cair, pois estava contaminado pela busca incessante por dinheiro.

Gatsby: personificação do Sonho Americano

Jay Gatsby era o homem de origem pobre que conseguiu se refazer mesmo diante das
dificuldades. Ao conhecer Daisy, Gatsby era uma pessoa que não possuía fortuna, diferente
dela, então para “merecer” seu amor, ele teve que se reinventar. Ele mudou de nome – antes
se chamava James Gatz -, começou a sua busca pela riqueza.

Gatsby é rico, porque ele é um homem que se fez sozinho e que entendia as
condições dos anos 20 como sendo passível de seu desejo de tornar-se outra
pessoa. Descobre-se no romance de Fitzgerald o que significa dizer que a
América é um país onde as pessoas podem se reinventar.5 (BAYAN, 2001,
p.2)

4
Tradução nossa. “It is not enough to state that having money was on its own sufficient. Money provides people
with the capital to buy goods. In terms of 1920s individuality, money defines one as a person.”.
5
Tradução nossa. “Gatsby is rich because he is a self-made man who understood the conditions of the nineteen
twenties as being amenable to his desire to become someone else. One discovers in Fitzgerald’s novel what it
means to say America is a country where individuals can reinvent themselves.”.
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De fato, na história é possível ver a América como a Terra das Oportunidades. Gatsby
representa esse ideal americano de que qualquer um pode ser o que quiser, e ele conseguiu
traçar o caminho que queria para chegar até Daisy.

Daisy: A garota dourada

Assim como Zelda, para Fitzgerald, Daisy representava a “garota dourada”. A mulher
que parecia estar fora de alcance, e conquistá-la traria a sensação de ganhar um prêmio. Daisy
simbolizava a aristocracia que, no fundo, era o que Gatsby realmente almejava. Ela
representava a parcela dos velhos ricos, que desconsideravam o grupo dos que recentemente
adquiriram fortunas como parte de seu mesmo extrato social.
Ao revelar a Nick a maneira como conheceu e se apaixonou por Daisy, é possível
notar que Gatsby se encantou pelo que ela representava e não por quem ela era. Ele relatava
que ela era a moça mais cobiçada da cidade, que todos a queriam, e que ela possuía a mais
bela casa de toda região. Era realmente uma mulher muito rica, e ele se encantou com a vida
que poderia viver ao seu lado. De tal maneira que ao comentar sobre Daisy com Nick, ele
afirma que “sua voz estava cheia de dinheiro”.

Sua voz está cheia de dinheiro – ele afirmou, subitamente.


Era isso. Nunca havia entendido antes. Estava cheia de dinheiro... Era esse o
encanto inexaustível que subia e descia enquanto ela mudava de tom, era o
tinir das moedas, a canção de um címbalo contida nela. No alto da torre de
um palácio branco, a filha do rei, a garota dourada... (FITZGERALD, 2013,
p. 139)

Gatsby possuía tanto dinheiro quanto Tom, e talvez até mais, mas mesmo assim Daisy
não quis largar a vida que tinha, seu marido infiel e sua posição social por alguém que
afirmava amar. Isso mostra que Daisy na verdade não se importava. Ela brincava com os
sentimentos de seu marido e de seu amante, sem se importar com as consequências.

Eles eram pessoas descuidadas, Tom e Daisy. Quebravam e esmagavam


coisas e criaturas... e, então, se entricheiravam atrás de seu dinheiro ou se
escondiam por trás de sua vasta falta de cuidado ou seja lá o que fosse que os
mantinha juntos, enquanto deixavam que outras pessoas limpassem a sujeira
que haviam feito... (FITZGERALD, 2013, p. 202)
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Daisy demonstrava ser uma pessoa insensível e isso fica ainda mais claro quando ela
atropela Myrtle, amante de Tom que ela não conhecia, e nem se importa, deixando Gatsby
levar toda culpa da morte da mulher.

Contrabando do álcool como fator deturpador

A Lei Seca, como foi dito aqui anteriormente, deu margem para muitos enriquecerem
com o contrabando de bebidas alcóolicas e foi dessa forma que Gatsby conseguiu sua fortuna.

Ele e esse Wolfsheim compraram uma porção de drugstores em ruas


secundárias aqui e em Chicago e vendiam álcool às escondidas. Esse é um
dos truquezinhos sujos dele. Calculei que fosse contrabandista de bebidas
desde a primeira vez que o vi, e não estava muito longe da verdade.
(FITZGERALD, 2013, p. 153)

A ideia na qual consistia o sonho americano era que qualquer um poderia conseguir
sucesso na vida, independentemente de seu passado ou extrato social, se trabalhasse
arduamente. A partir dessa nova realidade social, percebe-se um desvio desse ideal
americano, pois assim como muitos, Gatsby não trabalhou honestamente ou arduamente para
conseguir sua fortuna.
Ele, assim como a maioria dos novos ricos, não poderia ser aceito pela alta sociedade.
E também não poderia concretizar o seu sonho, pois um dos fatores primordiais, que é o
trabalho árduo, não aconteceu. Talvez, a partir desse ponto, sua decadência teve início.

A decadência de Gatsby

Gatsby depositava em Daisy toda sua felicidade. Ele não vivia para si mesmo, mas
para seu sonho, com a ideia de viver uma vida confortável e feliz inspirada pela beleza de
uma adorável garota rica. Devido a sua obsessão por Daisy, Gatsby se ilude ao pensar que
pode comprar o amor com dinheiro (cf. Fahey 1973 apud Smiljanić 2011).

O fracasso do Sonho Americano em sua vida deve-se principalmente à sua


queda moral ao longo do romance. Em vez de se tornar um homem honrável
depois de ganhar sua fortuna, ele se tornou em um quase-membro do grupo
de Tom e Daisy ao tentar viver de acordo com a cultura material da década.
Ele, na verdade, nunca se encaixou em seu grupo, mas se tornou moralmente
relegado por associação ao mesmo. (...) A busca de Gatsby por felicidade
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através de meios ilegais e superficiais, em última instância, é a causa de sua


morte, e, portanto, do colapso de seu sonho americano.6 (InfoRefuge, 2011)

Gatsby, buscou algo que na verdade nunca poderia alcançar. Ele jamais poderia casar-
se com Daisy do modo que queria e jamais poderia fazer parte daquele grupo social. Talvez o
que Fitzgerald buscou mostrar é que esse ideal americano não existia/existe e, por isso, jamais
poderia ser alcançado.
Logo após o grande ápice, quando Gatsby pressiona Daisy a negar seu passado e
afirmar que nunca amou Tom e que iria ficar com ele, Daisy decide voltar para sua casa e sua
antiga vida com seu marido, agindo como se nada tivesse acontecido.
Nesse momento Nick percebe: “- Acabei de me lembrar que hoje é meu aniversário.
Eu estava fazendo trinta anos. Diante de mim se estendia a estrada ameaçadora e portentosa
de uma nova década.” (Fitzgerald, [1925] 2013, p.155).
Juntamente com os vinte anos de Nick, a década de 1920 também estava se esvaindo.
Muitos acreditam que Fitzgerald pareceu prever o que aconteceria no início da década de 30.
Assim como o mundo de Gatsby desmoronou no final do romance, a América foi devastada
pela Grande Depressão em 1929. E aquela sociedade boêmia e festiva ficou presa nos Loucos
Anos Vinte.

Considerações Finais

O idealismo pregado pelos Estados Unidos sobre o sonho americano perpassa


gerações e diferentes épocas da história. O interessante é que, apesar de ser uma ideia utópica,
ela conseguiu resistir até hoje.
A história de Gatsby representa a decepção que muitos enfrentam em relação ao
Sonho Americano. Muitas pessoas ainda deixam seus países em busca de uma vida melhor na
América, em busca de um sonho que dificilmente será alcançado, pois a realidade é diferente
do que é mostrado em filmes e propagandas. E talvez a intenção de Fitzgerald fosse realmente
mostrar as falhas dessa ideologia, ou seja, fazer uma crítica a um conceito que foi fortemente
destacado na época em que o livro foi escrito.

6
Tradução nossa. “The failure of the American Dream in his life is mainly due to his moral decay throughout the
novel. Instead of turning into an honorable man after earning his fortune, he turns into a quasi-member of Tom
and Daisy’s crowd through trying to live up to the material culture of that decade. He never quite fit in with them
but became morally relegated to association with that group. (…) Gatsby’s quest for happiness through illegal
and superficial means ultimately is the cause of his death, and therefore the collapse of his American Dream.”
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O Grande Gatsby é, de fato, uma obra que tem despertado o interesse da crítica não só
pelo seu valor estético literário, mas pela sua relação com importantes mudanças histórico-
culturais cujos resultados podem ser observados até hoje.

Referências

BAYAN, Andrew. The Quest for Normalcy in the Jazz Age. All College Writing Contest 5
(1): 1-13, 2001.
BROGAN, Hugh. The Penguin History of the USA. 2. ed. London: Penguin Boooks, 2001.
CALLAHAN, John F. F. Scott Fitzgerald's Evolving American Dream: The "Pursuit of
Happiness" in Gatsby, TenderIs the Night, and The Last Tycoon. In: Zimmerman, LEE (ed.)
et al. Twentieth Century Literature 42 (3): 374-395, 1996.
FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. Trad. Luis Humberto Guedes. 1. ed. São Paulo:
Geração Editorial, 2013.
THE DEMISE of the 1920s American Dream in The Great Gatsby. Disponível em:
<http://www.inforefuge.com >. Acesso em: 5 Out. 2014.
SMILJANIĆ, Siniša. The American Dream in The Great Gatsby. Croácia: Rijeka, abril
2011.
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LITERATURA REGIONAL POPULAR

VARIAÇÃO REGIONAL/POPULAR NA OBRA DE LEONARDO MOTA:


ASPECTOS LÉXICOS

Maria Silvana Militão de Alencar


Universidade Federal do Ceará

Considerações Iniciais

A presente comunicação tem como objetivo descrever e analisar aspectos semântico-


lexicais das lexias complexas e textuais na obra Adagiário brasileiro de Leonardo Mota. No
Estado do Ceará, autores de literatura popular de renome nacional, como Manoel de Oliveira
Paiva, Catulo da Paixão Cearense, Patativa do Assaré, Leonardo Mota, dentre outros, retratam
a linguagem do nosso estado, bem como nossos costumes e tradições.
Esta pesquisa justifica-se por revelar, através do léxico, aspectos da vida cotidiana do
sertão nordestino, bem como os valores sócio-histórico-culturais da realidade local. O léxico é
o aspecto da linguagem que melhor define a variação, quer seja social, regional ou estilística.
É no Léxico que essas variações assumem seu caráter diatópico, diastrático e diafásico.

O Autor: vida/obra

Leonardo Mota, Leota, era assim que gostava de ser chamado, nasceu em Pedra
Branca, no dia 10 de maio de 1891 e faleceu em Fortaleza, no dia 02 de janeiro de 1948.
Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará em 1916. Foi membro da
Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará, escritor, professor, advogado, promotor
de justiça, secretário do governo, tabelião, jornalista e historiador. Proferia palestras para
estudiosos e interessados folcloristas. Era um animador de rodas de amigos e intelectuais da
Praça do Ferreira. Intitulava-se o “último boêmio do Ceará”, pelo seu modo de ser, seu gênio
alegre e sua capacidade de interpretar o sertanejo.
Adagiário Brasileiro, como o próprio nome indica, é uma coletânea de adágios.
Permaneceu nas mãos de Leonardo Mota durante 13 anos. Por ocasião de sua morte, o livro
desapareceu, misteriosamente, e jamais foi recuperado, o que seria a obra principal do escritor
no campo do folclore. Reunindo notas manuscritas, apontamentos, rascunhos, publicações na
imprensa e capítulos finais de seus livros, seus filhos, Moacir e Orlando, fizeram um
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apanhado do que seria o livro integral, reconstituindo-o em pelo menos 80%, um grandioso
projeto de paremiologia comparada, envolvendo as línguas latinas. O legado de Leota é tão
rico que assim recomenda Cascudo (1999) a Orlando Mota: “Não mexe em nada do que o teu
pai escreveu. Orlando, Orlando... O que o Leota fez está feito e é sagrado”.
Folclorista dos maiores que já se teve, Leonardo Mota desempenha papel importante
na literatura folclórica brasileira. Defensor tenaz do sertão sofrido ressaltou a linguagem
simples do homem do campo. Tendo dedicado sua vida à pesquisa, cruzou o Brasil do
Oiapoque ao Chuí, viajou pelo sertão, observando e anotando as manifestações populares,
enaltecendo a inteligência e a vivacidade de espírito da gentehumilde do sertão. Em sua
pesquisa sobre a paremiologia nacional, selecionou adágios que foram comparados com cerca
de 5.000 adágios estrangeiros. A seguir, o acervo literário de Leonardo Mota, o príncipe dos
folcloristas brasileiros:
 Cantadores (1921): poesia e linguagem do sertão cearense;
 Violeiros do Norte (1925): poesia e linguagem do sertão nordestino. Foi premiado pela
Academia Brasileira de Letras, o que garantiu a Mota o título de Embaixador do Sertão;
 Sertão Alegre (1928): poesia e linguagem do sertão nordestino;
 No Tempo de Lampião (1930): história de cangaceiros, anedotário e notas sobre poesia e
linguagem populares;
 Prosa Vadia (1932): palestras lítero-humoristas;
 Cabeças-Chatas (1939/1993): Casa do Ceará em Brasília, perfil de alguns cearenses
notáveis;
 Padaria Espiritual (1938/1939): história de um movimento literário no Ceará, 1892/1898;
 Adagiário Brasileiro (1991): coletânea de adágios e expressões proverbiais do Brasil,
estudos de paremiologia comparada. Existe, sim, uma peremiologia tipicamente brasileira,
háum adagiário nacional riquíssimo, faltando apenas quem o estude e divulgue a filosofia
popular.

Pressupostos teóricos

A língua, pela própria dinamicidade, está sempre sofrendo alterações, que podem ser
condicionadas por fatores históricos, socioculturais e geográficos. E o léxico, tão rico e tão
dinâmico quanto a língua, é o conjunto das palavras de uma língua, as lexias. Desse modo,
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nas investigações sobre questões lexicais de um determinado grupo, não se pode prescindir de
levar em consideração a influência desses fatores, uma vez que é o nível que mais incorpora e
traduz estas alterações.
O léxico, segundo Biderman (2001, p. 179), representa “a somatória de toda a
experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através do tempo”. O
estudo do léxico é objeto de investigação científica de áreas de conhecimento distintas, as
ciências do léxico – Lexicologia (estudo científico do processo de funcionamento do sistema
lexical de uma língua), Lexicografia (seu estudo nas obras de referências: dicionários,
vocabulários, glossários) e Terminologia (estudo de termos técnicos de áreas de
especialidade).
O grande problema de se estudar o léxico advém do fato de se tratar de uma porta
aberta para a língua, quer modificando ou criando novos termos, segundo as necessidades
sócio-histórico-culturais dos seus falantes, uma vez que reflete essas influências no modo de
nomear a realidade que os cerca. Segundo Biderman (2001, p. 13), “foi o processo de
nomeação que gerou o léxico das línguas naturais”, perpetuando valores, crenças e costumes
de uma comunidade social.
Outra área de pesquisa que se volta para as diferenças dialetais ou regionais de uma
língua, notadamente no léxico, é a Dialetologia. As diferenças dialetais, marcadas
geograficamente são estudadas pela Dialetologia e pela Geografia Linguística, método da
Dialetologia que se refere “[...] à representação de dialetos, em mapas, que constituem os
Atlas linguísticos” (RECTOR, 1975, p. 24).
Os estudos dialetais sem deixar de lado o parâmetro diatópico (regional, espacial),
abrem espaço para a inclusão de outros parâmetros, tais como: o diastrático (estudo das
classes sociais), o diagenérico (estudo das ocorrências no sexo masculino e feminino) e o
diageracional (que reproduz z convivência das gerações). As tendências atuais conduzem a
evolução da Dialetologia tradicional, essencialmente diatópica (Geolinguística), para uma
Dialetologia pluridimensional que incorpora a verticalidade.
Inúmeras são as contribuições dessa nova dimensão nos estudos dialetais,
especialmente, nos que se desenvolvem sob a metodologia Geolinguística. O Atlas
Linguístico do Brasil – ALiB, por exemplo, trabalha, conjuntamente os três parâmetros: o
diagenérico, o diageracional e o grau de escolaridade.
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Há muito tempo, dialetólogos brasileiros, como Amadeu Amaral, Antenor Nascentes,


Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, dentre outros, vêm estudando as particularidades
regionais da língua, as mudanças ocorridas no decorrer da sua história, com vistas a buscarem
a identidade linguística de cada região brasileira.
Não resta dúvida que, no Brasil, houve um grande impulso nas pesquisas,
principalmente, no âmbito da Universidade, com o surgimento de novos cursos de Pós-
Graduação, mas dado o gigantesco acervo cultural de o que o povo brasileiro é possuidor, tais
estudos ainda não satisfazem totalmente.
No Ceará, por exemplo, há uma grande quantidade bastante significativa de trabalhos
que podem contribuir para o estudo e descrição do falar cearense, necessitando alguns, apenas
de um tratamento especializado, e a grande maioria, de divulgação.
Dentre os pesquisadores cearenses, cita-se Martinz de Aguiar, como pioneiro, cujo
trabalho publicado em 1922, sem contar com a tecnologia de que se dispõe atualmente, nos
impressiona pelos resultados apresentados. A seguir, vem Florival Seraine, com uma vasta
publicação tanto no campo do folclore como no da linguagem. Mencionam-se, também,
Leonardo Mota, Antônio Sales, Tomé Cabral, Raimundo Girão, dentre outros. Listam-se, a
seguir, algumas pesquisas dialetais realizadas no Ceará:
No folclore cearense há um número significativo de livros e artigos. Dentre eles:
Lendas e canções populares, de Juvenal Galeno; Cirandas Infantis, de Martinz de Aguiar;
Cantigas de Fortaleza e arredores, de Manoel Albano; Reisado no interior cearense, de
Florival Seraine.
Na literatura popular, destacam-se: Cantadores, Violeiros do Norte, de Leonardo
Mota; Cantador, musa e viola, de Eduardo Campos. Como ensaios e estudos, o trabalho de
Martinz de Aguiar, Fonética do português do Ceará, parte do livro Repasse crítico da
gramática portuguesa (1922), desperta grande interesse entre os pesquisadores nos dias
atuais. Antônio Sales, com Notas de Linguagem (1924) e O falar cearense (1927).
Quanto aos vocabulários e dicionários populares, os mais conhecidos são:
Vocabulário popular cearense, de Raimundo Girão (1967/2000); Dicionário de termos
populares, de Florival Seraine (1959/1960); Novo dicionário de termos e expressões
populares, de Tomé Cabral (1972). O dicionário de Tomé Cabral é o mais volumoso,
contendo cerca de 15.000 verbetes coligidos por ele mesmo. Fora estes, há o dicionário
específico, Nomes e expressões vulgares da medicina no Ceará, de Eurípedes Chaves Júnior
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(1985). Seraine, porém, foi quem mais se destacou nas pesquisas diatópicas e diastráticas,
chegando mesmo a publicar o artigo Introdução ao Atlas Linguístico e Folclórico do Cariri,
em explorou, também, o critério etário (diageracional).

Metodologia

A metodologia utilizada é de caráter qualitativo, cuja análise apoia-se, essencialmente,


na obra em estudo. Os itens lexicais estudados poderão mostrar a diversidade de visões de
mundo e como cada região elabora lexicalmente esse universo.

Constituição do corpus

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram selecionadas 70 lexias, entre simples e


complexas, registradas por Leonardo Mota no seu livro Adagiário Brasileiro, referentes a
aspectos lexicais da linguagem regional/popular. Com base nessa seleção foi elaborado um
questionário que foi aplicado a 16 informantes (8 do sexo masculino e 8 do sexo feminino),
distribuídos, igualmente, em duas faixas etárias (faixa etária I, de 18 a 30 anos; faixa etária II,
de 45 a 65 anos) e em dois níveis de escolaridade (Fundamental e Superior).
Com o objetivo de analisar e descrever unidades lexicais que nomeiam as expressões
foi realizado, inicialmente, o levantamento das diferentes maneiras de falar do sertanejo,
enfocando os campos semânticos: amor, marido, mulher, homem, antes e hoje. Assim,
ocorpus do trabalho constitui-se não apenas das lexias que constituem os campos semânticos,
mas na totalidade de dados recolhidos com a aplicação de um questionário, contendo
expressões registradas pelo autor e perguntas sobre o conhecimento/o uso e o não
conhecimento das mesmas. A seguir, apresentam-se os campos semânticos selecionados e, em
alguns, o correspondente em outros idiomas:
Amor:
 Amor com amor se paga. L’amourne se paye que d’amour;
 Amor de parente é mais quente;
 Amor e bexiga só dá na gente uma vez;
 Amor e reino não quer parceiro;
 Amor e senhoria não quer companhia;
 Amor é vento – vai um, vem cento;
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 Amor faz muito, mas dinheiro faz tudo;


 Amor novo trata-se a ovos batidos;
 Amor primeiro não tem companheiro.
Marido:
 Marido e caju, o melhor tem pigarro;
 Marido enfeitado, mulher pra um lado;
 Marido, ou nunca o ter, ou nunca o perder;
 Marido velho e mulher nova, ou corno ou cova.
Mulher:
 Mulher andeja fala de todos, e todos dela;
 Mulher, arma e cavalo de andar, nada de emprestar. Il nefautprêternisonépée, nisonchien,
nisafemme;
 Mulher Barbuda, Deus nos acuda;
 Mulher bem casada não tem sogra, nem cunhada;
 Mulher bos é prata que soa;
 Mulher bonita e homem valentão têm muita extração;
 Mulher, cachaça e bolacha, em toda parte se acha;
 Mulher calada é pior que boi sonso;
 Mulher, cavalo e cachorro de caça, se escolhe pela raça;
 Mulher chorosa, mulher fogosa;
 Mulher de bigode nem o diabo pode;
 Mulher de cabelo na venta, nem o diabo aguenta;
 Mulher é como espelho: pra se sujar basta o bafo;
 Mulher tagarela fala de todos, todos falam dela.
Homem:
 Homem pequeno só serve pra apanhar ponta de cigarro;
 Homem pequeno só serve pra escorar carga e tapar chocalho;
 Homem que faz gosto a macho é barbeiro;
 Homem honrado, antes morto que injuriado;
 Homem se casa quando quer, mulher se casa quando Deus é servido.
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Antes:
 Antes a lã se perca, que a ovelha. Mieuxvautperdrelalaine que labrebis;
 Antes cautela que arrependimento;
 Antes de entrar, pensar na saída. Avant dentrer, songez à lasortie;
 Antes tarde do que nunca. Plutôttard que jamais. Better late thannever;
 Antes só do que mal acompanhado. Antes solo que mal acompaňado.
Hoje:
 Hoje em dia, até santo precisa ser da moda;
 Hoje em dia, o dono do cavalo anda na garupa;
 Hoje em dia, quem menos corre é quem mais caminha;
 Hoje rico é festejado, amanhã pobre e desprezado.

Análise de dados

O livro em estudo divide-se em 4 partes. O corpus para análise foi retirado da parte II,
composta pelos capítulos finais dos 4 primeiros livros: Elucidário, do livro Cantadores; 2
Modismo e Adagiário, do livro Violeiros do Norte; 3 Linguagem Popular, do livro Sertão
Alegre; 4 Filosofia Popular; 5 Silva de Ditados; 6 Apelidos Sertanejos e 7 Comparações
Matutas, do livro No tempo de Lampião.
Para este trabalho, foram aplicados questionários a 16 informantes da capital cearense.
Foram levantados 1.120 dados nos quais observou-se uma preferência por parte dos
informantes pelo uso da forma de maior ocorrência na sua comunidade. Inicialmente, é
preciso considerar que alguns informantes forneceram mais de uma designação como
resposta.
Os dados selecionados para a análise foram organizados de maneira a permitir
observar o aspecto diacrônico no discurso dos falantes, considerando-se a perspectiva do
léxico na sua relação com a história social das línguas.
No Quadro 1, apresentam-se as expressões registradas por Leonardo Mota e as
variantes registradas pelos informantes. Pode-se observar que algumas lexias apresentam
variantes quanto ao uso, dependendo da faixa etária, gênero ou grau de escolaridade. Outras
apresentam significado diferente, e há ainda aquelas com preferência pelas formas inovadoras,
principalmente, entre os mais jovens.
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Quadro 1 – Expressões registradas por Leonardo Mota e variantes registradas pelos


informantes
Expressões registradas por Leonardo Mota Variantes registradas pelos informantes
1. Elucidário – do livro Cantadores(1921)
Aboticado – tornado saliente. Diz-se Olhos esbugalhados.
especialmente do globo ocular. Olho
aboticado.
Batoré ou baé – baixo. Tronco de amarrar onça; Vara de tirar
jerimum. Tamborete de forró. Entroncado.
Brochote – rapazola, pessoa sem importância. Rapaz novo.
Bundacanasca – b rincadeira infantil que Bundacanastra; Bundacanasta.
consiste em apoiar a cabeça na areia ou relva e
virar o corpo, em seguida; cambalhota.
Lundu – amuo. Lundum; Banzo. Calundu. Duas caras.
Malino – vadio. Diz-se das crianças. Buliçoso; Danado; Capetinha; Traquino
Perequeté – faceiro, pedante. Emperiquitado. Espilicute.
Pilôra – o mesmo que passamento. Troço; síncope.
2. Modismo e Adagiário – do livroVioleiros do Norte (1925)
A cavalo dado não se abre a boca – não se A cavalo dado não se olha os dentes.
analisam dádivas com o intuito de descobrir
defeitos.
Andar com a pulga atrás da orelha – suspeitar Cabreiro; Cismado
de algo.
Catrevage – grande quantidade. Fuleragem; Trambolho; Entulho. Cacareco.
Ceroto – sujidade. Cascão; Grude.
Estar tinindo – estar repleto. Limpo; Perfeito; Estar no ponto; Ligadaço.
Ponta de agulha.
Gaitada – risada. Gargalhada
Quando você ia pros cajus, eu já vinha das Quando você ia com a farinha, eu voltava com
castanhas – eu o antecedi. o bolo.
Quando você ia com o fubá, eu já voltava com
o angu.
Quando você ia com o milho, eu já tinha
comido o fubá.
Quando você ia com o milho, eu já vinha com
a pipoca.
3. Linguagem Popular – do livro Sertão Alegre (1928)
Atubibar – apoquentar.. Ex.: Vá atubibar o Encher o saco; Apoquentar; Apurrinhar.
diabo com reza...
Baiacu – indivíduo baixo e gordo. Baleia.
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Expressões registradas por Leonardo Mota Variantes registradas pelos informantes


Cabiçulinha – nome de um brinquedo infantil; Bila; Cabiçulinha; Bola de gude.
bila.
De papoco – locução que dá ideia avantajada. É o que há; Bom pra caramba; Da hora; De
Ex.: Festa de papoco. arromba; Top; Massa.
Ensebar as canelas – fugir. Capar o gato; Pegar o beco; Sebo nas canelas;
Pernas pra que te quero; Picar a mula.
Ir pro caritó – não casar, ficar titia. Ficar pra titia. Encalhada.
Passar por baixo da mesa – chegar tarde para Ficar na cheirosa; Ficar chupando o dedo.
uma refeição.
Quem nasceu pra derréis não chega a vintém – Quem nasceu na lama, nela viverá.
pobreza é destino.
4. Filosofia Popular – dolivro No Tempo de Lampião (1930)
Água fria não escalda pirão. Gato escaldado não tem medo de água fria;
Adular não é meio de vida, mas ajuda a viver. Babar ajuda a viver.
Boca calada é remédio. Em boca calada não entra mosca.
Boca fechada não entra mosquito.
Em briga de irmão não se dá opinião. Em briga de marido e mulher não se mete a
colher.
Em briga de família, ninguém se mete.
Muito luxo, pouco bucho. Viva o luxo, morra o bucho.
Pote velho é que esfria água. Panela velha é que faz comida boa.
5. Silva de Ditados – do livro No Tempo de Lampião (1930)
Debaixo desse angu tem torresmo. Debaixo desse angu tem caroço.
Onde há fumaça, há fogo.
Nessa mata tem cachorro.
Galinha velha é que dá bom caldo. Panela velha é que faz comida boa
Mulher de bigode não é pagode. Com mulher de bigode nem o diabo pode;
Com mulher de bigode, nenhum homem pode.
Quem está de coca papoca. Quem muito abaixa, o fundo mostra.
6. Apelidos Sertanejos – dolivro No Tempo de Lampião (1930).
Barriga de soro azedo – menino barrigudo. Menino do buchão. Bucho quebrado.
Boca de biquara – mulher de lábios muito Boca de peixe.
pintados.
Bunda de tanajura – menino de ancas roliças. Bundão.
Cabeça de bater sola – que tem a cabeça Cabeça de caixa d’água. Cabeça de jerimum.
achatada.
Pega-siri – que usa calças curtas. Pega marreco; Pega frango. Caçando marreco.
Saca de lã – mulher corpulenta. Bolo fofo; Pão zero; Saca de coco.
Sobrancelhas de caboré – que tem Sobrancelhas de taturana; Sabrancelhas de
sobrancelhas espessas. caboré;
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Expressões registradas por Leonardo Mota Variantes registradas pelos informantes


Tronco de amarrar onça – indivíduo baixo e Toco de amarrar jegue; Nanico.
corpulento.
Cambito de sabiá – que tem pernas finas. Perna de seriema; Perna de saracura;Caneta
Bic. Pernas de sibite.
7. Comparações Matutas – dolivro No Tempo de Lampião (1930)
Apanhar que nem couro de pisar tabaco. Apanhar igual galinha pra tirar o choco;
Apanhar que só boi ladrão.
Apertado que só um pinto no ovo. Apertado que só lata de sardinha.
Depressa como quem furta. Ligeirinho como quem rouba. 2
Furado que nem renda de papelão. Furado que nem tábua de pirulito.
Sono leve como o do xexéu. Sono de teteu; Sono de piaba.

A expressão “A cavalo dado não se abre a boca” não é conhecida na capital cearense,
mas “A cavalo dado não se olha os dentes”. Outra expressão “Galinha velha é que dá bom
caldo”, é conhecida e usada como “Panela velha é que faz comida boa”. Em “Mulher de
bigode não é pagode”, é conhecida e usada como “Com mulher de bigode nem o diabo pode”.
Expressões como: “Quando você ia pros cajus, eu já vinha das castanhas”, apresentou
variantes do tipo“ Quando você ia com a farinha, eu voltava com o bolo”; “ Quando você ia
com o fubá, eu já voltava com o angu”; “Quando você ia com o milho, eu já tinha comido o
fubá”; “Quando você ia com o milho, eu já vinha com a pipoca”, que se equivalem no sentido
de não ser novidade. Na linguagem dos mais jovens, a expressão “De papoco” – locução que
dá ideia avantajada. Ex.: Festa de papoco, apesar da convivência com os mais idosos a
preferência de uso é pela equivalente de sentido: É o que há; Bom pra caramba; Da hora; De
arromba; Top; Massa.
No Quadro 2, encontram-se os resultados obtidos através do questionário:
Quadro 2 – Resultados obtidos
Ensino Fundamental Ensino Superior
Expressões Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II
H M H M H M H M
C 47 21 34 77 33 39 17 40
CNU 39 40 46 24 20 27 38 49
NC 54 79 60 39 87 74 85 51
Total 140 140 140 140 140 140 140 140
Legenda: C (Conhece); CNU (Conhece e não usa); NC (Não conhece); H (Homem); M
(Mulher).
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Os dados apresentados no Quadro 2 refletem a preferência dos informantes em termos


de uso das variantes documentadas. Assim, com base nesses dados foi possível perceber, além
da distribuição, aspectos da dinamicidade do léxico, fenômeno responsável pelo surgimento
de novas lexias, pelo uso de outras já conhecidas e pelo desaparecimento de outras lexias de
uso cotidiano.
Conforme o Gráfico 1, observou-se que tanto a mulher com Ensino Fundamental, da
faixa etária II, como a com Ensino Superior, da mesma faixa etária, conhecem e usam mais
expressões do que o homem da mesma faixa etária e grau de escolaridade, consequentemente,
conhece e não usa menos expressões do que o homem e não conhece menos, ou seja, o menor
número.
Gráfico 1 – Conhece

No Ensino Fundamental, F (I), dá-se o inverso, o homem conhece e usa mais


expressões, consequentemente, conhece e não usa menos e não conhece em número menor,
uma vez que conhece e usa mais. No Ensino Fundamental, na F (II) e no Ensino Superior, nas
duas faixas etárias, é a mulher que conhece e usa mais do que o homem.
No Gráfico 2, observa-se que, apesar de a mulher conhecer mais as expressões
registradas do que o homem, ela não as usa, excetuando-se a F (II) em que o homem extrapola
no não uso.
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Gráfico 2 – Conhece e não usa

No Gráfico 3, pode-se observar que somente na F (I), do Ensino Fundamental, a


mulher não conhece mais do que o homem. Nos demais contextos, a mulher não conhece
menos do que o homem. Daí porque, complementando o gráfico 1, a mulher conhece e usa
mais do que o homem nos mesmos contextos.
Gráfico 3 – Não conhece

Considerações Finais

A análise das expressões registradas na obra Adagiário Brasileiro nos possibilitou a


realização do levantamento e a descrição da diversidade do Português falado nessa região,
segundo os princípios da Dialetologia pluridimensional.
À guisa de conclusão, o trabalho procurou mostrar que as lexias trazem na fala dos
informantes, as marcas do contexto em que estão inseridos. O léxico visto como um conjunto
de conhecimentos armazenados na memória social de uma comunidade de fala.
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Os resultados nos revelam que as expressões retiradas da obra citada acima são
conhecidas e usadas, principalmente, pelos cearenses da faixa etária II, acima dos 45 anos,
que vivenciaram esse momento histórico. Enquanto isso, entre os informantes da faixa etária
I, de 18 a 30 anos, a preferência é por lexias equivalentes às que chegaram a conhecer pelo
contato com outras pessoas que usam tais expressões.
Enfim, a realização deste trabalho destacou a importância de que se revestem as
pesquisas empíricas para o registro de variantes de um espaço geográfico, no caso, o da
capital cearense. No dizer de Isquerdo (2001, p.91), “o estudo do léxico de uma região mostra
dados que deixam transparecer elementos significativos relacionados à história, ao sistema de
vida, à visão de mundo do grupo estudado”.

Referências

BIDERMAN, Maria Tereza de Camargo. Teoria linguística: teoria lexical e linguística


computacional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1999.
MOTA, Leonardo. Adagiário brasileiro. Fortaleza: Divisão de Monografia do Banco do
Nordeste do Brasil. S/A., 1991.
______. Cantadores. 3. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1921.
______. A padaria espiritual. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1939.
______. Cabeças chatas. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1993.
______. No tempo de Lampião. 2. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1967.
ISQUERDO, Aparecida Negri. Vocabulário do seringueiro. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto
Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri (orgs.). As ciências do léxico: lexicologia,
lexicografia, terminologia. 2. ed. Campo Grande, MS: UFMS, 2001. v. 1. p. 91-100.
RECTOR, Mônica. A linguagem da juventude. Petrópolis: Vozes, 1975.
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O REGIONAL/POPULAR EM O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ: UMA


ANÁLISE LÉXICO-SEMÂNTICA

Clécia Maria Nóbrega Marinho


UFPB

A língua em uso constitui um ilimitado complexo de traços antropo-sócio-cultural-


ideológicos que se configura em seu subsistema lexical, diferenciando-a de outras e
promovendo, em um só tempo, a unicidade de uma comunidade lingüística, comportando,
também, as diferenças de uso de cada indivíduo. Por isso, a língua é heterogênea e constitui-
se de incomensuráveis variações, que, apesar de garantirem a expressiva mutabilidade da
língua, não lhe comprometem o funcionamento, enquanto instrumento de comunicação e
interação social.
Tal diversidade advém da influência de natureza geográfica responsáveis pela
oposição linguagem urbana X linguagem rural; sociocultural, que nos permitem citar, entre
outras, as variedades culta e popular da língua, diretamente ligadas ao falante ou ao grupo em
que se insere, ou à situação, podendo, ainda, ligarem-se aos dois ao mesmo tempo. Todas elas
prestam-se a análises nos níveis fonético-fonológico, morfológico, sintático e semântico e
relacionam-se com a maneira pela qual os indivíduos de um determinado grupo social
estruturam o pensamento e articulam a linguagem, em conformidade com o sistema de vida e
cultura em que vivem.
É no subsistema lexical de uma língua que os traços dessa diversidade mais clara e
rapidamente se evidenciam. À medida que os usuários atribuem conotações particulares aos
lexemas – unidades léxicas de significação externa – nos atos de fala agem sobre a estrutura
lexical alterando os campos de significação das palavras. Em outros termos, a semântica de
uma língua é gerada pelos falantes de uma comunidade que a usa em seus atos de fala,
particularmente aqueles de maiores criatividade e competência lingüística, a exemplo de
escritores e poetas.
Nesse sentido, Tereza Biderman (1978, p. 149) diz que “A criatividade artística é
capaz de explorar a significação de maneira tão original e desusada, que os escritores
normalmente estão sempre ampliando o halo de significação de uma palavra, ou melhor, o seu
campo semântico”.
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Esse dinamismo da língua é o responsável pela complexidade em termos de descrição


do léxico. No intuito de estabelecerem princípios organizacionais do vocabulário, muitos
estudos foram realizados, dentre eles, a teoria dos campos lexicais, doravante, teoria dos
campos léxico-semânicos, uma vez que atende ao nosso propósito, sem, contudo, alterar-lhe
os postulados, pois, segundo essa teoria, as palavras ao constituírem uma cadeia de
significações, que se delimitam entre si, produzem realidades lingüísticas vivas consideradas a
partir do contexto, evidenciando, então, que um campo semântico reflete a experiência de
uma sociedade – crenças, valores, costumes, o pensar e o agir, perspectivas – cristalizando-a,
perpetuando-a e transmitido-a até que novas experiências estimulem a refeitura do campo,
explicando, em termos, a interface língua-sociedade-cultura.
É oportuno ressaltar que a semântica do termo cultura acerca-se de controvérsias, no
entanto, não entraremos no mérito da questão, visto que este espaço não as comporta. Assim,
optamos pela a concepção antropológica de cultura que se refere a um variado conjunto de
valores, convenções, crenças, costumes, hábitos e práticas características de uma sociedade,
contemplando satisfatoriamente nosso intento.
No conjunto desses fenômenos sociais acima referenciados, a língua é o mais essencial
e universal na cognição sociocultural das comunidades humanas.
Em sua modalidade falada e enquanto instrumento primeiro e fundamental de
comunicação e interação, a língua é espontânea, afetiva, natural, enfim, utilitária por
excelência. Sobre essa modalidade de uso da língua, Biderman (1978, p.161) infere que

É da essência da linguagem oral buscar o máximo de expressividade: assim


os usuários da língua [...] inventam novos matizes metafóricos e
metonímicos para palavras velhas, ou inventam novas formas que eles
julgam corresponder melhor àquilo que pretendem dizer. (grifo nosso)

Este artigo tem sua gênese numa dissertação de Mestrado por mim elaborada na
Universidade Federal da Paraíba, cujo título versa sobre Expressões de Fala em O Quinze, de
Rachel de Queiroz: uma análise léxico-semântica.
Seguindo as mesmas hipóteses e metodologia do trabalho anteriormente realizado: 1) é
possível realizar estudos lexicológicos a partir teorias linguísticas e sociológicas; 2) na obra
selecionada constam palavras, expressões e estruturas próprias da oralidade; 3) aspectos extra-
linguísticos são identificáveis no léxico dessa obra que nos permitem proceder a uma análise
léxico-semântica em que se configure a interface língua-sociedade-cultura, perfilamos as
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especificidades que julgamos adequadas ao nosso propósito, sob a perspectiva selecionada: 1)


identificamos as estruturas lingüísticas que determinam a construção do léxico em O Quinze;
2) consideramos as palavras, expressões e estruturas próprias da oralidade; 3) e buscamos
identificar aspectos extra-linguísticos constituintes desse léxico que ratificassem, mais uma
vez, a relação indissociável língua-sociedade-cultura.
Vale ressaltar, neste ponto, que a construção de um corpus para uma análise lingüística
é uma prática comum no meio acadêmico, a exemplo de corpora de inúmeras pesquisas no
campo Sociolinguística e da Dialetologia, que, de certa forma, se solidarizam ao
estabelecerem as relações entre certos usos lingüísticos e certos grupos de indivíduos, além de
estudarem a língua em sua modalidade falada, tão presente em autores modernos e
contemporâneos, que a transportam para a escrita no intento de aproximarem o leitor da
realidade concreta; da Lexicologia, que estuda o léxico/vocabulário de uma língua, seu
relacionamento com outros subsistemas, sobretudo, no que se refere a sua estrutura interna,
nas suas relações e interrelações, ocupando-se ainda com as “palavras” de uma língua em
todos os seus aspectos, podendo incluir a Etimologia, a formação de palavras, a morfologia, a
fonologia, a sintaxe, e mantém uma relação especial com a Semântica – ciência das
significações.
Sobre a significação das palavras – objeto da Semântica – Pierre Guiraud (1975, p. 32
– 47), diz que “a palavra transmite a imagem da coisa. Em cada palavra há um sentido base e
um sentido contextual; é o contexto que lhe especifica o sentido, e em cada caso, o nome
evoca o conceito preciso”. Entretanto, simultaneamente, são constituídas outras associações
extranocionais que lhe confere uma nova coloração sem que esta lhe altere o conceito. São
palavras e construções que expressam emoções, desejos, intenções, julgamento dos falantes,
além de outras ligadas ao grupo e ao contexto social. Nos valores sócio-contextuais, as
palavras evocam não apenas a imagem daqueles que as usam, mas também das situações em
que estão envolvidos.
Em verdade, toda língua apresenta duas faces, uma intelectiva e outra afetiva. Nesta,
manifesta-se a subjetividade: a expressividade da língua, que consiste nos mecanismos
disponibilizados por esta aos seus usuários, mediante os quais estes expressam – escrita ou
oralmente – estados emotivos e julgamentos de valor, estimulando, assim, em seus leitores ou
ouvintes uma reação de natureza semelhantemente afetiva.
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Essa afetividade, por vezes, é inerente ao próprio significado do vocábulo empregado,


em outras, é produto do uso particular deste, e só é verificável dentro do enunciado, levando-
se em conta o contexto. Neste sentido, certas palavras evocam formas de vida, de atividade,
sentimentos, emoções, idéias, pensamentos, meios socioculturais, em suma, todos os
fenômenos da vida, consequentemente, a incomensurável variabilidade semântica dos
vocábulos.
Considerando tais aspectos da linguagem, além de outros que se nos apresentaram
necessários, analisamos o léxico contextualizado em O Quinze, observando, principalmente, o
efeito evocador das palavras, expressões e estruturas lingüísticas de cunho regional/popular
no que concerne a valores e costumes nelas configurados.
Neste ponto, destaque-se que para efeito de análise, consideramos o conceito de valor
apresentado por F. Znaniecki, citado no DCS (1987, p. 1288), que diz

Por valor social entendemos qualquer dado que tenha conteúdo empírico
acessível aos membros de algum grupo social e um significado em relação
ao qual é ou pode vir a ser objeto de atividade... Por atitude entendemos um
processo de consciência que determina a atividade real no mundo social ... A
atitude é, assim, o equivalente individual do valor social; a atividade, seja lá
em que forma, é o vínculo entre eles... A causa de um valor ou de uma
atitude nunca é uma atitude ou valor isolado, mas sempre uma combinação
de uma atitude e um valor.

Como conjunto de traços culturais, ideológicos ou institucionais, os valores definem-


se em nível de sistema ou internamente, em nível de grupos menores, além de outros, da
família, de tradição, da vida rural, da vida urbana, de espiritualistas.
Sendo assim, os valores culturais distinguem-se dos gostos e preferências pessoais.
Estas são regidas, unicamente, pela vontade do próprio indivíduo. Já os valores culturais são
exteriores ao indivíduo, enquanto partícipe de uma sociedade. Eles existem porque são
importantes para um determinado complexo cultural e, como tal, são acessíveis ao indivíduo.
O respeito aos mais idosos, por exemplo, é um valor; sua categoria como parte da cultura não
se deixa afetar pelo grau de importância variável que uma ou outra pessoa possa lhe conferir.
Ademais, em virtude das relações internas e internacionais dos povos, um mesmo valor,
salvaguardadas as adaptações, pode fazer parte de mais de uma cultura.
Como parte de qualquer cultura, os valores encontram relevância na influência que
exercem no modo de as pessoas realizarem suas escolhas e de os sistemas sociais se
desenvolverem e se modificarem, o que implica ética e consenso.
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É oportuno lembrar que apesar de algum grau de consenso em torno de alguns valores
ser, possivelmente, inerente à própria idéia de sistema social, este consenso é sempre parcial,
principalmente, em sistemas maiores e mais complexos, a exemplo da sociedade.
Por seu turno, as práticas sociais de natureza não-ética aceitas por uma sociedade ou
subgrupos desta como tradição e aprendidas pelo indivíduo como hábitos constituem os
costumes.
Na obra analisada, dentre tantas ocorrências de palavras, expressões e estruturas
lingüísticas evocadoras de valores e costumes selecionamos para este espaço algumas
analisadas.
Comecemos por “─ [...] Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se
sujando com negra?” (p. 60, linha 24), em que, na essência de seu radical, a palavra
SUJANDO concentra a idéia de resto, de borra, de imundície, de grosseiro, em suma, remete
à noção de vilipêndio.
Assim, a estrutura verbal que ora se apresenta marcada pela noção de uma ação reflexa
e contínua, em que a palavra SUJANDO é a base de significação, na sua relação com os
vocábulos MOÇO BRANCO e NEGRA, mostra-se reveladora de uma atitude cultural, de teor
preconceituoso, fruto de um julgamento de valor baseado na crença estereotipada da
inferioridade da raça negra, em que se podem incluir, dentre outros campos, o da inteligência,
do caráter moral, da motivação, das habilidades. Conforme Alann Johnson (1997, p. 180), “O
preconceito é uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou
categoria social. Como atitude, combina crenças e juízos de valor com predisposições
emocionais positivas ou negativas”. Destarte, ANDAR SE SUJANDO revela um valor
sociocultural.
Essa atitude cultural denota-se, ainda, no emprego do vocábulo NEGRA, como
substantivo, em referência à personagem Zefa, “Zefa [filha] do Zé Bernardo”. A ausência do
termo moça, designativo de pessoa do sexo feminino, à medida que sugere a “coisificação” do
elemento humano, intensifica a idéia de aviltamento por parte da personagem Conceição em
relação àquela.
Conforme vimos, a referida “coisificação” é elemento compósito da fala de uma
personagem da raça branca – se é que no Brasil este adjetivo pode ser empregado nesse
sentido com segurança – mas que tal elemento também encontra-se na fala de personagem da
raça negra: “─ O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra
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bico de cabra que nem nós...” (p. 57, linha 15), o que ratifica a força desse valor cultural
preconceituoso da sociedade retratada na obra em foco.
Numa fala da personagem D. Inácia outro valor é identificado, desta feita, envolvendo
a função da mulher naquela sociedade: “─ E para que você [Conceição] torceu a sua
natureza? Porque não se casa?” (p. 124, linha 29)
A Mãe Natureza é feminina! Todo dia, num processo contínuo, renova-se, recicla-se,
no seu papel procriador.
Ao empregar o termo TORCEU, significando alterar, modificar, e complementar-lhe o
sentido com A SUA NATUREZA, enquanto constituição orgânica, a locutora – Dona Inácia,
avó de Conceição – questiona a neta, estabelecendo um paralelismo entre as duas naturezas,
apontando o que deve ser feito pela natureza humana nos moldes da MÃE NATUREZA, e,
assim, deixando situar-se na sua linguagem um valor ético de cunho místico, baseado na
gênese e na funcionalidade do Universo.
Esse dever fazer da natureza humana feminina, em seu papel procriador, reflete-se na
imediata indagação em que ele aparece condicionado a uma atitude ético-sociocultural: de
casar-se.
Assim, nesta fala de Dona Inácia, estão circunscritos valores socioculturais que
orientam para a compressão de que à mulher cabe casar para depois procriar e, socialmente,
cumprir o seu papel de mãe, esposa e dona de casa, em suma, formar uma outra instituição
social da qual ela é o esteio emocional.
Em “─ E se a rama faltar, então, se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar
meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos...” (p. 12,
linha 10), a carne é a parte macia, musculosa, mais suculenta, portanto, mais digerível do
corpo do homem e do animal; o osso, ao contrário, é a mais dura, menos digerível.
Neste adágio proferido por Vicente, em censura a “Dona Maroca da Aroeiras”, que,
considerando vãos os gastos excedentes com o gado, em razão da seca, ordenou que os
soltassem, a palavra CARNE, ao tempo em que é metonímia de todas as substâncias
imprescindíveis à manutenção da vida, metaforiza o trabalho, o esforço e a dedicação
necessários à conservação e ao funcionamento da fazenda e, por conseguinte, a garantia do
alimento para o corpo e para a alma de seu proprietário.
O vocábulo OSSOS, por sua vez, representa as dificuldades, as agruras, os obstáculos
que Vicente tem de enfrentar, em face da seca, para garantir àqueles a permanência da vida.
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Considerando-se a obrigatoriedade do fato expresso em ROER, triturar vagarosa e


continuadamente, indicada pelo elemento lingüístico DE, o adágio em questão, bastante
freqüente na linguagem popular, é expressão de valor cultural, com teor moral-religioso e
aponta para a responsabilidade e a fidelidade que devem marcar as relações sociais e pessoais;
enquanto valor cultural, influenciou no posicionamento de Vicente.
Encontramos, ainda, sobre costumes a seguinte ocorrência: “[...] E a conversa
continuou a correr animada, enquanto a velha, que mandara trazer a almofada para o
alpendre, trabalhava, trocando bilros.” (p. 16, linha 19).
Tal como foi empregada, neste contexto, a palavra ALMOFADA significa um tipo de
saco de tecido de algodão, de dimensões variadas, que, após ser enchido com capuchos de
algodão, capim ou palha, tem suas extremidades fechadas e presta-se ao fabrico de rendas e
bicos, cujos modelos se definem a partir do cartão ou pique, furado ou desenhado, colocado
em cima da almofada, com a função de guia.
Cada modelo é denominado de acordo com a sugestão marcada no próprio cartão:
pingo de chuva, flor de café, abacaxi; a variabilidade de modelos é bastante expressiva, e
estes, muitas vezes, são motivo de segredo da família que os elaborou.
Os tipos de renda tecidos em terras brasileira contam uma longa viagem: da França, de
Flandres e da Itália – conceituados centros já em meados do séc. XV – a Portugal, de onde
aqui chegaram no séc. XVII e, com ajustamentos, assumiram nossa “fisionomia” cultural.
Apreciada por todas as camadas sociais, as rendas continuam sendo tecidas ao
entrelaçar de BILROS – espécie de fuso feito de madeira, com um caroço de macaúba numa
das extremidade; na outra, enrola-se a linha para a feitura da renda na almofada – pelas mãos
habilidosas de nossas rendeiras, profissionais ou não.
Essa prática continuada caracteriza-se um costume, principalmente, no Ceará, em
Alagoas, no Rio Grande do Norte e em Santa Catarina e, neste contexto, configura-se em
ALMOFADA e TROCANDO BILROS, significando fazendo renda de almofada ou renda de
bilro.
Uma das características socioculturais da população sertaneja nordestina é atribuir
valores às pessoas de acordo com o seu status. Uma vez estabelecida esta relação, fixam-se,
automaticamente, na linguagem os referenciais que as caracterizam. Nesse sentido,
considerando-se o contexto, a expressão ‘SER GENTE’ em destaque no trecho “[...] a pobre
senhora [...] ficou chorando pelo filho tão bonito, tão forte, que não se envergonha da
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diferença que fazia do irmão doutor e teimava em não querer ‘ser gente’...” (p. 17, linha 27)
passa, então, a significar o elemento que por meio do estudo destaca-se daqueles que não o
realizam, de sorte que, em determinadas famílias, ser professora normalista, médico, padre,
advogado, dentista circunscreve-se em O Quinze como paradigma social baseado no valor da
relação título-status. Tal expressão parece ter sido transportada para além dos limites do
Sertão Nordeste ao encontrar eco em outras localidades brasileiras, talvez pela sua forte carga
semântica, abrangendo, ainda, outros campos significativos.
Por fim, apresentamos o excerto “[...] achando a vida do sertão uma ‘ignomínia’, um
‘degredo’, e tendo como única ambição um emprego público na Capital” (p. 18, linha 9) ,
cujos destaques foram também objeto de análise.
O verbo achar, neste contexto, já preanuncia julgamento de valor por parte da
personagem Paulo – bacharel que vivia em Fortaleza – que o faz baseado em outro
julgamento refletido no termo ‘IGNOMÍNIA’, grande desonra imposta por um julgamento
público, o que se reafirma em ‘DEGREDO’, afastamento compulsório de um contexto social:
a Nação.
O serviço público está sempre presente, tanto em procedimentos bem definidos da
União, dos estados, dos municípios, dos territórios, quanto nas ações dos poderes
governamentais do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário, tripartição característica dos
regimes republicanos – que editam leis, em torno das quais dirimem dúvidas e, ainda,
tornam efetivo o cumprimento daquelas que se dizem baixadas em nome do interesse do
cidadão, da coletividade e da preservação do próprio país.
Como diz Belmiro Siqueira, no Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio
Vargas (1987, p. 1111), “O Estado moderno, direta ou indiretamente, é forçado a intervir em
todos os setores da vida da nação; não porque o queira, mas porque os grupos sociais assim
exigem [...] ‘mesmo quando temem que o faça demasiadamente’”, o que, socioculturalmente,
confere ao servidor público um nível de importância.
A ambição de várias categorias profissionais é, assim, tornarem-se parte do corpo
funcional de uma das frações do organizado, assim como o é para Paulo, pois vislumbram no
serviço público um status, como profissional e cidadão, que tem a garantia de um bom salário,
portanto, de poder aquisitivo diferenciado e que se mantém por uma aposentadoria.
Tantos são os exemplos de valores e costumes configurados no léxico da obra
analisada, mas os limites aqui impostos não nos permitem delongas. Restando-nos registrar
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que após a conclusão do estudo proposto, foi possível constatar a convalidação das teorias
representadas.
Para efeito de elucidação da análise, e alertas para o aspecto afetivo/expressivo da
língua, primeiramente, buscamos dentre os elementos lingüísticos selecionados aqueles que,
em virtude de seus valores lexicais e semânticos, evocassem valores e costumes. Estes foram
identificados. Alguns deles, enquanto tal, fundamentam a estrutura estratificada daquela
sociedade, situando-a dentro do contexto maior do País. Esses valores abrangem o campo
ético-místico-religioso e se manifestam nos elementos lingüísticos denotadores de práticas e
rituais, quer em descrição do narrador, quer efetivados por personagens, bem como em suas
falas mais espontâneas.
Assim, os objetivos propostos foram atingidos, sem que isso signifique o esgotamento
temático em relação à obra, cabendo, pois, a outros pesquisadores o aprofundamento do
mesmo.

Referências

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Pessoa, A UNIÃO Cia. Editora, 1983.
______. A linguagem regional/popular na obra de José Lins do Rego. João Pessoa,
FENESC, 1990.
BARBOSA, Maria Aparecida. Manual de Lingüística. Petrópolis: Vozes, 1979.
______. Léxico, produção e criatividade: processos do neologismo. São Paulo: Global,
1981.
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria Lingüística (lingüística quantitativa e
computacional). Rio de Janeiro - São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1978.
BOAS, Franz, Antropologia cultural, - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COSERIU, Eugênio. Fundamentos e tarefas da sócio e etnolinguística. In: I CONGRESSO
NACIONAL DE SÓCIO E ETNOLINGUÍSTICA. João Pessoa: UFPB, 1987.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. – 2 ed., Bauru: EUDSC, 2002.
DIALECTAQUIZ, Maria do Socorro Burity. Uma incursão lingüística em Primeiras
histórias de Guimarães Rosa: aspectos léxico-semânticos. UFPB/João Pessoa: Dissertação
(Mestrado), 2003.
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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, RJ:


1987.
GECKELER, Horst. Semântica estructural y teoria del campo léxico. Madrid: Gredos,
1976.
GUIRAUD, Pierre. A semântica. 2.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1975.
HAENSCH, Gunther; WOLF, Lotthar; ETTINGER, Stefan; WERNER, Reinhold. La
Lexicografía: De la linguítica teórica e la lexicografía práctica. Madrid: Editorial gregos,
1982.
PRETI, Dino. Sociolingüística: Os Níveis da Fala: Um Estudo Sociolingüístico do Diálogo
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______. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004, 216p.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes,
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Calouste Gulbenkian, 1964.
URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez,
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VILELA, Mário. Estudos de Lexicologia do Português. Coimbra: Almedina, 1994.
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O LÉXICO REGIONAL/POPULAR NA OBRA “VAQUEIRO POR OPÇÃO” DE


AUTORIA DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA

Wellington Lopes dos Santos1

Introdução

Estudar a linguagem empregada em uma região específica é, acima de tudo, mostrar a


riqueza cultural de uma determinada comunidade de falantes. A oralidade e a escrita revelam
saberes que muitas vezes são restritos àquela comunidade.
Nesse sentido, uma palavra pode ter significado igual ou diferente ao dicionário; pode,
também, não ser dicionarizada, bem como pode apresentar algum registro variacional de
naturezas diatópica (geográfica) ou diastrática (sociocultural).
Tais aspectos linguísticos são o alicerce para o presente trabalho que visa mostrar
através de um glossário a linguagem regional/popular inserida na canção vaqueiro por opção
de autoria do artista paraibano, Zé Vicente da Paraíba.
Zé Vicente da Paraíba foi um dos grandes cantadores nordestinos que ganhou espaço
no cenário artístico popular não só em âmbito regional, como nacional. Nasceu em 7 de
agosto de 1922, na vila de Pocinhos, pertencente ao município de Campina Grande, região
agreste do estado da Paraíba.
Em 1939, Zé Vicente da Paraíba, recebeu de seu pai o melhor presente de aniversário:
uma viola. O instrumento deu-lhe a oportunidade de cantar nas noites e, a partir daí, até a sua
morte (em 2008), muitas composições foram elaboradas e gravadas pelo Brasil afora,
deixando um legado poético de naturezas regional e popular que serviu de inspiração para
regravações por artistas renomados nacionalmente, dentre eles: Alceu Valença, Zé Ramalho,
Elba Ramalho e Geraldo Azêvedo (ALENCAR, 2009).
O presente estudo terá como base teórica os pressupostos da Sociolinguística: estudo
da linguagem em relação com o contexto social ou com a estrutura social das comunidades
falantes (COSERIU, 1987); da Lexicologia: estudo científico do léxico (OLIVEIRA;
ISQUERDO, 2001); da Lexicografia: arte ou técnica de compor dicionários (BIDERMAN,
2001) e da Semântica: estudo do significado da linguagem (MARQUES, 1996).

1
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba - UFPB
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A Obra

A cantiga “vaqueiro por opção”, de autoria de Zé Vicente da Paraíba, foi composta em


24 de agosto de 1988, no município de Altinho, no Estado de Pernambuco. A obra narra,
sobretudo, a paixão do enunciador pela profissão de vaqueiro, pelas festas de vaquejada, pelos
bois, vacas e bezerros, pelo mato e pela caatinga localizada na região Nordeste do Brasil.

VAQUEIRO POR OPÇÃO

Eu sou fã de vaquejada
Ou festa de apartação
Correr no mato encourado
De guarda-peito e gibão
Ferrar gado e vacinar
E puxar boi no mourão

O gado do meu patrão


Eu trato, eu curo, eu ajeito
Quando adoece uma rês
Eu fico mal satisfeito
Só morre se Deus quiser
Porque não posso dar jeito

Só me sinto satisfeito
Quando me vejo ocupado
Tirando leite de vaca
Vendo o bezerro “apeado”
E quando tomo café
Vendo o cavalo selado

Correr no mato fechado


Para mim é diversão
Pegar um boi mandingueiro
Bater com ele no chão
Encaretá-lo e chinchá-lo
Para mostrá-lo ao meu patrão

Sei que é festa no mourão


É muito mais animada
Quando a rádio e a tv
Se encontram nessa parada
E queda de boi no mato
Não tem registro de nada

É carreira disparada
Por cima do tabuleiro
Por entre paus e cipós
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Rasga-beiço e marmeleiro
Mas se não trouxer o boi
Não prova ser bom vaqueiro

É melhor gastar dinheiro


Mesmo sem a profissão
De pegar boi na caatinga
Rasgando o couro da mão
Que a imprensa só registra
Se tiver boi no mourão

Mas eu disse ao meu patrão


Que me arrumou a morada
Que o meu esporte é gado
Sou louco por vaquejada
Tanto faz correr na pista
Como na mata fechada

D’uma sangria apertada


Parte o boi como um jatão
Vaqueiro pega no rabo
Entrega para seu irmão
Tem boi que a maçaroca
Deixa enrolada na mão

Quando eu morrer, meu patrão


Não quero nem choro, nem nada
Convide todos os vaqueiros
Que saibam cantar toada
Por caridade me enterrem
No parque de vaquejada

Aportes Teóricos

Sociolinguística

A Sociolinguística, de acordo com Coseriu (1987, p. 28), é o estudo da linguagem em


relação ao contexto social (ou com a estrutura social dos falantes)”. Ainda de acordo esse
autor, “do ponto de vista linguístico é oportuno limitar a sociolinguística (como disciplina não
sociológica) ao estudo da variedade e variação da linguagem em relação com a estrutura
social das comunidades”.
Historicamente, a sociolinguística só ganhou destaque na década de 60, a partir dos
estudos de Willian Labov, inspirada num método investigativo e sociológico de registrar,
descrever e analisar sistematicamente a variedade linguística nas mais diversas manifestações.
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Ainda sobre a definição e as principais tarefas da sociolinguística, Coseriu (1987, p. 29)


comenta:

O plano do falar em geral é também o plano no qual se estabelecem os


fundamentos racionais da sociolinguística [...]. O objeto da sociolinguística
como disciplina descritiva no plano universal é o grau de conhecimento e
utilização das normas gerais do falar em relação com a estrutura
sociocultural das comunidades. Mas, como o que se fala é sempre uma
língua, a correlação só pode estabelecer-se para o mesmo conhecimento da
língua considerada.

Portanto, para a sociolinguística, a língua é um objeto de interação social que surge e


se transforma de acordo com o contexto sócio-histórico de uma determinada comunidade de
falantes. Nessa perspectiva teórica, conforme Coseriu (1987), a sociolinguística estuda a
variedade linguística a partir de três grandes pontos de vista: diatópico (diferenças no espaço
geográfico), diastrático (diferenças entre as camadas sócio-culturais) e diafásico (diferenças
de modalidades expressivas ocasionadas do falar).

Léxico, Lexicologia e Lexicografia

O léxico de uma língua é todo o conhecimento cultural adquirido através do tempo, da


história e da experiência de cada sujeito social que compõe uma determinada comunidade de
falantes. Assim sendo, existe uma forte ligação conforme Aragão (2005, p. 1), “as relações
entre língua, sociedade e cultura são tão íntimas que, muitas vezes, torna-se difícil separar
uma da outra ou dizer onde uma termina e a outra começa”.
Nessa perspectiva, o léxico de uma língua pode ser considerado como o acervo de
vocábulos de um determinado grupo social que é transmitido de uma geração para a outra e
assim sucessivamente. Biderman (2001, p. 13), acrescenta que “o léxico de uma língua natural
pode ser identificado como o patrimônio vocabular de uma dada comunidade linguística ao
longo da sua história [...]” e, portanto, configura-se como “um tesouro cultural abstrato, ou
seja, uma herança de signos lexicais herdados e de uma série de modelos categoriais para
gerar novas palavras [...]”.
Em linhas gerais, conforme Perini (2006), o léxico de uma língua é um grande
repositório de informação sobre as palavras e outras unidades que usamos para memorizar e
usar a língua com fluência.
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A lexicologia, conforme Ferreira (2004), é a parte da gramática que se ocupa da


etimologia das palavras e das várias acepções delas. Nessa perspectiva, por meio da
lexicologia, é possível observar e descrever cientificamente o léxico através de informações
reveladas através da experiência cultural de uma comunidade linguística. Ainda sobre o
estudo do léxico, Oliveira e Isquerdo (2001, p. 9), acrescentam:

O léxico, saber partilhado que existe na consciência dos falantes de uma


língua, constitui-se no acervo do saber vocabular de um grupo sócio-
linguístico cultural. Na medida em que o léxico configura-se como a
primeira via de acesso a um texto, representa a janela através da qual uma
comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse nível da língua é o que
mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de uma
comunidade, como também, as inovações tecnológicas, transformações
sócio-econômicas e políticas ocorridas numa sociedade [...].

A importância da lexicologia é ressaltada por Ulmann (1964, p. 62), quando diz que “a
palavra desempenha um papel de tal modo decisivo na estrutura da língua que necessitamos
de um ramo especial da linguística para examinar em todos os aspectos. Chama-se a esse
ramo Lexicologia [...]”. Para esse autor, a lexicologia é uma subdivisão dentro da linguística
que transforma a palavra em objeto de estudo.
Por meio da lexicografia, conceituada como a arte ou técnica de compor dicionários, é
possível realizar a transcrição do léxico e organizá-lo num glossário geral. Nesse sentido, a
Lexicografia objetiva, sobretudo, a elaboração de dicionários, vocabulários e glossários.
O fazer lexicográfico não é uma atividade contemporânea, pelo contrário, pois:

[...] é também uma atividade antiga e tradicional. A lexicografia ocidental


iniciou-se nos princípios dos tempos modernos. Embora tivesse precursores
nos glossários latinos medievais, essas obras não passavam de listas de
palavras explicativas para auxiliar o leitor de textos da antigüidade clássica e
da Bíblia na sua interpretação [...] (BIDERMAN, 2001, p. 17).

Assim sendo, de acordo com Haensch, Wolf, Etinger e Werner (1982), a lexicografia
se ocupa da descrição do léxico enfocando os discursos individuais, os discursos coletivos, os
sistemas linguísticos individuais e os sistemas linguísticos coletivos.

Semântica

A semântica é um dos ramos da linguística que tem o objetivo principal de estudar as


questões relativas aos significados das palavras de uma determinada língua. De um modo
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geral, a Semântica é definida como a ciência que estuda a significação; o estudo do sentido
das palavras e, de modo mais amplo, o estudo do sentido das palavras, da frase e do
enunciado. Nessa perspectiva:

[...] a semântica é o estudo do significado em linguagem, semântica é a


disciplina lingüística que estuda o sentido dos elementos formais da língua,
aí incluídos morfemas, vocábulos, locuções e sentenças ( = estruturas
sintaticamente completas ou lingüisticamente gramaticais), ou, ainda,
semântica é o estudo da significação das formas lingüísticas. Parece, então,
muito simples chegar à conclusão de que a semântica tem por objeto o
estudo do significado (sentido, significação) das formas lingüísticas:
morfemas, vocábulos, locuções, sentenças, conjunto de sentenças, textos,
etc., suas categorias e funções na linguagem (MARQUES, 1996, p. 15).

Assim sendo, a semântica, em seu sentido mais amplo, nada mais é do que a ciência
das significações, ou seja - o estudo do significado da linguagem - o que a torna uma
importante ferramenta para os estudos de natureza linguística.

Metodologia

Os instrumentos de pesquisa utilizados no presente estudo foram:

a) ficha lexicográfica;
b) caneta;
c) computador;
d) pen drive.

A metodologia aplicada no presente trabalho obedeceu à seguinte ordem:

a) seleção do corpus: Zé Vicente da Paraíba;


b) delimitação do corpus: a cantiga: vaqueiro por opção;
c) levantamento e estudo das referências bibliográficas;
d) registro dos dados coletados em fichas lexicográficas, estas elaboradas a partir do modelo
proposto pelo Centro de Estudos Lexicais e Terminológicos - Centro Lexterm -, da
Universidade de Brasília (FAULSTICH, 2010).
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A macroestrutura do glossário ficou organizada da seguinte forma:

 27 verbetes;
 As entradas são apresentadas em ordem alfabética, em caixa alta, negrito, fonte Times New
Roman (tamanho 12);
 Informação gramatical (adj. = adjetivo, exp. = expressão, s.f. = substantivo feminino, s.m.
= substantivo masculino, v. = verbo e i. = interjeição);
 As indicações das palavras dicionarizadas com sentido equivalente (PDSE), palavras
dicionarizadas com sentido diferente (PDSD) e palavras não dicionarizadas (PND) são
apresentadas em caixa alta;
 Entre parênteses, em caixa alta, constam as obras lexicográficas pesquisadas: Dicionário
Caldas Aulete Online (A.O.) e Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro (F.N.), para a
verificação da existência de palavras dicionarizadas com sentidos equivalentes, palavras
dicionarizadas com sentidos diferentes e palavras não dicionarizadas;
 Definição;
 Entre aspas está o registro da abonação;
 Registro de variação em itálico é dado através da indicação VAR.

Já a microestrutura ficou organizada na seguinte ordem: entrada + informação


gramatical + dicionarização + definição +/- variação + abonação.

Glossário da linguagem regional/popular de Zé Vicente da Paraíba na obra “Vaqueiro


Por Opção”

AJEITAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Arrumar. “[...] eu trato, eu curo, eu ajeito […]”.
APEADO adj.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Abaixado. “[...] tirando leite de vaca, vendo o bezerro apeado [...]”.
BEZERRO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
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Cria masculina da vaca. “[...] tirando leite de vaca, vendo o bezerro apeado [...]
CAATINGA s.f.
PDSE (A.O.; F.N.)
Vegetação tipicamente brasileira, geralmente composta de espinhos, que é encontrada no
semiárido do Brasil, em especial, na região nordeste. “[...] é melhor gastar dinheiro, mesmo
sem profissão, de pegar boi na caatinga, rasgando o couro da mão [...]”.
CARREIRA s.f.
PDSE (A.O.) PDSD (F.N.)
Corrida desordenada. “[...] é carreira disparada por cima do tabuleiro [...]”.
CHINCHAR v.
PDSD (A.O.) PND (F.N.)
Puxar. “[...] encaretá-lo e chinchá-lo pra mostrá-lo ao meu patrão”.
CIPÓ s.m.
PDSE (A.O.; F.N.)
Planta trepadeira parecida com um corda. “é carreira disparada por cima do tabuleiro, por
entre paus e cipós [...]”.
COURO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Pele de certos animais. “[…] de pegar boi na caatinga, rasgando o couro da mão [...]”.
DISPARADA s.f.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Corrida desenfreada. “é carreira disparada [...]”.
ENCARETAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Fazer caretas no animal. “[...] encaretá-lo e chinchá-lo pra mostra-lo ao meu patrão”.
ENCOURADO adj.
PDSE (A.O.; F.N.)
Que se veste com roupa de couro. “[...] correr no mato encourado com guarda-peito e gibão
[...]”.
FERRAR v.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
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Por marca em animal com ferro quente de brasa. “[...] ferrar gado e vacinar e puxar boi no
mourão”.
FESTA DE APARTAÇÃO exp.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Ato de partar; ato de separar algo ou alguém. VAR. vaquejada. “eu sou fã de vaquejada ou
festa de apartação [...]”.
GADO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Rebanho bovino. “[...] ferrar gado e vacinar e puxar boi no mourão”.
GIBÃO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Casaco de couro usado por vaqueiros. “[...] correr no mato encourado, de guarda-peito e gibão
[...]”.
GUARDA-PEITO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Colete de couro. “[...] correr no mato encourado, de guarda-peito e gibão [...]”
MAÇAROCA s.f.
PDSE (A.O.) PDSD (F.N.)
Extremidade cabeluda da cauda do boi. “[...] tem boi que a maçaroca deixa enrolada na mão
[...]”.
MANDINGUEIRO s.m.
PDSD (A.O.) PND (F.N.)
Mau. “para mim é diversão pegar um boi mandingueiro, bater com ele no chão [...]”.
MARMELEIRO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Árvore de tamanho pequeno cujo fruto é chamado de marmelo. “[...] por entre paus e cipós,
rasga beiço e marmeleiro, mas se não trouxer o boi, não prova ser bom vaqueiro”.
MOURÃO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Estaca de madeira ou concreto que serve para construir uma cerca. “sei que a festa no mourão
é muito mais animada quando a rádio e a tv se encontram nessa parada [...]”.
RASGA-BEIÇO s.m.
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PND (A.O.; F.N.)


Espécie de planta muito comum na região nordeste do Brasil. “[...] por entre paus e cipós,
rasga beiço e marmeleiro, mas se não trouxer o boi, não prova ser bom vaqueiro”.
RÊS s.f.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Animal quadrúpede. “[…] quando adoece uma rês eu fico mal satisfeito, só morre se Deus
quiser, porque não posso dar jeito”.
SELADO adj.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Que tem sela ou em que se pôs a sela. “[...] vendo o cavalo selado”.
TABULEIRO s.m.
PDSE (A.O.; F.N.)
Terreno de vegetação rasteira. “é carreira disparada por cima do tabuleiro, por entre paus e
cipós, rasga-beiço e marmeleiro [...]”.
TOADA s.f.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Cantiga simples composta por pequenas estrofes e refrões. “[...] convide todos os vaqueiros
que saibam cantar toada [...]”.
VAQUEIRO s.m.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Profissional que trabalha com vacas ou gados. “[...] mas se não trouxer o boi não prova ser
bom vaqueiro [...]”
VAQUEJADA s.f.
PDSE (A.O.) PND (F.N.)
Festa popular e tradicional do ciclo de gado comemorada no nordeste do Brasil em que dois
vaqueiros cavalgam nas laterais do boi na tentativa de derrubá-lo na faixa segurando-o pela
cauda. “[...] por caridade me enterrem no parque de vaquejada”.

Considerações Finais
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A cantiga “Vaqueiro por opção”, de autoria de Zé Vicente da Paraíba, narra,


sobretudo, a paixão do enunciador pela profissão de vaqueiro, pelas festas de vaquejada, pelos
bois, vacas e bezerros, pelo mato e pela caatinga localizada na região Nordeste do Brasil.
A partir das 27 palavras coletadas e analisadas no presente trabalho, chegamos à
conclusão de que a canção intitulada: “vaqueiro por opção” mostra nas suas dez estrofes
dados bastante ricos que revelam um acervo linguístico próprio utilizado no universo
sociocultural da região Nordeste do Brasil.

Referências

ALENCAR, José Mauro de. Fiz do choro das cordas da viola o maior ganha-pão da
minha vida: Zé Vicente da Paraíba. Recife: Coqueiro, 2009.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. O linguístico e o cultural nos contos populares
paraibanos. In: Simpósio: Tradição oral, Literatura Popular, Discurso etno-literário. 57.
Reunião Anual da SBPC. Fortaleza: UECE, 2005.
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Disponível em: http://www.aulete.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=o_que_e. Acesso
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BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires; ISQUERDO,
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FAULSTICH, Enilde. Para gostar de ler um dicionário. In: RAMOS, Conceição de Maria de
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba:
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HAENSCH, Günther; WOLF, Lothar; ETTINGER, Stefan; WERNER, Reinhold. La
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1982.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1996.
NAVARRO, Fred. Dicionário do Nordeste: 5.000 palavras e expressões. São Paulo: Estação
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ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM PELA GENITÁLIA: MACHISMO E


SEXUALISMO NO FALAR DE ORICÃO

José Robson do Nascimento Santiago1


(UFPB)

Introdução

A obra O Anjo do Quarto Dia, de Gilvan Lemos, autor pernambucano da


contemporaneidade, é um poço de descobertas para as ciências linguísticas como
sociolinguística, etnolinguística e lexicologia, porquanto contenha um acervo bastante
significativo de palavras que refletem e refratam a identidade sociocultural do povo com que
o autor conviveu, no agreste daquele estado, e no qual se inspirou para compor sua literatura.
Sob esse foco, o trabalho que aqui apresentamos concentra-se na constituição de uma
identidade machista com forte inclinação para a valorização da prática sexual. Esse é o perfil
de Orico Gonçalves Rezende, Oricão, personagem central do livro, espécie de anti-herói que,
através de trabalho e corrupção, assume o poder na cidade fictícia do Logrador e, quando
chega na casa dos 90 anos, ainda no poder, revezando filhos no comando político da cidade,
vive a lamentar-se pela perda da virilidade de outrora.
Destarte, nosso trabalho assumiu como objeto de estudo principal o falar de Oricão
como reflexo de sua autoafirmação como homem, viril, dominador, acima das mulheres. É
nesse sentido que se tratará de machismo e de sexualismo: ambos revelados em lexias simples
e complexas ora denotando, em suas memórias, narrações e falas de outros personagens, toda
a inclinação para o sexo que o velho Oricão possuía, a qual lamenta perder; ora o colocando
como detentor da capacidade de possuir, deflorar, usar e se colocar acima das mulheres,
correspondendo a práticas e pensamentos extremamente machistas.
Assim, Oricão se constitui como homem, macho, viril, através de sua genitália e do
uso que dela pode fazer no passado. Com fama de possuí-la em tamanho privilegiado,
desconforme para os padrões normais, acima de 30cm, o velho Orico Rezende vive do
passado, com lamentações, sentindo-se menos homem na atualidade, vez que não tem mais a
capacidade de sentir ereção. Essas conclusões poderão, pois, ser constatadas sob a ótica da
sociolinguística, da etnolínguística, da lexicologia e da semântica, cujos conceitos
1
Doutorando em Letras pela UFPB, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Silva de Aragão.
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fundamentaram as interpretações de significado para cada lexia nos corpora encontrados e


colaboraram para o entendimento de que a constituição da identidade machista de Oricão
passa pelo poder fazer sexo, revelado através de um elenco bastante diversificado de unidades
lexicais.

Sócio e Etnolinguística na Constituição da Identidade

Como ciência linguística, a sociolinguística volta-se para a análise da linguagem e sua


relação com a estratificação da sociedade: é o reflexo das divisões sociais nas palavras que
importa. Por sua vez, a etnoliguística busca, também nas palavras das pessoas, as marcas
culturais que elas carregam e manifestam verbalmente.
É nesse sentido, portanto, que Coseriu (1987) define como tarefas da sociolinguística,
no plano do discurso, o estudo dos tipos de discurso e das diferenças estruturais entre os
mesmos nas camadas socioculturais, e da utilização das diferenças diastráticas em qualquer
tipo de discurso. (Cf. COSERIU, 1987, p. 30)
Já sobre a etnolinguística, o mesmo autor aponta que a ela corresponde:

[...] o estudo dos fatos de uma língua enquanto motivados pelos “saberes”
(ideias, crenças, concepções, ideologias) acerca das “coisas”, portanto,
também acerca da estratificação social das comunidades e acerca da
linguagem mesma enquanto fato “real”. Assim, por exemplo: de que modo
uma determinada organização lexical corresponde a um tipo determinado de
experiências e conhecimento intuitivo real? (COSERIU, 1987, p. 46)

Desse modo, tanto a sociolinguística quanto a etnolinguística têm a compreensão de


que a sociedade apresenta divisões as quais podem ser refletidas na linguagem do ponto de
vista de como essa divisão se organiza socialmente e de como, nessas divisões, ideologias,
pensamentos e crenças se manifestam diferentemente.
Por linguagem, Coseriu (1982, p. 17) entende com uma atividade humana específica e
facilmente reconhecível. Nesse ponto, o autor trata da linguagem como o falar, ou discurso,
de modo que os dois vieses de abordagem aqui apresentados devem considerar, neste caso, as
falas de personagens da literatura e a narrativa do autor como falares. Assim, sob esse
entendimento, diremos que o personagem em questão, objeto de análise deste trabalho,
constitui-se pela linguagem que emprega e que a ele é atribuída pelo autor.
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Machismo e Sexualismo sob a ótica da Lexicologia e da Semântica

O dicionário online Aulete Digital define machismo como “opinião ou procedimento


discriminatório que neguem à mulher as mesmas condições sociais e direitos do homem.”
Trata-se, no caso da linguagem, da manifestação de falas que oprimam, diminuam ou
subjuguem a mulher, tratando-as como objeto pertencente ao homem ou como um ser a ele
inferior. No sentido popular, essas práticas são também entendidas como atitudes de macho, e
aqueles que não agem desse modo não são considerados homens de verdade.
Já sexualismo é aqui entendido, conforme o dicionário supracitado, como “valorização
excessiva da sexualidade”, tendência forte à prática do sexo (ato). Trata-se da influência dele
no comportamento das pessoas, que neste caso será o comportamento linguístico, uma vez
que será revelado pelas palavras usadas na obra em tela. Portanto, sexualismo como
valorização exacerbada da capacidade de o homem macho, dominador de mulheres e superior
a elas, fazer sexo a ponto de “furá-las” para provar a si mesmo sua macheza e virilidade, e se
sobrepor a outros homens, é o que se verá nas lexias aqui expostas e analisadas do ponto de
vista de seus significados.
Logo, para essa análise, é preciso considerar os fundamentos da lexicologia e da
semântica. A primeira porque é quem trata do léxico como acervo verbal de um idioma,
inventário no qual se revelam as visões de mundo num texto, os valores, crenças, hábitos e
costumes de uma comunidade, conforme preceituam Oliveira e Isquerdo (1998, p. 7). Já a
segunda se faz presente porque é quem trata do significado dos lexemas que constituem as
falas a serem analisadas.
Na visão de Biderman (1981, p. 134) o léxico resulta do processo de categorização
através do conhecimento das semelhanças e das diferenças entre os elementos da experiência
humana, seja a experiência resultante da interação com ambiente físico ou a que resulta da
interação com o meio cultural. Nesse caso, meio físico e cultural são respectivamente, ainda
que fictícios, o agreste pernambucano, povoado de uma sociedade historicamente patriarcal, e
cultura machista nele presente.
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A observação de significado dos lexemas que compõem as lexias simples, compostas e


complexas elencadas neste trabalho se vale dos pressupostas da semântica porquanto
concordemos com a definição de Lyons (1987), para quem a função desta ciência seja:

[...] definir o significado de lexemas em termos de contribuição que eles


fazem às condições de verdade das sentenças, e fornecer um procedimento
formulado com precisão para a computação das condições de verdade de
qualquer sentença arbitrária, com base no significado de seus lexemas
constituintes e da sua estrutura gramatical. (LYONS, 1987, p. 165)

Desse modo, as condições de verdade a que nos referiremos adiante serão aquelas dos
valores culturais da sociedade machista em que os falantes estão inseridos e, por conseguinte,
a constituição do homem se dará pelo valor exacerbado que se atribui à sua capacidade
sexual, seus atributos para praticar o sexo, em especial, a genitália masculina.

Aspectos Metodológicos

As palavras e expressões coletadas serão apresentadas em maiúsculo e negrito com


indicativos gramaticais, seguidas de significado interpretado no contexto de uso e, entre
parênteses, indicativo de dicionarização equivalente (DSE) ou em sentido diferente (DSD)
nos dicionários online Aulete Digital (AD) e Dicionário InFormal (DInF); abonação em
itálico, com destaque em negrito para a lexia em análise, e indicativo de página na obra.
A organização da apresentação delas seguiu três pontos cruciais: narrações do autor,
referências a Oricão por outros personagens e falas de Oricão. Nesses três tópicos, constitui-
se a identidade do personagem Orico Rezende, na fala do outro, na sua e na do autor, através
de lexias que são referências ao pênis do personagem, avantajado, ou ao valor que um pênis
ou a prática – ou ausência – de sexo tem, como constituinte do poder de um homem.
A ordem de apresentação das lexias, em cada tópico seguinte, obedeceu à sequência de
páginas na obra; ou seja, não configuramos uma ordem alfabética, mas sim à medida que o
texto vai avançando.

Narrações do autor

BICHO DOS BICHOS s.m. = pênis (N.D.)


“[...] o bicho dos bichos pulsando-lhe entre as pernas, doendo, papocando.” (p. 22)
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VERRUMA s.f. = pênis (DSD)


“Oricão, a verruma, o bicho dos bichos pulsando [...]” (p. 25)
PEIA s.f. = pênis (DSE – AD, DInF)
“Por essa altura já se comentava que as meninas-esposas de Oricão morriam de parto
porque ele tinha a peia muito grande e varava as bichinhas, no ato.” (p. 25-26)
PEIA DESCONFORME s.f. = pênis grande demais (DSE – AD, DInF)
“Mas dizem que ele casou com Lina porque Lina foi a primeira e única que aguentou sua
peia desconforme. O diabo é que Lina passou dos treze, dos catorze, dos quinze, descambou
para os vinte... Paciência! Oricão não a quis mais.” (p. 27)
VERGONHAS s.f. = órgãos genitais (N.D.)
“Orico Gonçalves Rezende, Oriquinho, ex-Orico, sozinho, ergue as pesadas, nervudas,
varicosas pernas, fazendo com que a calça do pijama lhe desça ao baixo ventre, colorindo-o,
cobrindo-lhe as vergonhas que o envergonhavam [...]” (p. 77)
CORREAME s.f. = pênis (DSD)
“Oricão baixava a calça do pijama até os joelhos para melhor encostar o correame, os filhos
mudando a vista, com vergonha, Oricão indiferente, torcendo os quadris, arrumando-se.”
(p.114)
COISAS s.f. = órgãos genitais (DSE – DinF)
“Oricão sentou-se, braguilha aberta, os visitantes, com respeito, sem ver, nada viram, seu-
Orico estava composto, ora se estava. Uma criança espantou-se: Olha, mãe, as coisas de seu-
Orico tão de fora, tomando um arzinho.” (p. 115)
TROÇO s.f. = pênis inutilizado (DSE – AD, DInF)
“Subira para o seu quarto do primeiro andar, alegando a barulheira dos netos, mas na
verdade requerendo para si um lugar apropriado para tomar cerveja, bebida que alegrava
sobretudo porque fazia mijar, mijar muito, de qualquer maneira dando serviço àquele troço.”
(p. 121)

Referências por outros personagens

JATUMAMA s.f. = pênis (N.D.)


“Formado, venho para esta cidade, estabeleço-me, desrezendeio-a. Começo pelo velho,
velhão, dois metros de altura, duzentos quilos de safadeza, com barriga e tudo. Só de
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jatumama, dizem, mais de trinta centímetros. A maior do mundo. Decapa-la-ei com um golpe
de minha espada vingadora. Ficará saltando como rabo de lagartixa?” (p. 30)
O QUE DE FATO O Sr. ORICÃO POSSUI EM RIQUEZA DE POSSESSÃO = lexia
complexa que se refere ao pênis desconforme de Oricão.
“Lá vem o dito Oricão, com os cupinchas lhe ajeitando o nó da gravata, abotoando-lhe o
paletó e não dando fé, os puxa-sacos, pois do contrário teriam dado um jeito, do cordão da
calça do pijama do nosso pseudobemfeitor que saía escandalosamente pela braguilha da
calça propriamente dita, do termo, num efeito um pouco imoral, embora esse simples
cordãozinho fino nem de longe pudesse lembrar o que de fato o Sr. Oricão possui em riqueza
de possessão, segundo as más línguas.” (p. 59)
PENSAR SER HOMEM = lexia complexa que significa acreditar poder fazer sexo.
“Pensa que ainda é prefeito. Tem hora que pensa. Tem hora que pensa até que é homem.”
(p. 119)
PORTENTOSO adj. = extraordinário (DSE – AD, DInF)
“Tragam meu pai, o velho macho, o portentoso, para me dar uns gritos [...]” (p. 152)
HOMEM DOS HOMENS s.m. = o mais homem, mais viril, mais macho dentre os homens
(N.D.)
“Tragam eles, um por um, primeiro Josias pra me conversar, depois Jesonias pra me escutar,
por último meu pai, aquele, o homem dos homens.” (p. 152)
PENDURICALHO s.m. = órgãos genitais masculinos (DSD – AD, DInF)
“[...] gosta de ficar todo nu pra eu coçar ele, revirar na cama, os penduricalhos arrastando
no colchão. Quer um espelho pra ver? Faz tempo que não vê, hem, velhão cuiudo, porcão
macho? Num espelho você vê, quer vê? (p. 227)

Falas de Oricão

FURAR PAREDES = lexia composta que, de modo hiperbólico, remete à ereção do pênis
“Até porcas eu tive, por necessidade carnal da natureza, no tempo em que não podia
escolher. A força vinha, dominava, me conduzia. Cego, obedecia. Não existe mais esse
dominador, nada me domina cegamente, e sou dominado de olhos abertos. Nem aos mais
íntimos, se fosse contar, contava, não relatava, não confidenciava: naquele tempo eu furava
paredes.” (p. 74)
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MOMENTO DE COMPETÊNCIA = lexia composta que remete à saúde para fazer sexo
“Danem-se! Troco tudo que tenho por um momento de competência junto a Tininha.” (p. 77)
VERRUGONA s.f. = pênis avantajado (N.D.).
“Na escuridão da sala, minha mãozona por dentro da blusa, corrupiando aquelas
verruguinhas fibrosas: Virgem! Seu-Orico, podem ver. Ai, me machuca! Eu desabotoando a
braguilha: Pegue, veja que verrugona a minha.” (p.107)
MORTE s.f. = metáfora para significar a incapacidade de ereção.
“Acordo com a morte na alma, deito-me com a morte entre as pernas.” (p. 108)
VÚPOTE = onomatopeia para significar a velocidade e a força com que se introduz o pênis
na vagina.
“Por que deixei de ser homem? Quando eu vivia no meio da sujidade, tirando da fossa o
sustento, era homem até demais. Ah, eu furava paredes. Vúpote! (p. 108)
ARREMETIDA DO CÃO = lexia composta que remete a um movimento brusco para
deflorar uma virgem, romper seu hímen (cabaço).
Não havia cabaço que aguentasse a arremetida do cão de Orico, este aqui, o do cão agora
exorcizado de cabeça baixa, entregue.” (p. 109)
RAIZ s.f. = metáfora referente ao pênis.
“Hoje com toda riqueza, todo poder, e morto, morto nas calças, nada me serve, de nada me
sirvo. Tenho o unguento para nele me unguentar e vinho para louvar o Senhor; atraio aos
meus campos as gazelas formosas... Para quê? As ervas do meu jardim estão brancas, a raiz
murchou.” (p.109)
LESEIRAS DE CALÇAS SEM NADA DENTRO = lexia complexa referente a homens
fracos, frouxos, que não se sobrepõem às mulheres.
“Homem baixa a cabeça sem ter o que dizer, emprestando essa oportunidade a mulheres?
Homem é homem, não aquilo, aquelas leseiras de calças sem nada dentro.” (p.113)
PASSARINHO DA NOITE QUE NÃO MAIS AVOA, QUE INÚTIL AQUECE OVOS
CHOCADOS, GORADOS NO TEMPO = lexia complexa referente ao pênis de Oricão, que
não mais tem ereção.
“Tininha vai ter de me virar pelo avesso, descobrir dentro de mim em que parte do corpo se
esconde minha viveza, em que reentrância de carnes usadas dormem as forças da minha
aurora: passarinho da noite que não mais avoa, que inútil aquece ovos chocados, gorados
no tempo.” (p. 114)
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MANGUEIRA s.f. = pênis


“Mas que diabos tem vocês que não se divertem comigo, não me acompanham nas louvações,
não botam as mangueiras para funcionar?” (p. 127)

Considerações Finais

No falar de Oricão estão presentes as mais ricas referências ao pênis, ao sexo e à falta
dele. O personagem se constitui como homem a partir de sua virilidade, revelada em suas
memórias da jovialidade. No entanto, ao chegar na velhice, sente-se desconstituído dessa
faculdade a qual seja ser homem, uma vez que perdeu a capacidade de ereção: está morto.
Nas falas de outros personagens, Oricão é também visto como o mais macho, o
cuiudo, portentoso, aquele cujas esposas morreram após o parto, visto que por ele foram
“arrombadas”. Nesse sentido, o velhão macho é um dominador de mulheres, ele as penetra
como se fossem objetos para perfurar, broca – cerca de 30cm – em parede ou madeira.
O machismo, por sua vez, está em negar à mulher a identidade feminina, o direito de
escolher, de sentir prazer, como na passagem em que o velho Orico relembra o tempo em que
levou uma moça ao cinema para boliná-la e fazê-la conhecer sua verrugona. Também está no
modo como ele vê os homens que não conseguem resolver os problemas e dão vez a mulher
para falar. São homens sem nada nas calças. Mulher não tem voz, e homem que deixa mulher
falar não é homem de verdade.
A obra O Anjo do Quarto Dia está, portanto, recheada de expressões (lexias simples,
compostas e complexas) que, seja nas narrações do autor, seja nas falas de outros personagens
que apontam para a virilidade exacerbada e para a macheza de Oricão. Nas suas falas, por sua
vez, suas lamentações denotam o quanto importante é para ele tal virilidade. Sem ela, Orico
Rezende se sente morto, não é mais homem. Quando a tinha, era o homem dos homens.
Diante da diversidade de mecanismo figurativos utilizados para relevar esse
sexualismo (metáforas, hipérboles, perífrases) e da diversidade lexical que muitas vezes nos
defronta com palavras não dicionarizadas, percebemos que outros trabalhos mais
aprofundados precisam ser realizados, principalmente na verificação de outras obras de
Gilvan Lemos e na investigação de outros dicionários e glossários que tomem por base o povo
pernambucano.
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Referências

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LEMOS, Gilvan. O anjo do quarto dia. Recife: Bagaço, 2002.
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O ATLAS LINGUÍSTICO DA PARAÍBA: TRINTA ANOS DEPOIS

Sandro Luis de Sousa1

Introdução

Os Atlas linguísticos regionais brasileiros são o resultado do trabalho de incansáveis


pesquisadores que, sabendo da impraticabilidade da concepção de um Atlas nacional em um
país de dimensões continentais como o Brasil, puseram-se a trabalhar na elaboração de Atlas
de estados da federação e, mais recentemente, de regiões. Os primeiros atlas estaduais
elaborados foram os Atlas dos Falares Prévios Baianos (APFB) e o Esboço de um Atlas
Linguístico de Minas Gerais (EALMG). Nesse contexto, o Atlas Linguístico da Paraíba
(ALPB) de Autoria de Maria do Socorro Silva do Aragão e Cleusa Bezerra de Menezes foi o
terceiro Atlas linguístico estadual do Brasil. Originalmente produzido em três volumes, o
ALPB teve os dois primeiros editados no ano de 1984. São, portanto, trinta anos desde sua
edição pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em parceria com o Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Passando por uma breve apresentação
do papel da dialetologia e de sua história, este trabalho pretende dar uma visão panorâmica
daquilo que o Atlas Linguístico da Paraíba representou para os estudos geolinguísticos e
dialetológicos no Brasil, para a construção do Atlas Linguístico do Brasil, assim como o que
ele revelou sobre a alma da população da Paraíba no que concerne aos aspectos léxico-
semânticos dos dados coletados, a partir da recolha de material linguístico riquíssimo,
permeado de expressões típicas do falar do povo paraibano.

A Dialetologia e os Estudos Dialetológicos no Brasil

O ramo da linguística que denominamos dialetologia se preocupava, principalmente,


com os falares regionais das pessoas de baixa escolaridade, estudando os dialetos e detectando
formas específicas de uma zona linguística, sistematizando-as e interpretando os seus traços
distintivos (RECTOR, 1975 apud ARAGÃO, 1983). Desse modo, é certo admitir que a

1
Professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do RN. Doutorando em Letras pela
Universidade Federal da Paraíba. E-mail: sandro.sousa@ifrn.edu.br. Orientadora: professora Maria do Socorro
Silva do Aragão.
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Dialetologia tradicional dedicava-se mais aos estudos dos falares regionais e rurais, bem como
a sua distribuição no espaço, identificando-se, pois, com a linguística diatópica, horizontal.
Como o aparecimento da Sociolinguística nos anos 60, a Dialetologia recebe e, ao
mesmo tempo, imprime influências ao novo ramo linguístico então emergente. O novo
enfoque leva Ferreira e Cardoso (1994, p. 19) a asseverar que:

definir objetivo e metas dos vários ramos da ciência da linguagem, como


aliás em qualquer ciência, é sempre muito difícil porque são fluidos ou
pouco nítidos esses limites, mais fluidos e pouco nítidos se tornam quando se
fala de dialetologia e sociolingüística que têm – ambas – como objetivo
maior o estudo da diversidade da língua dentro de uma perspectiva
sincrônica e concretizada nos atos de fala. (grifo nosso)

Para essas autoras, é totalmente aceitável uma abordagem dialetológica de caráter


pluridimensional, sendo possível à Dialetologia ligar-se a vários aspectos da variação
linguística. Por isso, Cardoso (2010, p. 15) conceitua a Dialetologia como “um ramo dos
estudos linguísticos que tem por tarefa identificar, descrever e situar os diferentes usos em que
uma língua se diversifica, conforme sua distribuição espacial, sociocultural e cronológica”.
Percebe-se, então, a interseção entre Dialetologia e Sociolinguística que contribui para
a descrição de fenômenos variacionistas da língua humana como fenômeno social. Como
salienta Callou (2010, p. 35): “são, assim, Dialetologia e Sociolinguística duas perspectivas de
observação e análise da língua que não se opõem, mas sim se encontram e se
complementam”.
Hoje em dia, os estudos dialetológicos se propõem a trabalhar, pois, numa perspectiva
multidimensional que engloba outros aspectos de análise, decorrentes de variáveis como sexo,
idade e escolaridade, além das relações entre língua e espaço, eminentemente diatópicas.
A dialetologia, por outro lado, não se confunde com a geografia linguística ou
geolinguística. A geolinguística corresponde a um método utilizado pela dialetologia. Por
exemplo, os atlas linguísticos são, por excelência, resultados do método geolinguístico,
embora não deixem de constituir interesse por parte dos dialetólogos. Ponto central para essas
duas disciplinas são as noções de dialeto e falar. Tradicionalmente, os termos dialeto e falar
não são uma questão consensual entre os linguistas, havendo quem os considere como
conceitos idênticos ou como conceitos distintos. Nesse sentido, Castilho (1972, p. 116)
assevera que os falares correspondem à variação de uma língua que importa pequenas
alterações no foneticismo e no material léxico, sem prejuízo de uma fácil compreensão,
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enquanto os dialetos são variações da língua cuja diferenciação mais avançada atinge também
a morfologia, chegando a acarretar dificuldades à comunicação.
Contudo, segundo a observação de Aragão (1983, p. 65), a tendência geral,
atualmente, é usar os termos dialeto e falar como sinônimos ou parassinônimos. Para a autora,

não há sinônimos perfeitos nem absolutos, uma vez que os sememas de


dois itens lexicais não recobrem totalmente um ao outro, ou seja, os semas
genéricos, específicos e virtuais não podem ser totalmente iguais. Haverá
sempre, pelo menos, um sema diferente (ARAGÃO, 2009, p. 71). 2 (grifo
nosso)

Desse modo, Aragão defende que a definição de dialeto compreende diversos


aspectos, a saber: o geográfico ou diatópico, o temporal ou diacrônico, e o social ou
diastrático; todos com grande relevância para a compreensão de uma dada realidade
linguística. Em arremate, é possível perceber que o interesse da dialetologia e da
geolinguística centra-se nos estudos da linguagem falada, principalmente dos dialetos, que são
entendidos aqui como variantes regionais de uma determinada língua.

Escorço Histórico dos Estudos Dialetológicos

Ferreira e Cardoso (1994, p. 37) dividem a história dos estudos dialetais brasileiros em
três grandes diferentes fases, a partir de uma delimitação bipartite sugerida por Antenor
Nascentes em meados do século passado.
Para as autoras, a primeira fase compreende os anos entre 1826 até 1920. Foi no ano
de 1826 que o baiano Domingos Gomes de Barros, Visconde da Pedra Branca, escreveu a
primeira obra de natureza dialetal a se referir sobre a língua falada no Brasil, como capítulo
integrante do livro Introduction à l’Atlas ethnographique du globe. Segundo Aragão (2008, p.
10), na descrição da língua portuguesa no Brasil o Visconde mostrou as interferências e os
termos e expressões incorporadas ao português, partindo das línguas indígenas faladas no

2
Aragão refere-se aqui à classificação de Pottier (1972, p. 43) sobre três grupos de semas, distinguindo-os entre
genéricos: aqueles que indicam que o morfema pertence a uma classe conceptual (humano, material),
específicos: aqueles permitem distinguir os morfemas mais próximos de um mesmo domínio - são descritivos
(baixo, alto) - e virtuais: aqueles que correspondem às associações disponíveis na consciência dos locutores de
uma comunidade homogênea (vermelho, indicando perigo). Estes poderão, facultativamente, ser atualizados no
discurso.
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Brasil. Essa fase caracteriza-se pela riqueza de obras de cunho lexicográfico sobre o
português brasileiro.
A segunda fase começa com a publicação de O dialeto caipira de Amadeu Amaral e
tem como característica principal a profícua publicação na área de estudos gramaticais, apesar
de haver uma continuidade nos estudos lexicográficos caracterizadores da primeira fase. Os
trabalhos que merecem destaque nessa fase são as obras O dialeto caipira – obra inicial já
citada – O linguajar carioca, de Antenor Nascentes, publicada em 1922 e que teve uma
segunda edição em 1957, e A língua do Nordeste, de Mario Marroquim, originalmente
lançada em 1934.
A terceira fase inicia-se com as preocupações em produzir estudos de geografia
linguística que consolidem a disciplina no Brasil. Para Cardoso (2010, p. 138), o marco
inaugural desse período é um ato do governo brasileiro, especificamente o decreto no
30.643/1952, promulgado pelo então presidente Getúlio Vargas, com a finalidade principal de
elaborar o Atlas Linguístico do Brasil. Esse período estende-se até a edição do Atlas Prévio
dos Falares Baianos, publicado em 1963. Os nomes dos pesquisadores de destaque dessa fase
são os sempre lembrados Antenor Nascentes, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha e Nelson
Rossi. Desse modo, esses estudiosos foram os pioneiros que, por caminhos diferentes, deram
o impulso inicial à consolidação da Geolinguística Brasileira.
Conforme informa o site do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), a ideia do
ALiB foi retomada por ocasião do Seminário Nacional Caminhos e Perspectivas para a
Geolinguística no Brasil, realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em
novembro de 1996. Todavia, a extensão do Brasil com mais de 8 milhões de quilômetros
quadrados tornava, naquele momento, a aspiração de se criar um atlas nacional bastante
impraticável. Apesar dos esforços de destacados linguistas do Projeto, as discussões do
Seminário reconhecem que a ênfase deveria ser dada à realização de atlas regionais para então
se chegar ao ALiB. Desse modo, pode-se afirmar, em concordância com Aragão (2008, p. 4),
que uma quarta fase dos estudos dialetais estava em pleno desenvolvimento.
Feitas essas considerações sobre a história dos estudos dialetológicos e geolinguísticos
no Brasil, passamos a analisar a contribuição do Atlas Linguístico da Paraíba nesse contexto
nacional.

O Atlas Linguístico da Paraíba


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O Atlas Linguístico da Paraíba (ALPB) está historicamente situado na terceira fase dos
estudos dialetológicos esboçadas acima. Conforme já ressaltado, coube à coordenação de
Maria do Socorro Silva do Aragão e Cleusa Bezerra de Menezes a elaboração do terceiro
Atlas linguístico estadual do Brasil. Decorria o ano de 1984 quando dois dos seus três
volumes foram editados pela UFPB e CNPq.
A pesquisa se constituiu de 25 pontos (municípios) que foram escolhidos como base,
juntamente com mais 75, que compuseram os chamados municípios satélites o que
possibilitou cobrir todo o estado paraibano. Foram inquiridos 107 informantes, de ambos os
sexos, todos eles dentro da faixa etária compreendida entre 30 e 75 anos, com nível de
instrução variando entre analfabeto a primário completo.3
No que se refere ao método, foi aplicado um questionário dividido em duas partes,
uma geral com 289 questões ligadas aos seguintes campos semânticos: terra, homem, família,
habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação e atividades sociais; a outra parte,
específica, contém 588 questões versando sobre os então cinco principais produtos agrícolas
paraibanos: mandioca, cana-de-açúcar, agave, algodão e abacaxi.
O primeiro volume traz uma parte introdutória, a metodologia da pesquisa, cartas de
identificação com descrições sobre a Paraíba, suas microrregiões, divisão municipal, as
localidade e seus gentílicos, identificação das inquiridoras e escolaridade dos informantes e,
por fim, as cartas léxicas e fonéticas organizadas de forma intercaladas. Para a elaboração das
cartas foram utilizadas as 68 questões que apresentaram alta frequência de ocorrência e maior
número de variantes léxicas e fonéticas. Desse modo, por exemplo, a carta léxica número 114
da pergunta 185, cupim é seguida pelas cartas fonéticas lubim, mamilho e castanha.
O segundo volume é constituído de cinco partes principais: a apresentação novamente
da metodologia, a caracterização histórico-geográfica da Paraíba, situação geo-econômica e
sócio-cultural das localidades, caracterização dos informantes, análise das formas e estruturas
linguísticas encontradas e um glossário com 363 verbetes dicionarizados em sentido diferente
do uso geral ou não dicionarizados. Para a feitura desse repertório linguístico foram
consultadas 08 obras, entre dicionários, vocabulários e glossários.
O glossário não traz definições, pois, segundo a autora, “o objetivo era remeter o leitor
ao termo básico, tema de cada carta” (ARAGÃO, 1984, p. 65). Cada verbete é acompanhado

3
Equivalente na nomenclatura adotada hoje ao Ensino Fundamental I.
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da transcrição fonética da realização mais frequente na região e a indicação, entre parênteses,


do número da carta onde o mesmo se encontra. Como ilustração, transcreve-se aqui o verbete
“abafado”, conforme consta no Atlas: abafado R [aba ‘fadu] Mormaço – (carta no 28). 4

O que o Atlas revelou sobre a Paraíba: alguns aspectos léxico-semânticos

O ALPB revelou aspectos riquíssimos no que tange às variantes encontradas nos dados
transcritos nas cartas léxicas coletadas pelas inquiridoras.
Cleusa Palmeira B. de Menezes atuou em 25 localidades. A professora Maria do
Socorro Silva do Aragão atuou como inquiridora no ALPB em 07 municípios: a) João Pessoa
(Localidade 01); b) Guarabira (Localidade 04); c) Campina Grande (Localidade 07); d) Patos
(Localidade 17); e) Pombal (Localidade 20); f) Sousa (Localidade 22); e g) Cajazeiras
(Localidade 24). As outras inquiridoras do questionário foram Maria da Penha Nascimento de
Andrade, Maria Betânia Leite Lins, Egéria Celeste Silva da Silveira e Kátia Helena Pessoa.
Para a aplicação dos questionários, alguns órgãos serviram de agentes intermediários
para o primeiro contato junto aos informantes. Assim, prefeituras, Secretarias de Educação, de
Assistência Social e o então existente Movimento de Brasileiro de Alfabetização (Mobral)
foram os principais canais para apresentação do grande projeto ALP. Segundo Aragão (1984),
as entrevistas foram bastante informais, procurando-se sempre deixar o informante
descontraído e à vontade para responder as questões do questionário. Nas formulações das
questões, se mostrava o objeto ou imitava-se a ação para a qual se buscava a denominação
esperada.
No que concerne às cartas léxicas, são encontrados dados interessantes sobre o falar do
povo paraibano quanto à designação dos mais diversos itens dos campos semânticos já
apontados: terra, homem, família, habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação
e atividades sociais.
Passemos à análise de alguns dados selecionados que – devido às restrições do
trabalho – buscam contemplar, pelo menos uma lexia, de cada campo semântico retrocitado
com comentários sobre sua distribuição e presença de variantes no território paraibano. As
lexias escolhidas foram: sutiã, rótula, sovina, aguardente, corno, urinol, colmeia, sacristão e
arco-íris.

4
O símbolo “R.” equivale à realização fonética mais frequente na região.
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a) Sutiã - Campo semântico: o homem


O cartograma no 515 tem como resposta esperada a lexia sutiã. Apenas três municípios,
João Pessoa, localidade 01, Campina Grande, localidade 07 e Congo, localidade 15, não
usaram “califon” para designar sutiã. Outras respostas encontradas foram corpete, bustiê,
porta-seio e guarda-seio.

Figura 01: Cartograma no 51. Sutiã. Pergunta 59.

b) Rótula - Campo semântico: o homem


Em relação ao cartograma no 66, “rótula”, da pergunta 87, somente Barra de Santa
Rosa, localidade 09, apresenta a variante “patinho” para rótula. As outras variantes
encontradas foram: bolacha do joelho, bolacha, rodinha do joelho, cabeça do joelho e
bolachinha.
Figura 02: Cartograma no 66. Rótula. Pergunta 87.

5
Adotamos a nomenclatura usada por Teles e Ribeiro (2014) que defendem que mapa ou carta é a representação
cartográfica que deve apresentar informações essenciais como: orientação, sistema de projeção, sistema de
referência para as coordenadas e escala. Um documento cartográfico que não contemple essas informações é,
para o IBGE, um cartograma.
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c) Sovina - Campo semântico: o homem


O cartograma no 83, “sovina”, pergunta 104, teve 23 variantes encontradas: amarrado,
unha de fome, pica fumo, mesquinho, tacanha, sovina, econômico, chula, fona, sumítico,
seguro, fominha, arrochado, morto a fome, usurário, morto de fome, papagaio no arame,
agarrado, enforcado, miserável, rezina, dominado pelo dinheiro, amarrado que nem catarro na
parede. Este item lexical foi o que apresentou maior número de variantes em todo estado
paraibano! Destaque para a variante “papagaio no arame” que só ocorreu em Monteiro,
localidade 16, localizado na Microrregião do Cariri Ocidental Paraibano.

Figura 03: Cartograma no 83. Sovina. Pergunta 104.

d) Aguardente - Campo semântico: o homem


Outra profusão de variantes aparece com o cartograma no 89, “aguardente”, pergunta
11. Foram 20 variantes registradas: dose, cachaça, bicada, tufão, aguardente, pinga, pitu, cana,
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temperada, caeba, brejeira, caranguejo, bichona, papuda, lambito, espedichona, branquinha,


melado, naca e meiota. Interessante destacar que em Soledade, localidade 11, somente 03
informantes (02 homens não alfabetizados e 01 mulher não alfabetizada) responderam 09
variantes para aguardente (cana, cachaça, aguardente, pinga, bichona, papuda, brejeira,
espedichona, branquinha), o que demonstra a riqueza de vocábulos para a lexia pesquisada
neste município. Por seu turno, em Conceição, município limítrofe com o estado do Ceará,
localidade 25, apareceram apenas duas designações para “aguardente”: cana e cachaça.

Figura 04: Cartograma no 89. Aguardente. Pergunta 11.

e) Corno - Campo semântico: a família


No que se refere ao item lexical “marido traído”, dentro do campo semântico família,
o cartograma no 91, pergunta 124, apresenta 22 variantes: dominado, chifrudo, corno,
cangalhudo, viado, frechudo, corno convencido, leva galho, leva chifre, galhado, pontudo,
galhudo, corno de goteira, corno de calça curta, corno contente, corno na folha, vinte e quatro,
corno inocente, enganado, galheiro, gaíra e traído. “Corno” é a variante mais abundante, só
não aparecendo em Conceição, oeste do estado. O município de Princesa Isabel, localidade
21, é o único lugar que usa o vocábulo “vinte e quatro” para denominar marido traído,
expressão que geralmente é utilizada para homossexual no nordeste do Brasil.
Figura 05: Cartograma no 91. Corno. Pergunta 124.
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f) Urinol - Campo semântico: habitação e utensílios domésticos


A lexia “urinol” prevista no cartograma no 110, pergunta 170, teve como variantes:
vaso, penico, bacio, corajoso e capitão. A variante “corajoso”, entretanto, somente ocorreu em
Picuí, localidade 10, juntamente com “vaso” e “penico”. Aliás, essas duas últimas variantes
são as mais comuns no estado. O item lexical “capitão” apareceu nos seguintes municípios:
Cabaceiras, localidade 12, Taperoá, localidade 13, Congo, localidade 15, Monteiro, localidade
16 e Patos, localidade 17. O cartograma não registra as variantes encontradas nos seguintes
municípios: João Pessoa, localidade 01, Mamanguape, localidade 02, Guarabira, localidade
04, Itabaiana, localidade 05, Campina Grande, localidade 07, e Umbuzeiro, localidade 08.

Figura 06: Cartograma no 110. Urinol. Pergunta 170.


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g) Colmeia - Campo semântico: aves e animais


Os informantes apontaram 13 variantes para “colmeia”, conforme o cartograma n o
121, relativo à pergunta 208: cortiço, casa de abelha, caixota, enxu, enxame, caixa, enxuí,
arapuá, capuxu, as capas, favo de mel, oco de pau e oco da abelha. A Variante enxu aparece
em Patos, Congo, Esperança, Picuí e também no oeste paraibano (Pombal, Souza, Cajazeiras
e Itaporanga), totalizando oito localidades ao todo.
Figura 07: Cartograma no 121. Colmeia. Pergunta 208.

h) Sacristão - Campo semântico: Atividades sociais


No cartograma no 137, pergunta 251, tem-se que, em todas as localidades pesquisadas,
todos os informantes responderam utilizando uma única forma: “sacristão”. Do mesmo modo
ocorreu com os dados do cartograma no 148, pergunta 278, cuja resposta, em todos os
municípios, foi unânime para “quaresma”.
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Figura 08: Cartograma no 137. Sacristão. Pergunta 251.

i) Arco-íris – Campo semântico: a terra


Sobre este item lexical, há um dado bastante interessante que o ALPB nos revela. O
cartograma no 30 equivalente à pergunta 29: “Quase sempre depois da chuva, aparece no céu
uma faixa com listras coloridas e curvas (mímica). Que nomes dão a essa faixa?” A
expectativa de resposta era “arco-íris”. Foram coletadas dez respostas como se pode observar
na figura 09 abaixo. Curioso notar que somente no município de Cajazeiras, localidade 24,
aparece como resposta “Os Vieiras”, dada por um informante homem e alfabetizado.

Figura 09: Cartograma no 30. Arco-íris. Pergunta 29. Localidade 24: Cajazeiras.

A resposta registrada em Cajazeiras (os Vieiras) intrigou, por anos, as inquiridoras


quanto à motivação dessa lexia. De fato, naquela região, a família Vieira formou-se em duas
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datas6 de sesmarias, Genipapeiro e Serra Branca. Essas faixas de terra foram passadas para
José Gonçalves Vieira da Costa e Silva na década de 1830 e transformadas na Fazenda
Palestina. Nascia ali o clã dos Vieiras, composto originalmente por oito irmãos: Antônio
Vieira, Raquel Vieira, Manoel Nascimento, José (Zeca) Vieira, Joaquim (Kinô) Vieira,
Constantina Vieira e Maria (Dona Torô) da Conceição. Os casamentos entre primos e primas
formaram a grande família Vieira. O poder político local era controlado por seus membros.
Em 19627, foi criado o distrito de Vieirópolis, subordinado ao município de Sousa, assim
permanecendo até ser elevado à categoria de município com a mesma denominação,
desmembrando-se finalmente de Sousa, por força da lei estadual no 5.904, de 29/04/19948.
Por outro lado, em 2007, surge na imprensa paraibana reportagens sobre o centenário
do nascimento do monsenhor Manoel Vieira (1907-2007) que nasceu no município de
Uiraúna, foi diretor do Colégio Diocesano em Patos, secretário estadual de Educação, vigário
em Princesa Isabel, além de vigário geral em Cajazeiras, cidade também desmembrada do
município de Sousa em 1863, sendo, pois, um grande educador da região do Sertão paraibano.
Todos esses municípios retrocitados: Uriaúna, Cajazeiras, Sousa e Vieirópolis estão
localizados em uma mesma mesorregião, o Sertão Paraibano. Diante do exposto, podemos
pensar em algumas motivações semânticas para o uso de “os Vieiras” com o sentido de arco-
íris: o povo tinha tanta fé no monsenhor e respeito pela sua família que o informante
respondeu “Os Vieiras” em resposta à indagação 29? Por isso, os Vieiras equivaleriam ao
próprio arco-íris no céu? Ou seria a motivação o fato de os membros da família Vieira
estarem sempre juntos (oito irmãos), ou com roupas coloridas que lembrassem o arco-íris?
Por fim, cabe destacar que, das variantes encontradas nas respostas aos questionários,
os itens lexicais “braguilha” (campo semântico: família, cartograma no 106, pergunta 152),
“borboleta” (campo semântico: aves e animais, cartograma no 124, pergunta 212),
“gafanhoto” (campo semântico: aves e animais, cartograma no 128, pergunta 217, com apenas
um registro de “mané mago”, em Conceição), “torrado” (campo semântico: plantação,
cartograma no 133, pergunta 248) e “terçol” (campo semântico: o homem, cartograma no 71,
equivalente à pergunta 90) foram encontrados em todas as 25 localidades pesquisadas pelas
inquiridoras do Atlas Linguístico da Paraíba.

6
Porção ou faixa de terreno.
7
Durante a coleta de dados do ALPB, Vieirópolis ainda era distrito de Sousa.
8
Em 2014, faz vinte anos de emancipação política de Vieirópolis.
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A Contribuição do Atlas Linguístico da Paraíba para o Atlas Linguístico do Brasil

Na elaboração dos questionários do ALiB, foram utilizados os atlas regionais já


publicados no Brasil até 1996, entre eles o AFPB. Para Mota (2014), os questionários do
ALiB destinavam-se, baseando-se nesses trabalhos já publicados, à documentação sincrônica
das variações diatópica e diastrática, aproveitando-se os dados já coletados.
Segundo Isquerdo e Teles (2014), para a seleção das localidades que deveriam integrar
a rede de pontos do ALiB considerou-se, dentre outros, os seguintes critérios: as localidades
apresentadas pelo dialetólogo Antenor Nascentes, em 1958, em seu livro Bases para
elaboração do atlas lingüístico do Brasil; b) a densidade demográfica; c) as zonas dialetais já
determinadas por meio de pesquisas anteriores, por pesquisadores da área; c) a distribuição
espacial das localidades, buscando-se conjugar critérios de equidistância ao de densidade
demográfica; e, finalmente, d) a importância da localidade para o levantamento de
bilinguismo e/ou diglossia, se a localidade em zona fronteiriça de limites internacionais ou se
em zona limítrofe interestadual.
Da proposta de Antenor Nascentes, ao mapear e sugerir 602 pontos em Bases para
elaboração do atlas lingüístico do Brasil para um futuro atlas linguístico, o ALiB acabou por
adotar 163 das localidades apontadas por aquele pesquisador. Ao final, a rede de pontos do
projeto ALiB contou com um total de 250 localidades. Nesse cenário, os inquéritos da Paraíba
ficaram sob a responsabilidade da equipe da Diretora Científica do ALiB, Professora Maria
do Socorro Silva de Aragão e da Coordenadora Estadual, Ivone Tavares de Lucena. O Atlas
Linguístico da Paraíba (ALPB) colaborou, no âmbito da rede de pontos, com 06 localidades,
incluindo os seguintes municípios: Cuité, ponto 56, Cajazeiras, ponto 57, Itaporanga, ponto
58, Patos, ponto 59, Campinas Grande, ponto 60 e João Pessoa, capital, ponto 61, conforme
ilustra a figura 10 abaixo, adaptada da Carta VII do ALiB, que se encontra na página 61 do
segundo volume.
Figura 10: Rede de pontos da Paraíba.
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Das seis localidades do ALiB, cinco coincidem com pontos do ALPB que teve
originalmente 25 pontos pesquisados, conforme pode ser visualizado no diagrama seguinte.
Diagrama 01: número de pontos coincidentes no ALPB e no ALiB
Pontos coincidentes entre o ALPB e o ALiB
ALPB ALiB No de pontos
coincidentes
25 06 05

Consoante demonstrado, percebe-se que o ALPB deu grande contribuição, juntamente


com outros atlas regionais, para a construção do Atlas Linguístico do Brasil que foi
recentemente lançado, em dois volumes, durante o III Congresso Internacional de
Dialetologia e Sociolinguística (III CIDS) realizado na cidade de Londrina entre os dias 7 e 10
de outubro de 2014.

Considerações Finais

O ALPB foi o terceiro atlas linguístico regional a revelar para o país, em 1984, o falar
da Paraíba. Suas inquiridoras sob a batuta da professora Maria do Socorro Silva do Aragão e
Cleusa Palmeira B. de Menezes percorreram todo o estado paraibano em um trabalho de
fôlego, colhendo dados estribados em pressupostos teóricos sólidos da Dialetologia e
metodologia científica criteriosa da Geolinguística. Buscavam mostrar o modo de falar da
Paraíba, a fim de apresentar ao seu povo e ao Brasil a realidade linguística de seu estado,
mormente no aspecto das variações diatópicas e diastráticas. Foi um trabalho realizado com
uma visão retrospectiva, orientado pelo passado, seguindo as trilhas de Antenor Nascentes,
Nelson Rossi e de outros dialetólogos, mas com um brilho no olhar voltado para o futuro, com
a certeza de que contribuiria um dia para a elaboração de um projeto maior para o Brasil. Essa
certeza é hoje realidade. Trinta anos depois o Atlas Linguístico da Paraíba vê-se
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definitivamente inscrito como um dos alicerces forjados para a elaboração do Atlas


Linguístico do Brasil. A comunidade linguística tem duplo motivo para comemorar. Estamos
todos orgulhosos pelo transcurso dos trinta anos do ALPB com a professora Socorro Aragão
firme e forte na luta e com o lançamento do ALiB, inaugurando definitivamente uma quarta
fase nos estudos dialetológicos brasileiros.
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SITUAÇÕES DO ROMANCE DE EXPRESSÃO PORTUGUESA E DE EXPRESSÃO


ESPANHOLA

ENSAIO SOBRE EL TUNEL DE ERNESTO SÁBATO

Amanda Barros de Melo1

Neste ensaio pretendemos analisar o livro El tunel de Ernesto Sábato tendo como base
para seu desenvolvimento a obra O escritor e seus fantasmas do mesmo autor. Acreditamos
que a compreensão inicial de qualquer obra de arte, deve dar-se em seu prolongamento
histórico e social. Afinal, como bem coloca James (1995)

[...] o romancista deve escrever a partir de sua experiência.


[...] Há um ponto em que o sentido moral e o sentido artístico se aproximam
muito; e isso sob a luz bastante óbvia de que a qualidade mais profunda de
uma obra de arte sempre será a qualidade da mente do seu criador (p.28;
p.44)

Sábato trilhou uma trajetória curiosa que, de certa forma, faz com sua obra seja
singular e controversa. Sendo pouco estudado na academia e com uma série de pesadas
críticas a respeito de sua produção literária, este doutor em física tornou-se pra nós um
profícuo literato mesmo compondo apenas três romances.
Passemos à sua história; Sábato, conhecido hoje como ensaísta, romancista e artista
plástico argentino, no início da vida encontrou nas ciências exatas uma ordem em meio ao
caos de sua existência, em suas palavras:

Eu era patologicamente introvertido, minhas noites estavam povoadas de


pesadelos e alucinações [...] e então veio a matemática, recordo o êxtase que
experimentei na primeira demonstração de um teorema: toda a ordem, toda a
pureza, todo o rigor que faltava em meu mundo de adolescente. (1964, p.10)

Completados os estudos até o doutoramento, ganhou uma bolsa do governo argentino


para realizar pesquisas num renomado laboratório em Paris, vale lembrar que durante sua vida
estudantil participou ativamente do partido comunista, o que seria uma decepção futura.
Estando em Paris, encontrou-se com o surrealismo, e, mesmo não seguindo à risca este
movimento, desencantou-se com a ciência e a ilusão da racionalidade pura. Diante das
influências europeias, inclusive literárias e filosóficas, como Camus e Sartre, resolve voltar

1
Doutoranda do programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
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pra Argentina, “abandonar” a ciência e dedicar-se às letras. Parece-nos ter sido uma sábia
escolha já que Sábato, dentre outros prêmios, foi o segundo autor argentino, depois de Borges,
a receber o prêmio Miguel de Cervantes em 1984.
Diante desta breve síntese histórica de Sábato, cabe lembrar que nenhuma obra que
valha se limita unicamente à vida de seu autor, pois, como afirma Zéraffa (1991, p. 13) “o
paradoxo de romance é o de toda obra de arte: ela é irredutível a uma realidade que,
entretanto, traduz”. Sabemos que toda literatura contém elementos do real, sejam eles de
ordem social ou emocional, se assim não fosse, não haveria o reconhecimento por parte do
leitor nem a efetivação dos sentidos que a obra propõe.
Neste caso, também vale ressaltar a afirmação de Candido (1968, p.74) sobre a função
do escritor: “o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a
imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e
morais.” Ou seja, as circunstâncias em que a obra é produzida, combinadas com uma análise
profunda do texto, podem evidenciar certos critérios de escolha, bem como de temas que
perpassam a obra literária.
O próprio Sábato se pronuncia a esse respeito afirmando o que se segue:

o homem não é um objeto passivo, e portanto não pode limitar-se a refletir o


mundo: é um ser dialético e (como seus sonhos o provam), longe de refleti-
lo, o resiste e o contradiz. E este atributo geral do homem se dá com mais
histérica agudeza no artista, indivíduo no geral anárquico e anti-social,
sonhador e inadaptado (1964, p.163)

Por fim, nossa postura diante do nosso objeto de estudo, O túnel, é aquela já colocada
por Said (2007, p.82), “adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras
e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido”. É a
leitura minuciosa do texto que envolve recepção e resistência, situando o texto como parte de
uma rede de relações.
O túnel é o primeiro romance escrito por Sábato e foi publicado em 1948, numa época
política controversa na argentina conhecida como Peronismo, Sábato foi um dos críticos desse
movimento ao denunciar em seu ensaio “O outro rosto do peronismo. Carta aberta a Mario
Amadeo” (1956) as perseguições executadas por este regime político, como a tortura de
estudantes, exilados e professores. Ele acreditava que Peron reuniu em torno de si criminosos
e aventureiros que tornavam o movimento indigno. Além disso, quando consideramos
analisar uma obra do século XX, há de se lembrar que este século inaugura um modelo
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bastante distinto dos padrões clássicos de narrativa. Desde seu contexto histórico, movido por
guerras e grandes deslocamentos, que alteraram o modo de vida das pessoas, até certa
efervescência teórica no que diz respeito a estudos críticos de arte, percebe-se consideráveis
mudanças. As obras literárias do século XX são objetos de estudo que, via de regra, assumem
um caráter experimental, onde a tradição é questionada, retrabalhada ou levada aos seus
limites máximos. Contudo, conforme destaca Adorno em sua Teoria estética (1982), todas as
obras de arte, e a arte em geral, são enigmas, pensamento que sempre serviu de inspiração
para o campo da teoria da arte. “O fato de as obras de arte dizerem alguma coisa e, no mesmo
instante, ocultarem algo aponta sempre para o caráter enigmático de tal linguagem” (p.140).
Sábato afirma que toda a sua obra é fruto de um espírito contraditório, e na leitura de
O túnel nos deparamos com situações dessa natureza. O livro é narrado em primeira pessoa
por um personagem chamado Juan Pablo Castel, possui trinta e nove capítulos curtos em que
ressoa um tom de oralidade e diálogos com o leitor muito fortes. Assim começa a obra: “Basta
dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne; suponho que todos ainda
se recordam do processo, o que dispensa maiores explicações sobre a minha pessoa” (1984, p.
7). Neste primeiro trecho do capítulo já nos é dada a sensação de tratar-se de um fato, real e
conhecido de todos, portanto, “dispensando maiores explicações” sobre este personagem
narrador. O leitor se depara com sua primeira interpelação e inserção na narrativa, através da
memória, de modo que suas expectativas e curiosidades diante do “pintor assassino” são
aguçadas já na primeira frase. O que caracteriza um traço da narrativa que se estenderá até o
último capítulo.
A escolha pela primeira pessoa do singular é explicada por Sábato (1964) como uma
tentativa de fazer o leitor sofrer as ansiedades e dúvidas da personagem, compreendendo sua
“lógica” até o assassinato da mulher. A sucessão dos acontecimentos é narrada de tal forma,
que o leitor se sente engendrado e fisgado pela leitura, não obstante o desfecho da estória estar
explicitado desde o início, o que evidencia a maestria da narração, logo, do autor. Neste
mesmo capítulo inicial encontramos a seguinte afirmação “o mundo é horrível, eis uma
verdade que dispensa demonstração” (p.7), o tom “pessimista” estará envolvendo todo o
enredo, e em cada personagem ele provará essa premissa. Sábato afirmou que “os seres
humanos não podem representar nunca as angústias metafísicas no estado de puras ideias [...],
o fazem encarnando-as e obscurecendo-as com seus sentimentos e paixões” (1964, p.14).
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A trama se passa em Buenos Aires por volta de 1946, Castel conta como conheceu
Maria e como seus pensamentos o conduziram a assassiná-la, nesse entremeio encontramos
reflexões sobre a condição humana, a solidão, o ciúme, a incomunicabilidade entre os seres,
discussões sobre a arte, a crítica, o uso das palavras e a insensatez. Outras poucas personagens
também estão presentes na trama como veremos a seguir.
O narrador conversa com o leitor em toda a obra e até o despreza, o segundo capítulo
elucida esta afirmação e outras:

Como dizia, eu me chamo Juan Pablo Castel. Poderão perguntar o que me


move a escrever a história de meu crime (não sei se já disse que vou relatar o
meu crime) e, sobretudo, a procurar um editor. Conheço bem a alma humana
para prever que hão de pensar que seja por vaidade. Pensem o que quiserem
– pouco me importa; faz tempo que pouco me importam a opinião e a justiça
dos homens. (1984, p.9)

Aqui encontramos uma primeira demonstração de sutil ironia do narrador na procura


do editor. Afinal, não basta escrevê-la, é preciso editá-la/publicá-la. E por quais motivos, não
sabemos. Também encontramos uma primeira inserção entre parêntesis configurando o traço
de oralidade já citado por nós e os primeiros indícios de um narrador confuso e desiludido
com a realidade que o circunda. Além do tema da vaidade citada como “o motor do progresso
humano” (p.9) presente até nas boas ações, mais um acento irônico do narrador. No fim das
contas, ele diz não contar esta estória por vaidade,

mas, por que essa mania de querer encontrar explicação para todos os atos da
vida? Quando iniciei este relato, estava firmemente decido a não dar
explicações de nenhuma espécie. Tinha ímpetos de contar a história do meu
crime, e pronto: quem não gostasse, não a lesse. [...] Posso falar até o
cansaço e aos gritos, ante uma assembleia de cem mil russos: ninguém me
entenderia. Percebem o que quero dizer?
Houve uma pessoa que poderia entender-me. Mas foi, precisamente, a
pessoa a quem matei. (p.10-11)

Neste trecho podemos depreender a crítica à razão utilizada como modo de


compreensão para a vida, ao racionalismo como forma de explicação para nossos atos. Mais
uma vez, o desprezo pelo leitor e em última instância, pelo próprio homem, já que se coloca
aqui um dos grandes temas deste romance: a incomunicabilidade entre os seres. Pois, só
Maria poderia entendê-lo. A utilização do futuro do pretérito nesta última frase evidencia uma
possibilidade não uma certeza. Todo o romance parece pautar-se, dentre outras coisas, na
dúvida, na questão do ser e do parecer, na incerteza e nas implicações da mente incrédula,
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“incomunicável” com o mundo, e duvidosa deste narrador. Sábato se pronuncia a este respeito
afirmando que,

a tarefa central do romance de hoje é a indagação sobre o homem, o que


equivale a dizer que é a interrogação sobre o Mal. O homem real existe
desde a queda. Não existe sem o demônio: Deus não basta. Portanto, a
literatura não pode pretender a verdade total sem esse censo do Inferno.
(1964, p.209)

Um claro relato da influência que ele sofreu do existencialismo de Sartre, pra quem a
“encarnação é a queda, o mal original” (1964, p.143), Deus não existe e o que resta é
desesperança. No próprio enredo o narrador afirma que Maira estava lendo uma novela de
Sartre. Além da indagação sobre o homem, sobre o mal em si e no mundo, caracterizando,
como dito anteriormente, o pessimismo, ou realismo, dependendo do ponto de vista de cada
leitor. Caminhando na narrativa, Castel diz que cuidará em relatar tudo imparcialmente, e
conta que durante o Salão da primavera de 1946 apresentou um quadro chamado
Maternidade, no mesmo estilo dos outros, mas, à esquerda havia uma cena através de uma
janela em que uma mulher contemplava o mar numa praia solitária. Ninguém se interessava
por esta cena com exceção de uma moça que a fitou fixamente fazendo com que ele quisesse
chamá-la, mas não conseguiu. “Durante os meses que se seguiram, só pensei nela, na
possibilidade de voltar a vê-la. E, de certo modo, só pintei para ela. Foi como se a pequena
cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha vida” (1984, p.13). O
exagero da personagem nessa citação anterior já mostra a timidez e o caráter obsessivo de
Castel, durante o romance veremos como esta obsessão maltrata a si próprio e à sua relação
com Maria. Além do quadro, especificamente a cena através da janela, ser o motor que
conduz as emoções de Castel e a representação desta será uma chave para compreensão da
obra como um todo.
O narrador passa os próximos três capítulos pensando em como encontrar a moça e
como falar com ela já que sua timidez era quase patológica. Até que ele consegue encontrá-la
e perguntar por que ela estava olhando pra cena da janela, ela não responde com clareza, diz
não saber, mas, pergunta a Castel o que aquela cena significa verdadeiramente, segue sua
resposta:

Não sei, tudo isso tem algo a ver com a humanidade em geral compreende?
Lembro-me de que, dias antes de pintá-la, tinha lido que em um campo de
concentração alguém pediu o que comer e lhe obrigaram a comer um rato
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vivo. As vezes creio que nada tem sentido. Em um planeta minúsculo,


correndo para o nada há milhões de anos, nascemos em meio a dores,
crescemos lutamos, adoecemos, sofremos, fazemos sofrer, gritamos,
morremos, morrem uns enquanto outros nascem, para tornar a começar a
comédia inútil. (p.35)

Sabemos que o mundo presente no texto é um mundo representado que “não traz em si
mesmo nem sua determinação, nem sua verdade, que devem ser procuradas e encontradas em
relação com algo outro” (ISER, 2002, p.404). Acreditamos que a afirmação de Iser corrobora
a posição do narrador mediante as explicações do quadro.
Também podemos encontrar outro exemplo do existencialismo presente na obra, sob a
influência de Sartre para quem “o mundo é demais e ameaça engolir o eu” (SÁBATO, 1964,
p.145). No mais, nos é inevitável lembrar Camus e suas obras, na expressão do absurdo do
mundo, na gratuidade dos infortúnios e no acaso trágico. Já que graças a indicação deste
autor, O túnel foi publicado em Paris, em 1949.
Na sequência da narrativa, mais precisamente no capítulo doze, Castel começa a
entregar-se aos delírios do ciúme mesmo antes de sequer tocá-la. Maria viaja repentinamente
para a casa de campo do primo Hunter e deixa uma carta para ele, neste momento ele
descobre que ela é casada com Allende, um cego que lhe entrega a carta em mãos. A carta
tinha apenas a seguinte frase: “Eu também penso em você”. Nas palavras do narrador,

esta inesperada viagem ao campo despertou a primeira dúvida. Como sempre


acontece, comecei a encontrar suspeitosos detalhes anteriores, aos quais não
havia dado importância antes. Por que aquelas mudanças de voz no dia
anterior? Quem eram as pessoas que “entravam e saíam”, impedindo-a de
falar com naturalidade? E ademais, isso provava que ela era capaz de
simular. (1984, p.41)

O romance possui predominantemente análises psicológicas das personagens e


conflitos interiores, todos sob o ponto de vista do personagem-narrador Castel, este tomado de
ciúmes passa a constantes devaneios sobre a vida de Maria, seu passado, suas relações e seus
próprios pensamentos. Cada palavra dita por Maria, cada gesto, é tomado a partir de então,
como uma prova de sua dissimulação e desamor. Sábato (1984) acredita que “indagar os
problemas psicológicos de um homem significa indagar seu conflito com o mundo em que
vive. Isso não implica que em qualquer romance um escritor dê testemunho de toda a
realidade” (p.34). Afinal, como dito anteriormente, o mundo do texto é uma representação,
além disso, concordamos com Iser (2002) que o mundo não é simplesmente repetido no texto
literário, ele experimenta ajustes e correções.
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Castel amava Maria desesperadamente e queria garantias de amor recíproco, ao


mesmo tempo, não conseguia colocar em palavras esta necessidade. Suas desconfianças só
aumentavam por não saber se era realmente amado, enquanto se reprovava por entregar-se a
Maria. As brigas eram constantes e violentas, Castel a ofendia para arrepender-se em seguida,
os interrogatórios a ela eram frequentes e das poucas vezes que ela tem voz direta no romance
afirma “Como és criança!” (p.62), “És incrivelmente cruel” (p.68), cada discussão infundada
os machucava mais e mais. O narrador chega a citar diretamente Otelo de Shakespeare,
“Sempre recordo como o pai de Desdêmona advertiu a Otelo de que uma mulher que havia
enganado o pai poderia enganar outro homem” (p.68). O “monstro de olhos verdes” vai
tomando completamente a consciência de Castel e o fazendo imaginar situações e explicações
as mais doentias possíveis.
Perguntado sobre a natureza d’ El tunel, Sábato afirma que,

em sentido mais profundo não há romance que não seja autobiográfico, se na


vida de um homem incluímos seus sonhos e pesadelos. Em tais condições,
como posso identificar-me e como posso não identificar-me com Castel? Ele
representa um momento ou aspecto do meu eu, que em outro momento está
representado por Maria. Castel expressa o lado adolescente e absolutista,
Maria o lado maduro e relativizado, também Allende representa algo meu e
também Hunter. (1964, p.13)

Parece-nos que os grandes dilemas humanos estão condensados em cada personagem,


mesmo tão distintos entre si. Além de Castel e Maria, temos o primo Hunter, uma espécie de
mulherengo superficial com pouca voz na narrativa, mas alvo das desconfianças mais
profundas de Castel. Já que por acreditar que Maria era amante de Hunter, ele a matou. Além
do marido dela, Allende, um cego também com pouca voz na narrativa, mas a quem é
destinada uma das últimas reflexões de Castel, pois, assim que ele veio contar que havia
matado Maria, que ela era amante dele e de muitos outros, as únicas palavras ditas pelo cego
foram: Imbecil e Insensato. Allende se mata após a morte de Maria. Acreditamos que a
cegueira dele aqui representa uma espécie de autorreprovação, pois, um cego poderia
enxergar o quanto Castel era insensato, não sendo à toa o fato dele (Castel) não compreender
as últimas palavras de Allende.
Sábato (1964) afirma que os atributos centrais de um romance do século XX são:
descida ao eu, ou seja, um profundo subjetivismo e reflexão sobre si próprio presente em
cada personagem, que leva a segunda característica que é o tempo interior, ou seja, na
narração o tempo não é cronológico, nem nos é clarificado, não sabemos quanto tempo se
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passa desde que Castel conhece Maria até o seu assassinato, muito menos em que época ele
resolve contar seu crime. A próxima característica seria o subconsciente, na descida ao eu, o
escritor encontra-se com as zonas desconhecidas do inconsciente de cada personagem fazendo
com que, por vezes, as impressões sejam como de um sonho ou pesadelo. Castel nos
evidencia esse aspecto. Inclusive narra alguns sonhos durante a estória. O quarto ponto é a
ilogicidade, o escritor se veria obrigado a abandonar o instrumental da razão e das ciências.
Como ele mesmo coloca, “nosso tempo é o tempo do desespero e da angústia, mas, só assim
pode iniciar-se uma nova e autêntica esperança” (p.52). A quinta característica é o mundo
desde o eu, ou seja, cada momento é contado a partir da visão e dos estados de alma de cada
personagem. Em seguida, o outro, sua subjetividade e relação entre as personagens; a
comunhão entre os seres, logo, sua solidão e incomunicabilidade, já que Castel representa
uma situação extrema de incomunicabilidade; o sentido sagrado do corpo, o sexo adquire
uma dimensão metafísica e a comunicação entre os corpos está fadada ao fracasso, já que a
questão é quase espiritual para o autor. Por fim, o conhecimento, a literatura se torna forma
de conhecimento já que agora os sentimentos e emoções são a parte mais complexa e
verdadeira da realidade, já que “a novela de hoje é a novela do homem em crise” (p.89).
Castel num dos últimos capítulos chega a dizer,

agora, que posso analisar meus sentimentos com tranquilidade, [...] de certa
forma, sinto estar pagando a insensatez de não me ter conformado com a
parte dela que me salvou (momentaneamente) da solidão. Esse
estremecimento de orgulho, esse crescente desejo de posse exclusiva,
deviam-me haver revelado que trilhava um mau caminho, aconselhado pela
vaidade e pela soberba. (1984, p.88)

Castel se perde em seu ciúme, em sua “solidão quase olímpica”, em seu mundo
interior conturbado por dúvidas e inseguranças, enfim, em sua crise. Ele mata a única pessoa
que poderia entendê-lo com facadas no ventre, por uma desconfiança autodestrutiva e sem
provas de traição, se entrega a polícia e acaba preso. Nos momentos que antecedem o
assassinato, o título do romance se elucida ao leitor:

era como se nós dois tivéssemos vivido em corredores ou túneis paralelos,


sem saber que íamos um ao lado do outro, como almas semelhantes em
tempos semelhantes, para encontrarmo-nos no fim desses corredores, diante
de uma cena pintada por mim, como chave a ela só destinada, como um
secreto anúncio de que já estava ali e que os corredores se haviam por fim
unido e que a hora do encontro tinha chegado. [...] Que estúpida ilusão fora
tudo isto! Não, os corredores seguiam paralelos como dantes, conquanto
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agora o muro divisório fosse um muro de vidro e eu pudesse vê-la, a Maria,


como uma figura silenciosa e intocável... Não, nem sequer esse muro era
simples assim: às vezes voltava a ser de pedra negra e então eu não sabia o
que se passava do outro lado, que era dela nesses intervalos anônimos, em
que estranhos episódios aconteciam; e até pensava que nesses momentos seu
rosto se modificava e um trejeito de escárnio o deformava e talvez trocasse
risos furtivos com outros e toda a história dos corredores era uma ridícula
invenção ou crença minha e que em todo o caso havia um só túnel, obscuro e
solitário: o meu, o túnel em que havia transcorrido minha infância, minha
juventude, toda a minha vida. E num desses trechos transparentes do muro
de pedra eu divisara esta mulher e crera ingenuamente que vinha do outro
túnel paralelo ao meu, quando na realidade pertencia ao imenso mundo, ao
mundo sem limites dos que não vivem em túneis; e talvez se tivesse
acercado por curiosidade de uma de minhas janelas e entrevisto o espetáculo
da minha irremediável solidão, ou lhe houvesse intrigado a linguagem muda,
a chave do meu quadro. (p.116-117)

Acreditamos que há aqui um dos mais belos eventos narrados no romance, a precisão e
a clarividência da análise são redentoras para o leitor, nos deparamos com as grandes questões
da personagem central, suas ilusões, seu pessimismo, seu ciúme doentio, sua incapacidade de
se relacionar, sua visão do amor e de Maria. A sensação de viver num túnel, isolado por
muros que mudavam de aspecto, de achar-se invisível e ingênuo por achar que alguém
poderia viver em corredores como ele, e a constatação de estar só e preso nos limites de seu
mundo. Afinal, o imenso mundo de fora não tinha limites, e apenas na arte, sua pintura, sua
janela, alguém poderia vê-lo, irremediavelmente mudo e solitário.
A leitura desta obra nos provocou de tal forma que nos fez repensar nossas próprias
convicções, tanto pessoais quanto intelectuais, já que se trata de um escritor em certa medida,
pouco conhecido, e com uma narrativa tão sedutora e carregada de questionamentos. Inclusive
da prática crítica, qualificada pelo narrador da seguinte maneira:

uma praga que nunca pude entender. Se eu fosse um grande cirurgião, e um


senhor que jamais manejou um bisturi, nem é médico, ou sequer entalou a
pata de um gato, se pusesse a explicar-me os erros de minha operação, que
se haveria de pensar? O mesmo acontece com a pintura. O singular é que a
gente não se apercebe disso e, conquanto ache graça das pretensões do
crítico de cirurgia, escuta com incrível respeito esses charlatães. (1984, p.18)

Por fim, sabemos da limitação de nossa perspectiva e que as análises de uma obra
como esta não estariam nem perto de esgotarem-se neste breve ensaio, afinal, toda grande
literatura é inesgotável em seus efeitos e implicações. Concluímos à maneira de Sábato: “E os
muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos” (última frase do romance).
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LITERATURA E PSICANÁLISE: SIGNOS DO EROTISMO

SEMIOSES DO DISCURSO: CONJUNÇÕES LITERÁRIAS

Hermano de França Rodrigues


UFPB

Na definição greimasiana, a Semiótica constitui uma teoria que integra o processo


comunicativo (assentado, agora, na perspectiva da ação e da competência dos sujeitos
enunciativos) a um processo muito mais amplo: o engendramento da significação. Esta, por
sua vez, deve ser concebida não como um a priori já substancialmente construído, que se
revela integralmente e de forma homogênea, mas, antes, e, sobretudo, como o resultado de
articulações do sentido. Recuperar, reconstituir os sentidos que se circunscrevem no discurso
é o fim primeiro de todo semioticista, que tem no texto não o seu objeto, mas o seu
instrumento de trabalho. Eis, a declaração de CORTINA & MARCHEZAN:

É essa constituição do sentido que a semiótica busca expressar, opondo-se,


portanto, ao posicionamento de que sobre o sentido nada se pode ou se deve
dizer, por ser evidente ou intraduzível, recusando também a paráfrase,
pessoal, impressionista, a interpretação intuitiva. (2004, p.394)

As inquietações da semiótica residem, pois, na explicitação do modo por meio do qual


os sentidos se manifestam e se constroem discursivamente; em outras palavras, para se extrair
o “dito”, debruça-se inicialmente no “como”. Pretende-se chegar não aos sentidos
convencionalmente verdadeiros, frutos de abstrações, mas, antes, àqueles que, no interior do
discurso, aparecem como veridictórios, simulacros da realidade. Considerando a produção de
sentidos como uma formação significativa, Greimas concebe a descrição desta através de um
percurso gerativo, simulacro metodológico do ato real de produção significante, que vai do
mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto. Esse percurso, ao levar em
consideração a organização imanente do discurso, focalizando suas dependências internas,
tende a constituir um modelo que, em linhas gerais, pode ser operacionalizado em qualquer
unidade textual. Em outros termos, a descrição da significação, em etapas, configura um
padrão de previsibilidade comum a textos de natureza diversa: verbais, não-verbais e,
sincréticos, cujas textualizações são compreendidas e examinadas por semióticas específicas.
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Na axiologia do percurso gerativo da significação, sob o qual a semiótica se debruça


para construir os sentidos do texto, salienta-se o nível discursivo, o patamar mais próximo da
manifestação textual. Embora concebido como o segmento superficial do percurso, sua
operacionalização se efetiva preponderantemente nas subjacências da concretude linguística,
ou seja, detém-se no discurso, entendido como processo semiótico constituído exclusivamente
na e pela atividade enunciativa. Convém, nesse momento, lembrar a distinção entre as
acepções de texto e discurso. Ambos conservam uma mesma materialidade linguística, um
mesmo conjunto de estruturas (verbais ou não) ordenadas a partir dos mecanismos
pragmáticos de coesão e coerência. A divergência entre eles não reside, assim, no caráter de
sua composição, mas no olhar que o sujeito, historicamente situado, lhe impele: uma sucessão
de unidades sígnicas deixa de ser texto para se tornar discurso, quando o leitor/ouvinte passa a
focalizar o propósito de suas intenções, a observar as ideologias que o sustentam, em outras
palavras, a vislumbrar os vestígios que o processo de enunciação deixou na tessitura do texto.
Na organização discursiva da narratividade em língua natural, deve-se fazer uma
separação terminológica e, sobretudo, funcional entre os entes envolvidos no processo
enunciativo-discursivo. O primeiro a ser caracterizado é o autor, o ser que assina o texto
escrito ou se responsabiliza pela produção oral. É um sujeito empírico, de existência real,
passível de ser reconhecido fisicamente. Sua atualização somente se efetiva, em instância
discursiva, quando se instala como enunciador. Nessa posição, assume o posto de agente
produtor e organizador do universo enunciativo. Ele abstrai, em conformidade com o espaço
sociocultural em que se insere, os signos e as estruturas linguísticas construídos
historicamente em sua memória e atribui, a seu significado geral, um sentido específico,
convergente com ideologia que carrega. É, na verdade, um proto-sujeito que percebe e sente,
que expressa por meio de discursos sua visão de mundo, suas intenções e, principalmente, sua
ideologia. Assim como o autor que, ao se instaurar numa situação comunicativa, faz aparecer,
pressupostamente, as categorias de leitor/ouvinte, a função intrínseca de enunciador promove
a instalação pressuposta e dialética do enunciatário.
Em termos semióticos, o discurso é o resultado da conversão das estruturas narrativas,
quando estas se projetam na voz do sujeito da enunciação, que faz determinadas escolhas, de
ordem sintática (pessoa, tempo e espaço) e de natureza semântica (tema e figura), fazendo
expandir a narrativa e transformando-a, através de sua enunciação, em instância discursiva.
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O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa ‘enriquecida’ por todas


essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos
pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia. (1990,
p.53)

Cabe à SINTAXE do discurso estudar as projeções da enunciação no enunciado (fator


desencadeante e ordenador do discurso) e as relações entre enunciador e enunciatário. A
enunciação configura, numa primeira demarcação, como a instância de intercessão entre o
patamar narrativo e o discursivo, que assegura, por assim dizer, a conversão da competência
em performance, das estruturas semióticas virtuais em categorias realizadas sob a forma de
discurso. É, unicamente, por meio dos traços e marcas deixados neste, que a enunciação pode
ser reconstruída e, a partir daí, servir de instrumento para a extração dos possíveis valores
sobre os quais ou para os quais o texto foi construído.
Quando se engendra um discurso-enunciado, estabelece-se, pressupostamente, um
contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, que determina a verdade ou não do texto.
Esse pacto de confiança mútua comporta dois preceitos. O primeiro prescreve como o
enunciatário deve perceber o texto do ponto de vista da verdade e da realidade. Há
procedimentos enunciativos, específicos de cada cultura ou grupo social, que impõem formas
de interpretação do discurso, direcionando a leitura rumo à verdade ou à mentira. Em dados
universos culturais, narrativas que trazem o rótulo de “histórias de pescador” são agraciadas
com o título de mentirosas, carregam consigo o gérmen da desconfiança, da descrença. Os
contos, infantis ou não, que se constroem a partir do enunciado “Era uma vez...” são
considerados irreais, frutos das coerções imaginativas. As histórias populares, principalmente
aquelas concernentes ao romanceiro popular, são tomadas como verdadeiras para aqueles que
compartilham dos valores, das crenças por elas veiculadas. No entanto, trazem os signos da
ficção, da invenção, do imaginário para aqueles que se encontram distantes desse universo,
para os que não participam ativamente do macro-universo popular. As fábulas de La Fontaine
ou aquelas adaptadas por Monteiro Lobato no Sítio do Pica Pau Amarelo continuaram, à
semelhança de Esopo, a transmitir uma lição de moral por meio da elocução de animais e/ou
de seres inanimados, o que, aparentemente, denota um certo caráter irreal. No entanto, esses
personagens agem como humanos, seus sentimentos e atitudes são reais e, por isso, explicitam
conteúdos verdadeiros.
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O segundo preceito, ainda sobre o dispositivo veridictório do texto, determina como o


enunciatário deve entender o discurso-enunciado, partindo da informação superficial,
encerrada pelos significados gerais dos elementos constituintes da estrutura, ou seja, o
conteúdo dito, o posto; ou o contrário, recuperando aquilo que jaz sob as unidades
significantes, o dizer. Existem estratégias discursivas que assinalam se um dado enunciado
deve ser interpretado como X, alicerçando, com isso, um contrato de identidade, ou como um
não-X, estabelecendo, a partir de então, um vínculo de contrariedade.
Se numa situação específica, enuncia-se a estrutura “Muitos animais encontram-se em
extinção”, é evidente que o enunciador almeja que tal enunciado seja concebido como H.
Todavia, quando um adolescente diz “Levei bomba na prova”, quer que o produto de sua
enunciação seja interpretado como não-H. O termo “bomba” figura como uma antífrase: não
há possibilidade de tomá-lo, aqui, como referência ao aparato bélico, uma vez que encerra um
outro sentido, o de que o aluno não obteve êxito na prova.
Segundo COURTÉS (1991), a enunciação é uma instância propriamente linguística
ou, mais largamente, semiótica, logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado
e cujos traços e marcas são recuperados nos discursos examinados. Sua efetivação depende do
sincretismo de três categorias: eu-aqui-agora, que projetadas ou negadas no enunciado,
fabricam o discurso. Dessa forma, a discursivização é o procedimento gerador da pessoa, do
espaço e do tempo da enunciação e, ao mesmo tempo, da referencialização actancial, espacial
e temporal que, consequentemente, se inscreve no enunciado.
Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado são dois:
debreagem e embreagem. A debreagem consiste em abandonar, em negar a instância
fundadora da enunciação, e em fazer surgir, como conseqüência, um enunciado cuja
articulação actancial, espacial e temporal, guarda como na memória, sobre um modo negativo,
a estrutura original do eu-aqui-agora. É somente através dessa operação de negação que se
pode vislumbrar a passagem da esfera de produção enunciativa para o patamar da realização,
ou seja, do enunciado. Ademais, o processo de negação recai sobre cada um dos três
componentes da instância enunciadora. Assim, o não-eu, obtido por esse procedimento,
equivale então a um ele, o que Benveniste designou, em seu célebre artigo Da subjetividade
na linguagem (1976, p. 284), de não-pessoa. A terceira pessoa não implica uma pessoa em
particular, porque pode representar qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, inscrito ou não
no discurso, não é jamais instaurado como actante da enunciação. Corresponde àquele de que
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eu e tu falam, pertencendo, pois, ao enunciado. Paralelamente, ao não-aqui que estabelece a


debreagem espacial corresponde a categoria do algures, assim como a denegação do agora dá
lugar a um então. As reflexões acima podem ser expressas, visualmente, pelo seguinte
esquema:

O procedimento de debreagem, que assegura a passagem da instância da enunciação à


do enunciado, responde, em sentido inverso, ao mecanismo denominado embreagem que visa
o retorno à esfera da enunciação. Para dizer a verdade, esse retorno é absolutamente
impossível. Se a reconstrução da enunciação só acontece mediante a recuperação dos traços
deixados no enunciado, a volta ao estado histórico de produção enunciativa desencadearia o
desaparecimento do enunciado, o que, por sua vez, impediria totalmente a restauração da
enunciação. O que se pode ter, de fato, é uma embreagem parcial que corresponde, ao menos,
a um esboço de um retorno e, pressupõe, evidentemente, uma debreagem prévia:
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O sistema de referencialização actorial, centrada nos mecanismos de debreagem e


embreagem, obedece a uma hierarquização que leva em consideração as diferentes instâncias
enunciativas instauradas no texto, todas correlacionadas com a identidade do sujeito
enunciador. O primeiro patamar da enunciação goza, então, da presença do actante enunciador
cuja instauração põe em cena, numa relação de alteridade, o actante enunciatário. Ambos
pertencem à enunciação considerada enquanto quadro implícito e logicamente pressuposto
pela materialidade do enunciado, o qual retém os sinais que permitem “regenerá-la”. Nesse
âmbito, enunciador assume a função discursiva de destinador implícito da enunciação e o
enunciatário exerce o papel, também presumido, não estruturalmente expresso, de destinatário
da atividade enunciativa. Se eu e tu se constroem e se posicionam, convergentemente, na
situação de enunciação, pode-se afirmar, com veemência, que o “cargo” de enunciatário não
se restringe apenas a recepcionar o discurso, mas também, e sobretudo, de produzi-lo uma vez
que se apresenta “como filtro e instância pressuposta do ato de enunciar” (FIORIN, 2002,
p.65).
O segundo patamar do ordenamento enunciativo comporta a existência de um narrador
e de um narratário instalados, explicitamente ou não, no enunciado. Referem-se, estes, a
desdobramentos diretos do sujeito da enunciação. Mesmo nos textos construídos a partir do
ponto de vista de um narrador aparentemente ausente, há, indubitavelmente, uma esfera
inscrita no enunciado que assume a responsabilidade pelas avaliações e interpretações, em
suma, pelo dito. Ainda que se conceba um objeto semiológico desprovido de interpretação, o
que, em termos lingüísticos, é absolutamente impossível, testemunhar-se-ia, certamente, uma
organização referencial do universo enunciativo, erigida pelo sujeito narrador, alicerçada na
distribuição dos atores (interlocutores), na construção dos espaços, nas projeções temporais,
etc. Semelhantemente, todavia em nível não tão complexo, o narratário pode vir a figurar
explicitamente no discurso-enunciado, caso o narrador estabeleça um elo direto com ele,
dirigindo-lhe concretamente a palavra, ou de modo tácito, quando constitui uma imagem
projetada estrategicamente pelo narrador.
A terceira instância concernente à hierarquização enunciativa emerge quando o
narrador delega a voz a um actante do enunciado, produzindo uma debreagem interna que
instaura um diálogo. Cria-se, então, um simulacro da própria esfera da comunicação cuja
instalação, no interior do discurso, faz surgir, em condição pressuposta e dialética, os actantes
responsáveis, inerentemente, pela efetivação da atividade comunicativa, o destinador e o
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destinatário que, nesse contexto, exercem as funções de interlocutor e interlocutário. Observe-


se a diagramação seguinte:

(Figura VII)

É preciso dizer que esse esquema não aparece nas tramas discursivas com esta
ordenação metódica. A depender do universo de discurso, tal hierarquização sofre
determinadas transformações ou complicações. No caso da literatura oral, especificamente
nos romances tradicionais, observa-se uma neutralização ou um apagamento da instância
ocupada pelos actantes narrador e narratário. Em determinadas peças, o sujeito enunciador e o
seu correlato dialético, o enunciatário, projetam no enunciado os interlocutores (atores) que,
em situação dialógica, passam a ter a “autonomia” do processo enunciativo. É o que ocorre,
por exemplo, no romance La condessa, cujo enredo se desenvolve a partir do confronto
dialógico fincado entre a Condessa, detentora de belas filhas, e o cavaleiro e/ou rei, que
pretende desposar uma das donzelas. Aparentemente, a enunciação serve aos propósitos
desses protagonistas:

_Ó condessa, condessinha, condessa de Aragão


Vinha te pedir uma filha das mais lindas que elas são.

Em outras narrativas, no entanto, acontece uma convergência, uma cumplicidade


enunciativa entre os pares discursivos enunciador / enunciatário e interlocutor / interlocutário.
Nesse caso, os atores estão embreados no enunciado, criando uma atmosfera real de
comunicação, como se realmente fossem os verdadeiros responsáveis pela materialização do
discurso. Tal fenômeno atinge, a título de exemplo, o romance popular Miguelzinho,
caracterizado, em termos de enredo, por um menino que triste com a morte da irmã se dirige,
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todas as manhãs, para a tumba dela onde pede a Deus que a traga de volta. O discurso se
desenvolve em primeira pessoa, do ponto de vista de Miguelzinho, forjando a impressão de
que a história está acontecendo no momento em que é enunciada, acentuando, dessa forma, o
seu caráter veridictório:

— Papai do céu, por favor deixa voltar a maninha


Ela nunca mais brincou está tão triste coitadinha
Lá em casa todos choram a mamãe vive a chorar
A vovó só conta estória quando a maninha voltar
Deus, atende o meu pedido ela não suja o vestido
Eu vou segurando o véu e depois que a vovó contar
A maninha voltará pra dormir com Deus no céu

A crítica literária e diversas teorias que se dizem voltadas para o discurso continuam
postulando, erroneamente, que os mecanismos de debreagem e embreagem criam,
essencialmente, dois efeitos de sentido: o de objetividade e o de subjetividade. Os fenômenos
enunciativos não se limitam a essa visão simplória e ingênua. Um discurso que se constrói
sobre os simulacros do eu-aqui-agora pode ser tão ou mais objetivo quanto aquele cujas
marcas de enunciação foram eliminadas. Subjetividade e objetividade não são fenômenos
estruturais que se fincam na superfície do discurso. São antes, procedimentos ideológicos que
fazem vir à tona as intenções e valores daqueles que, competentemente, deles fazem uso.
Recorrendo mais uma vez ao universo popular, tem-se o romance Margarida, erigido
predominantemente em terceira pessoa, mas que concentra fortes traços de subjetividade.
Constatemos:

Margarida não tinha mãe Alfredo não tinha pai


Era um amor entre os dois que não se via em ninguém bis
Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar
Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar
Alfredo em campos de batalha seu corpo estremeceu
Quando soube da notícia que Margarida morreu
Margarida, por Deus te peço pelo Santo amor de Deus
Quando chegar lá no céu rogas por mim a Jesus bis

O enunciador, embora aparentemente distanciado do universo enunciativo, detém um


olhar, um dizer intensamente subjetivo. A caracterização de Margarida e Alfredo assenta, já
no início, sob a esfera do sofrimento, uma vez que são órfãos, respectivamente, da figura
materna e paterna. Em termos sociais, cabe à mãe a função de educar os filhos, de dar-lhes
afeto e ao pai, reserva-se o dever de proteger a família, de provê-la. Assim, a união dos dois
jovens se complementam nessa ausência: Margarida busca o amor em Alfredo e este almeja a
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realização, o abrigo em Margarida. Não é à toa que entre eles reside um sentimento “que não
se via em ninguém”. Por motivos não expressos, o valente Alfredo viaja para lutar na guerra,
mas promete à amada voltar. O destino lhes é cruel e Margarida, não suportando a longa
espera, desfalece. A causa da morte é evidenciada através do elemento intensificador <tanto>
presente no verso “Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar”. Há, então, uma
avaliação da condição de espera de Margarida realizada pelo enunciador, que interfere,
subjetivamente, ao apreciar o fato.
Ao receber a notícia da morte de sua amada, Alfredo fica profundamente perturbado.
Essa constatação mais uma vez sofre intervenção estratégica do enunciador, que, para
enfatizar o transtorno que a perda da mulher dileta causara no desafortunado mancebo, projeta
sobre o discurso uma estrutura linguística que o lança na cena enunciativa: “Alfredo em
campos de batalha seu corpo estremeceu” O tremer do corpo só poderia ser descrito por
alguém que, de fato, estivesse a observar Alfredo quando este fora tomado pela tristeza.
Infere-se, depois dessas ponderações, que extrair os vestígios da enunciação de um texto, não
garante que sua enunciação proceder-se-á de forma objetiva.
É de responsabilidade da SEMÂNTICA DISCURSIVA descrever e explicar os
procedimentos semiológicos que permitem a conversão dos percursos narrativos em percursos
temáticos e o revestimento destes por meio das figuras. Na epistemologia canônica da
semiótica, a tematização e a figurativização correspondem a realizações do sujeito da
enunciação que as utiliza como mecanismos geradores e mantenedores da coerência
discursiva.
Na tematização, os valores semânticos que instauram o sujeito no patamar narrativo
são convertidos, no nível discursivo, em unidades abstratas denominadas temas, as quais se
organizam em percursos. Pertencem ao domínio das idéias, pois não se referem a algo
existente no mundo exterior, mas a elementos capazes de organizar, distribuir e,
principalmente, ordenar a realidade apreendida por mediação dos sentidos. Em suma, os
temas caracterizam-se por seu aspecto propriamente conceptual.
Para revestir os temas, o sujeito da enunciação faz uso do processo de figurativização
que consiste em selecionar, do seu sistema de representação, intensamente regulado e
alimentado pelas coerções sociais e, sobretudo, culturais, as figuras que poderão concretizar
as categorias temáticas que, abstratamente, tangenciam o discurso. Segundo Courtés (1991),
será considerada figura, de um dado universo de discurso (verbal ou não-verbal), todo
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elemento diretamente reportado a um dos cinco sentidos tradicionais: a visão, a audição, o


olfato, o paladar e o tato. Resumindo, tudo o que se relaciona à percepção.
Conforme o modo de concretização da estrutura narrativa, os versados em semiótica
prevêem a existência de dois tipos de texto: o temático e o figurativo. Este se constrói sobre
entidades que remetem ao mundo natural, trazendo para a superfície discursiva, espetáculos
reais, nos quais se presentificam seres (humanos ou não), objetos, paisagens que impedem que
se deforme, interpretativamente, a realidade. Aquele, todavia, procura explicar os fatos e as
coisas do mundo exterior, buscando distinguir, organizar e, o mais importante, interpretar a
realidade que, abstratamente, se apresenta no discurso. Recuperar, como exemplo, os textos
populares, poderá didatizar o exposto. Assim, do grandioso universo da literatura tradicional,
extraímos o romance oral O canário, que narra a desventura de um pássaro (um canário) que é
dado de presente a uma menina que passa, a partir daquele momento, a engaiolá-lo. No
entanto, triste por está preso, o pobre canário adoece. Sua dona manda chamar um médico que
o examina imediatamente. Nada adianta, e depois de alguns dias o canário vem a falecer:

Eu tinha um canário que me deram de presente bis


Quando era de madrugada meu canário acordava a gente bis
Mandei chamar o doutor pra fazer uma operação bis
Pra salvar o meu canário da veia do coração bis
Meu canário ficou triste no domingo adoeceu bis
Na segunda, bateu asa na terça, ele morreu bis

O texto, em questão, é totalmente coerente no que diz respeito à verossimilhança, uma


vez que as projeções actanciais e temporais se revelam condizentes e adequadas à realidade
do sujeito produtor. A menina, o canário e o doutor são interlocutores figurativos cuja
existência pode ser atestada, comprovada, e, precipuamente, aceita pelo enunciatário. A
figurativização temporal obedece a um ordenamento lógico: o canário é entregue à menina,
em seguida ele é preso, adoece posteriormente e finalmente morre. Além disso, a forma de
conceber o tempo, ao utilizar as figuras domingo, segunda, resgata uma norma social
solidificada em determinadas comunidades humanas. Em termos temáticos, a narrativa se
expande: depreende-se o tema da opressão, realizada por aqueles que, estando em posição
contrária, são indiferentes aos sentimentos do outro. Observa-se, também, o tema da
exploração velada, visto que o sujeito menina parece apreciar a ave, mas se mostra indiferente
a sua prisão. Sua preocupação em salvar o canário, encerra um propósito negativo – ela teme
perder o objeto de prazer.
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A figurativização pode apresentar-se de maneiras distintas nos diversos tipos de


discurso. Há aqueles que comportam um investimento figurativo esporádico, acarretando,
com isso, um revestimento apenas parcial dos percursos temáticos, que passam, então, a se
constituírem de isotopias temáticas. É o que ocorre, por exemplo, no discurso científico,
predominantemente, construído sobre enunciados abstratos. Por outro lado, as figuras podem
se propagar em todo o discurso, ordenando-se por meio de isotopias figurativas, como é o
caso do discurso literário, que requer uma referencialização enunciativa mais concreta. Assim,
é possível afirmar que não existem discursos não-figurativos, mas antes discursos em que, ao
contrário do literário, prima por um processo de figurativização menos intenso.
As redes de figuras que se imprimem num texto contribuem para definir os
interlocutores cujos comportamentos são regidos, conduzidos e estereotipados pelos papéis
temáticos que assumem na instância discursiva. Justifica-se, então, a posição metodológica da
semiótica de abandonar a designação de interlocutor e recuperar, do universo teatral, a
denominação de ator, termo mais condizente com a constituição físico-biológica dos
personagens que se inscrevem no enunciado e, principalmente, com as diversas funções por
eles desempenhadas.
Entende-se por papel temático a qualificação ou o atributo de um ator. Pode prender-se
a uma esfera social (pai, mãe, marido, soldado), sintetizar um conteúdo psicossociológico
(Cinderela, é caracterizada, em quase toda a narrativa, como a pobre e humilhada donzela) e,
em determinadas enunciações, condensar uma valorização moral (a Madrasta da Branca de
Neve é concebida como má, perversa, extremamente, invejosa). A noção de ator, por sua vez,
implica uma figura, lexicalmente individualizada, capaz de assumir um ou vários papéis.
Nesse caso, apresenta-se como uma entidade estritamente semântica que se define,
linguisticamente, por abarcar os semas: a) unidade estruturalmente figurativa, capaz de
referencializar entes de natureza antropomórfica, zoomórfica ou outras; b) categoria animada,
com competência para agir discursivamente; e c) instância passível de individuação,
materializando-se no texto pela atribuição de nomes próprios ou papéis temáticos.
Na literatura erudita, é comum se deparar com obras cujos personagens são
ardilosamente projetados a partir de denominações específicas que garantem a sua
permanência mítica. É assim que continuam intocáveis e estáticas as personagens Iracema, de
Alencar e Isaura, de Bernardo Guimarães. São figuras restritas ao universo imaginativo,
pertencem a um tempo que não é o do leitor e, portanto, conservam-se distantes do mundo
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real, exterior. Diferentemente, os romances populares, de realização oral, primam por papéis
temáticos genéricos que estendem a narrativa, situando-a mais próxima daquele que a produz.
Assim, o cangaceiro, a condessa, o marido traído, a namorada cruel podem ser referentes de
qualquer sujeito, podem ocupar outros espaços, podem ser enunciados em outro tempo, em
suma, podem ser reconstruídos incessantemente pela dinâmica da memória e da cultura
popular. São atributos sociais e morais que não se restringem a uma dada História, caminham
e se transformam com as gerações.
O ator concentra outras complexidades que vão além de seu investimento semântico.
Ele não se limita a ocupar o nível discursivo, estando também integrado na narrativa, onde é o
responsável direto pela ordenação sintática. Nesse âmbito, a figura do ator aparece como o
lugar de convergência e de união das estruturas narrativas e das estruturas discursivas, do
componente sintático e do componente semântico, visto que está incumbido,
simultaneamente, de pelo menos um papel temático e de um revestimento actancial. Trazendo
à tona a opinião de GREIMAS:

É a assunção dos papéis temáticos pelos papéis actanciais que constitui a


instância mediadora que dispõe a passagem das estruturas narrativas para as
estruturas discursivas. (1973, p. 175)

Os dois níveis – narrativo e discursivo – embora estejam interligados numa relação


hierárquica ou de subordinação, não se encontram sobrepostos termo a termo. O casamento
entre ator e actante está longe de configurar um sistema de inclusão de uma ordem numa
determina classe. Assenta, na verdade, num processo de combinação de funções, de
desempenhos. Ou seja, um actante (A1) pode ser manifestado no discurso por vários atores
(a1, a2, a3) e, inversamente, um só ator (a1) pode constituir o sincretismo de vários actantes
(A1, A2, A3):
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Em termos discursivos, o conflito interior, que a teoria literária admite ocorrer


somente quando o personagem mergulha num estado de inquietação e de interrogação da sua
condição humana ou social, ganha um enfoque mais concreto e preciso, ao ser concebido
como o resultado do sincretismo actancial que atinge um determinado ator. Tem-se, então,
uma estrutura actorial subjetiva, caracterizada pela presença de um só ator que assume todos
os actantes e papéis actanciais, desencadeando uma altercação dramática em seu íntimo,
“obrigando-o” a tomar outros rumos, ou seja, a realizar outros percursos; e uma estrutura
actorial objetiva, quando para cada actante ou papel actancial corresponde um ator diferente,
que, geralmente, realiza percursos ordenados sem ocorrência de rupturas.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Editora Ática, 1990.
______. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
CORTINA, Arnaldo & MARCHEZAN, Renata Coelho. Teoria Semiótica: a questão do
sentido. In: Introdução à Linguística – Fundamentos Epistemológicos. São Paulo: Cortez,
2004.
COURTÉS, Joseph. Analyse Sémiotique du Discours. De l’énoncé à l’énonciation. Paris:
Hachette, 1991.
______. Introdução á Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra: Livraria Almedina,
1979.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Editora Ática, 1998.
______. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1999.
______. As astúcias da Enunciação. São Paulo: Editora Ática, 2002.
GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In: Semiótica Narrativa e Textual.
São Paulo: Cultrix, 1977.
______. & COURTÈS, Joseph. Sémiotique: dictionaire raisonné de la théorie du langage.
Paris: Hachette, 1979.
______. Semântica Estrutural. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1973.
______. Semiótica do discurso científico. Da modalidade. São Paulo: Difel, 1976.
______. Sobre o Sentido: Ensaios Semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975.
______. Du Sens II: Essais Sémiotiques. Paris: Éditions du Seuil, 1983.
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HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem. São Paulo: Perspectiva,


1973.
NÖTH, Winfried. A semiótica no século XX. São Paulo: Editora Annablume, 1996.
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AS FACES DO LOBO: DIMENSÕES DO ÓDIO NA LITERATURA

Frederico de Lima Silva1


UFPB

Hermano de França Rodrigues2


UFPB

Considerações Iniciais

“Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela
pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade!” (FREUD, 1930, P. 168)3
Utilizando-nos desse postulado freudiano datado de 1930, colocamos à tona o caráter não
somente teórico-psicanalítico que preceitua o tema da agressividade, mas também seu viés no
contexto social, já que o tema é antigo na constituição de nossa história, sendo descrita desde
os tempos mais remotos, como na Antiguidade, pelos aedos4 e rapsodos5, em suas narrativas
orais, onde narravam os castigos sofridos pelos homens por causa da hybris6 para com os
deuses. Sendo descrita até na obra que descreve o mito fundador do mundo e dos deuses
gregos, a Teogonia, de Esíodo, em que os diferentes tipos de divindades elementares vão
sucumbindo-se diante dos castigos provenientes de suas hybris em relação os sucessores.
Posteriormente, teremos outras inúmeras referências a atos considerados violentos e
agressivos, como, por exemplo, na Bíblia, ou até mesmo em tempos mais antigos, como o de

1
Graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Doutor em Letras, pela Universidade Federal da Paraíba. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa da
mesma Universidade.
3
FREUD, S. O Mal-Estar Na Civilização, (1930 [1929]), vol. XXI. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
4
Um aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento de
música, o forminx. Distingue-se do rapsodo, mais tardio, por compor as próprias obras. O mais célebre dos
aedos foi Homero, a quem se credita duas das mais famosas epopeias já escritas: Ilíada e Odisseia.
5
Rapsodo é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando
poemas (principalmente as epopeias homéricas). Diferenciava-se do aedo por cantar poemas que não eram de
sua autoria e por não ter qualquer instrumento para acompanhar a declamação.
6
A húbris ou hybris é um conceito grego que alude tudo aquilo que “passa da medida”; “descomedimento", mas
que também pode ser relacionado à violência de algum ato, ou insolência diante dos deuses.
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Platão, onde, em seu “Livro IX da República, retrata a figura do homem tirânico, o mais
violento deles, hospedeiro de todos os vícios. (FERRARI, 2006, p. 50)”7.
Dessa forma, ratificamos que a violência, que é entendida pela psicanálise como o
encontro da pulsão de destruição com a linguagem, faz parte do mal-estar não só de nossa
época, mas de toda a história da espécie humana, diferenciando-se diacronicamente apenas
pelo fato de que, hoje, ela está sendo excessivamente exposta, praticada e, de certo modo,
valorizada, como já afirmou Badiou (2012)8 ao dizer que este século possuía um furor
mortífero. E, para tal efeito, a mídia tem constituído importante mecanismo, sendo ela, nos
dias de hoje, a instituidora, muitas vezes, dos padrões, das normas da sociedade e, nos casos
em que lei simbólica encontra-se mal instaurada, devido, por exemplo, ao declínio da figura
paterna, a Imago, passa a ser a formadora e deformadora do psiquismo do sujeito e da
sociedade (LEVISKY, 1999)9.
Voltando-nos novamente às considerações expostas em 1930, vemos que Freud
postulou que a agressividade seria algo inato ao ser humano. Para ele, tal elemento que
alicerça a personalidade de qualquer um de nós constituía parcela importante no mecanismo
de construção e desenvolvimento psíquico de qualquer pessoa, pois, quando nos referimos à
agressividade, estamos falando sobre energia, combatividade, disposição ativa, sobre uma
força empreendedora, de autoproteção, estando presente desde os princípios da existência
humana, fazendo companhia à incessante busca do amor do outro.
Sendo assim, Freud considerou que durante o processo de formação do aparelho
psíquico, os recém nascidos não possuíam qualquer distinção do outro, daquele ao qual
proviam os cuidados necessários a suprir toda e qualquer necessidade desse indivíduo.
Contudo, quando tais necessidades não fossem supridas de maneira total ou parcial, haveria
um acumulo de tensão na criança, causando-a um enorme desconforto e desprazer. Só a
posterior descarga dessa tensão faria com que se gerasse novamente a condição de prazer, ou
seja, dessa maneira, o princípio do prazer constitui-se mediante esse processo de descarga e,
por sua vez, seria esse processo primário que objetiva a eliminação mais imediata possível
dessa tensão acumulada para se restabelecer o estado inicial de prazer que, para a psicanálise

7
FERRARI, I. F. Agressividade E Violência. In: Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol.18, n.2, p.49 – 62, 2006.
8
BADIOU, A. O século. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2012.
9
LEVISKY, D.L. A mídia- interferências sobre o aparelho psíquico. Revista Diagnóstico & Tratamento, vol. IV,
no 2, abril/maio/junho, 1999. Disponivel em:<http://www.davidleolevisky.com/artigos/A%20m%EDdia%20%
20interfer%EAncias%20sobre%20o%20aparelho%20ps%EDquico%20%20portugu%EAs.pdf> Acesso em: 26
junho de 2014.
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freudiana, governaria nosso inconsciente. Dessa forma, pode-se facilmente explicar o


comportamento da maioria das crianças que, ao sentirem tensões referentes, por exemplo, à
fome, tendem a chorar, beliscar, agarrar o corpo materno, dentre outras manifestações
(FREUD, 1996)10.
Com relação a esse momento primeiro do contato humano com essa pulsão, podemos
destacar as contribuições de M. Klein, que em seu livro Inveja e Gratidão e outros trabalhos
(1946-1963)11 vai nos ponderar sobre o modo como as crianças associam a agressividade aos
pais e como ela volta como ansiedade pelo desejo de destruição da criança. Klein diz ainda
que durante esse processo, alude na criança um impulso destrutivo contra o seio “ruim” e tudo
o que é gratidão é dirigido ao seio “bom” (p. 72). Estes impulsos são reforçados por volto dos
seis meses, onde o bebê começa a reconhecer e introjetar cada vez mais a mãe como uma
pessoa, um outro, algo que não é parte dele. (Idem, p. 73)
Aqui, cabem algumas exposições breves com relação às pulsões de vida e de morte,
dois elementos introduzidos na obra freudiana a partir do artigo Além do Princípio do Prazer
(1920)12, onde o célebre psicanalista vai apontar que nosso psiquismo é moldado sobre a
égide de Eros (pulsão de vida) e o Tânatos (pulsão de morte/instinto destrutivo), sendo que o
objetivo do primeiro é a união, enquanto o do segundo é a destruição.13 Para Freud, estes
instintos caminhariam juntos, operando mutuamente em nosso inconsciente, alertando,
todavia, que se fundidos de maneira problemática, tal processo poderia ocasionar em
demandas de ordem perversas, como, por exemplo, quando o excesso de agressividade sexual
não é controlado, pode o amante se tornar um criminoso sexual (Freud, 1996 [1920]).14

10
Freud, S. (1996). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: S. Freud. O caso
Schereber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos (pp. 237-244). Rio de Janeiro: Imago. v. XII. (Original
publicado em 1911).
11
KLEIN, M. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Volume III das Obras Completas de Melanie
Klein. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
12
FREUD, S. Além do princípio de prazer, (1920), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de
Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
13
Mais uma vez a psicanálise busca personagens da mitologia grega para metaforizar alguma de suas teorias,
como o fez Freud, por exemplo, nas considerações desenvolvidas com relação ao complexo de Édipo, sendo
desta vez utilizadas duas outras figuras para mehor compreendermos esta amálgama entre as pulsões. No mito
grego, Eros (cupido na mitologia romana) é o deus do amor e Tânatos, deus da morte. Eros, o mais belo dos
deuses, possui arco e flecha com os quais costuma enlaçar de amor homens, mulheres e deuses. Segundo consta
na mitologia, certo dia Eros adormeceu numa caverna, embriagado por Hipno (deus do sono, irmão de Tânatos).
Ao sonhar e relaxar suas flechas se espalharam pela caverna, misturando-se às flechas da morte. Ao acordar,
Eros sabia quantas flechas possuía. Recolheu-as, e sem querer levou algumas que pertenciam a Tânatos. (Esopo,
Grécia Antiga in Meltzer, 1984). Sendo assim, Eros passou a portar flechas de amor e morte (Tânatos).
14
FREUD, S. (1996). Além do Princípio de Prazer. In: S. Freud. Além do princípio de prazer, psicologia de
grupo e outros trabalhos (pp.17-34). Rio de Janeiro: Imago editora. v. XVIII. (Original publicado em 1920).
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O conceito de pulsão de morte, silenciosa e sem representação no campo psíquico,


marca a eterna desarmonia entre os registros pulsionais e simbólicos. Isto se traduz em
postular a existência de um conflito estrutural, e não conjuntural, entre os registros da pulsão e
da civilização. Um conflito jamais ultrapassado, no qual o sujeito está irredutivelmente
lançado em sua condição originaria de desamparo.
Klein (1946) postulou que a pulsão de morte pode ser representada, por exemplo, pela
maneira sádica com que a criança se volta ao seio “mau”. E é nesse exemplo de Klein que
podemos observar de forma mais clara e precisa a maneira como ambas as pulsões agem
dentro de nosso inconsciente. Nele, vemos como o ego se utiliza dos mecanismos de
introjeção e proteção, tanto do bom, como do mau. Todavia, quando esse mau é projetado de
maneira a resvalar-se em forma de agressividade ao exterior, ao que é odiado e amado ao
mesmo tempo, pode-se acarretar, mediante essas atitudes, uma sensação de culpa e angústia
secundárias, onde haveria a posterior necessidade de reparo, como medida a proteger a se
mesma. Seria mediante esse comportamento secundário, o depressivo, que por volta dos seus
seis meses de vida a criança sinta maior necessidade de reparação, pois nesta fase os impulsos
de agressividade seriam mais claramente sentidos como dirigidos contra o objeto amado, ou
seja, a mãe. Nesse momento, a criança utilizaria de suas excreções (fezes e urina) como
formas de reparação, presentes, cortesias, mas, da mesma forma, também seriam armas com
intuito de destruir, isto é, aquilo que destrói tem, também, o poder de reparar, constituindo,
dessa forma, um constante estado de busca pela saída de seu estado de agressividade, no
intento de não destruir aquele objeto alvo de seu amor e, da forma, não tê-lo voltado contra si
mesmo.
Essa demanda nos será companheira por toda vida e, como podemos observar na obra
freudiana sobre a temática da agressividade, ela não é totalmente suportada/sublimada pelo
ser humano, sob pena de, caso tal resignação ocorra, uma autodestruição do próprio indivíduo,
daí surge uma necessidade eminente de exteriorizá-la.

As dimensões da Agressividade e da violência em O Tesouro


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Para Silva (2014)15, nas primeiras fases do desenvolvimento psicossocial,


teoricamente a criança ainda não é regida pelo princípio da castração, cuja essência faz parte
do processo de humanização do ser falante e, utilizando-se de Ferreira (2004)16, dizer que:

“O processo de humanização do ser falante se caracteriza pela inscrição no


mundo dos símbolos, o qual só existe porque há a linguagem. “Processo de
humanização” se torna então sinônimo de constituição de uma estrutura
psíquica, que é formada pelo simbólico (universo da palavra e da lei), pelo
imaginário (campo do sentido e da imagem corporal) e pelo real (registro do
impossível). Castração, então, deve ser entendida como uma inserção do real
como representação do impossível nessa estrutura psíquica.” (p. 9)

Após essas fases iniciais, a criança tenderá a realizar a substituição do princípio do


prazer pelo princípio do real (registro do impossível), levando-a a adiar a realização de sua
satisfação momentânea, de seus desejos e impulsos outrora “permitidos” devido a
infantilidade, tendo como objetivo o ganho de estima e aceitação perante a sociedade.
Contudo, durante nosso processo de desenvolvimento psicossocial, tais impulsos de desejo, de
defesa, de destruição, comandados pela égide do Id, não são apagados da nossa psiquê, mas
deixados “adormecidos” em nosso inconsciente, podendo vir à tona a qualquer momento, das
mais variadas formas, com variados graus de liberação de energia. É nesse momento,
dependendo do nível de controle do Ego, que esses impulsos podem emergir em forma de
uma linguagem regida pela agressividade, a violência.
Notemos que no conto O Tesouro, os irmãos de Medranhos, antes nobres abastados,
agora pobres fidalgos decadentes, devido à falta de alimentos, já se encontravam em estado de
agressividade latente, como está descrito no trecho em que o narrador diz que “a miséria
tornara esses senhores mais bravios que lobos” (p. 1).
Sob esse estado de animalização dos protagonistas, vemos que configura
perfeitamente a noção de agressividade apresentada por Freud, onde o ser humano desperta
seu instinto animal nas situações em que está em jogo a luta por sua conservação,
diferenciando-se dos demais animais pelo fato de que a sua agressividade está inscrita na
ordem do social. Nesse contexto, o ser humano está submetido às leis por ela imposta (a
sociedade), muitas vezes, reprimindo seus instintos, e tendo que articular manobras que
permitam a exteriorização dessa fonte de prazer, bem como de outras que foram recalcadas,

15
SILVA, Frederico de Lima. Da Letra ao Inconsciente: dimensões do desejo perverso. Monografia (Graduação
em Letras- Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
João Pessoa, 2014, 51p.
16
FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. (Coleção Passo-a-passo; 38).
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como por exemplo, o incesto, para que ele pudesse conviver em sociedade. É que nos expõe
ao afirmar que:

Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do


homem, mas também a sua agressividade, podemos compreender melhor
porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem
primitivo se acha em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto.
Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade por
qualquer período de tempo eram muito tênues. O homem civilizado trocou
uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança. (p. 119)17

Contudo, é importante frisar que não é apenas no momento em que a agressividade


encontra-se em encontro com a linguagem, com a violência, que ela mostra-se existente. Ela,
a agressividade, deve ser compreendida também no âmbito dos momentos de paz do sujeito,
já que, para a psicanálise, estuda-la pressupõe adentrar na constituição do laço social do
indivíduo, da cultura que o constitui, considerando-se os discursos que o regem, bem como
regem o contexto histórico de sua época, e de como eles respondem a ela, já que a
agressividade é uma pulsão que também está presente em nossos momentos de calma e
passividade.
Outro fator de fundamental importância para o entendimento da sequência de atos de
exteriorização dos impulsos agressivos que circundam o conto, seguindo a lógica
psicanalítica, é a fragilização da lei simbólica, instituída em nosso inconsciente através da
figura paterna; esta que deveria, caso tivesse sido estabelecida de maneira adequada,
representar os limites a essa demanda destrutiva que envolve os irmãos tão logo que se
deparam com uma situação em que eles se deparam com tesouro, e têm que escolher, por si
sós, qual a melhor decisão a ter tomada.
As ações que se desenvolvem a partir da ganância oriunda do descobrimento do
tesouro podem, sem dúvida, ser imagens da fragilização dos laços familiares, sobretudo da lei
simbólica que, por ter sido instituída de maneira insuficiente na infância, sucumbe, agora,
perante o retorno ao narcisismo, facilmente evidenciado na maneira como os irmãos de
Medranhos se correlacionam e na arquitetura dos planos de assassinato entre si.
Esse desrespeito para com os semelhantes estabelecido na obra do escritor português
pode decorrer do fato de que o ser humano, diante da inexistência de satisfações substitutivas

17
FREUD, S. (1996). O mal-estar na civilização. In: S. Freud. O futuro de uma ilusão, mal-estar na civilização e
outros trabalhos (pp. 67-148). Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. (Original publicado em 1930).
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às pulsões recalcadas, e à falta de limites, ou ainda o excesso de satisfação, pode gerar


violência ou atos delinquentes, de violência. Este revés com o que está recalcado faz com que
esta descarga de energia reflita-se em condutas que podemos classificar como antissociais
(SILVA, 2014, p. 22).
Observando mais profundamente o discurso por trás das ações dos irmãos de
Medranhos, notar-se-á que existe ali uma forte influência do perverso modo de pensar
capitalista, do liberalismo econômico, marcas da modernidade. Modo de pensar esse que
presa pela barganha, pela negociata, facilmente evidenciados em várias passagens do conto,
como por exemplo:

E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar,


numa desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos
cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais
avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o
tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se
repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. (QUEIRÓS, p.2).

É no descobrimento do ouro, na constatação do retorno ao estado que outrora os


propiciava respeito e regalias, agora não mais existentes, que se dá o retorno ao estado de
satisfação, de prazer; prazer esse que, como sabemos a partir do que foi exposto sobre as
tensões de vida e de morte, não é pleno nem eterno, ou seja, esta satisfação poderia estingue-
se novamente:

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do


que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a
rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda,
tremiam... (Idem, p.2)

Com relação a esse mal-estar presente na vida dos três irmãos que, aparentemente,
surge em meio à descoberta do tesouro, mas que não é, tendo em vista que eles já
encontravam-se em estado de constante agressividade, mediante o modo desafortunado em
que viviam, que, por sua vez era reflexo de um mal-estar na ordem da subjetividade de sua
época, pode-se constatar que preceitua o modo fragilizado das relações humanas de nossa
época, onde a perversão tornou-se o maior inimigo da sociedade atual.
Esse mal-estar que passa a ser mais claramente evidente no conto no momento em que
os três irmãos se deparam com o tesouro reflete algo que Lacan denominou discurso
capitalista. O psicanalista preceituou, utilizando-se do discurso de Max, que o que existe na
sociedade capitalista é um regime de falta de gozar. Essa postura de Lacan vai divergir dos
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que pensam que o sistema econômico capitalista é puramente um gozador, pois o entendo
como um eterno buscador desse gozo. É o que Lacan vai nos expor mais claramente em
“Radiofonia” (1970/2003)18, onde afirma que a plus valia, terno creditado a Marx, seria a
causa de desejo de toda economia, ou seja, do proletário e do capitalista, atribuindo, para isso,
o referente de mais-gozar. Em termos pungentes, e referindo-nos ao contexto dos três
desafortunados, agora, temporariamente, afortunados novamente, se é pela busca desse mais-
gozar que se constitui a existência de todos, assim como a do capitalismo, como dizia Marx, é
devido a constante falta desse gozo.
No caso de Rui, Guannes e Rostabal, o gozo temporário que lhes é apresentado
inicialmente, logo se desfaz em seguida, fazendo com que eles busquem, por meio da
violência, da descarga de suas pulsões destrutivas, retornar a esse estado de prazer, aquele da
qual, quando crianças, buscávamos ao chorar pelo seio de nossas mães, mas que aqui, no
conto de Eça de Queirós, evidencia-se na premeditação e realização das ações dolosas que
culminam na morte dos irmãos por suas próprias mãos, o que revela, ainda nos referindo à
visão lacaniana em “Radiofonia” (1970/2003), que todos somos, diante dessa busca pelo
mais-gozar, meros proletários, desprestigiados e, muitas vezes, impassíveis de constituir laços
sociais, mediante nosso estado de eterna insatisfação (nós neuróticos), nessa constante busca
pelo plus, pelo mais, pelo gozo.

Considerações finais

Como podemos observar, o conto O Tesouro, de Eça de Queirós, constituiu-nos um


importante exemplar do discurso da agressividade e da violência, reflexos de nossa sociedade,
mas não somente a ela, a todo o percurso que a humanidade vivenciou em sua constituição
como cultura, como sociedade, sendo ela, a violência, por sua vez, reflexo do tempo em que
se vive, pois o modo como a linguagem da pulsão de agressividade se mostra é, sem dúvida,
um espelho dos moldes de sociedade, sendo a agressividade externalizada, quase sempre, isso
se falando com base em um modelo neurótico de normatização social, a partir do permitido
pelas leis estabelecidas.
Pudemos observar, também, como tais elementos são inatos na constituição do
aparelho psíquico humano, onde para obter aceitação, pressupõe-se algo de renúncia por parte

18
LACAN. J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos (p. 404-447). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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do sujeito, uma vez que a agressividade, como pulsão primitiva, e a violência, como entrada
da agressividade no âmbito da linguagem, pressupõem diferentes formas de compreensão que
a sociedade dá ao gozo.
Como se pode observar, os teóricos que serviram como base para nossa análise, Freud,
Klein e Lacan nos evidenciaram que os temas aqui expostos não representam matérias
acabadas para à psicanálise, tendo em vista que são elementos de um mal-estar próprio da
evolução humana; que encontra-se, assim como nossa existência em função da busca pela
plus valia, pelo gozo pleno, em constante modificação perante à sociedade, e as regras que
moldam a maneira de se viver na contemporaneidade.
Referências

BADIOU, A. O século. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2012.


FERRARI, I. F. Agressividade E Violência. In: Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol.18,
n.2, p.49 – 62, 2006.
FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. (Coleção
Passo-a-passo; 38).
FREUD, S. O Mal-Estar Na Civilização, (1930 [1929]), vol. XXI. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora,
1988.
______. (1996). O mal-estar na civilização. In: S. Freud. O futuro de uma ilusão, mal-estar na
civilização e outros trabalhos (pp. 67-148). Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. (Original
publicado em 1930).
______. (1996). Além do Princípio de Prazer. In: S. Freud. Além do princípio de prazer,
psicologia de grupo e outros trabalhos (pp.17-34). Rio de Janeiro: Imago editora. v. XVIII.
(Original publicado em 1920).
______. Além do princípio de prazer, (1920), Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud (ESB) Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
______. (1996b). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: S.
Freud. O caso Schereber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos (pp. 237-244). Rio de
Janeiro: Imago. v. XII. (Original publicado em 1911).
KLEIN, M. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Volume III das Obras
Completas de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 256

LACAN. J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos (p. 404-447). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
LEVISKY, D.L. A mídia- interferências sobre o aparelho psíquico. In: Revista Diagnóstico &
Tratamento, vol. IV, no 2, abril/maio/junho, 1999. Disponível em: <http://www.davidleole
visky.com/artigos/A%20m%EDdia%20%20interfer%EAncias%20sobre%20o%20aparelho%
20ps%EDquico%20%20portugu%EAs.pdf> Acesso em: 26 junho de 2014.
SILVA, F. L. Da Letra ao Inconsciente: dimensões do desejo perverso. Monografia
(Graduação em Letras- Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2014, 51p.
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MAL-ESTAR NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA: INTERSEÇÕES ENTRE


PSICANÁLISE, SEMIÓTICA E CULTURA

Márcia Kristiane Lima dos Santos Carlos


UFPB

Hermano de França Rodrigues


UFPB

Introdução

Desde a época da chegada dos primeiros viajantes ao nosso território, sabemos que
eles, além do interesse pelas nossas riquezas, como o ouro e a prata, também estavam à
procura do exotismo e da libidinagem tropical do nosso país. A terra onde os índios andavam
com suas vergonhas à mostra era o cenário ideal para a lascívia. Um país que cheirava a sexo
por ser um lugar quente, exótico e proibido. Em diferentes épocas, essa foi a imagem do
Brasil “um paraíso sexual dos trópicos” (FAOUR, 2011, P. 21). O país em que o povo sempre
apresentou uma forte inclinação para alegria, com um pensamento descontraído e um
temperamento irreverente. Um povo que não se preocupava com regras. E, que na cama,
revelavam-se muito quentes. Todo esse tempero tropical acabou esquentando também a nossa
música, com ritmos alegres, sensuais e letras bem “safadinhas”.
O percurso histórico da Música Popular Brasileira (MPB) nas primeiras décadas, em
termo de Brasil, trazia uma forte depreciação da mulher, assim como dúvidas em relação ao
seu caráter, pois ela era vista como traiçoeira. As letras das canções tinham um tom agressivo,
e sempre estavam a reclamar das mulheres. Músicas machistas com uma mistura de “tesão e
raiva” compunham o nosso cancioneiro brasileiro, como a música Papagaio come milho de
Francisco A. Rocha, gravada em 1922, onde o autor narra que, a “Mulher que chora não fala
a verdade / Mulher que jura é só falsidade” (FAOUR, 2011, p.31).
Segundo os letristas, não dá para confiar nas mulheres. Vejamos, agora, uma outra
música O bicho mulher, uma canção sem data de Domingos Caldas Barbosa, nosso primeiro
compositor oficial. Observemos a letra:

Quem quiser ter seu descanso


Quem sossego quiser ter
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Na densa mata do mundo


Fuja do bicho mulher
Rói por dentro
Bem como traça
É quem motiva
Nossa desgraça
(...) Não temo leões nem tigres
Nem já os devo temer
Depois de haver escapado
Ao lindo bicho mulher...
(FAOUR, 2011, p. 32)

Nas duas canções, percebemos a depreciação e a desconfiança masculina para com a


mulher. Elas eram sempre as culpadas por tudo que causava desconforto ao sexo oposto. Só a
partir dos anos 70 que a mulher passou a ser vista com mais dignidade pelos nossos letristas.
Durante muito tempo a palavra “sexo” foi considerada um tabu, seu conteúdo aparecia
somente em ritmos, como maxixe, lundus e marchinhas de carnaval. A sensualidade era um
tema raro na MPB antes da década de 60. Mas, através do aparecimento gradativo da
sensualidade, do erotismo e da pornografia, foram surgindo novos gêneros musicais, como o
forró e o funk, que trouxeram na bagagem as “safadanças” e a “bunda music”, ritmos quentes
que atiçam a libido e que simulam o ato sexual ao dançar.

Um mal-estar na cultura

Roque LARAIA (2001), nos revela que as identidades culturais nos acompanham
desde que nascemos, pois não existe indivíduo sem cultura, ou seja, a cultura é algo que está
inerente ao ser humano. A cultura determina e/ ou estimula o ser humano a desenvolver suas
potencialidades, o que a torna geradora de personalidades. Dessa forma, os indivíduos são o
resultado do meio cultural do qual estão inseridos, pois a cultura influencia o agir, o pensar, o
vestir, o comer e principalmente o falar, pois é na fala onde se evidenciam as diferenças
linguísticas. O homem enxerga o mundo através da cultura. Porém, esse ato pode acarretar em
algumas consequências. Vejamos o que LARAIA tem a dizer sobre isso:

O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como


consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais
correto e o mais natural. Tal tendência, denominada de etnocentrismo, é
responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos
sociais (LARAIA, 2001, p.75).
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Tais conflitos sociais acontecem devido ao homem achar que as normas e valores
culturais do meio no qual está inserido são melhores que os padrões culturais de povos
diferentes.
Atualmente, percebemos um elemento “perverso” na cultura, que ultrapassa os
modelos de comportamento social aceito entre a cultura e as relações sociais, demonstrando
“a existência da inclinação para agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com
justiça que ela está presente nos outros.” (FREUD, 2011). No seu livro Mal-estar na
civilização, Freud (2011) relata que o ser humano vive à procura da felicidade, e ele a
encontra através de prazeres e realizações momentâneas, como sexo, drogas e aquisição de
bens materiais. Dessa forma, Freud acredita que a felicidade se fundamenta no narcisismo, ou
seja, o homem necessita nutrir por si mesmo, um amor excessivo, uma auto- admiração.
Assim, a libido é direcionada ao próprio ego, fazendo com que o indivíduo vivencie crises
referenciais e existenciais, causando assim um “mal-estar na civilização”. (FREUD, 2011).
Esse “mal-estar” é necessário, pois ele é caracterizado por rupturas, por uma igualdade
fragmentada e pelos interditos culturais que frustram o sujeito social, deixando claro que a
vida civilizada não é a felicidade pelo prazer, mas afastar o desprazer. Portanto, a felicidade
não existe porque é efêmera, ou seja, ela é momentânea, apesar de todos os sacrifícios feitos
para alcançar a tão almejada felicidade. Dessa forma, “se a cultura impõe tais sacrifícios não
apenas à sexualidade, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor
por que para ele é difícil ser feliz nela” (FREUD, 2011, p. 61).
Esse “mal- estar” social e / ou cultural pelo qual estamos passando e que promove as
nossas significações, atestou em nós um desejo de destruição do outro e a música, da
atualidade, reflete muito bem essa nova cultura. Uma cultura em que a perversão está presente
no cotidiano, tanto masculino quanto feminino. Freud já dizia que a transgressão é algo que
está na cultura.

A hegemonia do gozo

A música popular propõe formas de significação que estão causando um mal-estar


sócio-cultural. Atualmente, percebemos que a violência, a agressividade e o ódio estão
ganhando um lugar de destaque no cenário musical, com representações discursivas de um
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mal-estar contemporâneo causado por desejos narcísicos, capazes de negligenciar a lei a favor
de um gozo perverso.
No gênero musical tecnobrega, sobretudo na música Eu vou cortar a cara dela da
Companhia da Lapada, percebemos um mal-estar que sustenta o ódio, trazendo os signos
sociais de uma cultura marcada pela perversão, e que, com efeito, torna as relações humanas
fragilizadas.
Através da análise da música citada à cima, intencionamos compreender as insígnias
da perversão e do narcisismo, segundo Freud, apontando como a psicanálise os concebem a
partir do funcionamento psíquico e das exigências culturais. Pretendemos deixar bem claro
que nosso julgamento quanto à música não será para dizer se ela é de qualidade ou não. O que
nos interessa é a forma como esse texto reafirma valores de uma sociedade narcísica, onde o
gozo perverso reina, absolutamente. Observemos esta estrofe:

“Essa mulher feia ta querendo me tirar,


Postou no facebook que vai me pegar.
Tava na escola, quando o celular tocou:
- amiga entra aí no face, pra tu ver o que ela postou!
Apois viu, vê que onda é essa,
Eu vou pegar uma gillete, e vou cortar a cara dela!
(COMPANHIA DA LAPADA, 2012)

No primeiro verso “Essa mulher feia tá querendo me tirar”, percebemos um


comportamento narcisista, um desejo de apresentar-se superior ao outro. Esse indivíduo, que
nutre uma admiração exagerada por si próprio, mostra ao outro que o narcisista é o detentor
do falo, ou seja, ele detém o poder.
O termo narcisismo foi empregado pela primeira vez em 1887 para descrever uma
forma de fetichismo. Posteriormente, o termo voltou a ser utilizado em 1898, para nomear um
comportamento perverso com o mito de Narciso, que relata a história de um belo jovem que
desprezou o amor da ninfa Eco, por isso foi condenado a apaixonar-se por sua imagem
refletida na água.
Freud, em 1910, no seu ensaio intitulado Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua
infância, cogitou o termo narcisismo, como um estágio normal da evolução sexual. Porém, foi
em 1914, com o trabalho Sobre o narcisismo: uma introdução, que o termo ganhou um valor
de conceito. Através do fenômeno libidinal, o narcisismo passou a ocupar um lugar
importante na teoria do desenvolvimento (ROUDINESCO, 1998). Para Freud a teoria do
narcisismo foi de grande valia para a propagação da psicanálise.
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Na última estrofe da música também podemos observar esse narcisismo exacerbado.


Vejamos:

Não sabe ela, eu não comi porque não quis,


Porque o macho dela todo dia embaça em mim.
Eu não tenho culpa se ela tem a perna fina,
Cabelo de tuim, eito em cima da barriga.
Vou mostrar pra ela quantos paus faz uma canoa,
Vou comer o macho dela, e pode vir que eu to de boa.
(COMPANHIA DA LAPADA, 2012)

Nessa estrofe, a voz narrativa denigre a imagem do outro sem dó nem piedade,
evidenciando seus traços perversos, que são fortalecidos através da diminuição e humilhação
do outro. Evidenciando essa desvalorização, o enunciador revela seu prazer em destruir o
outro. O sujeito perverso desdenha e desvaloriza aquele com o qual se confronta para manter
sua imagem em alta: Eu posso! Eu tenho o poder!
O sujeito envolto em seu narcisismo apresenta um ego bastante elevado. Possui um
padrão invasivo de grandiosidade, uma necessidade de admiração e uma falta de empatia. Não
tem nem um pouco de sensibilidade para com os desejos e necessidades alheias.
No segundo verso da primeira estrofe, “Postou no facebook que vai me pegar”, e no
quarto verso, também, da primeira estrofe “–amiga entra aí no face, pra tu ver o que ela
postou”. Ambos evidenciam a incitação à violência e revelam como as redes sociais estão
servindo para o escoamento desse ódio vivido, atualmente, na nossa cultura. Hoje em dia, já
virou algo normal o indivíduo acessar as redes sociais para ameaçar o outro de modo a
aniquilá-lo, esfacelá-lo, convertendo-o num mero objeto de prazer.
No refrão da música analisada, percebemos que a perversão reina, revelando o prazer
que se tem em destruir o outro, de mostrar quem detém o poder. Assim:

Eu vou, eu vou, eu vou cortar a cara dela,


Eu vou, eu vou, eu vou cortar a cara dela,
Eu vou, eu vou, eu vou cortar a cara dela,
Ela ta com medo que eu coma o macho dela!
(COMPANHIA DA LAPADA, 2012)

Observemos que os traços perversos já podem ser averiguados no próprio nome da


banda Companhia da LAPADA, que significa BATER. Essa denominação já incita a
violência. O sujeito perverso é o detentor do poder. Ele é a lei. Na letra deparamo-nos com
um sujeito que, burlando os códigos da lei, afirma, categoricamente, que mutilará a face do
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outro. Nesse contexto, assume-se como alguém acima da lei e que nada teme. Por conta
desses excessos, expõe as marcas de um mal-estar que sustenta um ódio. Essa repetição
contínua ”Eu vou, eu vou, eu vou cortar a cara dela” enfatiza quanto o desejo perverso é
destrutivo, e numa sociedade onde a perversão reina, as relações são fragilizadas.
No dicionário psicanalítico de Elisabeth Roudinesco (1998), o termo perversão era
designado, ora de forma pejorativa, ora valorizando as práticas sexuais consideradas como
desvios em relação a uma norma social e sexual. Retomado por Freud, a partir de 1896, o
termo perversão foi definitivamente adotado como conceito, conservando a idéia de desvio
sexual em relação a uma norma. O novo conceito é desprovido de qualquer conotação
pejorativa ou valorizadora, e se inscreve juntamente com a neurose e a psicose numa estrutura
clínica diagnóstica. Segundo Freud, toda perversão é sexual e sua origem está inscrita no
desenvolvimento da sexualidade dita normal.
Já em A parte obscura de nós mesmos, Elisabeth Roudinesco (2008) assim define
perversão:

[...] “é um fenômeno sexual, político, social, psíquico, trans-histórico,


estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E se todas as culturas
partilham atitudes coerentes – proibição do incesto, delimitação da loucura
designação do monstruoso ou do normal – a perversão naturalmente tem seu
lugar nessa combinatória”. (ROUDINESCO, 2008, p.12)

Em suma, tudo que maltrata ou desagrada o outro é perversão. E ela está presente em
nosso cotidiano, assumindo as mais variadas formas.

Considerações Finais

A objetivação desse estudo consistiu em especial, na música popular brasileira, tentar


compreender os códigos de mal-estar cultural que está presente em nosso contexto social. A
música analisada traduz, de forma eficaz, um processo de subjetivação marcado pela
fragilização dos laços sociais. Vale ressaltar que a música é um produto cultural, que processa
e elabora pensamentos sobre a vida em sociedade.
Dessa forma, priorizou-se entender, através da música Eu vou cortar a cara dela,
como as representações discursivas desse gênero tem causado um “desconforto”
contemporâneo, devido a um forte apego ao ódio e ao apelo à violência, deixando visíveis os
signos de um gozo perverso.
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Referências

Eu vou cortar a cara dela (Companhia da Lapada), tecnobrega, NODP Studio, 2012.
FAOUR, Rodrigo. História Sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção
brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Penguin Classics. Companhia das Letras, 2011.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera
Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: Uma história de perversos.
Tradução: André Telles; revisão técnica: Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
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ÀS MARGENS DE SI: LITERATURA, HOMOEROTISMO E PÓS-MODERNIDADE

Eduardo Souza Falcão


Hermano de França Rodrigues

Introdução

O surgimento no circuito acadêmico brasileiro, de inúmeros trabalhos, pesquisas e


discussões que permeiam a literatura e o homoerotismo põe em voga a necessidade de se
debruçar sobre incursões históricas, teóricas e literárias imbricadas nas discursivas críticas
que vêm sendo pautadas nos diálogos dos últimos tempos.
É notório, por diversas razões, que se faz necessário atentar o assunto para algumas
questões contidas em algumas publicações que enfocam questões familiares e sociais, que se
agrupam em posições junto ao cumprimento de pesquisas palpáveis e consistentes capazes de
suprir, mobilizar e corroborar com pesquisadores de inúmeras instituições e diferentes
formações, visando a projetos de interesses comunitários. Uma presente questão é percebida
devido ao atual conflito de padrões no que concernem. Os estudos sobre a literatura
homoerótica (comumente designada como literatura de expressão gay), ou mesmo a literatura
comum. Há uma negação para as discussões sobre os conflitos que surgem como propostas
que, muitas vezes, distanciam o real do suposto imaginário que aparecem como aporte, os
quais do qual podem ser abordados nos territórios literários.
Conceituar identidade é um pouco complexo, partindo da visão de que mesmo no
âmbito acadêmico não se consegue algo que seja preciso, pois o sujeito nunca é o mesmo
quando se coloca em posições que divergem de sua opinião, sobre algo recente em sua vida.
Somos quase que sempre projetados a uma possível mudança que irá sempre convergir com
aquilo que nos propusemos momentos atrás. Para uma abordagem sobre a posição identitária
do sujeito, utilizaremos como suporte adicional para a compreensão do conceito de identidade
a concepção proposta por Stuart Hall, em seu estudo a respeito da “noção de sujeito
sociológico” (HALL, p. 10, 2014), inferindo o pensamento de que o sujeito não se posiciona
no mundo de forma autônoma, mas parte do princípio de interação com o outro. Tanto em um
diálogo com o outro, ou mesmo em seu entorno social, o indivíduo transcorre em interação,
ou seja, “A identidade nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o
“exterior”- entre o mundo pessoal e o mundo público”. (HALL, p. 11, 2014).
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A composição do indivíduo se dá na interface com o outro para a constituição de uma


folha em branco, onde o sujeito transita em seus processos de se estar e comportar-se no
mundo. O sujeito torna-se visível nas nuances de como se projeta, em seu contato com o
mundo, nos momentos em que seu sentido se reflete, sendo capaz de gerar sentidos por
intermédio de seu pensamento central para o seu desenvolvimento, e capaz de produzir
rupturas em seu entorno. Neste intuito, os sujeitos críticos, que têm a oportunidade de
exercitar e confrontar seus pensamentos, visam gerar novos sentidos que corroboram e
contribuem para modificações próprias e nos espaços sociais onde atuam. Sendo assim, no
limiar de sua capacidade e contribuição pensante, o sujeito se constitui no exercício de sua
capacidade central de caráter processual de sua subjetividade.
A abordagem da subjetividade nos traz uma dimensão de se atentar para o modo de se
posicionar diante das questões que resgatam as opiniões do sujeito diante de seus conflitos
sobre o que se pensa acerca do que lhe é imposto. Para compor um conceito de subjetividade,
usaremos como aporte o pensamento de Gonzalez Rey, segundo o qual:

“o homem é constituído a partir de sua reflexibilidade durante sua história de


vida, processo durante o qual seu pensamento atua por meio de situações que
provoquem sua emoção”. Nessa perspectiva, o exercício do pensamento vai
além do exercício da linguagem. Entre o pensamento e a linguagem “existe
uma relação complementar, e também contraditória, em que um não se reduz
ao outro, e nem é explicado pelo outro” (REY, 2003, p.235, apud. SILVA E
CAPELLE).

Nesse contexto, o autor fornece uma compreensão de um sujeito que abarca o seu
mundo histórico-cultural, que se manifesta na dialética entre o momento social atual e o
individual. Este reflete um sujeito em concordância e reflexão permanente com suas práticas
sociais junto aos seus sentidos subjetivos.
A subjetividade do indivíduo permite a manifestação de seus desejos e fantasias, bem
como a manifestação também da sexualidade reprimida, do conflito de aceitação de sua
completude masculina num âmbito dual, ou seja, numa interação com o outro; de
comunicação e diálogo.
Tais propostas permeiam o modo de se estar no mundo e nas relações humanas em
geral e suas confluências de subjetividade em uma esfera de sentidos e sentimentos que
perturbam o imaginário e a construção de possíveis suposições que interferem no modo de
agir do sujeito que, não estando em harmonia com a sua consciência e em tudo aquilo que a
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permeia, pode vir a singularizar as atitudes para se posicionar diante de conflitos internos para
a constituição de sua identidade.
Outro aporte expõe um interesse de se agregar sentido para a concepção de
regularidades para acomodar pensamentos que surgem em meio às divagações sobre o
transcorrer na vida do indivíduo: “Segundo Fernando González Rey, esse sentido de
reconhecimento que o sujeito experimenta ocorre no curso irregular e contraditório de suas
próprias ações.” (SCOZ, p. 26, 2011).
O trajeto individual retoma as experiências passadas, objetivando e subjetivando para
a construção do indivíduo por intermédio de si e do mundo. Compõe formas por vezes
irregulares de se aprender e de se estar num ambiente conflituoso, no sentido de estar em
discordância com aquilo que pode estar correto, ou não, acerca dos cumprimentos que regem
o mundo no qual nos sujeitamos viver e conviver, num âmbito social e nunca individual, num
sentido composto por formas variadas de relações entre aspectos individuais, sociais, etc.
Em seu livro A face e o verso, Jurandir Freire Costa nos apresenta uma forma de
pensar a vida em classificações morais tradicionais e liberais que nos imputam a ideia de
aceitação pelo que pode vir a ser o correto aos padrões antigos, em confronto aos termos
propostos nos dias atuais, delimitando que não a como se estar no mundo sem estar em
constante mudança: “A tarefa de redescrever o bem e o mal não termina. A vida e o sentido da
vida são um movimento constante; diferenças e semelhanças, pausas no caminho da ética”.
(COSTA, p.16, 1995)
A identidade homossexual, para alguns, não surge como um fator crítico em suas
opções, em suas conjecturas de vida ou intenção. Podemos supor que uma educação pautada
numa livre expressão, numa escolha sem conflitos que seja contrário, a uma repressão, ou
mesmo uma facilidade em tecer diálogos naturais em como lidar com os apreços do mundo,
pode sugerir uma satisfação de se sobrepor às incertezas, possibilitando estar mais a vontade
com o seu destino e ter um maior desejo em se expressar no ambiente social, familiar e
individual. O sujeito poderia estar preparado facilmente para lidar com as questões
homossexuais com uma maior naturalidade, maior conforto e segurança, precisão com as
palavras. Uma autoconfiança sobre suas ansiedades, articulação de ideias, troca de
experiências.
A ênfase encontrada na literatura de expressão gay, ou comumente reconhecida como
literatura marginal, visa certa característica identitária, não somente biológica como também
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sexual e comportamental, que confronta e discute o modelo tido como tradicional de


masculinidade, entoando, como verdade ímpar, a essência pluralista dos gêneros.
Nem todas as nuances da vida nos acompanham com todos os percalços que nos
deveriam auxiliar para o crescimento individual, pois construímos o nosso aprendizado para a
vida em arquitetura e estruturação com aquilo que nos serve para a base interna de um caráter
sugestivo. Esse exaustivo processo, por conseguinte penoso, segue agregando valores de
conduta com o qual não nos dispomos a sempre estar em concordância com todos esses
elementos encontrados no contexto sócio-histórico.
Pode-se confirmar ou não o seu intuito por um viver que abarque todos os sentimentos
a serem explorados por seu corpo e outro. Um momento quase que crucial na vida do
indivíduo surge nos conceitos e preconceitos em família com abordagens e temas prejudiciais
que, de certa forma, influenciam na concepção e/ou formação individual do sujeito para a vida
social. Inúmeras são as oportunidades de se trabalhar problemas e conflitos, seja de forma
interna ou social.
O mal-estar do homem também perpassa pela busca de sua felicidade num desejo de
se obter a plena satisfação consigo mesmo. Razões naturais do sofrimento humano para a
plenitude da finalidade e objetivo para sua vida. Segundo Freud, o indivíduo está sempre em
constante busca da felicidade, seja no âmbito pessoal, profissional ou religioso. Freud levanta
algumas questões: “o que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção
de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a
resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes”. (FREUD, p.19,
2011). Para o psicanalista, a felicidade é uma busca constante de se afirmar no mundo.

Cicatrizes e tatuagens: do desejo ao acaso

A possibilidade de se ler um romance, mesmo que não esteja circulando na lista dos
melhores Best Sellers, pode vir a gerar e a galgar um lugar nos grandes estudos possibilitando
um amalgama de questionamentos que provoquem o imaginário individual ou coletivo,
permitindo, se não a compreensão, mas ao menos suscitando uma busca por questões atuais a
serem discutidas. Compreendendo como um processo, o leitor pode se permitir uma maior
compreensão, um novo enfoque, um olhar, ou até mesmo um pensamento a partir do qual seja
capaz de entender as vicissitudes do ser humano em meio a seus conflitos, seja de ordem
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individual ou em sociedade, bem como seu posicionamento para enfrentar os desafios


sugeridos.
No livro Cicatrizes e tatuagens, de Felipe Alface, o personagem Fábio é um garoto
incomum que leva uma vida comum. Não porque isso lhe foi imposto, ou porque é
confortável. Mas porque é possível. Possui a sua casa, seus amigos, seus conceitos.
Entretanto, o amor o leva a procurar caminhos que podem, entre outras complicações, mudar
sua visão de mundo. Paixão, amizade, sofrimento e uma aura quase adolescente mostram que
a vida pode provocar marcas indeléveis.
Os personagens principais, Fábio e Eduardo, se conheceram ao acaso do destino, que
os deixou à vontade para transitarem tranquilamente um pelo caminho do outro. Uma relação
cordial. Uma escolha em esconderem sentimentos amorosos um pelo outro. Há um cuidado
peculiar como que entoasse um casamento furtivo, onde um sempre está à disposição para o
que o outro precise. A amizade nunca foi um objetivo concreto, pois se nota no romance um
apelo mais carnal. Eduardo sabe do amor platônico que o amigo sente por ele e brinca com
tais sentimentos reprimidos.
A primeira tatuagem foi uma escolha. Tatuagens permitem um aviso prévio da
escolha, do arrependimento, do engano, da dor.
A pele pode ser o refúgio de um campo minado em meio a uma crise de legitimidade
particularmente aguda. Num processo por escolhas naturais, as diferentes experiências
humanas vivenciadas em pessoas distintas são tão comuns como suas semelhanças. A posição
sexual é mantida em uma experiência complexa e percebida num momento diferente para
cada pessoa que a experimenta. Vazia ou preenchida para seus sujeitos, e por vezes, em
contraposição aos percalços de sua correta definição. A sexualidade pode ser vivida no medo,
na incerteza, e mudando dramaticamente ao longo de seu percurso, deixando marcas
infinitamente profundas. Passa por fases de euforia e pode culminar em completo tédio. Pode
nascer no armário e terminar atrelada, emocionalmente, dentro de um relacionamento
distante, distorcendo os anseios previstos e acarretando cicatrizes para toda uma vida.
Toda experiência quando vivida de forma a se concretizar, mesmo desconfiando que
tudo possa vir a sair de forma contrária ao planejado, é filtrada pela premissa da reflexão e da
autorreflexão, não se permitindo nos ser dado em estado bruto advindo do mundo empírico, a
experiência de descobrir-se homossexual. A vida parece ser melhor embaixo dos cobertores,
pois possibilita dar mais risadas, descobrir os prazeres do corpo; um anseio mais profundo,
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mais intuitivo, mais emocional. Fica impossível esconder-se do desejo explícito: estava ele,
“no papel”, no meu pensamento, diante dos meus olhos.
Como explicar o medo e a hostilidade? Como explicar a distância e a atração? Uma
parte secundária da vida na busca da constituição psicológica e emocional é proposta pelo
personagem como uma fuga do emocional que vai de encontro a sua razão de estar presente
na vida do outro.
A sobrevivência depende da auto-ocultação. O controle da sublimação, de esconder
seus reais sentimentos. Mas contrapõe-se à enganação e autodesprezo que nunca deixam sua
consciência. O que lhe dá sentido para a vida é justamente o que mais pode vir a destruí-lo,
tanto seu interior de jovem apaixonado em meio aos seus sentimentos, quanto aos olhos dos
outros, estando alheios.
A condição básica para sobreviver em certas situações é subjugar a si mesmo diante
das observações pouco animadoras e enriquecedoras para transcorrê-lo de tais sentimentos. O
personagem acredita em suas emoções e convicções para o seu desenvolvimento, o seu
caminhar para a liberdade do seu corpo, de ter domínio sobre seus desejos; ir ao encontro
daquilo que lhe é fator favorável de aproximação, de pele, suor e gozo.
Sugere que sabe lidar com a incerteza. Que comunga da distinção entre seu desejo
sexual e seus anseios emocionais de forma a sempre estar em fuga de si mesmo para encarar o
personagem de sua antítese, Eduardo. Não porque tenha real domínio objetivo da carne, mas
pelo instinto de sobrevivência social e sexual. O personagem não deseja ser excluído da
presença do outro, pois seria traumático. Atravessa uma experiência de se estar só. A solidão
aproxima os seus reais sentimentos para encontrar-se ao outro. A sua antítese descobre a
rejeição emocional do personagem Fábio, pela simples força das circunstâncias. Já Eduardo
segue a traçar uma trajetória para sua vida onde lhe é permitida burlar seus sentimentos e estar
sempre na companhia de seu primo, não se permitindo a saudade.
Mesmo não sendo “natural” o fato de o relacionamento atravessar o caminho comum
do adultério consciente, pois no decorrer do romance, Eduardo inicia um relacionamento com
Clara, e, ao saber de tal relação, Fábio entra em conflito e faz drama de sua situação, por estar
sendo uma má pessoa e ridículo. O orgulho ultrapassa a fronteira da satisfação pessoal e
chega à culpa, sublimando os reais sentimentos.
Os homens são menos defensivos e mais arrojados em suas emoções do que as
mulheres; são mais arrojados na sexualidade (FÁVERO, 2012). O processo de enfrentar,
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encarar e aceitar uma condição de macho ultrapassa a linha do traçado lento e o caminho de
divagar de uma autorrealização em meio de uma realidade de vivência emocional básica. A
permuta para se conseguir suprir seus desejos é usualmente atrelada ao fator sexual. O perigo
é fator preponderante para a relação e a situação que a envolve é inevitável para a
experimentação homossexual, que pode vir a ser considerada, em várias hipóteses, como uma
possível doença, uma perturbação da ordem, uma condição privilegiada ou mesmo a maldição
certa; pode vir a cair na discussão de uma possível cura. Ser polida, ocultada, alcançada,
abraçada ou somente suportada. Mas ela é real. E perpassa transcorrendo involuntariamente,
não se atendo as suas formas de expressão, aos sentimentos condenados. Ela devaneia por
uma área misteriosa, instável em sua masculinidade onde o desejo sexual e o emocional se
entrelaçam e se encontram para uma satisfação momentânea.
A história presente, na obra aqui escolhida, é de uma minoria grandiosa em seus
conflitos internos que se acomodam diante das questões que poderiam abrir um leque para as
discussões acerca do prazer emocional e o prazer sexual. Trava-se um duelo entre a paixão e a
razão, entre o cuidado máximo e a honestidade com argumentos que confortam a momento
atual. São verdades que se escondem na mentira dos outros.
Num processo de mediação entre o pensar lógico em concordância às práticas sociais,
o sujeito infere sua subjetividade, em acordo ao seu contexto histórico de vida para romper
com o social. O que um dia foi um processo de adequação, hoje rompe com o social para se
aventurar em novas perspectivas de adequação social. Para se compreender o sujeito de hoje,
faz-se necessário reconhecer o sujeito de ontem, para se construir o sujeito de amanhã.

Considerações finais

Seja homoerotismo ou homossexualidade, sua definição ainda é muito ou tão


problemática quanto à questão de raça. Nas literaturas, tais proposições ainda seguem de
forma a tomarem maior força o julgamento que se faz baseado em suas performances. Muitos
são os argumentos que surgem para definir a identidade possível do sujeito do que se
presentifica no cerne de uma literatura. Em sua história de vida, o homossexual passou por
diversas injustiças nas busca de sua visibilidade no meio social, tendo em vista que a
aceitação de sua condição de vida era tolhida, reprimida nas questões de afeto, seja familiar
ou mesmo num relacionamento com o outro. Vivia às margens de uma sociedade que não
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avançou na mudança requerida. O olhar voltado para as causas ainda passam por
reformulações que garantam o zelo e diversidade de pensar, agir e mesmo se portar em
sociedade.
Os conservadores ainda estão do lado oposto aos direito do ser humano. Vários serão
os degraus a serem alcançados na busca do ideal perfeito de convivência que se possa definir
como igual. As injustiças abarcam os que buscam por viver uma vida plena que mereça um
fenecer do coração. Para muitos indivíduos, um amor compartilhado pode ser considerado
sempre fugidio, um objetivo que não raramente podemos atingir, e quando o fazemos
supomos achar de difícil conservação. Mas abster-se da falta dessa possível realização como
condição de existir é retirar de uma vida humana muito do que poderia impulsioná-la além do
horizonte. É por isso que talvez pareça tão difícil esquecer uma cicatriz feita pelo destino, ou
uma tatuagem inserida no corpo por uma razão qualquer, pois não conseguindo se mover
sozinha do corpo, não há nada a sua frente, nenhum futuro ou desejo que impeça de ir.

Referências bibliográficas

ALFACE, Felipe. Cicatrizes e tatuagens. – São Paulo: GLS, 2007.


COSTA, Jurandir Freire. A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo:
Editora Escuta 1995.
FÁVERO, Maria Helena. Psicologia do gênero: Psicobiografia sociocultural e
transformações. Curitiba: Ed. UFPR, 2012.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. – São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina,
2014.
SCOZ, Beatriz Judith Lima. Identidade e subjetividade de professores: sentidos do
aprender e do ensinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
SILVA, Késia Aparecida Teixeira; CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves. A Teoria da
Subjetividade e a Epistemologia Qualitativa de Gonzalez Rey como Possibilidade
Teórico-Metodológica nos Estudos de Administração. 2013.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 272

AS (RE)INCIDÊNCIAS DA DOR: CORPOS HUMILHADOS NA LITERATURA

Maria do Socorro da Silva Medeiros


UFPB

Hermano de França Rodrigues


UFPB

De acordo com a teoria psicanalítica de Freud a subjetividade humana é composta por


um emaranhado de acontecimentos que marcam a história da existência de cada um dos
viventes. Somos resultantes de um processo continuo de movimentos, os quais se
caracterizam pela sua azáfama.
Desde a mais tenra idade, estamos fadados a repetir a lógica de thanatos1. Na Grécia
Thanatos era a personificação da morte. Freud faz referência ao termo para explicar a pulsão
de morte no indivíduo. Esta alude à morte simbólica, a morte social; uma pulsão que leva o
indivíduo à loucura, ao suicídio, ou seja, uma morte simbólica ou material perante a
sociedade. Para, Freud, Thanatos- a pulsão de morte- é reprimida por nós, para que se
obtenhamos prazer ao vivermos em sociedade, porém nem sempre somos bem sucedidos
socialmente, quando isto ocorre tendemos a sermos tomados pela pulsão de morte.
Segundo Freud, o ser humano é dotadoda pulsão de vida e a pulsão de morte. A pulsão
de vida proporciona que este sinta vontade de satisfazer seus desejos, buscar o prazer e
satisfação da libido. Ao entregar-se ao contentamento das suas vontades o homem adentra em
um processo de individualidade de extrema periculosidade para si e para os que estão em seu
convive-o. Para amenizar as consequências do deleite em excesso a sociedade estabelece
normas, as quais desempenham o papel de controle sob este.
O processo supracitado – da moralidade social – consiste no estabelecimento de um
sistema de normas rígidas, taxativas e indiscutíveis, as quais são mascaradas pela noção de
dever constituinte. Assim sendo é estabelecido que esta,consiste em um método harmonioso,
o qual deve ser comungado por todos que compõem a esfera social. Desde modo, a sociedade
modela o comportamento humano por meio de normas.

1
Thanatos, que representa a morte e os instintos de auto-preservação, e é regido pelo princípio da realidade, que
leva o ser humano a adiar o prazer, buscar a segurança e desempenhar atividades produtivas.
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O conflito entre Eros2 e Thanatos é uma luta pela liberdade e felicidade humanas. Uma
vez que, para viabilizar a civilização, o princípio do prazer foi sobrepujado pelo princípio da
realidade, os dois instintos se encontram em permanente estado de oposição. Dessa forma,
cada ser humano tem em seu aparelho mental a evolução de sua repressão individual (da
infância à existência social consciente) e a evolução da civilização repressiva (da horda
primordial ao estado civilizado plenamente constituído).
Esse aparelho realiza uma constante repressão de Eros por meio da dinâmica da tríade
id, ego e superego e da administração dos princípios do prazer e da realidade. Nesse processo,
os instintos de vida foram enfeixados em um ego organizado que torna o sujeito um ser que
lida com a realidade de acordo com aquilo que lhe é “útil”. O superego, por sua vez,
administra os impulsos do id, mantendo o ego equilibrado e orientando o indivíduo a remover,
de forma racional, as barreiras que impedem o prazer.
A sociedade disciplinar fabrica corpos dóceis, submissos, altamente especializados e
capazes de desempenhar inúmeras funções, a fim de beneficiar o poder, mas que carrega com
grande peso o discurso de bem comum.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do


corpo humano, que visa não unicamente o aumento das suas habilidades,
mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto
mais obediente quanto mais útil é. Forma-se então, uma política de coerções
que consiste num trabalho sobre o corpo, numa manipulação calculada dos
seus elementos, dos seus gestos, dos seus comportamentos. O corpo humano
entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o
recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os
chamados "corpos dóceis". (FOUCAULT, 1977, p. 119)

O adestramento como método a ser seguido pelo corpo social desenvolveu uma
disciplina no agir do homem, fator que resultou e continua resultando em uma manutenção da
eficácia das instituições.
Tal procedimento é facilmente reconhecido no conto “A medalha” de Lygia Fagundes
Telles. O conto é protagonizado pela personagem Adriana, a qual busca romper coma moral
social. Para tanto ela surge como uma mulher subversiva ao vivenciar encontros amorosos
clandestinos. Noiva de um rapaz negro vive em uma rotina de adultério. No entanto, ela
sucumbe à concretização do matrimônio, por não ter forças para lutar contra a robustez da
moral social.

2
Eros, que representa a vida e os instintos sexuais, e é governado pelo princípio do prazer que impulsiona o ser
humano na superação da repressão para obter satisfação e desfrutar de atividades lúdicas.
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A moral é para o homem uma espécie de chancela, onde se é permitido certos desvios.
Ao passo que um determinado grupo social cresce, é intensificada consequentemente a
pressão coletiva em cima do indivíduo, o qual é acanhotado pelas regras que devem ser
cumpridas automaticamente, pois ao serem criadas estabelecem um novo modelo a ser
seguido, ou seja, mais uma cobrança de algo que já deveria ter sido executado.
O modelo repressivo que estamos apresentando neste trabalho coincide com o
arquétipo que Foucault propôs. Segundo ele a sociedade imobiliza o indivíduo, o
impossibilitando de praticar qualquer ato que fuja do padrão estabelecido.
A dialética da repressão tem seu objetivo alcançado quando ocorre um adestramento
satisfatório. Quando tal fenômeno ocorre tem-se o reaparecimento da pulsão de vida. A pulsão
de vida consiste na obtenção de um prazer pleno para o indivíduo, o qual passa a ser soberano
de si.

Embora seja tão importante governar desejos e prazeres, e apesar do uso que
se faz deles constituir um alvo moral, de tal preço, não é para conservar ou
reencontrar uma inocência de origem, não é em geral-(...)- para conservar
uma pureza; é ser livre e pode permanecê-lo. (FOUCAULT, 1984, p73).

A pulsão de Eros é impulsionada por meio do outro, este Outro pode ser qualquer ser
ou instituição. Uma parcela da energia que destrói o indivíduo – Thanatos – destina-se a
renuncia que é desencadeada quando olhamos para o que se constitui como o nosso Outro e
nos percebemos como menor ou igual.
Seguindo o raciocínio freudiano, Marcuse (1999) mostra que o inconsciente humano
retém os objetivos do princípio do prazer derrotado, de modo que a repressão é
recorrentemente contestada pelo “retorno do reprimido”: os instintos sexuais humanos
retornam para cobrar a sua insatisfação, seja pelas manifestações genitais ou de sublimação
(desvio da libido, ou sua conversão em outras formas de desejo).
Ao analisarmos os principais constituintes da teoria freudiana, podemos concluir que a
repressão de Eros reproduz o arrolamento de das relações de dominação na malha social, isto
ocorre quando equiparamos a teoria de Freud com os itens histórico-sociais específicos. Na
sua visão, além da repressão dos instintos primários – necessária para viabilizar a convivência
social e evitar a barbárie – a civilização gerou também a “mais-repressão”.
Segundo o sociólogo Marcuse (1999) mostra-nos que tanto a repressão de Eros como
os desvios da libido estimulam o “retorno do reprimido”, gerando deste modo mecanismos de
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“sublimação repressiva”. Neste transcurso, os instintos de vida são convertidos em negações


ou desvios do desejo, que geram repressão na medida em que são extravasados em descargas
desajustadas de sexualidade, agressividade e violência. Essas descargas proporcionam prazer
imediato e possibilitam ao indivíduo alcançar, ainda que de forma temporária, a gratificação
integral negada. No entanto, elas costumam ser perversas, pois não quebram o ciclo de
frustração, uma vez que a busca da gratificação prossegue e realimenta comportamentos que
submetem Eros à Thanatos.
A psicanálise surge para a literatura como uma ferramenta apoderada da capacidade de
decifrar verdades incutidas no texto literário. Como ambos partem da linguagem para lidar
com o que lhe causa incomodo, estes comungam da mesma comunhão.
Enquanto representação, o artefato artístico mimetiza os conflitos que marcam, em
tempos e espaços múltiplos, a condição humana, deixando-se contornar por discursos, os
quais, na lógica da subjetividade, mostram-se discordantes, concordantes e/ou contraditórios
entre si. Recheada de possibilidades, a manifestação cultural absorve as demandas do corpo
social, interioriza-as e, como resposta ao processo, produz uma obra que reflete os eventos,
internos e externos, com que se impregnou.
A literatura é um exemplar do processo supracitado. Ela traz, atrelada a sua essência, o
encontro entre a inteiração e a polêmica, entre a intersubjetividade e alteridade, produzindo,
deste modo, o diálogo com os “Outros” que, ao entrar em contato com o texto literário,
passam a comungar sobre as ideias expostas, mesmo que de forma indireta.
Segundo o linguista Dominique Maingueneau, a Literatura consiste não apenas num
meio que a consciência tomaria emprestado para se exprimir, mas também num ato de repasse
de instruções, as quais definiriam um regime enunciativo, assim como papéis específicos
dentro da esfera social.

A medalha

Lygia Fagundes Telles nos agracia com uma produção é marcada pelo fato de suas
personagens apresentarem vivências conflituosas, entrando constantemente em choque com a
realidade exterior, são “desencontradas dentro si e ou com o mundo”. Estão sempre em busca
de respostas que expliquem sua situação frente ao seu meio social. Desse modo, buscam
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meios para resolver os seus conflitos. Isso, muitas vezes, resulta num choque entre os anseios
e desejos da personagem e as limitações impostas pela sociedade.
Os problemas que as suas personagens vivenciam são advindas das relações com o
Outro. LFT foca, em primeira instância, nas relações homem-mulher e entre o Sujeito e os
seus entes familiares – pai, mãe, irmãos e demais figuras que compõem o universo familiar.
O conto que foi escolhido como corpus para compor este trabalho intitula-se A
medalha, o qual apresenta um enredo marcado por conflitos tanto de cunho existencial como
de caráter social. A história tem como base de sustentação um “novo” modelo familiar, no
qual os membros não mais vivem subordinados a papeis conservadores. Defrontamo-nos com
uma família que se expõe a costumes que a conduzem a conflitos com as tradições sociais. O
pai já não é o ponto central da família, muito pelo contrário, ele é posto como permissivo.
Com a descentralização da figura paterna, como ponto determinante da valorização da
família, a “ordem” volta-se à figura materna e esta passa a constituir a “lei”. É nesse ambiente
controverso que Gina, a protagonista, se edifica.
Defensora da literatura como um receptor social, acredita que o autor é uma espécie de
testemunha de seu tempo, uma “caixa preta” da história. Argumenta que a função de escritor é
servir de representante para aqueles que “não têm voz”, que não têm meios de mostrar quem
são verdadeiramente, que não têm como expressar como conseguem sobreviver dentro do
modelo social que não abarca os seus desejos. Desse modo, o literato tem, em mãos, um meio
de transformar a sociedade. Ao se debruçar sobre o feminino, Telles dá voz a mulheres.
Mostra as nuances da existência humana a partir da visão do “belo sexo”. Com as suas
personagens fortes e densas, ela cria um novo conceito de Literatura.
Com sua “pena adestrada”, LFT relata o universo feminino em todas as suas esferas,
subvertendo o patriarcado. Ela revela como as mulheres se constroem em meio aos nãos,
como são densas, complexas, cheias de desejos e necessidades. Apresenta personagens que
dão vazão aos seus desejos sexuais, mesmo que isto represente viver sobre a lâmina cortante
da sociedade. LFT mergulha mais fundo e traz mulheres que amam suas iguais, jogando,
desse modo, as cartas sobre a mesa do preconceito e a hipocrisia social. De forma sublime,
retrata como este amor é puro, denso e cheio de novas experiências, porém deixa claro que
para vivenciá-lo é necessário vencer a si mesma.
Lygia Fagundes Telles se debruçou sobre a construção de personagens femininas,
elaborando de forma rebuscada os seus dramas, suas vivências, dores, necessidades, desejos.
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Porém, esse estilo não limita a sua obra como muitos podem pensar. Pelo contrário, “suas
mulheres” ilustram, com propriedade poética, a condição humana. De acordo com José Paulo
Paz, a obra de LFT é edificada a partir “da decadência moral burguesa, habitualmente através
dos dramas centrais de personagens femininas que se debatem entre o desejo de afirmar a
própria autenticidade e a impossibilidade de fazê-lo no contexto familiar ou social, a que se
sentem irremediavelmente presas” (pág. 420).
“A medalha” é um exemplar perfeito da escrita lyginiana. Este conta-nos uma história
de fracasso da família burguesa, atestando deste modo o caráter alegórico das narrativas
ficcionais modernas. Mostrando-nos a fragilidade da instituição familiar. Para tanto, Lygia
Fagundes Telles disseca esta, deixando visível a “olhos nus” os vícios que a compõem.
O sentimento que rege o conto “A medalha” é o abandono. A história apresenta um
núcleo de amarguras. O sentimento tingi a atmosfera do enredo da obra, deixando tudo
escurecido, lânguido. Com ares de solidão e desamparo. Adriana se abandona. Ela opta por
deixar-se, larga-se a vontade do que a sociedade lhe impõem.
A protagonista se vê abandonada pelo mundo. Após a morte do pai e da orfandade do
seu primeiro e verdadeiro amor. Posteriormente aos desabrigos, ela joga-se nos braços da dor
e da angústia. Na vã tentativa de amenizar o sofrimento que é desencadeado pela partida dos
dois, Adriana arremessasse na roda vida das relações furtivas, tentando incessantemente
vencer a angústia dos que já não tem para onde voltar. Ao dar-se conta de que esta é uma
guerra perdida, ela passa a fingir. Fingi assim como Fernando Pessoa fala: “O poeta é um
fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”.
É perceptível a “adoração” que a protagonista tem pela figura paterna, nos conduzindo a
compreensão de que esta não conseguiu sanar de forma satisfatória o complexo de Édipo.
Para melhor compreendermos como este processo ocorre, tomemos o conceito do termo
supracitado Para tanto, contamos com o auxílio do consagrado verbete de Laplanche e
Pontalis (1992), que o caracteriza como um:

Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em


relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se
como na história de Édipo- Rei: desejo da morte do rival que é a personagem
do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob a sua
forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do
mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade,
essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma
completa do complexo de Édipo. Segundo Freud, o apogeu do complexo de
Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu
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declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é


superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha de objeto.
O complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estruturação da
personalidade e na orientação do desejo humano. Para os psicanalistas, ele é
o principal eixo de referência da psicopatologia. (p. 77)

A filiação do complexo psicanalítico descrito por Freud ao mito grego Édipo Rei,
popularizado graças à tragédia escrita por Sófocles; e o caráter trifásico (positivo, negativo e
completo) atribuído pelo pai da Psicanálise a este fenômeno. Tal conceito nunca foi
sistematizado de forma precisa por Freud, porém ele pode ser facilmente compreendido
quando o mesmo em carta a seu amigo Wilhelm Fliess cita:

Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei,


também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero
isso como um evento universal do início da infância (...) Sendo assim,
podemos entender a força avassaladora de O edipus Rex (...) a lenda grega
capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença
dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na
fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada,
diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a
carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.
(Freud, 1897/1996, p. 316)

A mãe da protagonista compara a filha ao marido, segundo ela, ambos eram idênticos.
Apresentavam o mesmo tipo físico, os mesmo vícios. O devasso os unia em uma única figura
refratária.
Adriana tinha o véu para “cobrir-lhe” os pecados. Segundo o dicionário de símbolos
de CHEVALIER (2012, p. 950), “o véu quer dizer, em árabe o que separa duas coisas...
significa o conhecimento do culto ou do revelado. Assim na tradição cristã monoteísta, tomar
o véu significa separar-se do mundo...”. Adriana ao apoderar-se do valor simbólico deste,
passa a figurar como outro ser. É como se este a desse o poder de controlar a fronteira entre o
degenerado e a moral.
A protagonista ao por o véu faz a passagem do Eros para a pulsão de morte. O véu
simboliza o sistema de controle, o qual tentava manter o indivíduo ocupado trazendo
mudanças nas práticas discursivas para controlar a libido individual, e obter um controle
coletivo.
Para entendermos de forma mais clara como este jogo se homogeneíza, tomemos o
trecho do conto: Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho? Já
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se olhou num espelho'' — E daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à
beça Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. (p. 07).
Aqui é evidente como a moral social age coagindo os que fazem parte do tecido social.
Enquanto Adriana tiver o véu, ela estará protegida até determinado ponto da ação coerciva da
mora.

Conclusão

Procuramos ao longo deste estudo construir um desenho claro de como a moral social
esta atrelada a elementos que integram a psique humana. Conceitos como pulsão de morte e a
pulsão de vida são de extrema valia para alcançar este entendimento, já que estes se mostram
como ingredientes básicos na estrutura do comportamento humano.
Para entendermos como se dá o processo de enlace entre as normas sociais e a psique
tomamos a literatura como objeto de analise, já que compartilhamos da ideia de que esta é
resultante do que a sociedade lhe coloca, sendo assim, ela é o resultado do processo
supracitado.
A literatura, assim como as demais expressões de arte, funciona como uma espécie de
resposta aos movimentos que a sociedade passa. É um continuo de respostas para
questionamentos feitos a si mesmo. Deste modo as artes nos auxiliam na compreensão dos
elementos que compõem a subjetividade humana.
Evidentemente que não podemos estabelecer como único papel da criação literária o
seu caráter refratário do social. A literatura é uma expressão artística e merece ser valoriza
pelo simples fato de existir e comover.
O que este trabalho objetivou foi utilizar o texto literário como mote para
entendimento da mecânica do funcionamento da sociedade, tomando como pano de fundo a
psicanálise.
A psicanálise surge como mecanismo de ativação para o entendimento de como o
nosso comportamento é moldado pela moral social e como respondemos a esta de forma a
buscarmos uma sobrevivência psíquica. Adentrar no âmbito da compreensão da sociedade
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requer uma serie de cuidados, visto que cada ser humano reage de forma específica quando
exposto a uma mesma ação.
Para tanto a psicanálise juntamente com a literatura conseguem retratar questões
humanas, mesmo de formas distintas elas absorvem a demanda da subjetividade humana em
um processo contínuo em busca por respostas para o que lhes é colocado. Fazendo uso da
mesma ferramenta, a fala, ambas procurar entender e elaborar respostas que nos auxiliem na
compreensão de quem somos e de como a sociedade se constrói.

Referências

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard


brasileira. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KAËS, René. A instituição e as instituições. 1991. 1º Edição. Editora casa do psicólogo, SP.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir; História das violências nas prisões. (1977).
13ªed. Petrópolis: Vozes, 1996.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud, (1966). Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 8º edição.
TELLES, Lygia Fagundes. A estrutura da bolha de sabão, 1991. 10 edição. Ed. Rocco, São
Paulo.
BEZERRA, Benilton Jr. Revista virtual; Notícias do Brasil, entrevista para o artigo
Psicanálise frente aos “males sociais”. Jornalista Alexandra Tavares,
http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v56n4/a09v56n4.pdf.
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FICÇÃO CIENTÍFICA E A CRISE DE IDENTIDADE

A REVOLUÇÃO DAS MÁQUINAS: MANIFESTAÇÕES DO “COMPLEXO DE


FRANKENSTEIN” NO CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEO

Jucélia de Oliveira Martins


UFMA/UNICEUMA

Introdução

No Ato IV, Cena IV da tragédia Shakespeariana “Tito Andrônico”, o imperador


romano, Saturnino, demonstra estar dominado por uma grande apreensão. Tal fato se deve ao
seu temor de perder o controle que ele exerce sobre Roma, sendo então substituído por Lúcio.
A imperatriz Tamora, notando seu nervosismo, tenta animar o esposo com as seguintes
palavras: “As águias deixam que os passarinhos cantem, sem nenhuma preocupação com seu
trinado alegre, certas de que com a sombra de suas asas poderão reduzi-los ao silêncio,
quando bem entenderem.” (SHAKESPEARE, 2014, não paginado).
Apesar desta peça ter sido publicada por William Shakespeare em 1600, a situação
expressa acima é muito atual. Ela reflete perfeitamente a necessidade que o ser humano tem
de possuir o controle das situações. Ele somente consegue estar tranquilo quando não há
nenhuma ameaça real a sua preeminência. Por isso, o homem tende a temer tudo aquilo sobre
a qual ele não exerce nenhuma forma de poder, ainda mais se aquilo que ele agora teme
outrora esteve sobre o seu julgo ou mesmo passou a ser o que é graças a sua intervenção.
Desde a antiguidade há relatos que evidenciam o quão grande pode ser o medo da
substituição. Tanto que na mitologia grega, Cronos, o rei dos titãs, comia seus próprios filhos
ao nascerem, temendo ser destronado por um deles. Certamente o seu pior castigo não foi ser
banido para o Tártaro (a parte mais profunda do mundo inferior, que seria equivalente ao
inferno da cultura cristã), mas sim, a certeza de que a maldição que ele temia se concretizou,
submetendo-o a humilhação de ser suplantado por Zeus.
Se ser substituído por um outro ser humano, ou no caso de Cronos, por seu próprio
filho, pode ser uma experiência humilhante (já que fere o orgulho), ser substituído por sua
própria criação é algo que definitivamente deve ser temido, tendo em vista que é ainda pior.
Com os avanços científicos e tecnológicos, as máquinas a cada dia estão mais presentes na
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vida dos seres humanos. Há sempre a criação de androides cada vez mais perfeitos, pessoas se
tornando em ciborgues (pós-humanos) e robôs mais rápidos e eficientes.
Todavia, mesmo aceitando-os próximos de si, no fundo o ser humano guarda a
convicção de que esses seres artificiais criados pela ciência e tecnologia são diferentes dele, e,
portanto, inferiores. Mas conhecendo as habilidades destes seres e sua contínua capacidade de
aprimoramento, no coração do homem cresce um temor aparentemente infundado, porém
antigo, de que aqueles podem tentar substituí-lo, temor este que o escritor de ficção científica
Isaac Asimov denominou como “Complexo de Frankenstein”.

A ficção científica e o complexo de Frankenstein

Para se entender o que seria o citado complexo, se faz necessário discorrer sobre o
gênero ficcional no qual esta designação surgiu: a ficção científica.
O escritor Muniz Sodré, em seu livro “teoria da literatura de massa” ao discorrer sobre
a suposta a origem da ficção científica traz o pensamento do francês Pierre Versins,
importante estudioso da área:

É o caso de Pierre Versins que situa suas origens na Epopéia de Gilgamesh


(epopéia babilônica cujas versões sucessivas vão do 3.º ao 1.º milênio a. C),
onde o herói Gilgamesh e seu companheiro Enkidu, ao enfrentarem os
inimigos, lidam com elementos conjeturais – “uma viagem extraordinária,
uma utopia pastoral e a entrega a Gilgamesh, pelo sábio Unapishtim, de uma
erva da imortalidade.” (VERSINS apud SODRÉ, 1978, p.118).

Segundo Sodré, é comum se atribuir origens remotas a ficção científica, como a da


citada epopeia, que é constituída por uma série de poemas escritos na época da civilização
suméria arcaica (possivelmente no ano 2100 a.C.). Nestes poemas vemos a saga do poderoso
rei Gilgamesh, que após ser desafiado por Enkidu (Guerreiro criado pela deusa-mãe Aruru
para acabar com a crueldade e arrogância com que o rei tratava o seu povo) acaba se tornando
um grande amigo do mesmo e vivendo ao seu lado várias aventuras.
Todavia, no decorrer da história, algumas de suas ações acabam enfurecendo os
Deuses que fazem com que Enkidu contraia uma grave doença, que lhe conduz a morte.
Abalado com o acontecimento, Gilgamesh começa a buscar uma resposta ao enigma da morte,
mas não obtém a resposta que deseja, mas sim, o conselho do último sobrevivente do dilúvio,
Utnapishtim, de não a temer e para que colha uma planta que lhe concederia a eterna
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juventude. Planta esta que posteriormente lhe será furtada por uma serpente. A história
termina com o retorno do rei à Uruk e sua morte: “Oh, Gilgamesh, era este o significado de
teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar era teu destino; a vida eterna não era teu destino.”
(Anônimo, 1992, p.109).
Porém, embora haja posicionamentos como o de Pierre Versins, na qual a origem da
ficção científica acompanhe a de alguns mitos e lendas; para outros pensadores, como o
escritor russo naturalizado americano Isaac Asimov, a verdadeira ficção científica somente
surgiu no começo do século XIX, após a revolução industrial:

Isso ocorreu de maneira clara com o advento da revolução industrial. Deste


modo, faz sentido supor-se que a ficção científica deveria nascer pouco
tempo depois de 1800, mais provavelmente na Grã-Bretanha e, também, que
seu surgimento haja ocorrido como resposta literária àquele fato. (ASIMOV,
1984, p.17)

A partir desta colocação, podemos concluir que diferentemente do que acredita


Versins, para Asimov a Epopéia de Gilgamesh não pertenceria ao gênero ficção científica,
principalmente pela presença das várias divindades que manipulam o destino do herói: ”Em
sentido rigoroso, somente a ficção científica é válida nos dias de hoje, portanto, na medida em
que sabemos, o Universo obedece às imposições das leis da natureza e não está à mercê de
deuses e demônios.” (ASIMOV, 1984, p.120).
E, que para Asimov o “gênero” ficção científica somente poderia ter surgido a partir
do ano de 1800, pois esse gênero exige uma narrativa pautada em mudanças sociais gerados
pelos avanços científicos e tecnológicos: “O importante em matéria de ficção científica, até
mesmo fundamental, é aquilo que efetivamente a fez surgir, ou seja, a percepção das
mudanças produzidas pela tecnologia.” (ASIMOV, 1984, p.18).
Ele lembra que antes da Revolução Industrial, estas mudanças eram imperceptíveis
pelo homem dentro do seu tempo de vida, quase estáticas. Somente com a industrialização, os
avanços gerados pela ciência e utilização da tecnologia ocasionaram em mudanças sociais
mais céleres, tornando-as assim, perceptíveis (por exemplo, a substituição do homem pela
máquina nas fábricas aumentou a produtividade visivelmente) pelos indivíduos.
Sobre a origem da expressão “ficção científica”, Sodré observa que embora o famoso
escritor britânico Herbert George Wells, desde o século 20, fizesse uso da expressão
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“scientific-romance1” para classificar as suas obras, foi Hugo Gernsback, escritor e editor da
primeira revista dedicada exclusivamente à ficção cientifica (Amazing stories 2), quem
idealizou o termo tal qual o conhecemos hoje: “O termo (Science-fiction) é forjado em 1927
pelo engenheiro norte-americano Hugo Gernsback." (SODRÉ, 1978, p.122).´
Em seu livro “No mundo da ficção científica”, Asimov apresenta a seguinte
afirmação: “Brian Aldiss considera Frankenstein, publicado na Grã-Bretanha em 1818, como
a primeira verdadeira história de ficção científica. Sinto-me bastante inclinado a concordar
com ele.” (ASIMOV, 1984, p.17). Conclui-se que tal concordância se deve ao fato de Asimov
entender que Mary Shelley foi a primeira a fazer uso de uma descoberta científica, neste caso
os estudos do anatomista italiano Luigi Galvani acerca da “bioeletrogênese3", para infundir
lógica à criação do monstro de Victor Frankenstein, tornando sua criação plausível.
Porém, embora Asimov acredite que o primeiro romance de ficção científica foi
Frankenstein, este igualmente defende que Mary Shelley não deve ser considerada a primeira
escritora deste gênero. Seu pioneiro seria Júlio Verne, tendo em vista que ele foi o primeiro
escritor a se especializar na área e a obter o seu sustento escrevendo ficção científica.
Mas afinal, o que é ficção científica? Muniz Sodré tenta responder a este
questionamento ao apresentar a seguinte definição:

O romance de ficção científica (FC) é um tipo de narrativa que desenvolve


uma suposição ou uma conjetura, comandadas pela razão tecno-científica. É
uma espécie de fantasia racional e, da mesma forma que o romance policial,
zona de confluência dos legados das narrativas de Cavalaria, do romance
barroco e do Romantismo Europeu. (SODRÉ, 1978, p.117 e 118).

Pelo discurso de Sodré, nota-se que ele concede a ficção científica como sendo uma
espécie dentro do gênero fantástico. Para ele, a ficção científica é uma fantasia dotada de
racionalidade, ou seja, cujas suposições teriam como fundamento as descobertas de cunho
científico e tecnológico.
Tal conceito, de certo modo, nos recorda o posicionamento do ensaísta, doutor em
Literatura e significação, Tzvetan Todorov. No seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”,
Todorov apresenta três grandes gêneros: O fantástico (caracterizado pelo momento de

1
Romance científico.
2
Histórias incríveis.
3
Em linhas gerais, seria um estudo que implicava na utilização de impulsos elétricos na medula espinhal de
sapos mortos, resultando assim, em contrações involuntárias dos músculos e nervos de suas pernas, como se
esses anfíbios ainda estivessem vivos.
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hesitação/indecisão do(s) personagem(ns) e do leitor sobre a existência ou inexistência do


sobrenatural), o maravilhoso (é o sobrenatural aceito) e o estranho (é o sobrenatural
explicado). Ele ainda revela que a partir da existência dos gêneros citados, pode-se realizar
quatro subdivisões: Fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso, estranho puro e maravilhoso
puro. Sendo o maravilhoso puro dividido, ainda, em maravilhoso hiperbólico, maravilhoso
exótico, maravilhoso instrumental e maravilhoso científico (ou ficção científica).

O maravilhoso instrumental nos conduziu para muito perto daquilo que se


chamava na França, no século XIX, o maravilhoso científico, e que hoje se
denomina science-fiction. Aqui, o sobrenatural é explicado de uma maneira
racional mas a partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Na
época da narrativa fantástica, são as histórias em que intervém o magnetismo
que pertencem ao científico maravilhoso. O magnetismo explica
“cientificamente” acontecimentos sobrenaturais, porém, o próprio
magnetismo pertence ao sobrenatural. (TODOROV, 1975, p. 63).

Todorov apresenta a ficção científica como uma subespécie, só que desta vez daquilo
que ele denomina como “maravilhoso puro”. Ele, diferente de Sodré que pensa na ficção
científica como uma fantasia racional, a concebe como pertencente ao maravilhoso,
justamente por acreditar que os eventos ocorridos neste tipo de narrativa dependem do
sobrenatural, de acontecimentos que, embora inicialmente, sejam aparentemente
inexplicáveis, na realidade são cientificamente aceitáveis.
Em sentido completamente inverso, Isaac Asimov apresenta a ficção científica não
como espécie ou subespécie, mas sim como um gênero ficcional surrealista.
Segundo Asimov as obras literárias podem se encaixar em um de dois grandes grupos:
ficção realista “(...) trata de fatos que se desenrolam em meios sociais não significativamente
diversos dos que hoje existem ou tenham existido em alguma época no passado.” (ASIMOV,
1984, p.15) e ficção surrealista “(...) referem-se, por outro lado, a fatos que se verificam em
ambientes sociais não existentes na atualidade e que jamais existiram em épocas anteriores.”
(ASIMOV, 1984, p.16).
Como se pode observar, a ficção realista baseia-se em fatos que ocorrem na sociedade
atual ou que ocorreram em sociedades anteriores a esta, sendo facilmente reconhecíveis pelo
leitor em detrimento da sua verossimilhança com a realidade. Enquanto a ficção surrealista
refere-se a fatos que presumivelmente ocorrerão (ou não) e desencadearão em mudanças
sociais não reconhecíveis pelo leitor, justamente por se situarem fora do que este entende
como real.
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Dentro deste contexto, a ficção científica e a fantasia podem ser consideradas como
gêneros que compõem a ficção surrealista:

Para distinguir entre as duas variedades principais de ficção surrealista, eu


diria que os acontecimentos supra-reais da história, na ficção científica,
podem ser concebivelmente derivados do nosso próprio meio social,
mediante adequadas mudanças ao nível da ciência e da tecnologia.
[...]
A fantasia, por outro lado, retrata ambientes surrealistas que não podemos
razoavelmente conceber como derivados de nossa experiência obtida através
de qualquer mudança ocorrida ao nível da ciência e tecnologia. (ASIMOV,
1984, p.16)

Com base no exposto acima, vemos que a diferença primordial entre a ficção cientifica
e a fantasia baseia-se no fato da primeira ter uma narrativa alicerçada pela presença da
cientificidade e da tecnologia, e a segunda não. Razão esta pela qual Isaac Asimov elaborou a
seguinte definição: “A ficção científica é o ramo da literatura que trata das respostas do
homem às mudanças ocorridas ao nível da ciência e da tecnologia” (ASIMOV, 1984, p.20).
Por crer que a classificação e conceito defendidos por Asimov são os mais coerentes, este
serão os adotados para guiar o presente trabalho.
Asimov acreditava também que a ficção científica possuía como meta descrever
aspectos da vida sobre o qual não temos conhecimento, possibilitando ao Homem realizar
uma projeção do futuro, ou ainda, como observa Sodré, idealizar um presente alternativo ou
um passado suposto.
Deve-se ainda ressaltar que, utilizando-se de argumentos lógicos e racionais além de
suposições dotadas de cientificidade, ao passar dos anos muitos autores deram asas a sua
imaginação. Tornando plausível a criação de um mundo ficcional, no qual, a ciência e a
tecnologia tornam possível: se construir uma máquina capaz de viajar no tempo, em que há
guerras interplanetárias; onde um monstro formado por partes de corpos humanos ganha vida,
no qual a ciência se tornou um agente de desumanização e dominação; onde seres humanos
artificiais extinguem a vida na terra, ou mesmo, em que robôs visam acima de tudo o bem da
humanidade, protegendo os seres humanos inclusive de sua própria natureza destrutiva.
Este último exemplo é fruto da imaginação de Asimov em sua obra “Eu, robô”. O
citado livro é constituído por série de nove contos, precedidos por uma breve introdução. Os
contos, escritos entre os anos de 1938 e 1949, somente foram publicados enquanto coletânea
no ano de 1950.
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Na introdução, o arcabouço para a história principal é construída. O ano de 2057, e a


robopsicóloga Susan Calvin (principal personagem da série, embora não protagonize todos os
contos) já se encontra em idade avançada. Ela, que é mundialmente famosa por sua
contribuição para o desenvolvimento da robótica, está concedendo uma entrevista ao jornal
Imprensa Interplanetária. Durante a entrevista, a Drª4 Calvin narra suas memórias e as
desventuras que permearam os primeiros anos após a invenção da robótica (termo este
inventado por Asimov) e apresenta as suas três leis5, demonstrando em cada uma das histórias
que os robôs, com seus cérebros positrônicos, sempre visam o bem da humanidade.
“Eu, robô” é considerado um clássico da literatura de ficção científica por ter
apresentado ao mundo a palavra “robótica” e por expor no seu enredo a capacidade do autor
de projetar um futuro no qual os homens e as máquinas coexistem pacificamente, além de ser
a obra na qual a designação “Complexo de Frankenstein” foi mencionada pela primeira vez,
como será explanado mais adiante.
Para compreender o que seria o “Complexo de Frankenstein”, primeiramente é
necessário entender o contexto que deu origem ao surgimento de tal designação. Antes de
“Eu, robô” ser publicado, em 1950, havia a tendência de se retratar, seja na literatura, teatro
ou outras formas de arte, todos os “seres humanos artificiais” (seja ele de qual tipo for) como
sendo essencialmente maus. Essa maldade, que tem raízes míticas, normalmente era associada
às seguintes razões: Por esses seres não possuírem uma alma, como nós; ou por sua própria
criação utilizar um conhecimento que deveria ser proibido e, portanto, não acessível aos
simples mortais.
A capacidade de criar vida, mesmo que artificialmente, sempre foi vista como tabu, e
como uma prerrogativa dos Deuses. O Deus da mitologia grega Hefaísto (também chamado
de Hefesto), por exemplo, podia fazer uso deste dom ao seu bel prazer sem sofrer quaisquer
consequências: “Hefaísto, o deus grego das forjas, é representado na Ilíada como dono de
mulheres mecânicas, feitas de ouro, tão capazes de mover-se e tão inteligentes como mulheres
de carne e osso, que o serviam em seu palácio.” (ASIMOV, 1984, p.189). Além das mulheres

4
Drª. – Doutora.
5
As Três Leis da robótica são:
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais
ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a
Primeira e/ou a Segunda Lei.
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mecânicas supramencionadas, Hefesto, com o aval de Zeus, também teria criado Pandora, a
primeira mulher.
Porém, o ato de criar vida, se intentado por seres humanos, era considerado um
grande atrevimento, digno de punição. Geralmente esta punição se dá por meio de um ato de
rebelião da criatura, que se volta contra seu criador.
Uma história que exemplifica bem este tipo de situação é a “Lenda do Golem”.
Segundo Asimov, um Golem seria uma espécie de robô espiritual: “A palavra cognata árabe,
ghulam quer dizer servidor e, nesse sentido, aproxima-se do termo robô. Acredito que um
golem seria um robô no qual fosse instilada vida através de palavras mágicas, religiosas, e não
mediante aplicação de princípios científicos” (ASIMOV, 1984, p.85).
A versão mais conhecida desta lenda (pertencente ao folclore judaico) discorre sobre a
criação de um ser artificial (feito de barro, mas cuja aparência era humana) mudo e
desprovido de consciência, supostamente fabricado pelo rabino Judah Loew ben Betzalel.

No que respeita à componente folclórica, conta-se que certo dia o Rabbi Low
(Praga, séc. XVI) se propôs criar um servo a partir do barro, o terá
"animado" por fórmulas mágicas através do nome de Deus, mas que mais
tarde o teve de destruir, porque ele tinha entrado num descontrole total.
Apesar de o Rabbi ser considerado sábio e santo, a criação do Golem foi
vista como um ato melindroso e problemático, cuja ambivalência se
manifesta na dupla natureza do Golem: por um lado possui um corpo dotado
de forças naturais, por outro, é mudo e não tem alma, não devendo ser
considerado um ser humano na verdadeira acepção da palavra: é insensível,
mas obediente; um ser sem passado nem futuro, sem duração e sem
memória. (MOSER, 2013, p. 323 e 324).

O Rabino Loew teria criado o Golem com uma boa intenção: proteger os judeus que
moravam em Praga contra ataques antissemitas. Porém, apesar de no início servir o seu
criador de forma inquestionável, com o tempo o Golem foi se tornando violento e acabou por
se voltar contra aqueles que ele deveria proteger. A justificativa para tal atitude seria
justamente o fato da criatura não possuir uma alma (já que foi criado por um ser humano), e,
portanto, ser desprovido de consciência sobre o bem e o mal.
Outro grande exemplo seria o de Victor Frankenstein, que teve sua vida destruída por
uma série de eventos trágicos após brincar de Deus, e ter infundido vida em um monstro
construído a partir de partes de cadáveres. Frankenstein foi punido (assim como o titã
Prometeu, que provocou a ira de Zeus ao conceder aos homens o segredo de como obter o
fogo) com a morte de entes queridos como a do seu irmão William e de sua esposa Elizabeth,
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por utilizar-se de um conhecimento cujo acesso deveria ser proibido à humanidade: O segredo
da vida.

Um cientista poderá ter a ousadia de perscrutar o desconhecido e, talvez,


elevar-se a altura ou mergulhar em profundezas que estejam acima de suas
forças ou de sua compreensão. Essa noção é bastante antiquada se assumida
a posição segundo a qual “há coisas que não se destinam a ser conhecidas
pelo homem, isso porque, presumivelmente, estão reservadas somente para
Deus. O protótipo de vilão desse tipo é, sem dúvida, Victor Frankenstein,
que teve a audácia de usurpar o que se considera prerrogativa divina, ou seja,
criar a vida. Pagou muito caro em consequência disso. (ASIMOV, 1984,
p.77).

Devido ao sucesso da novela “Frankenstein: ou o Moderno Prometeu” (publicada em


1818) escrita por Mary Shelley, e por sentir que esta exemplificava de forma satisfatória essa
antiga crença da criatura se voltando contra o seu criador, Asimov adotou a expressão
“Complexo de Frankenstein”, sendo esta mencionada pela primeira vez no conto “Pequeno
robô perdido” (publicado em 1947). Este conto é um dos que compõe a coletânea que o
referido Autor denominou como “Eu, robô”.
A partir de então, a expressão “Complexo de Frankenstein” tornou-se uma referência
ao medo que o homem tem do “outro” que é diferente dele, ou seja, robôs, androides,
autômatos ou ainda quaisquer outros tipos de “seres dotados de vida artificial” criados a partir
de avanços científicos e tecnológicos.

À medida em que se reduz o controle do homem sobre a máquina, esta se


torna aterrorizante, em grau exatamente proporcional à diminuição desse
controle. Mesmo quando o domínio do homem sobre a máquina não se reduz
de maneira visível, ou tal acontece a um ritmo excessivamente lento, é
simples tarefa para o espírito inventivo do homem pensar num futuro no qual
a máquina sairá totalmente do seu controle. E o temor de que isso irá ocorrer
é sentido antecipadamente. (ASIMOV, 1984, p.190).

De acordo com Asimov, o “Complexo de Frankenstein” é um temor sem fundamento


real, sendo um medo criado pela mente humana em antecipação a algo que talvez nunca
venha a acontecer. A preocupação do Homem se funda na probabilidade de que ele possa
perder o “controle” sobre algo que antes lhe era subserviente.
E a dimensão deste temor era tamanho, que influenciou várias obras artísticas. Um
exemplo especialmente importante é o da peça de teatro “R.U.R.” (cujas iniciais, em
português significam: “Robôs Universais de Rossum”), escrita em 1920 pelo teatrólogo
tcheco Karel Capek, que demonstra claramente ser regida pelo “Complexo de Frankenstein”:
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[...] As iniciais R.U.R. significam Rossum’s Universal Robots. Rossum é o


nome do inglês que, na peça, produziu em massa uma série de seres
humanos mecânicos, que deveriam trabalhar para este novo mundo. Por que
robô? Trata-se da palavra tcheca robota, que significa alguém que trabalha
em regime de escravidão. (ASIMOV, 1984, p. 83).

A autoria da palavra “robô” foi atribuída a Capek, graças a esta peça, na qual, o jovem
Rossum (com base na descoberta de seu tio e impulsionado pelo desejo de fazer fortuna)
inicia o audacioso plano de produzir milhares de robôs para servirem como escravos dos
humanos. O plano dá certo, e, anos depois, os robôs se tornaram “produtos”, sendo utilizados
para realizarem as tarefas desagradáveis e enfadonhas que seres humanos não querem realizar.
A exploração do trabalho dos robôs se justificaria no fato destes serem seres sem alma,
criados unicamente para serem funcionais: “Mechanically they are more perfect than we are,
they have an enormously developed intelligence, but they have no soul.” 6 (CAPEK, 2013, p.
9). Todavia, no fim, revoltados com a sua condição, os robôs armam um motim e se voltam
contra os seres humanos, exterminando-os.
Em decorrência de obras como esta, Asimov afirmava que os contos que formam a
série “Eu, robô” foram escritos como uma ação de repúdio ao citado complexo: “A partir de
1938, escrevi uma série de contos sobre robôs, que exerceu alguma influência. Tal série
combateu de maneira um tanto constrangida o “complexo de Frankenstein”, fazendo dos
robôs servidores amigos e aliados da humanidade.” (ASIMOV, 1984, p.198).
Todavia, o mencionado Autor expôs que mesmo ele tentando combatê-lo (com a
publicação do livro “Eu, robô”), o pessimismo acabou triunfando por dois motivos:
O fato de muitos jovens escritores, nos anos 60 e 70, se arriscarem a escrever uma
obra de ficção científica sem possuir qualquer noção de ciência, sendo a ela, na realidade,
bastante hostis.
E também, o fato das máquinas estarem se tornando a cada dia mais assustadoras;
tanto por seu poder de destruição (devemos nos lembrar de que a coletânea foi publicada em
1950, para uma geração que ainda recordava com extrema clareza os horrores da segunda
grande guerra e da tecnologia que a apoiava, capaz de criar bombas nucleares com poder de
destruição em massa); como por seu poder de tornar os seres humanos dependentes de sua
praticidade, tais quais os automóveis e computadores.

6
[Nossa tradução] “Mecanicamente eles são mais perfeitos do que nós, eles têm uma inteligência extremamente
desenvolvida, mas eles não têm alma."
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O crítico, Heitor Capuzzo, apresenta uma opinião semelhante à de Asimov em relação


à predominância do referido pessimismo. No seu livro “O cinema além da imaginação”, ao
discorrer sobre os filmes B de ficção cientifica nos anos 50, Capuzzo deixa clara a aversão
que os cineastas da época (que terminou por influenciar as gerações posteriores) sentiam pelos
“resultados” dos avanços científicos e tecnológicos, e ainda, em como estas produções
influenciavam na opinião popular:

A ficção científica B, nestes casos, aproxima-se do filme catástrofe. E é


justamente na desinformação que estes filmes conseguem florescer. A
transição pela qual o mundo passa neste período, quando avanços científicos
e sociais alteram valores, é vista com hostilidade por esse ciclo de produções
que, através do sensacionalismo e do pânico, constrói um referencial moral
que encontra eco numa população ainda desinformada dos avanços da
ciência. (CAPUZZO, 1990, p.36)

A influência a cada dia maior que as máquinas exerciam sobre o futuro da


humanidade, juntamente com a campanha negativa realizada pelos meios de comunicação de
massa, enraizava o “Complexo de Frankenstein” na mente das pessoas, revivendo o antigo
temor de ser suplantado, que segundo Asimov é ainda maior do que o de ser destruído.

Há em outras culturas, mitos de substituição, inclusive em nossa própria, a


exemplo do mito no qual Satanás tenta suplantar Deus, não conseguindo.
Esse mito alcançou sua mais alta expressão literária em O paraíso Perdido,
de Jonh Milton. [...] Em resultado disso, a ficção científica contemporânea
nos oferece, com muito maior frequência, e reiteradamente, o mito do filho
que suplanta o pai. Zeus suplanta Cronos, satanás suplanta Deus, a máquina
triunfa sobre o homem. (ASIMOV, 1984, p.195 e 198).

Mesmo hoje, na contemporaneidade, o “Complexo de Frankenstein” exerce influencia


na criação de vários filmes, que embora tenham enredos e outros aspectos superficialmente
diferentes entre si (como atores e cenários), apresentam aquilo o que o crítico Flávio R.
Kothe, na sua obra Literatura e sistemas Intersemióticos, chamaria de “estrutura profunda”
semelhante:

A estrutura profunda da narrativa trivial é sempre a mesma, mas ela nunca


foi tão repetida para tanta gente quanto hoje, pois nunca houve tanta
possibilidade de multiplicar e difundir as narrativas. Aparentemente uma
época esclarecida, nunca foi mais dominada por mitos e mistificações do que
a nossa. Os meios de comunicação mais avançados, aparentemente grandes
instrumentos de liberação e iluminismo, na prática tornaram-se poderosos
instrumentos de repressão e dominação. O progresso tecnológico tem sido
também uma regressão contínua e crescente. (KOTHE, 1981, p. 156).
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A estrutura profunda (que seria a semelhança em um nível “semântico-ideológico”)


dos filmes listados a seguir é caraterizada pela interferência negativa que o “Complexo de
Frankenstein” exerce sobre todos eles:
No longa-metragem “Eva – um novo começo” (2011), o renomado engenheiro
cibernético Alex Garel retorna para a cidade de Santa Irene (após 10 anos de ausência), com o
intuito de construir o primeiro robô criança para a universidade local. Já na cidade, ele
reencontra seu irmão David e sua ex-namorada Lana, além da filha destes, uma garota
chamada Eva. A conexão entre Alex e Eva é imediata, tendo em vista a personalidade
cativante, independente e espontânea da criança, o que faz com que o engenheiro e ela fiquem
muito próximos e que ele a utilize como modelo para o seu robô.
Porém, o robô criado acaba se revelando totalmente instável, fazendo Alex se
questionar sobre qual teria sido o seu erro. Neste ínterim ele se reaproxima de Lana, que
acaba lhe revelando que na verdade Eva é um robô que foi criado com base na pesquisa que
os dois estavam desenvolvendo antes dele partir abruptamente, e a qual, ela deu continuidade
e concluiu. Ao ouvir a revelação de que Alex é teoricamente o seu “pai”, Eva fica
transtornada e mata a sua criadora. A robô demonstra arrependimento, todavia, temendo o
caráter impulsivo e inconsequente de Eva, Alex se vê obrigado a destruí-la. Neste filme duas
leis da robótica são desobedecidas, a primeira e segunda, condutas estas que fazem com que o
“Complexo de Frankenstein” venha a ser um medo real.
Em “Transcendence - A revolução” (2014) o Dr. Will Caster, após ser atacado por um
grupo de extremistas anti-tecnologia, desenvolve uma doença fatal. Não tendo nada a perder,
ele e sua esposa Evelyn fazem um experimento revolucionário no qual é realizado um upload
do seu cérebro em um computador. Após sua morte, Will retorna para vida de Evelyn, mas
como um supercomputador com inteligência artificial.
No início, este utiliza sua inteligência superior e sua capacidade de acesso a
informações ilimitadas (via internet e bancos de dados confidenciais) para ajudar a polícia e
para curar pessoas doentes e deficientes. Porém, com o passar do tempo Will quer ampliar
suas habilidades, passando então a tornar seus pacientes em soldados, formando assim um
exército pessoal cujas mentes são totalmente interligadas via internet com seu cérebro. Evelyn
passa a temer então o novo Will, desconfiando que este talvez não seja o seu marido, mas sim
uma máquina com suas memórias. No fim do filme, já do lado das autoridades e outros
cientistas que temem o poder ilimitado da inteligência artificial e acreditam que esta irá
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escravizar toda a humanidade, Evelyn se sacrifica para destruir a sua criação e acaba
falecendo no processo. Neste longa, a inteligência artificial “Will” acaba sendo a responsável
por fazer com que o mundo sofresse uma regressão tecnológica, pois sua destruição gerou
uma pane global em todos os equipamentos eletrônicos.
No filme “Eu, robô” (2004), que se passa no ano de 2035 na cidade de Chicago, o
detetive Spooner (personagem que não existe na obra literária, tendo sido criado
exclusivamente para o filme) apresenta-se como um homem amargurado, que vê toda a
tecnologia que o cerca como um grande perigo para a humanidade. Para ele, os robôs não são
criaturas confiáveis, razão pela qual ele vive procurando um modo de provar que as suas
desconfianças são verídicas. A oportunidade surge quando este é convocado para assumir o
caso do suposto suicídio do Dr. Alfred Lanning, um brilhante cientista e cofundador da
empresa U.S.Robotics. Durante a investigação, Spooner é surpreendido por um robô modelo
NS5 que está fugindo da cena do crime, o que somente colabora em aumentar a desconfiança
que o policial tem pelas máquinas.
A partir de então há várias cenas de perseguições e ataques realizados por robôs contra
Spooner, que por sua vez está juntando as peças do quebra-cabeça que envolve o falso
suicídio de Lanning.
E ainda, é revelado o fato de Spooner ser um ciborgue. Segundo o entendimento da
criadora da Ciborgologia, a professora Donna J. Haraway:

A ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues – criaturas que


são simultaneamente animal e máquina, que habitam mundos que são, de
forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados. A medicina moderna
também está cheia de ciborgues, de junções entre organismo e máquina, cada
qual concebido como um dispositivo codificado, em uma intimidade e com
um poder que nunca, antes, existiu na história da sexualidade. (HARAWAY,
2009, p. 36)

O detetive Spooner, com a vantagem de possuir um braço mecânico, consegue lutar


contra os robôs, que neste momento estão sendo controlados pelo robô central, VIKY, que é o
cérebro da empresa US Robotics. No longa-metragem então se desenvolve uma espécie de
guerra urbana entre seres humanos e robôs, que agora se viraram contra seus protegidos, se
tornando agressivos e maus. Sendo que, no desfecho do filme, os robôs (liderados agora por
Sonny) são segregados da sociedade, devendo viver longe dos humanos como punição.
Já em “Prometheus” (2012) um dos personagens é um androide. Segundo Asimov
(1984, p. 83): “O termo andróide é usado para definir um produto artificial que imite qualquer
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dos dois sexos ou, também, por extensão, qualquer produto artificial que seja neutro, isto é
assexuado.”. Logo, o androide nada mais é do que um robô que possua aparência humana,
com ou sem um gênero definido.
Neste filme, o androide David acaba revelando certa crueldade quando, por mera
curiosidade científica, coloca em risco a vida de toda a população da nave em que este se
encontra, ao inserir uma espécie de parasita alienígena na bebida do Dr. Holloway,
infectando-o e consequentemente prejudicando também a sua companheira, a Dra. Shaw, que
acaba gestando uma das criaturas, apesar de ser estéril. No fim do filme, fica claro para o
espectador que todas as tragédias ocorreram a nave “Prometheus” e seus membros foram
direta ou indiretamente ocasionadas pelas ações de David.
Na série de filmes que compõem a franquia “Exterminador do futuro” (1984 – em
andamento), o grande vilão também é uma máquina: o sistema computadorizado de defesa
“Skynet”. Este, que originalmente foi criado pelo departamento de defesa americana para
controlar as armas criadas pelos mesmos (inclusive as nucleares), acaba desenvolvendo
inteligência artificial, tornando-se assim independente dos seus criadores e se espalhando para
todos os computadores e equipamentos eletrônicos do mundo. O Skynet utiliza-se do controle
que possui sobre todo o arsenal militar existente e inicia o extermínio da raça humana, por
acreditar que os humanos são uma ameaça à sua preservação. Com isso acaba eclodindo uma
guerra entre os homens e as máquinas.
Guerra essa que também ocorre na trilogia “Matrix” (1999 – 2003). Após tomar a
pílula vermelha, Neo toma conhecimento da realidade sobre a sua existência, tornando-se
então o escolhido e passando a enfrentar duas duras batalhas: no mundo real, contra as
sentinelas enviadas pelo supercomputador “Deus Ex Machina”7 (líder da cidade das
máquinas) para encontrar e destruir Zion (cidade humana sede da resistência); e no mundo
virtual Matrix, contra o vírus Smith que transformou todos os habitantes de Matrix em seus
clones.
Outro filme em que o “Complexo de Frankenstein” faz notar sua presença é “Resident
Evil: O Hóspede Maldito” (2002). A protagonista Alice demonstra ser uma jovem
extremamente sem sorte, tendo em vista que além de ser obrigada a descer para um

7
“Deus Ex Machina” é uma expressão de origem latina que significa “Deus surgido da máquina”. Esse termo
geralmente é utilizado para designar uma solução mirabolante e improvável que surge para resolver um conflito
de impossível resolução. Já em Matrix, “Deus Ex Machina” é o supercomputador que lidera a cidade das
máquinas e o mundo de Matrix. Este possui uma aparência exótica, sendo como um ouriço-do-mar com o rosto
de um bebê humano.
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laboratório subterrâneo repleto de zumbis, esta ainda se depara com um supercomputador


(possuidor de inteligência artificial) denominado “Rainha vermelha” que decide lacrar o local
com ela presa lá dentro, assim com já o fizerá anteriormente, resultando na “morte” de todos
os empregados.
Podemos ainda observar, neste último filme, duas ocorrências importantes: A rainha
vermelha, de certo modo, segue a versão ampliada da 1ª lei da robótica (Nenhuma Máquina
pode prejudicar a humanidade, ou, por inação, permitir que a humanidade seja prejudicada),
porém de forma distorcida. Quando ela prende o grupo de Alice dentro do laboratório, seu
objetivo é proteger a humanidade (evitando a propagação do vírus), porém, para isso, ela não
se importa que “alguns” humanos sejam feridos ou mortos no processo. E ainda, podemos
observar que a rainha vermelha recorre a “métodos bárbaros” para eliminar o grupo que
insiste em fugir do laboratório, o que somente comprova que ela é um ser totalmente
desprovido de alma ou consciência. Sendo este um dos fatores que fundamentam o
“Complexo de Frankenstein”.
Enfim, como pode ser constatado, há vários exemplos no cinema contemporâneo de
robôs que passam a ser temidos justamente quando começam, mesmo que forma não
declarada, a contrariar as leis da robótica, e por esta razão, se voltam contra seus criadores,
caracterizando uma clara manifestação do “Complexo de Frankenstein” nestas obras fílmicas.

Considerações Finais

Vemos que apesar de Isaac Asimov ter escrito “Eu, robô” com a intenção de combater
o “Complexo de Frankenstein” (que é o medo sentido pelo homem de ser substituído pelos
seres humanos artificiais criados por si), no cinema contemporâneo a influência deste
complexo é forte e a temática “humanidade X robôs maus” ainda é amplamente utilizada.
É uma verdade incontestável o fato de que, atualmente, a maioria das pessoas não
teme a tecnologia. Muitas, na realidade, não conseguem viver um único dia longe dela. Porém
isto não dissipa do imaginário popular a crença de que os “seres humanos artificiais” nunca
serão confiáveis, pois eles não têm algo que tanto os humanos, como os pós-humanos (como
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os ciborgues) possuem: uma alma, algo essencialmente humano capaz de lhe atribuir
sentimentos.
Contudo, também não podemos nos esquecer de que cinema é uma grande indústria,
idealizada para fornecer entretenimento. Razão pela qual, filmes cuja estrutura profunda
resgata o antiquíssimo medo da substituição, que é o “Complexo de Frankenstein”, serão
sempre produzidos e capazes de atrair os espectadores ávidos por assistir um duelo entre os
criadores e as criaturas.

Referências

ANÔNIMO. A Epopéia de Gilgamesh. Tradução Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo:


Martins Fontes, 1992. (Col. Gandhara).
ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Tradução de Jorge Luiz Calife. Rio de Janeiro: Pocket Ouro,
2009.
______. No mundo da ficção científica. Tradução de Thomaz Newlands Neto. Rio de
Janeiro: Francisco Alves: 1984.
CAPEK, Karel. R.U.R. Disponível em: http://preprints.readingroo.ms/RUR/ rur.pdf. Acesso
em: 27 Jul. 2013.
CAPUZZO, Heitor. Cinema além da imaginação. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de
Almeida, 1990.
Eu, robô. Alex Proyas, 2004. 1h54min. Dolby Digital DTS. Colorido. 35 mm.
Eva – um novo começo. Kike Maíllo. 2011. 1h34min. Dolby Digital. Colorido. 35 mm.
HARAWAY, Donna et ali. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano /
organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. –
(Mimo)
KOTHE, Flávio René. Literatura e sistemas Intersemióticos. São Paulo: Cortez, 1981.
Matrix. Andy e Lana Wachowski, 1999.2h16min. Dolby Digital. Colorido. 35 mm.
Matrix Revolutions. Andy e Lana Wachowski, 2003.2h9min. Dolby Digital. Colorido. 35
mm.
MOSER, Joana de Mello. O Golem. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads /ficheiros
/4246.pdf. Acesso em: 25 Ago. 2013.
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O exterminador do futuro. James Cameron, 1985. 1h47min. Dolby Color. Colorido. 35 mm.
Prometheus. Ridley Scott, 2012. 2h4min. Dolby Digital DTS. Colorido. 35 mm.
Resident Evil: O hóspede maldito. Paul W.S. Anderson, 2002.1h40min. Dolby Digital.
Colorido. 35 mm.
SHAKESPEARE, William. Tito Andrônico. Disponível em: http://www.ebooks
brasil.org/eLibris/andronico.html#and44. Acesso em: 24 Jul. 2014.
SODRÉ, Muniz. Teoria da literatura de massa. Série princípios. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975 (Debates, 98).
Transcendence – A revolução. Wally Pfister. 2014. 1h59min. Dolby Digital. Colorido. 35
mm.
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BRAZILIAN SCIENCE FICTION AND THE MILITARY REGIME: THE


STRUGGLE AGAINST REPRESSION

Naiara Sales Araújo Santos1


UFMA

Plínio Cabral’s Umbra is a portrait of a devastated world. Its plot takes the reader to
the future as a projection of present day reality. The flowers, the clean water, the rivers, the
fresh air are all disappearing. Little by little pollution is poisoning the planet and its wildlife,
making man an irrational being unable to stop the consequences of his own action.
From the very beginning of the novel it is possible to identify issues related to
colonialism in Brazil and Latin America. For example, the factory gated ports remind us both
of the way in which slaves were enclosed in the senzalas (slave quarters) after six in the
evening and the original colonial settlements in which a city worked as a fort whose gates
were closed at 9pm every night. Another Important allusion to this time is the way people die:
“some suffocate by pollution; others kill themselves or go mad”. This is exactly what
happened to the original natives: many died of illness caused by the colonizer and many chose
to commit suicide rather than submit to the horrors of colonization. Another important fact
that bears witness to the continuing impact of colonial history on Brazil during the seventies
is the way Cabral represents most characters: nameless, homeless, submissive, dependent and
hopeless, unable to take decisions by them own.

O Moço conversava com os signos: aprendera com o anterior que aprendera


com seu anterior que aprendera do anterior do anterior [The young boy
talked to the signs: He had learnt this from his forerunner who had learnt
from his forerunner who had learnt from his forerunner] (p.14)

1
Naiara Sales Araújo Santos: Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres,
Mestre em Estudos Literária pela Universidade Metropolitana de Londres e Mestre em Letras pela Universidade
Federal do Piauí. Possui Especialização em Língua Inglesa pela Universidade Estadual do Piauí e Graduação em
Letras Inglês pela Universidade Federal do Piauí. É professora da Universidade Federal do Maranhão. Coordena
o grupo de pesquisa Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na
Era Digital (CNPq). Autora do livro Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy e organizadora do livro
O Discurso (pós) moderno em foco: Literatura, Cinema e outras Artes.
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Given that a ‘name’ is central to the individuous’ sense of identity, Cabral denounces
the lack of identity in Umbra’s characters. Expressions like ‘the young boy’, ‘the old man’,
‘forerunner’ replace the name of the characters as if they do not have a real name.
Also important is the idea of homelessness present in the novel. This is clearly
illustrated by a frequent movement of people looking for a better place to live. Paradoxically,
there is no other place where they could settle and build a better future; In fact, Cabral reflects
on the lack of perspective for Brazilian society during the seventies, the characters behave as
if they already known the future - “they meet to discuss about the history of the future”-
which is not possible literally since the word ‘history’ is usually related to something that
happened in the past. This attitude can support the idea that Umbra is strongly related to
issues of colonization which is not just to do with Brazil’s past but also with its current and
potentially future political and economic status.
Thus, our analysis will underline the novel’s investment in colonial and neo-colonial
realities based on the arguments of important critics such as Fanon, Said, Spivak, Bhabha and
the Latin American Nestor Canclini and Enrique Dussel. For methodological reasons, the first
part of the analysis will focus on the ecofeminist criticism followed by the postcolonial
discussion.
Given the fact that this novel was published in 1977 it is pertinent to highlight that its
publication coincided with some important ecological movements that arose in Brazil during
the seventies. Another important issue to stress is the particular significance of the
environment for Brazilian national identity which is associated to the myth of grandeza, or
national greatness. This myth goes back to images of Brazil’s wealth and beauty, its forest and
fertile land.
In 1971 the agronomist José Lutzenberger founded the first ecological association in
Brazil and Latin America – The Gaúcha Association of Protection to the Natural Environment
(Associação Gaúcha de Proteção Meio Ambiente Natural – AGAPAN). It was located in Rio
Grande do Sul state where Plínio Cabral was born. Among other important actions of
AGAPAN one can mention: the fauna and flora defense, combating the industrial and
vehicular pollution, combating the indiscriminate use of insecticides, fungicides and
herbicides, fighting against water pollution caused by industries and against the destruction of
natural landscapes. From 1971 to 1974 these actions were severely repressed by the military
regime; any attempt to raise awareness of these ecological problems could be taken as an
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insult to the governmental authority since ecological activists pointed the government as the
main responsible for the destruction of nature. Its countless enterprises did not take into
account the preservation of the environment. During the sixties and seventies, with the growth
of industrial production, toxic wastes used in agriculture were thrown into rivers, dangerously
compromising the water resources. Uncontrolled gases expelled by industries and motor
vehicles were the principal cause of the increase in respiratory illness. According to the
sociologist Eduardo Viola in his work Meio Ambiente, Desenvolvimento e Cidadania
[Environment, Development and Citizenship] (2005), the height of absurdity, when it comes
to ecological issues, was when Brazilian president Medici put an advertisement in
international newspapers and magazines inviting first world companies to move to Brazil
where they would not face any expenses due to anti-pollution legislation.
As a journalist, lawyer and member of the government, Plínio Cabral occupied
important posts in cultural and politic fields, among them it is worth mentioning his
performance as Chief Secretary of the State of Rio Grande do Sul. From this post it was
possible for him to see and discuss the problems of environmental devastation during the
military regime. Although his position as a member of the government did not allow him to
join the AGAPAN, his writings reveal his deep consciousness about ecological issues. For
Ginway (2004), Cabral is among the first to popularize environmental themes and contest the
cultural myths of Brazilian sensuality and of the lush and fertile land (p.33). As a writer, he
has been critical of modern society and its relationship to the natural environment. His use of
metaphor and allegories can be understood as a necessary response to censorship. Thus, he
used dystopian fiction as a way of denouncing and satirizing modern society. By utilizing an
imaginary futuristic world, his dystopia effectively focuses on political themes and satirizes
tendencies present in contemporary society.
According to Ginway (2004), Plínio Cabral’s Umbra is the first Brazilian dystopia to
focus exclusively on ecological disaster. Given the fact that the novel was published during
the military regime when the government wanted technological advancement at any cost, and
censorship did not allow any opposing views, it is no surprise that the author used allegoric
discourse as his most important instrument in order to protest against the depletion of Brazil’s
natural resources. The idea that everything could be replaced by technology is strongly
stressed by Cabral from the first chapter:
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Nada era importante: cada um fazia o que era necessário fazer, desde tempos
imemoriais. E ninguém se importava com o resto. A fábrica fornecia tudo:
roupa sintética, alimento concentrado, figuras visuais e reuniões onde se
debatia a história do futuro [Nothing was important: each man did what he
had to do since time imemorial. Nobody worried about the rest. The factory
provided everything: clothes, food, visual pictures and meetings to discuss
about the history of the future] (p.10).

Little by little the natural environment is replaced by an artificial one and not only the
environment, but also people’s values. With the expression “nothing is important” the reader
can see how nature is put aside; there is no need to cultivate or preserve the natural
environment since technology provides whatever is necessary. However, at the same time that
man is shown as intellectual, scientific and superior to nature, he seems to be an irrational
being, enslaving himself. This attitude can be associated to the invading colonizers who
despised the indigenous people’s harmonious relationship with the natural world. Drawing on
Merchant’s ideas, Shiva defines Western science as based on an epistemology of male
domination over women and nature. This epistemology abstracts the male knower in a
transcendent space outside of nature and reduces nature itself to dead matter pushed and
pulled by mechanical forces. Thus, the homo scientificus is given supremacy over nature,
denying the symbiosis between humanity and the natural world. From this perspective, the
modern scientist is a man who creates nature as well as himself, through his own intellectual
power. Echoing Merchant’s argument, Cabral seems to advocate the idea that man and nature
are in constant symbiosis. Reflecting this argument at the end of most legends, the hero joins
with a natural element: sand or water, as can be seen by the second legend:

Um dia, por fim, chegou à beira de um rio. Era calmo e silencioso. Aric,
então, deixou-se ficar ali. Já não podia mais caminhar. Não tinha forças.
Abraçou-se ao rio e chorou misturando-se com a água e nela tornou-se. E
assim, correndo com o Rio, continuou a nadar. Até o fim do mundo [One
day he got to the river’s edge. It was calm and silence. Aric, then, stopped
and stayed there. He could not walk anymore. He was weak. He hugged the
river and cried, his tears mixed with the water and Aric and the river became
only one. Aric ran with the river and swam to the end of the world] (p.33).

Here, the dynamic interaction of man (hero) and nature emphasizes the fact that the
non human world, animals, plants, celestial bodies are not simply under human control. They
also have their own purpose, their own relation to God, as expressed by Ruether (2005: 68).
Unlike non human world, modern man has lost contact with nature; instead of being a part of
it he has alienated himself from it and therefore abuses it. Allusions to important biblical ideas
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are also an important strategy used by Cabral in order to reinforce the idea that nature has its
own vitality and it is strongly related to God. In the ninth legend, the hero Daric dies to save
nature in the same way that Jesus Christ dies to save humanity:

Depois ergueram o lenho e o corpo a ele preso, e olharam: Daric de braços


abertos, a cabeça sobre o peito... Os homens, então, sentiram medo. A terra
parecia tremer. Chegara a noite, embora fosse dia. O céu estava ficando
violeta e roxa. Em breve estaria negro… Correram todos, desesperados,
gritando. A noite, porém, descia sobre eles, furiosa, escura, mais negra
ainda, medonha... [After that they lifted his body fixed on a wood cross and
looked: his arms were opened, his head was bent over the chest… The men,
then, felt fear. The earth seemed to shake. It got dark though it was day. The
sky became purple. Soon it would be black…Everybody ran desperate and
shouting. The night, though, was coming furious, dark, terrifying] (p.67).

In this passage it is possible to find important aspects of the patriarchal paradigm with
its hierarchical structure and methodology of thought which is closely linked to the Judeo-
Christian ideas of man’s innate superiority over nature. These ideas are discussed by the
historian of science Lynn Townsend White in her article The Historical Roots of our Ecologic
Crisis published in 1967. White suggests that an alternative worldview was necessary, and
this alternative must be religious. She also believes that science and technology were so
tinctured with orthodox Christian arrogance toward nature that no solution to our ecologic
crisis can be expected from them alone2. According to Gebara (2005: 111) Patriarchal
epistemology bases itself on eternal unchangeable ‘truths’ that are the presuppositions for
knowing what truly is. In the Platonic-Aristotelian epistemology that shaped Catholic
Christianity, this means eternal ideas that exist a priori. Catholicism added to this the
hierarchy of revelation over reason. Revealed ideas come directly from God and thus are
unchangeable and unquestionable, compared to ideas derived from reason. This religious way
of seeing reality shows, somehow, Cabral’s ambivalent discourse; as is a practicing catholic,
he transfers, unconsciously or not, his beliefs to his texts. Gebara criticizes this kind of
discourse, because according to her, experiences are the most important subject for any
discourse, they cannot be translated into thought finally and definitively. They are always in
context, in a particular network of relationships. This interdependence and contextuality
includes not only other humans but the nonhuman world, ultimately the whole body of the
cosmos in which we are embedded in our particular location. Theological ideas are not

2
Science, vol.155 (March 10, 1967), 1203-7. Reprinted in This Sacred Earth: Religion, Nature and Environment,
Roger S. Gottlied, ed ( New Yourk: Routledge, 1996), 184-93.
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exempt from this embodied, contextual questioning. Gebara goes on to state that changing the
patriarchal paradigm for an ecofeminist one starts with epistemology, with transforming the
way one thinks. Such an effort to dismantle patriarchal epistemology for ecofeminist thinking
includes the nature of the human person.
In Umbra, patriarchal epistemology is also reproduced in the hero who seems to be a
disembodied self that is presumed to exist prior to all relationships. From this perspective the
ideal self is autonomous, has extricated itself from all dependencies on others and stands
outside and independent of relationships as a ‘free subject’. Interestingly Umbra’s hero
always reincarnates with other names and without any family ties or ‘network of
relationships’, as if he existed by himself. In an ecofeminism understanding of the human
person, such autonomy is a delusion based on denial of the others on whom one depends. This
attitude is also expressed in the end of the novel when the nameless boy decides to leave alone
searching for a better place to live. Ironically, he is supposed to be a hero but he fails to
understand the necessary reconceptualization that is needed. Whilst the novel is strongly
critical of environmentally destructive policies, it reproduces individualistic and transcendent
ideas that are, according to ecofeminism, incompatible with environmental awareness.
Whilst Cabral’s hero can successfully reincarnate in other bodies, the opposite
happens with nature. The promise of planting more and better plants has never been kept
(p.43). The idea that technology is able to renew nature is dismissed. Here, one can make a
link to Merchant’s criticism of human attempts to civilize nature. From this perspective,
science and technology are restoring human dominion and thus transforming primitive,
disorderly nature into civilization. Influenced by Merchants’ ideas, Ruether (2005:121) states
that, this task of civilizing nature is the white man’s burden3. This reference seems to be
ironic. The white Western male is subduing the whole world, first Europe and then the
colonized areas of the Americas, Asia, and Africa and elevating them to a higher order. And
by “areas” one can include all individuals living within them: indigenous people, women,
black people and slaves, among others. Merchant goes on to state that this system of
patriarchy or elite male domination is further developed in Western colonialism and modern
scientific technology and economics. These patterns of domination lead to the
impoverishment of most humans and the natural world and rapidly produce a crisis that

3
This expression was probably taken from a poem by Rudyard Kipling which is addressing the entrance of the
United States into the club of colonizing countries.
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threatens survival on earth. Cabral illustrates this same feeling of devastation by male
domination in modern society; because of the effects of pollution, men lose their natural
habitat and have to survive in inhuman conditions:

Naquele tempo quase não falavam. Não havia o que dizer. Deixavam-se ficar
ali, protegendo-se do frio ou do calor, olhando o horizonte, cavando a terra,
sem esperança. De quando em quando alguém aparecia com raízes velhas,
sem água, esfarelando-se como a própria terra. Mastigavam os pedaços,
depois cuspiam sangue, a boca seca, lábios cortados. Assim era a vida. E de
tanto sofrimento, um dia perguntaram: por quê viver? [That time, men hardly
ever spoke. There was nothing to say. They used to stay there, protected
from the cold or the heat, looking at the horizon, digging the earth without
hope. Sometimes some people found old roots, without water, dissolving in
the earth. They chewed pieces of roots and then, spit blood, with dry mouths
and chopped lips. That way was life. The suffering was so much that one day
they asked: Why do we live?] (p.82)

Cabral’s writing reflects the concerns of ecofeminism, but in some respects it is also
subject to criticism from the perspective of ecofeminism. His work can also be usefully read
in the light of postcolonial theory. The degeneration of men, for example, is strongly
emphasized in Umbra, suggesting the destructive impact of colonization on human identity;
Like technological development, the process of colonization generates people without
memories, dreams or hope. The novel depicts the idea that people have lost their memories,
history and imagination, and because of this, they have lost the desire to procreate; this can be
taken as an allusion to Edward Said’s stereotypes of the Orient: timeless, feminine, weak,
cowardly and lazy. Cabral seems to denounce the effects of foreign policies that have put
Brazil in a neocolonial position, that is, dependent and unable to develop by itself. Cabral’s
criticisms reflect Edward Said’s observations about the attitude of the United States to
underdeveloped nations:

Because the governments are relatively powerless to affect US policy toward


them, they turn their energies to repressing and keeping down their own
population, which results in resentment, anger and helpless imprecations that
do nothing to open up societies where secular ideas about human history and
development have been overtaken by failure and frustration…(
Orientalism’s Preface, 2003).

In Brazil’s case, the authoritarian government with its repressive acts generated a
feeling that progress and economical development are never used in favor of the majority of
the population. According to Alves (1990:259), after 1974, the state resumed its previous
effort to find a balance between selective repression and a more flexible mechanism of
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representation that would allow it to extend its base of support among middle and upper class
groups, now disaffected because of the violence of the repression and the end of the economic
miracle. This economic model imposed extremely heavy burdens on the majority of the
population; the trend toward ever-greater concentration was most pronounced in rural areas,
where the poorest 50 percent of the population suffered a 33 percent reduction in its share of
national incomes. Cabral also registers this specific period of history when the government
imposed a high level of tax on the poorest population:

Os homens, porém, sentiam-se tristes. Envelhecidos, cansados. A pele


secava, tanto era o trabalho. Da divisão por quarto, uma parcela dividia-se
por três. Era a maior. Gigantesca. Foram então aos reis do mundo e
reclamaram… O povo queixava- se, comia menos, vivia mal. Era difícil
entregar a parcela dos Reis. [Men, though, felt extremely sad, old and tired.
Their skin had dried, so hard was their work. From the division of four, an
installment was divided into three. It was too big. The men complained to
the kings…People complained. They ate less and lived in bad conditions. It
was difficult to give the king’s installment] (p71).

This is a remarkable intermediate moment in the novel. Prior to this passage, people
searched for a king who can govern them; they felt the necessity of some kind of leader.
According to Frantz Fanon in The Wretched of the Earth, this attitude is created by the culture
of submission experienced by exploited people in colonized countries (2001:29). Fanon’s
ideas gave significant contribution to the development of cultural and postcolonial studies in
Brazil and Latin America. Inspired in his works, Latin American writers such as Enrique
Dussel and Nestor Garcia Canclini have improved studies in this field. Dussel (2005) rethinks
the process of colonization and domination through a new epistemology: “A Teologia da
Libertação e a Pedagogia dos Oprimidos [The Theology of Liberation and the Pedagogy of
Oppressed People] in Latin America. According to him, in order to overcome the formation
of the oppressive and discriminatory discourse present in modern society, it is necessary to
discover the ‘other face’ of modernity: the world colonial periphery which means the
sacrificed Indigenous, the enslaved man, the oppressed woman and the alienated culture. By
understanding the effects of colonization suffered by Latin American oppressed people it is
possible to begin the process of ‘decolonizing the minds’ suggested by Fanon.
In this regard, Cabral seems to be critically reflecting on the way in which the
government replicates neo-colonial power structures. The repetition of the colonial experience
might also be seen in the reference to ‘Kings’ in the passage above which, one way or
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another, recalls colonial times. After being governed by the Kings of the world, people run
away looking for a better place to live and then, they decide to build the Factory in which they
live. Initially, the Factory works as a hope for people who have lost everything. It promises to
provide a new way of living: more comfortable, healthier, safer, more intelligent and
modernized. But they still need someone who can govern them: “Agora precisamos de um
chefe. Quem dirá o que devemos produzir? Quem repartirá o que produzirmos?...[Now, we
need a chief. Who will tell us what to produce? Who will share our production?” (p.85). Re-
reading Umbra in a post colonial context, it is possible to say that the Factory brings the
characters a neo-colonial reality; if on the one hand, men feel free to do whatever they want,
on the other hand they are unable to administrate their freedom. This attitude can be explained
because, according to McLeod (2000:22), overturning colonialism is not just about handing
land back to its dispossessed peoples, returning powers to those who were once ruled by
Empire. It is also a process of overturning the dominant ways of seeing the world, and
representing reality in ways which do not replicate colonialist values. Here it is worth
mentioning that in terms of post-colonialism, the Latin American context is different from the
situation that pertains in Africa and Asia, where the colonized peoples won back their
independence and rights to govern themselves; in Brazil, for example, the indigenous were
killed or displaced, so these colonized people were marginalized by their colonizers. The anti-
colonial independence movements then were primarily Creole which can explain the feeling
that colonization is not over in Brazil. McLeod goes on to state that if colonialism involves
colonizing the minds, then resistance to it requires ‘decolonizing the mind’. Thus, it would be
no exaggeration to say that, in several parts of the novel, Cabral seems to represent the way in
which Brazilian people are still ‘orientalized’. In other words, Cabral denounces the way in
which colonization is still present in Brazilian people’s mind and culture. In this perspective,
his writing can be pointed as an attempt to ‘decolonize mind’.
Attempting to analyze the cultural effects of colonization in Latin America, Canclini
(1995) starts his studies by emphasizing the hybrid identities in Latin America culture. In his
book Culturas Hibridas: Estratégias para entrar y salir de la modernidad (1995), he
postulates the necessity of a multicultural approach in order to understand the contemporary
Latin American culture. Like Bhabha, Canclini believes that hybrid identities are never total
and complete in themselves because they are marked by multitemporal heterogeneity. His
concerns about modernity and the new configuration of Latin -American metropolis allowed
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him to elaborate an ample reflection regarding post-modernity and globalization. According


to him,

As grandes cidades, dilaceradas pelo crescimento errático e por um


multiculturalismo conflitante, são o cenário em que melhor se manifesta o
declínio das metanarrativas históricas das utopias que imaginaram um
desenvolvimento ascendente e coeso através do tempo [Large cities,
tormented by uncontrolled growth and by a conflicting multiculturalism,
are the perfect scenario to represent the demise of utopian historical
metanarratives that suggested an ascendent and consistent development
through the time(1995:130)].

In this respect, Canclini and Cabral appear to share the same opinion. Cabral
denounces the way cities are developed without preserving historical and cultural aspects of
people’s lives. For him, the city is a key element in this contradictory processes of
modernization in which men become slaves of their own creation, as can be seen in this
passage:

...Trabalhava-se para a Cidade. Exclusivamente. Eram escravos do monstro.


Não podiam se libertar. Ela cobria a terra, ia quase até o fim do mundo.
Inchava, putrefata. Contribuições, dízimos, taxas, impostos, parcelas –
devorava tudo. E pedia mais. Tanto, tanto que ninguém agüentava
[Everybody worked exclusively for the City. They were slavers of the
monster. They could not set them free. She covered the earth, it could go till
the end of the world. It swelled up, rotten. Contributions, taxes, installments
– She wanted everything. And asked for more and more. Nobody could
stand that (p. 25)].

For both authors the process of modernization is a mechanism that transforms the
subject into object. The passages above suggest the impossibility of idealizing a system
without dehumanizing people. For this reason, these authors denounce the mechanism for
which neocolonialism is able to reduce the individual to a state of inauthenticy. Here, one can
build a parallel with Bhabha’s hybridity:

Hybridity is the name of this displacement of value from symbol to sign that
causes the dominant discourse to split along the axis of its power to be
representative, authoritative. Hybridity represents that ambivalent turn of
discriminated subject into the terrifying, exorbitant object of paranoid
classification – a disturbing questioning of the images and presence of
authority (1994:113).

Bhabha and Canclini shows that the process of hybridization discloses the impurity
inherent in postcolonial society. Their critiques are centered on the effect of different imperial
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policies imposed by the modernity’s mechanism of control to the society. The motifs of
reproduction and representation are key elements to their critiques. Both writers articulate a
project of dismantling modernity and any kind of neocolonialism. Bhabha remarks that the
“subaltern and ex-slaves” who now seize the spectacular event of modernity do so in a
catachrestic gesture of reinscribing modernity’s “caesura” and using it to transform the locus
of thought and writing in their postcolonial critique (1994: 246). Like Bhabha, Canclini
questions the representations of modernity which assumes the properties of simulacrum.

Modernity, then, is seen as a mark. A simulacrum conjures up by the elites


and the state apparatuses, above all concerned with art and culture, but
which for that very reason makes them unrepresentative and unrealistic
(1997:7).

Canclini goes on to state that modernity is not only a space one enters into or from
which one emigrates, it is a condition that involves us, in the cities or in the countryside, in
the metropolises and in the underdeveloped countries. Because of its contradictions,
modernity is a situation of unending transit in which the uncertainty of the modern world will
always be present. In Umbra, Cabral represents this ‘uncertainty’ of the modern world by
showing people’s refusal to look for another place to live. They are afraid of leaving the
factory because they do not know what is outside it.
Interesting enough is the way Cabral reacts to this colonial discourse; in the end of the
novel he describes the boy as someone prepared to face any obstacles he might find on his
journey; like a hero, the bizarre black boy intends to find what nobody has found so far – a
better place to live.

O menino aproximou-se. Era alto, a pele escura, quase preta. As pernas


compridas, muito finas, sustentava um corpo atarracado, curto. O tórax era
largo, abrigando pulmões desmesuradamente grandes. Do nariz saiam tufos
de cabelos e estes cabelos é que filtravam o ar .... [The boy approached. He
was tall with dark (almost black) skin. His long thin legs support his short
thin body. His thorax was broad, giving space to large lungs. The tufts of
hair in his nose could filter the air (94)].

At the same time that Cabral uses the discourse of colonialism to describe the boy, – a
radically strange creature whose bizarre and eccentric nature is the cause for both curiosity
and concern (Mcleod 2000: 52)- this description seems to be an attempt of presenting a new
type of hero whose characteristics could represent a colonized subject essentially outside
Western culture and civilization. The refusal of the boy to be the old man’s student can be
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seen as a rupture of the discourse of colonialism which attempts to domesticate colonized


people.
In spite of the negative depictions of the long-lasting disastrous effect of
modernization on people’s lives, the novel presents new perspectives for a better world.
Cabral resists the continuing agency of colonial discourses by exploring their contradictions
and shortcomings and showing the possibility of revealing different experiences, histories and
representations.

References

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BHABHA, Homi, K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.
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Longman, 1994.
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BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da Teoria Pós-colonial. Maringá, PR: Eduem, 2005.
CABRAL, Plinio. Umbra. São Paulo: Summus, 1977.
CANCLINI, Nestor G. Culturas Hibridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade.
São Paulo: EDUSP, 1997.
DUSSEL, Enrique. Para Una Ética de la Liberación Latinoamericana. Buenos Aires: Siglo
XXI, 2005.
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GEBARA. Ivone. Intuitiones Ecofeministas. New York: Ashgate Publishing Company, 2000.
GINWAY, M. Elizabeth. “The Body Politic in Brazilian Science Fiction: Implants and
Cyborgs.” In New Boundaries in Political Science Fiction, edited by Donald Hassler and
Clyde Wilcox. University of South Carolina Press,2008.
______. “Recent Brazilian Science Fiction and Fantasy Written by Women.” Foundation 36
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______. “A Working Model for Analyzing Third World Science Fiction: The Case of
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_____. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future.
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RUETHER, Rosemary R. Integrating Ecofeminism Globalization and World Religions. New
York: Rowman and Littlefield, 2005.
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VIOLA, Eduardo. Meio Ambiente, Desenvolvimento e Cidadania. São Paulo: Cortez, 1995.
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OS EFEITOS DA SOCIEDADE ESCRAVOCRATA RETRATADOS NO ÍCONE DO


ROBÔ EM ISAAC ASIMOV E ANTONIO OLINTO

Thalita Ruth Sousa1


UFMA
Naiara Sales Araújo Santos2
UFMA

Introdução

O século XX apresentou um avanço científico surpreendente, cujos reflexos são


notados atualmente na rápida evolução do conhecimento empírico, que resultam em
descobertas a fim de satisfazer a necessidade de conhecimento da raça humana. As guerras,
pactos políticos, declínios sociais e os célebres cientistas, entre outros, colaboraram nestes
feitos, em um esforço que culminou não só em mudanças de gênero político-capitalista, mas
também nas relações sociais e em aspectos ideológicos globais – principalmente no mundo
ocidental.
Particularmente nos Estados Unidos, o investimento no progresso científico (entre
outros fatores) foi recompensado com um imediato avanço tecnológico que mudou a ordem
mundial e os parâmetros socioculturais estabelecidos no século passado. Este novo quadro foi
recebido com entusiasmo pelas populações ditas industrializadas e desenvolvidas permitindo
a incorporação dos resultados do progresso na vida cotidiana das pessoas com relativa
facilidade.
Nessa contexto, o gênero de Ficção Científica assumiu o papel de registrador das
mudanças e avanços tecnológicos. No Brasil, este gênero entra em evidencia através de
revistas, que passam a ser mais apreciadas por leitores ansiosos por compreender mais sobre
ciência e tecnologia. De acordo com M. Elizabeth Ginway em seu livro Ficção Científica

1
Graduanda de Letras da Universidade Federal do Maranhão; bolsista Pibic e membro do grupo de pesquisa
Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital (CNPq)
2
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres, Mestre em Estudos Literária
pela Universidade Metropolitana de Londres e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Possui
Especialização em Língua Inglesa pela Universidade Estadual do Piauí e Graduação em Letras Inglês pela
Universidade Federal do Piauí. É professora da Universidade Federal do Maranhão. Coordena o grupo de
pesquisa Ficça da UFMA – Ficção Científica, Gêneros Pós-modernos e Representações Artísticas na Era Digital
(CNPq). Autora do livro Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy e organizadora do livro O Discurso
(pós) moderno em foco: Literatura, Cinema e outras Artes.
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Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2005), as revistas criaram um


ambiente de aceitação que incentivou a popularização de grandes obras, sobretudo as de
escritores como Isaac Asimov, James Blish e Judith Merril, consolidadores da Golden Age –
ocorrida de 1934 a 1963. Esta Era Dourada é conceituada por Naiara Santos em seu livro
Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy (2014) como um período onde os
escritores expressavam um otimismo utópico em relação à contribuição da ciência e da
tecnologia para a humanidade e tendem a elogiar o cientista como um agente do progresso
social e da estabilidade econômica (p. 28).
Simultaneamente ao grande avanço americano, houve um atraso no desenvolvimento
científico brasileiro, onde a grande discrepância entre a classe “nobre” e os trabalhadores
desfavorecidos era acentuada pela má distribuição da riqueza, tornando os benefícios da
tecnologia restritos ao poder monetário. Este ponto é ratificado por Ginway quando diz que a
concentração de poder e dinheiro entre a elite tradicional resultam numa imagem da
tecnologia como elemento divisor e não unificador (2005, p. 39). Outros motivos, segundo
ela, seriam:

Sendo um país de Terceiro Mundo, o Brasil tem frequentemente dependido


de tecnologia importada, sobre a qual tem pouco controle. A tecnologia é
também vista como tendo um efeito negativo nas relações sociais, destruindo
o contato pessoal que é um fator central na cultura brasileira. Finalmente, os
escritores brasileiros [de ficção científica] começaram a publicar no ápice da
guerra fria, em uma época de uma considerável suspeita da tecnologia e de
suas implicações para a sociedade e a paz mundial. (GINWAY, 2005 p. 39)

As motivações ficaram ainda mais nítidas através da rejeição, num primeiro momento,
à ficção científica brasileira, como está claro na afirmação da escritora americana. Por conta
disso, o gênero parecia não se encaixar no campo literário brasileiro que estava mais voltado
para questões de origem nacional, graças aos ideais da Semana de Arte Moderna no Brasil
(1922). Assim, os livros que abordavam a ficção científica não foram bem difundidos em seu
início e perderam força diante do público leitor. Nos anos sessenta, letrados da classe mais
favorecida se dedicaram ao estudo das obras do gênero, o que propiciou o surgimento no
cenário nacional de alguns escritores como Fausto Cunha, Dinah Silveira de Queiroz e André
Carneiro. Os escritores tendiam a reproduzir obras semelhantes às internacionais, todavia,
empregavam nelas características nacionais:
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Dada a sua visão altamente negativa da modernização, pode-se supor que os


escritores brasileiros iriam ou rejeitar a ficção científica, ou escrever obras
condenando a tecnologia como uma ameaça à tradição e à nacionalidade
brasileiras. Ao invés disso, o seu impulso é o de assimilar os símbolos da
tecnologia em seus próprios mitos nacionais, retratando-os de maneira a
enfatizar laços e relações emocionais [...]. (GINWAY, 2005, P: 43)

Ao criar, recriar e manipular a tecnologia em suas obras, tanto escritores norte-


americanos quanto brasileiros utilizaram-se de ícones tais como o robô, o alienígena, a
espaçonave, a cidade, e a terra devastada para fazer uma releitura da sociedade. De acordo
com o crítico Gary K. Wolfe em sua obra The Know and the Unknow – The Iconography of
Science Fiction (1946):

... um ícone é algo que nós estamos dispostos a aceitar por conta de nossa
familiaridade com o gênero, mas ao contrário das convenções comuns, um
ícone muitas vezes retém seu poder mesmo quando isolado do contexto das
estruturas narrativas convencionais [Like a stereotype or a convention, an
icon is something we are willing to accept because of our familiarity with the
genre, but unlike ordinary conventions, an icon often retains its power even
when isolated from the context of conventional narrative structures]. (p. 16)

Dos ícones tratados por Wolfe, um se destaca por conta de sua proximidade aos
humanos racional e funcionalmente: o Ícone do Robô. Tal representação será analisada
posteriormente nas obras O Desafio de Antonio Olinto e Robbie de Isaac Asimov. Tal ícone é
influenciado por um aspecto social, econômico e político que ainda reverbera no homem
contemporâneo: a escravidão.

O robô como espelho do escravo

Desde sua origem, o robô já se revela ligado à noção de submisso ao homem e às suas
vontades, sendo tido como inferior por natureza. Essa concepção nos remete à ideia do
escravo, do ser desprovido de direitos e relegado a ser propriedade de outrem. A ligação entre
robô e escravo é explicada com mais clareza por Bráulio Tavares em seu livro O que é Ficção
Científica, pois na ficção científica essa relação

[...] muitas vezes não passa de uma reprodução de narrativas que giram em
torno de um padrão civilizado e em criado primitivo, onde um encarna a
cultura e o outro a espontaneidade: um comanda e o outro comenta. O termo
robô vem da palavra tcheca robota, que significa escravo. Não é mera
coincidência. (1986, p. 63)
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Reafirmando a função do ícone do robô, e concordando com Tavares, Wolfe se utiliza


das palavras de Weiner, conhecido como pai da cibernética: “[...] A máquina automática, não
importa o que pensamos dos sentimentos que ela pode ter ou não ter, é o equivalente
econômico preciso do trabalho escravo3” (WOLFE, 1994, p. 152). Em outras palavras, a
função inicial do robô estava ligada a sua capacidade de ser subserviente e realizar tarefas
diversas que satisfizessem as necessidades humanas. O que nos leva a pensar, como elucida
Santos, que de maneira geral tal relação é muito similar à relação existente entre o senhor (de
engenho) e o escravo, que se mantém sobre uma base instável, onde ao mesmo tempo em que
homem e máquina parecem viver em perfeita harmonia, há entre ambos uma relação de
superioridade e poder (p. 113).
Tratando de maneira mais específica, podemos notar que dependendo da história
cultural de cada país a metáfora do robô como escravo alcançará significados mais complexos
na ficção científica, o que é observado nas primeiras obras de alguns escritores brasileiros
como “O Menino e o Robô” de Rubens Teixeira Scavone, onde um homem compra um robô
de uso doméstico para servir de companhia a seu filho único. Os autores sentem, assim como
a maioria da população, que a modernização seria uma repetição da experiência colonial
(GINWAY, 2005, p. 42), tal experiência refletiria seu legado como uma sociedade de antigos
escravos e sua população diversa, racialmente mestiça (idem, p. 40). Afirma ainda:

Comparando a ficção científica do Brasil com a dos Estados Unidos, duas


sociedades ex-escravistas, fica claro que, em parte, as atitudes em relação
aos robôs são baseadas em fatores culturais. Por exemplo, em várias histórias
brasileiras lidando com robôs, é comum que uma grande afeição seja
dirigida a eles. Este é o caso de “O Velho” (1965) de Clóvis Garcia, no qual
um velho economiza para comprar um robô de modelo antigo, para ter
companhia na velhice. [...] Conforme veremos, na maioria dessas histórias,
pelo fato de os robôs geralmente agirem dentro da esfera do lar, os
protagonistas humanos iniciam relacionamentos com eles. Isto lembra o
papel dos escravos domésticos na família patriarcal do Brasil. [...] Embora
possam ser tratados com afeição por seus mestres, os robôs e mulheres
dessas histórias ainda experimentam uma forma de sujeição. (2005, p. 44)

Esta sujeição implicada à imagem do escravo é confirmada por Aurélio (2001: p. 611),
ao afirmar que o “robô” seria aquele que “[...] executa tarefas e movimentos usualmente
realizados por humanos”. Isto justifica por que o sentimento de invalidez e de ser substituível
gera apreensão nos seres humanos por natureza, fazendo-os temer os robôs. Estas máquinas

3
“Let us remember that the automatic machine, whatever we think of any feelings it may have or may not have,
is the precise economic equivalent of slave labor.”
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nos substituem em determinados intentos, fato que é sublinhado na ficção científica


americana, onde há a impressão de que assim como as máquinas robóticas suplantam as
funções do corpo humano, computadores suplantam a função da mente humana4 (WOLFE,
1946, p. 153). Isto leva a um temor de rebelião pelos robôs e cria a hostilidade entre humanos
e máquinas típica da ficção científica americana nos anos cinqüenta e sessenta (Ginway, 2005,
p: 42).
Wolfe acrescenta que os robôs eram caracterizados geralmente como “máquinas
rebeldes” nos Estados Unidos, o que pode ser compreendido historicamente pelo fato da
sociedade americana ter medo dos negros e da rebelião dos escravos, explica Ginway ao citar
o autor de Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and the United
States (1971), Carl Degler:

Por trás de várias divergências em prática e em ideologia, é a clara


implicação de que no Brasil o escravo pode ser temido, mas de que o homem
negro não o era, enquanto que nos Estados Unidos, tanto o escravo quanto o
homem negro eram temidos. Assim, a disposição dos brasileiros para
alforriar escravos muito mais livremente do que os norte-americanos é
resultado do fato de que eles não temerem os negros libertos em grande
número, a despeito do medo que pudessem ter nutrido de revoltas de
escravos. (2005, p. 45)

Por isso deve-se ressaltar o fato de que, apesar dos norte-americanos receberem bem a
tecnologia, não significa que não temam os robôs (o que será exemplificado com Robbie); ao
mesmo tempo em que a rejeição da tecnologia pelos brasileiros não significa que tais rejeitam
os robôs (como será exemplificado com O Desafio). O que ocorre nestes casos é a presença de
características particulares no Ícone do Robô que remetem aos efeitos da sociedade
escravocrata sobre o ser humano – o que, claramente, não é algo agradável e está próximo
historicamente o suficiente para ser recordado.
Um aspecto importante que Elizabeth Ginway nos chama atenção é que “do robô se
espera que não use violência e que obedeça e proteja a se mesmo (como propriedade) em
muito da maneira que o escravo teria” (idem, p. 44-45). Este dever do robô é aguardado por
conta das implicações fundamentais sobre o comportamento mesmo através das Três Leis
criadas por Isaac Asimov (em 1950, com a publicação de sua mais famosa obra, I, Robot) e
adotadas pela ficção científica como os princípios da robótica. Estes são três: um robô não

4
“As the robot supplants the functions of the human body, computers supplant the function of the human mind
[...]”
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pode ferir um ser humano, ou por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; um
robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em
que tais ordens contrariem a Primeira Lei e; um robô deve proteger sua própria existência,
desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis (ASIMOV,
1969, p: 03).
Estes parâmetros servem para classificar o comportamento de um robô, e garantir seu
status servil. Essas leis são necessárias, aqui, para uma maior compreensão do comportamento
dos robôs aqui trabalhados, Robbie e T-55, máquinas que seguem os padrões previstos e
corroboram a afirmação anterior de Ginway.

“Robbie”

O presente conto publicado pelo americano Isaac Asimov primeiramente como


Strange Playfellow, em uma revista de ficção científica, é o primeiro da coletânea de contos
do mundialmente famoso livro “I, Robot” de 1950 – onde há as leis acima mencionadas –,
encabeçando uma série de livros do autor sobre robôs.
Já no início do livro nos deparamos com uma declaração, anterior ao conto, onde uma
personagem trata a respeito do papel do robô desempenha na sociedade:

Houve uma época em que a humanidade encarava o universo sozinha, sem


um amigo. Agora, o homem possui criaturas para ajudá-lo; criaturas mais
fortes do que ele – mais fiéis, mais úteis e absolutamente devotadas a ele. A
espécie humana já não está sozinha. (ASIMOV, 1969, p: 06)

Esta é uma evidente declaração a respeito do ponto de vista de Isaac Asimov, que
tentara desmistificar a ideia vigente em seu tempo de robôs que se voltam contra seu criador
e, para tanto, produz a imagem de uma máquina dócil que foi concebida somente com a
intenção de facilitar/auxiliar a vida humana. Todavia, com a evolução dos humanos, a
oposição surge: Posteriormente, os robôs tornaram-se mais humanos e surgiu a oposição.
Como é natural, os sindicatos opunham-se à competição que os robôs ofereciam aos homens
em questão de trabalho (ASIMOV, 1969, p: 07). Ressaltando aqui o temor humano quanto à
sua inutilidade frente à superior inteligência dos robôs.
O protagonista da história cujo título é seu nome, se caracteriza por ser um robô que
desempenha o papel de “ama-seca”. Isto é deixado claro logo no início, levando-nos a ligar
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sua função à mesma desempenhada pelas escravas domésticas que cuidavam de crianças. Ele
é criado e vendido em 1996, estando a dois anos com os Weston, a família de Glória, a
criança que cuida. Esta trata Robbie de maneira pessoal, brincando com ele e não estranhando
sua manifestação repetida de sentimentos. Por exemplo, quando Glória caçoa de Robbie por
ter ganhado um jogo:

Naturalmente, Robbie não respondeu – pelo menos, não com palavras. Em


lugar disso, fingiu que estava correndo, afastando-se lentamente, até que
Gloria começou a correr atrás dele, enquanto o robô esquivava-se no último
instante, obrigando-a a descrever círculos, inutilmente, com os bracinhos
esticados abanando no ar (ASIMOV, 1969, p: 09).

A passagem acima, fazendo-nos, pensar no robô como uma criatura capaz de ter
emoções humanas, o que é salientado por George, o pai de Robbie:

Na realidade, Robbie foi construído exclusivamente com uma finalidade:


fazer companhia a uma criança pequena. Toda a sua “mentalidade” foi
criada com esse único objetivo. Ele não pode deixar de ser fiel carinhoso e
bom. É uma máquina – feita assim. O que é bem mais do que pode dizer a
respeito dos seres humanos (ASIMOV, 1969, p.15).

Esta é a resposta que ele dá ao pedido da Sra. Weston de parar a “máquina horrível”,
pois tem medo dele e não o vê como capaz de demonstrar afeição:

Não admito que minha filha seja entregue a uma máquina... e não me
interessa o quanto ela seja inteligente. Não tem alma. Ninguém sabe o que
pode estar pensando. Uma criança não foi feita para ser guardada por um
objeto de metal (ASIMOV, 1969, p. 16).
.
O mesmo princípio de não considerar os sentimentos era aplicado aos escravos, que
não eram vistos como igual e, portanto, não tinham direitos comuns aos humanos – eram
somente uma Coisa, assim como Robbie. Quando a mãe de Glória percebe o nível de
importância que a filha dá ao Robô e como aquilo está influenciando-a, interfere.
A Sra. Weston o considera perigoso e nota-se que ela teme pela segurança de Glória,
todavia não sabe a respeito do funcionamento da máquina: [...] era um tanto ignorante a
respeito dos órgãos internos de um robô (idem). Demonstrando assim que eram as pessoas
“ignorantes”, e não as “avançadas” sobre o assunto, que temiam a tecnologia. A maioria da
população ao que parecia também concordava com a mulher, pois ela afirma que: A maioria
dos moradores da aldeia considera Robbie perigoso. Não permitem que as crianças cheguem
perto de nossa casa à noite (ASIMOV, 1969, p: 17). Os escravos não eram tidos como
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importantes na escala social, apesar de vir do trabalho deles o sustento da riqueza de donos de
engenhos, mercadores de escravos, negociantes, entre outros – direta ou indiretamente. O
desprezo vindo do preconceito, dentre outros fatores, fazia as pessoas se distanciarem, assim
como a população do livro.
Podemos então identificar a Sra. Weston como o elemento não-robô, aquele que é
desfavorável ao uso de robôs na esfera social, enquanto o Sr. Weston se põe no papel de
favorável ao robô, defendendo o uso da máquina ao crer na segurança de Glória diante das
habilidades de Robbie. Em um primeiro momento, a rejeição da máquina pela senhora
culmina por vencer a disputa pela insistência e eles planejam devolvê-lo. Para Glória não vê-
lo indo embora, a levam em uma viagem, mas é inevitável a criança não descobrir ao voltar. É
então que se tem na história a real percepção da criança sobre o robô:

A mulher curvou-se, na tarefa de consolar a filha.


– Por que está chorando, Gloria? Robbie era apenas uma máquina – uma
máquina velha e feia. Ele nem era vivo.
– Ele não era nenhuma máquina! – gritou Gloria ferozmente, esquecendo-se
da gramática. – Ele era uma “pessoa”, como eu e você – e era meu
“amigo” (ASIMOV, 1969, p.19).

Pela reação da criança, observa-se o modo como Robbie foi inserido no ambiente
familiar com um papel determinado, mas que ultrapassa os limites desejados e previstos uma
vez que desperta em Glória sentimentos sinceros e de cumplicidade. Isso é comprovado pela
inocente afirmação de Glória para a mãe, ao pedir que Robbie ficasse com ela no almoço:
Mamãe, prometo que ele ficará tão quieto que a senhora nem perceberá que ele está aqui.
Ele pode sentar naquela cadeira, ali no canto, sem dizer uma palavra (ASIMOV, 1969, p:
13). Paradoxalmente, apesar de Glória o defende-lo como pessoa, em determinados momentos
não demonstra dúvidas que, se pedir, ele fará sua vontade sem hesitar – como sua
programação robótica exige.
Com o passar do tempo não conseguem distrair Glória de sua tristeza e acabam
planejando uma viagem a Nova York, onde o fascínio da criança pelos robôs só aumenta, ao
ver diversos robôs na cidade. Eles visitam o Museu da Ciência e da Indústria, onde há uma
programação infantil especial com “amostras da magia científica”. Decidida a encontrar
Robbie, Glória acaba por se afastar dos pais e encontra um outro robô que é mais avançado e
já tem a capacidade de falar – ao contrário de Robbie. Neste momento ela afirma reconhecer
que Robbie é um robô: Só vim ver o robô falante, mamãe. Pensei que ele talvez soubesse onde
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está Robbie, pois ambos são robôs (ASIMOV, 1969, p: 28). Neste momento é comprovado o
que já foi citado acima: Glória vê Robbie como uma pessoa, mas sua mente infantil não
desassocia a ideia de pessoa da ideia de robô, mas sim da noção de máquina, Coisa. Isto é
ressaltado pelo pai dela, que após este episódio fica preocupado – juntamente com a mãe – a
ponto de planejar uma ida à fábrica de robôs:

Eis o que tenho pensado: todo o problema com Gloria é que ela pensa em
Robbie como uma pessoa, e não como uma máquina. É natural que não
consiga esquecê-lo. Ora, se conseguirmos convencê-la de que Robbie nada
mais é do que um monte de aço e cobre sob forma de chapas e fios, com a
eletricidade lhe servindo de fluido vital, por quanto tempo perdurarão suas
saudades? Trata-se de um ataque psicológico, se você consegue entender
meu ponto de vista (ASIMOV, 1969, p.32).

Na fábrica, visitam a sessão de robôs que trabalham criando robôs, onde Glória acaba
vendo Robbie, o que a faz correr em sua direção e o sobressalta: O grito de Gloria rasgou o
ar e um dos robôs junto à mesa vacilou, largando a ferramenta que segurava (ASIMOV,
1969, p. 30). Tal momento demonstra o quanto Robbie tinha afeição por Glória, pois ao ver
uma máquina indo em direção a ela e possivelmente podendo machucá-la, ele a salva, tirando-
a da frente da máquina. Neste momento, através do cumprimento da Primeira Lei da robótica,
Glória demonstrou ser fiel, descartou a possibilidade de uma natureza rebelde e confirmou-se
como um ser dotado de sentimentos:

Os braços de aço-cromo de Robbie (capazes de transformar uma barra de


aço com duas polegadas de diâmetro em um parafuso) envolviam delicada e
carinhosamente a menina; seus olhos brilhavam com um tom vermelho
muito profundo (ASIMOV, 1969, p. 32).

Vendo isto, a Sra. Weston acabou descobrindo que o plano do marido era realmente
fazer os dois se encontrarem, mas não com aquele elemento que tudo arriscou, contudo
também o ajudou em seu intento, pois ela não mais se opôs a Robbie e eles o levam para casa,
tornando-o parte da família. Nota-se neste desfecho a prova de que Robbie não é como os
vizinhos pensam, mas uma criatura que ganha mais “humanidade” graças a seus atos – que
além de seguirem a primeira lei, também seguem a segunda lei da robótica.

“O desafio”
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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Nesta obra brasileira de Antônio Olinto, datada de 1961, observamos um sensível robô
poeta chamado T-55, que é considerado o mais avançado de sua época, o ano de 2.455. Foi
comprado por um homem chamado Cláudio e o fazia companhia. Todavia, ele não era um
simples robô como Robbie, ele tinha a capacidade de aprender a falar unir imagens e associar
sons a sentidos. Esta já é uma evolução em relação a outros robôs. Um fato ainda mais
marcante em T-55 é que logo no início da história ele se mostra impactado pela visão de
Láctea, filha de Flávio – amigo de Cláudio –, momento decisivo para a máquina.
Apesar de nos dar a impressão de romper como a ideia de ligação robô-escravo, Olinto
adota a mesma postura do autor Americano: os robôs não podem superar os humanos. Para
tanto, o elemento tempo é fundamental no conto brasileiro, os robôs tinha prazo de validade
ou duração: “Os robôs haviam recebido o nome de Transitórios a partir do momento em que,
tornando-se mais eficientes, mais vivos, quase humanos, tinham também diminuído o tempo
de duração para dez anos (OLINTO, 1961, p: 51)”.
Esta transitividade é característica da sociedade colonial brasileira escravista, onde os
escravos eram considerados adultos quando tinha entre 12 e 30 anos; trabalhavam em média
16 horas por dia, quase sem descanso, o que os fazia amadurecer muito rápido (GOULART,
2012). Quanto mais eles tinham potencial, mais eram explorados e mais cedo morriam, assim
como os robôs de Olinto.
Fica claro como os Transitórios geram apreensão quando Flávio indaga a Cláudio: até
que ponto reações puramente previsíveis poderão chegar ao imprevisível? (OLINTO, 1961,
p: 52) Este último afirma que não sabe, mas que não deseja prever quando conseguirão
construir Transitórios que também se humanizem. Na mesma conversa, se diz que o ser
humano é imperfeito, mas o Transitório possui uma “perfeição relativa”. Contudo, por não
poder reproduzir-se, continuará sendo uma obra humana e, sem precisar necessariamente ser
amado – não se exige que o robô revele ternura, mas que somente possa servir o criador. Isto
nos alerta para a relação criador e criatura, com respectiva superioridade e inferioridade, como
aqui já foi explanado.
Quanto à ternura, Flávio chega a dizer que, às vezes, pensa que T-55 possa tê-la.
Todavia, resignado, Cláudio explica que mesmo sendo o melhor de sua geração, ele é dotado
de um grau altíssimo de atenção, mas nos faz um alerta: não misture atenção com emoção
(OLINTO, 1961, p: 54). O que enfatiza a separação entre as classes, além da ênfase na
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palavra empregada: atenção. Isto é um algo que um escravo precisava manter constantemente
em seu trabalho, pois a desatenção e a negligencia podia resultar em punições.
Nesta sociedade futurista, a língua usada remete ao passado: o latim. Doravante, os
Transitórios não conseguiam empregar o vocativo, e talvez o problema estivesse na ainda
relativa falta de iniciativa do Transitório, por que na verdade o vocativo é uma iniciativa
(OLINTO, 1961, p: 55). Ou seja, os Transitórios não pensavam por si mesmos, mas faziam o
que lhes era permitido fazer, sempre recebendo ordens e nunca sendo a eles permitido
contestá-las.
Fascinado por poemas, T-55 passara a se dedicar à composição de poesias e ao estudo
do latim. Ao levar suas composições para Cláudio, este não se admirou: Afinal, tendo
aprendido tantas palavras, além das leis que regem o ritmo, a cadência, nada mais natural
que T-55 pudesse utilizá-las no fazer poesia (OLINTO, 1961, p: 57). A capacidade de T-55
que lhe diferenciava dos outros Transitórios, não foi notada como um potencial particular que
lhe fazia especial perante os humanos, mas como uma consequência do aprendizado que lhe
foi possibilitado pela inteligência robótica lhe dada.
T-55, por sua incrível capacidade, foi selecionado para um duelo poético, onde um
robô seria o rival do humano pela primeira vez. Contudo, quando visitara Cláudio pela última
vez antes de viajar, foi testemunha da morte de Láctea: uma aeronave caíra próxima a ela, e a
proximidade da queda lhe matara. Ele correu mais rápido que os outros na tentativa de salvá-
la, mas fora tarde demais. Ao vê-la morta, o Transitório perdeu momentaneamente os
sentidos, denotando já um início de mudança em seu comportamento que antes fora suposto.
A cor da pele de Láctea, de uma brancura alvíssima, é ligada ao seu nome e ressaltada
por Olinto. Tal curiosidade e a distância que T-55 sempre mantinha da jovem nas poucas
vezes que a viu, nos lembra a sociedade escravocrata, onde era inconcebível um
relacionamento entre um escravo e uma jovem branca, socialmente superior. Segundo Santos,
“O significado do nome e da brancura da garota está intimamente relacionado com o tema da
brancura tão explorado pelo discurso colônia em que a cor é um elemento determinante na
representação dualística das classes” (2014, p: 111)
Na arena do duelo, Cláudio julgava-se responsável pelo espetáculo daquela noite,
porque fora com ele que T-55 aprendera a fazer poesia (OLINTO, 1961, p.54), o que ressalta
a ideia de um Transitório sem talento próprio, provido de um potencial particular. No duelo,
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T-55 se saiu muito bem compondo como deveria, nivelado ao seu opositor humano. Todavia,
em um dado momento, precisou criar uma rima, e ao tentar pronunciar uma palavra, falhou:

Lactea nomen...
Lactea...
Lactea...
Lac...
Lac...
La-La-La-La (OLINTO, 1961, p. 63).

T-55 acabou por sofrer uma pane no sistema, tombando e indo ao chão. Tendo só oito
anos, ninguém compreendia a causa. Impactados pelo acontecimento, Flávio e Cláudio não
conseguiam compreender o que ocorrera, até que este último disse-lhe que T-55 havia
morrido, o que Flávio estranhou: Os Transitórios não morriam: eles deixavam de funcionar,
ficavam inutilizados (OLINTO, 1961, p. 64). O verbo “morrer” não era empregado para
robôs, mas naquele momento ambos reconheceram que a fraqueza, a ternura, matara T-55. E a
conclusão final veio de súbito, ao perceberem o óbvio:

- Qual era o nome de sua filha, Flávio? A que tinha a pele muito branca?
O Outro compreendeu. Baixou os olhos para T-55 e respondeu num longe de
voz:
- Chamava-se Láctea (OLINTO, 1961, p.65).

O som da palavra Láctea invocara no Transitório emoções, e a notoriedade deste fato


foi recebida com choque, fazendo-os perceber que ele realmente não era como os demais
Transitórios. Em sua totalidade, a existência de T-55 foi uma afirmação da primeira e segunda
leis de Asimov. Quanto a seu aspecto que lhe conferia “humanidade”, ao contrário de Robbie,
fora atestado somente no momento de sua morte, e modificou completamente as concepções
dos personagens principais, dando potencial aos robôs.

Considerações Finais

A relação entre as criações do ser humano e o ambiente em que ele está inserido está
diretamente ligada a condições históricas que se iniciam antes mesmo de sua existência
particular. Ao longo do tempo, o homem procura compreender a afinidade que existe entre os
processos históricos e sua própria cultura enraizada, necessitando para tanto, de fontes que por
vezes são “incomuns”, como as narrativas encontradas na ficção científica. Estas histórias por
vezes marginalizadas no campo literário podem revelar depois de um olhar apurado, um
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caminho para se compreender diferentes ideologias, através de pensamentos ocultos em


metáforas, comparações, ações ou papéis desempenhados por personagens/objetos, dentre
outros. Os Ícones apresentados por Wolfe nada mais são do que representações da realidade
humana, daquilo que tememos ou que apreciamos em nossa natureza e no que a cerca.
O Ícone do Robô em O Desafio e em Robbie é caracterizado por uma sujeição aos
princípios da robótica e ao ambiente afetuoso ou familiar onde é inserido, sendo desprovidos
de ações rebeldes em relação aos seus donos – o que não impede Robbie de ser temido, nem
os Transitórios de despertarem desconfiança quanto à sua previsibilidade. Aqui os autores
evidenciam a necessidade em reafirmar a humanização do robô, aproximando-o do homem a
fim de torná-lo aceitável social e individualmente, dando-lhe particularidades que
anteriormente, na maioria das criações de ficção científica, só eram implicadas a seres
humanos, como a aflição que por vezes é transmitida nas ações de Robbie e na morte de T-55.
O Ícone do Robô desempenha então com destreza o papel histórico e ideológico que
lhe é empregado, no momento em que se torna espelho das experiências humanas e quando
“funcionam como imagens culturais não só pela maneira com que nos lembram da instituição
social da escravidão, mas pelos temores da tecnologia” (WOLFE, 1946; in: GINWAY, 2005,
p. 43). O passado colonial do Brasil e dos Estados Unidos, suas diferentes experiências com a
escravidão, muito tem contribuído para a construção de narrativas que demonstram diferentes
aspectos sócio-culturais gerados a partir da historia.
No tocante a Ficção Científica, por exemplo, como ressalta Ginway, poucos críticos
exploram os paralelos entre robôs e escravos. Analisar a Ficção Científica Brasileira sob essa
perspectiva é de fundamental importância uma vez que nos permite examinar atitudes raciais
herdadas do passado, o que ficou evidenciado nas análises aqui realizadas.

Referências

GINWAY, Elizabeth M. Ficção Científica Brasileira – Mitos Culturais e Nacionalidade no


País do Futuro. Original: Brazilian Science Fiction. Tradutor: Roberto de Sousa Causo.
Editora Devir, São Paulo – SP: 2005.
WOLFE, Gary K. The Know and the Unknow – The Iconograpy of Science Fiction. The Kent
State University Press. Kent - Ohio: 1946.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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SANTOS, Naiara Sales Araújo. Brazilian Science Fiction and the Colonial Legacy. Editora
EDUFMA, São Luís – MA: 2014.
OLINTO, Antônio. O Desafio. In: Histórias do Acontecerá. Ed. 1. Edições GRD. Folha
Carioca Editora S/A. Rio de Janeiro – RJ: 1961.
ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. Tradução – Luís Horácio da Matta. 2ª ed. 1969.
FAUQUEZ, Anne-Claire. Quando o norte era escravista. Disponível em: <http://www2.uol.
com.br/ historiaviva/reportagens/quando_o_norte_era_escravagista.html> Acesso em: 02-11-
2014
GOULART, Michel. 25 curiosidades sobre a escravidão. 2012. Disponível em: <http://www.
historiadigital.org/curiosidades/25-curiosidades-sobre-a-escravidao/> Acesso em: 03-11-2014
TAVARES, Bráulio. O que é Ficção Científica? (1986). São Paulo: Brasiliense, 1992.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário
da língua portuguesa. 4a Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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QUANDO O HERÓI É O VILÃO: ANÁLISE DA DUPLICIDADE EM OBRAS


FANTÁSTICAS

Dayane Andréa Rocha Brito1


Lívia Fernanda Diniz Gomes2
Naiara Sales Araújo Santos3

Introdução

A temática relacionada à duplicidade sempre esteve presente na história da evolução


da cultura humana desde a Antiguidade, muitas vezes para a explicação de vários aspectos da
própria vivência em sociedade ou origem da mesma. Além disso, diversos mitos e lendas
propõem-se a justificar alguns fatores relacionados à criação da humanidade, transpassando
pelo desdobramento do homem, tanto psicológica quanto fisicamente, fazendo-o deparar-se
com seu duplo:

Diversos aspectos do duplo estão relacionados a antigas lendas germânicas


em que surgem espíritos protetores de alma, almas viajantes e presságios de
morte. As civilizações maias, astecas e incas cultuavam deuses com
sexualidade dupla dependendo deles para manifestações benéficas ou
maléficas em favor dos povos pré-colombianos. O deus mexicano Ometeotl
é chamado de deus dois. Na tradição cristã descrita pela Bíblia no livro do
Gênesis tem-se o homem sendo dividido para a criação da mulher. (BRAVO
apud DAMASCENO, 2010, p.12)

Com o passar dos séculos, a mitologia tornou-se um dos elementos para a construção
do conhecimento, passando a engendrar em vários campos das artes, bem como a literatura,
que sempre esteve intrinsecamente relacionada à evolução da humanidade, apresentando as
problemáticas relacionadas à psicologia humana. Desta forma, muitas obras literárias se
propuseram a tratar do duplo, denotado sob as diversas estéticas literárias existentes, sendo o
tema tratado sob as perspectivas e características de cada período. Na literatura fantástica, este
tema configura-se como um dos elementos que provocarão a hesitação no leitor,
representando, em inúmeros casos, aspectos da dualidade da psique humana, sob as

1
Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Maranhão e membro do Grupo de
Pesquisa Ficção Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
2
Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Maranhão e membro do Grupo de
Pesquisa Ficção Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
3
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana de Londres (2013), professora de
Literatura Inglesa pela Universidade Federal do Maranhão e coordenadora do Grupo de Pesquisa Ficção
Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas na Era Digital (FICÇA).
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dicotomias bem/mal, físico/espiritual, sonho/realidade, consciente/inconsciente. Segundo


Todorov (1975), em sua obra Introdução à Literatura Fantástica:

[...] O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as


leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O
conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e de imaginário.
(TODOROV, 1975, p.31)

Na psicologia, a temática foi retratada e analisada por diversos estudiosos da área,


havendo várias justificativas para o desdobramento do indivíduo. A psicologia analítica do
psiquiatra suíço Carl Jung, por meio de seus arquétipos, utilizou-se do tema para tratar do
consciente e inconsciente humano, sendo o arquétipo Sombra designado à manifestação
daquilo que condiz ao inconsciente, representando, desta forma, sentimentos e pensamentos
que o indivíduo reprime na tentativa de manter-se de acordo com os padrões e normas
impostas pela sociedade.
Diante disto, o presente trabalho visa fazer um estudo da duplicidade humana,
baseando-se em obras fantásticas, para tratar do desdobramento do indivíduo como resultado
da manifestação de seu inconsciente. Para tal, será feita uma análise arquetípica de
personagens fantásticos que acabam por projetar sua inconsciência no ser resultado dessa
fragmentação, que corresponderá a seu duplo negativo ou positivo.
Como objeto de estudo escolheu-se personagens como William Wilson, de obra
homônima e o Padre Ângelo, de A Mortalha de Alzira. Nessas obras serão apresentadas
diferentes manifestações do inconsciente e seus diferentes desdobramentos,
consequentemente.
Portanto, o estudo será apresentado da seguinte forma: a primeira sessão será
designada aos pressupostos teóricos para a fundamentação do duplo enquanto manifestação
do arquétipo Sombra no indivíduo, bem como a que confirmará a presença do mesmo na
literatura, e a segunda sessão ficará destinada às análises das obras em que os personagens
supramencionados inserem-se.

O arquétipo sombra: o duplo na psicologia e na literatura fantástica

A literatura tem incorporado ou servido de base para estudos de muitos aspectos que
envolvem o lado subjetivo humano relacionado ao seu subconsciente. Segundo Bravo apud
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Damasceno (2010), a relação entre psicanálise e literatura intensificou-se desde o século XX,
relacionando-se com as questões voltadas para a dualidade de consciência. Muitos psicólogos
e psicanalistas também têm estudos pautados na temática do duplo. Alguns, como Otto Rank,
sugerem que a dualidade na literatura é fruto também da mente dúbia dos próprios autores.
Assim, sua pesquisa volta-se também para os próprios autores, justificando a necessidade dos
próprios em desdobrar-se.
Para a teoria psicanalítica de Carl Jung, a manifestação dessa dualidade está ligada ao
lado sombrio do inconsciente humano, representado pelo arquétipo da Sombra, constituindo-
se de pensamentos ocultos pelo indivíduo, bem como de "qualidades e atributos
desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem, sobretudo à esfera
pessoal e que poderiam ser conscientes”, tal como ressalta “O processo de individuação”,
escrito pela Drª. Marie Louise von Franz para O Homem e seus símbolos (1961), obra com
autoria de Jung e colaboradores. E conclui: "Portanto, seja qual for a forma que tome, a
função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar, precisamente, os traços de
caráter que mais detestamos nos outros." (FRANZ apud DAMASCENO, 2010, p. 26)
Logo, o arquétipo Sombra seria a representação dos sentimentos obscuros,
comportamentos negativos que o indivíduo tentaria reprimir a fim de fazer com que eles não
interfiram em suas relações sociais, portanto, estaria relacionado ao conjunto de normas
estabelecido coletivamente, o que justifica a sustentação do arquétipo dentro do inconsciente
coletivo.
Joseph Campbell, mitólogo e autor de O Herói de Mil Faces, foi deveras influenciado
pelos estudos de C. G. Jung na construção de sua obra mais conhecida e influente. Dentre os
diversos arquétipos e imagens arquetípicas, Campbell trata da questão do duplo enquanto
oposto ao herói, através do exemplo do mito sumeriano que trata das deusas irmãs e inimigas
Inana e Ereshkígal, e do acontecimento do seu confronto:

Inana e Ereshkigal, as duas irmãs, luz e trevas respectivamente, representam,


juntas — nos termos da antiga simbologia —, a mesma deusa dividida em
dois aspectos; seu confronto resume todo o sentido do difícil caminho de
provas. O herói, deus ou deusa, homem ou mulher, a figura de um mito ou o
sonhador num sonho, descobre e assimila seu oposto (seu próprio eu
insuspeitado), quer engolindo-o, quer sendo engolido por ele. [...] Então,
descobre que ele e seu oposto são, não de espécies diferentes, mas de uma
mesma carne. (CAMPBELL, 1995, p. 61)
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Já Christopher Vloger, escritor e roteirista de Hollywood, escreve A Jornada do


Escritor, amplamente influenciado por Jung e Campbell – como ele mesmo bem o diz no
prefácio de sua obra. Nela, Vloger trata da Jornada do Herói e dos arquétipos presentes nela:
tipos de personagens que possuem funções específicas na sua interação com o herói. Por
vezes, essas funções chegam a ser exercidas pelo próprio herói, demonstrando como ele é
capaz de ter várias facetas, de fato. Dentre os sete mais comuns e recorrentes, o autor destaca
o arquétipo da Sombra.

O arquétipo conhecido como Sombra representa a energia do lado obscuro,


os aspectos não-expressos, irrealizados ou rejeitados de alguma coisa.
Muitas vezes, é onde moram os monstros reprimidos de nosso mundo
interior. As Sombras podem ser todas as coisas de que não gostamos em nós
mesmos, todos os segredos obscuros que não queremos admitir, nem para
nós mesmos. As características a que renunciamos, ou que tentamos
arrancar, ainda sobrevivem e agem no mundo das Sombras do inconsciente.
[...] A face negativa da Sombra, nas histórias, projeta-se em personagens
chamados de vilões, antagonistas ou inimigos. (VLOGER, 2006, p.83)

Uma das funções dramáticas da Sombra é trazer o que há de melhor no herói através
do desafio. Nas palavras de Vogler, “Costuma-se dizer que uma história é tão boa quanto seu
vilão, porque um inimigo forte obriga o herói a crescer no desafio.” (VLOGLER, 2006, p.84).
O autor ressalta ainda que a Sombra tanto pode ser uma personagem ou força externa ao
herói, como pode ser uma face dele mesmo que é reprimida para que seu lado bom se
sobressaia. Nisto, usa como exemplo a obra O Médico e o Monstro, de Stevenson.
No que tange ao fantástico, pode-se dizer que não há realidade absoluta, o que há, na
verdade, são relações entre o consciente e inconsciente, através das imagens mentais, como
observado por Jung:

Longe, portanto, de ser um mundo material, esta realidade é um mundo


psíquico que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas acerca da
verdadeira natureza da matéria. Só o psíquico possui uma realidade imediata,
que abrange todas as formas, inclusive às idéias e pensamentos “irreais”, que
não se referem a nada de exterior. (RODRIGUES, 2005)

Segundo Rodrigues (2005), havendo uma ambiguidade acerca da origem de uma


imagem mental, se esta seria proveniente de mundo externo (percepções) ou interno
(sensações, imaginação), surge, então

o estado de hesitação e simultaneidade pelo qual se caracteriza, em termos


psicológicos, a fantasia. Essa impossibilidade de distinção pode ocorrer em
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estados alterados de consciência ou então pela projeção: um complexo


afetivo (libido) associado a um objeto invade a estrutura consciente devido a
repressão unilateral (a paixão é um exemplo). (RODRIGUES, 2005)

Segundo o autor supramencionado, essa hesitação real é a mesma hesitação do texto


fantástico, explicitada por Todorov. Ele ainda ressalta que

A oscilação entre uma explicação racional e conhecida (consciente) e a


aceitação irracional de um evento estranho às leis da natureza (inconsciente)
acaba promovendo a simultaneidade desses aspectos. Além disso, para que
exista a hesitação é necessário que o leitor “participe” do texto e ao mesmo
tempo perceba seu papel de receptor. Portanto o leitor não poderia
interpretar o texto alegoricamente, o que o colocaria muito distante da
narrativa, nem poeticamente, o que impediria o distanciamento necessário.
(RODRIGUES, 2005)

Portanto, as manifestações do inconsciente estariam intimamente relacionadas aos


elementos que formarão o universo propício para a formação do fantástico, pois,

Quanto mais limitado for o campo consciente de um individuo, tanto maior


será o número de conteúdos psíquicos (“imagos”) que se manifestam
exteriormente, quer como espíritos, quer como poderes mágicos projetados
sobre vivos (magos, bruxas). Num estágio superior de desenvolvimento,
quando já existem representações da alma, nem todas as imagens continuam
projetadas (quando a projeção continua, até mesmo as árvores e as pedras
dialogam); nesse novo estágio, um complexo ou outro pode aproximar-se da
consciência , a ponto de não ser percebido como algo estranho, mas sim
como algo próprio. (JUNG apud RODRIGUES, 2005)

Logo, as realidades psíquica e ficcional vêm dialogando e confrontando os limites do


real, estabelecidos por padrões estabelecidos, representando, ainda, uma tentativa de elucidar
um elemento desconhecido ou em processo. A literatura fantástica seria, então, a consciência
desse processo, colocando questões à própria literatura diante da realidade.

O duplo e o arquétipo sombra na literatura: as análises

O Duplo em William Wilson: o caso de William Wilson e seu homônimo

Apesar de frequentemente relacionada ao lado negativo dos seres, a sombra terá um


novo aspecto desse arquétipo a ser explicitado nesta análise através das personagens-título do
conto de Edgar Allan Poe. Conforme é ressaltado em A Jornada do Escritor, “A Sombra
também pode abrigar qualidades positivas que estão ocultas ou que rejeitamos por um motivo
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qualquer.” (VLOGER, 2006, p.83). Assim sendo, a Sombra também pode ser a projeção de
aspectos positivos, porém não desenvolvidos por motivos diversos. Conforme se pode ver a
seguir:

Como outros arquétipos, as Sombras podem também expressar aspectos


positivos, e não apenas negativos. A Sombra do psiquismo de alguém pode
ser alguma coisa que foi reprimida, negligenciada ou esquecida. A Sombra
abriga os sentimentos sadios e naturais que alguém considera que não
deveríamos mostrar. [...] A Sombra também pode ser constituída por um
potencial inexplorado, como a afeição, a criatividade ou a capacidade
intuitiva, que ficou sem se expressar. "O caminho não seguido", as
possibilidades da vida que eliminamos, ao fazermos escolhas em diferentes
estágios, tudo isso pode se reunir na Sombra, fermentando, até ser trazido à
luz da consciência. (VLOGER, 2006, p.86)

O duplo do narrador William Wilson, de mesmo nome, se encaixa no aspecto da


Sombra enquanto soma dos aspectos positivos que poderiam ter sido desenvolvidos pelo
indivíduo, mas foram reprimidos. Essa descoberta é feita gradualmente ao longo da narrativa,
à medida que o próprio William Wilson narrador confessa e explicita sua relação com seu
duplo. Ele admite ser um ser humano ruim, à medida que chama a si mesmo de “o horror e a
abominação do mundo” (POE, 2008, p.234). Ao tentar justificar seus atos, afirma que “A
corrupção, em geral, atinge os homens gradualmente, mas de mim a virtude separou-se de
uma vez, como se fora um manto” (Idem). Ou como se, desprendendo-se dele, tornar-se-ia um
ser à parte: seu duplo.
Outro argumento do narrador diz respeito ao fato de ser ele de uma família conhecida
por seu temperamento ruim e rara imaginação, e que seus pais nada fizeram para impedir que
ele se desenvolvesse de forma similar. Assim, na época em que frequentava a escola, William
Wilson dispunha de certo poder sobre grande parte de seus colegas:

Meu caráter ardente, entusiasta e dominador deu-me uma situação


preeminente entre meus colegas e, gradualmente, ascendência poderosa
sobre todos os que eram mais novos ou da mesma idade que eu; sobre todos,
exceto um. Era um aluno que, sem ter comigo qualquer parentesco, tinha o
mesmo nome de batismo e o mesmo nome de família [...] recusava, enfim,
suportar a minha ditadura e manifestava-o sempre que lhe era possível.
(POE, 2008, p.238-239)

Esse outro William Wilson rivalizava com o narrador em tudo, e se mantinha no


mesmo nível. O narrador, porém, o considerava superior, já que aquele fazia tudo com
naturalidade, enquanto este se esforçava demasiadamente para sempre alcançá-lo. Uma única
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desvantagem esse duplo possuía. Conforme o próprio narrador o diz: “[...] qualquer outro
antagonista menos encarniçado do que eu tê-lo-ia respeitado. [...] Quando falava, a sua voz
não passava de um murmúrio.” (p.240).
Conforme ressaltado no início, à medida que a narrativa se desenvolve, descobre-se
mais e mais semelhanças entre o duplo e o narrador: “[...] soube casualmente que meu
homônimo nascera no dia 19 de janeiro de 1813 e, por interessante coincidência, esse dia é
precisamente aquele em que nasci.” (p..239); “Por essa época, não descobrira eu ainda o fato
notável da igualdade das idades; percebia, no entanto, que tínhamos a mesma altura, e cheguei
até a descobrir certa semelhança de fisionomia [...]” (p. 241); ao entrar no quarto de seu duplo
durante a noite para pregar-lhe uma peça, o choque diante da igualdade : “O mesmo nome! Os
mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia!” (p.244)
O narrador ressalta que, ainda que houvesse rivalidade entre os dois, a atitude de seu
duplo sempre continha ares de proteção e afeição. Diversas vezes, ainda na época de escola,
sua Sombra intervinha em seus planos maliciosos com conselhos.

Quero, contudo, fazer-lhe justiça, depois de tantos anos, de confessar que


todos os conselhos sugeridos pelo meu rival eram cheios de bom senso [...] e
eu seria hoje um homem melhor e, por isso mesmo, mais feliz, se tivesse
seguido os conselhos que aquelas sensatas sugestões continham [...] (p.242)

Aconselhar seu homônimo de maneira misteriosa enquanto este praticava atos


reprováveis tornou-se prática comum do duplo, notada, porém veementemente ignorada pelo
narrador. Uma característica interessante do duplo diz respeito ao fato de sempre aparecer
utilizando roupas idênticas ao do narrador, mesmo quando se tratava de uma peça
personalizada e única:

O talhe fora inventado por mim, porque nessa altura me preocupava muito
com essas futilidades do luxo. [...] Foi por isso que, quando o Sr. Preston me
estendeu a capa que levantara do chão [deixada pelo outro William Wilson],
eu vi, com um espanto que melhor se diria terror, já ter no braço a que me
pertencia, embora aquela fosse em tudo semelhante à minha, mesmos nos
pormenores mais ínfimos.[...]” (p.250)

Já que seu homônimo não ouve suas advertências, o duplo denuncia-lhe diante de
todos quando trapaceia num que envolve quantias altas e a falência do outro jogador. Desse
momento em diante, o William Wilson narrador vê-se sempre na condição de fugitivo de sua
Sombra, que sempre aparece para estragar suas ações maldosas. Por fim, farto dessa dinâmica
de rato e gato, William Wilson narrador decide matar sua Sombra, aquele que durante toda a
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narrativa funcionou como sua consciência, o lado melhor de si. Na declaração final de seu
duplo, o narrador faz essa constatação:

Era Wilson, mas um Wilson que já não murmurava ao falar. Pelo contrário,
falava tão alto que tive a impressão nítida de ouvir minha própria voz
dizendo:
- Venceste, e eu pereço. Mas daqui para frente também tu estarás morto.
Morreste par ao mundo, para o céu e para a esperança! Existias em mim.
Olha bem agora para a minha morte, e nessa imagem, que é a tua, verás o teu
próprio suicídio! (p.253)

Dentre as sete modalidades de duplo estabelecidas por Keppler em seu livro The
literature of the second self (1970), podemos dizer que o homônimo de William Wilson
encaixa-se na categoria de salvador: ele não tende à maldade, pelo contrário, suas tentativas
de alertar William Wilson de seu comportamento imprudente sempre são feitas com o intuito
de fazer com que ele não prejudicasse as pessoas ao redor e a si mesmo.

O Duplo em A Mortalha de Alzira: Padre Ângelo e seu homônimo

Padre Ângelo faz parte da obra A Mortalha de Alzira, do maranhense Aluísio


Azevedo. Esta obra data do final do Século XIX, período de fortes críticas à Igreja como
entidade que impedia o livre pensamento. Dentro deste contexto, Aluísio Azevedo utiliza sua
obra para também criticar a instituição, tanto pelo fato de impedir o pensamento livre, quanto
pelos escândalos que a envolviam. Isto posto, pode-se dizer que Ângelo será o personagem
que sustentará esta crítica, visto que fora criado para ser um padre imaculado, mas, em dado
momento, acaba por se deparar com vários conflitos em seu inconsciente, relacionados ao que
lhe era predestinado e a sentimentos que não condiziam com a sua vida paroquial.
Padre Ângelo fora abandonado às portas do seminário e fora criado por um padre
chamado Ozéas, como forma de penitência deste, por uma vida paroquial pautada em
escândalos. Isto justifica a tentativa de Ozéas em tornar Ângelo um padre sem nenhuma
mácula.
Logo no início da obra, são ressaltadas as características que lhe dão uma aparência
divinal:

Parecia um arcanjo em dulcíssimo com a Divindade. Dir-se-ia que ele, de


um instante para outro, ia desprender-se da terra e partir lentamente para
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Deus, como a própria súplica que lhe agitava as rosas da boca e se evaporava
como um perfume. (AZEVEDO, 2000, pág. 13)

No entanto, no decorrer da trama, o personagem é tomado por pensamentos que nunca


havia tido antes, assim que conhece a jovem Alzira, uma cortesã, com uma vida regada a
luxos e à materialidade, apresentando um contraponto à personalidade de Ângelo. Ela também
se apaixona por ele, porém, até então, os dois não chegam a consumar o que sentem, de fato.
A duplicidade de Ângelo se manifestará quando Alzira, acometida por uma doença terminal,
vem a falecer e o padre é chamado para dar-lhe a extrema-unção. Ao vê-la desfalecida,
vestida em sua mortalha, Ângelo acaba por adormecer, e, durante o sono, vê sua amada
levantar-se e é no sonho que os dois consumam seu amor.
A partir deste momento, os dois sempre se encontram nos sonhos do padre,
vivenciando momentos que nunca haviam desfrutados juntos. Ângelo descobre o mundo dos
mortos e também sentimentos negativos que nunca houvera manifestado. Nota-se, então, que
a sombra do padre revela-se em seus sonhos, funcionando como um reflexo de seu próprio
inconsciente. O padre passa seus dias ansiando pela hora de dormir, para encontrar Alzira e
manifestar o lado negativo – perante à sociedade – que reprime enquanto padre, até ser
confrontado por sua própria sombra:

— E que tens tu com isto, hipócrita?... interrogou o Ângelo boêmio,


recuperando o sangue frio. Acaso vou eu tomar-te contas das ridículas
pantominices que levas a praticar durante o dia em Monteli?... Interrompo
porventura a farsa das tuas missas, quando charlataneias o teu irrisório latim
e ergues ao ar, espetaculosamente, dois dedos de vinho e três de obreia,
proclamando que é sangue e corpo de Cristo... o que vais ingerir?... Já fui eu
lá dizer-te ao ouvido que isso é uma truanice, tão digna de desprezo quanto
de lástima?... Já fui eu lá insinuar aos teus devotos que os teus milagres são
mentira, como é mentira a tua fé! como é mentira a tua ciência, como é
mentira a tua religião?... Não me venhas pois aborrecer, onde não és
chamado, e volta para a tua pestilenta aldeia, que tens lá quem precise dos
teus desvelos e dos teus conselhos.(AZEVEDO, 2000, p. 30)

O confronto termina em um embate físico, denotando o quanto seu duplo, distanciava-


se do que o padre era na realidade e o quanto ela o dominava:

O desarmado soltou um formidável grito de desespero e engalfinhou-se com


o outro Ângelo, rolando ambos no chão, por entre os cadáveres
ensanguentados, enquanto um sino ao longe principiava a badalar, chamando
para a missa, e a aurora acordava a natureza, cantando um hino de gorjeios e
murmúrios de floresta. O infeliz vigário acordou afinal, na vida real,
banhado de suor, sufocado e aflito, a debater-se no seu leito com a própria
sombra, que o estrangulava. (AZEVEDO, 2000, p. 49)
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Além da dualidade mostrada na própria personalidade de Ângelo, a duplicidade


sonho/realidade é constante na obra, mantendo a dúvida, no padre, acerca das suas próprias
experiências:

– Meu Deus! Onde começa o sonho?... Onde termina a realidade? ... Alzira
teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro? ... (Ozéas
redobrou de atenção.) Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em
formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos
que nos levaram a mundos desconhecidos para mim? ... Teria eu percorrido
com ela todas essas paragens maravilhosas? ... Teria eu provado de todos os
venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?... (AZEVEDO,
2000, p. 40)

As dúvidas de Ângelo acerca de seu próprio eu e suas vivências, bem como os limites
entre fato e fantasia, leva-o a fim trágico, quando este decide tirar sua própria vida, atirando-
se de um penhasco, após matar seu próprio tutor. Percebe-se então, nesta obra, a presença de
um duplo que se originou de uma fragilidade do eu original (o falecimento da amada),
representando a manifestação do inconsciente do personagem em relação ao seu desejo de
poder reencontrar Alzira e, assim, poder tornar o seu amor carnal. O duplo, portanto, tem um
papel de tentador, dentre as modalidades referidas por Keppler (1970), visto que Ângelo em
sua figura boêmia termina por influenciar o padre em sua vida sem máculas, fazendo com que
suas dúvidas acerca de suas crenças tornassem muito maiores, levando-o aos conflitos
existenciais que culminarão na sua morte.
Neste caso, o duplo tem a função oposta da que a do duplo da obra de Poe. Se na obra
anteriormente analisada a sombra do personagem funcionava como a manifestação do
inconsciente diante de atos condenáveis, numa tentativa de corrigi-los, na obra brasileira a
Sombra de Ângelo é a manifestação de sua imperfeição, de seus sentimentos reprimidos.

Considerações Finais

A duplicidade humana vem sido abordada desde a Antiguidade, sendo justificada ou


servindo de justificativa para a origem das sociedades ou mesmo alguns aspectos de diferentes
contextos sociais. A psicologia e a literatura se utilizaram do tema na tentativa de
compreender algumas características humanas.
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O psiquiatra Carl Gustav Jung, em sua psicologia analítica, utilizou o arquétipo


Sombra para tratar dos sentimentos, sejam eles positivos ou negativos, reprimidos pelos
indivíduos. Desta forma, no estudo arquetípico de Jung, a Sombra pode ser designada como o
duplo. Na literatura fantástica o tema tornou-se um dos elementos para desencadear aspectos
entre os limites do real e da fantasia.
No presente trabalho procurou-se abordar diferentes formas de manifestação do duplo,
sob a luz do estudo arquetípico de Jung, nas obras William Wilson e A Mortalha de Alzira.

Referências

AZEVEDO, Aluísio. A Mortalha de Alzira. São Paulo: FTD, 2000.


CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
POE, Edgar Allan. William Wilson. In:______. Histórias extraordinárias/Edgar Allan Poe;
seleção, apresentação e tradução José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
DAMASCENO, João Emeri. Os duplos em Dostoiévski e Saramago. Disponível em:
http://btd.unisc.br/Dissertacoes/JoaoEmeri.pdf. 2010. Acesso em: abril, 2014.
RODRIGUES, Jefferson Vasques. O fantástico e a fantasia. Disponível em:
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/f00002.htm. 2005. Acesso em: abril,
2014.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 1975.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores /Christopher
Vogler; tradução de Ana Maria Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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NAS TEIAS DO DISCURSO E DA CULTURA: LITERATURA, CINEMA, MÚSICA E


SOCIEDADE

LITERATURA, SOCIEDADE E DISCURSO: LETRAS DE SILÊNCIO,


SILENCIAMENTO E OPRESSÃO EM VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS

Cristiano Cezar Gomes da Silva1


UNEAL

Na verdade, mesmo o silêncio pode ser considerado um discurso, enquanto


refutação ao uso que os outros fazem da palavra; mas o sentido desse
silêncio-discursivo está nas suas interrupções, ou seja, naquilo que de tanto
em tanto se diz e que dá um sentido àquilo que se cala.
Italo Calvino, Palomar.

Nesta investigação, através dos escritos de Graciliano Ramos, em Vidas secas,


procuramos evidenciar as marcas dos efeitos de sentido e dos embates ideológicos que
aconteciam durante os anos de 1930 no Brasil, percebendo alguns conflitos e ambiguidades da
sociedade daquele período. Ao analisarmos o objeto de nossa pesquisa, procuramos uma
reflexão, discussão, correlação com as teorias, o momento histórico e a sociedade circundante
do período. Seguimos na direção da análise, a partir da historicidade dos escritos de
Graciliano Ramos, interagindo com outros saberes. São essas contradições, engajamentos,
tensões, denúncias e indícios sobre a década de 1930 que nos impulsionaram a enveredar
nessa investigação sobre os espelhos da história na escritura de Graciliano Ramos em seus
múltiplos sentidos na cena político-literária.
O conjunto de sequências discursivas recortadas de Vidas secas refere-se ao silêncio e
ao silenciamento, visto como o ato arbitrário de silenciar, ambos bem presentes durante o
governo Getúlio Vargas. Tentamos demonstrar uma relação existente entre a escritura do
sujeito-autor, Graciliano Ramos, e os atos de silenciamento durante a era Vargas no Brasil
que foram representados simbolicamente na obra literária em estudo, como na sequência
discursiva (SD) a seguir: (SD-1) – “Como não sabia falar direito, o menino balbuciava
expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do
vento, o som dos galhos que rangiam na caatinga, roçando-se” (RAMOS, 2000, p. 59, grifo
nosso).

1
Professor Adjunto na Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL
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Na SD-1, vemos uma representação literária sobre o silenciamento e a falta de


domínio da linguagem em que o menino mais velho “balbuciava expressões complicadas,
repetia as sílabas, imitava os berros dos animais”. A sequência evidencia a escassez das
palavras, uma falta, uma emergência do silêncio constitutivo (ORLANDI, 1990, p. 49) que
restringe o sentido do que é nomeado. Traz, ainda, evidenciação da circunscrição do sentido
pela escassez das palavras. Remete-nos à restrição do sujeito por essa escassez e ausência que,
ao mesmo tempo, o reduz no contexto cultural, social e político, aponta uma subjetivação de
um sujeito que representa uma classe social marginalizada. A ausência de uma linguagem
“culta” o anula desse contexto cultural letrado, mas o inclui em outro contexto que o
subjetiva: os marginalizados, porque iletrados.
A materialidade discursiva do enunciado “como não sabia falar direito” aponta para o
silêncio constitutivo, que limita as possibilidades do sujeito enunciar. Nesse caso, um silêncio
causado pela interdição do não acesso à linguagem “culta”, dos letrados. Essa falta se
apresenta como uma marca do contexto social e cultural do período, caracterizado pela
dificuldade de acesso à educação formal ofertada pelo Estado. Assim, esse sujeito sequer tem
a oportunidade de se inserir no mundo letrado, pois não domina a leitura e restringe a sua
capacidade de atribuição de sentidos, pois, como assinala Ivone Lucena,

O engendramento do sentido não se resume apenas na relação que se possa


fazer com o saber armazenado, mas, sobretudo na busca de novos saberes
através da leitura. [...] A leitura nos “desvenda” o olhar, e é através dela que
crescemos, descobrimos, exploramos, conquistamos, mergulhamos no
desconhecido, e é também por meio dela que adquirimos a escritura
(LUCENA, 2004, p. 87).

Vemos um sujeito que enuncia de um lugar social: o lugar dos marginalizados, dos
que não tiveram a oportunidade de frequentar escola, acentuando a sua dificuldade de
“desvendar” e explorar a realidade em sua volta. A impossibilidade de acesso à educação
formal, manifesta na escritura de Graciliano Ramos, quando as personagens de Vidas Secas se
enunciam do lugar do “iletrado”, denuncia o estado de abandono em que vivia a população
brasileira, sobretudo as moradoras dos rincões, durante a década de 1930. Esse silêncio
constitutivo presente na narrativa de Graciliano não é apenas decorrente da ditadura varguista,
mas, aponta para o abandono por completo, a falta de tudo. O não saber falar é uma marca
dessa falta.
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Vemos, ainda, a discursividade da SD-1 nos remeter à exterioridade da sua produção.


O momento socioeconômico, político e histórico de sua obra remonta ao período de Getúlio
Vargas, momento de silenciamento e de censura em que o Estado Novo, através do
Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, e do Departamento de Ordem Política e
Social – DOPS, controla o que pode e o que deve ser dito, aquilo que é possível dizer. A
propaganda é a grande aliada nesse propósito de construir uma imagem positiva do regime.
Para a historiadora Maria Helena Capelato,

O governo procurou ampliar a base de apoio através da propaganda política,


arma muito importante num regime que se volta para as massas. [...] A
criação do Departamento de Imprensa e Propaganda foi fundamental nesse
sentido. Ele tinha o encargo de produzir material de propaganda,
incentivando a produção de cartazes, objetos, espetáculos, livros e artigos
enaltecedores do poder (CAPELATO, 2003, p. 122-123).

O Estado Novo, através do DIP, institucionaliza a propaganda em que o Estado


aparece intimamente ligado à figura do presidente Getúlio Vargas. O DIP produz extenso
material de propaganda que tem como objetivo construir e reproduzir junto à população os
ideais varguistas em uma tentativa de obter apoio para sustentação do seu regime político.
Dentre o material produzido, encontram-se livros, livretos, revistas. Segundo Mônica Pimenta
Velloso, “muitas das organizações culturais do período vão ser incorporadas pelo governo,
como é o caso da Rádio Nacional (1940) e dos jornais A Manhã (Rio de Janeiro) e A Noite
(São Paulo)” (VELLOSO, 2003, p. 159), além do uso de manifestações artísticas, tais como,
música, pintura e cinema, dentre outras.
O Estado Novo controla a ordem do discurso, mediante um procedimento de exclusão,
bastante familiar: a interdição, a palavra proibida. Para Michel Foucault, o discurso se encerra
em uma ordem dada, em “que não se pode dizer tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005, p. 9). Nessa perspectiva, o
Estado Novo é quem interdita e silencia, controlando o que pode e deve ser dito, quem pode
ou não dizer algo. A discursividade presente na obra de Graciliano Ramos pode ser lida pelo
prisma da interdição e proibição das palavras, impostas pelo regime político de exceção
vigente durante parte das décadas de 1930 e 1940.
Essa proibição não se dá apenas pela violência física, ou pela repressão, mas pelo
abandono, pela indiferença, pela impossibilidade de acesso à educação, pela falta de
oportunidades para a ocorrência das transformações sociais, privilegiando, dessa maneira, a
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manutenção da ordem vigente. Não olvidamos que no período Vargas, aqui evocado, ocorreu
o Estado de exceção ditatorial vivido entre 1937 e 1945, com o fechamento do Congresso
Nacional e a suspensão das garantias individuais, dentre outras arbitrariedades naquele
período sombrio de nossa História.
A mímesis dos berros dos animais pelo menino mais velho, presente na SD-1, é uma
marca da condição de abandono e descaso com educação naquele período. Ao não saber falar
conforme a norma culta estabelecida e ao ter dificuldades de se expressar por ser analfabeto, o
enunciado dessa SD traz um contexto social no qual nem todas as pessoas tem acesso à
escola. A imitação dos elementos da natureza, como o barulho do vento e o som dos galhos
que rangiam na caatinga, representa, igualmente, a escassez do vocabulário do menino mais
velho. Encerra a miserabilidade em que vivia a família de Fabiano e traz indícios de como se
apresentava a conjuntura social daquele momento.
A SD-1 traz um reflexo do contexto social, político, econômico e cultural que
contribuía para a construção de sujeitos marginalizados como a família de Fabiano.
Personagens que espelham a conjuntura de uma sociedade que marginaliza a pobreza e
aprofunda as suas desigualdades. Ao imitar os animais, o menino mais velho observado na
SD-1, apresenta traços de uma miserabilidade humana que não tem casa, não tem moradia,
mostra a proximidade do homem com os animais, um homem que está sendo animalizado.
A escassez do vocabulário é trazida em outros trechos da escrita de Graciliano Ramos,
como veremos a seguir:

(SD 2): O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra,


pôs-se s contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão
minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se,
pois, de exclamações e de gestos [...] (RAMOS, 2000, p. 55-56, grifo nosso).

Pensando nesse contexto social, que é o cenário onde se desenvolve a história de Vidas
secas, encenando a pobreza, a miséria, a marginalização, o descaso, o sujeito-autor Graciliano
Ramos assiste às cenas horrendas da repressão, da tortura, do silenciamento, da prisão
arbitrária que experimenta em sua existência e representa em sua obra. Traz, na materialidade
textual da escritura, representações simbólicas que nos inquietam e nos remetem a analisá-las
como uma discursividade referente ao momento em que vive.
Assim, a partir do olhar trazido pelo sujeito-autor, que é interpelado pela ideologia que
o chama e o convoca a denunciar e a se contrapor a um governo autoritário, utiliza as letras da
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sua escritura a respeito da realidade a sua volta que afeta e constitui o seu texto. O sujeito-
autor Graciliano, analogamente a um pintor que pontilha e pinta o que observa, desliza as suas
mãos sobre o papel, produzindo a sua arte com a beleza de sua escritura, com a estética do
sublime, desveladora de uma realidade marcada pela violência. As luzes que iluminam o
quadro Las Meninas, de Velázquez, produzindo um efeito de sentido na sua produção
artística, analisada por Foucault, apresentam-se em Graciliano, metaforicamente, através da
exterioridade de sua obra. A luminosidade que esclarece, elucida e confere sentido à sua
escritura, podemos encontrar no momento político de sua produção – o Estado Novo.
O silenciamento vivido na exterioridade, durante a Era Vargas, deixa suas marcas na
discursividade da obra de Graciliano. O que não é falado significa, institui sentidos. O não
dito, em forma de silêncio, constitui os efeitos de sentido na discursividade. Ter o vocabulário
minguado traz um deslizamento de sentido que evoca o silêncio. Como vemos em Orlandi
(1990), essa forma do não dito é um viés cuja origem está no fato da linguagem ser política e
que todo poder se acompanha de um silêncio, em seu trabalho simbólico – uma política do
silêncio.
Nesse sentido, percebemos no silenciamento vivenciado no enunciado “Tinha um
vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca”,
recortado na SD-2, a presença de um silêncio constitutivo, cuja parte do sentido se apaga ao
se dizer. Ele é marcado por Fabiano buscar, em Seu Tomás da bolandeira, a sua fala, o seu
discurso, ou, ao menos, desejar buscar, apagando, desse modo, os sentidos que poderiam se
inscrever em sua fala. Em Vidas Secas, após ser preso por não saber se explicar, passar a noite
na cadeia, zangar-se, dar um pontapé na parede e gritar enfurecidamente, Fabiano, ao ser
interpelado pelo carcereiro, responde pela restrição imposta pela falta de letramento, que não
havia nada. Nesse episódio, há um desvelar do silêncio constitutivo, marcado no enunciado
presente na narrativa: “Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem
perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás
da bolandeira, contaria aquela história” (RAMOS, 2000, p. 34).
O silêncio de Fabiano se assemelha ao do discurso sobre a colonização do Brasil,
analisado por Orlandi (1990), no qual o colonizado não fala, é falado pelo colonizador. Da
mesma maneira, Fabiano não argumenta, não contradiz, a fala do outro sobre si prevalece,
estabelece-se como “verdadeira” e Fabiano vai para a cadeia, pois é falado pelo soldado
amarelo que o prendera e, por não saber se explicar, deseja que fossem perguntar a Seu
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Tomás que havia lido bastante. Vê-se, aqui, uma mazela da sociedade do período por não ter o
poder da linguagem para se defender. Isso mostra o quadro social em que se insere Fabiano,
como sujeito que ocupa o lugar do marginalizado, do discriminado, daquele que precisa de
outro para mediá-lo nas situações cotidianas.
Essa falta de letramento, manifesta na escritura de Graciliano Ramos, observamos
como um discurso antagônico em relação ao discurso produzido pelo Estado Novo. Há um
sujeito inscrito em uma formação discursiva (FD) de oposição ao regime estabelecido, ele
enuncia e contradiz aquilo que o regime diz. Como menciona Capelato, ao analisar o livreto O
Brasil, produzido pelo regime varguista, a educação é abordada da seguinte maneira:

O menino, para ser um bom brasileiro, deve também saber ler. Um homem
sem instrução é um homem infeliz... Por isso o governo não quer que haja
brasileiros que não saibam ler. Por que o governo não quer? Porque o
governo é amigo dos brasileiros e não gosta da ignorância (CAPELATO,
2003, p. 124).

Percebemos um claro contraste entre o “menino” mencionado no livreto do regime


varguista e o “menino mais velho” discursivizado em Vidas Secas. O “menino varguista”
deve saber ler para se tornar um bom brasileiro. Ele é idealizado, é pensado como um modelo,
pois o governo é amigo dos brasileiros. Já o menino, filho de Fabiano, sequer tinha acesso à
escola, nem seu irmão, sua mãe ou seu pai tiveram. Se por um lado, o livreto enaltece as
qualidades de ser “bom brasileiro”, em outra direção, o discurso contido nas narrativas de
Vidas Secas, sugere-nos a existência de outro Brasil, de outros brasileiros bem diferentes dos
idealizados pelo regime. Um Brasil dos infelizes, visto que no próprio enunciado varguista,
“um homem sem instrução é um homem infeliz”.
Desse modo, na obra de Graciliano Ramos, descortina-se o Brasil dos infelizes, cujo
discurso de Getúlio Vargas gostaria de escondê-lo, esquecê-lo, negá-lo. Há, então, uma
relação entre o papel do literato, do historiador e do analista do discurso, um entremeio entre
esses saberes. Pois, se para Jean-Paul Sartre (2004, p. 65), “o literato apresenta a possibilidade
de a sociedade contestar os valores e o regime estabelecidos”, para Peter Burke (2000, p. 89),
“uma das mais importantes funções do historiador é ser um lembrete daquilo que as pessoas
gostariam de ter esquecido”, enquanto para Michel Pêcheux (1988, p. 304), “ninguém pode
pensar por quem quer que seja, é preciso ousar pensar por si mesmo”. Na congruência dos três
pontos de vista, temos a importância do pensar e do agir mediante o universo e o alargamento
do horizonte possibilitado pelas diversas formas de linguagem.
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Seria coincidência a produção de uma obra literária cujas personagens não sabiam ler
e, por isso, eram exploradas, alijadas, excluídas na sociedade? Haveria alguma relação entre
os episódios narrados em Vidas Secas e a conjuntura política e social brasileira dos fins da
década de 1930? O vocabulário escasso, a pobreza, a miséria, a falta de acesso à educação,
por parte de Fabiano e sua família, marcam uma contraposição ao discurso do regime de
Getúlio Vargas, uma contestação, uma forma de pensar por si mesmo, um lembrete à
sociedade brasileira da década de 1930, mas que também se aplica à contemporaneidade.
O vocabulário da personagem menino mais velho “quase tão minguado quanto o do
papagaio que morrera no tempo da seca” (RAMOS, 2000, p. 55), presente na SD-2, aponta,
através do discurso presente na literatura, não apenas uma narrativa a ser lida pelo aspecto
estético e pela força da sua beleza literária ou pelo seu reconhecimento como clássico da
literatura brasileira, mas também como uma discursividade que satura de sentidos outros o
texto literário e que dialoga com o momento vivido pela sociedade brasileira.
Sociedade essa que se vê calada, silenciada pela recorrência das lembranças trazidas
pela memória das prisões arbitrárias e sem justificativa como a experimentada por Fabiano,
causada por “falta menor”. Nesse sentido, percebemos o silenciamento e a arbitrariedade,
marcados na discursividade da obra de Graciliano Ramos, relacionarem-se com o momento
vivido. Como aponta Eni Orlandi, “o silêncio não é visto apenas em sua negatividade, ele
significa, o seu não dizer contém sentido, é fundador, portanto, sustenta o princípio de que a
linguagem é política” (ORLANDI, 1990, p. 50-51). O silêncio da personagem Fabiano,
motivada por sua experiência anterior com a violência da prisão, significa o medo
simbolizado pela cautela de se expressar, de reivindicar, de falar aquilo que pensa sobre a
realidade, aquilo que experimenta e vivencia. Semelhantemente, à parte da sociedade
brasileira do período, Fabiano, como fruto das arbitrariedades sofridas, tornara-se passivo, não
reivindicava, silenciava, era silenciado. Esse silenciamento, observado metaforicamente na
literatura de Graciliano, portanto, traz marcas, pistas, sinais, vestígios da conjuntura política e
social brasileira da década de 1930.

Referências

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 12. ed. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio.
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SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Ática,
2004.
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tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. v. 2.
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CORREIO DAS ARTES: DISCURSOS E DISPUTAS NO CAMPO DE PRODUÇÃO


CULTURAL PARAIBANO

Laércio Teodoro da Silva


Universidade Federal de Pernambuco

Introdução

Em 27 de março de 1949 chegava às bancas, gazeteiros, ateliês e gabinetes de leitura


da Paraíba o primeiro número do suplemento literário Correio das Artes. O início da
circulação desse novo periódico foi celebrado por políticos, intelectuais, artistas e diversos
leitores da Paraíba e de outros estados da federação. Os números que se seguiram trataram de
evidenciar o entusiasmo em torno desse semanário. Considerando este contexto, procurar-se-á
entender o espaço ocupado pelo suplemento literário Correio das Artes na configuração do
campo de produção cultural no estado da Paraíba entre os anos de 1949 e 1965, que
circunscrevem a primeira fase de produção e circulação desse periódico, atentando para o
suplemento enquanto dispositivo que, dentro do campo cultural, construiu discursos que
buscaram legitimar um grupo e ideias em torno de um novo pensamento sobre as artes e a
cultura paraibana em detrimento das velhas formas.
O Correio das Artes surgiu como o suplemento literário do jornal A União1. Em meio
a pausas forçadas, o Correio das Artes é, hoje, o mais antigo periódico literário em circulação
no Brasil. Nesses 63 anos, encontramos duas grandes fases de sua circulação: de 1949 à 1965
e de 1975 à 2013 – sendo que em 2011 assumiu o formato de revista. A sua defesa em torno
das artes da Paraíba é apresentada como seu principal lema desde sua fundação.
A primeira fase de circulação do Correio das Artes abarca um contexto singular de
transformações na relação entre literatura e imprensa, passando pela emergência de discursos
em torno das vanguardas que refletem e constroem novos rumos para o modernismo no
Brasil. Os primeiros números deste suplemento apresentam um discurso peculiar em torno das
concepções de arte, e que evidenciava embates em torno de qual expressão representaria a arte
paraibana.
Em suas páginas passaram nomes como Edson Régis, José Américo de Almeida,
1
O jornal A União é uma publicação oficial do governo do estado da Paraíba. Foi fundado no século XIX, pelo
presidente da província, Álvaro Machado, e começou a circular no dia 2 de fevereiro de 1893. Em 2012 A União
deixou de ser um jornal diário e passou a circular semanalmente.
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Linduarte Noronha, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Jomard Muniz de Britto, Sérgio de
Castro Pinto, Eulajose Dias de Araújo, Violeta Formiga, Bráulio Tavares, entre tantos outros
nomes. É espaço para publicação de obras de autores consagrados, como também espaço
quase obrigatório para a projeção dos novos autores e artistas da Paraíba.
O primeiro editorial, assinado por Edson Régis, traz-nos diversas informações sobre a
natureza da publicação e do seu contexto de surgimento:

Entregamos hoje aos nossos leitores o primeiro número do Correio


das Artes, suplemento dominical de A União, com que tentamos emprestar
uma contribuição ao atual movimento literário e artístico do Brasil.
A Paraíba, que estava se ressentindo da existência de um órgão dessa
natureza, para sua completa integração na vida cultural do país, contará de
hoje por diante com o Correio das Artes, para divulgar os seus valores mais
representativos na literatura e na arte (...).

O fato de ressentir-se de uma publicação literária e da necessidade de se integrar ao


momento cultural do país é indício para compreendermos o contexto de criação desse
suplemento literário. Ele surge dentro de um movimento de agitação em torno dessas
publicações no Brasil. Alzira Abreu (1996) compreende esse processo como reflexo da
tentativa de se criar espaços específicos para divulgação de obras e textos literários e das artes
em geral, visto que o jornalismo brasileiro passava por transformações significativas,
tornando-se cada vez mais informativo e objetivo. No decorrer da década de 1940, os poemas
e crônicas que abriam as primeiras páginas, como no jornal A União, bem como os demais
gêneros literários que ocupavam as folhas dos jornais, foram dando espaço para manchetes de
capa e noticiários. Assim, o jornal diário não atendia mais a demanda do texto literário,
processo este que pode ser entendido como de desliteraturização (TRAVANCAS, 2001, 17).
Porém, um movimento contrário também se fortifica. As letras e as artes se projetaram
nos jornais no Brasil desde meados do século XIX e, nesse novo contexto, estabeleceram, por
meio dos suplementos, novas relações com a imprensa. A década de 1950 assistiu a profusão
desses suplementos. O Correio das Artes demonstra como o seu surgimento foi recebido em
outros suplementos, bem como anuncia a criação de periódicos literários pelo Brasil e o
recebimento de novos números dos que já existiam. Vemos tanto a criação, como a interação
que se dava entre esses suplementos constituindo uma rede de sociabilidade entre literatos e
jornalistas. É possível perceber o contato entre o Correio das Artes com suplementos de
Pernambuco, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo.
No artigo Letras Paraibanas, publicado no segundo número do Correio das Artes, em
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03 de abril de 1949, Aderbal Jurema expressa o seu entusiasmo diante do primeiro número do
suplemento, bem como fala da movimentação literária da metrópole.

Em meio à movimentação dos suplementos literários da Metrópole e das


províncias, a Paraíba estava como que esperando uma oportunidade para
entrar de rojão. E é o que ocorre diante do primeiro número do Correio das
Artes, suplemento literário de A União que obedece à orientação do poeta
Edson Régis, atual secretário desse matutino paraibano.
Numa feição de caderno, um tanto parecido com o Letras e Artes do Rio, o
Correio das Artes apareceu com uma força intelectual capaz de retomar a
estrada das boas revistas da Paraíba, a começar pela velha e sempre
lembrada Era Nova.

Novamente percebemos uma fala que ressente-se da ausência de uma publicação para
as artes paraibanas. Aderbal Jurema compara a chegada do Correio das Artes à revista Era
Nova. Esta revista circulou na Paraíba de 1921 à 1926 e foi um importante veículo para os
debates de ideias em torno da arte moderna na Paraíba, tendo Joaquim Inojosa como
divulgador e defensor das ideias do movimento de 1922. Essa comparação empreendida por
Jurema não é gratuita e não se encerra apenas no fato de situar o novo suplemento numa
história marcada por publicações que a antecederam, – o próprio jornal A União já havia
publicado revistas e suplementos, como a própria Era Nova e as páginas dominicais
Literatura e Arte, que circulou em 1947. Acredito que a fala de Jurema pretendeu alinhar o
Correio das Artes a um discurso que marcará os primeiros anos do suplemento: o debate em
torno do modernismo.
Os entusiastas do suplemento o concebiam como o veículo de expressão do
modernismo que, tardiamente, teria chegado às artes da província. A ideia de província é
construída em oposição à ideia de centro, e é uma constante nos textos do suplemento,
revelando que é sobre a província que os signos da modernidade devem agir, como também
na sua arte, fortemente parnasiana.
O surgimento do Correio das Artes se insere num contexto local de emergência de
manifestações culturais, como a criação da Academia Paraibana de Letras (1947), a fundação
de diversos grêmios literários, como o do Liceu Paraibano e de cineclubes. Ao ser concebido,
este suplemento literário passou a compor uma rede de sociabilidade que integrava artistas,
literatos e jornalistas. Logo, devemos entendê-lo como uma das expressões de divulgação,
construção e configuração de valor dentro do campo de produção cultural junto com as
academias de Letras e Imprensa, os grêmios literários, as editoras, sendo que cada qual
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produzindo falas à sua maneira.


O suplemento se torna uma das principais instituições que participa da configuração
do sistema de valoração da arte no conjunto de atividades sociais específicas que é o campo
de produção cultural. Logo, devemos pensar essa prática de escrita dentro das atividades e
produtos sociais ditos literários. Entendendo o surgimento do Correio das Artes num campo
já marcado por tradições e por outras instâncias de divulgação, reflexão e consagração das
obras e ideias em torno das artes, logo, o ensaio busca compreender o seu processo em busca
de legitimação enquanto produto cultural, bem como as disputas pelo direito de “uso de fala”
do suplemento pelos diversos grupos que constituíam o campo cultural paraibano.

O Suplemento: dispositivo, configuração e disputas no campo cultural

Concebo o Correio das Artes dentro desse cenário complexo, o que Pierre Bourdieu
denominou de campo de produção cultural. A noção de campo de produção cultural, que
pode ser especificado em campo artístico, campo literário, entre outros, e é compreendido
como uma rede de agentes e bens que atendem às especificidades objetivas que regem as
relações dentro do próprio campo. O campo é visto como espaço de disputa de poderes, com
ritualizações próprias e com a capacidade de construir discursos de verdade. Os campos
possuem semelhanças uns com os outros, mas cada qual possui suas especificidades e
autonomia e devem ser vistos em constante reestruturação. A abordagem bourdieusiana
permite fugir de reducionismos que dão privilégio a análise da obra como tendo singularidade
irredutível, do autor “único” e da arte pura e por ela mesma (BOURDIEU; CHARTIER,
2011). De um lado, Bourdieu se opõe ao idealismo e às obras sem raízes, e de outro, recusa a
um simples e direto determinismo social. Nesse sentido, compreendo o suplemento num
processo relacional entre campo, autores, obras e o próprio suplemento, que se definem dentro
do campo a partir da relação com os outros. Configurar o campo literário a partir de um
processo relacional permite perceber como uma obra é produzida, reapropriada e consagrada a
partir de relações de forças, a partir dos lugares de fala dos agentes, das posições sociais e das
hierarquias (BOURDIEU, 2004, 170).
A noção de representação, à qual relaciono a de discurso, é central para compreender
a conformação das falas a partir do suplemento. Segundo Chartier, representações são “os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social,
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os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1990, 17). Segundo Foucault, o
discurso é formando por um conjunto de regras anônimas que dão sentido às enunciações,
fornecendo as bases e a especificidade de uma argumentação. A partir dessas noções,
compreendo o discurso como representação do campo. Ou melhor, representações. Visto que
a concepção de discurso a partir de Foucault nos chama atenção para a sua heterogeneidade e
possíveis contradições.
Ao termos um suplemento em mãos e folheando-o, percebemos um universo de
relações narrativas que se observa primeiramente na forma de organização das páginas: os
títulos em destaque, as ilustrações, as colunas. Concebo o suplemento literário como um
formato particular dentro da imprensa, que constrói de maneira específica, conteúdos. Como
coloca Peruzzolo, as “relações narrativas dizem respeito às modalidades de organização do
que se diz, do que se conta no texto; e as relações discursivas organizam os recursos de
persuasão, as estratégias de projeção da enunciação e dos tratamentos figurativos dos
conteúdos”. Sendo assim, “a página do jornal afirma conteúdos” (PERUZZOLO, 2004, 140).
O processo de reconstruir e compreender o documento com um “todo significante”,
parte da concepção do jornal, mais especificamente do suplemento, como um dispositivo.
Compreendo que os discursos produzidos e reproduzidos no Correio das Artes, não estão
soltos, mas, sim, envolvidos pelo próprio suplemento entendido como dispositivo. Porém,
como coloca Mouillaud (2002), este, por sua vez, “não é uma simples entidade técnica,
estranha ao sentido” (p. 29). O suplemento não é apenas uma matéria, mas um formato dotado
de sentidos (p. 31), e esse, por sua vez, oferece sentido ao texto. Mouillaud coloca que, o
“dispositivo existe antes do texto, ele o precede, comanda a sua duração e a extensão”,
contudo, essa antecipação não significa a passividade do texto. Compreende-se, então, uma
relação dinâmica, onde texto e dispositivo são geradores um do outro (Id. Ibdem., 33-34). A
concepção de dispositivo nos é útil para conceber o suplemento não como um texto passivo
que recebe significado unicamente do meio externo, mas como um suporte dotado de
significado por si mesmo e também como construtor de sentido. Essa concepção é central para
a AD.
A análise de discurso tem como objetivo compreender as condições de existência de
um discurso, abarcando as regras históricas que lhe dão sustento, as falas que o compõe e as
falas contra as quais ele se posiciona. Esta ferramenta metodológica permite compreender o
efeito de sentido de um dado objeto, possibilitando abarcar os jogos de poder e representações
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que envolvem os sujeitos numa teia de relações sociais e institucionais. A análise do discurso
não visa desvendar a universalidade do sentido dos discursos em torno das artes produzidas a
partir do suplemento, mas compreender os elementos que os compõem e os apresentam de
maneira única, própria do campo.
O campo literário é marcado por disputas em torno de legitimidade e “guerras de
representações”. Por meio dessas representações é possível compreender as diversas relações
dos agentes e suas posições no campo, além de se ver como se configuram as lutas simbólicas
interiores do campo literário. Nesse interim, o suplemento literário é um dos meios pelo qual
há a produção e reprodução de um “discurso autorizado” que funciona como elemento de
legitimação de práticas e representações de grupos e instituições que compõem o campo.
Abordando o objeto artístico ou literário tendo como base a Análise do Discurso, tomamos a
noção de efeitos de sentido para compreendermos a produção de representações ou
subjetivações que levam às acomodações dentro do campo literário. Fernandes coloca que
podemos pensar, a partir das

práticas de subjetivação, sobre memória e história, e procedermos à análise


de um objeto literário, e/ou discorrermos sobre a produção de uma dada
crítica e uma dada teoria da literatura. Isto, afirmando que os didatizados
estilos de época, bem como a canonização de certos autores e obras,
resultam de práticas de subjetivação, refletem construções identitárias e são
constituídos por uma heterogeneidade discursiva na relação com a história,
atravessados pela memória (FERNANDES, 2007, 229).

Os efeitos de sentido produzidos também passam por uma operação historiográfica


(CERTEAU, 2000) empreendida pelo suplemento a partir de seus agentes. A escrita da
história do Correio das Artes se deu, principalmente, a partir dele próprio, a partir de números
especiais ou artigos sobre a história do mesmo. Essa produção apresenta o próprio suplemento
como o principal incentivador e divulgador da produção artística local. Porém, essas
concepções não podem ser naturalizadas. Essa escrita criou e reproduziu categorias,
reforçando ideias sobre esse veículo e sobre o campo no qual ele se insere.
O fato do suplemento empreender uma escrita da própria história e da história do
campo no qual ele se insere, revela o caráter de reflexividade presente dentro dos campos
culturais. Tal movimento é característico da própria dinâmica do campo de produção de bens
culturais e simbólicos, impondo aos agentes a necessidade de sempre se voltar a sua história,
de fazer um caminho pela trajetória do campo, levantando aquilo que deve ser posto de lado e
assim apresentando aquilo que deve ser visto como a nova prática artístico-cultural legítima
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(BOURDIEU, 2004). No caso do suplemento, isto fica mais evidente nesta "historiografia"
feita pelos escritores quanto às "literaturas" produzidas até então. O constante embate com os
velhos e a dicotomia centro-província demonstra uma luta simbólica pela apropriação do
lugar de dominação do campo. A parcela dominante era formada pelos estabelecidos, aqueles
que já haviam transpassado um contexto de lutas e teriam saído "vitoriosos". Assim, o
suplemento, tomado pelos novos como meio de comunicação, portador, produtor e reprodutor
do vanguardismo, da parcela dominada do campo, está sempre posicionado de forma a realçar
a necessidade do discurso vanguardista por um duplo movimento: de um lado, retomando a
sua história para desmerecê-la e/ou enaltecê-la naquilo que lhe cabe e, por outro lado, na
sempre necessária oposição à parcela dominante na tentativa de deixar de ser dominado.
As disputas por legitimidade dentro do campo literário na Paraíba, e que tinha o
suplemento Correio das Artes um dos locus de divulgação e discussão das vanguardas,
articulam noções de modernidade, inclusive ao se oporem à ideia de tradição. O Correio das
Artes se insere num debate em torno dos signos do modernismo, aqui entendida e abordada
como um constructo discursivo latente do campo artístico, mais especificamente, do seu
processo de autonomização no contexto do século XIX. Nesse sentido, cabe compreender os
efeitos de sentido do Modernismo propagado pelo suplemento. Fernandes propões pensar os
efeitos de sentido do Modernismo “face à sua ruptura com padrões estéticos até então
vigentes” e que “sendo uma produção inicialmente rejeitada, posteriormente, promoveu a
construção de cânones. Residem aí movimentos de subjetivação, descontinuidade e dispersão
apontando para certa unidade vislumbrada a partir de projetos estéticos e políticos”
(FERNANDES, 2007, 229).
Interessa, então, entender como a prática do Correio das Artes relaciona-se com o
campo artístico, e compreender como se deram as relações entre as novas ideias e sujeitos que
entraram em cena neste campo e que encontraram nesse suplemento um veículo para projeção
de suas concepções. Ou seja, atentar para os embates entre “modernos” e “velhos” que se
expressaram como latentes na primeira fase de circulação do periódico.
Essa fase de circulação perpassa um contexto de intensos debates e transformações na
imprensa e nas artes do Brasil, configurando novas relações entre imprensa e literatura e
aparecendo como matéria de novidade no cenário artístico e literário paraibano. Os embates
em torno da arte moderna foi a tônica dos primeiros anos do suplemento. Porém, torna-se
perigoso conceber uma polarização simplista entre “velhos” e “novos”, bem como comprar a
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ideia de que o Correio das Artes foi um veículo uníssono de defesa das novas ideias. Apesar
das disputas pelo “direito de uso” do suplemento para divulgação de uma ideia de um grupo
específico, ao passo que vai ficando evidente a heterogeneidade do discurso do suplemento, é
possível entender a autonomia desse veículo dentro do campo.
Num campo marcado por tradições, esse novo veículo foi concebido como espaço para
a divulgação e reflexão das novas ideias em torno da arte. Porém, o que se assistiu foi a
convergência de diversas falas, tanto as que defendiam as novas formas da arte, como as que
defendiam a manutenção, ou o não abandono, de uma tradição artística do estado. Retomando
a fala de Aderbal Jurema, ao passo que o autor concebe o Correio das Artes como veículo
para a promoção dos novos valores da arte, o mesmo ressente-se pela ausência de velhos
nomes da literatura paraibana que “compareciam regularmente às páginas da revista da
Academia Paraibana de Letras”. Essa fala também pode ser entendida como uma forma que o
autor procura demonstrar o quanto este núcleo de agentes, já dispostos em locais
estabelecidos dentro do campo, estariam além – ou até então, não inseridos – das
transformações propostas.
Em artigo do Correio das Artes, de 9 de outubro de 1949, intitulado “Democratização
e Nacionalização Cultural e Literária”, Adauto Rocha defende a abertura de espaço para a
nova produção literária, em específico as das províncias, que encontraram resistência dos
Centros:

Não obstante a evolução do espírito em todos os sentidos, as


Academias de Letras, tanto na metrópole do país como nas províncias,
continuam ainda atreladas aos preconceitos e veleidades rigorosamente
academicistas do passado (…).
Essa retrógrada condição antidemocrática definidora do espírito
acadêmico, tem emprestado às Academias de Letras um sentido de
inacessibilidade a muitos intelectuais cuja formação culturalmente
revolucionária colida com a mentalidade conservadora dos pretensiosos
detentores da sabença bolorisada.

Sua fala evidencia uma luta de práticas e representações em torno da hegemonia do


campo literário a partir dos centros, bem como da APL, o qual é visto como retrógrado e
antidemocrático. Ao denunciar essa hegemonia, o autor defende a abertura do campo para as
ideias progressistas:

Reagindo, energicamente, contra velharias e preconceitos culturais e


literários dessa naturesa (sic), surge o movimento encabeçado pelos espíritos
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renovadores do pensamento literário, cuja propagação tem empolgado todos


os recantos do país.
Uma guerra construtiva aos moldes clássicos que ainda remontam ao
panorama literário brasileiro, vem sendo vitoriosamente travada, em todos os
quadrantes, visando a democratização cultural contra o estulto dogmatismo
intelectual dos decadentes tabús.
Revistas e jornais modernistas, vanguardistas, estão sendo editados em
vários Estados da Federação, onde se processa um vigoroso movimento pela
real emancipação cultural e literária brasileira.

Em artigo sobre o grupo literário intitulado Grupo do Moleque, Lopes de Andrade


associa a sua existência ao movimento de renovação das letras paraibanas, que se soma ao
novismo pernambucano com a ida para a Paraíba do poeta e jornalista Edson Régis, um dos
articuladores da criação do Correio das Artes, sendo o seu primeiro diretor. Segundo Lopes
de Andrade, as

considerações que me sugere o Grupo do Moleque na Paraíba, estão longe de


esgotar o rico filão que é o 'novismo' no meu Estado. Na verdade, o
'molequismo' paraibano se apresenta grávido de um brilhantismo futuro.
Como os do Paraná e Pernambuco os 'novos' da Paraíba, (...) trazem todos
um ardentíssimo entusiasmo pelas boas letras (...) E agora que um dos mais
destacados chefes do 'novismo' em Pernambuco, o poeta Edson Régis, da
revista Região, veio morar na Paraíba, é possível que o 'molequismo' se
articule definitivamente e venha à tona. Ficará, assim, a Paraíba, mais uma
vez, incorporada aos movimentos nacionais de renovação literária, e que ela
nunca se conforme em estar ausente...2

Essas falas que tanto buscam refletir a chegada do suplemento, como produzem
reflexão em torno dos novos autores, perpassam os primeiros anos de circulação. Em artigo
intitulado “Correio das Artes”, de 21 de agosto de 1949, Campomizzi Filho, diz:

A PROVÍNCIA tem feito valer a expressão intelectual dos autores que,


presos a compromissos de toda órdem, dela não podem se abalar para a
metrópole distante. E se em época anterior êsses valôre se perdiam (...) não
chegando ao grande público pela dificuldade de expansão dos seus trabalhos,
já hoje se nota um alto sentido de reação, surgindo nos diversos estados,
jornais e revistas que atestam o valôr e a dedicação de gente provinciana que
busca, (...) atingir a universalidade da arte pela expressão de órgãos capazes
de chegar aos mais distantes rincões onde se cuide coisas do espírito (…).
O CORREIO DAS ARTES deixou de circunscrever-se ao pequeno Estado
nordestino para atingir as mais afastadas comunas, numa afirmação
categórica de que também na Paraíba se trabalha e se renova (...) estudando
novas fórmulas capazes de substituir os métodos de vinte e dois já repetidos
e repetindo-se até mesmo nos seus nomes mais destacados.

2
Artigo intitulado “O novismo na Paraíba”, publicado no Correio das Artes em 09.10.1949.
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Essas falam demarcam a vontade da província em se inserir num campo nacional e,


até certo ponto, opor-se ao centro, evidenciando as posições no espaço social e em atingir a
universalidade (legitimidade) por meio da construção de uma nova verdade da arte pela
expressão de órgãos (instituições da construção discursiva). A analogia com as “coisas do
espírito” é um indício importante para compreendermos que essas disputas pela demarcação
de espaços no campo também assumem o caráter para além do material, ou seja, se expressa
no campo simbólico dos bens culturais – no entanto, precisa-se entender o material e o
simbólico num constante diálogo, por vezes se confundindo, e não entendê-los em separado.
Chama atenção a constante utilização de palavras como renovação, novo, novismo, em
oposição à tradição, velho, o que nos leva a perceber caminhos possíveis para entender as
disputas e transformações no campo literário. A partir da escrita, em específico a escrita num
suplemento literário, percebe-se a busca de legitimação de práticas e representações a partir
das letras. Essas palavras supõem a proposição de novas categorias classificatórias para o
campo. Como também a ideia de repetição, ou o ato de voltar atenção ao velho, representando
uma forma de voltar-se para a história do campo, numa busca por razões para deslegitimar a
parcela dominante.
A escrita da história do próprio campo, empreendida por meio do Correio das Artes,
torna-se central para entendermos os embates em torno da verdade e da legitimação. Ela não
se encerra na busca por razões que fundamentem a crítica dos novos aos velhos, as sugere
outros usos, como a intenção de construir uma história de longa duração das artes na Paraíba,
sendo o novo momento de mais um capítulo nesse processo histórico, sem, contudo, significar
a destruição das artes passadas, como com a presença da página “Antologia da poesia
paraibana”, que apresenta poetas locais desde o período colonial até os que antecederam a
nova geração. Bem como com números especiais, como o dedicado ao poeta Augusto dos
Anjos3. Destarte, essas representações da história das artes da Paraíba demarcam lugares
sociais desses agentes no campo (CERTEAU, 2000).
No entanto, como dito, o Correio das Artes não expressa um discurso homogêneo em
torno da defesa da nova arte. Pelo contrário, as falam revelam a pluralidade de ideias. Como
coloca Rodrigues, o discurso é, justamente, um

lugar em que as contradições significam. Portanto, lugar de equívoco, em


que um sentido se reporta a outro(s), em que o que parece natural pode se

3
Correio das Artes, 22.11.1964.
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desestabilizar; é o lugar da falha, da lacuna que denuncia a não-coincidência


entre forma e sentido, lugar em todo um conjunto de saberes historicamente
constituídos, isto é, “o alhures, o além e o invisível” (citando Pêcheux 1990,
p. 8) constituem, de modo específico, o aqui-e-agora da formulação, do
arranjo simbólico que funciona como suporte do processo de sua
textualização (...) (RODRIGUES, 2011, 230).

E essas “contradições” são matérias que ajudam a compreender a configuração do


campo e do suplemento como espaço simbólico e material de legitimação.
Encontramos críticas que procuravam proferir uma fala harmonizadora entre a
tradição e a vanguarda. No editorial de 20 de novembro de 1949, intitulado “O Último poeta
romântico”, João Lelys lamenta a morte do poeta Osório Paes que, segundo ele, era o último
representante dos velhos poetas da Paraíba. É uma fala conciliadora, visto o contexto de sua
produção: o editorial concebe um lugar no campo para o poeta, “esse que soube ocupar um
lugar que ninguém ousou disputar-lhe”, e defende que desse lugar também não quis sair para
disputar espaço com os novos de 1922. O texto constrói uma narrativa buscando selar uma
transição e criando uma ideia de uma sucessão natural, onde os velhos dão lugar aos novos,
ou de que essa deva ser a ordem dentro do campo. Ou, como coloca Rodrigues,

o cânone e o marginal coexistem e convivem e renascem em inúmeros


jazidos construídos especialmente para eles, como espaços em diferentes
bibliotecas. A linguagem estendida ao infinito é sempre retirada do jazido,
duplicada e reduplicada, e a ele retorna para suas reduplicações ao infinito,
em um indefinido jogo de entrecruzamento de discursos e de efeitos de
sentido (RODRIGUES, 2011, 235).

A fala de Rodrigues tanto nos ajuda a interpretar o artigo citado, como também na
coexistência das sessões de Antologias dos antigos poetas paraibanos e do novos.
Quando se fala nos novos, pode-se concebê-los como um grupo homogêneo, porém,
evidenciam-se embates entre eles. No artigo “Considerações sobre a poesia”4, escrito por João
Lelis, e na entrevista de Gasparino Damata com Fernando Ferreira de Loanda5, percebemos os
choques entre os novos, entre aqueles que se projetam no contexto da década de 1940 e início
de 1950, bem como os antigos novos. João Lelis, destacando a obra de Edson Régis, explana
sobre o modernismo nas letras paraibanas:

Aqui na Paraíba a poesia modernista não parou de vez. Com o esvasiamento


das velhas fileiras romanticas, os modernistas afluiram a primeiro plano, já

4
Correio das Artes, 25.12.1949.
5
“Conversa ligeira com um Poeta de Alem-mar”, Correio das Artes 31.07.1949.
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contando eles com uma vanguarda veterana firmada e de configuração


indisfarçavel e nitida. Podemos asseverar que, entre eles, se nota a existencia
dos <novos>, isto é, uma mais recente geração obediente aos ditames da
introspecção, melhor dito, da posição atual e normal do modernismo, se está,
firmando num grupo de poetas capaz de caracterizar uma fase nova da nossa
poesia.

João Lelis estabelece uma relação direta entre os poetas vanguardistas da década de
1920 e os “novos” de 1940. Já Fernando Ferreira de Loanda estabelece uma relação
conflituosa entre esses dois grupos. O entrevistado difere ataques à geração de 1922,
inclusive, concebendo Mario de Andrade como “o maior embromador do Modernismo”.
Como também faz críticas ao levianismo de muitos periódicos que tecem comentários
elogiosos aos novos, porém, sem fundamentos. Portanto, esse veículo foi apropriado como
instituição central nos jogos de poder sobre a legitimação de bens no campo literário
paraibano, o que estimula a compreender os mecanismos utilizados nesses jogos em torno, de
um lado, da promoção de vanguarda, e de outro, da manutenção do consagrado, do velho.

Considerações finais

Como propõe Tania de Luca (2005), localizo o suplemento literário dentro da história
da imprensa, o que ajuda a entender o seu surgimento num contexto específico de
transformações na imprensa brasileira e seus diálogos com a literatura. Ao conceber os
suplementos como materialidade dotada de significados e historicidade, procurei analisar
como seu formato específico atende a diversos interesses. Nessa perspectiva que toma o
suplemento literário como objeto de estudo, concebo-o como um construtor do próprio fato
artístico ou literário, procurando, assim, não apenas verificar o que esses documentos
informam, mas, principalmente como dizem, ou melhor, como constroem o dito, bem como o
não dito.
Chartier defende que a fonte documental não permite uma ligação “imediata e
transparente com as práticas que designa”. Nesse sentido, reforço a concepção do suplemento
literário como dispositivo construtor – além de reprodutor – de discursos e, como coloca
Chartier, “a representação das práticas têm razões, códigos, finalidades e destinatários
particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para entender as situações ou práticas
que são o objeto da representação” (CHARTIER, 2013, 3-4).
O exame da natureza e a estrutura do suplemento ganha sentido na análise de discurso,
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visto que a análise da materialidade do documento e dos sentidos construídos em torno do, e
pelo dispositivo, é central para compreender o processo de disputas em torno da legitimação
dentro do campo literário na Paraíba, no qual o Correio das Artes teve grande destaque. Nesse
sentido, como explorado, o Correio das Artes se configura como bem simbólico dentro do
campo da produção cultural paraibana.
Os suplementos literários são indícios históricos importantes para a elaboração de uma
história do campo de produção cultural na Paraíba, considerando as tensões e os conflitos
próprios vivenciados por um contexto que redimensiona o próprio campo e que evidencia as
disputas em torno da instituição de práticas e representações sociais legitimadas.
Compreender esse campo cultural demarca uma escolha que se coloca de encontro à
historiografia clássica que omitiu, e omite, manifestações culturais locais ou que não atentam
para os ritmos próprios dessas outras experiências.

Referências

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50. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
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2011.
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de Lourdes Menezes, 2 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
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conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007, pp. 229-238.
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LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B.
(org.) Fontes Históricas. São Paulo; Contexto, 2005. p. 111-153.
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PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de semiótica da comunicação: quando aprender é
fazer. Bauru: EDUSC, 2004.
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intersecções entre interdiscurso e memória. In: INDURSKU, Freda; MITTMANN, Solange;
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Campinas: Mercado das Letras, 2011, pp. 227-240.
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APÓFASE CULTURAL EM FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY:


IMPLICAÇÕES DE UMA SOCIEDADE CULTURALMENTE CEGA

Janile Pequeno Soares


(PPGL/UFPB)

Quando a escritora inglesa Mary Shelley publica Frankenstein ou o moderno


Prometeu em 1818, toda a Inglaterra passava por um período de grandes transformações e a
sociedade oitocentista começava a experimentar uma nova forma de ver o mundo, estava
povoada pelos fantasmas de um período de mudanças de interpretações, inclusive sobre o
‘ser’ em sua mais profunda composição, e esse conhecimento era apavorante, pois passavam
assim, a conhecer suas próprias monstruosidades. Era um período onde muitas descobertas
estavam começando a fazer parte da nova realidade que circundava os corações e formava
opiniões entre os ingleses e assim, comportamentos facilmente denunciavam seus
posicionamentos a respeito do outro e do seu mundo.
Considerando que a literatura como uma forma de representação da vida está
intrinsicamente vinculada à sociedade e assim, à sua cultura, entendemos que ela pode jogar
com a realidade sem que, no entanto, dela seja explicitamente citado seus agouros ou
vindouros atributos, constituições, caracterizações e, ainda assim, ser tão fiel a essa mesma
realidade. Propomos aqui discutir como está presente a crítica dessa sociedade inglesa com
seus (pre) juízos, (pré) conceitos e as implicações da efetivação deles na construção de uma
sociedade com indivíduos cegos por quererem enxergar apenas a si mesmos, metaforizados no
texto Frankenstein de Shelley.
Mary Shelley foi uma escritora, editora, biógrafa inglesa filha dos revolucionários
Mary Wollstonecraft, a quem é creditada o título de uma das primeiras feministas inglesas, e
William Godwin, e esposa de Percy Bysshe Shelley, outro grande rebelde e poeta lírico.
Convivendo em um ambiente onde o exercício da mente e o jogo de conhecimento estavam
sempre como principal tópico, Mary Shelley sempre se interessou pelas mais diversas áreas
do saber desde os “grandes” pensadores aos conteúdos relacionados à ciência, leis da
eletricidade, circulação do sangue. Depois de um desafio proposto por Byron como
divertimento no verão de 1816, para disputar quem escreveria a melhor história de horror,
Mary e seus companheiros começam a empreitada de escrita de um tema original e que
fizesse o “coração gelar”, desse contexto surge o que seria a sua obra mais famosa
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Frankentein, ou o moderno Prometeu, escrito em 1816 e publicado em 1818. Após seu


trabalho mais conceituado Shelley escreveu ainda outros seis romances: Valperga (1823), The
Last Man (1826), The Fortunes of Perkin Warbeck (1830), Lodore (1835), Falkner (1837) e
Mathilda1 (1859). Também escreveu uma peça teatral, memoirs, narrativas de viagem e
biografias.
As construções da sociedade e a sua cultura sempre interessaram Shelley, talvez por
ter participado de um grupo de pessoas que percebiam na educação e na forma de ver o
mundo a melhor maneira de entender a si próprio em relação aos outros e a si mesmo.
Wollstonecraft e Godwin, seus pais, acreditavam que deixar os filhos verem o que estava
errado assim como o que estava certo no mundo, era uma das melhores formas deles
entenderem a sua existência dentro de um grupo e de amadurecimento cultural (SEYMOUR,
2000). Na obra aqui em discussão, a mais famosa da escritora, encontramos aspectos de uma
interpretação da realidade de sua época de produção, como não poderia deixar de conter. Ler
Frankenstein é também ler um pouco de Mary Shelley e a atmosfera de seu tempo, querendo
ou não, a escritora “incorporou em todo seu trabalho não somente as pessoas e as situações
que conheceu na sua experiência pessoal, mas os lugares que visitou, as pessoas cuja natureza
observou e as condições sociais e políticas sob as quais viveu” (FLORESCU, 1998, p. 42).
Shelley coloca a Criatura de Frankenstein em um estado de “intermediação”, em
inglês ‘betweenness’, onde a formação de sua identidade e compreensão do mundo e daqueles
seus “semelhantes”, é feita de modo que participamos, como leitores, do processo de
aculturação daquela sociedade inglesa, e testemunhamos as monstruosidades das
intencionalidades, comportamentos e julgamentos de seus sujeitos integrantes. Como
constituinte desse ambiente, a escritora entendia bem o que era estar em “intermediação”, de
não sentir pertencer, de fato, a nenhuma escala social, primeiro pelo fato de ser uma mulher
de letras em meio a uma tradição masculina de escrita e crítica filosófica, e depois por não
corroborar com os ideais arbitrários difundidos por esses ‘homens’ que detinham o poder de
decisão sobre, inclusive, os papéis destinados aos sujeitos em sociedade, assim como quem
deveria/poderia ser digno de participar ativamente dela, transbordando esse sentimento para a
condição da Criatura de Frankenstein, assim “a “intermediação” de Shelley a fez
relutantemente decidir sobre o individual e o grupo, e entre ideias coletivas e individualistas

1
Public ado postumamente.
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de como nós vivemos entre os outros2” (MORTON, 2003, p. 262) – tradução nossa. Então,
essa condição legada a Criatura como reflexo da sociedade oitocentista inglesa, é uma
ferramenta útil de crítica cultural, afinal estar/ser fora de um padrão preestabelecido é estar
fora da sociedade? E essa mesma sociedade é constituída totalmente de iguais ou de diferentes
compartilhando objetivos?
A história de Frankenstein inicia quando em meio a uma obcecada tentativa de chegar
às regiões polares o capitão Robert Walton encontra o moribundo estudante de medicina
Victor Frankenstein. Este lhe conta sua trajetória, desde a infância e adolescência sempre
pautada pela obsessão sobre os mistérios da natureza e principalmente o segredo da vida e da
morte, inicia então a história contada sob a perspectiva de Victor como uma espécie de
retrospectiva até o ponto onde se encontra, então, conta ao seu novo amigo navegador, como
foi levado pela sede de conhecimento e pela excitação dos estudos em História Natural
ligados à fisiologia à decisão de dar vida à matéria inerte: “após dias e dias de incríveis
trabalhos e fadigas, consegui descobrir a causa da criação e da vida; mais ainda, tornei-me
capaz de conferir vida à matéria morta” (SHELLEY, 2007, p. 55). Então, com partes e
pedaços de corpos de diferentes procedências, retirados de salas de dissecação e matadouro, o
cientista monta e costura um ser humano, para dar-lhe vida. Com a vaidade de ser responsável
por uma nova criação a qual somente ele seria o detentor do conhecimento para tal
empreitada, como se pode observar em uma de suas falas antes de alcançar seu objetivo:

Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas
criaturas felizes e excelentes passariam a dever a sua existência a mim.
Nenhum pai podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente
quanto eu a daquelas criaturas. (SHELLEY, 2007, p. 57)

Esse tom de superioridade e preponderância de Victor é a marca de que o homem


necessita estar em um grau de superioridade acima de todas as outras espécies apenas para
sentir-se um pouco mais vivo. Diz que uma nova espécie feliz e excelente o abençoaria, mas
não fala nada sobre como faria para tornar essa espécie integrada socialmente e feliz. Depois
de conceber a sua criação, Victor percebe o peso de dar vida a algo ainda incompreensível, se
olha no espelho e sente que “deu vida” aos seus próprios monstros; pare ele, lidar com o que
não lhe é confortável por direito lhe causou náuseas e a decepção de não saber o que fazer
agora com sua ‘prole’, lhe causou um horror sem precedentes, então ele foge e abandona a

2
“Shelley’s “betweenness” made her reluctant to decide between the individual and the group, and between
collectivist and individualist ideas of how we live among others” (MORTON, 2003, p.262).
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criatura ‘recém-nascida’, que permanece sem nome. Esta atitude marca a incapacidade do
homem de lidar com aquilo que existia apenas em sua mente.
O que se segue é uma série de fatos que aterrorizam a vida da inocente Criatura que é
abandonada por aquele que deveria lhe instruir no mundo, é igualmente rejeitada por todos em
qualquer lugar que vá. Esconde-se da barbárie humana e chega a uma floresta onde aprende a
se comunicar e a ler observando à distância uma família que mora ali e após ser desprezada ao
tentar entrar em contato com tal família, a Criatura jura vingança ao seu criador. Neste ponto
percebemos como Victor e a comunidade preconceituosa criaram os “monstros” interiores da
Criatura, por privar-lhe de sua voz e de burlar seu processo de auto compreensão e descoberta
de sua identidade como sujeito digno de participar do mitsen humano, o ser-com-os-outros, o
direito e necessidade que todo ser vivo tem para que em contato com o outro consiga entender
e reconhecer a si mesmo.
E a descoberta do causador de todos os seus males, desperta na Criatura a necessidade
de retribuir as ações de seu criador e nas páginas seguintes inicia a destruição daquele que o
privou da vida como ela deveria ter sido por direito. E assim, o texto sugere que essa decisão
é mediada pelas circunstâncias que movem a Criatura, elas, sim, monstruosas.
Estas circunstâncias nas quais a Criatura teve de perpassar para chegar à sua auto
compreensão de indivíduo e de como funcionava a sociedade, deflagra o ambiente inóspito ao
‘outro’ visto sob um ponto de vista negativo, assim como o diferente, o individual, dessa
sociedade e sua hipocrisia por pretender uma pureza e moral quando não enxergava os limites
e diferenças daqueles que deveriam ser seus ‘semelhantes’, na tentativa de padronizar e criar
uma cultura una não se percebia que o medo de serem eles mesmos iguais a esses ‘outros’, os
transformavam em uma cultura cega intrinsecamente e distorciam a ideia de cultura.
Concordamos com Bhabha quando diz que:

A diferença de outras culturas se distingue do excesso de significação ou da


trajetória do desejo. Estas são estratégias teóricas que são necessárias para
combater o “etnocentrismo”, mas não podem, por si mesmas, sem serem
reconstruídas, representar aquela alteridade. Não pode haver um
deslizamento inevitável da atividade semiótica para a leitura não
problemática de outros sistemas culturais e discursivos. Há nessas leituras
uma vontade de poder e conhecimento que, ao deixar de especificar os
limites de seu próprio campo de enunciação e eficácia, passa a individualizar
a alteridade como descoberta de suas próprias pressuposições. (BHABHA,
2013, p. 123)
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Podemos afirmar, sem cair em generalizações, que um indivíduo não é fruto de uma
sociedade, mas a sociedade é feita pelo conjunto de diferentes indivíduos, alteridades mistas
conjuntas, onde a cultura se faz pelas práticas recorrentes desse grupo que se pretende uno,
mas esquece de que seu âmago é plural. Laraia (2001) citando Benedict diz “que a cultura é
como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (p. 67), podemos acrescentar a essa
afirmação que a cultura é também a lente através da qual nós conhecemos os outros e a nós
mesmos. A Criatura só entende a causa de todos os seus males e rejeições quando, depois de
muito observar, entende que aqueles comportamentos são recorrentes de um grupo de pessoas
que vivem em um mesmo ambiente e que para viverem em comunhão precisam agir de modo
semelhante a da maioria.
Durante seu processo de compreensão do mundo que o rodeava, enquanto conta a sua
história para Victor quando, depois de muito tempo, conseguem se reencontrar, a Criatura
afirma:

Enquanto eu ouvia as lições que Félix dava à moça árabe, compreendi o


estranho sistema da sociedade humana. Tomei conhecimento da divisão da
propriedade, das imensas riquezas e da miserável pobreza das classes, da
descendência, e do sangue nobre. As palavras levaram-me a olhar para mim
mesmo. Aprendi que os bens mais estimados pelos seus semelhantes eram
uma alta e imaculada linhagem, unida à riqueza. Uma só dessas condições
era capaz de fazer um homem respeitado, mas sem nenhuma ele era um
escravo destinado a gastar suas energias em proveito de uns poucos
privilegiados! E que era eu? Tudo ignorava de minha criação e de meu
criador [...] quando olhava em volta, eu ninguém via igual a mim. Era eu,
então um monstro, uma nódoa sobre a terra, de quem todos fugiam e a quem
todos renegavam? (SHELLEY, 2007, p. 128)

O depoimento da Criatura exalta não somente a sua indignação a respeito de como sua
condição de ser humano estava fadada ao fracasso por não pertencer a nenhum espaço dentro
de um sistema opressor e egocentrista, mas nos faz metaforicamente, caminhar por entre os
parâmetros estabelecidos pela sociedade inglesa de um tempo de escuridão coletiva. Onde o
correto era estar dentro de um padrão político e economicamente pré-estabelecido e o
diferente era aquele destinado ao nada social. Laraia afirma que “é comum a crença no povo
eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm
o germe do racismo, da intolerância, e, frequentemente, são utilizadas para justificar a
violência praticada contra os outros” (2001, p. 73) e acrescenta que, “a chegada de um
estranho em determinadas comunidades pode ser considerada como a quebra da ordem social
ou sobrenatural” (2001, p. 73). Assim considerada pelo medo ou estranheza do que não lhes é
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comum e, que assim, não se sabe como exercer influência e poder. Então, a Criatura é
discriminada por ser diferente, por estar em uma “intermediação”, e assim pertencer a outro
grupo, que não aquele no qual foi inserida e que dissemina uma cultura que não lhe é digna,
pelos motivos por ela elencados na afirmação acima.
Considerando essa cultura que, ao invés de unir os diferentes de um grupo em um
conjunto, exclui aqueles que não se encaixam, desse contexto inglês, nos perguntamos o que é
afinal a cultura de um povo? Nós constituímos a cultura ou a cultura nos constitui? Se a
cultura é o espelho pelo qual conhecemos a nós mesmos, como se encontrar em uma cultura
que não nos enxerga? Geertz (1989), ao fazer uma interpretação da cultura, coloca que ela não
é um conceito, a cultura é o que os agentes dela fazem, desse modo nós constituímos a
cultura, é através do nosso comportamento que as especificações da nossa comunidade é
formada e chamada de cultura.
Morton (2003), afirma que:

A palavra “cultura” é um termo contestado. Ela hesita entre “natureza” e


“criação”, um enigma insolúvel. Ela pode, por exemplo, significar as
estruturas de gerenciamento de uma empresa ou o meio no qual as pessoas
vem a descobrir sua existência3- tradução nossa (p. 259).

Descobrir sua existência através da cultura se torna uma tarefa mais árdua do que a
própria compreensão da palavra quando o indivíduo se encontra em um processo de não
pertencimento. Como entender então a si mesmo nesse espaço, além de observar as
atribuições realizadas por ele à distância, e daí, em um jogo de compreensão do outro, ou seja,
do que não é, compreender o que se é. Como vimos acima, a Criatura compreende a si mesma
quando percebe que não tem as mesmas feições físicas daqueles que ela observa na cidade e,
mais de perto, aqueles moradores da cabana na floresta, assim como não fala o mesmo
idioma, e não tem uma linhagem sanguínea parental, ou propriedades, ou amigos, como eles.
A Criatura não é vista pela sociedade a qual pertence, mas condenada à intermediação ou ao
nada social, espaço daqueles que não pertencem a nenhum construto.
Ao longo da empreitada de compreensão do mundo ao seu redor, a Criatura consegue
entrar em contato com um dos moradores da cabana, o ancião De Lacey, com o qual, pela
primeira vez, pode sentir que existe bondade no coração dos homens, pois este não o rejeita

3
The word “culture” is a contested term. It hesitates between “nature” and “nurture”, an insoluble conundrum. Is
can, for instance, mean a corporation’s management structures or the medium in which people come to discover
their existence. (MORTON, 2003, p. 259)
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de imediato, como todos os outros, pela sua aparência pobre e hedionda, fora dos padrões,
mas o agracia com palavras bondosas e tenras, como o que se faz entre semelhantes, e
consegue proferir uma conversa amigável:

– Se você me quiser confiar sem reservas detalhes de seu problema, talvez


eu possa ser útil para fazê-lo mudar de opinião. Sou cego e não posso vê-lo,
mas há qualquer coisa em suas palavras que me dizem que você está sendo
sincero. Sou pobre, um exilado, mas terei um imenso prazer em poder ser
útil de qualquer modo a uma criatura humana.
- Bom homem! Eu lhe agradeço e aceito sua generosa oferta. O senhor me
levanta do pó pela sua bondade. Confio que, com seu auxílio, não serei
segregado da sociedade e da simpatia dos seus semelhantes. (SHELLEY,
2007, p. 142)

Quando nos deparamos com o fato de o homem cego ser o único ao longo da narrativa
que “enxerga” a Criatura como semelhante a ponto de se prontificar a ajudá-la, considerando
não a sua aparência, mas o que ela tinha a dizer e seus anseios em relação aos outros,
contrastamos com a atitude de seu criador Victor e todos os outros sujeitos com os quais a
Criatura teve contato, para entendermos que é preciso estar culturalmente cego para agir
honestamente com o ‘outro’ em uma sociedade que prefere fechar os olhos a ver o diferente
do padrão como parte integrante do sistema que se pretende plural.
Para entender a si mesma a Criatura desiste de tentar se encaixar naquela sociedade
que entende não pertencer, e para tentar sair do estado de intermediação, pela necessidade
natural de fazer parte de algo e de uma cultura que comporte seu papel de sujeito constituinte,
a Criatura recorre a seu criador em busca de respostas e exige que ele a coloque em contato
com um semelhante, para que possa viver em paz, em uma última atitude desesperada, ela
pede:

- Se alguém demonstrasse bondade para comigo, eu retribuiria muito mais.


Pelo amor de uma criatura, eu faria paz com toda a espécie! Mas me estou
deixando levar por sonhos felizes, que não podem ser realizados. O que lhe
estou pedindo é moderado e razoável: desejo uma criatura do sexo oposto,
mas tão horrorosa quanto eu. O prazer é pequeno, mas é tudo quanto eu
posso ter, e fico satisfeito. É verdade que seremos monstros, e que ficaremos
isolados do resto do mundo, mas por isso mesmo nos sentiremos mais
ligados um ao outro. Nossa vida não será feliz, mas ficará livre da desgraça
que agora eu sinto. Oh, meu criador, faça-me feliz! Permita-me que eu possa
lhe ser grato por este benefício! Faça com que eu desperte a simpatia de
algum ser vivo. Não me negue este pedido! (SHELLEY, 2007, p. 154)
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O desejo da Criatura de não ser mantido nas trevas não pode ser concedida por Victor,
este acreditava que seria o início de uma espécie horrível que devastaria o mundo como ele
conhecia e que lhe era confortável e que a existência da Criatura, esse ser supostamente tão
aquém dele e de seus semelhantes, teria de ser afastada e não proliferada. Esse afastamento só
cria monstros interiores que consomem tudo o quanto pode, as implicações de um
comportamento egoísta e excludente desse ideal de sociedade estão inseridas não somente
naquele momento histórico, mas carregaria suas raízes ainda durante muito tempo, colocando
sempre à parte aqueles que poderiam corroborar em uma ameaça ao poder instituído pelos
‘iguais’, com isso sofreriam em um ponto da história mulheres, sempre silenciadas, os negros,
os pobres, os de linhagem não nobre, para citar alguns.
O texto nos mostra que a solução de dois diferentes pertencerem a algo em uma
sociedade egoísta e excludente como a inglesa do contexto de produção de Frankenstein, é
apenas através da exclusão e, neste caso, pela morte tanto de criador quanto de criatura. Nessa
apófase cultural, mostrando a realidade sem citá-la, o texto de Shelley nos conduz à ideia de
que a cultura pode sim, contrariando Geertz (1989), ser apenas um conceito, quando distancia
os sujeitos do processo legando-os ao eterno estado de “intermediação”.

Referências

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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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A CANÇÃO “VOZES DA SECA” DE LUIZ GONZAGA: VOZES DE PROTESTO


SOB UMA PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO DISCURSO

Sandro Luis de Sousa1


PPGL/UFPB

“Se só houvesse submissão, não haveria produção de novos sentidos”.


Rosário Gregolin

Introdução

Neste artigo propomos estudar a canção Vozes da Seca dos autores nordestinos, Luiz
Gonzaga e Zedantas2, tendo como pressupostos teóricos norteadores a Análise de Discurso de
linha francesa (doravante, AD). Para tanto, entende-se como necessário, em primeiro lugar,
fazer uma breve incursão sobre alguns conceitos básicos da AD, bem como sobre a
caracterização do sujeito-intérprete da referida canção e das condições de produção do
ambiente sócio-histórico onde a mesma foi concebida. Pretende-se demonstrar que a
materialidade linguística objeto de estudo apresenta, de forma incomum, características de
contraponto ao disseminado estereótipo de sujeito nordestino pobre, pedinte de esmola,
ignorante, conformado, alienado político e eterno dependente dos favores dos povos “do sul”.
A análise não tem como propósito metodológico precípuo a organização linguística do
texto, mas compreender como este é tecido, criando nós, laços e relações entre a língua e
aspectos sócio-históricos que imprimem ao discurso características próprias de dizeres
expressos e implícitos na canção analisada. Desse modo, é da mediação entre o dispositivo
escolhido, a fundamentação teórica subjacente e o objetivo proposto que o texto exsurge
como unidade de análise privilegiada da Análise do Discurso.

Considerações Iniciais sobre a Análise do Discurso

1
Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal da Paraíba. Professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Campus Natal/RN. Endereço eletrônico:
sandro.sousa@ifrn.edu.br
2
Mantivemos aqui a forma como Zedantas gostava de assinar seu nome em suas omposições, segundo
observação de Ferreti (2012, p. 9).
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Há diversas orientações para o estudo da linguagem. Duas delas talvez sejam as mais
conhecias: a forma de analisar a língua em sua suas características imanentes, que evidencia a
separação dicotômica entre língua e fala, reservando a esta última um papel secundário e que
remonta aos estudos estruturalistas de Saussure, ou a aplicação de regras, conforme uma
prescrição advinda da gramática normativa que persegue o “bom” uso da língua enquanto
sistema estrutural-funcional. Não obstante essas duas vertentes, o recente domínio da Análise
do Discurso emerge como contraponto às duas orientações retrocitadas, pondo em evidência
as relações que se estabelecem entre os sujeitos produtores de discurso e o “produto” por eles
produzidos. Desse modo, segundo Orlandi, (2013, p. 16) a Análise do Discurso

não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas a língua no


mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a
produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos
seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade.

Os homens estão, portanto, inseridos em ambientações específicas, próprias de


espaços geográficos e histórico-sociais nos quais as relações interpessoais se engendram,
fazendo surgir diversos discursos com diferentes sentidos e distintas interpretações do que é
dito e do que não é dito explicitamente pela palavra, conforme as condições de produção
desses discursos.
A palavra, já o sabemos, é considerada o fenômeno ideológico por excelência
(BAKHTIN, 1988; p. 36), posto que é produto da interação verbal. Com inspiração em
Bakhtin, Brandão (1995, p. 10), assevera que, por ser dialógica por natureza, a palavra se
transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser
ouvidas por outras vozes. Na acepção aqui usada, o vocábulo vozes permite fazer remissões
às noções de dialogismo e polifonia em Análise do Discurso. A primeira, explicam-nos
Charaudeau e Maingeneau (2014, p. 160), refere-se às relações que todo enunciado mantém
com os enunciados já produzidos, assim como com os enunciados futuros que poderão ser
produzidos, enquanto a segunda reporta-se à presença de pontos de vista diferentes veiculados
pelos textos. Pensar os indivíduos nesse contexto implica pensá-los enquanto sujeitos
ideologicamente marcados.
Consoante Orlandi (2013, p. 17), a Análise do Discurso trabalha a relação língua-
discurso-ideologia, partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o
discurso e a materialidade específica do discurso é a língua. Para aquela autora, a ideologia é
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considerada efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que
exista sentido. Nesse cenário, o indivíduo é assujeitado ou interpelado como sujeito
ideológico, no sentido em que cada um é conduzido, sem se dar conta, e tem a impressão de
estar exercendo sua livre vontade (PÊCHEUX; FUCHS, p. 165-166), produzindo seu próprio
modo de dizer, mas que na verdade este decorre do funcionamento da instância ideológica,
situando a posição do sujeito em uma determinada classe social. Como corolário dessa
vinculação a uma conjuntura sócio-histórica dada, emerge a formação discursiva, isto é,
aquilo que determina o que pode e deve ser dito numa formação ideológica dada (ORLANDI,
2013; p. 43). Neste aspecto, é possível traçar uma referência à noção de interdição, uma vez
que toda produção de discurso poder ser controlada. Na nossa sociedade, não se tem o direito
de dizer tudo nem se pode falar de tudo em qualquer circunstância (FOUCAULT, 1989; p. 9).
Com esteio nessas características, a AD é descrita como uma disciplina de entremeio
cujo quadro epistemológico reside, segundo Pêcheux (1997, p. 164), na articulação de três
regiões do conhecimento científico, a saber:

1. o materialismo, como teoria das formações sociais e de suas


transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;
2. a linguística, como teoria dos mecanismo sintáticos e dos processos de
enunciação ao mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos
semânticos.

A junção desses três domínios deve ser também compreendida, ainda segundo
Pêcheux, levando-se em consideração o fato de que é atravessada e articulada por uma teoria
da subjetividade de natureza psicanalítica. Conforme se avulta, esse tripé fundador, composto
de História-Língua-Sujeito, implica uma necessária inter-relação entre essas três regiões de
conhecimento: Linguística, Marxismo (materialismo histórico) e Psicanálise.
Em uma releitura dessas disciplinas, a AD defende que a produção de discurso se
estabelece considerando a historicidade da linguagem, a sua não transparência, e a noção de
indivíduo transformado em sujeito descentralizado. Essa reconceptualização de sujeito,
advinda da Psicanálise, é recepcionada pela AD que o entende como aquele que não é senhor
de si mesmo, nem como um ser apriorístico ao discurso, pois o sujeito já nasce imerso nos
diversos discursos que circulam na sociedade. Assim, o sujeito é entendido como sendo
cindido, clivado, já que as formações discursivas são heterogêneas. Diante deste quadro
epistemológico, tem-se que os discursos são lacunares. Tal como uma teia, o discurso é
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formado por nós e, ao mesmo, tempo, possui buracos, furos que lhes são constitutivos, que
deixam escapar o real da língua, entendido como aquilo que não pode ser simbolizado
totalmente na palavra e na escrita (FERREIRA, 2011). Segunda a autora, Pêcheux pensa o
real da língua como um corpo - não biológico, não orgânico - atravessado de falhas, ou seja,
submetido à irrupção da falta. O real pode, desse modo, ser representado pelas falhas, pelos
atos falhos, pelos lapsos e chistes. Dessa forma, a AD não se contenta com a inteligibilidade
(sentido literal do enunciado) ou interpretação (sentido do co-texto e contexto de entorno) de
um objeto simbólico. A AD vai além, buscando a sua compreensão. Dessarte, Orlandi (2013,
p. 26) esclarece que

a Análise do Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico


produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos.
Essa compreensão, por sua vez, implica em explicitar como o texto organiza
os gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido. Produzem-se
assim novas práticas de leitura.

Entende-se por objeto simbólico as materialidades significantes, tais como um texto,


uma pintura, uma imagem, ou, como no caso aqui examinado, uma canção. Materialidade
para a AD significa a matéria de que é feita o discurso, uma vez que todo discurso tem uma
forma. Em suma, a materialidade é uma forma de linguagem. Nas palavras de Gregolin (2011,
p. 83), a multiplicidade de objetos de análise deriva da complexidade do conceito de discurso,
já que envolve a linguagem, os sujeitos e as determinações sociais e históricas, por isso é que
surge uma necessidade da articulação com outros saberes - tal qual a história, por exemplo -
para dar conta dos objetos mobilizados pelos analistas.
Finalmente, não obstante essa diversidade de objetos, pode-se afirmar com Orlandi
(op. cit.) que “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”.

Contextualizando o Ambiente do Sujeito-Autor Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga nasceu ao pé da Serra do Araripe, em 13 de dezembro de 1912, na


fazenda Caiçara, em Exu, município do oeste pernambucano, fronteira com o Crato,
município cearense. Gonzaga cresceu nesse espaço, o Cariri pernambucano, participando de
atividades agrícolas para ajudar a família ao mesmo tempo em que aprendia com o pai a tocar
as primeiras notas ao acordeom. Era o ambiente de encontros com as pessoas nas feiras, de
trabalho como ajudante do coronel Manuel Aires de Alencar e, mais tarde, dos bailes
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animados pela sanfona de oito baixos de Gonzaga. Ambiente, então, de valiosas interações
linguísticas e sócio-culturais naquela região pernambucana. Rebento de família pertencente à
classe social baixa exuense, o segundo de um grupo de nove filhos, conforme relatou o
próprio Gonzaga: “fui o segundo dos nove, o primeiro sendo Joca. Depois, em anos
sucessivos ou espaçados, foram chegando Geni (Efigênia), Severino, José, Raimunda
(Muniz), Francisca, Socorro e Aloísio” (SINVAL SÁ, 2012, p. 22).
Batizado Luiz Gonzaga do Nascimento na matriz de Exu em 5 de janeiro de 1913, o
Rei do Baião ganhou esse nome por sugestão do então padre, José Fernandes de Medeiros.
Porque nascera no dia de Santa Luzia, deveria se chamar Luiz, já que era homem, Gonzaga
porque era o complemento do nome do santo Luiz Gonzaga, e, por fim, Nascimento em
virtude de dezembro ser o mês de nascimento do menino Jesus. Interessante registrar que foi o
único com nome diferente dos demais irmãos, como atesta a pesquisadora Dominique Dreyfus
(2012, p. 31).
Luiz Gonzaga apresentou logo cedo certa musicalidade, acompanhando o pai nas
festas e tocando sanfona de oito baixos. Aos dezessete anos, fugiu de casa para o Ceará, após
levar uma surra da mãe, que soubera que o filho havia desafiado - armado com uma faca – o
pai de Nazinha, garota com quem namorava às escondidas e pretendia casar-se. Ao chegar ao
Rio de Janeiro em 1939, já possuía uma sanfona maior e passou a frequentar programas de
calouros na Radio Nacional. Alcançou o sucesso. Conquistou o Rio de Janeiro. E, como
consequência, o Brasil. Por justo merecimento, tornou-se conhecido como o Rei do Baião. A
mudança para o sudeste proporcionou a Gonzaga o contato com o grande centro produtor do
mercado fonográfico. Como lembra Laraia (2013, p. 46), não basta a natureza criar gênios,
isto acontece com frequência; entretanto, faz-se necessário que coloque ao alcance desses
indivíduos o material que lhes permita exercer toda sua criatividade de uma forma
revolucionária.
Luiz Gonzaga tinha consciência que seu grande público o acompanhava aonde fosse,
principalmente os migrantes residentes no Rio e São Paulo. O seu idioleto3 era
predominantemente o do falar nordestino, mesmo que tivesse tido a oportunidade de conviver
com advogado, médico – profissões de seus principais parceiros -, músicos, compositores e
empresários. As músicas de Luiz Gonzaga exaltavam, principalmente, o Nordeste, seus

3
Língua tal como é observada no uso particular de um indivíduo.
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ritmos, sua língua, seu povo e suas tradições culturais. Segundo Albuquerque Jr. (2011, p.
178),

Luiz Gonzaga assume a identidade de “voz do Nordeste” que quer fazer sua
realidade chegar ao Sul e ao governo. Sua música “quer tornar o Nordestino
conhecido em todo país”, chamando a atenção para seus problemas,
despertando o interesse por suas tradições e “cantando suas coisas positivas”.

O Entorno Sócio-Histórico: a seca de 1953

Em 1953, o país vivia o segundo governo do presidente Getúlio Vargas, eleito


democraticamente em 1950, após sua primeira experiência como líder da nação durante a
ditadura do Estado Novo que perdurou por oito anos (1937-1945). Segundo Beloch et al
(2010), o segundo período do governo varguista foi marcado pela retomada de uma orientação
nacionalista cuja expressão maior foi a luta para a implantação do monopólio estatal sobre o
petróleo, com a criação da Petrobrás. É nessa conjuntura que, entre os anos 1951-1953, o
nordeste brasileiro enfrentou uma seca bastante prolongada, mobilizando os estados do sul em
campanhas de ajuda aos nordestinos.
É historicamente emblemático o caso do município de Surubim, em Pernambuco, onde
aproximadamente 1.500 pessoas, desesperadas, se aglomeraram para saquear o comércio
local. O saque só foi evitado pela intervenção do pároco local, padre Ferreira Lima, que
arrecadou cestas básicas dos comerciantes da cidade para doar ao povo faminto.

Figura 01: Aglomeração dos flagelados da seca de 1953, em Surubim/PE.


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Fonte: <http://www.isurubim.net/2012/11/imagens-impressionantesa-invasao-dos.html>

Inserido nesse contexto dramático, o objeto simbólico aqui referenciado - a canção


Vozes da Seca - foi composto por Luiz Gonzaga e Zedantas, seu parceiro musical em várias
músicas de sucesso na carreira do Rei do Baião. Na verdade, cerca de 86% das músicas
gravadas por Luiz Gonzaga, entre 1949 e 1957, são de composições com o médico Zedantas,
conforme informa Ferreti (2012, p. 19).

Os Discursos sobre o Nordeste e os Nordestinos

Laraia, (2013, p. 45) referindo-se ao homem em geral, diz que este

é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é o herdeiro de um


longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência
adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação
adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as
invenções.

No que concerne ao contexto cultural nordestino, por ser uma região menos
industrializada e economicamente mais frágil, frequentemente o nordeste é retratado como
espaço inferior, lugar de penúria e miserabilidade, e o homem nordestino é visto como pessoa
mal-informada, alheia aos condicionamentos sócio-históricos que suscitam as adversidades
que afligem sua vida. Esse quadro cria uma espécie de arquivo cultural de nordeste
subdesenvolvido e ignorante que é replicado em textos, músicas e poesias. Desse modo,
Lucena (2006, p. 3.) pondera que

este contexto sócio-histórico constrói uma memória coletiva que é repassada


de geração a geração e constrói formações discursivas peculiares a essa
realidade. Formações estas que carregam consigo valores, mitos, crenças os
quais se arquivam no saber de uma comunidade e se condensa por práticas
sociais ressonantes em vozes sociais capazes de identificarem sujeitos
ideologicamente marcados por este processo histórico.

Não obstante a situação apresentada, atualmente é possível verificar a existência de


um tipo de discurso diametralmente oposto: que promove o Nordeste como espaço
paradisíaco, com riquezas naturais e pujante em diversidade cultural. Por exemplo, Lucena
(2012, p. 17) verificou práticas discursivas em folhetos turísticos que reconstroem a imagem
do Nordeste não como um lugar de atraso, decadência e problema social brasileiro, mas como
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territorialização constituída de raízes sócio-histórico-culturais capazes de construir uma


memória integralizadora de triunfos de uma identidade brasileira.
Dessa forma, tem-se que os discursos podem confrontar-se à memória coletiva que é
transferida de geração a geração de uma imagem de nordeste pobre onde os nordestinos são
indivíduos sem instrução, intrinsecamente subordinados e conformados com a sua situação
sócio-econômica. Adiante, analisamos um discurso cuja materialidade discursiva é uma
canção que já se contrapunha, anos atrás, à situação de subserviência do homem nordestino.

Vozes da Seca, Vozes de Protesto

Na música popular do nordeste, feita nas décadas de 40 e 50, não é raro encontrar
letras que retratem uma memória sócio-histórica de nordestinos desvalidos, muitas vezes,
conformados com a situação de penúria causada “exclusivamente”, para muitos, pela baixa
pluviometria da região. Entretanto, é igualmente possível encontrar canções que questionam a
situação de dependência econômica e de falta de investimento na região. Passemos, pois, à
análise do texto da canção Vozes da Seca:

Vozes da Seca
(Luiz Gonzaga/Zedantas)
4
Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos

4
Utiliza-se a transcrição grafemática do texto, mantendo-se as formas linguísticas das palavras e expressões tais
quais foram usadas na canção.
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Não obstante o reconhecimento da situação de carência causada pela seca e a gratidão


pela ajuda recebida pelos “sulistas”, os sentidos instaurados a partir do texto remetem a um
sujeito que se posiciona e tem ciência de que a resolução para o seu estado de privação
material não está na doação de esmolas para o homem nordestino, sadio e reconhecidamente
trabalhador, já que essa ajuda tem consequência negativa dupla: o auxílio gratuito a quem dele
não necessita pode ser extremamente vergonhoso ou, pior, pode viciá-lo, condenando-o à
ociosidade. O sentido que emerge do discurso do sujeito-autor questiona a ideia de identidade
exterior nordestina estereotipada. Neste ponto, esse efeito de sentido se coaduna com a
opinião de Albuquerque Jr. (2011, p. 38) que defende existir no interior dessa identidade uma
diferença fundante, uma batalha, uma luta, que é preciso ser explicitada.
Nessa luta, o sujeito demonstra ter também consciência de que o indivíduo
responsável pela administração do país foi eleito democraticamente (home pur nóis escuído
para as rédias do pudê) e, portanto, é lícito reivindicar uma solução definitiva para o
problema de convivência com os efeitos danosos da seca. É significativo o uso da metáfora
“rédeas do poder” que traz o efeito de sentido de que o governante pode controlar seu povo
por intermédio de instrumentos eminentemente usados para dominar animais irracionais,
suscitando uma memória discursiva acerca de uma identidade nordestina de subordinação
alimária que inclui, dentre outras construções metafóricas, expressões como “voto de
cabresto” e “curral eleitoral”.
Por outro lado, o enunciador5 sabe que o cenário de estiagem apresentado alcança
quase todo o país e se posiciona quanto a essa situação, sugerindo ações que vão desde a
implantação de infra-estrutura (encha os rio de barrage, não esqueça a açudage) à política
econômica (dê serviço a nosso povo, dê cumida a preço bom). As medidas apontadas pelo
sujeito revelam uma memória discursiva de investimento em áreas estratégicas que podem
levar ao fim desse estado de dependência da solidariedade de seus compatriotas, libertando-
os, assim, da submissão econômica (Livre assim nóis da ismola) dos estados “do sul”.
O sujeito enunciador fala na primeira pessoa do plural, colocando-se como
representante de um grupo, porta-voz de um dialogismo legitimado pela ideologia do sistema
democrático, que tem no lema “o governo do povo, pelo povo e para o povo” a sua maior
representatividade. Ademais, o sujeito deixa revelar que compreende, como parte integrante
do exercício da cidadania, a apresentação de proposições com o intuito de incentivar

5
O termo enunciador se refere à perspectiva que o “eu” assume no discurso.
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melhorias nas condições sócio-econômicas de uma população sofrida. Em suma, o protesto


propositivo é dialógico e polifônico, pertinente, convergindo para um objetivo comum: a
resolução de problemas sócio-históricos dos nordestinos, de forma definitiva.
Outro sentido instaurado é o do sujeito enunciador que assegura o pagamento do
investimento a ser feito na região, vez que os nordestinos pagariam de bom grado o montante
do crédito liberado, o que lhes garantiria não ter mais que depender de esmolas nem ver a sua
dignidade abalada (lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage). Tal cenário revela
valores ideológicos integrados no dizer do enunciador: o homem nordestino precisa de
crédito, mas não dará calote, posto que é honesto e trabalhador.
A certeza de que a saída para os problemas apresentados é uma política econômica
inclusiva, que trará soluções definitivas para o sertão, põe em relevo que o sujeito não é
simplório, alheio às causas das condições adversas que afligem a extensão areal onde vive (Se
o doutô fizer assim salva o povo do sertão). Mediante os pedidos para realização de obras
estruturantes, o sujeito demonstra compreender que não se pode eliminar o fenômeno da seca,
mas deve-se aprender a conviver com ela. O destino dos nordestinos, que é, em última análise,
de todos os brasileiros, depende apenas das ações governamentais daqueles que detêm o
poder, privilegiando a superação das diferenças regionais historicamente criadas (Como vê
nosso distino mercê tem nas vossa mãos), mormente por intermédio de investimentos em
obras que desmontem a “indústria da seca” no Nordeste, prática bastante fomentada entre
políticos fisiologistas.
Por fim, é lícito afirmar que o sujeito deixa revelar, pelo discurso, que é cônscio de
que as relações de poder interferem naquilo que os nordestinos são naquele momento
sóciohistórico, questionando o que se poderia fazer para que a situação fosse diferente do que
ela é.

Considerações Finais

A análise da canção “vozes da seca”, ancorada nos pressupostos teóricos apresentados


sob a perspectiva da Análise do Discurso, permite fazem algumas inferências conclusivas.
Passemos a expô-las.
A canção permite entrever vários efeitos de sentidos que emergem da historicidade do
texto que trata da visão do enunciador sobre a situação de seca e as condições
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socioeconômicas dos nordestinos. O discurso faz revelar uma formação discursiva que traz
consigo valores que defendem uma criação e libertação do Nordeste como espaço sócio-
histórico livre da dependência econômica do centro-sul brasileiro. O sujeito enunciador
apresenta-se, assim, propositivo. O enunciador mostra-se, efetivamente, como representante
legítimo de um conjunto de vozes, vozes de uma coletividade cuja identidade interior se
rebela - embora de forma não panfletária - contra a estereotipada identidade exterior
nordestina: maltrapilho pedinte, resignado com a sua situação sócio-econômica, assujeitado
por uma formação discursiva de subserviência.
Foi possível verificar sentidos que emergem do discurso enquanto reveladores de uma
memória discursiva de investimento econômico em outros estados da federação que os
elevaram à categoria de espaços desenvolvidos, em contraponto ao esquecimento e
subdesenvolvimento da região Nordeste.
Evidenciamos também efeitos de sentido retratados em expressões metafóricas
reveladoras de um Nordeste submisso e contra o qual o sujeito se insurge, desafiando
procedimentos de exclusão sem ter, contudo, pretensões revolucionárias.
O discurso do sujeito-autor Luiz Gonzaga é permeado de reivindicações e propostas,
apontando as possíveis soluções para o problema de convivência com a estiagem prolongada.
As representações do homem nordestino na canção “vozes da seca” desvela ainda sentidos
sobre um sujeito que cobra responsabilidade de quem detém o poder-dever institucional de
investir na região para eliminar as discrepâncias sócio-econômicas historicamente
construídas.
Por fim, o texto como espaço significante do discurso instaurado permitiu entrever um
sujeito-autor que não se harmoniza com a visão estereotipada de canções que cantam um
nordeste somente de resignação “romântica” à situação de dificuldades que atravessa por
causa da seca prolongada. O enunciador possibilitou revelar efeitos de sentidos no texto, a
partir de várias vozes: vozes da seca, vozes de protesto que, sob o ponto de vista da Análise
do Discurso, busca incessantemente compreender os diferentes processos de significação em
função de sua historicidade. Concluindo, retomamos a epígrafe de um de nossos
interlocutores e que abre este estudo: “se só houvesse submissão, não haveria produção de
novos sentidos”.

Referências
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 378

IMAGENS impressionantes: a invasão dos flagelos da seca em Surubim, 1953. iSurubim.


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SUÍCIDIO, SILENCIAMENTO, SUBLIMAÇÃO: ARQUÉTIPOS FEMININOS


TRÁGICOS ENQUANTO LUGARES DE MEMÓRIA NO FILME ELENA

Suéllen Rodrigues Ramos da Silva1


PPGL/UFPB

O suicídio e a interdição social do tema

Há uma morte que vem de fora e uma morte que cresce por dentro. Cada
uma delas produz uma dor diferente. (Rubem Alves)

O suicídio é um tema ainda tratado como tabu na sociedade contemporânea. Neste


trabalho propomos analisar o documentário Elena (2013), que trata da relação de sua diretora,
Petra Costa, com as memórias de sua irmã, personagem-título, que se suicidou aos 20 anos,
fato ocorrido quando a cineasta tinha apenas sete anos de idade.
O filme retrata também o modo como a família lidou com a dor da perda, além do
desencanto e das dores da alma sentidas tanto pelas duas irmãs quanto pela mãe na
adolescência e início da juventude, durante o processo de tornarem-se mulheres, apresentando
a aproximação do modo de sentirem e verem o mundo, resultando numa sobreposição e
confusão de identidades entre as três personagens.
Segundo afirma a psicanalista Urania Tourinho Peres (2003, p. 8), “estamos vivendo a
democratização da tristeza em sua dimensão mais aguda. Não é mais uma forma de situar-se
no mundo, porém uma característica do homem da atualidade. Globaliza-se um estado d’alma.
A depressão é o mal do século”.
A autora ressalta ainda que

a depressão domina a humanidade nesse fim de século XX e início do século


XXI, tornando-se inclusive um meio privilegiado de compreensão do
homem contemporâneo. As diferentes abordagens para dar conta desse
universo mórbido apenas refletem a complexidade do ser humano e o caráter
redutor de cada leitura. (PERES, 2003, p. 26).

O Brasil é hoje o oitavo país com maior índice de suicídios, de acordo com números
da Organização Mundial de Saúde. Em 2012, registrou-se 11.821 mortes em nosso país,

1 Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba - PPGL/


UFPB. Desenvolve o projeto Elena, Ofélia e A pequena sereia: arquétipos femininos trágicos e leituras da
recepção crítica. Bolsista CAPES/DS.
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média que ultrapassa 32 casos por dia2. De acordo com a Rede Brasileira de Prevenção do
Suicídio – REBRAPS3, esse número pode ser ainda maior, considerando a fragilidade da
captação e registro de informações. No mundo, segundo a organização, ocorre uma morte por
suicídio a cada 40 segundos.
Apesar de tal abrangência, o que se vê é um silenciamento social a respeito do
suicídio, o que se justificaria pelo receio de o debate público gerar ainda mais casos a partir
do efeito de imitação. Esse posicionamento é rechaçado pela REBRAPS, que defende a
discussão responsável sobre o assunto e a adoção de medidas amplas de saúde pública a fim
de que haja maior conscientização e prevenção.
Roosevelt Cassorla (1991, p. 22) destaca o fato de que “o suicida não quer morrer – na
verdade ele não sabe o que é a morte. Aliás, ninguém sabe. O que ele deseja é fugir do
sofrimento”. Esse entendimento conduz à reflexão sobre a devida conscientização sobre o
suicídio enquanto uma das vias para evitar novas ocorrências.
Há um cuidado necessário no modo como abordar tal temática e um temor social, o
que gera medidas como a elaboração, por parte da Associação Brasileira de Psiquiatria –
ABP, da cartilha Comportamento suicida: conhecer para prevenir (dirigido para
profissionais de Imprensa)4, sobre o modo como noticiar os casos que ocorrem a fim de evitar
a propagação de atos suicidas, a exemplo do acontecimento a partir do qual foi cunhada a
expressão “efeito Werther”:

a percepção de que a imprensa ficcional e não-ficcional pode influenciar o


suicídio é antiga. Goethe veio a público se defender, pois, aparentemente,
uma centena de jovens cometera suicídio após a publicação de seu livro Os
sofrimentos do jovem Werther, em 1774. Alguns estavam vestidos ao estilo
da personagem principal do livro, ou adotaram o mesmo método de suicídio,
ou o livro foi encontrado no local da morte. Nesse romance o protagonista se
apaixona por uma mulher que não está ao seu alcance, e decide tirar a
própria vida. Este fenômeno originou o termo “Efeito Werther”, usado na
literatura médica para designar a imitação de suicídios. (ABP, 2009, p. 20).

2
Informações extraídas de matéria divulgada pela Agência Brasil. AQUINO, Yara. OMS alerta para a
importância da prevenção do suicídio. Online. 04 set. 2014. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-09/oms-alerta-para-importancia-de-prevencao-ao-suicidio>.
Acesso em: 25 set. 2014.
3
Cf. REBRAPS - http://www.rebraps.com.br/.
4
Cf. ABP. Comportamento suicida: conhecer para prevenir (dirigido para profissionais de Imprensa). São Paulo,
ABP Editora, Out. 2009. Disponível em: http://www.abp.org.br/portal/wp-
content/upload/2013/10/cartilhasuicidio_2009_light.pdf>. Acesso em: 25 set. 2014.
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O filme é uma homenagem de Petra à irmã Elena e representa um processo de


maturação do modo como enfrentar a perda a partir de um ato corajoso de exposição de algo
tão pessoal, colocando-se a nu através da obra. Além disso, a documentarista também se
utiliza de seu filme, documentário com maior número de espectadores nos cinemas brasileiros
em 2013, para trazer à tona, inclusive fora das telas, em debates e ações realizados a partir do
filme, e mesmo no site do próprio documentário, um modo de fomentar a discussão a respeito
do suicídio e os possíveis meios de prevenção.
Diante da centralidade das discussões gerais sobre o suicídio para o documentário
Elena enquanto projeto que não se encerra no objeto fílmico, transcendendo-o e reverberando
ao provocar propositalmente o debate social sobre o tema, e do, já referido, receio existente
para tratar abertamente sobre o assunto culturalmente silenciado, observarmos de como
constroem-se imageticamente no filme representações da melancolia, do suicídio e da morte
através do diálogo com referências do universo literário, arquétipos femininos trágicos que
constituem lugares de memória estabelecidos no imaginário coletivo.
A ativação desses elementos circundantes na memória social mostrou-se relevante
para que houvesse uma sublimação de sentidos, tornando possível trabalhar o ato suicida a
partir de um texto5 que apresenta dados de referencialidade, da crueza do ato, da intensidade
da dor que o envolve, mas também da superação desta dor via mergulho interiorizado, de
modo sensível e delicado.

A representação de uma memória inconsolável

E pouco a pouco... As dores viram água... Viram memória... As memórias


vão com o tempo, se desfazerem. Mas algumas não encontram consolo, só
algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é minha memória
inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce, e dança.
(Elena Filme)

Ao iniciarmos nossa reflexão sobre o modo como Elena faz uso de lugares de
memória para tratar de forma sublime de um tema silenciado cultural e socialmente, cabe
ponderarmos que este filme traz em si especificidades em sua proposta que lhe conferem um
caráter de maior liberdade criativa, distanciando-se da ideia difundida tradicionalmente do

5
Termo entendido aqui em sentido amplo, como “suporte através do qual um discurso se materializa, podendo
ser tal suporte verbal ou não-verbal” (INDURSKY, 2011, p. 76).
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documentário fixado de modo rígido à ideia de referencialidade, que geralmente


desconsideraria tamanha imbricação com elementos de encenação e ficcionalidade.
Elena é uma obra que tensiona as fronteiras do documentário, filme autorreflexivo, no
qual a documentarista desnuda-se de modo generoso. Conforme aponta Bill Nichols (2005,
p.163, grifos do autor), “em lugar de ver o mundo por intermédio dos documentários, os
documentários reflexivos pedem-nos para ver o documentário pelo que ele é: um constructo
ou representação”. Em Elena, o espectador é lembrado em diversos momentos de estar diante
de um filme, de uma representação.
O documentário mantém-se enquanto objeto de um gênero ancorado na realidade, mas
evidencia que mesmo as chamadas produções não ficcionais são antes de tudo um
“constructo” (DA-RIN, 2004), havendo, portanto, uma clara construção discursiva com base
não apenas na intencionalidade de seu realizador, mas também em sua formação discursiva,
que se revela mesmo quando não há um desejo de dar-se a ver.
Com a valorização da interioridade das personagens, Elena é marcado por dados de
referencialidade que garantem a estrutura-base do filme, mas recorre a elementos artísticos a
partir de um olhar direcionado pela subjetividade, ingredientes claros de ficcionalização, uso
de encenação, cuidado com a composição da imagem, a fotografia, a mise-en-scène. No filme,
evidencia-se a intenção de que a abordagem da morte de Elena seja feita poeticamente. Para
tanto, a diretora lança mão da ativação de lugares de memória que, por sua ampla difusão,
estão inseridos em nossa memória social e coletiva.
Cabe referimo-nos, por meio do documentário, ao acionamento de alguns discursos pré-
construídos, conceito que Freda Indursky (2011, p. 69) define como “todo o elemento de
discurso que é produzido anteriormente, em um outro discurso e independentemente”. A
autora destaca também uma característica da noção de memória em análise de discurso: “o
sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob o regime da repetibilidade, mas o faz afetado
pelo esquecimento, na crença de ser a origem daquele saber”, tratando-se aqui da “memória
de conhecimento”, da “memória social” (INDURSKY, 2011, p. 70-71).
Durante a exibição de Elena, dependendo de sua formação discursiva, o espectador pode
trazer à tona um componente da memória social de grande circulação e alcance. Trata-se do alto grau
de poeticidade da imagem da bela morta, entendimento de Edgar Allan Poe em A filosofia da
composição, texto bastante conhecido, estudado e influente para a produção literária, no qual o autor
discorre sobre o ato de criação artística:
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Então, jamais perdendo de vista o objetivo – o superlativo, ou a perfeição e


todos os pontos – perguntei-me: “De todos os temas melancólicos, qual,
segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?” A
Morte – foi a resposta evidente. “E quando – insisti – esse mais melancólico
dos temas se torna o mais poético?” Pelo que já explanei, um tanto
prolongadamente, a resposta também aí era evidente: “Quando ele se alia,
mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é,
inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca
mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu
amor”. (POE, 1987, p. 82).

Esse é um dos discursos circundantes que reverberam na interpretação fílmica, e, por


este motivo, merece registro. Contudo, privilegiamos neste artigo a reflexão a respeito de
quais são e como se dá a ativação dos diferentes lugares de memória e a circulação destes
sentidos que permeiam o texto fílmico com base em arquétipos femininos trágicos
diretamente referidos no filme.
Para Northrop Frye (1973, p. 101), o arquétipo é “uma imagem típica ou recorrente”,
um “símbolo comunicável”, em geral, imagens comuns a todos os homens, tendo, portanto,
“um poder comunicativo potencialmente ilimitado” (p. 118). A visão de Frye leva-nos à
reflexão de Maria do Rosário Gregolin (2011, p. 91), ao afirmar que “tanto há uma memória
para o passado como há uma memória para o futuro, pois um acontecimento discursivo abre
sempre a possibilidade do seu retorno”. Gregolin esclarece ainda que

é preciso admitir que a memória tem uma estruturação complexa, discursiva,


verbal, não-verbal, de muitas materialidades, mas ela tem um mecanismo de
repetição e de regularização. [...] É essa regularização, é o fato de voltar e
por voltar e constituir uma memória a partir de reduções, retomadas, efeitos
de paráfrases, que vão formar a lei da série do legível. A ordem do olhar,
assim como a ordem que afeta as materialidades linguísticas, também é uma
ordem do repetível, da regularidade, da regularização. (GREGOLIN, 2011,
p. 96).

Um elemento a ser considerado em Elena é o modo como caracteres de personagens


ficcionais de obras literárias reforçam traços das personagens reais da narrativa. No próprio
texto fílmico, percebe-se forte referência a dois arquétipos que apresentam interface com a
representação da documentarista Petra Costa e de sua irmã: a sereia que protagoniza o conto
de Hans Christian Andersen, A pequena sereia, de 1837, enredo sem final feliz, distinto da
versão mais difundida da narrativa infantil; e Ofélia, da tragédia Hamlet, de Shakespeare,
impressa em 1603, personagem fundamental, que se suicida, morrendo afogada em um rio.
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A sereia, de acordo com Annie Lermant (2005), é um mito que demonstra


complexidade, uma figura enigmática, com representações múltiplas, tanto iconográficas
quanto literárias, mas com designações comuns, sinônimo do canto, e sendo retratada, em
geral, mantendo um elo com o mundo dos mortos.
No contexto do documentário, a personagem da obra infantil permite ainda estabelecer
outro vínculo simbólico com Elena: a sua relação com a arte permeada pelo sofrimento. A
sereia, no início do conto, é dona da mais linda voz, mas a perde ao assumir a forma humana
por meio de um acordo com a bruxa do mar, não podendo mais cantar. É através da dança, na
qual também se destaca, que chama a atenção do príncipe. Entretanto, para ela, dançar é algo
doloroso, pois, também como consequência da transformação, sentia como se houvesse facas
afiadas sob seus pés cada vez que pisava no chão. No filme de Petra Costa, a dança é um
elemento fundamental e a relação conturbada de Elena com o universo artístico, na
perseguição do sonho de tornar-se atriz de cinema, é apresentada como motivação para o seu
suicídio.
A personagem do conto de Andersen, mencionada diretamente no documentário,
aproxima-se da representação de Ofélia, podendo igualmente ser vinculada às desilusões
juvenis e à morte voluntária, por ter a oportunidade de escolher entre morrer ou tirar a vida do
príncipe que ama. Evidentemente, é possível ainda relacioná-la à imagem recorrente da água,
ambiente em que vive e para o qual volta após sua morte.
Maria do Rosário Gregolin discorre a respeito da dialética entre memória e
esquecimento de um acontecimento discursivo:

a permanência do acontecimento, sua inscrição na história, depende de


agenciamentos, de instituições técnicas. Alguns acontecimentos discursivos
retornam constantemente, pois estão instalados com muita força na memória
cultural: esse insistente retorno opera a canonização. [...] Esse insistente
retorno de alguns acontecimentos discursivos tem como contraparte o
apagamento de outros. (GREGOLIN, 2011, p. 90).

Esta ideia de canonização e apagamento remete-nos a um trecho que compõe a


narração em voz over6 do filme Elena e mostra-se relevante para nossa argumentação:

PETRA: Naquele tempo eu não acreditava em Deus nem em Papai Noel,


mas acreditava em sereias. Elas me pareciam tão possíveis quanto os cavalos
marinhos que eu via no aquário. Você me leva para ver o filme da Pequena

6
Mousinho (2012, p. 82) esclarece que, “grosso modo, chamamos de voz over ao som não diegético, ou seja, à
fala do personagem que não corresponde à fala ou ao diálogo de uma ação que se desenrola naquele momento”.
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Sereia no cinema que fica na esquina de casa. E nesse dia você volta a
brincar comigo de encenar, e a gente volta pra casa cantando, e sentindo que
nem ela, embaixo d’água, sonhando em trocar de pele. Depois você lê pra
mim a história original, em que ela sofre pra se tornar mulher, perde a voz e
morre. “Como assim ela morre?”, eu te pergunto. Me sinto enganada, peço
para dormir com você.

O relato contido no filme-carta aponta para o fato que nos referimos anteriormente: a
história A pequena sereia, que se estabeleceu no imaginário coletivo, amplamente difundida
através do cinema comercial, é uma narrativa infantil que se constitui enquanto releitura do
conto trágico de Andersen, com a definição de um final feliz para a personagem protagonista,
atendendo às expectativas do espectador comum. A partir de seu alcance e repetição, o texto
fílmico sobrepõe-se ao texto original, operando um apagamento deste e mesmo causando um
estranhamento ao dar-se o contato com o conto de Andersen após se conhecer a narrativa dele
derivada.
As referências a Ofélia, personagem da peça shakespeariana, estão por todo o
documentário de Petra Costa. Desde o uso da água como elemento cênico constante 7; trechos
narrados dos diários de Petra e Elena; imagens de arquivo da própria diretora do filme, ainda
adolescente, interpretando Ofélia; e mesmo em encenações autoficcionais e da personagem.
Martha Kiss Perrone, diretora de arte e preparadora de elenco do documentário,
esclarece que as referências a Ofélia remetem ao fim trágico, mas também o ressignificam,
vendo em sua morte um ato de liberdade e rebeldia: “o suicídio da Ofélia no Hamlet é uma
manifestação de vida. Ela não pode agir. Finalmente, quando ela faz algo, é se matar”8. Érika
Vieira (2010), em trabalho sobre as representações de Ofélia nas artes visuais e leituras
críticas de Shakespeare, refere-se ao percurso trágico da personagem e ao vínculo de sua
imagem à insanidade, à morte, mas também à feminilidade, à fragilidade, à vitimização e à
água enquanto elemento feminino. A cena de sua morte, demonstra a autora, é retratada, em
geral, não com morbidez, mas com vivacidade e beleza, sem trazer em si o sofrimento do ato.
Observa-se que reverbera na fotografia do filme uma representação recorrente da
morte da personagem da peça Hamlet, o quadro Ophelia, de John Everett Millais, datado de
1852. A pintura constitui-se enquanto imagem-monumento, canonizada, tornada ícone,

7
Elena, irmã de Petra, suicida-se tomando aspirinas com cachaça. Não há, portanto, qualquer relação entre as
circunstâncias de sua morte e a presença constante da água enquanto elemento estético utilizado em todo o filme.
8
Complexo de Ofélia: o lugar e os direitos das mulheres na sociedade. Elena Filme. 2 ago. 2013. Disponível
em: <http://www.elenafilme.com/mobilizacao-social/complexo-de-ofelia/>. Acesso em: 29 set. 2013.
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imagem fundamental, que retorna constantemente, materializando-se em inúmeros lugares


textuais e discursivos (GREGOLIN, 2011).

Figura 1 – Quadro de Millais enquanto imagem de referência para a fotografia do documentário.

O discurso fundador para as representações da cena da morte da personagem Ofélia e,


portanto, lugar de memória para a concepção do quadro de Millais, é a descrição feita pela rainha
Gertrudes, mãe de Hamlet, que está no texto da peça shakespeariana:

RAINHA: Há um salgueiro que cresce inclinado no riacho


Refletindo suas folhas de prata no espelho das águas
Ela foi até lá com estranhas grinaldas
De botões-de-ouro, urtigas, margaridas
E compridas orquídeas encarnadas
Que nossas castas donzelas chamam dedos de defuntos
E que os pastores, vulgares, dão nome mais grosseiro.
Quando ela tentava subir nos galhos inclinados,
Para aí pendurar as coroas de flores,
Um ramo invejoso se quebrou;
Ela e seus troféus floridos, ambos,
Despencaram juntos no arroio soluçante
Suas roupas inflaram e, como sereia,
A mantiveram boiando um certo tempo;
Enquanto isso ela cantava fragmentos de velhas canções,
Inconsciente da própria desgraça
Como criatura nativa desse meio,
Criada para viver nesse elemento.
Mas não demoraria para que suas roupas,
Pesadas pela água que a encharcava
Arrastassem a infortunada do seu canto suave
À morte lamacenta.
(SHAKESPEARE, 2011, p. 116-117).
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Apesar de haver uma grande quantidade de pinturas feitas com base na descrição da
morte de Ofélia, o quadro de Millais é uma das obras mais conhecidas, tornando-se uma
representação artística canônica a respeito do suicídio, imagem amplamente difundida em
diversas produções anteriores ao filme de Petra Costa. O discurso, antes apenas verbal, mas
dotado de grande visualidade e potencial imagético, ganha força e representatividade a partir
de sua iconicidade, imagem que compõe a memória social, sobre a qual Indursky observa:

se há repetição é porque há retomada/regularização de sentidos que vão


constituir uma memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito
do discurso revestida da ordem do não-sabido. São os discursos em
circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio-histórico,
que são retomados, repetidos, regularizados. (INDURSKY, 2011, p. 71).

Enquanto imagem-monumento, termo utilizado por Gregolin (2011), ou imagem-


mundo, conforme adotado por Courtine (2011), o quadro Ophelia está difundido no
imaginário coletivo, em releituras a partir da própria pintura, por meio de fotografias ou
mesmo enquanto parte da mise-en-scène em outros textos, seja no cinema, na televisão e até
em videoclipes.
Jean-Jacques Courtine (2011, p. 160) traz o conceito de intericonicidade, assinalada
como uma noção complexa, por supor “a relação entre imagens externas, mas também entre
imagens internas, as imagens da lembrança, as imagens da rememoração, as imagens das
impressões visuais armazenadas pelo indivíduo”, não havendo imagem que “não faça
ressurgir em nós outras imagens, quer essas imagens tenham sido já vistas ou simplesmente
imaginadas”. Partindo da ideia de intericonicidade, podemos pensar de que forma o uso do
quadro Ophelia, de Millais, dá-se de modo peculiar em Elena.
Apesar de, no documentário, encontrarmos imagens nas quais a diretora Petra Costa,
sozinha, representa Ofélia, aproximando-se da reprodução comum da pintura feita por Millais,
merece atenção uma das cenas mais importantes do filme, na qual o suicídio é referenciado
por meio de uma imagem metafórica associada à morte de Ofélia, utilizada diversas vezes
durante a projeção, em que várias mulheres, entre elas, Petra e sua mãe, deslizam na água
límpida com vestidos floridos.

Figura 2 – Fotogramas do filme Elena: cena das Ofélias.


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A ideia de referir-se às Ofélias, no plural, surge desde o texto em voz over, quando Petra
relata o momento em que se tornou mais velha que Elena: “E eu, com muito mais consciência
para sentir a sua morte dessa vez, o imenso prazer que vem acompanhado da dor. Me afogo
em você, em Ofélias. Enceno, enceno a nossa morte, pra encontrar ar, pra poder viver”. Tal
uso dá-se também na construção cênica posta em tela, reforçando a ideia do drama comum de
desadequação e sofrimento na passagem do tornar-se mulher, vivido tanto pela mãe Li An quanto por
Petra e Elena e que teria sido caminho para o desencanto da jovem atriz e seu suicídio, refletindo um
sentimento socialmente compartilhado por outras mulheres.
Elena, portanto, não apenas resgata, mas atualiza uma imagem-monumento de ampla
difusão, canonizada no imaginário social. O documentário ressignifica a representação da morte de
Ofélia indo além do significado da imagem da bela morta, sugerido por Poe (1987), da morte
sublime, figurada no quadro de Millais (1852) e reproduzida em diversas obras. A encenação feita
por Petra, na qual ela, sua mãe e outras mulheres deixam-se levar pelas águas com suavidade, leveza,
feminilidade, em imagens fluídas, de movimento, vai além do vínculo à personagem shakespeariana,
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ao suicídio cometido por Ofélia, e mesmo à morte de Elena. A cena toma uma amplitude maior,
representando a melancolia, o desencanto, o sentimento de vazio existencial enquanto mal-estar
social que transcende a dor da perda relatada em tela e os limites do próprio filme.

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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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MOUSINHO, Luiz Antonio. A sombra que me move: ensaios sobre ficção e produção de
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LÍNGUA E CULTURA DO MARANHÃO

TICO TICO SIRILICO... O QUE É, O QUE É? – PARLENDAS E ADIVINHAS


MARANHENSES DAS OBRAS DE DOMINGOS VIEIRA FILHO

Cibelle Correa Béliche Alves


UFMA
Conceição de Maria de Araujo Ramos
UFMA
José de Ribamar Mendes Bezerra
UFMA
Maria de Fátima Sopas Rocha
UFMA

Introdução

O professor e estudioso maranhense Domingos Vieira Filho (São Luís, 1924 – 1981) é
autor de obras fundamentais para o patrimônio cultural do Estado do Maranhão. Membro do
Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, da Comissão Maranhense de Folclore e da
Academia Maranhense de Letras exerceu, dentre outros cargos e funções, os de professor da
Universidade Federal do Maranhão, Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de
Educação e Cultura do Estado do Maranhão e Presidente da Fundação Cultural do Maranhão.
Escreveu mais de uma centena de obras científicas sobre a linguagem e a cultura popular
maranhense, que o projeto Dicionário Crítico da Obra de Domingos Vieira Filho busca
resgatar.
Sua obra é ainda hoje indispensável a quem se interesse pela identificação do perfil
social do brasileiro comum e em particular do maranhense, não só pela abrangência dos
assuntos abordados como pelo tratamento rigoroso dos dados que coletava, com riqueza de
detalhes e profundidade de análise e de observação.
Segundo Cordeiro (2003, p.16), é consenso entre aqueles que conheceram Domingos
Vieira Filho ou D.V.F. como ele próprio se designava, que suas “[...] descobertas eram
sempre examinadas e reexaminadas, testadas com maior rigor metodológico para a
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informação exata, abandonadas ou contraditadas aquelas que pareciam brotar da pura fantasia
alheia.”.
Essas descobertas abrangiam temas de etnografia, folclore, literatura, história e
linguagem. Apesar da dificuldade da recolha do material por ele produzido – já que sua obra é
constituída, em boa parte, por artigos publicados em jornais e revistas variados, de todo o
Brasil, ou em publicações como livros, plaquetas, folhetos, relatórios, catálogos, com edições
há muito tempo esgotadas – foi possível obter material sobre assuntos como linguagem
popular maranhense e alimentação típica, brinquedos infantis, literatura oral, costumes,
crenças, superstições, folguedos. Nos campos da linguagem popular e da literatura oral, cujos
limites muitas vezes se confundem, Domingos Vieira Filho trata do léxico regional, de frases
feitas, pregões, orações populares, nomes curiosos, contos e lendas, parlendas e adivinhas.
Desse universo de informações sobre a cultura maranhense selecionamos dois
assuntos: as parlendas e as adivinhas, que foram objeto de artigos publicados em jornais, mas
que constituem também capítulos dos livros Folclore do Maranhão (1976) e Folclore
Brasileiro – Maranhão (1977), respectivamente.
Em Folclore do Maranhão, D.V.F. apresenta uma relação de parlendas, entendidas
pelo autor segundo a definição e as características apontadas por Veríssimo de Melo, quais
sejam:“Parlenda, ou seja, palavreado, significa, assim, palavras ou ditos rimados ou não,
destinados a ensinar algo ou a criticar e divertir pura e simplesmente” (VIEIRA FILHO, 1976,
p. 61).
Estes textos de formato peculiar e original que integram o folclore infantil
caracterizam-se pelo que Melo (1949, p. 14) denomina de “pontos de contacto: 1º - São
sempre rimas ou ditos instrutivos ou satíricos. 2º - Não têm música.”.
Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, assim as define:

São versos de cinco ou seis sílabas, recitados para: a) entreter, acalmar e


divertir as crianças; b) escolher quem deve iniciar o jogo ou aqueles que
devem tomar parte na brincadeira. Quando a parlenda é destinada à fixação
de números ou idéias primárias, dias da semana, cores, nomes dos meses
etc., chama-se Mnemonia. Os portugueses chamam a parlenda de cantilena
ou lengalenga. Na literatura oral é um dos entendimentos iniciais para a
criança e uma das fórmulas verbais que fica, indelével, na idade adulta
(2001, p. 482).

As parlendas estão disseminadas em todo o território nacional em versões originais e


únicas ou em variantes de uma forma inicial.
Segundo Melo (1949, p. 14), distinguem-se de:
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[...] acalantos (cantigas para adormecer meninos); jogos (onde, para nós, o
elemento característico é a disputa, a competição); rondas, (canções de
roda); adivinhas (perguntas enigmáticas); brinquedos (o objeto de brincar, a
boneca, o cavalinho de barro, etc.); contos (estórias de trancoso);
superstições, etc.

Não há uma designação única para esse tipo de texto, conhecido também como brinco,
dinamogenia, lengalenga e ditos ou rimas de criança. Quanto à tipologia, Melo (1949, p. 15),
baseando-se na divisão proposta por Cascudo, propõe uma divisão em três tipos:

1º – BRINCOS – As mais fáceis, as primeiras que ouvimos na infância, ditas


ou recitadas pelos páis ou amas, para entreter ou aquietar meninos.
2º - MNEMONIAS – Ditas ou recitadas pelas próprias crianças, com o fim
de fixar números ou nomes. Termo criado por Luis da Cascudo.
3º - PARLENDAS PROPRIAMENTE DITAS – As mais complexas,
maiores, ditas ou recitadas pelas próprias crianças, com um fim especial,
inclusive travalínguas, “ex-libris” infantis, etc.

Vieira Filho registra a parlenda que é parte do título deste trabalho, em versões
maranhense e paulista, da recolha do próprio autor e de Aluísio Almeida, respectivamente:

Tico-tiririco/ Quem te deu tamanho bico?/ Foi o padre São Francisco/ Ele
vai, ele vem,/ Nunca paga meu vintém.; [...] Tico-tico-sirilico, Quem te deu
tamanho bico?/ Foi a velha cigarreira/ que ia indo na ribeira/ Comprando
ovos de perdiz/ Para o filho do Juiz. (1976, p. 63).

Coelho registra, em Portugal, as formas: – Sirolico, tico, tico,/ Quem te deu tamanho
bico?/ Seja d´oiro, ou de prata,/ Mete-te já na buraca – e Sirolico, tico, tico,/ Quem te deu
tamanho bico?/ Dois, quatro, seis e oito;/ Safa já, cozei biscoito, como parte das falas de uma
brincadeira infantil, jogada em roda, e conhecida como Vassoirinha.
Além das muito conhecidas “Meio-dia,/ panela no fogo,/ barriga vazia;/ macaco
torrado/ que veio da Bahia/ deu um sopapo/ na velha Maria”, mencionada por Antonio Lopes
(1967), em Presença do Romanceiro, por lembrar uma expressão chistosa que ocorre no final
da versão maranhense do romance Branca Flor, e “Estou com fome/ Come um homem./ É
pouco./ Come um caboco./ É muito./ Come um defunto./ É demais./ Come um rapaz.”, Vieira
Filho registra parlendas utilizadas para encerrar uma sessão de histórias da carochinha:
“Quem conta história de dia/ cria rabo de cutia”; “E com esta/ urubu foi à festa” e “Era uma
vez/ um galo pedrês/ pôs um ovo pra vocês três./ Era uma vez um galo socó,/ pôs um ovo pra
ti só”.
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Outra parlenda mencionada e muito difundida, na versão coletada em São Luís pelo
autor e pertencente ao grupo das mnemonias, é:

Um, anum./ Dois, camarão com arroz./ Três, galo pedrês./ Quatro, pé de
pato./ Cinco, pé de pinto./ Seis, inglês./ Sete, canivete./ Oito, biscoito./ Nove,
automove. (grifo do autor)/ Dez, burro tu és./ Onze, casaca de bronze./
Doze, tira tua pose. (VIEIRA FILHO, 1976, p. 64).

Particularmente interessantes, por sua concisão, são as 26 parlendas, numeradas, que


encerram o capítulo do livro acima mencionado. Algumas dessas parlendas, constituídas por
um único verso, poderiam ser consideradas frases feitas, já que não apresentam um dos
aspectos mais marcantes, a sequência, como é o caso de “Gosto que me enrosco”, “Comigo
não, violão!”, “Perdão, cascão!”, “Conheceu, papudo?”, “Que é isso? Chouriço.”, “Babaus!
Tia Chica!”, “Chato que nem carrapato”, “Velha coroca, nariz de taboca”, “Rente como pão
quente”, “Besta que amarga”, “Assim meu boi não dança”, “Ruim como cobra na areia
quente”. No entanto, atendem à caracterização proposta por Melo e adotada pelo autor, já que
são rimadas, instrutivas ou satíricas e não são musicadas.
No caso de “Iche Cacá!”, arrolada como parlenda, apresenta-se, na verdade, como
uma interjeição. São numerosas também, neste rol, as que são construídas sobre nomes de
pessoas, que variam de acordo com as exigências da rima, como: “Pereira./ Anda na
carreira”; “Lourenço./ Merda no lenço”; “Mendonça./ Pé de pato, mão de onça”; “Fonseca./
Perna fina, cara seca” e “Moreira./ Morreu de caganeira”.
Weitzel (1995, p. 191) relaciona 18 parlendas construídas dessa forma, constituídas
por dois ou quatro versos, sob a denominação de Alusões, que ele define como:

[...] fórmulas infantis, de finalidades geralmente agressivas, onde se faz


referência a qualquer defeito ou ponto criticável de outra pessoa.
O fato de ser descendente de estrangeiros, ou de estar com a cabeça raspada,
ou de ter determinados nomes, tudo isso é motivo para a garotada se
desdobrar em chacotas, numa assuada infernal, que muitas vezes termina em
brigas e corre-corres entre seus participantes.

Das classificadas como Parlendas propriamente ditas, possivelmente a mais


conhecida e que apresenta maior número de versões é a que começa com a afirmação
“Amanhã é domingo”. Vieira Filho registra três versões que aqui transcrevemos, mantendo as
palavras negritadas pelo autor, para indicar a transcrição grafemática, e destacando em itálico
os versos comuns:
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Amanhã é domingo Amanhã é domingo, Amanhã é domingo


Pé de cachimbo. Pé de cachimbo. Pita cachimbo
O cachimbo é de ouro, O cachimbo é de ouro, O cachimbo é de barro
Que deu no besouro. Que dá no besouro. E dá no jarro.
O besouro é valente, O besouro é de prata, O jarro é de ouro,
Que deu no Vicente. Que dá na barata. Dá no touro.
Ficou o Vicente pra dá A barata é de linha, O touro é valente,
Pra dar em toda a gente Que dá na galinha. Dá na gente.
A galinha é valente, A gente é fraca,
Que dá no tenente. Cai no buraco.
O tenente é chorão, O buraco é fundo,
Que pula no chão Cai no mundo.
O mundo é de massa,
Dá na vidraça.
A vidraça é fina,
Dá na menina.
A menina é bonita,
Dá na cabrita.
A cabrita é feia.
Dá na oreia.
E a oreia é mole,
Você engole.

Melo (1949, p. 65) apresenta uma versão recolhida em Natal, e algumas variantes:

Amanhã é domingo,/ Pé de galinha,/ Areia é fina,/ Que dá no sino,/ O sino é


de ouro,/ Que dá no besouro,/ O besouro é valente,/ Que dá no tenente,/ O
tenente é valente,/ Que dá na gente,/ A gente é valente/ Que senta o ... no
batente.....................................
O sino é de barro,/ Que dá no vigário,/ O vigário é valente,/ Que dá na
gente.....................................
Galo ponteiro,/ Que dá na areia,/ Areia de barro,/ Que dá no vigário,/ Etc.

Ribeiro (1969, p. 135), para quem o tema fundamental desta parlenda é a “alegria
infantil que decorre da perspectiva de um dia santo ou feriado próximo, e mais, dia de festa,
ou de missa”, explica dessa forma o encadeamento de ideias: “daí as idéias sucessivas:
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amanhã é domingo – o sino – a torre” e registra outra versão: Amanhã é domingo,/ Pé de


cachimbo;/ A areia fina/ Deu no sino,/ O sino é de ouro,/ Deu na torre,/ A torre é de prata/
Deu na mata;/ A mata é valente,/ Deu no tenente,/ O tenente é mofino,/ Deu no menino;/ O
menino é tolo/ Deu um tapa-olho.
Melo (1949) e Ribeiro (1969) transcrevem ainda uma versão coletada por Sílvio
Romero, em que se retoma o galo, surgido na versão obtida por Melo, e que mantém a
associação de ideias já mencionada, se relacionarmos o galo da parlenda – montês ou
monteiro, pedrês, ponteiro ou francês que seja – ao galo que frequentemente encima as torres
de igrejas: Gallo monteiro/ Pisou na areia/ A areia é fina/ Que dá no sino.../ O sino é de
ouro;/ Dá no besouro.../ O besouro é de prata/ Que dá na mata;/ A mata é valente... etc.
São também associações ao domingo, dia de lazer, as menções a touro – domingo era
dia tradicional de corrida de touros – e de casamentos de burla, que surgem em versões
europeias e americanas, entre “Se casa Respingo/ Con un gorrion...”, “Se casa Benito/ con un
pajarito...”, “Se casa la gata” ou “Se casa la pita/ Con un burriquito...” (Ribeiro, 1969, p.
137).
Os estudiosos buscam explicação também para a expressão recorrente “pé de
cachimbo”, que surge com algumas variantes como “pé de galinha” em Melo (1949, p. 65),
“páo do cachimbo” e “pé de caminho”, em Portugal Continental e nos Açores,
respectivamente, ou ainda “pede cachimbo”, como consignado por Gustavo Barroso, citado
por Ribeiro (1969) e por Melo (1949) e também referida por Araújo (2004, p. 193), que
coletou quatro versões da mesma parlenda, em Cunha, no Estado de São Paulo, das quais
destacamos em itálico os versos comuns:

Hoje é domingo! Hoje é domingo! Hoje é domingo! Hoje é domingo!


Pede cachimbo, Pede cachimbo, Pede cachimbo, Repica o sino,
Cachimbo de barro, Cachimbo de ouro Galo monteiro, O sino é de ouro,
Bate no jarro, Bate no touro, Pisou na areia, Mata o touro,
O jarro é de ouro, Touro é valente, Areia é fina, O touro é valente,
Bate no touro, Bate na gente... Bateu no sino, Mata a gente...
O touro é valente, A gente é fraco, O sino de prata,
Bate na gente... Cai no buraco, Bateu na mata,
Buraco é fundo A mata é um tesouro
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Acaba o mundo Bateu no teu olho...

As parlendas acima referidas, embora diferentes entre si, apresentam muitos dos
elementos das parlendas coletadas por Vieira Filho no Maranhão, especialmente da terceira,
que menciona: “O touro é valente,/ Dá na gente,/ A gente é fraca,/ Cai no buraco,/ Buraco é
fundo,/ Cai no mundo”.
Ribeiro (1969) explica que vê na expressão “pé de cachimbo” também uma referência
indireta a domingo, pois “alude seguramente à liberdade do indivíduo, à fuga ou repouso do
trabalho. Abalar os cachimbos é fugir, dar à perna” (p. 138). Mas o mesmo autor acrescenta
que pode ser apenas uma rima para domingo, sem outro sentido, e menciona versão colhida
no norte do País que apresenta início diferente: Hoje é sábado/ Pé de quiabo,/ Depois é
domingo/ Pé de cachimbo.
Vale mencionar a versão coletada por Vieira Filho, que substitui “pé de cachimbo”
muito simplesmente por “pita cachimbo”, o que daria lógica à expressão, uma vez que pitar
pode significar fumar. Em Portugal, Vieira (1994, p. 29) registra uma versão que, embora com
grandes diferenças em relação ao padrão, mantém vários elementos como o sino, o ouro e a
valentia e a ideia de dia de repouso, lazer e diversão:

Amanhã é domingo;/ Pés ao caminho./ Galo assado,/ Quartilho de vinho;/ Lá


vem o francês,/ que pica na rês;/ a rês é mansa/ que vai para França;/ se ela
voltar,/ torna a picar;/ pica na burra,/ a burra é de barro;/ pica no barro,/ o
jarro é fino;/ pica no sino,/ o sino é de oiro;/ pica no toiro,/ o toiro é bravo;/
pica no fidalgo,/ o fidalgo é valente,/ mete três homens/ na cova de um
dente!

Ainda em Portugal, Coelho (1994, p. 54) registra a seguinte versão:

Amanhã é domingo,/ Pé de pingo;/ Galo francês,/ Pica na rês./ A rês é


miúda,/ Pica na tumba./ A tumba é de barro,/ Pica no ar./ O ar é fino,/ Pica
no sino./ O sino é d´oiro,/ Pica no toiro./ O toiro é bravo,/ Pica no fidalgo./ O
fidalgo é ladrão,/ Rouba o cordão/ A Senhora/ Da Conceição.

Cascudo (1984, p. 59) registra também duas versões, uma do Brasil e outra de
Portugal:
Versão brasileira:

Amanhã é domingo/ Pé de cachimbo/ Galo monteiro,/ Pisou n´areia/ A areia


é fina/ Que dá no sino,/ O sino é de ouro/ Que dá no besouro/ O besouro é de
prata/ Que dá na barata,/ A barata é valente/ Que dá no tenente,/ O tenente é
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mofino/ Que dá no menino/ O menino é danado/ Que dá no soldado/ O


soldado é valente/ Que dá na gente.

Versão portuguesa:

Amanhã é domingo,/ Do pé do cachimbo,/ O galo pedrês/ Pica na rede/ A


rede é fina/ Pica no sino/ O sino é de ouro/ Pica no touro./ O touro é bravo,/
Arrebita o rabo/ Pra cima do telhado.

Em seu Dicionário do Folclore, o autor classifica essas parlendas como pertencentes


ao “tipo dos temas encadeados, tales arranged, ketten March, os formula-tales da
classificação Aarne Thompson1” e registra mais duas versões, uma das quais apresenta pouca
variação em relação à versão brasileira já mencionada e a outra, muito diversa do padrão
habitual, é norte-rio-grandense.
Versão brasileira:

Amanhã é domingo/ Pé de cachimbo/ Galo monteiro,/ Pisou na areia/ A areia


é fina/ Que deu no sino,/ O sino é de prata/ Que deu na barata/ A barata é de
ouro/ Que deu no besouro/ O besouro é valente/ Que deu no tenente,/ O
tenente é mofino/ Que deu no menino...

Versão norte-rio-grandense:

Amanhã é domingo/ Pé de cachimbo/ Galo montês/ Pica na rês/ A rês é


muda/ Pica na tumba/ A tumba é de barro/ Onça no adro/ O adro é fino/ Pica
no sino/ O sino é de ouro/ Pica no touro/ O touro é bravo/ Arrebita o rabo.
(CÂMARA CASCUDO, 2001, p. 482).

Uma versão curiosa é a registrada por Melo (1949, p. 71) e por ele recolhida,
possivelmente em Natal, cidade onde nasceu, uma vez que é apresentada como memórias de
infância:

Amanhã é domingo!/ O gato cag.../ Você engolindo!


(responde o ofendido)
– E você de besta/ aparando os pingos! (1949, p. 71).

O que se observa, em linhas gerais, é a presença recorrente de elementos como:


cachimbos, de ouro ou de barro, galos, besouros, por vezes também de prata, sinos de ouro ou
de prata, touros sempre valentes, gente fraca, jarros, tenentes que podem ser valentes, mofinos
ou chorões, buracos fundos, muita valentia que pode ser do besouro, da galinha, do tenente,

1
Aarne Thompson – sistema de classificação utilizado para classificar contos. Primeiramente desenvolvido por
Antti Aarne e publicado em 1910, o sistema foi traduzido e ampliado por Stith Thompson. Usa motivos ao invés
de ações em contos agrupados em Animal Tales, Fairy Tales, Religious Tales, Realistic Tales, Tales of the
Stupid Ogre, Jokes and Anecdotes, e Formula Tales. Dentro de cada grupo, eles são subdivididos por temas.
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do touro, da gente, do vigário, da mata ou do fidalgo, sendo que este último também pode ser
ladrão. As diversas combinações desses elementos, em alguns casos acrescidos por outros
versos, resultam em versões diferentes, quase todas iniciadas pelo verso “Amanhã/ Hoje é
domingo”, mas sempre com finais diferentes. Como diz Cascudo (1984, p. 60), “O texto
verbal é uma série de imagens associadas sem que a sucessão seja lógica, ou tendo a lógica
infantil, nem sempre a nossa”.
Outra pesquisa realizada por Domingos Vieira Filho foi sobre adivinhas ou
adivinhações.
Cascudo (2001, p. 8) assim as define:

Enigma, gênero universal, favorito de todos os povos em todas as épocas.


Por meio de analogias, expressa ideias e conceitos. No Brasil, é uma
diversão muito apreciada, que se mantém na tradição oral popular e se
manifesta principalmente por uma forma característica de indagação: “O que
é, o que é?”.

Jolles (1976, p. 111) apresenta um estudo sobre as adivinhas, explicando inicialmente


a contraposição com o mito, já que este é “a forma que reproduz a resposta, a adivinha é a
forma que mostra a pergunta”. Para este autor, a relação que se estabelece entre aquele que
propõe a adivinha e o que se candidata a solucionar o enigma, é a do que detém o saber e a
daquele que põe em jogo suas forças para possuir este mesmo saber. Há assim uma forma de
pressão e opressão que se assemelha à de um exame – com o examinador e o examinando –
ou de uma sessão de tribunal – com o juiz e o acusado.
Jolles (1976, p. 115) menciona uma forma de organização tipológica das adivinhas,
em Enigmas da Esfinge, em que a fórmula é “Adivinha ou morre!”, e Enigmas de Ilo 2, cuja
fórmula seria “Apresenta uma adivinha e viverás”. Os dois tipos comporiam as adivinhas
cruciais ou adivinhas de solução crucial, já que implicariam em vida ou morte. D.V.F.
questiona: “O que é o enigma da Esfinge, decifrado por Édipo, senão uma complicada
adivinha?”. (1951, p. 1).
Admitindo que a “adivinha moderna é um meio de por à prova a perspicácia do
adivinhador” (JOLLES, 1976, 116), Jolles estabelece um paralelo com outras atividades que
exigem, também, uma forma de iniciação em que haja algo a ser decifrado, como em

2
Enigma de Ilo– Baseia-se na história de uma jovem acusada de crime, a quem se propõe que apresente aos
juízes uma adivinha que, se não for decifrada, lhe garantirá o perdão. A jovem fabricou e calçou uns sapatos
feitos com a pele de uma cadela que lhe pertencera e que se chamava Ilo e apresentou-se aos juízes dizendo:
“Sobre Ilo vou,/ sobre Ilo estou,/ Ilo, a bela e gentil./ Adivinhem meus senhores, o que isto quer dizer.” Os juízes
não puderam adivinhar e a jovem foi libertada. (JOLLES, 1976, p. 114).
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sociedades secretas, ou o pretendido acesso ao reino dos bem-aventurados e incluindo


elementos mais leves, falando “das adivinhas formuladas todo dia por crianças e adultos, das
seções de passatempos, das coleções de adivinhas, dos almanaques” (1976, p. 117). Lembra
ainda que há uma diferença entre as adivinhas que surgem nos almanaques e que são
esquecidas assim que solucionadas e aquelas que permanecem porque fazem parte do folclore.
Por fim menciona uma forma muito popular de adivinhas, a que permite uma dupla
solução, uma mais óbvia e menos inocente, geralmente evitada quando a companhia é
feminina, e a inesperada, mas inocente, A esse respeito Câmara Cascudo (2001) alerta que a
adivinha não é erótica, ela dispõe intencionalmente a falsas suposições, como acontece na
adivinha coletada por Weitzel (1995, p. 133): “O que é que a mulher tem no meio das pernas?
(R: Os joelhos)”.
Weitzel comenta a origem oriental das adivinhas havendo registros de antigas
adivinhas na Índia, na Babilônia, na Pérsia, no Egito, na Grécia e em Roma, e transcreve a
história da famosa Esfinge da mitologia, que propunha o seguinte enigma: “Qual o único ser
que, sem mudar de forma, tem sucessivamente 4 pés, 2 pés e 3 pés, sendo menor a sua força
quanto maior o número de pés?”(1995, p. 130). A resposta esperada era o Ser humano.
Um dos aspectos marcantes das adivinhas é, exatamente, a sua universalidade, a
presença em todas as culturas e em todas as épocas. Vieira Filho comenta, a esse respeito:

“Adivinanzas” ou “acertijos” em espanhol, “devinettes” em francês,


“riddles” em inglês, “Wahrsgerei” em alemão, “nongo-nongo” em
quimbundo, “indovinelli” em italiano, “adivinha” ou “adivinhação” em
português, bem ou mal feitas, simples ou difíceis, em verso ou em prosa,
adivinhas encontramo-las em toda parte. E nunca se pode afirmar com
segurança a área de origem de uma adivinhação porque, viajantes
infatigáveis, correm mundo desabaladamente, deformando-se em mil
variantes, sem que todavia, desapareça a ideia inicial, o “motif”, a
“Elementargedanke”[...] (VIEIRA FILHO, 1951, p. 1).

Weitzel (1995, p. 129) assim as define:

Adivinhas é uma fórmula enigmática em verso ou em prosa, onde se


descreve um objeto dissimuladamente, através de suas causas, efeitos,
qualidades, semelhanças e diferenças, muitas vezes em termos ambíguos ou
obscuros, forçando a inteligência na busca da solução perfeita, (1995, p.
129).

O mesmo autor comenta as funções e a estrutura das adivinhas. Assim, a adivinha


congrega as funções: psicológica, uma vez que está ligada à área intelectiva e emotiva; social,
por estimular o convívio, o divertimento; pedagógica, pois estimula o aprendizado, a reflexão
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e amplia o conhecimento, e literária, servindo de inspiração a poeta e prosadores (WEITZEL,


1995).
Do ponto de vista da estrutura, é constituída por uma fórmula interrogativa – a mais
conhecida é “O que é, o que é” – e uma declaração descritiva do tema que pode ser de
extensão variável, embora em sua maioria seja reduzida. As adivinhas coletadas por
Domingos Vieira Filho nunca excedem quatro versos, mas existem algumas com um número
maior, como este exemplo de Weitzel (1995, p. 132), cuja resposta é Agulha e Linha: “O que
é, o que é/ Bichinha magra,/ De um olho só;/ Pegam-lhe a cauda/ e dão-lhe um nó./ Depois a
obrigam/ A perfurar/ Mil tuneizinhos,/ Até cansar?”. O autor propõe ainda uma classificação
em:
- Adivinhas propriamente ditas – as mais comuns e frequentes, geralmente iniciadas
por “O que é, o que é?” e que propõem um enigma a ser resolvido;
- Charadas – em que a resposta está na correta junção de sílabas;
- Perguntas – em que os enunciados começam por fórmulas interrogativas, como:
Quem?, Quê?, Onde?, Qual?, Por quê? Como? Quando?;
- Problemas – envolvem números e induzem a cálculos muitas vezes desnecessários;
- Pantomimas – em que a descrição é feita por gestos e não por palavras;
- Criptogramas – em que a descrição é feita por desenhos ou esquemas
intencionalmente ambíguos;
- Contos de adivinhação – em que o texto narrativo é baseado em adivinhas, como no
Enigma de Ilo, já mencionado.
As adivinhas coletadas por Vieira Filho e publicadas no livro Folclore Brasileiro –
Maranhão, que constituem o corpus deste trabalho, podem ser classificadas, em sua maioria,
na categoria das adivinhas propriamente ditas, com a fórmula interrogativa expressa ou
implícita:

O que é, o que é:/ Embaixo do couro o osso,/ Em cima do couro a carne/ E


em cima da carne a escama? – Buriti;
O que é, o que é/ Tem pé mas não anda,/ Tem asa mas não voa,/ Tem olho
mas não enxerga? – Buritizeiro;
O que é, o que é:/ É dois irmão irmanado,/ um come-se cru e o outro assado?
– Caju e Castanha
Casquinha sobre casquinha/ Da mais fina que houver./ Você não adivinha/
Nem este ano nem no outro que vier. – Cebola;
Sou filha de mamãe pretinha,/ Nascida entre as queimadas./ Quem bebe do
meu leite morre, / Quem come da minha carne escapa. – Mandioca. (1976, p.
17).
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Das 36 adivinhas selecionadas, 16 começam com a fórmula mais comum, mas


algumas delas poderiam ser incluídas na categoria das charadas com é o caso de:

O que é, o que é:/ Tem casca sem ser de pau,/ E vela sem ser de cera –
Cascavel;
O que é, o que é:/ Capim aqui e vara acolá – Capivara.

No entanto há outros exemplos mais fiéis à descrição da categoria, como as adivinhas


seguintes, em que colocamos em negrito os elementos destacados pelo autor:

Meu nome se chama tá, / Ralinho de coisa má./ Não ando vestido nem nu,/
Todos me tratam por tu – Tatu.
Jeni caiu no chão fez pa – po! – Jenipapo
O que é, o que é:/Um pássaro do mangue/ e uma embarcação? – Guaraná =
(Guará – Nau)

Muitas adivinhas se enquadram na categoria das Perguntas, o segundo grupo mais


numeroso, como:

Qual é o bicho cabeludo/ que não tem orelha – Preguiça;


O que é que antes de ser já era? – Pescada;
O que é que tem cabeça, tem dente mas não tem boca? – Alho;
Qual é a folha de beira lisa? – A da cebola.

Algumas adivinhas apresentam uma estrutura diferente, sem fórmulas interrogativas


ou, em alguns casos, sem sequer constituírem uma interrogação, como acontece em alguns
dos seguintes exemplos:

Tengo, tengo da chapada/ Tem fígado mas não tem moela,/ Tem bofe mas
não tem costela? – Jabuti;
Quatro pés na lama,/ Quatro pés na cama./ dois parafusos/ e um que abana?
– Vaca;
Muitos não gostam de mim,/ Mas sou de muita utilidade,/ Pois os serviços
que presto/ dão sempre bons resultados. – Gato;
Caixinha de bom parecer/ não há carpina que saiba fazer – Amendoim.

Outras ainda são construídas com base em palavras homônimas:

O que é, o que é:/ Está num pomar e também se encontra num país? – Lima;
Somos duas irmãs,/ Em nada iguais no parecer:/ Uma se come/ E a outra
serve para comer? – Lima;
O que é, o que é;/ Está no casaco e no pomar? – Manga.

Como se pode observar, as pistas fornecidas para o desvendamento do enigma podem


ser muito claras ou muito vagas. Há ainda, no caso específico das adivinhas coletadas por
Vieira Filho, um fator a ser considerado, o do critério de seleção, que privilegiou as adivinhas
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regionais ou sobre elementos regionais. O autor selecionou adivinhas pertencentes a apenas


dois temas gerais e relacionados a coisas de conhecimento dos maranhenses: o dos animais e
o dos vegetais, muito embora, na apresentação do assunto, afirme:

[...] a maior parte das que aqui circulam entre crianças e velhos é,
indubitavelmente, de proveniência lusa. Pode, todavia, ocorrer que algumas
sejam de origem negra, transmitidas pelos escravos africanos. Nongonongo
significa adivinha na língua quimbunda e os negros adoram esse tipo de
quebra-cabeças.
Há ainda adivinhações nascidas em terras maranhenses, da imaginação
popular e expressando ideias ligadas a traços de cultura nativos. Algumas
variantes sobre o buriti, a melancia, a cana, a mandioca, a renda de
almofada, o jenipapo, etc. para tudo o povo, aqui e em qualquer latitude,
encontra motivo para propor enigmas: animais, nomes de santos, frutas,
plantas, objetos da cultura material... (VIEIRA FILHO, 1976, p. 15).

A respeito da influência africana na base lusitana das adivinhas, Vieira Filho afirma
que: “Os negros africanos adoram o gênero, são hábeis fazedores de adivinhas [...]” e ainda:

Possivelmente houve, em menor escala. Influências africana no processo de


transplantação de algumas adivinhas, como a da pimenta, em que a mãe é
mansa e a filha é braba, identificada por Joaquim Ribeiro entre os negros de
Angola e muito do nosso conhecimento (VIEIRA FILHO, 1951, p.1).

A adivinha mencionada é a seguinte: “O que é , o que é:/ A mãe é verde,/ a filha é


encarnada,/ A mãe é mansa,/ a filha é danada? - Pimenteira”.
A recolha de adivinhas de Domingos Vieira Filho pode ter sido bem mais ampla, uma
vez que conhecemos apenas a parte por ele selecionada e com os limites por ele próprio
estabelecidos para o livro Folclore Brasileiro – Maranhão. As adivinhas apresentadas podem
ter sido apenas parte de um número muito maior, de temas muito mais abrangentes, que o
autor não chegou a divulgar.
Da mesma forma, as parlendas e as adivinhas são apenas uma pequena parte dos
assuntos que mereceram seu interesse, e muitos estudos poderão ser ainda feitos com base no
material coletado e preservado do esquecimento por Domingos Vieira Filho.

Referências

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional III: ritos, sabença, linguagem, artes populares
e técnicas tradicionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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CÂMARA CASCUDO, Luís da. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1984.
______. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
COELHO, Adolfo. Jogos e rimas infantis. Porto: ASA, 1994.
CORDEIRO, João Mendonça. Domingos Vieira Filho: um amante da cultura popular
maranhense. Boletim de Folclore, São Luís, n. 25, p.16-17, jun. 2003.
JOLLES, André. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável,
conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.
LOPES, Antônio. Presença do romanceiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1967.
MELO, Veríssimo de. Parlendas. Natal: Biblioteca da Sociedade Brasileira de Folk-Lore,
1949.
RIBEIRO, João. O folclore. Porto: Rio de Janeiro: Organizações Simões Editora, 1969.
VIEIRA, Alice. Eu bem vi nascer o sol: Antologia da poesia popular portuguesa. Lisboa:
Caminho, 1994.
VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore do Maranhão. São Luís: Edição do Autor, 1976.
______. Folclore brasileiro: Maranhão. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura;
Departamento de Assuntos Culturais; Fundação Nacional de Arte; Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro, 1977.
______. Adivinhas. Jornal do Povo. São Luís, p.1e 5. 27 dez. 1951.
WEITZEL, Antônio Henrique. Folclore literário e linguístico. Juiz de Fora: EDUFJF, 1995.
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A DICIONARIZAÇÃO DE AFRICANISMOS PRESENTES NO PORTUGUÊS


MARANHENSE: A CONTRIBUIÇÃO DO ATLAS LINGUÍSTICO DO MARANHÃO

Flávia Pereira Serra


UFMA/ ALiMA/ CNPq
José de Ribamar Mendes Bezerra
UFMA

Introdução

Este estudo foi desenvolvido com base em uma pesquisa mais ampla, intitulada “O
Atlas Linguístico do Maranhão: em busca do léxico de origem africana, uma segunda
abordagem” que tem como objetivos: (i) pesquisar as relações das línguas africanas com o
português brasileiro e em particular com a variedade falada no Maranhão e (ii) oferecer
subsídios à investigação das bases linguísticas do léxico da língua portuguesa, principalmente,
de sua variedade maranhense.
Esta pesquisa mostra-se fundamental para uma melhor compreensão do português
brasileiro considerando o tema e o objeto escolhidos. Deste modo, justifica-se, por um lado,
pelo fato de a história de uma língua se explicar por meio da história social e política do povo
que a usa, e, por outro, porque são “os africanos e os afrodescendentes os agentes principais
da difusão do português no território brasileiro, na sua face majoritária, a popular ou
vernácula.” (SILVA, 2004, p.106).
Convém ressaltar que a presença de africanos e afrodescendentes, no Brasil, foi e
ainda é expressiva. Segundo o censo oficial de 1823 (CASTRO, 2001), a introdução de
africanos no Brasil originou um contingente populacional de 75% de negros e mestiços em
relação ao número de portugueses e outros europeus. Dados mais recentes da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República indicam que 51% da população brasileira
é formada por negros.
Esse grande contingente africano trouxe consigo, além de sua cultura, suas diversas
línguas étnicas, que contribuíram consideravelmente para a composição do que hoje é o
Português Brasileiro (PB). Essas marcas linguísticas são evidenciadas tanto nos níveis
fonético, morfológico, sintático, como também no nível objeto deste estudo, o lexical.
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As palavras oriundas da África, nomeadas africanismos, contribuem com uma grande


parcela para a formação do Português Brasileiro. Muitas delas já compõem dicionários do PB,
apesar da questão etimológica ainda ser uma incógnita, como evidencia Viaro (2013, p.159):
“Em nenhuma área dos estudos etimológicos do português há maior incerteza do que nas
palavras de origem africana”.
Buscando essa inconteste contribuição da herança africana na língua portuguesa,
principalmente, na variedade do português falado no Maranhão, este estudo se organiza da
seguinte forma: no primeiro tópico é exposto, brevemente, um panorama histórico sobre a
presença africana no Brasil, e principalmente, no Maranhão; no segundo, encontram-se alguns
estudos de teóricos que investigam a presença africana no léxico do Português Brasileiro, no
terceiro estão dispostos os procedimentos teórico-metodológicos que orientam esse trabalho e
no quarto as análises da amostra que compõe este trabalho.

A presença africana em terras maranhenses

O Maranhão foi um dos maiores importadores de negros africanos na época da


escravidão, tendo o seu maior destaque nos séculos XVIII e XIX, quando o tráfico foi ainda
mais intenso, devido ao desenvolvimento da lavoura, ocasionando a necessidade da mão-de-
obra e contribuindo, assim, para o crescimento da população negra no Estado, no período
colonial. Segundo Mário Meireles (apud SANTOS NETO, 2004, p. 99), a maioria dos negros
trazidos para o Maranhão era proveniente de Angola e dos reinos da África Ocidental, onde
hoje estão localizadas a Nigéria, a Guiné-Bissau, Togo e o Benin.
Houaiss (1992, p. 87), ao se referir a um quadro estatístico de 1819, estima que o
Maranhão foi o estado com maior número de escravos negros na época, apresentando 66,6%
da população negra em relação ao total populacional provincial.
Apesar de não existirem estatísticas confiáveis ou diagnósticos conclusivos sobre a
importação de escravos africanos para as terras maranhenses, Santos Neto considera três
grupos etnológicos que podem ter sido os principais componentes do contingente de escravos:

Os dos sudaneses, que engloba os nagôs ou iorubás, os jejes ou daomeanos e


os fanti-ashanti;
Os dos bantos, que compreende os angolas, congos, moçambiques e
cambindas;
Os dos sudaneses islamizados, que envolve os hauçás, tapas, mandingas e
fulatas (SANTOS NETO, 2004, p. 99).
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Vale destacar que os iorubás foram trazidos em grande quantidade para o Estado e,
possivelmente, foram os principais responsáveis pela inserção da religião dos orixás que,
atualmente, faz parte da cultura maranhense, sobretudo, nas comunidades negras.
Tendo em vista esse panorama, foi possível observar forte presença do negro no Brasil
e no Maranhão. Além da importância social, econômica e cultural, a presença africana
contribuiu para a língua(gem), principalmente na área do léxico.

A influência de línguas africanas no português brasileiro

Bonvini e Petter (1988 apud SILVA, 2004, p. 96) estimam que chegaram ao Brasil,
com o tráfico de escravos, por volta de 200 a 300 línguas africanas que abarcam duas grandes
áreas de procedência: (i) a área oeste-africana, que abriga um grande número de línguas
tipologicamente diversificadas e entre as quais se destacam ewe, yorubá, e (ii) a área banto,
que abarca línguas tipologicamente homogêneas, como o kicongo, o kimbundum, o umbundo.
Considerando essa realidade do Brasil Colonial, alguns estudiosos afirmam que a
influência africana no PB ocorreu paralelamente à importação de escravos africanos. Estes
trouxeram consigo sua língua e cultura, mas foram forçados a viver outra realidade e a
conviver com uma língua diferente das diversas línguas étnicas que para cá trouxeram. Assim,
nesse contexto de contato linguístico que se estabelece no Brasil a partir da segunda metade
do século XVI, os empréstimos linguísticos foram inevitáveis, como evidencia Bonvini (2008,
p. 103):

Na ocasião de sua ocorrência, trocas de termos entre falantes de línguas


africanas e falantes da língua portuguesa multiplicaram-se porque as
exigências de trabalho ligadas à escravidão obrigavam uns e outros a uma
constante relação de interdependência em função das numerosas facetas da
vida quotidiana.

A partir dessas tentativas de comunicação, novos vocábulos foram introduzidos


progressivamente no português falado no Brasil e, ainda segundo Bonvini (2008, p. 142),
desses vocábulos emprestados, muitos passaram por um “(...) profundo remanejamento tanto
no plano formal quanto no plano semântico. Por isso eles se integraram totalmente ao
português.”. É, assim, vasta a influência do negro em nosso português, como afirma
Raimundo (1933), um dos primeiros a estudar as línguas africanas e sua presença no
Português Brasileiro. Hoje, é notável a grande riqueza de africanismos principalmente nas
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línguas-de-santo e nas manifestações culturais de comunidades negras. De acordo com Petter


(2008, p.1),

As línguas africanas, utilizadas hoje ritualmente, mantêm-se como veículo


de expressão dos cânticos, saudações e nomes iniciados, principalmente,
podendo também servir como meio de comunicação entre os adeptos da
mesma comunidade de culto.

Convém ressaltar que o contato do português falado no Brasil com as línguas africanas
não se faz presente apenas no acervo lexical do português. São muitos os estudiosos que se
dedicam à pesquisa da presença africana em outros níveis de análise linguística, como por
exemplo, no nível morfossintático, em que examinam questões como a concordância de
gênero e de número, a concordância verbal, a negação, o emprego do subjuntivo, dentre
outros tópicos (cf., dentre outros, LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009).
É, contudo, o nível semântico-lexical que nos interessa nesta pesquisa. Os
africanismos, palavras oriundas de línguas africanas, são os termos que ajudam a compor
grande parte do acervo lexical do Português Brasileiro, como evidencia Petter (2002, p.141):

O registro em obras lexicográficas das palavras do PB provenientes de


línguas africanas, desde o final do século XIX até meados do século XX,
esteve associado à reinvindicação da identidade da língua nacional. Embora
fossem ‘termos estrangeiros’ do ponto de vista do português europeu,
constituíam, na perspectiva brasileira, ao lado dos indigenismos, os
brasileirismos, contribuindo com sua parcela de originalidade para a defesa
do argumento da autonomia do português do Brasil.

Dessa maneira, considerando a grande importância dos africanismos no PB, no caso


deste trabalho, no nível semântico-lexical da língua falada no Maranhão, é necessário lançar
mão de uma metodologia adequada o suficiente para que nenhum detalhe seja perdido. A
seguir, serão descritos todos o procedimentos metodológicos adotados, assim como os
detalhes acerca da escolha do corpus.

Procedimentos Metodológicos

Para investigar a presença e a vitalidade de lexias oriundas de línguas africanas que


contribuem para formação do léxico do português brasileiro, em particular da variedade falada
no Maranhão, a pesquisa foi estruturada em quatro momentos:
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 Pesquisa bibliográfica no âmbito da linguística, em livros, teses, dissertações, artigos,


especialmente nos campos da geolinguística/dialetologia, sociolinguística, lexicologia,
etimologia e de estudos sobre as línguas africanas e sua presença no português brasileiro.
 Identificação de perguntas do Questionário Semântico-Lexical do ALiMA (QSL) que
poderiam suscitar o aparecimento de lexias de base africana.
 Levantamento, com base no QSL, das lexias (e suas variantes) oriundas de línguas
africanas presentes no banco de dados do ALiMA.
 Identificação das lexias nos dicionários gerais, específicos e etimológicos selecionados
para a pesquisa.
 Análise do corpus selecionado para a pesquisa.
Os estudos de Castro (2001), Bonvini (2002 e 2008) e Petter (2002) subsidiam o
trabalho de identificação das lexias de origem africana no corpus constituído para o ALiMA.
O corpus da pesquisa foi extraído do banco de dados do Projeto ALiMA, com a
seleção de um município por mesorregião do Estado, o que possibilita ter uma visão mais
ampla da questão estudada. Assim, foram selecionados 12 municípios da rede de pontos do
atlas estadual: São Luís, Pinheiro, Bacabal, Tuntum, Turiaçu, Imperatriz, Brejo, São João do
Patos, Araioses, Carolina, Alto Parnaíba e Balsas.
Foram considerados quatro informantes por município, todos alfabetizados, tendo
cursado, no máximo, até a sexta série do ensino fundamental. Eles estão distribuídos em duas
faixas etárias – faixa I, de 18 a 30 anos, e faixa II, de 50 a 65 anos – e em dois sexos – homens
e mulheres. Consideramos também como requisito essencial que os sujeitos sejam naturais
das localidades pesquisadas.
O QSL do ALiMA, instrumento usado para recolha dos dados, é composto por 227
questões que se distribuem em 14 campos semânticos. Para a pesquisa, foram selecionados
quinze perguntas de oito campos semânticos (CS) diferentes que possibilitaram perceber a
presença de lexias africanas no português do Maranhão.
Quadro 1 – Campos semânticos e questões do QSL
Campo semântico Número da questão Pergunta Possível Resposta
Como se chama a
armação de madeira que
Atividades
045 se coloca no lombo do cangalha
Agropastoris
cavalo ou do burro para
levar cestos ou cargas?
Como se chama a ave de
Fauna 056 angola, catraio
criação parecida com a
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galinha, de penas pretas


com pintinhas brancas?
Como se chama um
059 cachorro de rabo Cotó
cortado?
Como se chama o
079 ratinho que costuma catita, camundongo
viver dentro de casa?
Como se chama a pessoa
092 Banguela
que não tem dentes?
Corpo Humano
Como se chama o órgão
118 xoxota, tabaco
sexual feminino?
As mulheres perdem
119 sangue todos os meses. Bode
Como se chama isso?
Como se chama o filho
127 Caçula
que nasceu por último?
Ciclos da vida
Uma criança bem
novinha, a gente diz que
128 é bebê. E quando ela tem moleque
de 5 a 10 anos, do sexo
masculino?
Como se chama a pessoa
que não gosta de gastar
135 seu dinheiro e, às vezes, canhenga
Convívio e
até passa dificuldades
Comportamento
para não gastar?
social
Que nomes dão ao
145 cigarro que as pessoas Tabaco
faziam antigamente?
O que certas pessoas
fazem para prejudicar
Religião e crenças 161 alguém e botam, por macumba
exemplo, nas
encruzilhadas?
Como se chama uma
tábua apoiada no meio,
Jogos e diversões
181 em cujas pontas sentam gangorra
infantis
duas crianças e quando
uma sobe, a outra desce?
Como se chama uma
papa cremosa feita com
197 coco e milho verde canjica
Alimentação e
ralado, polvilhada com
cozinha
canela?
Como se chama a bebida
199 Cachaça
alcoólica feita de cana-
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de-açúcar?
Fonte: Produzido pela pesquisadora

Depois da seleção do corpus, foram escolhidos dicionários gerais, específicos e


etimológicos, com o intuito de investigar quais das lexias já compõem as obras de referência
brasileiras e quais apresentam a mesma acepção que foi encontrada entre os informantes do
projeto ALiMA. Foram estes os dicionários selecionados:

 Dicionários Gerais:
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), de Antônio Houaiss, que, assim como o
dicionário Novo Aurélio, demonstra ser uma das obras mais completas e de maior difusão
do País.
o Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999), elaborado por
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. É uma obra atual que demonstra grande
conhecimento das palavras de origem africana (cf. Petter, 2002).

 Dicionários Específicos:
o Dicionário Banto do Brasil (1993-1995), elaborado por um dos pesquisadores da
influência africana no português. Neste trabalho, Nei Lopes registra os vocábulos oriundos
de línguas do grupo banto presentes no Português Brasileiro.
o Vocabulário Afro-Brasileiro: Falares Africanos na Bahia (2001), elaborado por Yeda
Pessoa de Castro, que analisa a contribuição africana no português do Brasil, focando na
presença de línguas africanas na Bahia.

 Dicionários Etimológicos:
o Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (1955), de Antenor Nascentes,
o Dicionário Etimológico Nova Fronteira (1986), de Antônio Geraldo da Cunha, que é
considerado por Petter (2001, p. 136) a obra etimológica brasileira mais recente e
completa.

A dicionarização de africanismos presentes no português maranhense


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Petter (2002, p.131) afirma que “os dicionários gerais do português vão refletir na sua
elaboração o estado do conhecimento sobre a participação das línguas africanas na
constituição do léxico nacional”. Sendo assim, observamos que, com a incorporação dos
africanismos nos dicionários, não só nos gerais, como também nas obras de referência
etimológicas e específicas, várias lexias de origem africana mostram-se já integradas, de fato,
ao léxico do português do Brasil.
O quadro a seguir apresenta os africanismos e sua condição nos dicionários brasileiros.
Encontramos, assim, itens lexicais sem registro (SR), com outra acepção (OA), ou com a
mesma acepção (MA), considerando-se a acepção que foi encontrada entre os informantes do
projeto ALiMA.
Quadro 2 –Dicionarização de Africanismos em obras de referência.
DICIONÁRIOS DICIONÁRIOS DICIONÁRIOS
GERAIS ESPECÍFICOS ETIMOLÓGICOS
Dicionário
Vocabulário Dicionário
LEXIAS Dicionário Etimológico
Afro- Etimológico
Houaiss Aurélio Banto do da Língua
Brasileiro Nova
Brasil Portuguêsa
(VAB) Fronteira
(DELP)
Cangalha MA AO OA MA MA MA
Angola MA MA MA MA OA SR
Catraio*
OA AO SR AO SR OA
(Catraia)
Cotó MA MA MA MA OA OA
Catita MA AO OA MA SR MA
Camundongo MA MA MA MA SR MA
Banguela MA MA MA MA SR MA
Tabaco MA MA SR Vulva Fumo Fumo
Xoxota MA MA SR MA SR SR
Bode MA AO OA OA OA OA
Caçula MA MA MA MA SR MA
Moleque MA MA MA MA SR OA
Canhenga*
SR MA MA MA SR MA
(Canhengue)
Cultos
Religião Cultos afro-
Macumba MA MA afro- SR
Africana brasileiros
brasileiros
Gangorra MA MA MA MA SR MA
Canjica MA MA MA MA SR MA
Cachaça MA MA MA MA MA MA
Fonte: Produzido pela pesquisadora
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Todas as lexias que compõem o corpus desta pesquisa já estão dicionarizadas e são
encontradas em praticamente todos os dicionários utilizados para este estudo. Dos 17
africanismos aqui selecionados, todos já possuem registro no dicionário Aurélio (1999) e no
Vocabulário Afro-Brasileiro (2001); 16 já estão registrados no dicionário Houaiss (2001); 15
no dicionário Nova Fronteira (1986); 14 no Dicionário Banto do Brasil (1995), e apenas 6
podem ser encontrados no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (1955). Notamos,
portanto, que dentre os dicionários selecionados, os mais atuais apresentam maior número de
lexias quando comparados com as publicações mais antigas.
Vale ressaltar também que nem todos os itens lexicais apresentam o mesmo
significado que lhes foi atribuído pelos informantes do projeto ALiMA (cf. Quadro 1). A lexia
cangalha, por exemplo, possui a mesma acepção nos dicionários etimológicos, no Houaiss e
no Vocabulário Afro-Brasileiro, porém, no Aurélio e no Dicionário Banto do Brasil, é
definida como: “peça de três paus, unidos em triângulo, que se enfia no pescoço dos porcos
para não destruírem hortas cultivadas” (1993-1995, p. 71).
A lexia angola, de acordo com o questionário do ALiMA, remete à “ave parecida com
a galinha, de penas pretas e pintinhas brancas”. A lexia encontra-se com a mesma acepção
apenas nos dicionários gerais e específicos, não possuindo registro no dicionário Nova
Fronteira e apresentando acepção diferente (apenas referindo-se ao país africano) no
Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa (DELP).
Já a lexia cotó pode ser encontrada com o mesmo significado nos dicionários gerais e
específicos. No entanto, nos dicionários etimológicos, aparece com acepções diferentes,
significando “cotovelo”, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa, e um “tipo de faca
pequena”, no Dicionário Etimológico Nova Fronteira.
O africanismo catita, que se refere ao “pequeno rato encontrado dentro das casas”,
apresenta a mesma acepção nos dicionários Houaiss, Nova Fronteira e no Vocabulário Afro-
Brasileiro. Nos dicionários Banto do Brasil e Aurélio, temos um significado mais genérico,
pois a lexia se refere a “certos mamíferos marsupiais muito delicados, de hábitos noturnos”
(LOPES, 1995, p.81). Neste caso, não há registro da lexia no DELP. Já camundongo,
africanismo que recobre o mesmo conceito englobado por catita, apresenta a mesma acepção
em todos os dicionários, com exceção do DELP, onde também não houve registro.
O mesmo ocorre com as lexias banguela, caçula, gangorra e canjica, que possuem a
mesma acepção em todos os dicionários, com exceção do Dicionário Etimológico da Língua
Portuguêsa, onde não estão registradas.
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A lexia tabaco é encontrada tanto nos dicionários gerais, como no banco de dados do
ALiMA, com dois significados diferentes como: (i) o “órgão sexual feminino” e (ii) os
“cigarros que as pessoas faziam antigamente”. Nos dicionários etimológicos, a lexia refere-se
apenas à planta cujas folhas constituem o fumo, fazendo alusão ao segundo significado dado a
essa forma lexical, e no Vocabulário Afro-Brasileiro, a lexia apenas faz referência à vulva,
retomando, portanto, apenas ao primeiro significado atribuído à lexia.
O africanismo xoxota, que também se refere ao órgão sexual feminino, apresenta a
mesma acepção nos dicionários gerais e no Vocabulário Afro-Brasileiro, porém não há
registro no Dicionário Banto do Brasil e nos etimológicos.
Bode, africanismo referente ao período de menstruação da mulher, apresenta esta
mesma acepção apenas no dicionário Houaiss. Em todos os outros, a lexia é usada para
referir-se “macho da cabra”.
Moleque, que designa a criança do sexo masculino que tem entre 5 e 10 anos,
apresenta essa mesma acepção em todos os dicionários gerais e específicos; contudo, no
dicionário Nova Fronteira, a lexia apresenta um matiz depreciativo: alude à “pessoa sem
maturidade”; no DELP, a lexia não foi registrada.
A lexia canhenga é uma variante da forma já dicionarizada canhengue, sendo que a
primeira não está registrada em nenhum dos dicionários. Assim como canhengue, canhenga
refere-se à “pessoa avarenta, que não gosta de gastar dinheiro”. Esta forma possui registro nos
dicionários específicos, no Aurélio e no Nova Fronteira, todos com a mesma acepção. Porém
este africanismo não está registrado no dicionário Houaiss e tampouco no Dicionário
Etimológico da Língua Portuguêsa.
O mesmo ocorre com o africanismo catraio, que, assim como angola, se refere ao
animal que se parece com uma galinha, de penas pretas e pintinhas brancas. A forma catraio
não está dicionarizada nas obras de referência arroladas neste trabalho; o que se encontra
registrado em quatro dos seis dicionários pesquisados é a forma catraia, porém com acepção
diferente daquela encontrada entre os informantes do ALiMA. Nos dicionários gerais se refere
a um tipo de peixe; no Vocabulário Afro-Brasileiro, refere-se a “prostituta de baixa classe”
(2001, p.226), e no dicionário Nova Fronteira refere-se a “um barco pequeno tripulado por um
homem” (p. 166). Não há registros da lexia no Dicionário Banto do Brasil e no Dicionário
Etimológico da Língua Portuguêsa.
A lexia macumba, uma das denominações para o conceito “aquilo que as pessoas
fazem para alguém e botam nas encruzilhadas”, de acordo com o questionário do projeto
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ALiMA, encontra-se registrada com o mesmo significado apenas nos dicionários gerais. Nos
dicionários específicos e no Nova Fronteira, a lexia se refere aos cultos e religiões afro-
brasileiras, porém não há registros da lexia no Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa.
E, por fim, o africanismo cachaça, que se refere à “bebida alcoólica feita com cana-
de-açúcar”, é o único que está registrado em todos os dicionários com a mesma acepção.
A partir desses dados e de sua dicionarização, é possível observar como, de fato, estes
africanismos já foram incorporados ao português brasileiro, o que comprova que a influência
das línguas africanas sobre o português é bastante significativa, principalmente no nível
lexical.
Além disso, importante registrar que estas lexias encontram-se no falar cotidiano dos
maranhenses, fato comprovado pela origem do corpus da pesquisa – o banco de dados do
Projeto ALiMA, mostrando que essa influência, além de ser a nível nacional, também
restringe-se a níveis regionais e pode apresentar peculiaridades em cada região do país.

Considerações Finais

A língua, como destaca Levi-Strauss (apud CÂMARA JÚNIOR, 1995, p.188), “(...) é
a um tempo resultado, parte e condição da cultura.”. É justamente essa natureza da língua que
possibilita a seus usuários, por meio dela, veicularem seus valores, sua cultura. Nessa
perspectiva e considerando a presença maciça de línguas étnicas africanas no Brasil colonial,
a ideia de Fiorin e Petter, expressa no prefácio do livro África no Brasil: a formação da
língua portuguesa (2008, p. 9), ganha mais força, pois afirmam os autores que as palavras
africanas que se fixaram no PB não representam somente palavras em si, mas uma maneira de
ver e categorizar a realidade.
Com a dicionarização, a presença dessas palavras no PB toma um caráter mais oficial
e torna evidente sua relevância para a constituição de acervo lexical desta variedade do
português.
A língua falada hoje é o resultado do contato que aqui se deu/dá entre povos, línguas e
culturas diversas; da contribuição, muitas vezes anônima, de todos aqueles que
construíram/constroem este Brasil de muitos rostos e muitas vozes. Muitas palavras que
fazem parte do cotidiano do brasileiro têm sua origem em diferentes grupos linguísticos
africanos e muitas outras podem ser citadas além das que foram listadas neste trabalho.
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A análise feita aqui pode ser considerada uma prova cabal da importância do papel que
o negro desempenha na realidade histórica, linguística e cultural do Brasil e, principalmente,
do Maranhão.

Referências

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integração. In: NUNES, José Horta; PETTER, Margarida. (Orgs.). História do saber lexical
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PETTER, Margarida Maria Taddoni. Africanismos no Português do Brasil. In: NUNES, José
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CHAPEUZINHO VERMELHO – UMA HISTÓRIA EM OUTRAS E MESMAS


HISTÓRIAS, EM UMA CADEIA INTERTEXTUAL

Maria de Fátima Sopas Rocha


UFMA

Introdução

A escritura de um texto, seja ele literário, acadêmico ou técnico, consiste, na verdade,


em reescrever ou retomar, com marcas mais ou menos pessoais, em razão da tipologia desse
texto, uma verdadeira antologia de outros textos, numa multiplicação de vozes que tecem uma
teia de discursos que se renovam, se atualizam, se contestam ou se completam. A essa teia ou
intersecção textual, chamamos de intertextualidade, conceito nascido da tese inicial de
Bakhtin e de seus postulados como o dialogismo e a polifonia, aprofundados e rebatizados por
Kristeva, com o nome de intertextualidade. Os estudos sobre a intertextualidade, desde então,
passaram a constituir um campo vasto de possibilidades de pesquisa e análise. A proposta
deste trabalho é analisar as marcas intertextuais, em versões variadas do conto Chapeuzinho
Vermelho, classificando essas versões de acordo com a proposta de Koch, Bentes e
Cavalcante (2007).
Inicialmente, apresentaremos algumas considerações sobre os contos infantis em geral
e, mais detalhadamente, sobre o conto que nos servirá de ponto de partida. Apresentaremos
sucintamente as versões deste conto que selecionamos para análise das marcas intertextuais.
Em seguida, apresentaremos a classificação dos tipos de intertextualidade que nos servirão de
fundamentação para a análise, para então identificarmos aquele que predomina em cada uma
das versões selecionadas.
A escolha de um conto infantil como Chapeuzinho Vermelho justifica-se pela imensa
variedade de versões disponíveis, pelas peculiaridades das fontes originais e pela atualidade e
aceitação da história, comprovada pela quantidade de títulos existente. A título de informação,
levantamos uma lista de mais de 40 títulos/versões da história, que estão sendo
comercializados, no momento, em uma única grande cadeia nacional de livrarias. Outras
formas de criação intertextual se abririam, se considerássemos a produção de diferentes
formas de arte, como a recente exibição de uma versão adaptada para o cinema, dirigida ao
público adulto.
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Da oralidade à escrita, da literatura popular à literatura infantil, primeiros elos da


cadeia intertextual

Os contos de fada ou contos maravilhosos, conhecidos como literatura destinada ao


público infantil, referendam, na verdade, o que afirmam as próprias teorias da
intertextualidade. Os autores consagrados como pioneiros – Perrault, os irmãos Grimm,
Andersen, La Fontaine (este último nas fábulas) – na verdade não são os autores, mas os
compiladores, adaptadores de histórias anônimas, transmitidas oralmente, elas próprias
recriações e adaptações de textos mais antigos, num continuum cujo ponto inicial não se pode
mais identificar.
Desses textos, pode-se dizer, como o faz Orlando de Miranda (1991, p. 4, apud
RAMOS, 1991, p. 5), no prefácio de seu livro “A garota do livro”: “Este livro é continuação
de outro livro, que é continuação de outro livro, que é continuação de outro, que é
continuação de uma continuação. Não se sabe exatamente o seu começo...”.
Coligidas e/ou reescritas e registradas em livro, essas histórias passaram a ser
conhecidas como criação desses autores pioneiros e continuaram a ser difundidas, alteradas,
reelaboradas com maior ou menor grau de intencionalidade na diferenciação e adequando-se
ao momento de sua produção.
Inúmeros estudos têm sido realizados para tentar identificar e recuperar essa Literatura
Popular que, ao que tudo indica, nasceu de antigos rituais, já que a palavra desde cedo se
impôs como algo mágico e poderoso capaz de criar ou destruir, de vencer e dominar as forças
da natureza, dos animais hostis e dos inimigos. Essa Literatura Primordial, como é conhecida,
cuja origem estaria em fontes orientais muito antigas, preservada ao longo dos tempos pela
memória dos povos, seria a fonte/origem das narrativas medievais arcaicas, transformando-se
em literatura folclórica e finalmente em literatura infantil, que é o registro culto dessas formas
populares (cf. COELHO, 1991).
A esse respeito é bom lembrar o que afirmam Wellek e Warren (s.d, p. 58):

A literatura ocidental [...] constitui uma unidade, um todo. Não se pode pôr
em dúvida a continuidade entre as literaturas grega e romana, o mundo
medieval ocidental e as principais literaturas modernas; e embora sem
minimizar a importância das influências orientais, especialmente a da Bíblia,
temos de reconhecer uma estreita unidade que compreende a literatura de
toda Europa, da Rússia, dos Estados Unidos da América e da América do
Sul.
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Somente a partir do século XVII, durante o reinado de Luís XIV, o Rei-Sol, se


manifestam as primeiras preocupações com uma literatura voltada para o público infantil, com
As Fábulas de La Fontaine (1668), os Contos da Mãe Gansa de Charles Perrault (1691/1697),
Os Contos de Fadas de Mme D´Aulnoy (1696/1699) e Telêmaco de Fénélon (1699).
Interessa-nos particularmente a obra de Perrault, em que se encontra a versão publicada mais
antiga que se conhece da história de Chapeuzinho Vermelho. Vale, no entanto, mencionar que
estudiosos do assunto reconhecem, na história divulgada por Perrault, não só evidências de
uma tradição oral arcaica, mas as marcas intertextuais do mito de Cronos e ainda de uma
fábula latina do século XI, “Fecunda ratis”.
O mito grego de Cronos conta que este, receoso de perder o supremo poder, devorava
seus próprios filhos, nascidos da união com Rhéa, logo após o nascimento. Rhéa conseguiu
salvar Zeus, fazendo Chronos engolir uma pedra. Pressionado pelo filho sobrevivente,
Chronos trouxe à vida ou à luz, os filhos devorados, Poseidon e Hades, a quem são destinados
os mares e os infernos, respectivamente, cabendo a Zeus terra, ares e o poder supremo sobre
todos os outros deuses. A simbologia do nome Chronos, que significa tempo, é clara: é o
tempo que a todos devora. É possível fazer um paralelo com a versão dos Grimm da história
de Chapeuzinho Vermelho em que esta e a avó também são retiradas da barriga e substituídas
por pedras.
Em Fecunda Ratis, de Edgard de Lièges, conta-se a história de uma menina com um
capuz vermelho, que é devorada por um lobo, mas escapa ilesa e enche-lhe a barriga com
pedras, uma vez mais como na versão dos Grimm.
A edição dos contos de Perrault dos Classiques Garnier (1967) apresenta, antes de
cada texto, uma “Notice” que historia a criação da peça, indica os textos precursores e versões
anteriores, explica o contexto histórico de sua criação e apresenta algumas das recriações
posteriores. No que se refere a Chapeuzinho Vermelho, a “Notice” apresenta comentários
sobre o chapéu (chaperon) e seu valor simbólico, sobre a cor vermelha, de que resultaram
múltiplas análises históricas, etnológicas e psicanalíticas, menciona sua origem na tradição
oral e comenta as versões dos Grimm e de Henri Pourrat – ambas com final diferente daquele
proposto por Perrault – além de mencionar uma pequena peça teatral do escritor alemão
Ludwig Tieck.
A coletânea de contos que Perrault publica, em 1697, dá continuidade à obra iniciada
em 1691 com o conto Grisélidis, a que se seguiram Os Desejos Ridículos e Pele de Asno,
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todos em verso e recriações de contos muito antigos. A coletânea de Contos da Mãe Gansa
compreende oito contos, todos em prosa, “em linguagem clara, desembaraçada, direta,
sabiamente ingênua, que agradava plenamente às crianças e aos adultos” (COELHO, 1991, p.
90):

A Bela Adormecida no Bosque (La Belle au Bois Dormant);


Chapeuzinho Vermelho (Le Petit Chaperon Rouge);
O Barba Azul (La Barbe Bleue);
O Gato de Botas (Le Chat Botté ou Le Maître Chat);
As Fadas (Les Fées);
A Gata Borralheira ou Cinderela (Cendrillon ou La Petite Pantoufle de
Verre);
Henrique, o Topetudo (Riquet à La Houppe);
O Pequeno Polegar (Le Petit Poucet).

Embora conhecidas genericamente pela designação de contos de fadas, nem todos os


contos registram a interferência ou mesmo a presença ou menção a fadas. É o caso de
Chapeuzinho Vermelho, em que o maravilhoso se manifesta, na versão de Perrault, apenas na
presença de um animal que fala – o Lobo.
Na versão de Perrault, Chapeuzinho Vermelho, assim conhecida por usar
frequentemente um capuz dessa cor, é enviada à casa da avó, para levar-lhe mantimentos. No
caminho, a menina vê-se obrigada a atravessar a floresta e é interceptada pelo lobo, que não a
ataca imediatamente por medo dos lenhadores que estão por perto, mas consegue as
informações de que necessita para antecipar-se a Chapeuzinho, na casa da avó. O lobo devora
a avó, disfarça-se com as roupas e aguarda a menina a quem convence a se despir e deitar com
ele. Trava-se então o famoso diálogo de estranhamento, e o lobo logo em seguida devora
também a Chapeuzinho. Segue-se uma “Moralidade”, em versos, em que fica claro que o
objetivo da história é advertir para os perigos de dar ouvidos a lobos/ jovens doces e gentis, os
mais perigosos.
Se as histórias anteriores à publicação da obra de Perrault são raras e pouco
conhecidas, são inúmeras e variadas as versões produzidas desde então. Embora a referência à
história de Chapeuzinho Vermelho seja associada a Perrault como seu autor pioneiro, a versão
dos irmãos Grimm, publicada em 1822, em uma coletânea de contos populares, é
possivelmente a mais conhecida. Como diz Coelho (1991, p. 141):

Os tempos de Perrault já vão distantes. E se a época dos irmãos Grimm não é


menos violenta, conflituosa ou agressiva do que o século de Perrault, já são
outras as maneiras de o homem ver e compreender o próprio homem, seu
mundo e seus objetivos na vida. O Romantismo trouxe para o mundo um
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inegável sentido humanitário que vai ter suas consequências na renovação da


arte, da literatura e dos costumes...
Assim, a violência (patente ou latente dos Contos de Perrault) cede agora a
um humanismo, onde se mescla o sentido do maravilhoso da vida. A
despeito dos aspectos negativos que continuam presentes nessas estórias, o
que predomina sempre é a esperança e a confiança na vida. Para
exemplificar, confrontem-se os finais da estória do Chapeuzinho Vermelho
em Perrault (que termina com o lobo devorando a menina e a avó) e a dos
Grimm (onde o caçador chega, abre a barriga do lobo, deixando que as duas
saiam vivas e felizes; enquanto o lobo morria com a barriga cheia de pedras
que o caçador ali colocou...).

É importante observar como se pode reconhecer, nessas reescrituras do conto, os


valores ideológicos de uma época. Perrault termina o conto com uma Moralidade:

Vemos aqui que as meninas,/ E, sobretudo as mocinhas./ Lindas, elegantes e


finas,/ Não devem a qualquer um escutar./ E se o fazem, não é surpresa./
Que do lobo virem o jantar./ Falo “do” lobo, pois nem todos eles/ São de fato
equiparáveis./ Alguns são até muito amáveis,/ Serenos, sem fel nem
irritação,/ Acompanham as jovens senhoritas/ Pelos becos afora e além do
portão./ Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,/ São, entre todos, os mais
perigosos (TATAR, 2004, p. 336 – 338).

Escrita em verso e raramente incluída nas traduções, a Moralidade deixa claro o


objetivo que o autor tinha em mente: alertar as jovens contra os sedutores, em uma abordagem
moralizante e pedagógica sobre os perigos da desobediência infantil e sobre os riscos de uma
iniciação sexual precoce.
Na versão dos Grimm predomina uma ética maniqueísta, o Bem, representado pela
Chapeuzinho, a avó e o caçador, contra o Mal, representado pelo Lobo. Ao final o Mal é
castigado – com a Morte do Lobo – e o Bem premiado – com a sobrevivência da Avó e da
menina.
Em outra versão, contada por Louis e François Briffault em Nièvre, 1885 e publicada
por Paul Delarue em "Les contes merveilleux de Perrault et la tradition populaire", no Bulletin
Folklorique de l'Île-de-France (1951, p.221-2), Chapeuzinho, astuciosamente, consegue fugir,
mas a Avó é devorada pelo Lobo – que oferece à menina parte da carne e do sangue da sua
vítima, em uma espécie de ritual antropofágico – e o Lobo enganado escapa com vida. Nesta
versão, intitulada A História da Avó, é valorizada a esperteza, a inteligência, contra a
ferocidade e a força bruta, característica que marca também a evolução de outros textos, como
as canções de gesta medievais e seus sucedâneos, os romances de cavalaria.
Na grande maioria das versões que consultamos permanecem, no entanto, alguns
elementos que estabelecem as relações entre os diversos textos: a menina e seu
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chapeuzinho/capinha/capuzinho/capuchinho, os personagens essenciais, como a mãe que


estimula a menina a enfrentar o perigo, a avó como primeira vítima do lobo e o próprio lobo,
que simboliza a punição do que cada sociedade, em sua época, caracteriza como perigoso ou
proibido – a desobediência, a iniciação sexual, por exemplo.
Em versões mais recentes, todos esses elementos podem ser mais ou menos
subvertidos. Assim, a Chapeuzinho pode deixar de usar chapéu – como em Fita Verde no
Cabelo, de Guimarães Rosa; pode usar um verdadeiro chapéu – e não propriamente um capuz
– como em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; o chapéu pode apresentar inúmeras
outras cores - Chapeuzinhos Azuis e o Lobo Bom, de Loreana Valentini, Barbie - A Princesa
Chapeuzinho Dourado, de Lawrence Mann, Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque,
Chapeuzinho Verde, de Augusta Faro, Chapeuzinhos Coloridos de José Roberto Torero e
Marcus Aurelius Pimenta, Fita verde no cabelo, de João Guimarães Rosa, O Capuchinho
Cinzento, de Matilde Rosa Araujo e André Letria, para citar apenas aqueles disponíveis no
catálogo atual de uma grande livraria brasileira. Além disso, o lobo pode ser bom -
Chapeuzinhos Azuis e o Lobo Bom de Loreana Valentini - ou inócuo como o Lobo-Bolo de
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Chapeuzinho pode participar como personagem
em outras histórias, como em Chapeuzinho Adormecida no País das Maravilhas, de Flavio de
Souza, Chapeuzinho Vermelho e o Arco-Iris - uma história, de Marcia Muraco Schobesberger
ou As Trigêmeas e Chapeuzinho Vermelho, de M. Company e Roser Capdevilla.
Alguns títulos anunciam a subversão, propondo uma nova visão dos fatos, como em
Chapeuzinho Vermelho: outro lado da história, de Júlio Emílio Braz e Salmo Dansa,
Chapeuzinho Vermelho: estória e desistória, de Lólio Lourenço de Oliveira, Chapeuzinho
Vermelho: verdadeira história, de A. R. Almodovar e Marc Taeger e A Verdadeira História
de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini.
Além destes e de muitos outros títulos disponíveis, circulam na internet inúmeros
textos que recriam a história, adaptando-a aos novos tempos e a novas intenções, o que
favorece a escolha do tema para analisar o universo criativo que o inter-relacionamento de
textos torna possível.

Intertextualidade: múltiplas vozes e intenções, múltiplos textos e formas

Foi Bakhtin quem primeiro deu suporte à ideia de um diálogo de múltiplas escrituras:
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A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-


se apenas nessa consciência ela degenera e morre. Somente quando contrai
relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa
a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua
expressão verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna
pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com
o pensamento dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na
palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce e vive
a ideia (BAKHTIN, 1981, p. 73).

Em um de seus últimos ensaios Bakhtin reafirma e complementa sua teoria:

O texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu


ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e para a frente,
fazendo que o texto participe de um diálogo. Salientemos que se trata do
contato dialógico entre os textos (entre os enunciados), e não do contato
mecânico “opositivo”, possível apenas dentro das fronteiras de um texto (os
signos dentro do texto), e que é indispensável somente para uma primeira
etapa da compreensão (compreensão da significação e não do sentido). Por
trás desse contato, há o contato entre indivíduos e não de coisas.
(BAKHTIN, 2003, p. 404).

Julia Kristeva retoma, posteriormente – na década de 60 – o postulado bakhtiniano e


renomeia o conceito tal como é conhecido atualmente – intertextualidade ou a propriedade do
texto de ser constituído de intertextos, já escritos ou ainda por escrever.
Para a Linguística Textual, sendo o texto um objeto heterogêneo, constituído por
inúmeros outros textos, selecionados de forma consciente ou inconsciente, existe uma
intertextualidade ampla, presente em qualquer discurso, ou uma intertextualidade estrita, ou
stricto sensu, quando é indispensável a presença do intertexto, ou seja, quando há referência a
“[...] outros textos ou fragmentos de texto efetivamente produzidos [...]” ( KOCH, BENTES,
CAVALCANTE, 2007, p. 17).
A Linguística Textual tem como suporte a concepção de texto surgida nos anos 90,
assim definida por Koch:

[...] o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais,


como evento, portanto, em que convergem ações linguísticas, cognitivas e
sociais (Beaugrande, 1997), ações por meio das quais se constroem
interativamente os objetos-de-discurso e as múltiplas propostas de sentidos,
como função de escolhas operadas pelos co-enunciadores entre as inúmeras
possibilidades de organização que cada língua lhes oferece [...] construto
histórico e social, extremamente complexo e multifacetado [...] (KOCH,
2002, p. 9).
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A intertextualidade stricto sensu tem merecidos várias propostas de classificação, em


relação ao tema, ao estilo, à presença explícita ou implícita do intertexto, à autoria do
intertexto e ainda à tendência de aproximação ou afastamento do texto a que remete.
A intertextualidade temática, uma dessas categorias de intertextualidade, é assim
apresentada por Koch, Bentes e Cavalcante:

A intertextualidade temática é encontrada, por exemplo, entre textos


científicos pertencentes a uma mesma área do saber ou uma mesma corrente
de pensamento, que partilham temas e se servem de conceitos e terminologia
próprios, já definidos no interior dessa área ou corrente teórica; entre
matérias de jornais e da mídia em geral, em um mesmo dia , ou durante um
certo período em que dado assunto é considerado como focal; entre as
diversas matérias de um mesmo jornal que tratam desse assunto; entre as
revistas semanais e as matérias jornalísticas da semana; entre textos literários
de uma mesma escola ou de um mesmo gênero [...] ou mesmo entre textos
literários de gêneros e estilo diferentes (temas que se retomam ao longo do
tempo [...] entre diversos contos de fadas tradicionais (grifo nosso) e lendas
que fazem parte do folclore de várias culturas [...]; histórias em quadrinhos
do mesmo autor; diversas canções de um mesmo compositor ou de
compositores diferentes; um livro e o filme ou novela que o encenam; as
várias encenações de uma mesma peça de teatro, as novas versões de um
filme, e assim por diante (2007, p. 18).

Como destacamos, um caso de intertextualidade temática está presente nas múltiplas


versões da História de Chapeuzinho Vermelho que retomam a versão original de Perrault, ela
própria, como já mencionamos, perpassada por referências a mitos e lendas anteriores e
retextualizadas.
A intertextualidade pode ser também explícita, quando o autor faz menção expressa às
fontes a que recorreu, ou implícita, quando o autor conta com a participação do leitor no
reconhecimento do texto retomado.
As tipologias do intertexto atualmente adotadas são excessivamente concisas para dar
conta de todos os tipos de retextualização que decorrem da presença mais ou menos marcada
do texto-fonte no novo texto.
Duas possibilidades ocorrem, na intertextualidade implícita: a de acompanhar a
orientação argumentativa do texto ou a de a ele se opor de forma mais ou menos contundente,
contrariando-o, ridicularizando-o ou questionando-o. No primeiro caso, acontece uma
paráfrase, denominada por Sant´Anna (1995) de “intertextualidade das semelhanças” e por
Grésillon e Maingueneau (1984, apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 30) de
captação; no segundo caso uma paródia, ou a “intertextualidade das diferenças”, para
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Sant´Anna (1995) ou ainda subversão, para Grésillon e Maingueneau (1984, apud KOCH,
BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 30).
Genette (1982) propõe uma outra classificação, diferenciando o que denomina
relações de copresença – que equivaleria à intertextualidade explícita, em casos como os das
citações e das alusões – e relações de derivação, de que resultam novos textos, por
transformação, caso das paródias, ou imitação, como nas paráfrases. Como podemos observar,
as classificações se equivalem embora apresentem abordagens diferentes, mais discursivas
para Sant´Anna, mais estruturalistas para Genette.
As classificações são facilmente atribuíveis na maioria dos casos mas, no conto de
Baruzzi e Natalini (2008), a classificação por intertextualidade das semelhanças/captação,
que definiria a paráfrase, ou por intertextualidade das diferenças/subversão, que definiria a
paródia, parece-nos insuficiente para diferenciá-lo de outros textos em que essas marcas estão
evidentes. Seria necessária a proposta de uma outra categoria, que se referisse a casos de
retextualização em que apenas se estabelecem pontes com o texto-fonte, como o acima
referido, em que se propõe uma intertextualidade cronologicamente inversa. Optamos por
classificar o conto como paródia, por essa subversão cronológica.
Um das possibilidades ainda de intertextualidade, por imitação, é o pastiche que,
diferentemente da paródia, promove a reescritura de um texto-fonte, realiza a reescritura de
um estilo ou de um gênero textual, do que decorre ser apresentada por Koch, Bentes,
Cavalcante (2007) como intertextualidade estilística, na qual se inclui a intertextualidade
intergenérica.
Em resumo, na paródia, para Genette, promove-se

um desvio temático advindo de uma transformação estrutural, com a


finalidade de ironizar, contraditar, ridicularizar o texto-fonte. [...] Sant´Anna
(1998) contrapõe os processos intertextuais parodísticos aos parafrásicos,
observando que as paródias em geral se fazem por uma espécie de
deslocamento, de desvio, de distanciamento do sentido texto-fonte. A
paráfrase, por outro lado elabora-se por um mecanismo de repetição, de
identidade e de reforço dos sentidos do texto originário. (CAVALCANTE,
s.n.t.).

Histórias de chapeuzinhos em paráfrases, paródias e pastiches: elos fixos ou quebrados


na cadeia intertextual

Para este trabalho, que tomará como texto/fonte o conto de Perrault (1967),
selecionamos os seguintes textos: Chapeuzinho Vermelho, reconto de Sâmia Rios a partir do
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conto original dos irmãos Grimm, Chapeuzinho e lobo mau, de Pedro Bandeira; Fita verde no
cabelo: nova velha história, de Guimarães Rosa; A verdadeira história de Chapeuzinho
Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini, e Chapeuzinho Vermelho em nossa
imprensa, disponível na internet.
Os textos selecionados apresentam fenômenos distintos e, ainda que possam ser
enquadrados em três tipologias predominantes – a paráfrase, a paródia e o pastiche –, as
diferenças de estratégias que apresentam mereceriam uma classificação mais precisa.
No caso dos contos em análise, o que podemos observar é que uma única categoria
não atende ao texto como um todo e o título, por exemplo, pode diferir de orientação, em
relação ao corpo do texto.
Na grande maioria das versões da história, os títulos são exemplos de intertextualidade
explícita, já que retomam o título do texto-fonte. Para Koch, Bentes e Cavalcante, a presença
explícita do intertexto no título determina o reconhecimento do texto-fonte, ainda que o autor
não seja mencionado ou que a presença deste texto seja pouco marcada.

[...] o título garantirá o acessamento do intertexto, desde que esteja presente


na memória discursiva (repertório) do interlocutor, o que nos leva a optar por
considerá-lo como exemplo de intertextualidade explícita, quer em termos de
captação quer de subversão (KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p.
55).

Dessa forma, o reconhecimento do título orientaria a leitura do restante do texto, ele


próprio reconhecido. No entanto, para identificarmos as diferentes estratégias de
intertextualização utilizadas, no caso deste trabalho, fez-se necessário utilizar as
denominações da tipologia da intertextualidade implícita, na visão de Sant´Anna (1995),
retomada por Koch, Bentes e Cavalcante (2007). Assim, concordamos com as autoras quando
denominam o processo de retextualização, ou seja, a recriação mais ou menos fiel de um
texto, numa visão mais ampla e abrangente da que propõe Marcuschi:

atividades de retextualização são rotinas usuais altamente automatizadas,


mas não mecânicas, que se apresentam como ações aparentemente não-
problemáticas, já que lidamos com elas o tempo todo nas sucessivas
reformulações dos mesmos textos numa intrincada variação de registros,
gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos. (MARCUSCHI, 2001, p. 48).

Contribui para essas diferenças, certamente, a ideologia que orienta a recriação do


texto, ou, como dizem Koch, Bentes e Cavalcante:
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[...] o caráter militante da intertextualidade; seja por meio da manipulação de


determinados intertextos, seja por meio da manipulação de modelos gerais
de produção e recepção dos discursos, a construção de relações entre textos
pode provocar uma adesão ao discurso proferido em função, por exemplo, do
tipo de formatação produzida: o uso de estruturas narrativas clássicas, como
a dos contos de fadas, para se falar de assuntos contemporâneos, é um dos
exemplos que podemos apresentar sobre o tipo de construção de autoridade
textual proporcionada pela manipulação de um determinado tipo de
intertextualidade (2007, p. 146).

A nosso ver, o texto que circula na internet é um exemplo claro de pastiche, entendido
neste trabalho como o definem Koch, Bentes e Cavalcante:

[...] o pastiche se constrói pela imitação de um estilo, isto é, não pela


repetição das características formais de um gênero, como ocorre nos textos
parodiados, mas pelo arremedo do estilo de um autor, dos traços de sua
autoria. Como diz Piégay-Gros, a função do pastiche pode ser a de exorcizar
o estilo de um autor, com propósitos críticos e/ou humorísticos, mas pode
também atender a objetivos outros (2007, 141).

No caso selecionado, os pequenos textos que resultam do processo intertextual não


estão focados na maior ou menor fidelidade ao texto-fonte, mas na imitação de estilos, nos
diferentes estilos da mídia impressa e televisiva.
Para análise das marcas intertextuais e definição da tipologia intertextual, focamos
mais detalhadamente alguns aspectos das diferentes versões: o título e as pistas intertextuais
nele presentes, o diálogo de estranhamento e o desfecho das diferentes versões. Ao
selecionarmos como elemento de análise o título da obra, levamos em consideração a
classificação de Genette do que ele chama de paratextualidade, um segundo tipo de
transtextualidade, que Koch, Bentes e Cavalcante explicam como

[...] o conjunto de relações “que o texto propriamente dito” estabelece com


os segmentos de texto que compõem uma obra – no caso a literária, à qual
toda a classificação do autor se aplica. O paratexto engloba título, subtítulo,
prefácio, posfácio, notas marginais, finais e de rodapé, epígrafes, ilustrações
e outros sinais que circundam o texto. Como o autor comenta, o paratexto
constitui um dos lugares privilegiados da dimensão pragmática da obra,
porque revela tentativas de ação sobre o leitor” (KOCH, BENTES,
CAVALCANTE, 2007, p. 131).

Concordamos com as autoras quando alertam para a dificuldade de definir o que pode
ou não ser considerado intertextual, tendo em vista que “[...] os títulos, os subtítulos, as notas
e as ilustrações compõem, na verdade, o próprio texto e só configurarão uma situação de
intertextualidade se tiverem sido extraídos de outros textos, para que se estabeleça a
interseção” (KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 132).
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No entanto consideramos que o título (e/ou o subtítulo), ao retomar o cânone de forma


explícita ou a ele aludindo, configura uma estratégia intertextual inicial que orienta a leitura
para o reconhecimento do texto ou contribui para o efeito subversivo pretendido.
Na maioria dos textos selecionados, observamos a retomada do título original –
Chapeuzinho Vermelho – que pode, no entanto, ser acrescida de informações que anunciam
que se trata de uma nova versão, com objetivos diferentes dos iniciais – o de esclarecimento
ou de atualização – como em “a verdadeira história”, “em nossa imprensa”, “[...] para os
dias atuais” ou “dos tempos modernos”.
Particularmente interessante é a apresentação do primeiro livro da relação acima
mencionada, em que se anuncia um reconto – na verdade uma paráfrase – da versão dos
Grimm. Em todos os casos selecionados, a intertextualidade no título é explícita, com exceção
da obra de Guimarães Rosa. O título – Fita verde no cabelo - não apresenta uma relação
evidente, mas o autor oferece pistas para o desvendamento da relação intertextual no
subtítulo, que anuncia um nova velha história. Orientando a identificação dessa velha história,
surgem como elementos complementares a fita, que como o chapéu é usada na cabeça, e a
menção a uma cor, neste caso o verde.
Muito embora não seja esta a proposta deste trabalho, é importante mencionar que as
cores, nas diferentes versões, exercem sempre um papel importante na construção do novo
texto, uma vez que simbolizam os sentimentos ou circunstâncias sobre os quais recai o foco
de cada versão. Ou, segundo Goethe (1993, item 863, p. 155 apud MENESES, 2010, p. 4),
“Quando o artista se deixa levar pelo sentimento, algo colorido se anuncia”.
No conto original, o vermelho é a escolha ideal para representar a violência da história
e, paralelamente, o momento iniciático da Chapeuzinho, como explica Meneses:

[...] universalmente, o vermelho é uma cor dramática: aferida em


primeiríssimo lugar ao sangue, ao fogo (e daí à paixão, à revolução). [...] o
vermelho remete à sexualidade – sobretudo sexualidade feminina: ao sangue
da menstruação, índice da maturação orgânica da mulher; e ao sangue da
defloração, marcando o início da vida sexual. O corar e o enrubescer
também são ligados a sentimentos, ao pudor e a um estado erotizado [...] do
sangue ao rubor das faces, do sangue sexualmente aferido
(menstruação/defloração) ao sangue derramado, ao ferimento, à carne viva.
“Encarnado”, se diz para o vermelho (2010, p.4).

Em Fita verde no cabelo, a cor complementa e sustenta a condição de fita inventada e,


com o decorrer do conto, de fita perdida. Também neste novo velho conto, dá-se um ritual
iniciático, também de passagem para a idade adulta, mas desta vez pelo confronto com a
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realidade, com a morte, com a finitude da vida. O verde da esperança, da imaturidade, dos
chamados verdes anos, perde-se, como a fita inventada, com o amadurecimento da menina
que presencia a morte da avó. Em outras versões, as cores também são alteradas para reforçar
a intenção do autor. Em Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque (1994), a cor do chapéu é a
cor da própria menina, amarela de medo. E o medo é o obstáculo a enfrentar, como o lobo ou
a morte. Em O Capuchinho cinzento, o subtítulo explica a escolha da cor: Quando
Chapeuzinho vermelho envelheceu..., e o cinzento do capuz é também o dos cabelos
encanecidos da velhinha em que Chapeuzinho se transformou.
Dos textos selecionados, o primeiro é uma paráfrase do conto dos Grimm, ele próprio
uma paráfrase de Perrault. Na paráfrase, busca-se a identificação com o texto-fonte, o que se
pode observar com clareza nessa versão.
Em Chapeuzinho Vermelho, reconto (grifo nosso) de Sâmia Rios a partir do conto
original dos irmãos Grimm, na primeira folha a autora já anuncia tratar-se de uma nova
versão, um “reconto”, efetivamente uma paráfrase da versão dos irmãos Grimm, da qual o
texto pouco se afasta, e quando o faz é em razão em razão do objetivo da coleção, declarado
na última capa como uma adaptação para jovens leitores. Datada de 2009, esta versão parece
ter como orientação a redução da história; o diálogo entre o lobo e a menina, por exemplo,
que, na versão dos Grimm, compreendia quatro perguntas – orelhas, olhos, mãos e boca - é
transformado e resumido a orelhas, nariz e boca, sentidos essenciais. Outra orientação que
parece ter contribuído para as alterações desta paráfrase do conto dos Grimm é a atenuação do
desfecho final, em que o lobo é punido, mas sem a participação de Chapeuzinho – que, no
texto-fonte, enche a barriga do lobo de pedras, o que ocasiona sua morte – ou qualquer outro
indício que revele um espírito de vingança ou crueldade. O lobo, simplesmente “[...] teve um
fim merecido. Com o fim do lobo mau [...]” (RIOS, 2009, p. 21). Em tempos em que
predomina a preocupação com o politicamente correto, evita-se mencionar atos de crueldade
contra os animais, da mesma forma que, da versão de Perrault para a de Grimm, a história se
humaniza e Chapeuzinho é salva enquanto o lobo é punido.
As três versões seguintes são paródias, como se pode avaliar, a partir do que afirma
Ramos, mencionando Bakhtin:

[...] encontram-se as raízes da paródia ligadas, a princípio, a manifestações


equivalentes às saturnais romanas, posteriormente, ao carnaval. E, como se
sabe, tanto as saturnais como o carnaval são festas desinibidoras e
lideradoras por excelência. O carnaval é, portanto, uma fuga ao esquema
imposto, ao cotidiano, é a festa do povo que invertendo a pirâmide social,
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desmistifica uma série de valores oficiais; assim, desviada a vida de sua


ordem habitual, temos presente um “mundo às avessas”, um mundo
carnavalizado (1981, p. 11).

Ao parodiar o conto, o autor nega os valores tradicionais, reconstrói um “mundo ao


revés”, na medida em que nega de forma mais ou menos contundente o modelo que utilizou
como proposta de recriação. Dois textos, então, coexistem na paródia, o texto parodiado, em
ausência, e o parodístico, em presença, ou seja, um mínimo de duas vozes em que a paródia
funciona “[...] como uma lente: amplia, reduz, inverte, avança e destrói para construir” (cf.
RAMOS, 1991, p. 13).
Essa desconstrução do texto pode ocorrer de múltiplas formas. No caso dos contos que
escolhemos, as paródias selecionadas subvertem o texto/fonte de formas variadas: Bandeira
(1997), por exemplo, constrói a nova história estabelecendo passo a passo um paralelo entre a
versão dos Grimm, que lhe serve de base, e a sua própria, refletindo sobre o processo de
criação e escolhas, num texto que se dobra sobre ele mesmo, se questiona e se critica, ao
mesmo tempo em que dialoga com o leitor, obrigando-o a posicionar-se, contestar, aceitar,
refletir.
Nesta paródia, são ressaltados e questionados aspectos recorrentes nas versões do
conto: a ausência de outras figuras masculinas, como pai e avô; o fato de Chapeuzinho levar
doces à avó e não o contrário como se esperaria nos dias de hoje; o disfarce do lobo,
apresentado como uma brincadeira suplementar para diversão do próprio lobo; o não
reconhecimento do lobo travestido, que a Chapeuzinho justifica “[...] mas a menina sabia que,
se havia alguém deitado naquela cama, com aquela touca e com aqueles óculos, esse alguém
só poderia ser a Vovó.” (BANDEIRA, 1997, p. 28). A dúvida justifica o estranho diálogo com
o lobo.
A relação autor/leitor é também parodiada. O leitor é insistentemente mencionado e
convidado a participar, por vezes recriminado de forma aparentemente incisiva, em mais um
jogo paródico.
Para o leitor, presumidamente brasileiro, o autor força a Chapeuzinho a pedir
explicações sobre o que é brioche. No primeiro encontro e diálogo com o lobo, Chapeuzinho
questiona o próprio ato da criação literária, em um metatexto que menciona os intertextos de
sua história, ao responder à pergunta do lobo sobre o seu nome: “Isso eu não sei, porque todo
mundo que escreveu minha história nunca se lembrou de dizer qual é o meu nome de verdade.
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Mas meu apelido eu sei. Todos me chamam de Chapeuzinho Vermelho” (BANDEIRA, 1997,
p. 15).
No confronto do lobo com o lenhador, momento crítico e de suspense, ouve-se (e
recrimina-se) a voz do leitor mais “safadinho“: “Foi mais do que um ronco. Foi... – Um pum!
Diria um leitor mais safadinho. Sem brincadeiras, tá? Esta história está chegando ao seu ponto
mais importante e é melhor prestar atenção em vez de ficar fazendo brincadeirinhas!”
(BANDEIRA, 1997, p. 37). Além disso, o jogo intertextual não se resume à retomada do
conto tradicional, há menção também a uma antiga e famosa cartilha de alfabetização: “[...] a
vovó viu... – A uva! – adiantaria aquele leitor que ainda se lembra das lições da cartilha”
(BANDEIRA, 1997, p. 22).
Nos aspectos que selecionamos para análise, vejamos como o autor renova e parodia o
conto tradicional: o título não revela o rumo da paródia, já que menciona simplesmente os
personagens centrais, antagonistas – Chapeuzinho e o lobo mau. Anunciado como mau, no
título, Bandeira cria um lobo que é apenas, como os lobos da vida real, animais “soltos e
famintos”, afinal “lobo não é burro”, prefere “ficar faminto e solto do que alimentado e
preso”, e o lobo da história é apenas “especialmente esperto e terrivelmente faminto”
(BANDEIRA, 1997, p. 12). O lobo é mentiroso, faz planos terríveis, é rápido, mas
contrariamente ao que se espera é atrapalhado, tropeça por causa dos óculos, crava os dentes
no pé da cama e, com o peso da refeição, é presa fácil para o lenhador, que usa a espingarda
para abatê-lo. O diálogo entre a menina e o lobo travestido de avó é mantido no texto
parodístico, e o desfecho segue a linha tradicional da punição do lobo, mas é contestador,
impõe de forma jocosa a reflexão, ”[...] pondo em xeque verdades prontas sobre a escola, a
família, a liberdade, a criação da obra literária...“ (RAMOS, 1991, p. 25).
Em A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro
Natalini, a originalidade maior está no fato de que, neste conto, a intertextualidade faz-se
subvertendo a linha do tempo, e as marcas intertextuais apresentam-se como raras menções a
uma história que o autor expressamente presume conhecida, mas que só acontecerá
posteriormente. O livro recorre a estratégias interativas para contar a história de um lobo que,
cansado de ser mal visto e perseguido, pede ajuda a uma menina – Chapeuzinho Vermelho –
para ajudá-lo a ser aceito.
O lobo reconhece o inusitado do pedido, mas está “canssado (sic.) de ser mal (sic.) o
tempo todo e de ninguéim (sic.) gostar” dele e declara que quer “ter boms (sic.) modos (e
melhorar a minha ortorgrafia (sic.)) e aprender a ser gentil uma vez na vida” (BARUZZI,
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NATALINI, 2008), declarando assim a sua situação de vítima de preconceitos, inclusive


linguísticos. Chapeuzinho aceita o desafio e o lobo prontifica-se a seguir suas orientações –
tomar banho, não comer carne, fazer serviços domésticos e de motorista da escola, ajudar a
mãe, ser bonzinho com a avó. Logo, o lobo conquista todos e torna-se de tal forma admirado e
popular que Chapeuzinho, enciumada, resolve preparar uma armadilha que revelará o
verdadeiro caráter do lobo, para que ela própria volte a ser a pessoa mais boazinha da floresta.
Esta maldade – a da menina, que se revela astuciosa, ciumenta e cruel em relação ao lobo, que
nesta versão é o enganado – é a causa da inimizade histórica entre o Lobo e Chapeuzinho.
Nesta história, parodia-se principalmente o comportamento dos personagens, o Lobo é
bom, ou pelo menos bem intencionado, a Chapeuzinho é ciumenta, astuciosa e vaidosa, pois,
como afirmam os autores, “Chapeuzinho Vermelho ficou muito contente de voltar a ser a
pessoa mais boazinha da Floresta. Para provar, ela foi levar uma cesta de guloseimas para a
Vovozinha” (BARUZZI, NATALINI, 2008). O intertexto é, assim, sugerido, embora o título
informe explicitamente de que história se trata. Verifica-se, na relação com a história infantil
clássica, o que afirmam Koch, Bentes e Cavalcante, a respeito da intertextualidade implícita:
“[...] o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do
intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva [...]” (2007, p. 30).
O conto apresenta, em um determinado momento da história, o momento em que o
lobo atinge o máximo de sua popularidade, uma verdadeira explosão intertextual. Sob o
pretexto de anunciar o sucesso do lobo, o Jornal da Floresta reúne uma série de notícias
jornalísticas que reúnem múltiplos personagens de outras histórias infantis e/ou referências a
episódios dessas histórias. Assim, B, de Neve entrevista a Vovó – que menciona os dentões
do lobo - e o Lobo; os Porquinhos construtores fazem propaganda de suas construções – em
palha, madeira e tijolos – e o Lobo Mau de sua empresa de demolição; P. Feio escreve sobre o
encontro do lobo com O Príncipe Encantado, em visita aos sete anões; Carochinha faz a
reportagem sobre o assalto na casa dos três ursos; F. de Hamelin revela o resultado de enquete
que revela ser o lobo o mais legal da floresta. Por último uma piada sobre a cor vermelha,
neste texto acrescentada de mais um valor, o da raiva, ridiculariza a reação da Chapeuzinho à
premiação do lobo.
Desta forma original, um novo texto é criado, em estreita, mas não expressa, relação
com a versão tradicional, e com várias referências explícitas a múltiplas outras histórias, numa
verdadeira teia intertextual. Por ser uma história antes da história, não há o diálogo de
estranhamento, embora a Vovó mencione os dentões do Lobo.
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Quanto ao desfecho, “Quanto ao que aconteceu depois... Bem, você conhece a história
oficial” (BARUZZI, NATALINI, 2008), o fim anuncia o verdadeiro começo da história, em
uma circularidade que é uma das originalidades desta versão.
A terceira paródia selecionada é o conto Fita verde no cabelo de Guimarães Rosa.
Embora popularmente se associe a ideia de paródia ao humor ou à ironia, é necessário levar
em conta o que afirmam Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 137): “A paródia se elabora a
partir da retomada de um texto, que é retrabalhado para obter diferentes formas e propósitos
em relação ao texto-fonte. As funções discursivas dessa reelaboração podem ser humorísticas,
críticas, poéticas (grifo nosso) etc”.
Sant´Anna afirma também que a paródia, diferentemente da paráfrase, não pretende
ser um espelho, a não ser que seja um espelho invertido. Ela se assemelha mais a uma lente
que “[...] exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado
num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo [...]” (1995, p. 33).
Diferentemente das que apresentamos anteriormente, não há humor ou ironia no texto,
mas uma prosa poética, em que a subversão em relação à fonte é minuciosamente trabalhada,
desde o título, que anuncia a história de Chapeuzinho Vermelho apenas na menção a uma
“nova velha história”. Neste conto a menina usa uma fita verde inventada, e não um chapéu.
A história acompanha as etapas tradicionais da história, com a determinação da mãe de enviar
Fita-Verde à casa da avó, com mantimentos. Não há lobos nesta história, apenas lenhadores,
responsáveis pelo extermínio dos lobos. Ainda assim, a menina escolhe o caminho mais longo
e demora a chegar, colhendo frutas e flores. O diálogo famoso é retomado e reinventado de
forma magistral e ocorre entre a avó e Fita-Verde, agora já sem a fita que a identificava e
anunciava sua condição de criança.
A constatação do tamanho exagerado de olhos, braços, nariz, boca, dentes, que
revelam a força do lobo e as respostas agressivas e positivas que este dá às perguntas da
menina, na história tradicional – para te olhar melhor, para te abraçar melhor, para te cheirar
melhor etc – transformam-se no conto de Guimarães Rosa em imagens de fragilidade - falar
agagado e fraco e rouco, braços magros, mãos trementes, lábios arroxeados, olhos fundos,
parados, rosto encovado, pálido, a avó murmura, suspira e geme – e as respostas são sempre
negativas – não abraçar, não beijar, não ver, nunca mais. De ameaçador, o diálogo passa a ser
comovente, uma despedida para a avó, um choque de realidade para a neta:

– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
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– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta... – a avó
murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta... – a avó
suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido?
– É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha... – a avó ainda
gemeu (GUIMARÃES ROSA, 1992).

O desfecho da história também subverte a versão tradicional. Não há vencedores ou


perdedores, não há punidos nem heróis, não há comemorações, apenas a ausência – “Mas a
avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino
corpo” (GUIMARÃES ROSA, 1992) – e a retomada do medo do Lobo, representação
alegórica da morte, no grito de Fita-Verde, não mais menina inocente, agora “como se fosse
ter juízo pela primeira vez” (id.), agora amadurecida pela dor da perda.
O desfecho retoma, embora de outra maneira, o desfecho do conto tradicional na
versão dos Grimm, na medida em que a menina renasce, superando de alguma forma o medo
e deixando a infância para ingressar na fase adulta. O que diz Bettelheim, falando sobre
Chapeuzinho, aplica-se a Fita-Verde:

Chapeuzinho perdeu sua inocência infantil, quando se encontrou com os


perigos do mundo e os de dentro dela, e trocou-os pela sabedoria que só os
que renascem possuem: os que não só dominam uma crise existencial, mas
também tomam consciência de que era a sua própria natureza que os
projetava na crise (1980, p. 219).

O último texto, Chapeuzinho Vermelho em nossa imprensa, disponível na internet, é


na verdade uma coletânea de 23 pequenos textos que não têm como objetivo recontar a
história, mas de apresentá-la em múltiplas versões de chamadas ou manchetes jornalísticas: no
Jornal Nacional, Programa da Hebe, Brasil Urgente (Datena), Superpop, Globo Repórter,
Discovery Channel, Revista Veja, Revista Cláudia, Revista Nova, Revista Isto É, Revista
Playboy, Revista Vip, Revista G Magazine, Revista Caras, Revista Superinteressante, Revista
Tititi, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, O Povo, Extra, Meia hora.
Em sua maioria, os textos têm como texto fonte a versão dos Grimm, uma vez que
informam, de forma direta ou não, que a Chapeuzinho escapou com vida depois de ser
devorada. No entanto, o foco da notícia – a Chapeuzinho foi ameaçada pelo lobo, mas
conseguiu escapar ilesa – vai sendo alterado de acordo com a ideologia do meio de
comunicação que, pretensamente, a divulga.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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Trata-se de um caso de pastiche, uma vez que se trata da imitação do estilo de


diferentes autores, com fins não só humorísticos como críticos, o que, na visão de Piégay-
Gros, já mencionada, é a função do pastiche.
Os textos podem ser agrupados de formas diversas de acordo com o tipo de mídia a
que são atribuídos. No caso dos programas televisivos, como o Jornal Nacional, o Programa
da Hebe e o Brasil Urgente, a notícia apresenta as marcas de estilo e os cacoetes dos
apresentadores, como a pausa que divide a notícia em dois blocos, um para cada apresentador
ou as expressões já popularizadas utilizadas por Hebe Camargo – “que gracinha gente” – ou
pelo Datena – “Cadê as autoridades? [...] Não tem transporte público! [...] Põe na tela! Porque
eu falo mesmo, não tenho medo [...]”.
Em outros textos, revela-se, na reelaboração textual, a orientação político-partidária do
jornal ou revista, como é o caso dos textos atribuídos à Revista Veja, o Estado de São Paulo,
O Globo e Revista Isto É, em que são feitas associações positivas ou negativas da história e de
seus personagens a Lula e ao PT . Em outros casos, são as características formais que são
mencionadas, como o recurso a especialistas e o uso de infográficos pela Folha de São Paulo.
Em alguns desses textos, apenas um aspecto relacionado à história é retomado, como
no caso da Superinteressante, que se propõe esclarecer o mito do lobo mau.
A imprensa sensacionalista também é contemplada, com manchetes em que é
destacada a tragédia, o sangue, como em O Povo, Agora, Folha Dirigida ou Meia Hora, com o
emprego de expressões mais populares que dão o tom do jornal: “Lenhador passa o rodo e
mandou lobo pedófilo para o saco!”.
Outros textos exploram a história de acordo com a sua orientação: jantar em clima
romântico entre o Lenhador e a Chapeuzinho, na Revista Tititi, orientações sobre como não
ser enganada pelo lobo na revista Cláudia, ou sobre como levar um lobo à loucura na cama
pela Revista Nova. Apelo regionalista pelo jornal Zero Hora que reivindica a naturalidade
gaúcha da Avó, ou os ensaios fotográficos das revistas Caras, Playboy e G Magazine, as duas
últimas com apelos marcadamente eróticos e orientações diferentes, a Playboy para homens,
com fotos do que “só o lobo viu” e a G Magazine, para um público predominantemente
homossexual, com fotos do lenhador que mostra um machado simbólico.
Não faltam à coletânea sequer as promoções, com a oferta de capa semelhante à de
Chapeuzinho.
Como se pode observar, no caso de pastiche não há um foco na manutenção ou
subversão do tema, mas na reescritura à maneira de outro. Como diz Piégay-Gros:
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O pastiche, porque consiste numa imitação do estilo, é, portanto, uma prática


essencialmente formal; não supõe nenhum respeito ao tema do texto imitado;
ademais, não é um texto particular o alvo do pastiche, mas o estilo de um
autor do qual ele pode precisamente extrair as particularidades comuns a
seus diferentes livros (2010, p. 241).

Considerações finais

A título de conclusão, gostaríamos de deixar claro que temos consciência de que muito
mais se poderia dizer sobre a presença da intertextualidade em contos como Chapeuzinho
Vermelho.
Neste trabalho, procuramos classificar alguns textos que retomam a história de
Chapeuzinho Vermelho, identificando-os como paráfrases, paródias ou pastiches, servindo-
nos para isso da classificação proposta por Koch, Bentes e Cavalcante (2007).
Apresentamos alguns elementos que apresentam marcas intertextuais nem sempre
muito evidentes, mas reveladores da criatividade de cada autor e do universo de cadeias
intertextuais que permeiam qualquer texto.
Muitos outros elementos merecem estudo, muitas outras versões podem ser analisadas
e revelar aspectos diferentes dos que observamos. Parece-nos potencialmente produtiva a
utilização de histórias com tantas versões disponíveis para fins didáticos, inclusive no que se
refere à identificação das diferentes classificações da própria intertextualidade. A
comparação entre versões de uma mesma história facilitaria certamente o esclarecimento e o
reconhecimento de aspectos que, muitas vezes, apresentam apenas pequenas nuances de
diferenciação.
Concordamos com Barthes (1993, p. 49), quando diz: “E é bem isto o intertexto: a
impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário,
ou a tela da televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”.
Também neste caso é impossível desconsiderar o texto infinito constituído pelos
livros, pelas ilustrações, pelos filmes, melhor dizendo, pelas sensações táteis, visuais, sonoras,
que as formas de apresentação dessas histórias constituem, somadas às experiências de vida
que nos permitem reconhecê-las, apreciá-las e desvendar-lhes os segredos.
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Deixamos de mencionar, deliberadamente, a importância da ilustração nesses contos,


embora reconheçamos que muitas vezes fomos por elas influenciados na interpretação dos
textos. É o caso, por exemplo, do lobo de aspecto patético na versão de Pedro Bandeira, na
fita verde inventada que paira sobre a cabeça da menina, no conto de Guimarães Rosa ou na
representação das múltiplas Chapeuzinhos Vermelhos que, embora assim denominadas, usam
invariavelmente um capuz.
Essas ligações intertextuais que consideram outras formas de expressão merecem e
precisam ser reveladas, mas isso será... uma outra nova velha história.

Referências

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MEMÓRIA, HISTÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO DISCURSO LITERÁRIO

PROCESSOS DE REMEMORAÇÃO NA OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Edjane Gomes de Assis


DLCV/UFPB
Palavras iniciais

Não é de hoje que reconhecemos a importância da obra de Augusto dos Anjos e sua
representação na cultura nacional. Todavia, apesar de parecer que tudo já foi dito, o poeta
ainda nos surpreende com algo novo e vivo cada momento em que nos deparamos com a
riqueza de seus textos. Dentre tantos aspectos que merecem uma reflexão sobre sua forma de
lidar com a palavra enquanto materialidade ideológica está o aspecto singular com que utiliza
a memória e seus efeitos de sentido. Considerado como um poeta simbolista e até parnasiano,
Augusto é visto, também, como pré-modernista conforme a predominância de traços
característicos do estilo modernista. A obra deste ilustre paraibano, valorizada até
internacionalmente, nos possibilita refletir sobre os percursos discursivos que tanto
impulsionam o debate de seus inúmeros admiradores.
Descrever a infinidade de traços que o distinguem é um exercício de fôlego, mas há
um aspecto merecedor de análise que se torna imperativo na agenda de discussões daqueles
que se arriscam em analisá-lo – nos referimos à memória e seus modos de subjetividade.
Interessa-nos refletir sobre os procedimentos de rememoração que o autor imprime em dois
importantes momentos discursivos: os sonetos “Senhora, eu trajo o luto do passado” e
“Debaixo do tamarindo”. Com base nos pressupostos da Análise do Discurso francesa,
sobretudo na esteira de teóricos como Pêcheux, Foucault e Le Goff, procuramos discutir os
principais elementos presentes na obra de Augusto dos Anjos que nos levaram a identificar o
devir da memória enquanto modos de ressignificação do dizer. A memória é vista como um
lugar que não está no passado, mas nos é retomada em cada processo de discursivização cujos
efeitos de sentido são entrelaçados por silêncios e já-ditos. A perspectiva discursiva contribui
para a compreensão de que os enunciados rompem os limites da estrutura frasal ao instaurar
elementos sociais, históricos e ideológicos. E isto é perfeitamente ajustável quando nos
deparamos com o discurso literário.
Caracterizado pelo senso comum como um poeta de textos sombrios e obscuros por
apresentar o que há de mais escatológico na sociedade, defendemos que é justamente nesta
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aparente obscuridade advinda da opacidade de seu discurso literário, que o poeta imprime em
sua linguagem peculiar, procedimentos de memória enquanto condição de sua própria
existencialidade. É com base nos aspectos significantes do (re)dizer que faremos uma
comparação entre os dois textos supracitados a fim de que possamos evidenciar como ambos
consistem lugares de memória. Uma memória que atua na discursividade por trazer vozes
outras, olhares transversos capazes de elucidar e resgatar/resguardar outras memórias
possíveis. Para tanto, sistematizamos o trabalho em dois momentos: Primeiramente
discutimos o conceito de memória e sua transdisciplinaridade: a memória na perspectiva
psicanalítica, histórica e discursiva – a que nos interessa. No segundo momento veremos
como os dois eventos enunciativos transitam entre o dizer e o não dizer para construir
verdades. Em “Senhora, eu trajo o luto do passado” vemos o discurso da morte como
condição de um existencialismo – um paradoxo compreensível e constitutivo de sentido. Já
em “Debaixo do tamarindo” volta o tema da infância quando o poeta materializa o
saudosismo e recorre aos arquivos para testificar o presente – o que nos leva a crer que a
memória revisitada por Augusto parece fazer parte de um movimento de constante
atualização. É como se o passado fosse a todo o momento recuperado para significar a
atualidade.

Memória e discurso literário: a (re)construção do sentido

A memória é uma categoria significativa em vários campos do conhecimento. Não


deve ser vista como algo estático voltado ao passado, mas enquanto um movimento de sentido
que ressurge a cada momento em lugares diversos. Contudo, segundo a abordagem discursiva
a memória não deve ser concebida apenas conforme a Psicologia, História ou Antropologia.
Para Lacan, nenhuma palavra é pronunciada em vão; No campo da Psicologia e com
base nos estudos da psicanálise os olhares são voltados para a forma como os movimentos do
inconsciente são determinantes para entendermos como os discursos aparecem em sua
materialidade. Eis a razão pela qual a Análise do Discurso (AD), não despreza o interdiscurso,
os pré-construídos, os dizeres que estão ainda no nível do inconsciente. O sujeito (que é
social) é visto como um ser clivado, censurado que trava um constante confronto entre o
querer dizer e a impossibilidade de sua realização.
Mas Michel Pêcheux, fundador da AD, vai além. Ele afirma que os enunciados partem
sempre de uma condição, de um lugar, de espaços em que são produzidos. Por mais que o
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sujeito procure utilizar estratégias para “escapar” desse confronto, deixa sempre lacunas no
decorrer do discurso, enunciados repletos de ideologias, pois não existe um signo neutro.
Então, discursivamente, a memória não seria apenas a lembrança de algo que foi esquecido,
algo tão somente voltado para o lado psicológico do indivíduo – entramos, pois, no território
do discurso, na projeção de uma memória discursiva definida por Pêcheux (1997, p.52) como:

Aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem
restabelecer os “implícitos” (quer dizer mais tecnicamente, os pré-
construídos elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que
sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

Pêcheux não entende a memória diretamente ligada à Psicologia, a uma memória


individual, mas aos “sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída do historiador.” (PÊCHEUX in ACHARD et al, 1999, p.
50). Se tomarmos o estudo da memória como uma capacidade de armazenar informações,
entramos em campos distintos como a psicologia, a psicofisiologia, a neurologia, a biologia,
entre outros. Já nos estudos culturais, a memória está relacionada à preservação, conservação
e armazenamento de uma cultura.
A memória está nos ambientes históricos, nos lugares, nos arquivos, nos acervos.
Temos formas de conservação da memória que a sociedade imprime para garantir uma
perpetuidade; são, por exemplo, prédios, patrimônios nacionais, museus, criados numa
tentativa de manter viva uma história, um saber, e preservar a imagem das coisas ditas em
outro momento. Há toda uma manutenção cultural, com o objetivo de conservar e evidenciar
as práticas passadas determinadas por uma infinidade de fatores sociais, econômicos, entre
outros.
Le Goff (2005, p.49) afirma que “a memória não é a história, mas um de seus objetos
e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica.” Mais globalizante, a história
atua como uma operação intelectual e laica utiliza análises e discurso crítico. É uma
representação do passado. Já a memória está em evolução permanente.
No discurso literário a memória é condição da própria existência do dizer. Quando o
poeta recorre à memória, está ao mesmo tempo recorrendo ao próprio presente, reafirmando
sua subjetividade, que não deve ser vista como individual, mas social. Falar em memória é
imperativo mencionar a problematização feita por Foucault quando se refere à arqueologia do
saber quando elabora o conceito de arquivo.
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O arquivo para Foucault seria o lugar em que os enunciados são formulados e


transformados:

é o que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos
milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou
apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a
sinalização, no nível das performances verbais (...) mas que tenham
aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2004, p. 146).

Dimensionada enquanto um traço de existência a memória discursiva funciona como


um lugar da dispersão, da descontinuidade do dizer; está ligado ao “sistema de sua
enunciabilidade” e ao “sistema de seu funcionamento”. Arquivar não significa “guardar” algo
antigo, fazer repousar os fatos, cultuar um “sono tranquilo”; mas atuar através de uma massa
amorfa, de um conjunto de regras e práticas, bem como as condições de funcionamento de
cada época e momento dado. Entende-se, assim, que o arquivo não compreende um aspecto
estático, imóvel às circunstâncias do tempo, mas ele atua numa dinamicidade de lugares,
numa movência e deslocamento de sentidos. E sendo utilizado pelos sujeitos, ele vai
adquirindo outras formas como sustentáculos do discurso. Ao lado do arquivo chegamos ao
que o autor fala sobre o a priori histórico que segundo ele,

Deve dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma
verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às
leis de um devir estranho. (...) não escapa à historicidade: não constitui,
acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável, uma estrutura
intemporal; define-se como conjunto das regras que caracterizam uma
prática discursiva. (FOUCAULT, 2004, p.144 e 145).

É o a priori histórico que nos permite ver como os discursos são tomados por um
devir. E o discurso literário que é entrelaçado de elementos sociais, históricos e ideológicos
deixa materializados rastros de memória que falam por meio de não ditos, de silêncios dignos
de sentido.
Algumas tendências culturais e, sobretudo críticos literários mais radicais, costumam
abordar o discurso literário como a espaço definido pelo estilo individual do poeta. Muitos
chegam a considerar uma espécie de profanação a análise de uma obra na perspectiva mais
sociológica. Tal “debate” reproduz formações ideológicas que foram cristalizadas pelo tempo.
Durante longos anos perdurou a ideia de que os literários eram seres ilustres, dotados de uma
genialidade – característica ausente em outros seres mortais. Não podemos deixar de
considerar o valor de criatividade do poeta, já que estamos no campo da arte também,
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contudo, analisando discursivamente é necessário desmitificar os dogmas que ainda perduram


em pleno século XXI.
Primando por um olhar plural, uma leitura que possa ser acessível aos leitores,
entendemos que o sujeito, em posição social determinada, é resultado de suas condições
sociais. Mesmo que o poeta ressurja metamorfoseado em outros papéis (eu-lírico que não é
necessariamente o autor do poema, por exemplo), sempre está configurando seu lugar social.
O sujeito é social e é a ideologia que o interpela em sujeito. Então, sua obra e tudo o que ele
produz, é resultado dos elementos sociais, históricos e ideológicos que engendram novas
significações. Assim, analisando a obra de Augusto não é de nosso interesse considerá-lo
como uma figura isolada, dissociada de sua própria história. Mas, enquanto sujeito social, sua
obra vai imprimindo molduras de uma existência, seu modo de ver os lugares, sua forma de
discursivizar os elementos do passado – traços evidenciados no processo de rememoração que
ele instaura. Como se dá, então, essa volta? Vejamos na análise dos dois textos a seguir.

O caminho de volta: os arquivos de Augusto dos Anjos

Visto por alguns como pré-modernista, como dissemos, Augusto dos Anjos se firmou
como o poeta de uma obra complexa em que predomina desde o escatológico (menção aos
vermes, escarro, gritos, sangue, miséria) a uma carnavalização (contraste com o alegre, o
movimento) numa confluência de dizeres que submetidos aos modos de subjetivação. É neste
exercício de ir e vir que ressurgem dois textos marcantes em sua obra: “Senhora, eu trajo o
luto do passado” e “Debaixo do tamarindo”. Embora pareçam contraditórios por trazer em
primeiro momento o tema da morte e em segundo momento por fazer voltar à infância, os
dois textos retratados se coadunam, resgatam histórias, reacendem memórias.
A morte, que aparece de forma crua e natural segundo o crítico literário Ferreira
Gullar, é vista como tema recorrente na obra de Augusto dos Anjos. Para retratá-la o poeta
recorre a elementos simbólicos mantidos no jogo de simbioses que formam uma unidade de
sentido. Mesmo mantendo os devidos cuidados entre o eu inscrito em sua obra e sua própria
vivência, não devem ser desconsiderados que seus textos, ou seja, a materialidade da
ideológica testifica muito de sua personalidade. Os poemas de Augusto constroem um jogo de
similitudes com seu comportamento social, mas, sobretudo, figuram um espelho da sociedade.
Amor, inocência, pureza, luminosidade tão presentes em escolas anteriores (sobretudo o
romantismo), aparecem em Augusto como elementos secundários. Mesmo que a estrutura dos
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poemas reproduza a tradição, o conteúdo é fruto de sua transgressão. As últimas estrofes de


“Versos íntimos” são exemplos de sua “rebeldia” e mecanismos de resistência: Toma um
fósforo. / Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro /
A mão que afaga é a mesma que apedreja. / Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga / Escarra nessa boca que te beija!
A cadência de sua obra e seu sincretismo particular fizeram com que Augusto se
tornasse um dos maiores poetas do século XX. Incompreendido por alguns, ovacionado por
outros, o importante é que sua obra é reveladora de um caráter visionário. É o retrato da
decadência da sociedade de sua época. O amor não tem mais os ares de inocência, a saudade é
revestida de um sombreamento, a dor é a garantia de seu permanente estado de espírito –
necessária para a produção dos modelos de significação. Tudo garante sua completude: O
bem e o mal, o claro e o escuro, a morte e a vida, o choro e o riso, o presente e o passado, o
céu e o inferno, a finitude e a eternidade. É nesta dialética e num aparente paradoxo que o
poeta vai transformando e emoldurando sua arte. Nada pode ser descartado, o silêncio, as
palavras não ditas, também não escapam de seu olhar.
Os dois sonetos que seguem são exemplos claros que ditam o ritmo da palavra
traduzida pelo poeta. A morte, o luto os temas da infância que se estendem por meio do
saudosismo são evidenciados com tonalidades fortes que dialogam com uma suavidade
peculiar. Vejamos o que nos diz o soneto:

1
Senhora, eu trajo o luto do passado
Senhora, eu trajo o luto do passado,
Este luto sem fim que é o meu Calvário
E anseio e choro, delirante e vário,
Sonâmbulo da dor angustiado.

Quantas venturas que me acalentaram!


Mau peito, túmulo do prazer finado,
Foi outrora do riso abençoado,
O berço onde as venturas se embalaram.

Mas não queiras saber nunca, risonha,


O mistério d’um peito que estertora
E o segredo d’um’alma que não sonha!

Não, não busques saber por que, Senhora,


É minha sina perenal, tristonha
- Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.

1
Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/augusto12.html
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No discurso literário, como todo discurso, as palavras exercem uma função discursiva.
São enunciados povoados de outros enunciados, pois só fazem sentido conforme as condições
em que são produzidos. A literatura, obviamente, desperta uma infinidade de gestos de
interpretação porque atingem o emocional chegando ao campo do transcendental. Portanto, os
dizeres que nos são apresentados no discurso literário não podem ser analisados em seu
sentido literal, mas mediante jogos de representação simbólica. Versos como “Cansado de
chorar pelas estradas. Exausto de pisar mágoas pisadas/ Hoje eu carrego a cruz das minhas
dores, advindos de A cruz do pânico (Augusto de Anjos), devem ser postos dentro de uma
configuração metafórica, pois só assim, poderemos compreender o que significaria dizer que
alguém vai “pisar mágoas pisadas”.
O primeiro verso do soneto em discussão nos traz evidências do passado. A memória é
retomada com nuanças de um vazio, do luto que é vivenciado por meio de novas
significações. Há um relato que deixa eternizar a dor “esse luto sem fim que é o meu
Calvário”. O sujeito do discurso afirma que traz o passado, ou seja, o processo de
rememoração parece transpor os limites da temporalidade para personificar o presente.
A distinção entre passado e presente gera infinitas interpretações conforme cada
campo científico como a Psicologia, História, Antropologia. No terreno da Linguística,
embora a oposição esteja voltada para as marcas linguísticas (flexão dos verbos), devemos
considerar a análise para além da estrutura. Benveniste (1965) em sua releitura de Saussure
estabelece a distinção entre o tempo da seguinte forma: a) tempo físico – contínuo, uniforme,
infinito, linear, divisível à vontade; b) tempo cronológico ou tempo de acontecimento que,
socializado, é o tempo do calendário; c) tempo linguístico, que tem o próprio centro no
presente da instância da palavra, o tempo do locutor.

O único tempo inerente à língua e o presente axial do discurso e (...) tal


presente é implícito. Isto determina outras duas referências temporais, que
estão necessariamente explicitadas num significante e fazem aparecer o
presente e o que irá sê-lo. Estas duas referências não são próprias do tempo,
mas de pontos de vista sobre ele, sendo projetadas para trás ou para frente a
partir do momento presente. (BENVENISTE, 1965 apud LE GOFF, 2003,
p.214).

No campo discursivo o passado ressurge como um processo de ressignificação. Ele


funde-se ao presente criando novos efeitos de sentido e deixando rastros que serão
recuperados de diferentes modos e gestos de interpretação. Os verbos no passado que
aparecem na segunda estrofe não nos dizem apenas como as “coisas” aconteceram, não
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narram tão somente venturas que ele insiste em lembrar, mas são recuperadas, aqui, neste
novo lugar de memória – o soneto – para que seja mantida uma relação de comparação entre o
ontem e o hoje – seu estado atual.
É o que ocorre também no segundo verso, quando é evidente o a priori histórico
conduzido pelo poeta. As cenas, os acontecimentos são descritos de modo mais incisivo
quando são narrados os momentos alegres que se contrapõem a sua finitude, seu prazo de
validade. Nos últimos versos instaura-se um processo dialógico. Há uma projeção do outro
partícipe da enunciação que é determinante para a construção dos efeitos de sentido. A
incompletude do sujeito se revela no momento em que se faz necessário emoldurar a imagem
desta “Senhora”, para firmar verdades. Ele confessa sua dor, externaliza seu saudosismo e
trava um conflito entre o passado e o presente, a vida e a morte, o amor e seu fim.
Os percursos discursivos são materializados na delimitação do tempo, na simbologia
das sombras alimentadas pela opacidade do dizer – nos referimos, mais especificamente, ao
contraste que é feito entre o Ocaso (entardecer, o cair da noite) e a Aurora (o amanhecer).
Aqui, neste evento discursivo, temos um sujeito lacaniano, clivado, censurado, em conflito
com a própria existencialidade. A memória transita entre a tristeza, o luto e a vida, quando são
recuperados seus momentos felizes, as venturas que parecem continuar na memória, no devir
constitutivo de sentido. O passado deve voltar através de trajes – trajes de luto – que ele
insiste em reafirmar ao longo do texto. Não adiante apenas sentir a ausência ele se reveste
dela.
Os jogos de relação configurados no texto transitam entre o dizível e não dizível, e por
mais que atuemos discursivamente na interpretação de uma obra como as que constituem o
discurso literário, não escapamos de considerar a articulação que consistem as técnicas de
representação. É o que observa Foucault em sua singular análise sobre o quadro “As meninas”
do pintor Velásquez. Cada elemento assegura uma nova imagem – uma grande metáfora.

Por mais que se diga o que se vê, o que se vê jamais se aloja no que se diz, e
por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.
(FOUCAULT, 2002, p.12).

Embora a análise de Foucault esteja voltada para a pintura, podemos fazer


deslocamentos para outras manifestações artísticas como o discurso literário. A
descontinuidade e dispersão dos acontecimentos são reunidas no poema, ou seja, só podemos
saber e entender a dimensão da dor do sujeito discursivo através do processo seletivo dos
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enunciados que ocupam aqui uma função – a função enunciativa - que seria aquilo que faz
com que cada frase, cada proposição, cada dito, seja pronunciado segundo as condições
possíveis de sua existência. O que está em jogo não é o que é dito, mas como é dito e as
condições em que foram produzidos. É, enfim, a função que esse enunciado ocupa na cadeia
discursiva.
As sucessões dos elementos selecionados no texto condizem com a realidade
momentânea. O luto, as lembranças das venturas do passado não estão mais posicionadas em
um ponto fixo, mas exercem funções em outros períodos distintos. Constituem sentido ainda
hoje, no século XXI, e levantam os mesmos dilemas existenciais típicos da modernidade.
Em “Senhora, eu trajo o luto do passado” ouvimos uma espécie de grito, de clamor por
algo que se perdeu. Embora o luto tenha surgido no passado, os resquícios da alegria e
momentos de prazer se entrecruzam em reflexos de memória. Para preservar a atmosfera
sombria e saudosista o sujeito inscrito na tessitura do texto tenta manter um certo sigilo, um
mistério e um segredo contido na dor (conforme faz na terceira estrofe). Ele age, pois, no
silêncio. Obviamente a análise do soneto não está circunscrita somente nestas poucas
observações, pois discutir a obra deste poeta paraibano é entrar na ordem arriscada do
discurso, como diz Foucault.
O segundo momento do trabalho compreende a análise do poema “Debaixo do
Tamarindo” que funciona como um lugar de memória constituída de efeitos de sentido.
Retomando o texto anterior discutimos que o passado vem envolto por um sombreamento, a
dor/luto é o próprio agasalho do sujeito que nos é apresentado, mas, ainda assim, podemos ver
lampejos de uma claridade, quando ele relata os momentos felizes com a amada. Agora, no
novo acontecimento, o segundo texto, há novamente a retomada dos temas do passado, mas o
sujeito discursiv especifica, detalha as cenas da infância e deixa nas marcas do (re)dizer a
importância da árvore (tamarindo) que aqui é personificada como a figura de um ente
familiar, ou ainda, o próprio poeta.
Não há figura mais representativa na obra de Augusto dos Anjos do que o tamarindo.
Desde seu surgimento “Debaixo do tamarindo” tem gerado profundas reflexões porque
reproduz o real – ele existe, e continua relutando com o tempo. A ficção se confunde com a
realidade, a verossimilhança está presente de modo dinâmico. O tamarindo é uma árvore de
longos galhos, que está situada, ainda hoje, no Engenho Pau D’arco, município de Sapé/ PB,
Conforme vemos na imagem seguinte:
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Figura 1: Imagem do Tamarindo cultuado por Augusto dos Anjos.


Fonte: http://babilakbah.wordpress.com/2013/04/09/museu-augusto-dos-anjos.

A imagem funciona como um operador de memória. E a fotografia do tamarindo


retratado por Augusto nos dá evidências de que sua obra continua viva como o próprio objeto
cultuado – o tamarindo. A fotografia é vista como um lugar de memória, capaz de garantir a
perpetuidade da vida. É o que afirma Vasquez (2002, p.32):

Fotografar é sempre fazer história, seja a de nossas pequenas vidas, ou a das


nações e dos grandes homens. Mas, em alguns momentos o fotógrafo tem
mais nítida e precisa a certeza de estar “fazendo história” com seu trabalho,
usando seu engenho e arte para documentar as mais formidáveis realizações
de seus contemporâneos ou as avassaladoras tragédias que se abatem sobre
eles.

O tamarindo tão cultuado pelo poeta (embora esteja passando por um processo de
revitalização, já que o tempo se encarregou de deixar sequelas profundas), ainda mantém sua
altivez e nos faz entender a razão de tamanha devoção. Augusto, mediante seu olhar
minucioso diante da vida, e pela forma como seleciona os enunciados, percebia o valor desta
árvore, sobretudo nos momentos de profundos conflitos pessoais. Vejamos o que seus versos
revelam adornados pelos lampejos da memória.

Debaixo do Tamarindo2
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore de amplos agasalhos


Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

2
Disponível em: http://www.escritas.org/pt/poema/12229/debaixo-do-tamarindo
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Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

Os versos do poema revelam a volta da infância, do aconchego do lar, a imagem do


pai e o acalento da dor. O primeiro verso ressurge na descontinuidade do dizer como algo
peculiar. Há um tempo cronológico que o sujeito determinada para demarcar os fatos – “No
tempo de meu Pai”. Isto revela que o tamarindo já estava lá, em algum lugar enraizado ao
longo do tempo e testemunhando as gerações; ele funciona como um bálsamo, um elixir que
alivia o cansaço, a fadiga dos árduos trabalhos.
O tempo volta a ser demarcado no segundo verso: “Hoje, esta árvore de amplos
agasalhos/Guarda, como uma caixa derradeira/o passado da flora brasileira/ E a paleontologia
dos Carvalhos!” Observamos que há a todo o momento um deslocamento de ir e vir que dita o
dinamismo da linguagem, mas acima de tudo, funciona como dispositivos discursivos para
“revelar” as ações e acontecimentos da vida do poeta. O primeiro verso é predominantemente
voltado para o passado quando é projetada a figura paterna, já no segundo a temporaneidade é
evidenciada no hoje, percurso discursivo para testificar o presente. Embora um verso venha
com ecos do passado e o outro venha concretizar a atualidade ambos (versos) atuam numa
completude do dizer, pois servem para relatar o percurso de sentido que o sujeito utiliza para
produzir gestos de interpretação nos leitores. Os dois versos se complementam.
O tempo volta à cena para nos apresentar o momento cronológico figurativizado pelo
“relógio” e ainda, quando há, agora, uma projeção para o futuro – a representação da morte
como garantia da existencialidade, perpetuidade da vida.

Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

Na opacidade do dizer há nestes versos a busca pelo eterno, o que nos leva a pensar
no aparente paradoxo entre parar a vida – morrer – e o ressurgimento de sua imagem através
da sombra é o que permite/garante a continuidade da vida, ou seja, a eternidade. O tamarindo,
neste sentido, é a própria personificação de Augusto. Tomando sempre certa cautela em
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dissociar o caráter biográfico da obra do poeta, não há como negar ou silenciar que o
tamarindo representou em sua vida. Não apenas por ser um lugar de refúgio (conforme fala
nos primeiros versos), mas por cultivar sua memória e imprimir na sombra, sua alma. O
tamarindo tem, assim, uma dupla face: o companheiro das árduos horas, e analisando o
processo interdiscursivo trata-se da outra face de Augusto, pois sua sombra está lá. Ele morre,
mas continua encarnado através da árvore que é tida como um lugar de memória e continua,
ainda hoje, em pleno século XXI reproduzindo sentidos, gerando novos gestos em quem visita
o local. A força da natureza existente no tamarindo ratifica uma história-testemunho. No
poema, em alguns momentos há um certo silenciamento do eu-lírico que cede lugar ao seu
objeto cultuado – o tamarindo. Ele dita o ritmo dos acontecimentos: a morte do pai, os
momentos difíceis resultantes de árduos trabalhos; a própria história do país que é revelada
através da flora, enfim os momentos mais representativos da vida do poeta.
Ao longo do tempo a sociedade foi instituindo lugares de memória para evidenciar a
história e cultuar o passado. Os monumentos, bustos de ilustres da história, museus,
bibliotecas, os próprios arquivos computacionais – técnicas típicas da modernidade – são
tidos como espaços que se encarregam de resguardar a memória. Tal como na Idade Média
em que os livros, ou o grande acervo de produção intelectual eram postos longe dos olhos da
sociedade, em lugares de difícil acesso, agora todo e qualquer sujeito social pode manipular
(no sentido de manuseio) a memória, conforme as condições que lhe são apresentadas.
Ao reler Nietzsche, Foucault estabelece rupturas no campo científico, sobretudo
quando passa a questionar a história tradicional. Entre os vários conceitos polêmicos que tanto
o inquietaram estava a questão da “verdade” como condição acabada, irrefutável. Em sua
arqueologia retoma as categorias de documento e monumento.
Vejamos como isso se dá no campo da história: Se o historiador precisa de provas para
evidenciar o passado como condição de verdade, devemos considerar o documento enquanto
monumento. E a verdade está submetida, fabricada, por meio de “jogos” – “jogos de verdade”.
Para Foucault (2004, p.157), “a arqueologia busca definir (...) os próprios discursos, enquanto
práticas que obedecem a regras. (...) Ela não trata o discurso como documento, como signo de
outra coisa. Ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento.”
(grifos do autor). Para Veyne (2008, p.54), “o documento seria todo acontecimento que deixa
uma marca material.”
É na reflexão estabelecida entre documento/monumento que os sentidos se instauram e
retomam aspectos significantes. Buscar “enxergar” os sentidos presentes na organização dos
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elementos é determinante para que se busque vozes silenciadas durante o tempo.


Consideramos, pois, o poema como um monumento, como objeto que não seria, tão somente,
um agrupamento de elementos da infância do poeta, suas ações e sua percepção do futuro. Vai
mais além. O monumento (o poema em questão) dá conta não apenas de agrupar os elementos
do passado, mas de recolocá-los em posição de análise, ampliando, assim, o campo de
investigação em que a temporalidade é apenas uma condição dentre outras que ressurgem e
não são menos relevantes; permite reconhecer em profundidade os instrumentos, as
manifestações do sujeito em suas prática sociais e observa como os elementos estão inter-
relacionados para construir sentido. Na perspectiva discursiva que é constituída por elementos
que transcendem o caráter puramente analítico (fora dos limites do texto como produto
acabado) os monumentos adquirem uma materialização da memória, marcas deixadas em
momentos e lugares outros.
O poema “Debaixo do tamarindo” configura, também, um lugar de memória porque
faz voltar o acontecimento – não mais factual, nem histórico, mas discursivo. A que se deve
então tal constatação? Porque o discurso literário é constituído de um entrecruzar de vozes,
dizeres outros reelaborados, reproduzidos em momentos díspares. E o que constitui Augusto
dos Anjos enquanto autor? Sua forma de organizar, selecionar, recuperar os dizeres que estão
dispersos na descontinuidade e instigam a projeção de novos olhares sobre o texto.
Mas o poema não trata apenas do passado. O futuro – o que está por vir – também não
é descartado – um aspecto mais evidente nos últimos versos:

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

A última estrofe nos apresenta uma estrutura cíclica. Enquanto os movimentos


anteriores estavam direcionados para o relato do passado (temas da infância, relato da morte
do pai, o ritual fúnebre figurativizado pela vela), os versos acima retratam o futuro que não
significa o fim, o desaparecimento de sua figura. A sombra “há de ficar” – o que comprova o
caráter visionário e progressista do poeta. Ele antecipa o que irá acontecer. Vai além para se
encarregar de que não seja esquecido. Para tanto, confia em seu grande companheiro – o
tamarindo – que continuará “aqui” documento e fazendo ecoar sua história. Agora, ele credita
toda a responsabilidade de documentar e garantir a perpetuidade de sua vida ao tamarindo,
porque ele e somente ele, é capaz de refletir sua sombra em detrimento de qualquer outra
espécie da flora brasileira. Enquanto a sociedade moderna atual utiliza sofisticadas técnicas de
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arquivamento da história (fotos, pinturas, recursos tecnológicos), Augusto dos Anjos retira da
própria natureza os elementos que vão se metamorfosear em um inventário de acontecimentos
passados. Seu lugar de memória tem longos galhos e produz sombras para refugiar os pobres
corações aflitos. O processo de rememoração, portanto, não pode parar, mas está a todo o
momento sendo reformulado, recontado em forma de de pré-construídos, já-ditos que se
encontram na dispersão e descontinuidade do (re)dizer.

Considerações finais

Os dois textos analisados engendram na materialidade discursiva movimentos


ideológicos que resgatam o passado, ressignificam o presente e antecipam o futuro. O tempo é
a condição necessária para a instauração dos efeitos de sentido que neles se configuram. As
metáforas encontradas na multiplicidade de elementos aparentemente antagônicos organizam
o jogo das similitudes.
No soneto “Senhora, eu trajo o luto do passado” aparece um sujeito social saudosista,
cuja tristeza é apresentada envolta pelo manto da sombra que mesmo assim, refletem a
nebulosidade do dizer. O passado é a constituição de sua própria existencialidade. Em
“Debaixo do tamarindo” os percursos discursivos do poeta nos dão indícios de como era sua
infância e com o desenrolar dos acontecimentos de sua vida foram testemunhados pelo
tamarindo, que aqui seria a personificação de sua própria subjetividade. Presente, passado e
futuro se entrecruzam ocupando os espaços de rememoração. Os dois textos, que vêm
entrelaçados de elementos sociais, históricos, culturais e ideológicos, materializam os lugares
de memória e são vistos enquanto arquivos vivos – não descansam em sono profundo, mas
atuam num verdadeiro dinamismo da palavra.
A análise dos dois textos nos permitiu concluir que ambos se complementam, se
coadunam e mantêm relações de proximidade despertando novos gestos de interpretação em
cada momento em que são relidos, são retomados conforme as condições de produção de cada
leitor. Ambos traduzem a singularidade do poeta, cuja obra não se esgota apenas aqui, mas
continua sempre nos surpreendendo em cada evento discursivo.

Referências

ACHARD, Pierre (et al.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.


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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 6ed. São Paulo, Edições Loyola, 2000.
______. O que é um autor. 3 ed. Vega: Passagens, 1992.
______. Arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004.
______. Microfísica do poder. 21ed, Rio de Janeiro, Edições Graal, 2005.
______. As palavras e as coisas. 8 ed. São Paulo, Marins Fontes, 2002.
______. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 2009.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 2003.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: Estrutura ou acontecimento. 2ed. Campinas, Pontes, 1997.
______. Papel da Memória in: ACHARD, Pierre. Papel da memória (et al). Campinas,
Pontes, 1999.
VASQUEZ, Pedro. Fotografia: reflexões e reflexões. São Paulo, Lpm, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4ed. Brasília,
UnB, 2008.

Sites pesquisados

ANJOS, Augusto. Senhora, eu trajo o luto do passado. Disponível em:


http://www.jornaldepoesia.jor.br/augusto12.html. Acesso em 10 de Outubro de 2014.
_______. Debaixo do tamarindo. Disponível em: http://www.escritas.org/pt/poema/12229/
debaixo-do-tamarindo. Acesso em 10 de outubro de 2014.
Imagem do tamarindo: Disponível em: http://babilakbah.wordpress.com/2013/04/09/museu-
augusto-dos-anjos. Acesso em 10 de outubro de 2014.
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O SUJEITO DISCURSIVO EM “O MORCEGO” DE AUGUSTO DOS ANJOS

Rivaldete Maria Oliveira da Silva


Centro Universitário de João Pessoa- UNIPÊ

Introdução

Esta comunicação, fundamentada na teoria dialógica da linguagem de


Bakhtin/Volochínov (2009), tem por objetivo analisar a dimensão constitutiva do sujeito no
poema “O morcego” de Augusto dos Anjos, buscando as relações dialógicas do indivíduo
enquanto agente responsivo ativo de seu dizer.
Para a compreensão dessa relação contínua do sujeito que interage com o outro,
levam-se em conta como se assimilam as palavras alheias, como são criadas constitutivamente
as respostas contextuais e como as práticas sociais influenciam nossos modos de interação, de
modo que a fronteira do enunciado (signo) resulta da alternância dos sujeitos falantes.
Nesse plano da responsividade, o poeta, como todo indivíduo situado, constitui-se em
um ser de resposta. Segundo Geraldi (2005, p. 78), esses sujeitos são “[...] individualidades e
subjetividades que se constroem no processo mesmo de uso de linguagem, no contexto de
uma organização social e seus modos de relação, também historicamente mutáveis”. Eles se
constituem no universo social das formas de produção da língua e caminham pela estrutura
ideológica da sociedade.
Com abordagem qualitativa de natureza bibliográfica, reflete-se sobre a importância
do sujeito para compreensão do ato comunicativo poético em um contexto aberto, livre, visto
pelos enunciados concretos, presumidos e mediados pelas faces sistemáticas da linguagem em
uso, por esta razão, passível de outras formas de análise e de outros pontos de vista. Verifica-
se ainda, no dizer de Volochínov (2013), o lugar da palavra poética nos fatores básicos do
ritmo como o entonacional, o eletivo e o compositivo através do gênero bem como a
valoração do signo ideológico que desempenha papel fundamental no processo de
constituição do indivíduo como sujeito.
Dessa forma, aprofunda-se a leitura do texto pela presença constitutiva dos sujeitos e
pela multiplicidade de sentidos da palavra, que traz em seus elos – os enunciados – a voz do
outro e a voz de outrem como constitutiva da voz de cada locutor na ininterrupta cadeia da
comunicação verbal.
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A compreensão do sujeito no ato comunicativo

A linguagem para Bakhtin/Volochínov (2009) é uma instância de interação verbal em


que os sujeitos interagem e produzem seus discursos marcados por outros discursos e pelos
contextos de produção. A língua com seus enunciados é um produto desse processo de
produção discursiva, é o lugar em que a palavra como signo ideológico constitui-se como
materialidade, extrapolando a estrutura do sistema da língua a fim de alcançar a sua
discursividade, os seus sentidos socialmente construídos.
Nessa perspectiva, a noção de sujeito é fundamental para a compreensão do ato
comunicativo, pois, quando alguém comunica, expressa ao outro seu ponto de vista valorativo
por meio de signos. Esses signos já chegam transformados pela ideologia e impregnam a
consciência de conteúdo ideológico
O sujeito-autor nasce na tensão entre os elementos da vida e os elementos da arte,
orientando seu estilo pelos acentos avaliativos e pelas avaliações sociais. Assim, “[...] a língua
para o poeta é completamente permeada por entonações vivas, avaliativas e por orientações
sociais, com as quais luta no processo de criação e entre elas escolhe esta ou aquela forma
linguística, esta ou aquela expressão” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 240). As avaliações não são
fixas, eternas, são reavaliadas, estão fundadas em um solo comum, compartilhado, assentadas
em uma base social. Desse modo, não se pode tratar de sujeito sem associá-lo às questões de
signo, significado, enunciado e gênero.
A preocupação desse sujeito com o material linguístico advém da ideia de que os
signos não se estabelecem apenas na simples transposição de uma consciência para outra mas
também se estendem de consciência individual a consciência individual na disputa do diálogo.
Assim, “o domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 32). Nessa arena, locutor e
interlocutor estão situados na comunicação pelo estatuto do signo ideológico, em outros
termos, pelo ato enunciativo que envolve esses indivíduos. Por essa dimensão, o sujeito só
pode existir, só pode ser compreendido como um ser construído socialmente.
O despertar da consciência do eu se realiza na interação com a consciência do outro.
Aliando-nos ao postulado do conceito de excedente de visão do dialogismo de Bakhtin
(2010a), tudo que é absorvido pelo eu advém do mundo exterior. Logo, cada época ou meio
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social é assimilada pelo sujeito através dos signos, que ganham novos sentidos nunca
estabilizados ou acabados, sempre em constante mutação.
Na poesia augustiana, “[...] o ‘eu’ expresso converge plenamente com a figura do
autor, visto que se pode apreender certa ‘totalidade’ que ressoa dessa convergência, pois o eu
‘concreto’ é posto em sua condição ‘determinada’ nas entranhas do poema”. (DUARTE
NETO, 2011, grifos do autor). Essa convergência, não é senão a relação do autor e seu outro
estabelecida no convívio dialógico do enunciado concreto.
Com essa condição, é preciso que os sujeitos estejam devidamente constituídos numa
situação real de diálogo, porque “compreender é opor à palavra do locutor uma
contrapalavra.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 137, grifos dos autores). O sentido do
discurso se ajusta às reações imediatas do ouvinte, passa de um a outro num intercâmbio
respondente, em uma relação em que a compreensão não depende somente da intenção de
quem enuncia em um contexto, mas de todo repertório de quem ouve.
Essa inter-relação implica dizer que todo sentido se multiplica cada vez que uma
palavra é pronunciada ou escrita, tornando a língua viva, dinâmica e pronta ao diálogo através
dos signos numa situação contínua de interação. Assim, elas já vêm impregnadas de uma
interpretação, avaliação ou julgamento de valor. (VOLOSHINOV, 1993 [1926]). Nada
permanece estável nesse processo, a parte significativa da língua é absorvida pelo tema, que
ressignifica a palavra na realidade concreta.
A negociação do diálogo acontece por um gênero escolhido pelo sujeito. No caso, é o
gênero poema, que organiza o dizer do sujeito e efetua também a organização das formas
linguísticas que compõem o enunciado. Os elementos constitutivos do gênero devem ser
especificados pelo conteúdo temático (o conteúdo do gênero), pela forma de organização
textual (construção composicional) e pelos recursos linguísticos (o estilo, o próprio gênero)
(BAKHTIN, 2000). Enquanto elementos determinados por essas três dimensões, os gêneros
se organizam pelo contexto linguístico-textual e pela sua dimensão social, que inclui o tempo
e o espaço da ação comunicativa, a sua situação de interação e a sua orientação valorativa.
Portanto, não se pode analisar um gênero sem levar em conta a ação totalizante de seus
elementos.

A expressão avaliativa na poesia


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A palavra, além de servir à expressão de qualquer realidade e participar de todo ato


consciente, pressupõe “[...] um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a
criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte
contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116). Esse processo se opera nas relações entre
interlocutores, nas relações entre discursos e nas relações entre textos e contextos.
Nesse sentido,

em poesia, a avaliação social determina o próprio som da voz (a entonação e


a escolha e a ordem de disposição do material verbal. Em consequência,
devemos distinguir duas formas de expressão avaliativa: 1)sonora e 2)
tectônica, subdivididas em dois grupos: a eletiva ( que determina a escolha) e
a compositiva (que determina a distribuição). (VOLOCHÍNOV, 2013, p.
241).

Desse modo, as funções eletivas da avaliação social seguem a escolha do material


tanto sonoro como lexical dos versos, das rimas, dos aspectos semânticos, dos valores e do
sentido. Resulta dessa escolha a seleção do discurso da vida, onde as palavras já se
impregnam de um julgamento de valor e recebem um novo julgamento no contexto em que
estão inseridas. “O poeta adquire suas palavras e aprende a entoá-las ao longo do curso de sua
vida inteira no processo de seu contato multifacetado com seu ambiente”. (VOLSHINOV,
1993 [1926]). As funções compositivas determinam a posição hierárquica e a ordem dos
elementos verbais. Há, indissoluvelmente, uma interligação entre os três aspectos da
expressão, razão pela qual “é toda uma única avaliação social: som, escolha e disposição das
palavras se desenvolvem da mesma forma, como uma flor se desenvolve do botão”
(VOLOCHÍNOV, 2013, p. 242).
Nessa imbricação, o poeta centraliza a sua voz pelos recursos técnicos e pela escolha
da palavra nas diferentes linguagens sociais em que está inserido, chamando a si a
responsabilidade dessa escolha. Para isso,

o metro, a rima, a música, a quebra visual da leitura padronizada, o uso do


espaço em branco, a fragmentação, a negação da linguagem prosaica em
cada um de seus estratos, o cruzamento de códigos, a singularização máxima
dos sentidos e dos significados, da sintaxe e do léxico, todo arsenal é usado a
serviço da centralização da palavra. (TEZZA, 2006, p. 246-247).

Com esta posição, a palavra do poeta também passa a ser entendida por uma visão
totalizadora que a torna signo ideológico, produto social e verbal, constituída pelo seu caráter
semiótico, que lhe confere a capacidade de ganhar novos significados em contextos diversos.
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Assim, o signo ideológico é esse campo de indeterminação, mediação, desvio, alianças


ambivalentes e inter-relações circunstanciais, onde tudo se decide no espaço da linguagem.
Em outros termos, “esse espaço ideológico de palavras, de fenômenos verbais é
estratificado, pois as palavras não são sempre idênticas a si mesmas. As mesmas palavras
significam coisas diferentes em situações diferentes” (TCHOUGOUNNIKOV, 2003). Como
parte material da composição do signo, a palavra se reveste de sentido, conforme as suas
possibilidades de uso, é um corpo significativo, uma massa que está disponível a engendrar
novas formas ideológicas quantas forem necessárias em qualquer contexto. Sem esse material
ideológico a consciência seria vazia, desprovida de qualquer índice de valor.
Para Ponzio (2009, p. 119), evidencia-se que, por signo verbal, Bakhtin compreende
“[...] uma enunciação completa, não isolada do contexto social e nem do terreno ideológico ao
qual pertence desde o princípio, [...]” uma vez que se realiza nas mais diversas condições
sociais, em registros diferentes, sob a perspectiva de diferentes ideologias, ambientes, grupos,
classes ou outra realidade social.
A enunciação compõe duas partes: a parte extraverbal, que determina a sua
compreensão responsiva, ou seja, o sentido, e a parte verbal que se distingue por sua
identificação, pela forma como a palavra se realiza no discurso. A compreensão ativa é da
responsabilidade do signo e a identificação liga-se ao sinal, ao plano linguístico encarregado
da completude sígnica. Orações, frases, e palavras nos planos morfológico, semântico e
sintático são traços distintivos para a identificação.
Assim, compreender um signo consiste em aproximar este signo apreendido de outros
já conhecidos, pois “não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116). Esta é a singularidade da enunciação concreta,
inteiramente determinada pelas relações sociais.
Como toda produção de sentido, a poesia se estabelece pelo princípio da dialogicidade
existente entre sujeitos estabelecidos na comunicação verbal e devem ser compreendidos a
partir dessas perspectivas individuais. Nesse movimento, não há espaço definido nem
demarcado, a exploração de novos sentidos é o que permite a construção de outros possíveis
lugares. Com os encontros e desencontros com o outro, o sujeito se constitui, manifesta-se
pela mediação sígnica, tendo a linguagem como lugar de sua incompletude e como meio de
sua atualização nas mais diversas atividades humanas.
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 460

Contextualizando o Eu na dimensão crítica

A poesia de Augusto Anjos é lida por diferentes abordagens temáticas que realçam
suas experiências de vida, suas ânsias em monólogos, sua ênfase na temática da morte, seus
aspectos biográficos, sua inquietação filosófica e sua preocupação com a linguagem vinculada
aos veios naturalistas. O poeta, situado cronologicamente, no Pré-Modernismo, na verdade,
não pertenceu a nenhuma escola. Autor de um único livro, Eu, publicado em 1912, foi
parnasiano, simbolista, modernista, construindo uma poesia pluridimensional, estabelecida em
diálogo de confluências.
Entre tantos que se debruçaram sobre a obra, destacam-se nomes da crítica como
Helena (1977), Magalhaes Jr.(1977), Gullar (1995), Soares (1996) e Duarte Netto (2011),
todos, reconhecendo, de forma unânime, a valorosa criação poética do autor, principalmente,
em sua forma inovadora de tratar a realidade da existência humana, em outros termos, do
lugar único em que o homem participa do existir enquanto centro singular de valores.
Na linha de Lúcia Helena (1977, p. 23) prefere-se a evidência de uso da palavra por
esse sujeito-autor, que, na visão da autora, “reverencia o léxico repudiado pela estética do
‘belo’”. Nos escritos de Órris Soares (1996 [1920]), a crítica, embora não tenha privilegiado a
dimensão estética, deixa entrever caracteres biográficos como o andar desengonçado do poeta
e a imagem magra e cambaleante muito reproduzida nos poemas do Eu (1998) como, por
exemplo, em “As cismas do destino” e “Numa dança de números quebrados”. Nas
considerações de Magalhães Jr. (1997, p. 265), um de seus biógrafos, Eu é um “livro de
estreia, de verdadeira estreia, por ser de um poeta ainda ontem absolutamente ignorado; e hoje
até, no bom sentido, se pode dizer – um livro de escândalos”. Já em Ferreira Gullar (1995) se
postula um estilo prosaico que flui entre o extrínseco e o intrínseco, entre o belo e o asco,
rompendo com todas as conveniências verbais e sociais. Do aparato crítico augustiano, no
dizer de Duarte Neto (1997, p. 237), as reflexões de Rosenfeld (1996) dão “[...] um merecido
enfoque tanto à forma como também ao conteúdo da obra”.
Independentemente da crítica, Anjos é um poeta para ser lido, degustado, discutido,
recitado, encenado, haja vista as suas múltiplas faces frente aos valores da existência. Com
essa leitura ampla e constitutiva chega-se a compreender toda sua experiência estética
produtora de sentido.
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O “Morcego”: a dimensão valorativa da consciência

No ato de criação do poema, o sujeito-autor escolhe um gênero de natureza clássica, o


soneto, demarcando, de forma específica, o conteúdo temático, a construção composicional e
as avaliações linguístico-enunciativas. Nesse processo, existe uma ritualização da linguagem
que transcende à linguagem do cotidiano por condensar formas e dizeres de potencialidades
artísticas. Por essa ordem, a poesia é retirada do contexto da vida para que sejam
sedimentadas novas valorações e novos sentidos, que se delimitam por uma forma material e
específica de organização. Tome-se para leitura dessa disposição tectônica o poema “O
morcego”, publicado em Anjos (1998, p. 10):

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.


Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."


— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Do ponto de vista da estrutura composicional, é um poema de quatorze versos,


dispostos em dois quartetos e dois tercetos, estabelecidos de forma simétrica em verso
decassílabo com ritmo acentuado na 2ª, 4ª, 6ª, 8ª e 10ª e rimas de disposição oposta em A-B-
B-A, em posicionamento externo.
Na primeira estrofe, o sujeito-autor se dirige a um outro de forma cerimoniosa através
da segunda do plural (Vede- 2º verso), não se limitando apenas a refletir determinada
situação, pelo contrário, completando o sentido de toda expressão, tomando o outro como um
elemento condutor de sentido no interior das relações sociais. Esse é um fator constitutivo do
discurso que emerge da inter-relação entre o dialogismo e a subjetividade.
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Na segunda estrofe, este sujeito continua a mesma estrutura composicional,


estabelecendo um diálogo pelo discurso citado, marcado pelo uso das aspas, determinando o
discurso direto com o outro no próprio discurso, enquanto forma de encontro na enunciação.
Nesse processo, o discurso integra à estrutura composicional um outro discurso, também
marcado por regras estilísticas e sintáticas mediante o emprego de aspas e travessões. Esses
traços estão ao alcance do sujeito através da sistemática da língua, servindo de suporte a uma
aplicação essencialmente dialógica, indicativa de uma ou de outra voz no discurso.
Na terceira e quarta estrofes, a disposição das rimas se tornam interpoladas com a
estrutura posterior do tipo A-C, B-A, C-B, mas o ritmo continua demarcado na 2ª, 4ª, 6ª, 8ª e
10ª sílabas com a mesma simetria. Privilegiando a estrutura da língua, mantém-se a ênfase na
primeira pessoa verbal no primeiro terceto ao tempo em que, no último, opta-se pelo sujeito
de terceira pessoa, transformando-o, no penúltimo verso, em sujeito coletivo, interdiscursivo,
ou seja, determinado pela pessoa gramatical, na relação dialógica.
Ainda na perspectiva da língua, o sujeito seleciona verbos no presente do indicativo
com predominância em primeira pessoa como recolho, ergo, olho, faço, vejo, pego e chego,
não como esquema abstrato de normas, mas pela arquitetônica do mundo real do ato de ser e
de dizer. São os momentos concretos do enunciado, determinados pelos elementos dispostos
da função eletiva da avaliação social.
Quanto ao conteúdo temático, o sujeito-autor, apesar de envolvido em uma dimensão
valorativa que reflete paz e silencio, ele se atordoa pela voz representativa da consciência,
materializada na metáfora do morcego. Este animal, que se orienta pelo eco no espaço, capta
sons a distância e alimenta-se de sangue, é tomado, no poema, como imagem relacionada aos
dramas de consciência, grosso modo, aos atos e sentimentos incomodativos de culpa ou de
remorso.
Por essa dimensão, são evidenciadas duas vozes, claramente, estabelecidas no
contexto. A primeira é a do sujeito atormentado que julga e que busca a tranquilidade no
sono, mas se sente incomodado pela segunda voz que o retira de sua quietude e o chama a agir
de forma única e real dentro daquilo que é bem mais compreendido na realidade do ato, em
outros termos, no que diz respeito à responsabilidade ética e ao relacionamento entre os
sujeitos.
A partir desse reconhecimento, este sujeito valora um lugar, universalmente válido,
que faz emergir essa segunda voz, marcada pela voz que fala e repudia a sua própria
consciência, que é a voz julgadora do ato, a voz que descobre o elemento transcendente da
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consciência e que é responsável por um momento singular e determinado, também, por


circunstâncias que permeiam “[...] uma espécie de orientação imperativa da consciência,
orientação moralmente válida e responsavelmente ativa” (BAKHTIN, 2010b, p. 91).
Apesar do caráter introspectivo, o tema se estabelece na relação dialógica, instituindo,
ainda, uma terceira voz, uma voz coletiva, portanto, social da qual o sujeito faz parte e
compartilha todo tom emotivo-volitivo nos dois penúltimos versos: “Por mais que a gente
faça, à noite, ela entra/ Imperceptivelmente em nosso quarto!” (ANJOS, 1998, p. 10). Assim,
a consciência resulta das relações do indivíduo no meio social, logo é constituída
ideologicamente e marcada por enunciados alheios.

O sujeito-autor no diálogo

A grande preocupação do sujeito-autor é representar a dimensão valorativa da


consciência que se configura por três vozes dialogando no texto. Como tudo na consciência se
dispõe à interpretação, mesmo que esteja revestida do discurso interior, essa consciência deve
ser entendida como uma realidade que se estabelece no contexto ideológico, na palavra, no
ato responsável do dizer, em outros termos, ato de um sujeito ativo, constituído socialmente.
A voz do sujeito que busca o sossego durante o sono encontra outra voz formada pelas
relações estabelecidas entre indivíduos através dos signos. É a voz da consciência formada ao
longo de um processo sócio-histórico, que se baseia nas avaliações sociais e no caráter ativo
responsivo da existência humana.
Essa voz é persuasiva, autoritária, perturba o sono, questiona princípios éticos e
normas de conduta. No verso, “Morde-me a goela ígneo e escaldante molho”, existe a voz do
seu outro perpassa a consciência, faz o outro repensar e reviver um materialismo histórico que
projeta os atos da vida humana fundamentados nos valores de uma boa consciência, ou seja,
consciência tranquila, limpa, enfim, consciência do bem, capaz do autodiscernimento e da
visão de ausência de culpa, que inquieta o sujeito levando-o a ter responsabilidade diante de
dilemas éticos.
Essa forma de se completar, no ato de pensar, indica que “a vida conhece dois centros
de valores, diferentes por princípios, mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em torno destes
centros se distribuem e se dispõem todos os momentos concretos do existir”. (BAKHTIN,
2010b, p. 142). O princípio arquitetônico do mundo real do ato é esta contraposição concreta:
defino-me sempre em relação ao outro, numa atitude ativa responsiva em relação aos
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discursos. Esse outro está em si próprio, de forma que o silêncio também veicula uma
enunciação.
A preferência pela voz de primeira pessoa em “E olho o teto. E vejo-o, ainda, igual a
um olho, Circularmente sobre a minha rede!” demonstra o ato responsável, paritário que dele
o homem não tem como fugir. Sobre ele recai as perturbações, a vulnerabilidade do outro, a
autoculpa, a experiência malfadada, o abatimento moral, a prostração física, a vergonha, o
arrependimento, enfim a catarse da vida moral.
O embate com esta responsabilidade se dá a partir do ponto de vista do outro, que
movimenta a palavra em um território compartilhado em que a sua posição é sempre mediada
pelas intenções desse outro. Nesse território, não há espaços para discursos únicos de sentido,
para as unidades monológicas do dizer. Tudo é vivenciado numa intensa relação dialógica,
porque a natureza da língua é mutável, o que significa ser impossível um sentido estabilizado
ou pronto, acabado, definitivo.
A consciência do sujeito que fala no poema não se sobrepõe, mantém-se no mesmo
princípio de igualdade, inclusive em relação às posições correlacionadas com a do outro,
enquanto voz situada lado a lado com outras vozes. É o direito de a palavra ir à palavra,
situando subjetividades, deslocando sentidos em uma atividade de compreensão ativa e
responsiva.
Este agir, em relação aos atos de outros sujeitos, possui, em sua articulação, aspectos
psíquicos, advindos de uma identidade relativamente fixada e absorvida de um outro no
mundo concreto; aspectos sociais e históricos do ser-no-mundo do sujeito; e aspectos
avaliativos responsáveis, firmados por esse sujeito que age conforme sua formação identitária,
cujo princípio se cristaliza pelos efeitos coercitivos de suas relações sociais. (SOBRAL, 2010)
A avaliação pelo uso do signo ideológico aponta essa responsabilidade moral diante das ações
da vida, diante da autoatividade, do dever-ser, enfim, da posição dos sujeitos em relação às
suas atividades, no caso, a atividade poética.

Considerações finais

A noção de sujeito no poema está intrinsecamente relacionada à presença de uma


realidade concreta (enunciados), marcada pela escolha dos signos ideológicos, da estrutura
composicional do gênero e das apreciações valorativas estabelecidas no discurso. São
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evidentes as tonalidades dialógicas que se pautam pela métrica, pela rima e pela simetria dos
versos em intensa relação desse sujeito com seu interlocutor.
Apesar da opção por uma estrutura composicional clássica como o soneto, o sujeito é
inovador para sua época, absorvendo expressões da ideologia cotidiana como a definição que
ele tem de consciência, o emprego de sequências nominais de forma fragmentada e realçada
pelo acabamento da compreensão, que se marca pelo uso gramatical do ponto.
O aspecto criativo provém das apreciações valorativas dadas às palavras, enquanto a
singularidade do sujeito modela-se na relação de valor estabelecida no discurso. Nesse
processo ativo responsivo, esse sujeito-autor assume uma posição política, filosófica e ética
diante da vida, expondo realidades, posicionamentos e diferenciado ponto de vista sobre o
tema.

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ESTUDOS SOBRE AUGUSTO DOS ANJOS

O POEMA “ASA DE CORVO” À LUZ DA SEMIÓTICA

Marinalva Freire da Silva


UBE-PB. IPGH. AFLAP. ALANE-PB. ALAP-RJ

O poema Asa de Corvo está entrecortado por uma espacialidade interna de ordem
mimética. Todos os semas cronológicos transformam-se na a - temporalidade e na a-
espacialidade imanentes nestes versos augustianos, segundo Portela (1974).
O tema em evidência é a antítese morte/vida:: vida/morte, pois a morte é a razão de ser
da existência humana. E o poeta se julga um homem perseguido pela falta de sorte, pelo
destino morte (metafísica) - tema universal.
Nesse sentido, Croce alude que os temas nada mais são que a matéria prima da
literatura, adquirindo importância, conforme vai transformando-se em drama, epopéia, poesia
ou novela. Elizabeth argumenta que a unidade de um tema encontra-se no denominador
comum espiritual de todas as versões, o que significa que o denominador comum de um tema
é a combinação daqueles motivos dos quais se necessitam para caracteriza-lo como tal. Já
Trousson sustenta que a identificação de um tema só é possível, decompondo-o em seus
componentes essenciais, ou seja, os motivos (WEISSTEIN).
Assim, o tema é comparado ao sol cujos raios são os motivos; é comparado a um
tópico frasal em que o autor dá asas à sua imaginação, criando e recriando todo o
emaranhado, para a montagem de sua peça literária, tornando, portanto, assunto muito
complexo e polêmico entre os estudiosos da literatura comparada.

Motivo

O motivo, conforme se frisou, é a causa que impulsiona a fazer algo, por exemplo,
pesquisar os motivos de uma ação, assim, o motivo é a causa.
O poema permite-nos detectar três motivos:
1) obsessão do autor pela morte;
2) o autor é dotado do mau destino, de má sorte, do sofrimento;
3) a morte metafísica (morte dos valores morais e espirituais do homem).
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O código utilizado pelo poeta é o lingüístico.


O elemento ‘má sorte’ é mitológico.
Numa dimensão de estrutura profunda, Augusto dos Anjos sai (do texto) em busca de
outros códigos culturais: “como os Goncourts, como os irmãos siameses” (v. 7) – e o faz
através da diacronia (fazendo uma relação)- volta a uma cultura texto a texto; insere dois
discursos estranhos (ao texto): “Os Goncourts (referência à arte- metapoético);”irmãos
siameses” (faz referência ao ciclo animal).

Símbolo

Símbolo é figura, objeto que tem significação convencional, por exemplo, o cachorro é
símbolo de fidelidade. No sentido teológico, é fórmula que contém os principais artigos de fé:
o símbolo dos apóstolos. Na química, letras adotadas para designar os corpos simples: Fé é o
símbolo do ferro.
Símbolo é o fundamento de tudo quanto é. É a idéia em seu sentido originário, o
arquétipo ou forma primogênita que vincula o existir com o ser. Por meio dele, o ser se
manifesta em si mesmo: cria uma linguagem, inventa os mundos, joga, sofre, muda, nasce e
morre, pois, através do símbolo, a existência, e a realidade do mundo sucessivo deixam de
exercer sua tirania sobre a mente (CHEVALIER & CHEERBRAN).
Em face das idolatrias da existência e do devenir, o símbolo remete-nos ao a-temporal
e supraconceitual. Por isso é chamado de idéia-força. O símbolo é o fator de essência, daí
estar no umbral do não ser. Ver o símbolo supõe, portanto, o morrer ou talvez o despertar de
novo do esquecimento que é outra forma de memória, na concepção de Borges (CHEVALIER
& CHEERBRAN).
Os símbolos são para sonhar, e o sonho, quando é reparador, é sempre uma partida que
prefigura e atualiza a morte – sonhar para morrer. O símbolo, não se pode entendê-lo. Faz-se
em nós quando a mente, o sentimento, o instinto e o corpo somático põem-se em consonância
de maneira que haja ordem naquela “cidade maiúscula” que Platão descreve com letras
grandes em a Politéia (CHEVALIER & CHEERBRAN).
Na realidade, considerados desde o símbolo ser e saber são uma mesma coisa. A
presença dos símbolos possibilita, pois, aquele discorrer sobre eles que constitui a sociedade,
a história, a cultura.
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Os símbolos são o mais antigo cantar. O principal deles é a natureza virgem, todas as
técnicas que delas procedem encontram símbolo em seu caminho. Devem, por isso, conjugar
seus esforços para decifrar os enigmas que estes planeiam; associar-se para mobilizar a
energia que aqueles guardam condensada. Pouco é dizer que se vive em um mundo de
símbolos: um mundo de símbolos vive em nós.
Jung refere que símbolo, certamente, não é uma alegoria nem um simples signo, é uma
imagem apta para designar o melhor possível da natureza obscuramente suspeita do espírito.
Para Becker, o símbolo pode ser comparado a um espelho que devolve a luz segundo a
cara que a recebe. E podemos dizer, ainda, que é um ser vivo, uma parcela de nosso ser em
movimento e em transformação, de modo que, ao contemplá-lo, ao captá-lo como objeto de
meditação, contemplamos também a própria trajetória que se dispõe a seguir, captando a
direção do movimento no qual o ser é levado.
Assim, símbolo é uma representação, una conotação de algo. Os símbolos são como os
fonemas: existem e não existem. Ele pode ser histórico, literário, primordial. Todos somos
portadores de símbolos, da simbologia greco-romana: mito  símbolo  representação sob a
forma de se contar algo (nascimento, morte, amor, busca).
Eis a simbologia do poema em estudo:

Asa de corvos carniceiros, asa


De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,


É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os siameses!

É com essa asa que eu faço esse soneto


E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária


Que a Morte – a costureira funerária
Cose para o homem a última camisa!

Asa: símbolo da inteligência, criatividade, ligeireza e poder de voar.


“Asa de corvos, carniceiros, asa” (título; vs. 1, 6,12)

Corvo: símbolo de má sorte (em algumas culturas) e de amor (em outras). É um


símbolo contraditório: morte vs. vida. No contexto bíblico, é símbolo da perspicácia. No
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ocidente, é símbolo de má sorte, agouro, morte. Na Índia, mensageiro da morte. No Japão,


símbolo do amor familiar, mensageiro divino, anunciador de seus triunfos. Na China, pássaro
solar.
“Asa de corvos, carniceiros, asa” (título, v.1)
Doze: número das divisões espaço-temporais. É o produto dos quatro pontos cardinais
pelos três planos do mundo. Divide o ciclo em doze setores, os doze signos-zodíaco –
mencionado desde a mais alta antiguidade. Simboliza, também, o universo em sua
complexidade interna.
“De mau agouro que, aos doze meses,” (v.2)
Casa: símbolo de proteção, seio materno; centro do mundo, imagem do universo;
refúgio, templo (sagrado ou profano), ser interior.
“O telhado de nossa própria casa” (v.4)
Cinza: extinção do fogo (da brasa); significa a morte e a penitência. A forma litúrgica
da quarta-feira de cinza é explicita; a consciência do nada, da nulidade da criatura com
respeito ao Criador. Símbolo de renúncia (Índia). Indica, também, o retorno e a combustão
interna da energia seminal, que é um dos elementos essenciais das práticas tântricas. Segundo
Greimass, é o sema da morbidez. Na China antiga, cinzas úmidas eram um presságio de
morte. A cinza apagada com que Chuang-Tsé compara o coração do sábio, significa a
extinção da atividade mental. No Antigo Testamento, a cinza simboliza o sofrimento, o luto, o
arrependimento. Em Jô (42, 6) é signo da dor e da penitência (Cristianismo).
“Qual cinza que vive com a brasa” (v. 7)
Brasa: símbolo do fogo. Segundo Yi-king, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha,
ao verão e ao coração [...]. O fogo é o símbolo divino essencial do mazdeísmo. A custódia do
fogo sagrado estende-se da antiga Roma a Angkor. O símbolo do fogo purificador e
regenerador se estende desde o Ocidente ao Japão. A liturgia católica do fogo novo se celebra
na véspera pascoal. A do Shinto coincide com a renovação do ano [...]. Buda substitui o fogo
sacrifical do hinduísmo pelo fogo interior, que é, por sua vez, conhecimento penetrante
iluminação e destruição da envoltura [...]. Evidentemente, o aspecto destruidor do fogo
comporta, também, uma função diabólica. (CHEVALIER & GHEERBRANTT).
“Qual cinza que vive com a brasa” (v.7).
Goncourt, Edmond (1822-1896) e Goncourt, Jules (1830-1870): irmãos, nascidos na
França. Escreveram em famosa parceria diário literário, e aplicaram novo método à redação
de romances. O mais conhecido é Germine Lacerteau. O mais famoso prêmio literário da
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França, conhecido anualmente, é o “Prêmio Goncourt”, instituído por estes dois irmãos. Neste
símbolo funcionam dois discursos estranhos: código metapoético e código
animal.(CHEVALIER & GHEERBRANTT).
Siameses: código animal. Siamês, adj. do ou pertencente ou relativo ao Sião (atual
Tailândia) ou natural ou habitante de Sião.
Irmãos siameses: pessoas que são inseparáveis, por alusão aos irmãos gêmeos Chang e
Eng, nascidos em 1811, na Tailândia, e mortos em New York, em 1874, ligados entre si por
uma membrana situada à altura do peito. (FERREIRA).
“Como os Goncourts, como os irmãos siameses!” (v. 8)
Morte: fim absoluto de algo positivo e vivo. Aspecto perecedor e destruidor da
existência. Indica o que desaparece na inelutável evolução das coisas. Introduz-nos nos
mundos desconhecidos dos infernos ou dos paraísos; mostra sua ambivalência, análoga à da
terra, e vincula-a aos ritos de passagem.
“A morte , costureira funerária” (v.13).
Homem: centro do mundo dos símbolos. Síntese do mundo. Modelo reduzido do
universo.
“Cose para o homem a última camisa” (v.14).
Camisa: símbolo de proteção, vestimenta.
“... a última camisa” = mortalha.
A partir do que foi resenhado, pode-se conferir que a intertextualidade implica uma
série de elementos linguísticos, tendo por base a sintaxe do texto, com vistas a que este
funcione, o que significa que ela exige uma leitura filológica, histórica, estética, uma leitura
comparada, a partir da diacronia, para ver o que está escrito e o que se lê, os seja, as
implicações sobre um texto com uma finalidade, qual seja, manter a coerência.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 31 ed. São Paulo: Livraria São José, 1971.
______. Eu e outras poesias. Edição Comemorativa dos 100 anos do EU. João Pessoa:
Academia Paraibana de Letras; Brasília, DF: Gráfica do Senado, 2012.
CHEVALIER,J & GHEERBRANT, A . Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial
Herder, 1986.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 472

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
GREIMAS, A & COURTES, J. Semántica. Diccionario razonado de la teoría del lenguaje.
Madrid: Gredos, 1982.
LAROUSSE. Pequeño diccionario ilustrado de español. Madrid: Larousse Ilustrado, s/d.
LÁZARO CARRETER, F. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986.
PORTELA, Eduardo. “Uma poética de confluências”. In Globo. Rio de Janeiro, 05 de maio
de 1974, p.7.
SILVA, Marinalva Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e poesia. João Pessoa: Idéia, 1998.
TODOROV, T. Símbolo e interpretação. Caracas: Monte Ávila, 1981.
WEISSTEIN, U. Introducción a la literatura comparada. Barcelona: Crítica, s/d:263-283.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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O ENIGMA DO EU

Astenio Cesar Fernandes1

Como desvendar o mistério do “EU”, livro que rompendo a tradição inaugurou nova
poética no Brasil? Como considerar sua escola literária e, finalmente, a intrincada imaginação
do poeta Augusto dos Anjos?
Há evidências de aspectos discursivos, aportando composições em determinada escola
poética. Na primeira fase do poeta, surgem poemas assemelhados ao parnasianismo. Ainda
nessa fase inicial, a poesia anjelina também se apresenta aliterante e fonética, com palavras-
símbolo grafadas com maiúscula, ao modo do simbolismo. Na linha do tempo, sob a ótica do
movimento literário de 1922, antecipando-se aos cânones vigentes, Augusto é passível de ser
aludido pré-modernista. Insuficiente paisagem critica? Hoje o poeta é considerado moderno.
Abrahão Costa Andrade, enfático, assinalou: “Não foi Manuel Bandeira e sim Augusto dos
Anjos o primeiro poeta moderno brasileiro”.
Contudo, importa a essência da matéria poética de uma poesia estranha, instigante ao
atiçar os sentidos. Especialmente sensações visual e musical, invocando atenção de olhos e
ouvidos. No poema “Gemidos de arte”, tomado como exemplo, exibe em uma de suas
estrofes: “Um pássaro alvo artífice da teia/ De ninho em ninho salta, no árdego trabalho/ de
árvore em árvore e de galho em galho/ Com a rapidez duma semicolcheia”. Augusto, sutil,
aproxima o pássaro à semicolcheia, e, subliminarmente, alarga essa relação através de sentido
denotativo oculto, permitindo ilação ao avocar a ave e a figura de ritmo, ambas marcadas por
pausa e movimento.
Estudos importantes a partir de Antônio Houaiss e Cavalcante Proença incluem,
também, Ferreira Gullar, Lúcia Helena e Chico Viana, entre muitos outros, na fortuna crítica
do “EU”, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Mas, somente depois da segunda edição de
1920 a obra ganhou visibilidade. E, depois da quinta década do século passado, logrou,
finalmente, exaltação da crítica e paixão dos leitores. Alexei Bueno, Lêdo Ivo e outros
estudiosos observam esse alargamento de atenções ao livro de Augusto.
A poesia de Augusto dos Anjos conduz, ainda, o leitor à memorização de trechos de
poemas ou poemas completos. Versos indecifráveis passam a ser recitados, por pessoas de

1
Doutor em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais; Membro da Academia Paraibana de Letras –
APL
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distinta organicidade cultural, em todos os lugares. Mas, convém frisar, o enigma do “EU”
persiste, iniciando no título. Ora, se o rótulo indica o conteúdo, o monossílabo, provoca a
imaginação, permite inferências.
Flávio Tavares, consagrado artista plástico, projetou no espelho o rosto de Augusto
cercado por figuras exóticas. Essa tela insinuante nos dá a impressão do “eu” espargido em
universo mágico. Tudo se passa como se o poeta, num embate de morte e renascimento,
mirando-se, fitasse o homem e o cosmo. Vislumbrasse o condutor de DNA da espécie
humana, mero arcabouço carnal incompatível com sua mente grandiosa e atônita em vista
disso. Nesse senso, se expressa o soneto “A ideia”: De onde ela vem?! De que matéria bruta...
Delibera, e depois quer, e executa!...
Em “A divina comédia”, Dante Alighieri inicia exortando: “A meio caminhar de nossa
vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida”2. O arquiteto
Mário Di Lassio, em conclusão, observou indecisão do poeta na escolha do caminho. Ante
essa via, nos parece ocorrer a angustia na poética augustiniana. Nesse sentido, afirmou
Ferreira Gullar: “Com Augusto penetramos aquele terreno em que a poesia é um
compromisso total com a existência”.
O criador de “Monólogo de uma sombra” exibiu sua poesia, à frente da época literária
e à frente da linguagem convencional. Sua expressão, excêntrica, mostrou-se acima da mera
comunicação de ideias ou sentimentos. Impôs convicções com feitiço vocabular em discurso
realista suplantado, apenas, por outros obscuros enredos. Desse modo, ao compor poesia
intensa, personalíssima, Augusto dos Anjos desvirginou a linguagem comum e a fez possuída
por novas vestimentas. E manejou linguagem poética científica e coloquial, ambas sedutoras.
Plasmou sua poesia misteriosa.
A respeito dessa forte poesia, ouçamos Ferreira Gullar: “Em Augusto, a expressão não
aparece como um trabalho objetivo, exterior ao homem, mas quase como uma segregação
orgânica, e a linguagem se confunde com o aparelho da fala, a laringe, a língua”. Poeta
consagrado, Gullar aprecia a poesia de Augusto como o marceneiro, artesão da madeira,
aprecia um móvel singular, peça de mobiliário notável. Otto Maria Carpeaux exprimiu: “O
mais original, o mais independente dos poetas mortos do Brasil”. Alexei Bueno declarou:
“Como se escrevesse numa língua original”.
O autor do “EU”, ousa em léxicos distintos. Seu repertório de vocábulos produz um eu
lírico múltiplo: bucólico, onírico, cáustico, e outros mais. A crítica literária e os estudos

2
Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.
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acadêmicos se exercitam irrequietos, procurando interpretar o sortilégio. Alheios a esses


cânones e despojados de competência analítica formal, acorrem, ainda, apreciadores e leitores.
Impossível decifrar o enigma do “eu”! Essa obra parece construída para não ser decifrada.
Nessa luta, sem êxito, restam medo e esperança. Emoção e sentimento abalizados por
Spinoza: “Não há esperança sem medo, nem medo sem esperança”. Enfim, “Lutar com
palavras é a luta mais vã”, sentenciou Drummond. Eis, portanto, um novo colóquio. Conversa
íntima de simples apreciador. Franco diletante, entretido e despreocupado, visto que, a obra
literária existe para ocupação e deleite dos leitores, responsabilidade e preocupação da crítica
formal. Incumbida de penetrar no trabalho de um autor com exatidão.
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OS SONETOS QUE NÃO ACABAM: CONSIDERAÇÕES SOBRE A POESIA DE


AUGUSTO DOS ANJOS

Expedito Ferraz Júnior1

Um século depois de sua aparição em livro,2 a poesia de Augusto dos Anjos continua a
motivar interpretações e reflexões de natureza teórica variada. O interesse que sua obra
desperta no leitor de hoje talvez seja proporcional à sua vocação para desafiar os estudos de
caráter classificatório, pois, na verdade, nunca se soube muito bem em que prateleira da
periodização literária colocar o estilo singular do poeta paraibano. Situando-se na transição
entre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX, o autor de Eu e outras poesias
reflete um pouco de tudo o que o século anterior produzira em termos de experiências
estéticas e filosóficas. E, para maior embaraço da crítica, essas sugestões (românticas,
naturalistas, simbolistas etc.) não se desenvolvem em sua obra como unidades discretas,
obedecendo a uma distribuição linear, mas se mesclam numa síntese muitas vezes paradoxal,
o que acaba por contradizê-las ou descaracterizá-las parcialmente, acentuando o aspecto
particular da poética resultante. Assim é que o rótulo de pré-modernista, concebido por Alceu
Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), tem-lhe servido precariamente de rubrica quando o
critério empregado é a cronologia, em substituição a visadas mais problemáticas que o
situavam restritivamente entre simbolistas ou parnasianos.
Além dos estudos focados na contextualização do poeta relativamente à periodização
dos estilos de época e, possivelmente, consistindo num desdobramento desses estudos, há a
pesquisa das influências, diretas ou indiretas: as que identificam matrizes do estilo de Augusto
em Baudelaire, Cesário Verde ou Cruz e Sousa, por exemplo, e as que abrem perspectivas
para a consideração de fatores culturais, atribuídos ao espírito do tempo e ao meio intelectual
que teriam determinado a formação do poeta. Neste último gênero, podem ser incluídas as
leituras que apontam relações entre a sua imagística e os influxos do Expressionismo — é o
caso de um conhecido ensaio de Anatol Rosenfeld,3 por exemplo —, e a proposta, a nosso ver

1
Professor de Teoria Literária na UFPB. Pesquisador na linha de Estudos Semióticos do PPGL/UFPB.
2
O ano de 2012 marcou o centenário da primeira edição do Eu, que registramos com o presente artigo, à maneira
de homenagem ao poeta.
3
ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos. In: ______. Texto/Contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1969, p. 259-266. Chico Viana registra posição semelhante de Gilberto Freyre. VIANA, Chico.
Monólogo de uma sombra ou Augusto dos Anjos em alemão. In: ______. A sombra e a quimera: escritos sobre
Augusto dos Anjos. João Pessoa: Idéia / Editora Universitária, 2000, p. 75-81.
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bastante sugestiva, que devemos a José Paulo Paes, que relaciona o poeta entre os principais
representantes, no Brasil, de

uma estética a que se poderia aplicar o rótulo de “artenovismo”, para traduzir


em termos de movimento artístico-literário (virtual e involuntário, entenda-
se) o art nouveau que, com essa designação francesa, ou com a inglesa de
Modern Style, a alemã de Jugendstil, a espanhola de estilo Gaudí, se
disseminou pelo Ocidente como o estilo por excelência representativo da
belle époque.4

Ressalte-se que, antes de qualquer possível objeção à inscrição de Augusto dos Anjos
na esfera do art nouveau, o crítico trata de nos lembrar que, muito embora esse estilo tenha
incorporado e até se confundido com a estetização dos aspectos mais superficiais da vida
urbana da belle époque, exaltando nela o luxo e o ornamentalismo, ele não deve ser reduzido
à celebração do mundo burguês; haveria um lado oposto e complementar a esse, uma vertente
pós-impressionista, com pendor para o fúnebre e o “mau gosto”, à qual não temos dificuldade
de associar a poesia em questão.
Mas, se os estudos literários, em geral, forem entendidos como a busca de uma chave
(enfatizemos aqui o sentido musical do termo) em que se possa executar a leitura de uma
obra, extraindo-lhe os efeitos mais expressivos, há que se discernir ainda entre os que
procuram essa chave nas afinidades que essa obra mantém com o círculo das poéticas e
formas de expressão a ela contemporâneas, considerando-a, portanto, segundo os preceitos
estéticos de sua própria época; e os que preferem focalizar a obra como objeto específico,
contemplando-a neste caso contra o pano de fundo de toda a tradição literária (a tradição que
se fixou, via literatura e metalinguagem crítica, antes e depois de sua aparição) para indagar
do seu significado, por assim dizer, sincrônico5 — o que não significa de modo algum, como
já explicou Haroldo de Campos, ignorarem-se os condicionantes históricos de uma obra
literária, mas implica submetê-la a uma apreciação que leve em conta “não apenas o ‘presente
de criação’ (a produção literária de uma dada época), mas também o seu ‘presente de cultura’

4
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos e o Art Nouveau. In: ______. Gregos e baianos: ensaios. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 82.
5
Dois exemplos de estudos dessa natureza sobre a poesia de Augusto dos Anjos: em O evangelho da podridão:
culpa e melancolia em Augusto dos Anjos (Editora Universitária/UFPB, 1994), Chico Viana propõe uma
interpretação da obra do poeta a partir do paralelo entre dois sistemas de representação fortemente metafóricos,
quais sejam: o discurso da psicanálise e o da poesia. Também sincrônica é a abordagem realizada por João
Batista de Brito no artigo “Olhos e mãos em Augusto dos Anjos” (In: BRITO, João Batista de. Leituras poéticas.
São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1997, p. 3-15).
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(a tradição que nela permaneceu viva...).”6 Pois é justamente a esse crivo do presente que
resiste com impressionante vigor a poesia de Augusto dos Anjos, oferecendo-se ao leitor atual
como um universo de imagens e procedimentos em que o traço de novidade se insinua,
infiltrando-se por entre as fendas das formas de composição tradicionais, como procuramos
demonstrar nas anotações que seguem.

Excesso e contenção

Mesmo constituindo o gênero de composição predominante na obra de Augusto dos


Anjos, o soneto parece não comportar sem conflitos a linguagem exuberante do poeta do Eu.
Percebe-se antes, em sua poesia, uma tensão entre a natureza constritiva dessa forma fixa e
certas imagens ou construções sintáticas que denotam um impulso de transbordamento dos
limites do metro e das estrofes, refletindo uma inquietação diante do código poético que acaba
por atuar obliquamente, em sua poética, como um índice de modernidade. Em muitos dos
versos do poeta, há uma dicção e uma prosódia que mal se acomodam (antes se comprimem)
no metro canônico.

“E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo...” (O Corrupião)


“Cai de incógnitas criptas misteriosas...” (A Idéia)
“No hierático areopago heterogêneo...” (Agonia de um filósofo)
“Oh! Pitágoras da última aritmética...” (Versos a um coveiro)
“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!” (O Mar, a Escada e o
Homem)7

Não há como negar que versos como esses obrigam o leitor, pela imposição do metro
decassilábico, a esforços fonéticos e articulatórios que se convertem aqui num traço
antiparnasiano. Pelo efeito de estranhamento que produz, a aspereza rítmica põe em relevo e
problematiza a artificialidade da forma poética, contrariando a naturalidade ou harmonia que
se esperaria de poemas de estrutura neoclássica, na medida em que deixa à mostra os
“andaimes” da construção do verso, contra tudo o que prescrevera a escola de Olavo Bilac.

Não se mostre na fábrica o suplício


Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício.

6
CAMPOS, Haroldo de. O samurai e o kakemono. In: ______. A arte no horizonte do provável. 4 ed. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 213-219.
7
Todos os textos de Augusto dos Anjos estão citados neste artigo a partir do registro em ANJOS, Augusto dos.
Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Os grifos são nossos.
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Porque a beleza, gêmea da Verdade,


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.8

A sugestão de uma claustrofobia da expressão, tomada como traço estilístico, nos é


sugerida, aliás, pelo próprio poeta, em construções como estas, de Budismo moderno, onde
ressalta a metáfora do verso-cárcere, já sublinhada por M. Cavalcanti Proença,9 e a
consequente representação do significante como uma constrição de natureza física ao
componente subjetivo, que quer libertar-se.

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Quer seja no estrato fônico ou na cadeia de imagens que ele veicula, percebe-se uma
espécie de tirania do suporte métrico e sintático do verso sobre esse dramático impulso de
expansão, realçado por uma opção estilística em que se manifesta o gosto pelo exagero, pela
distorção expressionista dos objetos representados. O efeito desse contraste na leitura é o de
um excesso mal contido, que detém, no entanto, uma função expressiva na poética em
questão. Nos parágrafos seguintes, estenderemos a análise dessa figura ao nível das
macroestruturas textuais, problematizando as relações entre a concepção de estrutura fechada,
frequentemente associada à forma do soneto, e certos efeitos de abertura ou de continuidade
que percebemos em grande parte dos poemas de Augusto inscritos nesse gênero de
composição.

A tradição do soneto como estrutura fechada

Costuma-se atribuir à disposição gráfica dos versos no soneto um esquema favorável


às estruturas discursivas que tendem ao silogismo. Eis a definição que nos dá dessa forma
poética o crítico Antonio Candido, em seu Estudo analítico do poema:

[...] instrumento expressivo italiano (ou fixado pelos italianos), apto pela sua
estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e
progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a

8
BILAC, Olavo. A um poeta. In: CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A.. Presença da literatura brasileira: história
e antologia. Vol. I: Das origens ao Realismo. 2 ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 385.
9
“Afinal, Augusto dos Anjos conhecia que métrica é uma prisão, concorrendo a rima para estreitar as grades.
Não lhes fugiu, até lhes proclamou a eternidade num final de soneto...” PROENÇA, M. Cavalcanti. Nota para
um rimário de Augusto dos Anjos. In: ______. Estudos literários. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio; Brasília,
INL, 1974, p. 200.
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de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda no tempo de Camões: o


silogismo. Em geral, contém uma proposição ou série de proposições (ou
algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela
assimilar).10

Como se vê, o autor situa a origem dessa relação nos modelos retóricos quinhentistas
(o “tempo de Camões). E, no entanto, bastaria um rápido inventário dos sonetos mais
conhecidos da nossa literatura para atestar a longa sobrevida dessa tradição, pois parece
acompanhar os sonetos de qualquer época a identificação entre a concisão dos catorze versos,
a estrutura decrescente das estrofes (sugerindo um movimento em direção à síntese), e a
expectativa de uma estrutura lógica fechada. Exemplos dessa concepção encontram-se,
naturalmente, na poesia de Augusto dos Anjos. Considerem-se, para fim de ilustração, os
versos transcritos abaixo, em que o eu-lírico chega a expor de maneira didática o andamento
de um raciocínio dedutivo:

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,


Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim


É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

A relação entre premissa (“Mas Deus enfim / é bom, é justo...”) e conclusão (“Deus
não havia de magoar-te”), respondendo à pergunta que abre o último terceto (“Seria a mão de
Deus?!”), encaminha o poema para um arremate argumentativo. Ainda que o resultado seja
evasivo quanto à indagação inicial dos tercetos (“Que mão sombria...?”) a negativa do último
verso soa como um acorde final, conclusivo, dando-nos ao menos a medida da perplexidade
do sujeito lírico ante a injusta fatalidade da doença do pai, referida no título do poema.
Mesmo quando, em outros exemplos, a argumentação se encontra subjacente a um
discurso narrativo, o soneto costuma preservar esse esquema de composição fechada,
encaminhando-se para um desfecho com ponto final, quase sempre realçado estilisticamente
pela tradicional chave de ouro, a sugerir que os limites da cena representada coincidem
efetivamente com o último verso do poema. É o que ocorre, por exemplo, nos versos
transcritos abaixo, de Vandalismo, em que não se vê qualquer sugestão de continuidade,
qualquer assincronia entre a duração do discurso e a projeção da “cena” descrita, cujos limites

10
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3 ed. São Paulo: Humanitas /FFLCH/ USP, p. 20
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cronológicos estão determinados por certos índices temporais, como o pretérito perfeito
(“entrei”, “quebrei”), indicativo de ação concluída.

Como os velhos Templários medievais,


Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,


No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Há ainda registros em que o efeito de fechamento decorre de uma transição, mais ou


menos brusca, entre discurso narrativo e discurso argumentativo. Caso típico é o de O
morcego, relato que se desenvolve em direção a um clímax de angústia e repugnância do eu,
provocado pelo contato físico com o animal do título, que lhe espreita o sono:

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

e cujo arremate não será precisamente uma resposta a essa última indagação, mas um
comentário de teor moral que descortina o sentido alegórico de toda a cena antes descrita,
realimentando o significado desse componente narrativo do poema.

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ela entra
Imperceptivelmente em nosso quarto.

Observando-se mais detidamente a produção do poeta paraibano, pode-se verificar,


entretanto, que, se muitos dos seus sonetos confirmam a tendência que estamos constatando,
por outro lado, há um número considerável deles em que a coincidência entre forma poética e
estrutura do discurso não se estabelece prontamente. É nessa tensa convivência entre conteúdo
e expressão que pretendemos destacar um traço curioso: a recorrência de sonetos em que se
reitera a sugestão de um movimento contínuo, prolongando-se para além do instante
cristalizado pelo olhar do eu-lírico. No confronto entre o caráter efêmero do ato de enunciação
(ainda mais numa forma poética a que se impõe a brevidade) e a duração da cena retratada, o
poema realiza, ao mesmo tempo, o recorte de um instante presente e a projeção de uma virtual
narrativa sobre o destino das personagens focalizadas. Nestes casos, os desfechos,
paradoxalmente, sugerem continuidade — num procedimento muito comum em narrativas
cinematográficas, por exemplo, e em certos gêneros literários, como o conto maravilhoso e as
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narrativas heróicas, mas relativamente estranho à natureza da poesia lírica, sobretudo se temos
em mente a referida afinidade do soneto com o argumento silogístico.

Descrever e numerar

Caso dos mais ilustrativos, que pode servir como matriz do procedimento que acima
sublinhamos, o poema Versos a um coveiro não apenas se inscreve no conjunto de textos que
apresentam o conflito entre a brevidade da enunciação e a continuidade do processo
retratado: este contraste ocupa aqui o nível temático da composição.

Numerar sepulturas e carneiros,


Reduzir carnes podres a algarismos,
— Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos


Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!...

Oh! Pitágoras da última aritmética,


Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,


Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

Estamos evidentemente diante de um dos muitos sonetos de Augusto cujo motivo


temático é a Morte. A novidade é que, transposto na imagem concreta da decomposição dos
corpos, o tema é revisitado aqui a partir de um exercício de alteridade: o olhar lançado da
perspectiva do operário em cujo ofício não cabe mais do que quantificar o referido processo.
Curioso é notar que a invocação desse outro — de quem se celebra a exatidão do método e a
quem se dirige a lisonjaria irônica do nono verso (“Pitágoras da última aritmética”) — se faz
por contraposição ao olhar do eu, que, torturado pelos “esoterismos da Morte”, enxerga “a
gênese de todos os abismos” onde o primeiro reconheceria apenas “a progressão dos números
inteiros”.
Paralelamente ao figurado contraste desses dois olhares, desenvolve-se um segundo,
de natureza estritamente semiótica, e que diz respeito aos sistemas de representação de que se
valeriam poeta e coveiro, em seus respectivos papéis, para traduzir a realidade concreta da
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morte. À medida que descreve o fazer do coveiro, o poeta parece afirmar sua recusa a uma
linguagem retórica, pois a descrição daquele processo contínuo, repelindo “complicados
silogismos”, encontraria o instrumento adequado numa lógica quantitativa. Assim é que as
expressões “numerar” /“reduzir... a algarismos”, que se emparelham nos dois primeiros versos
do poema, vão realizar-se metalinguisticamente na construção simétrica dos versos 5 e 12: no
primeiro, uma sequência de numerais; no outro, uma enumeração de substantivos,
equivalendo-se ambos os conjuntos (aritmética hedionda do poeta!) inclusive na quantidade
dos elementos enfileirados.
Na hesitação entre descrever e numerar manifesta-se claramente o impasse de que
tratamos. Muito embora, em termos realistas, ambas as ações pressuponham uma duração
finita, como qualquer processo enunciativo, a voz lírica parece dotar a figura do coveiro de
um caráter alegórico, estendendo-lhe o atributo da eternidade, correspondente à natureza do
sistema de representações aqui relacionado ao seu ofício. O que está em jogo é a figuração de
uma impossível sincronia entre a representação e o processo representado (“Porque, infinita
como os próprios números / A tua conta não acaba mais!”) ou, nos termos da Teoria Geral dos
Signos, o que se coloca neste caso é o conceito de indexicalidade — a propriedade que teriam
algumas formas de representação de referir-se a cada ocorrência específica e atual de um
fenômeno, mantendo com ele uma “conexão dinâmica”.11 Em face desse atributo é que o
poeta (aquele que descreve) exalta a superioridade do coveiro (aquele que conta),
reconhecendo, por oposição, a inutilidade dos “complicados silogismos” que caracterizam o
seu próprio fazer.
O que se mostra aqui, com efeito, é o embate entre a estrutura discursiva tradicional do
poema — concebido como espaço da metafísica e do dizer, e regido por limites como o metro
e o número de versos e de estrofes, mas principalmente pela necessidade de um fechamento
argumentativo — e a dimensão infinita atribuída ao processo que o poeta pretenderia abarcar.
A solução, para o poeta, parece estar em certo caráter prospectivo que adquire o discurso em
casos como esse. Observe-se a semântica da continuidade que toma forma em expressões
como “continua a contar” (verso 10), “infinita como os próprios números” (verso 13), e “a tua
conta não acaba mais” (verso 14). Assim o poema, discurso do eu, se encerrará com uma
projeção da ação do coveiro ao infinito.

11
Cf. PEIRCE, C. S.. Semiótica e filosofia: Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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Ocorre aqui algo análogo ao que representa o emprego da perspectiva nas artes
plásticas, em que o arranjo espacial das figuras simula uma terceira dimensão através de
objetos que se afastam em direção a um ponto imaginário no horizonte, forjando a ilusão de
profundidade da cena retratada, a despeito das limitações do suporte bidimensional. No caso
da poesia, dá-se uma projeção (não espacial, mas temporal) para um futuro teoricamente
irrepresentável: se o objeto não cabe nos limites enunciativos do soneto, reclamando do poeta
um instrumento igualmente infinito, ele deve ao menos projetar a imaginação do leitor aonde
as palavras não podem acompanhá-lo.

Tópica e variações

Um rápido levantamento das ocorrências dessa figura (a presença de uma


semântica de movimento e/ou de continuidade em contraste com os limites físicos do
enunciado) revelará as mais impressionantes variações, a exemplo de Versos a um cão, de
cuja personagem se diz, metaforicamente, que:

Irá assim, pelos séculos, adiante,


Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária de seus pais!

E de Vozes da Morte, estranho poema da conjunção amorosa homem/vegetal:

Pelo muito que em vida nos amamos


Depois da morte, inda teremos filhos!

Ou do primeiro dos dois sonetos dedicados ao “pai morto”, em que a visão prospectiva
ganha tonalidade místico-religiosa, evocando um arquétipo do imaginário cristão.

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,


Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

E ainda do Solilóquio de um visionário, em um movimento semelhante de ascensão.

Vestido de hidrogênio incandescente,


Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,


Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
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O procedimento aqui rastreado encontrará terreno fértil na expressão da face mais


popular de Augusto dos Anjos: aquela em que se fundem, de um lado, as sugestões,
devidamente transfiguradas, de doutrinas científicas suas contemporâneas, cujo vocabulário
(mais do que as ortodoxias) fascinava o poeta; e de outro lado, a opção expressionista pelo
repulsivo.

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,


Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos! (Apóstrofe à Carne)

Já o Verme — este operário das ruínas —


[...]
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra! (Psicologia de um vencido)

... Essa luz radial, em que arde o Ser,


Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder! (Volúpia imortal)

A romaria eterna dos aflitos

Aproximando um pouco mais a nossa lente, distinguiremos em meio a essas


construções um subconjunto formado por cenas em que o olhar do eu-lírico se detém sobre
personagens ou objetos invariavelmente em trânsito. Tal é o que se observa nos versos finais
de O Lázaro da Pátria:

E o Lázaro caminha em seu destino


Para um fim que ele mesmo desconhece!

Já em A louca, desde as duas estrofes iniciais, define-se a contemplação de uma figura


errante:

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,


O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.

Moça, tão moça e já desventurada;


Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário da mágoa sepultada.
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Caminhada que progride com o andamento dos próprios versos, até a enumeração final
de ações como que simultâneas, já envoltas no sentido de continuidade dos versos anteriores:

E hoje, para guardar a mágoa oculta,


Canta, soluça — o coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

Nas expressões “quando ela passa...” e “vai morta em vida assim pelo caminho”,
percebe-se o distanciamento gradativo da personagem em relação à instância enunciadora,
que logo a perderá de vista. Não é diferente a situação descrita em O caixão fantástico, que se
inicia com uma referência a movimento: “Célere ia o caixão...” e se desenvolve no intervalo
em que o eu-lírico e o leitor vêem afastar-se o objeto fúnebre.

Era tarde! Fazia muito frio.


Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

O ângulo será quase sempre o mesmo, como se o soneto se convertesse numa janela
da qual um observador vê desfilar diante de si um cortejo mórbido de noctâmbulos e
desvalidos de toda espécie.

Na rua em funeral, ei-la que passa,


A romaria eterna dos aflitos,
A procissão dos tristes, dos proscritos,
Dos romeiros saudosos da desgraça.

[...]
Entre todos, porém, lânguida e bela,
Da juventude a virginal capela
A lhe cingir de luz a fronte baça,

Vai Corina mendiga e esfarrapada,


A alma saudosa pelo amor vibrada,
— A Stella Matutina da Desgraça!

Explorando com alguma liberdade a proposta, já referida, de José Paulo Paes, que viu
traços de Art Nouveau (em sua vertente marginal) na obra de Augusto dos Anjos, diríamos
que a visão representada nessas cenas corresponderia ao olhar de um anti-flâneur, numa
referência a uma das imagens-símbolo daquele espírito da modernidade nascente que se
cristalizou na belle époque. A simples atitude de contemplação do cotidiano, de sua
banalidade e de suas epifanias, já justificaria a comparação. Entretanto, contrastam aí, de
imediato, o universo cosmopolita, metropolitano, típico do flâneur, e o mundo particular,
rústico (dir-se-ia regional), do sujeito-lírico que se expressa nesses poemas. Outro aspecto a
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ser sublinhado é a inversão de perspectivas: enquanto o observador urbano é que está em


movimento, numa fruição rápida e pouco meditativa daquilo que vê, o sujeito lírico desses
sonetos olha como quem o faz de uma janela, diante da qual se descortinam as variadas cenas
de uma tragédia cotidiana. Nesse caso, não é o olhar do observador, mas a imagem focalizada
que está em trânsito. O olhar do flâneur contempla a beleza efêmera, o ornamentalismo
superficial de uma paisagem mutável; o olhar lírico desses sonetos quer, ao contrário, penetrar
no sentido alegórico de seus personagens, desenhando a predição de sua errância pelo
caminho (ou pela existência) afora. Esse eu-lírico representaria assim, em mais de um
aspecto, a imagem invertida daquele transeunte urbano, pelo que se relaciona também com a
inversão do esteticismo volúvel de um gosto médio que nele se personifica.

O soneto que não acaba

Dissemos atrás, a propósito de Budismo moderno, tratar-se de um impulso de


subjetividade encarcerado em versos decassílabos. Outro poema do Eu que também reflete
essa angústia, e que se pode considerar como síntese dos processos até aqui descritos, é
Eterna Mágoa, que passamos a comentar:

O homem por sobre quem caiu a praga


Da tristeza do Mundo, o homem que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga


Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe


É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;


E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Um primeiro aspecto a destacar é que a figura que vimos registrando em outros


sonetos não encerra aqui um deslocamento no espaço, tomada de uma virtual cena cotidiana,
mas figura o percurso metafórico do homem pela existência. Não temos, portanto, a imagem
de uma personagem que passa, mas a alegoria do passar pela vida. Todavia, convém
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sublinharmos a perspectiva externa da qual se enquadra o homem melancólico, referido em


terceira pessoa assim como as figuras errantes dos outros poemas, perspectiva que o coloca
também em contraste com o sujeito enunciador, cujo ângulo é, ainda uma vez, o do
observador diante do qual se projeta um destino alheio. Sobre essa trajetória, paira um
elemento contínuo: “a tristeza do mundo”, que há de se prolongar para além da existência do
homem, sobrevivendo inclusive à decomposição da matéria. Vejamos então como o poeta
constrói aqui a semântica da continuidade — que constitui, em última análise, mais uma
variante daquela visão prospectiva dos poemas anteriores.
A figura começa a se delinear nos dois últimos versos da estrofe inicial do poema,
reforçando-se em seguida pelo emprego duplo do sugestivo verbo “resistir”, no segundo
quarteto, acrescido de outros dois verbos, no verso seguinte: “aumenta” e “afunda”, dispostos
em posição de equivalência rítmica no andamento do decassílabo sáfico:

Mais / se / lhe au / men / ta e / se / lhe a / fun / da a / cha (ga)

A representação da mágoa eterna se realiza principalmente através do vocabulário, que


reúne expressões como “tristeza do Mundo”, “para todos os séculos”, “nunca mais”,
“infinda”: todas correlatas ao adjetivo do título. Mas nos tercetos ocorre um salto expressivo
do simbólico para o icônico. A idéia-núcleo desses versos é o desajuste entre continente
(homem, vida) e conteúdo (melancolia): a mágoa associada à tristeza do mundo “não cabe” na
existência do indivíduo, prolongando-se para além da sua desintegração. Considere-se aí o
recurso ao enjambement, figura por excelência do excesso, do “transbordamento”, que ocorre
numa expressão como “não cabe / Na sua vida...”. Ora, é justamente o não caber da estrutura
sintática no verso que produz o encadeamento, numa perfeita correspondência entre forma e
conteúdo.
Outro recurso empregado como o objetivo de mimetizar a persistência da “tristeza do
mundo” são as repetições que se distribuem por todo o soneto, a exemplo do sintagma “essa
mágoa infinda”, que ocorre nos dois tercetos e ainda ecoa parcialmente (“essa mágoa”) no
último verso. Some-se a isto a repetição sistemática de palavras inteiras ou radicais em um
mesmo verso:

Não crê em nada, pois nada há que traga (verso 5)


Quer resistir e quanto mais resiste (verso 7)
Sabe que sofre, mas o que não sabe (verso 9)
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Transparece nesse procedimento uma intenção de dilatar sensorialmente os


significantes, ampliando-lhes a duração, intenção que se comunicará por fim à estrutura geral
do soneto, percorrida por um discurso que desemboca na palavra “ainda”. Ressalte-se o valor
semântico que adquire o dado posicional neste caso, em que a palavra é deslocada na frase e
disposta no final do último verso, evidentemente para obtenção da rima, mas também de
modo a realçar o seu sentido de persistência.

Notas de conclusão (prospecções)

Desencadeado de um comentário de M. Cavalcanti Proença a propósito do estilo de


Augusto dos Anjos, este nosso passeio pela obra do poeta partiu do que chamamos de tensão
entre a constrição da forma e a tendência à expansão do conteúdo nos versos examinados —
tensão que se resolve através de uma semântica da continuidade. Estendendo a figura
destacada ao nível da macroestrutura dos poemas, identificamos a recorrência de projeções
narrativas que transbordam dos limites da enunciação, figurando a continuidade dos processos
representados, sejam eles: a multiplicação infinita dos despojos da morte; o afastar-se de um
caixão sem cortejo pela rua; o vagar de um lázaro ou de uma louca; sejam as visões de
ascensão da alma para o céu cristão ou da consciência para o espaço cósmico; sejam
frequentes referências à “química feroz dos cemitérios”; ou ainda a representação da “mágoa
infinda” que acompanha o destino do homem melancólico. A descrição de um traço
recorrente no conjunto de uma produção literária não se justificará, todavia, como mera
informação estatística, mas em face das interpretações que esse dado possa acrescentar com
vistas à caracterização da obra em estudo.
Não seria sensato tentar definir num artigo qual o viés da poética de Augusto dos
Anjos que melhor se reflete na figura em exame: se as especulações, induções e cálculos de
uma visão de mundo cientificista; se a atração pela pintura de cenas macabras; ou se um
pendor para a poesia narrativa que não se limitaria aos poemas longos, invadindo o espaço do
lirismo também na forma breve dos sonetos. Num semelhante projeto estilístico, de
reconhecida complexidade, parece haver motivações bastantes para a recorrência do
procedimento de que tratamos. Uma das interpretações possíveis, no campo das observações
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específicas sobre a poética do autor (ou seja, da pesquisa em torno das tensões internas que
animam o seu processo criativo), é a de que a figura destacada deixa entrever raízes de um
universo de representação literária em que talvez figurem formas elementares de narrativas de
tradição oral. Mas essa mesma figura pode também sugerir um diálogo antecipatório com a
linguagem cinematográfica — em que as histórias, naturalmente, terminam quase sempre com
os personagens em movimento — ou mesmo com as artes plásticas, que, como já
sublinhamos, resolveram através da perspectiva um impasse análogo no âmbito das
representações espaciais.
Outra sugestão, esta no campo das reflexões de caráter geral — vale dizer: no contexto
das relações que a criação do poeta estabelece com os valores estéticos de seu tempo e com a
tradição literária — é a de se considerar os traços de estilo aqui sublinhados como índices da
modernidade que se anuncia na linguagem do poeta, na medida em que eles sinalizam uma
atitude de transgressão ao código saturado das fórmulas parnasiano-simbolistas, indicando ao
mesmo tempo uma ruptura relativa nos limites de uma forma fixa, como o soneto. Não seria,
portanto, apenas pelo vocabulário científico ou pela expressão do pessimismo que a poética
de Augusto dos Anjos se distinguiria: no nível do verso, a opção pela aspereza do ritmo,
levada às fronteiras do ruído e da desarmonia; e no nível da macroestrutura, a tendência ao
transbordamento — ambos os procedimentos apontam para técnicas de construção originais,
muito embora ainda emolduradas no gênero canônico de composição. Nestes aspectos,
poderíamos situar o poeta numa posição de prenunciador de certa postura crítica diante de
padrões estéticos então institucionalizados que seriam afinal demolidos pela geração seguinte.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
BRITO, João Batista de. Leituras poéticas. São Paulo: Fundação Memorial da América
Latina, 1997, p. 3-15
CAMPOS, Haroldo de. O samurai e o kakemono. In: ______. A arte no horizonte do
provável. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 213-219.
CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A.. Presença da literatura brasileira: história e antologia.
Vol. I: Das origens ao Realismo. 2 ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 385.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3 ed. São Paulo: Humanitas /FFLCH/
USP, p.20
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 491

PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos e o Art Nouveau. In: ______. Gregos e baianos:
ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 82.
PEIRCE, C. S.. Semiótica e filosofia: Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. 2 ed. São
Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Nota para um rimário de Augusto dos Anjos. In: ______. Estudos
literários. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio; Brasília, INL, 1974, p. 200.
ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos. In: ______. Texto/Contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 259-266.
VIANA, Chico. Monólogo de uma sombra ou Augusto dos Anjos em alemão. In: ______. A
sombra e a quimera: escritos sobre Augusto dos Anjos. João Pessoa: Idéia /Editora
Universitária, 2000, p. 75-81.
______. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 1994.
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A POÉTICA DA TRANSGRESSÃO NO EU DE AUGUSTO DOS ANJOS1

Montgômery Vasconcelos2
(FUCIRLA-PB)

Introdução

A etimologia do signo brasil vem de substantivo masculino e é uma derivação antiga


de brasa, pela cor vermelha do pau-brasil, encarnado. Além de ser, noutra acepção, tintura
fabricada com a madeira desse pau-brasil, usada em tinturaria e pintura. Bem como também
pra dar o vermelho das miniaturas e iluminuras dos manuscritos e incunábulos. O signo brasil
remete à festa da carne e à corrupção latentes na poética anjelina.
O que Augusto dos Anjos denuncia no sistema político, social, econômico, jurídico,
cultural e artístico do Brasil como organizações criminosas, só comparadas à afirmação de
Aristóteles na Grécia Antiga: “Abaixo da Lua só existe corrupção”? Quem Augusto dos Anjos
quer atingir, no seio dessa sociedade que se instaura, pra ele em 1912, há quinhentos e catorze
anos no Brasil, usando duma linguagem filosófica com requintes e influências da Poética de
Aristóteles? Quando Augusto dos Anjos instaura a sua cena inaugural no entorno duma
excêntrica denúncia de corrupção sobre o aspecto mais patriótico e sagrado de seu País?
Como o “Evangelho da Podridão”, de que nos fala, permeia sua obra espelhada no texto da
Bíblia “Corrupção da humanidade”? Onde este texto vem timbrado que o ser humano é o
projeto fracassado de Deus?
Brasil, o signo da corrupção na poética de Augusto dos Anjos3 instaura a possibilidade
da fortuna crítica brasileira rever sua leitura classificatória inadequada, cuja recusa vem
explicitada na poesia e prosa do Eu anjelino desde 1900: a cena inaugural da primeira
manifestação poética do poeta paraibano do século, que se impõe na literatura brasileira com a
publicação do soneto “Saudade”4.

1
Comunicação apresentada no II CONALI a 19-11-2014, às 14h30min., Sala 2 - CCHLA/UFPB, cem anos do
encantamento de Augusto dos Anjos, quem já denunciava corrupção no Brasil desde 1905.
2
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor concursado em 1º lugar desde 1991 à
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e Pesquisador da Fundação Científica Reis de Leão e das
Astúrias/FUCIRLA-PB.
3
Tese de Livre Docência reprovada pela USP porque denunciei a Banca Examinadora às eminências pardas do
MEC, por me cobrar de forma corrupta R$50.000,00 [Cinquenta mil reais]
4
Hoje que a magua me apunhala o seio,/E o coração me rasga, atroz, immensa,/Eu a bemdigo da descrença em
meio,/Porque eu hoje só vivo da descrença.//A’ noute quando em funda soledade/Minh’alma se recolhe
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Essa mesma tentativa de leitura duma transgressão na poética do Eu, também, nasceu
de minha preocupação inicial empreendida já na dissertação de mestrado em Letras na PUC-
RJ, 1988, conservando o mesmo título noutra tese que levei a público em 1996 no meu livro A
poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. Contudo, graças ao analfabetismo crônico da
educação brasileira ninguém as lê nem escreve sobre elas no Brasil, e não por boicote, má
vontade, falta de interesse ou coisa que o valha, mas por não saber mesmo, prova maior disso
é Paulo Coelho eleito à Academia Brasileira de Letras: Machado foi-se de Assis, acabou,
contra tal fato não há mais argumento, uma piada de muito mau gosto, o humor negro das
classes intelectuais dominantes, analfabetas. O fato é que ninguém sabe ler nem escrever,
portanto um caso crasso de analfabetismo crônico em nível nacional, porque o Brasil fez sua
opção pela corrupção e não pela educação.
É por isso que jamais devemos culpar o povo brasileiro, mas os seus governantes,
corruptos e colonizados felizes, por tamanhas faltas que me levam às pesquisas Brasil, o signo
da corrupção: da GMB à UFMS [Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS, que
denunciei seus dirigentes pelo desvio de R$ 70.000.000.000,00 – Setenta Bilhões de Reais no
Projeto Base do Pantanal, envolvendo OEA, ONU, BID, FMI, MEC, Palácio da Alvorada,
Governo do Estado de Mato Grosso do Sul e o ex-Presidente da República Fernando
Henrique Cardoso; General Motor do Brasil/GMB por crime de lesa-pátria ao produzir
veículos como os da linha Vectra com vícios de fabricação] Brasil, o signo da esperança: do
Oiapoque ao Chuí ou simplesmente Brasil, o signo da corrupção. Tese esta que nasce,
também, dessas minhas observações sobre as críticas percucientes de Augusto dos Anjos,
quem primeiro responsabilizou os males da corrupção do Brasil aos seus governantes por
meio, principalmente, de sua “Crônica Paudarquense”5.
Contudo, ainda, generalizando essa “Crônica Paudarquense” em todo universo de sua
poesia e prosa, uma vez mais estudadas ao longo de trinta e oito anos de pesquisas que
empreendo no entorno do seu Eu e sobre a sua visão triádica da transgressão: 1ª no meu livro
A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos; 2ª nesta tese Brasil, o signo da corrupção na
poética de Augusto dos Anjos, provocada pela minha tese de doutoramento Recepção e

tristemente;/P’ra illuminar-me a alma descontente,/Se accende o cirio triste da Saudade.//E assim affeito ás
maguas e ao tormento,/E á dor e ao soffrimento eterno affeito,/Para dar vida á dor e ao soffrimento.//Da Saudade
na campa ennegrecida/Guardo a lembrança que me sangra o peito,/Mas que no emtanto me alimenta a vida.//
(Almanaque do Estado da Paraíba, 1900, Apud ANJOS, 1994: 42).
5
ANJOS, Augusto dos. In: O Comércio,12-10-1905, Pau d'Arco — 1905, Apud ANJOS, Augusto dos [1884-
1914] “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª
ed., organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno, Aguilar, Rio de Janeiro, 1994, pp. 586-589.
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transgressão: o público de Augusto dos Anjos, e 3ª nas teses que se complementam por meio
do ciclo Brasil, o signo da corrupção.
O respaldo de minha teoria deve-se aos livros O Erotismo, de Georges Bataille, o Eu,
de Augusto dos Anjos, que se locupletam com Poética, de Aristóteles, Todorov e Staiger.
Além dos subsídios imprescindíveis da fortuna crítica brasileira à poesia e prosa de Augusto
dos Anjos, especialmente, as colaborações recentes do I CONALI 6. Ressalte-se o Concurso
de 2001 da Rede Globo de Televisão (o maior veículo de Comunicação de massa a serviço de
governantes corruptos e colonizados felizes do FMI) que o elegeu o Poeta do Século na
Paraíba: uma farsa da Verdade, constatada na dialética da poética do Eu anjelino.
O meu projeto de pesquisa sobre Augusto dos Anjos: a ideia da impossibilidade de
classificar sua poesia tomou corpo desde 1988 e gerou minha convicção a partir de
experiências e trocas em orientações. Assim, o que antes trabalhava era sobre a poética de
Augusto, tema de minha dissertação de mestrado: A poética carnavalizada de Augusto dos
Anjos. Nesta dissertação trabalhei com as teorias do dialogismo, polifonia e carnavalização da
literatura, do filólogo russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Mas, em seguida, senti a
necessidade de aprofundar esses três movimentos: dialogismo, polifonia e transgressão. Tal
possibilidade só conseguia vislumbrar com a semiótica peirceana, pra que eu pudesse
responder às questões que vêm surgindo, desde minhas primeiras inquietações. Inclusive, no
meu exercício de professor universitário, já em sala de aula, quando me faziam arguições,
dessa mesma natureza, os próprios alunos.
Com certeza, minha experiência durante o meu estudo em nível de mestrado, que
resultou na pesquisa inicial, mostrou-me a necessidade imperiosa de buscar novas formas de
leitura pra continuidade do trabalho em questão. Embora ela tenha atendido às questões
preliminares, outras investigações científicas acontecem como o vocabulário da poética
anjelina, sua classificação impossível, pois o próprio Augusto nega pertencer a quaisquer
escolas. Assim, a sua posição é como se fosse duma manifestação poética independente,
isolada e residente no eu de seu próprio ostracismo. E o que vejo aí é uma abertura duma
possível releitura, além doutra possibilidade inadiável de revisão e/ou posição, também,
classificatória. É como se ele tivesse deixado pra nós, por meio de sua poética, essa
possibilidade de transição e/ou evolução entre simbolismo e modernismo.

6
I Congresso Nacional de Literatura - CCHLA/UFPB/Campus I/João Pessoa-PB/3 a 6-7-2012] coordenado pela
Profª Socorro Aragão e representado por volta de 1200 pesquisadores que assinam cerca de 400 pesquisas.
Pesquisas estas que vieram a público quer por meio de edições do Eu, livros, periódicos, recursos tecnológicos
audiovisuais e Internet, quer por meio de teses, dissertações, monografias e concursos.
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Contudo, essas possibilidades deixadas jamais receberam resposta ou atenção exata e


mais precisa, a saber: uma leitura triádica, experimental e teórica do ponto de vista semiótico-
peirceano. Posto que, a priori, eu pensava que Bakhtin enveredava por uma teoria dicotômica,
dual, diádica, mas tal qual a do Peirce a dele também é triádica. Hoje penso diferente, graças à
semiótica e à convivência com as diferenças nas pesquisas científicas no seio da academia.

A poética da transgressão no Eu de Augusto dos Anjos

Vivendo numa época de grandes transições, esse poeta paraibano assistiu à decadência
dos engenhos tradicionais, em prol das usinas, e presenciou o início do processo de
urbanização, cuja personagem principal vem a ser a cidade grande. Dela, Augusto dos Anjos
mostra o lado negro, soturno, as paisagens degradadas e tétricas da transgressão no Cemitério
Agra em “As Cismas do Destino”7, poema decassílabo:

“Recife. Ponte Buarque de Macedo.


Eu indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!”8

Os cenários de sua poesia são cemitérios, prostíbulos, tavernas e as praças públicas


abandonadas, só ocupadas pelas prostitutas, mendigos, excluídos, injustiçados, perseguidos e
deserdados. As presenças constantes, nesses cenários, são os doentes, os marginais, as vítimas
duma sociedade voltada ao lucro, à injustiça e à corrupção: transgressão.
Tal corrupção leva-me à reflexão por ser sinonímia do que chamo poética da
transgressão de Augusto dos Anjos, quando expressa podridão, verme, fim e começo dos
seres, vegetais e coisas. Características que observo, também, no Auto da Compadecida9, de
Ariano Suassuna, quando Nossa Senhora intercede pelas vítimas da corrupção a Jesus, quem
após atendê-la diz-lhe: “Com tantas intercessões assim o Inferno fica igual à Repartição

7
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “As Cismas do Destino” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., texto e notas Alexei Bueno; Aguilar, Rio, pp. 211-223.
8
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “As Cismas do Destino” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 211.
9
SUASSUNA, Ariano (2002). Auto da Compadecida. Livro passado à película cinematográfica, com direção de
Guel Arraes, que veio a público, também, na projeção do dia 1º de janeiro de 2002, como parte da programação
Festival Nacional da Rede Globo de Televisão, Brasil. Participam do elenco desse filme Auto da Compadecida
expressões renomadas como Fernanda Montenegro representando Nossa Senhora, Marco Nanini interpretando o
Cangaceiro Severino, Selton Melo encenando Chicó, o amigo de João Grilo, Lima Duarte fazendo o papel de um
Bispo paraibano por ocasião de sua estada em Taperoá, pequena cidade do Estado da Paraíba, cenário local em
que se desenrola a comédia levada a sério pelo seu alto teor risível à luz de O Riso: ensaio sobre a significação
do cômico, que formula a teoria da “desarmonia” bergsoniana.
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 496

Pública, existe! Mas não funciona”10. Paradoxo e “desarmonia”11 que se manifestam no


projeto estético e ideológico tanto da poesia, por meio dos “Gemidos de Arte” anjelinos do
“finado Tôca”, tratado sobre O Socialismo Rural do Nordeste, em cujo poema analiso-o,
quanto da prosa na crítica estética anjelinas das “Crônicas Paudarquenses”, que as analiso
como contribuições dum Augusto dos Anjos prosador.

“Ao mesmo tempo que pretendi determinar os processos de fabricação do


risível, procurei saber qual é a intenção da sociedade quando ri. Pois é
surpreendente que se ria, e o método de explicação acima referido não
esclarecia esse pequeno mistério. Não vejo, por exemplo, por que a
‘desarmonia’, na medida em que desarmonia, provoque da parte das
testemunhas uma manifestação específica como o riso, enquanto tantas
outras propriedades, qualidades ou defeitos, deixam impassíveis no
espectador os músculos da face. Resta, pois, procurar qual é a causa
específica da desarmonia que produz o efeito cômico; e só a teremos
encontrado realmente se pudermos explicar mediante ela por que, em caso
semelhante, a sociedade se sente obrigada a manifestar-se. Impõe-se, pois,
que haja na causa da comicidade algo de ligeiramente atentatório (e de
especificamente atentatório) à vida social, dado que a sociedade reage a isso
por um gesto que tem todo o aspecto de uma reação defensiva, por um gesto
que causa leve medo.”12

Jamais foi influenciado pelo Parnasianismo nem tampouco pelo Simbolismo nem
quaisquer outros ismos e escolas, mas sempre desenvolveu temas excluídos e rejeitados pela
maioria, estando assim mais voltado à poética da transgressão, ao grotesco e sublime
hugoanos. Seus versos propagam um glossário de palavras feias que refletem, instauram e
corporificam a descrença, o verme, o escarro, a podridão, a miséria, o sofrimento, a angústia,
a mágoa, a tristeza, o tétrico, a morte, o abandono e a dor mais do que nunca presentes em
nossa sociedade – o que, sem dúvida, me explica em parte o grande interesse que ainda hoje
desperta a sua poesia do pessimismo, tematizado em seu primeiro soneto, “Saudade”. Soneto
este que o poeta publica em 1900, já sob a influência das ideias e da filosofia pessimistas de
Arthur Schopenhauer, pensador, também, excêntrico, com quem mantém estreita afinidade
em todo conjunto de sua poética da transgressão.

10
SUASSUNA, Ariano (2002). Auto da Compadecida. Tratam-se de expressões risíveis que o autor vai buscar
numa possível fonte teórica do pensador francês Henri Bergson, por meio do seu estudo e investigação
científicos em torno de O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. O romancista e dramaturgo paraibano
Ariano Suassuna é aqui revisto por meio da projeção do filme Auto da Compadecida, baseado agora em seu
próprio romance cômico no cinema, dirigido por Guel Arraes, como programação do Festival Nacional da Globo
em 1-1-2002, Brasil.
11
BERGSON, Henri (1983). O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª Ed., Zahar, Rio, 105 p.
12
BERGSON, Henri (1983). “Apêndice da vigésima terceira edição – Sobre as definições da comicidade e sobre
o método adotado neste livro” In: O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª Ed., Zahar, Rio, p.105.
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O culto à filosofia e à poética do erotismo no Eu de Augusto dos Anjos

Trata-se duma relação que se forma por meio da problematização da existência duma
poética da transgressão em Augusto dos Anjos, que ora a instauro por meio dos pressupostos
teóricos O mundo como vontade e representação, III parte13; Crítica da Filosofia Kantiana14;
Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV15, de Arthur Schopenhauer16 (1980: 1-
235) e Georges Bataille17 (1988: 7-243) e (1977: 7-150) à luz da teoria dos seus O Erotismo18
e La Literatura y el Mal19, e ora na própria realidade da linguagem original do poeta
“paraibano do século”. Sendo ainda aqueles, dentre outros, portanto, quem lhes dão subsídios
à poética da transgressão. Poética esta caso impar no universo da literatura brasileira, quiçá
portuguesa ou universal, conforme afirma Georges Bataille sobre aproximação e relação
intrínseca entre avidez e transgressão:

“...Avidez, que no se opone, sino al contrario, a la transgresión, en un punto,


del principio al que sirve. Es demasiado grande para que el principio se vea
amenazado; incluso la duda sería una debilidad. En la base de una virtud se
halla el poder que tenemos para romper su cadena. La enseñanza tradicional

13
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). O mundo como vontade e representação, III parte. Trata-se,
ainda, de a Crítica da Filosofia Kantiana ser o apêndice desse livro O Mundo como Vontade e Representação,
cujo complexo crítico e filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª
ed., vol. I, livro III, pp.199-316; (Crítica da Filosofia Kantiana); São Paulo, Abril, Os Pensadores;, pp. 1-82.
14
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). Crítica da Filosofia Kantiana. Trata-se, ainda, dessa Crítica
da Filosofia Kantiana ser o apêndice do livro O Mundo como Vontade e Representação, cujo complexo crítico e
filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed., São Paulo, Abril,
pp. 83-182.
15
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860]. (1980). Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed.,
vol. II, pp.105-108, 214-255, 309-324 e 331-342; São Paulo, Abril, pp.183-235.
16
SCHOPENHAUER, Arthur [1788-1860] . (1980). O mundo como vontade e representação, III parte; Crítica
da Filosofia Kantiana; Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. Trata-se, ainda, dessa Crítica da
Filosofia Kantiana ser o apêndice do livro O Mundo como Vontade e Representação, cujo complexo crítico e
filosófico acompanha-o também Parerga e Paralipomena, capítulos V, VIII, XII, XIV. 2ª ed., (Crítica da
Filosofia Kantiana) São Paulo, Abril, pp. 1-235.
17
BATAILLE, Georges (1988). O Erotismo. 3ª ed., Lisboa, Antígona, Portugal, pp. 7-243. Obra imprescindível
à tese Augusto dos Anjos: uma poética da transgressão brasileira porque traz à questão fundamental a
compreensão do texto mais original e polêmico da fortuna crítica nacional. Daí a pertinência das palavras de
Alexandrian in “Os Libertadores do Amor” quanto à indizível obra ousada de Georges Bataille em O Erotismo.
18
BATAILLE, Georges (1988). “Primeira Parte – O Proibido e a Transgressão - Capítulo IV – A Afinidade
entre A Reprodução e A Morte: A morte, a corrupção e a renovação da vida” et alli In: O Erotismo. 3ª ed.,
Lisboa, pp. 23-128.
19
BATAILLE, Georges (1977). La literatura y el mal: Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, Blake, Sade, Proust,
Kafka, Genet. Espanha, pp. 7-150. Eis a nota sobre a impressão desta imprescindível obra batailleana na última
capa: “ESTE LIBRO SE TERMINO DE IMPRIMIR, SOBRE PAPEL DE TORRAS HOSTENCH, S.A., DE
BARCELONA, EL DIA 6 DE JUNIO DE 1977 EN LOS TALLERES DE VELOGRAF, TRACIA, 17 –
MADRID-17”.
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desconoció esse resorte secreto de la moral; su idea de la moral se vulve


20
insípida.”

Pra provar a poética da transgressão em Augusto dos Anjos compreendo por que razão
as páginas de O Erotismo de Georges Bataille são tão fortes e decisivas. Elas provêm dum
homem cuja experiência íntima não fez concessões, características encontradas também no
poeta Augusto dos Anjos. Este livro sucede-se a La Part Maudite, tratado de economia geral,
cujo tema principal era, não a produção das riquezas, mas a sua despesa (o seu “consumo”). O
Erotismo era por ele designado como “a parte problemática”, uma vez que constitui pra toda a
gente “o problema dos problemas”. O mérito de Georges Bataille é o de encarar a sexualidade
humana no seu quadro sociológico, em relação à existência do trabalho e à das religiões. Sua
interpretação assenta numa dialética do interdito e da transgressão, tal como ocorre na poética
de Augusto dos Anjos quando faz intervenções radicais nos seus versos.
A existência joga-se em função dum conjunto de interditos que respeitam à morte e à
atividade erótica, não impostos do exterior, mas são valores subjetivos: “A atitude angustiada
que originou os interditos opôs a recusa – o recuo – dos primeiros homens ao movimento
cego da vida.” (Bataille, 1988: 23-128)
Tais interditos têm por fim restringir tudo o que a humanidade pode ainda conter de
exuberância animal. Contudo, o fluxo das paixões leva o homem a transgredir
incessantemente os interditos; e por vezes é a própria transgressão que revela o interdito. Tal é
o caso, no erotismo: “A essência do erotismo resulta da associação inextrincável do prazer
sexual com o interdito. Nunca, humanamente, o interdito aparece sem revelação do prazer,
nem nunca o prazer surge sem o sentimento do interdito.” (Bataille, 1988: 23-128)
Concepção também aceita e notável na poética de Augusto dos Anjos quando vem
numa intervenção de “Evangelho da podridão”.
Bataille estudou os meios de “transgressão organizada” da sociedade: a guerra e o
sacrifício humano que levantam temporariamente a interdição de matar, e o casamento e a
orgia ritual que permitem vencer o interdito da obscenidade. Encontram-se as mesmas
sensações de angústia e de aflição na transgressão destes dois tipos de interditos, pois a morte
e o erotismo abalam com igual frenesi a ordem do vivido. Pra o demonstrar, Bataille

20
BATAILLE, Georges (1977). “La moral unida a la transgresión de la ley moral” In: La literatura y el mal:
Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, Blake, Sade, Proust, Kafka, Genet. Espanha, p.105. Eis a minha versão em
Língua Portuguesa do trecho escolhido: “...Avidez não se opõe à transgressão, mas ao contrário, é um ponto do
princípio que lhe serve. Ela é muito grande por isso que seu princípio se vê ameaçado; a dúvida seria até mesmo
a fraqueza. No fundo ela é a base de virtude do poder que nós temos que quebrar em sua cadeia. O ensino
tradicional ignorou aquela primavera de segredo da moral: sua ideia de moral fica insípida.” (Tradução livre).
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estabelece uma analogia persuasiva entre o sacrifício religioso e o ato sexual:

“O amante não desagrega menos a mulher amada do que o sacrificador


sanguinolento, o homem ou o animal imolado. A mulher, nas mãos daquele
que a acomete, é desapossada do seu ser. Ao perder o pudor, ela perde
aquela rígida barreira que, separando-a de outrem, a tornava impenetrável:
bruscamente ela abre-se à violência do jogo sexual desencadeado nos órgãos
de reprodução e à violência impessoal que a invade.” (Bataille, 1988: 23-
128)

Eis outra aproximação entre ambos porque Augusto dos Anjos nega-se à morte, mas
volta-se à vida plena da mulher enquanto única indústria da existência humana. Daí a
transgressão poética ao denunciar a corrupção material e espiritual no genético, biológico,
psicológico, econômico, social, político, cultural e educacional.
Depois de ter examinado o reforço dos interditos no cristianismo e as suas
consequências na escola do “objeto do desejo”, Georges Bataille acabou por ilustrar a sua tese
descrevendo “o mundo do desmoronamento” – o da baixa prostituição –, onde se vive à
margem do interdito e da transgressão, tal como o faz Augusto dos Anjos em sua poética. A
conclusão de O Erotismo é-nos dada por um outro que lhe é complementar, Les Larmes
d’Eros, evocando as relações entre o erotismo e a arte: “Ninguém hoje se apercebe de que o
erotismo é um mundo demente, e cuja profundeza, para além das suas formas etéreas, é
infernal.” (Bataille, 1988)
Afinal, é essa acepção que apreendo na poética de Augusto dos Anjos quando nos faz
refém dum mundo inexistente cujos seres são diferentes dos nossos ou os nossos inexistem
pra ele. Posto que é um mundo às avessas sempre, e a sua relação conosco vem negando
reciprocidade mais pelas nossas faltas do que pelas nossas virtudes em poder habitá-lo.
As lições de Bataille, apesar de sua exclusiva singularidade, são adequadas à época. A
sua lucidez cruel, o seu pessimismo exaltado e radical, como em Augusto dos Anjos, contêm
as virtudes capitosas do álcool e outros alucinógenos congêneres. Ele exprimiu os estados
inefáveis da sensualidade, sem nunca esconder o seu esplendor inquietante: “A fortuna dos
amantes é o mal (o desequilíbrio) a que o amor físico os constrange. Estão condenados, para
toda a vida, a destruir a harmonia entre si, e baterem-se na noite. É pelo preço de um combate,
pelas feridas que causam um no outro que conseguem unir-se.” (Bataille, 1988)
E tornou visível o sentido interior que anima a superação da dor e da alegria: “A
fortuna é o único objeto do amor e só a fortuna tem a força de amar.” (Bataille, 1988)
Contrário a isto, só a morte da natureza sem volta da poesia do Eu de Augusto dos
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Anjos é quem vai confluir também por toda sua poética da transgressão.

O culto à erudição e à originalidade na poética de Augusto dos Anjos

Mesmo reconhecendo Augusto dos Anjos como poeta pré-modernista, Alfredo Bosi
(1979: 293-326) tal qual Afrânio Coutinho incorreu no deslize de classificá-lo como
simbolista21 em seu História Concisa da Literatura Brasileira, respaldando-se em seus
“Caracteres Gerais”22 oriundos da Europa e em especial França (In: Bosi, 1979: 300).
Apesar da persistência teórica de Alfredo Bosi (1978: 300) em querer traçar as
características do Simbolismo brasileiro23, contemplando assim a poesia do Eu e seu poeta
Augusto dos Anjos como possíveis representantes desta escola, também, por meio do
neoparnasianismo, segundo Afrânio Coutinho, só consegue aumentar mais ainda o destaque
pra Cruz e Sousa24. Haja vista que este poeta sim é quem melhor representa o Simbolismo
brasileiro, tendo inclusive dado mais ênfase e rigor maior aos temas tanáticos em sua poesia
do que o próprio Augusto dos Anjos25, que faz isso apenas na superfície de seus versos. Posto

21
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais – O Simbolismo no Brasil” In: História concisa
da literatura brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, p. 300. Em relação à opinião crítica sobre Augusto simbolista
o autor assim se refere: “O poeta, inserindo-se cada vez menos na teia da vida social, faz do exercício da arte a
sua única missão e, no limite, um sacerdócio. A rigor, o caso brasileiro nada tem de excepcional e ilustra uma
tendência formalizante pela qual o estilista Flaubert é o melhor precursor do hermético Mallarmé, o neoclássico
Carducci daria lições ao decadente D’Annunzio; em suma, o Simbolismo, como técnica, é o sucedâneo fatal do
Parnasianismo.”
22
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais” In: História concisa da literatura brasileira.
2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 293-298.
23
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Caracteres Gerais – O Simbolismo no Brasil” In: História concisa
da literatura brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 298-301.
24
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: O Simbolismo no Brasil” In: História concisa da literatura
brasileira. 2ª ed., São Paulo, Cultrix, p. 300. Eis a opinião do crítico em torno desta questão: “O divisor de águas
acompanha, como já vimos, a passagem da tônica, no nível das intenções: do objeto, nos parnasianos, para o
sujeito, nos decadentes, com tôda a seqüela de antíteses verbais: matéria-espírito; real-ideal; profano-sagrado;
racional-emotivo... Mas, se pusermos entre parênteses as veleidades dos simbolistas de realizarem, através da
arte, um projeto metafísico; e se atentarmos só para a sua concreta atualização verbal, voltaremos à faixa comum
do “estilismo” onde se encontram com os parnasianos.// Há, por outro lado, uma diferenciação temática no
interior do Simbolismo brasileiro: a vertente que teve Cruz e Sousa por modêlo tendia a transfigurar a condição
humana e dar-lhe horizontes transcendentais capazes de redimir-lhe os duros contrastes; já a que se aproximou
de Alphonsus, e preferia Verlaine a Baudelaire, escolheu penas as cadências elegíacas e fêz da morte objeto de
uma liturgia cheia de sombras e sons lamentosos. Quanto aos ‘crepusculares’, distantes de ambas, preferiram
esboçar breves quadros de sabor intimista: mas a sua contribuição ao verso brasileiro não foi pequena, pois
abafaram o pedal das excessivas sonoridades a que se haviam acostumado os imitadores de Cruz e Sousa.”
25
BOSI, Alfredo (1979). “VI - O Simbolismo: Augusto dos Anjos” In: História concisa da literatura brasileira.
2ª ed., São Paulo, Cultrix, pp. 321-326.
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que a sua temática é anárquica, transgressora e independente como afirma, metaforicamente,


em “Leito de Procusto”, no seu poema “Leitinho Quente”26.
E por que “Leito de Procusto”? Porque se o corpo não coubesse no leito, seriam
cortados os membros que sobrassem, fossem eles as pernas ou a cabeça. Nenhuma dessas
possibilidades Augusto dos Anjos aceitava cortá-las em sua obra. Prova disso é que, ainda em
vida, financiou, sob os auspícios econômicos de parceria com seu irmão Odilon dos Anjos, a
primeira edição do Eu. Posto, ainda, que as suas ideias quanto às escolas literárias eram de
irreverência, pois rompia radicalmente com os cânones de sua época. Em suma, era assim
mesmo como via e entendia as escolas, tanto que reafirmou sempre tais posições.

O culto à performance do dandy na poética Eu de Augusto dos Anjos

Dessa maneira há em Augusto dos Anjos também um lado dandy baudelaireano, pois,
mesmo descendente de família da aristocracia dos senhores de engenho do Nordeste, vem
cantar em verso de estilo do dandismo de Baudelaire, “...o último feixe de luz radiante do
orgulho humano”27, quando em seu poema “A Luva”28 provoca tamanha revolução própria

26
VASCONCELOS, Montgomery José de (1996). “Leitinho Quente - Capítulo IV - A Poética Carnavalizada de
Augusto dos Anjos” In: A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. Ilustrações da capa e miolo de Valéria
Ottoni; Apresentação de Nilce Rangel Del Rio; Prefácio e Pósfácio nas orelhas das capas frontal anterior e pós
frontal posterior - equivalentes às capas e contracapas 2, 3 e 4 - por Gilberto Mendonça Teles; Revisão de Dida
Bessana; Conselho editorial: Eduardo Peñuela Cañizal, Willi Bolle, Norval Baitello Junior, Carlos Gardin,
Lucrécia D’Aléssio Ferrara, Ivan Bystrina, Salma T. Muchail, Ubiratan D’Ambrósio; Dados de Catalogação na
Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil) 96-1042 CDD-869.9109 ISBN 85-
85596-59-7 1ª ed., maio de 1996, Selo Universidade: 28, ANNABLUMEeditora.comunicação, Rua Ferreira de
Araújo, 359, Pinheiros, 05428-000, São Paulo-SP, Brasil, pp. 242-243. A questão fundamental aqui nesta
situação é revelar este poema que atribuo com plena convicção ser de Augusto dos Anjos, em desabafo,
respondendo aos maus-tratos que sofrera daqueles seus algozes perseguidores, lacaios do poder paraibano, por
ocasião da administração do seu maior perseguidor, Presidente João Machado, outrora seu amigo fiel e leal. Daí
que transcrevo ainda aqui a sua sátira mordaz neste desabafo ferindo suscetibilidades duma poética da
transgressão de Augusto dos Anjos contra o caos da perseguição empreendida de forma feroz pelos seus algozes
que lhe levaram a vida prematuramente. Era Professor Concursado do Liceu Paraibano e pleiteava apenas uma
Licença a fim de ir ao Rio de Janeiro publicar o seu Primeiro e Único Livro de Poesias Eu: “O illustre
presidente/ Por causa do nosso ‘Estado’/ Agora constantemente/ Anda muito aperriado.// Por da cá aquella palha/
Que o vento levante a esmo/ Elle grita, berra, ralha/ Com tudo e consigo mesmo.// Quando hoje sem detença/
Dos Anjos Dr. Augusto/ Foi pedir-lhe uma licença/ Quasi que morre de susto.// Pois que o Dr. Rocambolle,/
Fazendo o maior berreiro,/ Respondeu-lhe ‘não me amolle’/ Se queixe a meu carcereiro.// W. Estado da
Parahyba, sábado, 27 de agosto de 1910.”
27
BAUDELAIRE, Charles. Le Peintre de la vie moderne, Paris, France, loc. cit., pp.73-4. In: HAUSER, Arnold
[1892-] (1980-1982). “Sétima Parte – Naturalismo e Impressionismo/IV Capítulo - O Impressionismo: ‘O
‘dandismo’. – ‘O simbolismo’.” In: História Social da Literatura e da Arte. 3ª ed., Mestre Jou, São Paulo, Tomo
II, 1982, p.1087.
28
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Rio, Aguilar, pp. 485-486.
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duma poética da transgressão por meio de sua impressão formulada assim: “— A maldade do
Mundo é muito grande,/Mas meu orgulho inda é maior do que ela!//”29
Quem imagina combater maldade com orgulho, um dos sete pecados capitais, só
mesmo o poeta Augusto dos Anjos, original por levar a bom termo tal questão a sua poesia. E
se autodefine como palhaço e maldito nesses versos:

“Riam de mim os monstros zombeteiros.


Trabalharei assim dias inteiros,
Sem ter uma alma só que me idolatre...
Tenha a sorte de Cícero proscrito
Ou morra embora, trágico e maldito,
Como Camões morrendo sobre um catre! (...)
Ruja a boca danada da profana
Coorte dos homens, com o seu grande grito,
Que meu orgulho do alto do Infinito
Suplantará a própria espécie humana!”30

Eis porque dentre tantas relações e denominações por meio de seus paradoxos e
paradigmas semióticos ainda é chamado de o “Baudelaire paraibano”31.
32
Contudo, é em “Monólogo de uma Sombra” , outro poema, que lhe ocorre o maior
prefixo de poética da transgressão, pois além de abrir o livro Eu revela-se-me o tempo no
verso “E a miséria anatômica da ruga!”33 e se me reafirma que a passagem do século lhe
assusta, em “Poema Negro”34. Lembra-se-me aquele lado de “vidente” seu, ressaltado por
Rimbaud, quando assim pontifica um “diálogo socrático” nesta segunda estrofe por meio de
seus paradoxos e paradigmas semióticos:

“A passagem dos séculos me assombra.


Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?

29
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Rio, Aguilar, p. 485.
30
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “A Luva” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 485-486.
31
NASCIMENTO, F.S. (1990). “Primeira Parte – Apologia de Augusto dos Anjos” In: Apologia de Augusto dos
Anjos e outros estudos. Fortaleza, UFC/Casa de José de Alencar, pp. 17-22.
32
ANJOS, Augusto dos [1884-1914].(1994).“Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 195-200.
33
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p.195.
34
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Poema Negro” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., Org,, notas e atualização Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 286-289.
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35
E parece-me um sonho a realidade.”

Eis aí questões dignas da maiêutica de Sócrates nessa poética da transgressão quando


se impõe como objeto e sujeito.

Culto à originalidade: o modernismo na poética Eu de Augusto dos Anjos

O grotesco e sublime ocorrem-lhe noutro traço original e genial de sua poética da


transgressão como rimar “apodrece” com a letra “S”, nos versos do poema “Monólogo de
uma Sombra”, e o número “7” com “espermacete”, o ‘sêmen de baleia’, no soneto “Perfis
Chaleiras”36, de seu pseudônimo ou heterônimo Zé do Pátio, fato inusitado, mas original,
digno de quaisquer tratados de características do modernismo enquanto escola literária,
embora também a recusou com veemência: “E lembra alto brandão de espermacete.../(...) A
configuração magra de um 7.//”37
Em suma, é poética da transgressão porque mistura gramática e matemática, ciências
humanas com exatas, sociais e biológicas:

“É uma trágica festa emocionante!


A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.”38

É a partir desse poema “Monólogo de Uma Sombra” que se fundamenta o princípio de


sua poética da transgressão, ou quando até cria seu próprio signo e código linguístico por

35
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Poema Negro” – Poesia/Eu In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. Org., notas e atualização Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 286-289.
36
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Perfis Chaleira” – Poesia/Versos de Circunstância In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 501.
Soneto com características do modernismo brasileiro quando cria fato inusitado rimando o número “7” com
“espermacete”, ‘o sêmen da baleia’, conforme atesto no conjunto desses catorze versos decassílabos, outra marca
sua inconfundível, a saber: “O oxigênio eficaz do ar atmosférico,/ O calor e o carbono e o amplo éter são/ Valem
três vezes menos que este Américo/ Augusto dos Anzóis Souza Falcão...// Engraçado, magríssimo, pilhérico,/
Quando recita os versos do Tristão/ Fica exaltado como um doente histérico/ Sofrendo ataques de alucinação.//
Possui claudicações de peru manco,/ Assina no ‘Croquis’ Rapaz de Branco/ E lembra alto brandão de
espermacete...// Anda escrevendo agora mesmo um poema/ E há no seu corpo igual a um corpo de ema/ A
configuração magra de um 7.//”. Zé do Pátio é quem assina como pseudônimo, heterônimo ou quaisquer
“múltiplas identificações” do poeta Augusto dos Anjos.
37
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Perfis Chaleira” – Poesia/Versos de Circunstância In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 501.
38
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Monólogo de Uma Sombra” – Poesia/Eu In: Obra completa:
volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 197.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 504

meio do neologismo “Flordelisados”39 no soneto decassílabo “Régio”40. Imagino ser verbo no


particípio plural derivado do substantivo composto flor-de-lis. Recurso explorado após seis
décadas por Caetano Veloso, um Augusto dos Anjos leve, suave, quando bebe na fonte
anjelina e torna substantivos próprios em verbos, como por exemplo Djavan pra “Djavanear”;
Caetano a “Caetanear”. E isto é modernismo, transgressivo e original de Augusto:

“No baldaquino a orquestra real se apresta


E o áureo dossel finge um relevo santo...
— Bissos egípcios d’alto gosto, a um canto,
Flordelisados de nelumbo e giesta.”41

Essas características vêm à tona nos seus versos que se traduzem numa poética da
transgressão com manifestação criativa, independente de opção por quaisquer escolas que se
venha ou não classificá-lo ou rotulá-lo.

Culto à escola do decadentismo na poética Eu de Augusto dos Anjos

Eis porque Arnold Hauser conclui suas observações em torno do Decadentismo e


Dandismo europeus, coincidindo com a visão temática dos decadentes42 de Mario Praz (1996:
179-264) nos ensaios “23. A mulher fatal swinburniana na Rapsódia lírica de E. Nencioni”.
“Os temas decadentes vingaram pouco na Itália.” Praz (1996: 227-231) e “30. O tipo
de Mademoiselle Bistouri na poesia decadente. A evasão humorística: Laforgue.” Mario Praz
(1996: 247-249) do Capítulo quarto “A Bela Dama Sem Misericórdia” de sua obra A Carne, A
Morte e O Diabo na Literatura Romântica. Daí adiante torna-se mais preciso quando trata
sobre esta questão abrangente da Decadência43 como influência acentuada aos autores,
críticos, escritores e poetas da Europa. Aqui no Brasil, só Augusto dos Anjos seria uma

39
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
40
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
41
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Régio” – Poesia/Poemas Esquecidos In: Obra completa: volume
único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. tex. e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, p. 442.
42
PRAZ, Mario (1996). “Capítulo quarto – A Bela Dama Sem Misericórdia.” In: A carne, a morte e o diabo na
literatura romântica. Tradução de Philadelpho Menezes da 2ª ed., italiana La carne, la morte e il diavolo nella
letteratura romantica, Campinas, Editora da Unicamp, pp.179-264.
43
PRAZ, Mario (1996). “Capítulo quinto – Bizâncio.” In: A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.
Campinas, Editora da Unicamp, pp. 265-379.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 505

representação original do Decadentismo, a ponto de merecer filme44 de Carlos Reichenbach,


pondo-o ao lado de Cesário Verde numa parceria poética impecável em Alma Corsária 45.
Influência essa de cunho europeu, mas intercontinental, tal qual ocorre com Baudelaire
e outros da literatura universal, descritos por Praz (1996: 265-379) no Capítulo quinto
“Bizâncio”, do seu A Carne, A Morte e O Diabo na Literatura Romântica. Tais estudos em
muito vêm aproximar Augusto dos Anjos como se fosse um possível representante do
Decadentismo Literário Brasileiro, caso houvesse tal correspondência. Mas é consabido que
essa escola decadentista jamais mereceu um conjunto de ensaio crítico na Literatura
Brasileira, o que em muito viria contemplar a poética da transgressão de Augusto dos Anjos.

Culto à corrupção do MEC/UFMS por meio da poética Eu anjelina

Outro fato curioso que me intriga é por que a poética da transgressão anjelina sequer
faz parte da grade curricular oficial na rede de ensino público nacional? Pior, é consabido
sequer pensá-la nas instituições educacionais particulares. É como se ele fosse além de
maldito, proibido, discriminado e excluído, agora, no milênio terceiro. Até quando a
corrupção do MEC46 perseguirá o excluído Augusto dos Anjos? Daí por que é pertinente a
denúncia sobre tal corrupção47 grassando no MEC de há muitos anos quando o Professor
Napoleão Mendes de Almeida (1997: 3-7) faz nestes termos particulares seus:

44
REICHENBACH, Carlos (1993/1994). Alma corsária. Película cinematográfica que tem como foco narrativo
a paráfrase poética entre Augusto dos Anjos e Cesário Verde, mostrando os universos díspares de ambos: um
brasileiro e outro português, muito embora inclua neles fatos e relações congêneres. São Paulo. Alma Corsária
trata-se de película cinematográfica originalmente produzida e rodada em longa metragem, que obteve prêmios
de Melhor Filme no 26º Festival de Brasília (Juri Oficial e Prêmio da Crítica); Melhor Diretor & Melhor Roteiro
(Carlos Reichenbach) e Melhor Montagem (Cristina Amaral); Prêmio APCA: Melhor Filme de 1994; Prêmio
SESC “Os Melhores do Ano”: Melhor Filme & Melhor Diretor (Prêmio dos Críticos); Votado pela Associação
dos Críticos do Rio de Janeiro como um dos 10 melhores filmes de 94; Festivais Internacionais: Pesaro, London,
Miami, Chicago Latino, Montevideo, London Latino, Tübbigen; Prêmio Internacional: 30 th Pesaro Film festival
“Premio Del Trentennale” (Melhor Filme), 1994.
45
REICHENBACH, Carlos (1995). Alma corsária. Trata-se agora de sua reedição em Película cinematográfica
pra Vídeo que, ainda, tem como foco narrativo a paráfrase poética entre Augusto dos Anjos e Cesário Verde,
mostrando os universos díspares de ambos: um brasileiro e outro português, muito embora inclua neles fatos e
relações congêneres. Edição realizada no Rio de Janeiro pela Empresa Sagres Cinema, Televisão, Vídeo, já em
Produção de 1995 à Videoteca.
46
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, pp. 3-7. “De tal monta foram esses e outros fatos, que chegamos à triste
conclusão de que era uma falsidade o que estava na portaria que designava uns tantos professores para estudo e
proposição do projeto; ‘um dos empecilhos maiores, se não o maior, à eficiência do ensino da língua portuguesa
tem residido na complexidade e falta de padronização da nomenclatura gramatical em uso nas escolas e na
literatura didática’.” (Napoleão Mendes de Almeida, 1997:5).
47
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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“...A gramática do nosso idioma, por força de simples portaria (publicada no


Diário Oficial de 11 de maio de 1959), sofreu modificações já na
terminologia, já na divisão, já na própria conceituação de fenômenos
lingüísticos. Tal qual acontecera com a ortografia — que após ter vivido
vinte anos ao capricho de portarias e de acordos só por um passe de mágica,
dado por interesse comercial muito antes que educacional, veio a tornar-se
oficial — a nomenclatura gramatical entrou em cena em nossa terra, num
palco em que se viam os mesmos ratos de ministério de outras reformas
anteriores. Se assim não foi, considerem-se por ora estes dois fatos: dois
meses antes de publicada no Diário Oficial essa portaria, já se encontravam a
venda livros de acordo com ela; da autoria de um dos elementos da comissão
elaboradora da reforma, um livro trazia o mesmo título de tradicional
48
gramática, despudoradamente antecedido do adjetivo ‘moderna’.”

Tais considerações relevantes do renomado Professor Napoleão Mendes de Almeida


(1997: 5) fazem com que passemos a refletir sobre a Educação Nacional com ética e maior
posicionamento político, social, econômico e filosófico. Embora outrora, na prosa anjelina
haja já registros radicais de denúncias sobre corrupções com tamanho teor e nessas mesmas
proporções. É como assim deixa claro o poeta Augusto dos Anjos em sua “Crônica
49
Paudarquense” , quando bem antes do renomado Professor Napoleão Mendes de Almeida
(1997: 5) já denunciava corrupções, irregularidades, injustiça, exclusão social e perseguição
no país, deixando-nos transparente uma tese mais de sociologia do que de literatura ou
comunicação e semiótica sobre Brasil, o signo da corrupção:

“...O nosso amor extremo e desinteressado a esta Pátria miserável, por cuja
felicidade nos damos gostosamente em sacrifício, dispensa para a nossa
defesa o auxílio dos circunlóquios.// (...) Mas a Arte, nesta pátria de bonzos,

18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, pp. 3-7. “...Qual o consciente professor de português que ignora repousar,
até hoje, no ridículo número de aulas de gramática a verdadeira e fundamental causa da deficiência do seu
ensino? Nenhum país culto existe em que o vernáculo não seja ensinado diariamente; na Itália e na Alemanha
Ocidental há oito horas semanais de idioma pátrio.” (Napoleão Mendes de Almeida, 1997:5).
48
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1997). “Prefácio” In: Gramática metódica da Língua Portuguesa: de
acordo com a nomenclatura gramatical brasileira e com as inovações de acentuação da lei Nº 5.765, de
18/12/71. 41ª ed., São Paulo, Saraiva, p.5.
49
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., fix. texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 586-
589. A fim de objetivar o exemplo de Augusto dos Anjos sobre Brasil: o signo da corrupção antes do gramático
Napoleão Mendes de Almeida, destaco ainda alguns trechos desta sua “Crônica Paudarquense”: “Digam o que
quiserem os adeptos do otimismo incondicional, acostumados por uma aberração de óptica a ver perspectivas
régias em simples moinhos de vento, qual o inimitável herói, concebido por Cervantes, há e houve sempre
alguma coisa de cavalo tísico dentro do arcabouço da civilização brasileira.// (...) A Arte começou, no Egito, por
uma manifestação ampla de liberdade, abeberada na grande fonte real, de onde, em torrentes harmoniosas, se
escapam as verdades eternas da Natureza.// (...) Aí deparareis, o verdadeiro substractum da Arte, o desapego
insolente às tabuadas imutáveis, quebrando a intransigência dos moldes absolutos, e acompanhando a marcha
rítmica do progredir indefinido.// (...) E a alucinação é completa!// (...) É como se atirassem barras de ferro sobre
os nossos peitos chagados.// O luar fulge, uma auréola. Mas estão rindo! De quem serão essas gargalhadas? De
certo, não são humanas. Os homens não gargalham assim! E, saímos, em agonia.” (Augusto dos Anjos, Pau
d'Arco — 1905. O Comércio, 12-10-1905.).
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agarrados às fórmulas sem elastério de um ritual chinês, rolou, de há muito,


na sarjeta podre do desprestígio popular!// No Brasil, até, é balda
ignominiosa constituir-se alguém artista.// (...) Mirai-vos neste exemplo,
Brasileiros!// (...) Segui, Brasileiros, a rota, cujas fulgurações vos
mostraremos!// (...) Estudai com argúcia socrática a formação superior do
espírito helênico. (...) Mas não vivei somente para a Arte, filhos da terra
brasileira!// Vivei também para a Ciência, prestando-lhe a dedicação dos
cuidados intensos e a oferenda amarga das vossas vigílias, sem todavia, no
atrito das colisões filosóficas, e na argamassa instável dos sistemas
discordantes, chegardes ao sacrilégio extremo de cuspir com bocas de
monstro à face de vosso Deus!// A Indústria, com os seus ramos precípuos
de extração, de manufatura, reduzidos por vossa negligência à cotação de
tabelas inferiores, no tumulto das praças estrangeiras; a Política, no sentido
mais amplo deste vocábulo, suplantando no predomínio do bem coletivo o
interesse do partidarismo, e a praxe monótona das liturgias de encomenda,
entoadas em monocórdio, na casinha de todos os governos; a Religião,
traduzindo a súmula do verdadeiro ideal de Cristo, — tal em síntese, o
complexo de outras tantas engrenagens civilizadoras que estão a requerer de
vossa parte igual dispêndio de atenção e a eficácia perene de um
devotamento incondicional.// (...) E porque vamos pensando nessas coisas
tristes, assoma-nos à idéia torturada, a imagem do Brasil arquejante!// (...)
No silêncio da Noite, rindo da miséria brasileira, a mãe da lua continua o
escárnio!//”(Augusto dos Anjos, Pau d'Arco — 1905. O Comércio,12-10-
1905.) 50.

Daí que há um mar de corrupção permeando a pesquisa da cordialidade na


Universidade, em que já se nos apresentam por demais normal a formação de quadrilha e
crime organizado, representados pelos famigerados “clube do bolinha” e “clube da lulusinha”.
Atuam de forma cínica e criminosa à sociedade, quem lhes mantêm por meio do erário
público. Razão pela qual desde 1996 empreendo denúncia de corrupção contra a Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e Governo de Mato Grosso do Sul, envolvidos no
desvio de 70 bilhões de reais, oriundos da OEA, ONU, BID e FMI. Organizações estas que
em 1987 iniciaram financiamento ao Projeto Base do Pantanal à ecologia.

Considerações finais

Minhas considerações finais ainda vão como um dos maiores reconhecimentos de


crítica e estética à realização do II CONALI – Congresso Nacional de Literatura – “Augusto
dos Anjos, a literatura e o tempo: cem anos de encantamento” de 16 a 19/11/2014 e I
CONALI – Congresso Nacional de Literatura – Eu: cem anos de poesia, de 3 a 6-6-2012,
Campus I, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, porque trouxe à luz da

50
ANJOS, Augusto dos [1884-1914]. (1994). “Crônica Paudarquense” – Prosa/Prosa Dispersa In: Obra
completa: volume único/Augusto dos Anjos. 1ª ed., org., texto e notas Alexei Bueno, Aguilar, Rio, pp. 586-589.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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comunidade científica participante uma convicção aos pesquisadores da poética de Augusto


dos Anjos, a saber: a consulta imprescindível à fortuna crítica atualizada e apresentada na
programação desses eventos relevantes e merecedores de citações, com destaque às pesquisas
desenvolvidas por Socorro Aragão, Neide Santos, Ana Isabel, Marinalva Freire e cerca de
1200 pesquisadores assinando 400 pesquisas apresentadas.
Então, surge a questão fundamental: como realizar uma pesquisa de tese original e
pura em meio a tanta podridão intelectual humana, decomposição intelectual em pseudos
mestres, verdadeiros desviadores do erário público, principalmente quando se aboletam nos
cargos altos e de confiança do Estado, propriedade exclusiva da cidadania democrática, MEC,
CAPES, CNPq, Fapesp, Cebrap, IFES/UFMS, IES e Administrativos: coordenadores, chefe,
diretores, pró-reitores, vice-reitores, reitores e ministro da educação? Ministro este que
defende um “cavalo tísico” de batalha em nossa “civilização brasileira” atacando mortalmente
os excluídos à educação superior e aumentando “Dados da segregação”51 quando vem a
público teses suas como: “MEC condena cota para negros”52 e “Diversidade na
universidade”53, endividando ainda mais a nação com empréstimos aviltantes na ordem de
US$ 9 milhões, a saber: US$ 5 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
e US$ 4 milhões que de imediato exigiu tal contrapartida do nosso Tesouro Nacional,
fragilizando assim ainda mais, também, a nossa Soberania Nacional?
Mas o que cabe ao erário público? Este só recebe em troca uma traição à coisa pública,
por meio duma prática que se instaura sob os auspícios duma filosofia cruel e nefasta à
cidadania democrática que o vulgo assim expressa: “quem tá de dentro não sai e quem tá de
fora não entra”. Razão pela qual, entre tantos episódios degradantes como este, certo Chefe
Maior de Estado da França ter afirmado, quando aqui chegou, que “este não é um país sério”.
Nem é à-toa, repito, que Aristóteles tenha afirmado outrora, na Grécia Antiga, que “Abaixo da
Lua só existe corrupção”.
Enfim, será que tudo no Brasil naufraga se há ignorância à transgressão? Inclusive à

51
PIRES, Luciano (2002). “Uma distância secular” In: Jornal do Brasil. Fundado em 9 de abril de 1891, Rio de
Janeiro, Ano CXI, Nº 296, www.jb.com.br, Quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, Brasil, p. 4. Ressalte-se que o
autor desta matéria nos fornece estatística sobre “Dados da segregação”, tendo como Fonte IBGE/IPEA, a saber:
45% da população brasileira é negra; Negros correspondem a 70% dos miseráveis; 51% das crianças negras até 6
anos no Rio de Janeiro integram a faixa de pobreza; Jovens negros permanecem, em média, 2,3 anos a menos na
escola que os brancos; Apenas 2% dos negros entram na universidade; Sete em cada dez negros não completam
o ensino fundamental; A renda dos negros é 2,5 vezes menor que a dos brancos.
52
KLINGL, Erika (2002). “MEC condena cotas para negros” In: Jornal do Brasil. Fundado em 9 de abril de
1891, Rio de Janeiro, Ano CXI, Nº 296, www.jb.com.br, Quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, Brasil, p. 4.
53
SOUZA, Paulo Renato (2002). “Diversidade na universidade” – Opinião: Tendências/Debates In: Folha de S.
Paulo. São Paulo, A 3, quarta-feira, 30 de janeiro de 2002, p.3.
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transgressão poética, que jamais poderia deixar de ser diferente à cultura, à sociologia, à
psicologia, à biologia e à antropologia do corpo social de nossa civilização brasileira: o povo
brasileiro expresso em verso e prosa, também, na mentalidade e concepção à comemoração
desse Centenário do Encantamento de Augusto dos Anjos?
Por fim, a título de curiosidade sobre a poética da transgressão, há um exemplar do EU
fazendo parte do acervo da Biblioteca da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com
certeza, isso se deve ao fato do uso exacerbado de certos termos científicos que Augusto dos
Anjos utiliza em suas composições quer na poesia quer na prosa. Motivo pelo qual um grupo
de pesquisadores, coordenado pela Profª Socorro Aragão na Paraíba, vem desde o I Conali
produzindo ensaios científicos nessa direção: A Ciência na Poética de Augusto dos Anjos.

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http://www.montgomeryv.blogspot.com
http://www.montgomeryvasconcelos.zip.net
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A MODERNIDADE A PARTIR DE AUGUSTO DOS ANJOS

Roberto Pontes
UFC/Cátedra UNESCO-United Nations University – UNU

– Quem teria sido o inventor da Modernidade?

Se esta pergunta vier a ser respondida por algum egresso de cursos brasileiros de pós-
graduação em Letras, a resposta imediata será: – Charles Baudelaire.
É que nos referidos cursos há um entendimento generalizado de haver sido o poeta de
Les fleurs du mal o definidor do sentido dessa palavra hoje. Para darmos idéia de como tal
compreensão é corrente nos meios acadêmicos, tomemos do prefácio escrito por Agnaldo José
Gonçalves para o livro de Baudelaire organizado e traduzido por Plínio Augusto Coêlho,
intitulado Escritos sobre a arte, publicado conjuntamente pela EDUSP – Editora da
Universidade de São Paulo e a Editora Imaginário, trecho no qual podemos ler:

A obra poética e crítica de Baudelaire representa no desenvolvimento da


história das artes e da literatura uma espécie de ponto de convergência
caracterizado por uma força de sincretismo recuperador da tradição cultural
europeia, transformador dos enfoques cristalizados dessa mesma tradição e
propositor das novas vertentes que passariam a ser denominadas de
modernidade (GONÇALVES, 1991, pp. 12-13).

A entronização do poeta francês como aquele “que se impôs a si mesmo” e, “como


sua”, uma tarefa considerada análoga às vencidas pelo antigo herói grego Hércules, é devida
ao grande fascínio exercido sobre os estudos de pós-graduação no Brasil pela obra de Walter
Benjamin, em especial, do livro Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo (1989)
que reúne ensaios do autor alemão de 1938. O desafio que Baudelaire se impôs foi “dar forma
à modernidade”, assegura o analista crítico da República de Weimar de 1920 (BENJAMIN,
1989, p. 80).
Desse livro do filósofo alemão consta o ensaio “Paris do Segundo Império”, dividido
em três partes: “A Boêmia”, “O Flâneur” e “a Modernidade”, tópicos nos quais ele trata de
esboçar o perfil da Paris oitocentista. A última das três partes sintetiza os índices de
modernidade que Benjamin considera terem sido apreendidos pela extrema sensibilidade
baudelairiana: a. A metáfora marcial da esgrima na luta do poeta pelo domínio da palavra e da
expressão, disputa esta na qual o artista “antes de ser vencido, solta um grito de terror” (Op.
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cit. p. 68); b. A caracterização do tipo urbano parisiense dito “flâneur” que, “no desejo de ver
festeja seu triunfo”, correndo o perigo de se tornar “basbaque” (Op. cit. p. 69); c. O heroísmo
pessoal da renúncia aos bens materiais (Op. cit. p. 71) constituindo-se o herói no “verdadeiro
objeto da modernidade” (Op. cit., p. 73); d. A qualificação heróica conferida aos “pequenos
agricultores”, ao “salteador”, ao “mercenário”, aos “citadinos”, à gente miúda (Op. cit., pp.
72-3); e. O espetáculo da “multidão doentia” (Op. cit., p. 73); f. A analogia estabelecida do
proletário como “lutador escravizado” com o papel desempenhado pelo gladiador quando
exercia seu ofício na antiguidade (Op. cit., p. 74); g. A diminuição do impulso produtivo
humano que leva o indivíduo a refugiar-se na morte “sob o signo do suicídio”, não como
“renúncia”, mas “sim paixão heróica”, “paixão particular à vida moderna” (Op. cit., p. 74-5);
h. A importância conferida à roupa, “esse invólucro do herói moderno” que “carrega sobre os
ombros negros e descarnados o símbolo de uma tristeza eterna [...] Nós todos celebramos
algum enterro.” (Op. cit., p. 76); i. Os “temas da vida privada bem mais heróicos” como os da
vida mundana das existências parisienses desregradas: a dos criminosos, das mulheres
manteúdas, da sagração do “apache na imagem do herói” marginal renegador das “virtudes e
das leis” (Op. cit., p. 77-8), do lesbianismo (Op. cit., p 88), do androginismo da utopia
sansimoniana (Op. cit., p. 89); j. O destaque dado ao trapeiro, para nós lixeiro, o homem que
recolhe detritos, resíduos da urbe: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no
próprio lixo o seu assunto heróico [...] Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos”
(Op. cit., p. 78); m. A ideia do herói moderno fadado à decadência (Op. cit., pp. 79-80); n. A
dialética entre moderno e antigo: “A modernidade assinala uma época; designa, ao mesmo
tempo, a força que age nessa época e que a aproxima da antiguidade” (Op. cit., p. 80); o. A
valorização do passageiro e do efêmero a partir de uma análise feita por Baudelaire da pintura
de Guys: “Por toda a parte buscou a beleza transitória e fugaz de nossa vida presente. O leitor
nos permitiu chamá-la de modernidade” (Op. cit., p. 80, apud); p. O locus terribilis citadino
que desponta na série de poemas de Vitor Hugo intitulada “Ao Arco do Triunfo” e se torna
sugestão decisiva para idéia de modernidade baudelairiana (Op., cit., p. 84), advinda
igualmente da dependência teórica devida a Poe (Op. cit., p. 81) e da crua descrição realizada
por León Daudet da Paris de 1830 (Op. cit., pp. 83-4); q. A associação de grandeza e
indolência reunidas no ser humano, no próprio Baudelaire, a que ele denominou modernidade
(Op. cit., p. 93); r. A valorização heróica do dândi: “Nessa sua última encarnação, o herói
aparece como dândi” (Op. cit., p. 93), consistindo o dandismo no “último brilho do heróico
em tempos de decadência” (Idem); s. O caráter trágico vivido pelos heróis baudelairianos: “o
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herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A modernidade heróica se
revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível” (Op. cit., p. 94); t. O uso das
palavras sacralizadas na lírica tradicional (“uso elevado”) e dessacralizadas (“uso chocante”)
na lírica da modernidade: “As Flores do Mal é o primeiro livro a usar na lírica palavras não só
de proveniência prosaica, mas também urbana” (Op., cit., p. 96).
Eis aí, em síntese, os principais pontos da modernidade compreendida por Baudelaire,
segundo Walter Benjamin. Note-se ser o contexto gerador desse conceito baudelairiano
inteiramente parisiense; seus tipos, heróis e referências dizem respeito a uma realidade e a
uma história europeias relacionadas aos anos de 1800. Entretanto, o conceito de que ora
tratamos é repassado para a América Latina e a América do Sul, para o seu meio acadêmico,
como se nossa realidade não fosse outra, nossa gente não se diferenciasse em nada dos bem-
situados do Quartier Latin.
Na verdade, por trás desse fato há um pressuposto que convém não desvendar para não
macular o “glamour” que ele encerra: Paris, ou qualquer outro lugar, é o centro do mundo, e a
pós-graduação brasileira, sua periferia.
Não pensamos desse modo. Estamos com Antonio Candido ao sentenciar: “Quando a
Europa diz mata, o Brasil diz: esfola!”. Estamos com Roberto Schwartz que bem diagnosticou
essa anomalia no clássico estudo “As ideias fora de lugar”. E recuando mais ainda, estamos
com Órris Soares, prefaciador do EU, em 1919, autor de observação a propósito de seu tempo,
muito válida para o nosso:

Na América do Sul, há uma distância clamorosa entre o homem de letras e o


público. No Brasil, o caso se extrema – insignificante minoria
profundamente culta e um vasto oceano de... Ademais de tudo, entre nós, o
homem de pensamento tem de ser triste porque se educa com livros
estrangeiros, idéias estrangeiras, coisas estrangeiras, e vive num meio ainda
longe de assimilar os frutos das poderosas civilizações (SOARES, 2002, p.
27).

Pensamos que o centro do mundo é aquele onde temos os pés e a consciência crítica.
Portanto, e seguindo este raciocínio, Paris é periferia para nós, de modo que a modernidade
nos termos em que foi pensada por Baudelaire e Walter Benjamin não se aplica ao caso
brasileiro, que deve ser apreciado por outro viés mais consentâneo com nossa realidade.
Após explicitar este entendimento, teceremos algumas considerações sobre a poesia
de Augusto dos Anjos.
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A potente corda dissonante do Eu de Augusto

Nenhum leitor do EU de Augusto dos Anjos pode esquecer o impacto causado pelos
versos do poeta do Engenho Pau D’Arco, reunidos no único livro que dele ficou na nossa
literatura – clássico de leitura obrigatória.
O EU foi construído através de uma linguagem inteiramente diversa daquela até então
empregada no cenário lírico brasileiro, quer por sua temática, quer por sua expressão, em
franca colisão com as preceptivas poéticas do romantismo, do simbolismo e do parnasianismo
afeitas à administração do sentimento contido sempre na medida do verso bem talhado.
O EU representa uma explosão verbal sem precedentes, moldada num léxico até então
inusitado na poesia brasileira e expressa quase que exclusivamente em decassílabos heróicos,
em torno de variações sobre um mesmo tema.
O EU, como bem definiu Lucia Helena em 1977, “é o espaço vital em que se processa
um único Poema, e em que se coloca uma única questão: a experiência literária da gravidade
do existir” (HELENA, 1977, p. 58). Em suas páginas “o poeta transforma-se no verme que
realiza o trabalho fundador de escavar um espaço, artístico, em que a existência possa
manifestar-se pujantemente” (Idem). E diz Lucia Helena mais adiante: “O EU transpõe os
limites do ‘historiar’ e constitui-se a instância em que se projeta a questão instigadora da
criação poética” (Op. cit., p. 59).
Mas é preciso salientar que a poesia de Augusto dos Anjos tanto nos fascina quanto
desconcerta; e desde logo nos vemos imersos no fenômeno estético mais legítimo: “A magia
da palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a compreensão permaneça
desorientada” [...] “Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de
dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. A tensão
dissonante é um objetivo das artes modernas em geral” (FRIEDRICH, 1978, p. 15).
Quem nos afirma isso é Hugo Friedrich, autor do importante livro Estrutura da lírica
moderna (1978), que trabalha com o conceito de dissonância para caracterizar a poesia da
modernidade. E suas palavras ajustam-se à perfeição aos versos dos cinquenta e oito poemas
reunidos no EU, pois ali temos um denso acúmulo de categorias inusuais na poesia então
praticada, como sucedeu em 1870 com Lautreamont ao trazer a seu texto “angústias,
confusões, degradações, trejeitos, domínio da exceção e do extraordinário, obscuridade,
fantasia ardente, o escuro e o sombrio, dilaceração em opostos extremos, inclinação ao Nada”
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(FRIEDRICH, 1978, p. 21), algumas das quais características comuns aos escritos de
Augusto.
E mais adiante, a propósito das características mencionadas, devidas a Lautreamont,
escreve Friedrich: “Insistimos no fato de que elas sempre foram empregadas descritivamente
e não com a finalidade de depreciar. Ou seja, desorientação, dissolução do que é corrente,
ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia
despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento,
modo de ver astigmático, estranhamento” (Op. cit., p. 22). Eis o que vem a ser a dissonância
verificada por Friedrich nos poetas da modernidade, entre os quais incluímos Augusto dos
Anjos por seu tom poderosamente dissonante em relação aos seus confrades europeus e
brasileiros, sendo bastante acrescentar o que sobre sua poesia disse Lucia Helena, que está
entre os melhores leitores de Augusto entre nós: “lido como o dizer do poético, o EU é a mais
forte contestação da cientificidade. O ‘povo subterrâneo’ de que nos fala Augusto dos Anjos é
submetido a um constante movimento de escavação, em que o verme, de elemento corrosivo,
transforma-se em móvel de constituição de um questionamento que faz a autópsia da
‘amaríssima existência’: o fagismo” (HELENA, 1977, p. 57).
Portanto, e sem dúvida, estamos diante da potente corda dissonante do “arrabil” de
Augusto dos Anjos: “lira”, “cítara”, “harpa”, qualquer desses instrumentos que haja o poeta
mencionado na falta de uma guitarra elétrica... inexistente até 1912.
A dissonância ganha espaço na música chamada erudita pelas mãos de Claude
Debussy (1862-1918), mais precisamente em Prélude à l’après-midi d’um faune, escrito entre
1892 e 1894, para orquestra, sobre um poema de Mallarmé. Este prelúdio é uma espécie de
bandeira do impressionismo musical. Com ele Debussy abre um caminho “intensamente
pessoal, rompendo as cadeias da harmonia tradicional através de acordes ‘independentes’,
deixando dissonâncias irresolvidas e fazendo uso da escala de tons inteiros, da escala
pentatônica e dos velhos modos da Igreja” (HORTA, 2001, p. 95).
Mas a dissonância musical de Debussy provinha já daquela ocorrida na pintura, com o
impressionismo, surgido na segunda metade do século XIX, com Édouard Manet e com
Claude Monet em Paris. Esta era a dissonância pictórica das artes plásticas.
Entre nós, a dissonância chega e se afirma com a música popular de 1960. A propósito
nos diz Jomard Muniz de Brito: “Bossa Nova não pode ser negação da música popular
anteriormente realizada no Brasil. Muito pelo contrário: temos raízes, antes de sofrermos
influências mais recentes, do jazz e da música dissonante (BRITO, 1966, p. 122),
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“sofisticação de cantar baixinho, bem desafinado, desafinando bem musicalmente (Op. cit., p.
123); “as dissonâncias, atonalidades e harmonias novas impregnavam o samba” (Op. cit., p.
129).
Este registro musical é feito aqui porque a poesia de Augusto dos Anjos realiza uma
potente dissonância, através do verso, no momento em que sua obra vem a público, razão pela
qual causará tanto impacto e estranhamento no meio literário avesso a tão significativa ruptura
do acorde canônico.
Augusto dos Anjos intuiu a mesma dissonância adotada musicalmente pelo aluno
rebelde do Conservatório de Paris, Debussy, em sua terra, Sapé, Engenho Pau D’Arco,
Paraíba, a partir de 1900, nos versos que compôs.
No capítulo “Augusto dos Anjos: poesia e modernidade”, do livro constante nas
referências in fine, Hildeberto Barbosa Filho afirma que o cânone formal parnasiano, passa,
“na linguagem poética do paraibano, por um processo de formação interna, onde os padrões
métricos, com suas rígidas pausas e acentuações, são radicalmente alterados no sentido de um
ritmo extremamente dissonante” (FILHO, 2014, p. 23). E exemplifica a dissonância em
questão com uma estrofe de “Gemidos da arte”: “Ah! Por que desgraçada contingência/ À
híspida aresta sáxea áspera e abrupta/ Da rocha brava, numa ininterrupta/ Adesão, não prendi
minha existência?!”, chamando atenção em especial para a “sonoridade estranha do segundo
verso” (Op. cit., p. 23). Aponta ainda os “efeitos ásperos da camada fonológica” da poesia
augustiana numa sextilha de “Poema negro”: “E quando vi que aquilo vinha vindo/ Eu fui
caindo como um sol caindo/ De declínio em declínio; e de declínio/ Em declínio, com a gula
de uma fera,/ Quis ver o que era, e quando vi o que era/ Vi que era pó, vi que era
esterquilínio!” (Op. cit., p. 24).
Eis, pois, por meio da argúcia de um dos melhores intérpretes da poesia de Augusto
dos Anjos, a comprovação da dissonância produzida por este poeta em seus versos.

Índices de modernidade colhidos nas páginas do Eu

A intuição da modernidade está presente na obra de Augusto dos Anjos e passa ao


largo daquela que a Europa requer haver apreendido com primazia através de Baudelaire. Na
obra de Augusto, o escrito mais recuado no tempo é o soneto “Mágoas”, datado de 14 de
janeiro de 1900 e publicado em O Comércio a 17 do mesmo mês e ano.
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Este fato é muito significativo porque as primeiras manifestações da chamada


“vanguarda” européia passam a ocorrer no primeiro decênio do século XX, muito depois se
haver sido publicada a parte mais importante da poesia augustiana.
Na verdade, em vários passos da lírica do ilustre sapeense temos exemplos de
procedimentos criativos passíveis de serem consideradas antecipações formais da
“vanguarda” europeia ainda por acontecer, se não bastasse a acentuada melancolia que muitos
já lhe apontaram, a fazer par com a profunda angústia kierkegaardiana de Temor e tremor que
fecundará o existencialismo de todos os matizes no século XX. Em Augusto também temos a
angústia como comoção de todo o finito e a experiência do nada.
O presente trabalho já estava pronto quando chegou às nossas mãos o livro Essa
mecânica nefasta, o EU e os outros (2014), do poeta e crítico paraibano Hildeberto Barbosa
Filho, cujos pontos de vista coincidem com muito do que aqui é possível ler em torno “do
caráter transgressivo que sinaliza, de imediato, para a modernidade na poesia de Augusto dos
Anjos” (FILHO, 2014, p. 18).
Em 1906 escrevia Augusto: “Melancolia! Estende-me a tua asa!” / És a árvore em que
devo reclinar-me.../ Se algum dia o Prazer vier procurar-me/ Dize a este monstro que eu fugi
de casa!” (“Queixas noturnas”). Esta citação corrobora o afirmado no parágrafo anterior, mas
merece ressalva que quem primeiro estudou a melancolia na obra do autor ora analisado foi
Demócrito de Castro e Silva no livro de 1944, Augusto dos Anjos: poeta da morte e da
melancolia (FILHO, 2014, p. 15).
Os índices de modernidade a seguir examinados já tinham sido por mim referidos em
artigo intitulado Poesia & ciência em Augusto dos Anjos: Fundação de uma lírica diversa
(PONTES, 2012, pp. 375-394), originalmente apresentado no I CONALI – Congresso
Nacional de Literatura: “EU, Cem anos de Poesia”, em João Pessoa, 2012.
O primeiro índice de modernidade da poesia de Augusto é sua sobreexcitação da
melancolia, isto é, da angústia lavrada na escrita do EU agônico, ou “cosmo-agônico” da
arguta expressão formulada por Lucia Helena para qualificar a lírica de Augusto dos Anjos.
E esta situação singular captada nas páginas de Augusto vai levar o eu poético a seu
arrimo estético primeiro: a opção pelo feio, valor estético em flagrante oposição ao “belo”,
reinante até o advento do Modernismo em todas as artes, com absoluto predomínio.
A leitura dos versos de Augusto provoca em nossa sensibilidade uma empatia com
imagens que abrigam o feio, o horrível, o asqueroso, o chocante, no plano da linguagem, de
modo a podermos sentir atração pelo oposto ao “belo”, como se ao lermos a poesia de
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Augusto experimentássemos a mesma sensação de quem se vê diante de uma máscara


africana terrificantemente sedutora, sendo este o caso de versos como “Tempo viria, em que,
daquele horrendo/ Caos de corpos orgânicos disformes/ Rebentariam cérebros enormes/
Como bolhas febris de água, fervendo!” (“As cismas do destino”) ou “E a consciência do
sátiro se inferna/ Reconhecendo, bêbedo de sono,/ Na própria ânsia dionisíca de gozo,/ Essa
necessidade de horroroso/ Que é talvez propriedade do carbono!” (“Monólogo de uma
sombra”).
Ora, assim Augusto dos Anjos se opôs aos valores estéticos fundados no “belo”, quer
estes fossem os clássicos, românticos, parnasianos, simbolistas, enfim, aos até então vigentes,
sem exceção, inaugurando com mais eficácia a prática do apoético independentemente de
Charles Baudelaire e de outros êmulos deste que trilharam o mesmo caminho do autor do
Spleen de Paris.
Essa postura radical contrária à prática poética dos contemporâneos conduz Augusto
dos Anjos a audácias textuais como as por ele conseguidas com o emprego de abreviaturas, a
exemplo das constantes nos versos: “Tome, Dr., esta tesoura, e... corte” (“Budismo moderno”)
ou “No cadáver malsão, fazendo um s.” (“Monólogo de uma sombra”).
O mesmo posicionamento ocorre quando do uso de elementos prosaicos da linguagem
cotidiana como em: “Leu tudo, desde o mais prístino mito,/ Por exemplo: o do boi Apis do
Egito” (“Vencido”), onde salta aos olhos um desgastadíssimo “por exemplo” próprio do
discurso corriqueiro; ou em “Madrugada de Treze de janeiro.” (“Sonetos, II”); ou “Não são os
cinco milhões de francos/ Que a Alemanha pediu a Jules Favre...” (“Gemidos de arte”); ou “
Custa 1$200 ao lojista (“Os doentes VIII).
Idêntica posição se mostra em estrofes compostas com frases nominais para
presentificar a paisagem através de “flashes” curtos: “Recife. Ponte Buarque de Macedo”
(“Cismas do destino I”); ou “Meia noite. Ao meu quarto me recolho./ Meu Deus! E este
morcego! E, agora, vede:” (“O morcego”); ou “Número cento e três. Rua Direita.”, (”Noite de
um visionário”); ou “Dorme a casa. O céu dorme. A Árvore dorme.” (“Poema negro”); ou
“Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio.” (“Viagem de um vencido”), versos denotativos,
apenas indicativos, mas dotados de dinamismo expressivo instigador do poético.
A propósito do emprego de frases nominais escreveu Gilberto Mendonça Teles: “a
construção nominal (em que se agrupam o substantivo, o adjetivo, os artigos, os possessivos e
demonstrativos) é muito mais ágil e direta e, portanto, mais adequada a certas formas de
expressão do mundo contemporâneo” (TELES, 1997b, p. 106). Mais adiante, nos diz Teles:
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“A construção nominal é realmente a que mais se adapta ao dinamismo do homem moderno.


[...] “recurso impressionista, a construção nominal é muito mais sintética e incisiva que a
verbal” [...] “Na literatura brasileira, na poesia, principalmente, o uso das construções
nominais alcança maior divulgação com o modernismo, na década de 20” (Op. cit., p. 107); a
do século XX naturalmente.
As considerações de Gilberto nos fazem pensar na ruptura de linguagem, poética e
estilo ocorrida com o EU; na apreensão do dinamismo que a realidade histórica impõe aos
indivíduos no mundo moderno; no uso de um recurso impressionista em voga na “vanguarda”
da modernidade; na antecipação prática de recursos que só apareceriam como uso
generalizado entre os modernistas de 1922.
Índice de modernidade também é a presença do contexto cultural assumidamente
paraibano, nordestino, brasileiro, isto é, de localismo típico da primeira fase do Modernismo
nacional, bem antes desta, sem concessão ao europeísmo em voga à época, se não vejamos:
“A civilização entrou na taba/ Em que ele estava. O gênio de Colombo/ Manchou de
opróbrios a alma do mazombo,/ Cuspiu na cara do morubixaba! // E o índio, por fim, adstrito
à étnica escória,/ Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,/ Esse achincalhamento do
progresso/ Que o anulava na crítica da História!” (“Os doentes IV”). Esses versos de Augusto
estão frontalmente contrapostos aos do indianismo gonçalvino, dando-se o mesmo com o
poema cujo incipit é: “Filho podre de antigos Goitacases,” (“O Lázaro da pátria”) em que o
descendente dos índios referidos é leproso por conta da civilização que lhe foi imposta. O
localismo de Augusto transparece com grande força expressiva quando ele lança mão da
realidade mais próxima para realçar a crua reflexão; “É a transubstanciação de instintos
rudes,/ Imponderabilíssima e impalpável,/ Que anda acima da carne miserável/ Como anda a
garça acima dos açudes!” (“Versos de amor”). Esse localismo pode ainda ser visto em versos
como “Que dentro de minh’alma americana/ Não mais palpite o coração – esta arca,/ Este
relógio trágico que marca/ Todos os atos da tragédia humana! // Seja esta minha queixa
derradeira/ Cantada sobre o túmulo de Orfeu;/ Seja este, enfim, o último canto meu/ Por esta
grande noite brasileira” (“Queixas noturnas”); ou ainda em “Ah! Minha ruína é pior do que a
de Tebas!/ Quisera ser, numa última cobiça,/ A fatia esponjosa de carniça/ Que os corvos
comem sobre as jurubebas!” (“Tristezas de um quarto minguante”).
Mais um índice de modernidade de Augusto dos Anjos aparece nas páginas do EU,
consistente na construção de imagens correspondentes a pelo menos quatro estéticas das
chamadas “vanguardas” dos anos iniciais do século XX: futurismo (1909-12), expressionismo
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(1911-17), cubismo (1909 e 1917) e surrealismo (1924). As datas se referem aos principais
manifestos.
O futurismo, manifestado por Felipo Tomaso Marinetti inicialmente em 1909, é
antecipado pelo poeta paraibano no “Poema negro” em versos assim: “A passagem dos
séculos me assombra./ Para onde irá correndo minha sombra/ Nesse cavalo de eletricidade?!”,
ou assim, em “A luva”, poema de 1905: “– O pensamento é uma locomotiva/ Tem a grandeza
de uma força viva/ Correndo sem cessar para o Progresso.”, ou como nesses versos de “Aos
meus filhos”: “Vulcão da bioquímica fogueira” [...], “Expressões do universo radioativo, /
Íons emanados do meu próprio ideal”.
Os versos transcritos são os de um eu poético aderido às conquistas tecnológicas do
momento da escrita: a eletricidade que move qualquer meio de transporte, a locomotiva que
simboliza a força e o progresso – com maiúscula –, a bioquímica, o universo radioativo e os
íons, numa adesão irrestrita à nova feição dada ao real através da ciência.
E no soneto “Guerra” ficamos diante da aceitação deste fato social adverso à sã
convivência humana; mas, dentro da perspectiva futurista, necessário, porque: “É a Natureza
que, no seu arcano,/ Precisa de encharcar-se em sangue humano/ Para mostrar ao homem que
está viva!”, a coincidir plenamente com a apologia à guerra e à iconoclastia apregoadas pela
insânia de Marinetti, tempos depois.
Augusto dos Anjos igualmente antecipa o cubismo quando escreve em “Insânia de um
simples”: “Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho/ De um delta humilde, apodrecer
sozinho/ No silêncio de minha pequenez!”. O cubismo é de 1913, a edição princeps do EU é
de 1912 e seu autor falece em novembro de 1914. O fato é que em 1913 o termo cubismo foi
inicialmente aplicado à pintura, passando em seguida a “designar um tipo de poesia em que a
realidade era fracionada e expressa através de planos superpostos e simultâneos” (TELES,
1997, p. 114); isso correspondia à decomposição da realidade em figuras geométricas
praticada por Picasso, Braque, Picabia, Delaunay, Fernand Léger, Mondrian e Juan Gris
principais representantes nas artes plásticas dessa estética vanguardista. Estes comentários
esclarecem bem, assim penso, os versos dados de “Insânia de um simples”.
Mas a geometrização pré-cubista augustiana prossegue em “Contrastes” onde se pode
ler: “O ângulo obtuso, e o ângulo reto,/ Uma feição humana e outra divina”, espécie de esboço
de retrato traçado com linhas, sem cores, mas totalmente diverso, absolutamente novo, na
escrita do começo do século XX.
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Em “Tristezas de um quarto minguante” Augusto nos dá duas pérolas cubistas “avant


la lettre”, pois esse poema é de 1907. A primeira: “Do observatório em que eu estou situado/
A lua magra, quando a noite cresce,/ Vista, através do vidro azul, parece/ Um paralelepípedo
quebrado!”. Nesses versos, além do plano distanciado de observação do eu poético, há o
destaque do amarelo implícito da lua filtrado pelo vidro azul, gerando evidente desfocamento
geométrico que explode na inusitada imagem do astro noturno associado a um paralelepípedo
partido, de fato uma surpreendente construção verbal. A segunda: “A luz do quarto
diminuindo o brilho/ Segue todas as fases de um eclipse.../ Começo a ver coisas de
Apocalipse/ No triângulo escaleno do ladrilho!”. Na semi-escuridão o eu poético percebe a
luz mortiça com a luminosidade e o modo geométrico de ser do eclipse. Embora sua
percepção se onirise apocalipticamente, a realidade geométrica do ladrilho, isto é, uma forma
superposta, o mantém preso ao real, realizando-se assim outra inesperada construção verbal
do autor do EU.
No atinente ao surrealismo, a antecipação augustiana é ainda mais notável porque
mais antecipatória, pois esta corrente estética só advirá com Breton em 1924, dez anos após
falecido o autor de “Os doentes, II”, em cuja última estrofe lemos: “Meu ser estacionava,
olhando os campos/ Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos/ Reduziam os Céus sérios e
rudes/ A uma epiderme cheia de sarampos!”. Esta imagem obtida por Augusto dos Anjos,
conserva expressa a relação entre os elementos reais e abstratos que a compõem, é insólita e
se conta no repertório das deformações tão ao gosto dos surrealistas.
Aliás, outra passagem onde se impõe o poder deformante surreal consta no corpo de
“Tristezas de um quarto minguante”, nos versos seguintes: “Aumentam-se-me então os
grandes medos./ O hemisfério lunar se ergue e se abaixa/ Num desenvolvimento de borracha,/
Variando à ação mecânica dos dedos!”. O clima transmitido é ímpar. Algo semelhante ao
terrífico encontrável nos contos de Edgar Allan Poe, qualquer coisa similar ao célebre relógio
deformado de Salvador Dali.
O último índice estético de modernidade na obra de Augusto dos Anjos a ser aqui
abordado é o expressionismo, o qual tem sido muito apontado nas páginas do EU. Conforme
Gilberto Mendonça Teles, o expressionismo foi analisado numa apreciação decisiva para o
movimento em 1911, a partir de quadros de Cézanne, Van Gogh e Matisse por W. Warringer,
nas páginas da revista Der Sturm (TELES, 1997, p. 106), um ano antes da primeira edição do
único livro de Augusto, tendo o termo se popularizado por volta de 1914, quando o poeta
paraibano falece. “O expressionismo seria o primado da personalidade humana, com as forças
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obscuras da alma destruindo a superfície da lógica” (TELES, idem), sintetiza o autor de


Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. E o expressionismo, como nos faz ver Hans
Sedlmayr, “não é outra coisa senão a trágica nostalgia pelo lugar perdido” (SEDLMAYR,
1955, p. 87). Posto isto, acrescentemos, pensando na obra de Van Gogh, e relembrando o que
dissemos páginas antes quanto à angústia existencial de raiz kirkegaerdiana, que o
expressionismo é, sem trocadilho, a expressão retorcida de um eu ferreteado por profunda
angústia, por incomensurável melancolia. Estamos a lembrar agora do autorretrato de Van
Gogh ou do seu famoso quadro “Campo de trigo”. E Hildeberto Barbosa Filho se pronuncia
do seguinte modo a respeito da poesia de Augusto dos Anjos: “o universo que surge de sua
linguagem, aparece deformado, roto, hediondo, visceral, exposto em frenesi de decomposição,
instaurando uma visão como que expressionista que, a seu turno, viabiliza um corte na visão
harmônica da lírica tradicional” (FILHO, 2014, p. 26).
Dá, portanto, para estabelecer a seguir um paralelo com versos de Augusto como
estes: “Asa de corvos carniceiros, asa/ De mau agouro que, nos doze meses,/ Cobre às vezes o
espaço e cobre às vezes/ O telhado de nossa própria casa...” (“Asa de corvo”); “Ah! Minha
ruína é pior do que a de Tebas!/ Quisera ser, numa última cobiça,/ A fatia esponjosa de
carniça/ Que os corvos comem sobre as jurubebas!” (“Tristezas de um quarto minguante”);
“Abro na treva os olhos quase cegos. / Que mão sinistra e desgraçada encheu / Os olhos tristes
que meu Pai me deu / De alfinetes, de agulhas e de pregos?” (“Mistérios de um fósforo”) ;
“– Era a estrangulação, sem retumbância,/ Da multimilenária dissonância/ Que as harmonias
siderais invade...” (“Louvor à unidade”); “Quanto me dói no cérebro esta sonda!/ Ah!
Certamente eu sou a mais hedionda/ Generalização do Desconforto... // Eu sou aquele que
ficou sozinho/ Cantando sobre os ossos do caminho/ A poesia de tudo o que é morto!” (“O
poeta do hediondo”); “Na canonização emocionante,/ Da dor humana, sou maior que Dante”
(“Minha finalidade”); “Na velhice automática e na infância,/ (Hoje, ontem, amanhã e em
qualquer era)/ Minha hibridez é a súmula sincera/ Das defetividades da Substância.”
(“Aberração”); “E eu, somente eu, hei de ficar trancado/ Na noite aterradora de mim mesmo!”
(“Trevas”).
Todos os versos exemplificativos deste último índice, isto é, do expressionismo
precursor augustiano trazem em si o eu poético retorcido, acossado pela angústia e a
melancolia típicas do ser humano do início do século XX, mas com raízes no século anterior e
que poderia, como pôde aflorar no caso de Augusto, neste lugar do planeta chamado Nordeste
do Brasil.
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A expressão deste retorcimento do eu poético consumou a dissonância que se fez


linguagem poética impactante no tempo em que foi elaborada, permanecendo até os dias em
curso como testemunho de uma modernidade não europeia, e sim brasileira, a partir de
Augusto dos Anjos, “il miglior fabbro”, para reverenciá-lo com maior honra no ano do
centenário de seu falecimento, com a mesma expressão usada por Dante Alighieri para
dignificar a obra do poeta provençal Arnaut Daniel, de fins do século XII, por quem o autor
da Divina comédia nutria ardorosa admiração.
Responda agora, caro leitor, a questão proposta de início.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo: Martin Claret, 2002.


BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Trad. e org. Plínio Augusto Coêlho. São
Paulo: Imaginário: Editora da Universidade de São Paulo, 1991.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. José
Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
BRITO, Jomard Muniz de. Do modernismo à bossa nova. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo:
Duas Cidades, 1978.
GONÇALVES, Aguinaldo José. “O olhar refratário de Charles Baudelaire”. In:
BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Trad. e org. Plínio Augusto Coêlho. São
Paulo: Imaginário: Editora da Universidade de São Paulo, 1991.
FILHO, Hildeberto Barbosa. Essa mecânica nefasta, o EU e os outros. João Pessoa: Ideia
Editora, 2014.
HELENA, Lucia. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1977.
HORTA, Luiz Paulo. Sete noites com os clássicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
PONTES, Roberto. “Poesia & ciência em Augusto dos Anjos: Fundação de uma lírica
diversa”. In: ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE,
Ana Isabel de Sousa Leão (Orgs). Augusto dos Anjos: a heterogeneidade do EU singular.
João Pessoa: Mídia Gráfica Editora, 2012.
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SEDLMAYR, Hans. A revolução da arte moderna. Trad. Mario Henrique Leiria. Lisboa:
Livros do Brasil, 1955.
SOARES, Órris. “Elogio de Augusto dos Anjos”. In: ANJOS, Augusto. Eu. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis RJ:
Vozes, 1997.
______. Drummond, a estilística da repetição. São Paulo: Editora Experimento, 1997.
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DRAMATURGIA IRLANDESA: ESTÉTICA, RELIGIÃO E POLÍTICA EM CENA

ARTE E IDEOLOGIA NO TEATRO DE SEAN O’CASEY: SOCIALISMO EM THE


SHADOW OF A GUNMAN

Sandra Luna
UFPB
Khayles Pereira
UFPB

Sean O’Casey é um dos mais famosos dramaturgos irlandeses do início do século XX.
Apesar de a maior parte de sua carreira ter se desenvolvido na Inglaterra, suas peças mais
famosas continuaram sendo as Dublin Plays, três peças com as quais estreou no Abbey
Theater de W. B. Yeats e Lady Gregory. The shadow of a gunman (1923), Juno and the
paycock (1924) e The plough and the stars (1926) tornaram-se conhecidas como Dublin Plays
pelo fato de seus enredos se passarem na cidade de Dublin, retrarando o período dos
confrontos armados pela independência irlandesa: as tramas de The shadowof a gunman e de
Juno and the paycock se desenrolam entre os anos de 1921 e 1922, e a de The plough and the
stars, algumas semanas antes do Easter Rising, em 1916.
O que há de especial na trilogia de O’Casey, contudo, não é o fato de ter Dubin como
cenário, mas a escolha dos personagens retratados em cena; pela primeira vez, as pessoas
pobres residentes nos tenements de Dublin são levados aos palcos (KOSOK, 1995, 207), em
situações que fazem refletir sobre questões dramáticas e trágicas, levando-nos a ponderar
sobre quem são os verdadeiros heróis de uma guerra e quais os ganhos do uso da violência
(AYLING, 1972, p. 492). A forma como O’Casey aborda esses temas, no entanto, atraiu a
antipatia de grupos políticos: tanto nacionalistas como socialistas sentiram-se incomodados
com a forma como O’Casey os retratou.
O’Casey era um ativista politico. Primeiramente, ele foi nacionalista. Suas primeiras
peças, por exemplo, foram escritas em gaélico, pois a concepção nacionalista era de que uma
nação se afirmava pela cultura, cujo idioma era um fator de diferenciação determinante.
Assim, O’Casey não só aprendeu gaélico, como tinha peças encenadas em teatros cujos
espetáculos aconteciam exclusivamente nesse idioma. Além disso, O’Casey foi membro da
Irish Republican Brotherhood. A IRB foi, de forma simplista, uma sociedade secreta, cuja
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participação na luta política foi fundamental para o estabelecimento do Home Rule1 e do Irish
Parliamentary Party2. Em seus discursos iniciais, líderes nacionalistas, como Conolly, não
falavam apenas de uma nação livre, mas recorriam a princípios socialistas, pregando uma
Irlanda para seu povo e seus trabalhadores. Até mesmo líderes de países estrangeiros, como
Lênin, apoiavam o processo de independência irlandesa e acreditavam no surgimento de um
pais socialista. As concepções políticas de O’Casey, no entanto, não se encaixavam
exatamente em proposições doutrinárias vigentes, sendo antes um produto direto de sua
própria experiência.
O’Casey teve pouco acesso à educação formal e, apesar de ser auto-didata, tinha olhos
ulcerosos e, por isso, preservava pouco de sua visão. Isso lhe causou diversos problemas para
conseguir emprego e pode ter sido um fato decisivo em sua escolha de tornar-se um
dramaturgo. Sabe-se, no entanto, que pelo menos dois dos vários trabalhos assumidos por
O’Casey foram fundamentais para moldar sua visão política. O primeiro deles foi como
empregado na Great Northern Railway of Ireland, onde pôde aprender sobre capitalismo, e o
outro foi o escritor do jornal da Irish Transport and General Workers’ Union. Embora não
tenha sido um líder e nem mesmo seus artigos figurem entre os mais influentes publicados no
Irish Worker, lá, O’Casey estabeleceu contato com Jim Larkin, principal lider da greve geral
de 1913, que o influenciou fortemente, e também teve acesso às ideias de socialistas
franceses, norte-americanos e canadenses. Nota-se, portanto, que o interesse de O’Casey nas
teorias socialistas a que tinha acesso não era apenas intelectual: para ele, o socialismo podia
ser entendido de forma diretamente relacionada a aspectos da vida irlandesa que retrataria em
suas peças (LOWERY, 1983 , p.130).
Assim, o ponto de vista nacionalista de O’Casey era um tanto peculiar. Em meio aos
acontecimentos, ele já se dava conta do que, hoje, é problematizado por muitos historiadores,
que contam com a clareza analítica propiciada do distanciamento temporal: o nacionalismo
irlandês colocava sua maior ênfase no orgulho nacional e, aos poucos e sutilmente, foi se
distanciando dos interesses do povo e passou a tratar de independência a qualquer custo,
fazendo até mesmo menção a cobrir o famoso verde irlandês com o vermelho do sangue dos
guerrilheiros, antes de desistir do levante armado e se render ao imperialismo inglês
(O’CASEY, 1994, p. 164-169). Dessa forma, a vida humana e o bem-estar social tiveram sua

1
Estatuto que dotava a Irlanda de certa autonomia em relação ao Reino Unido. Foi proposto oficialmente, pela
primeira vez, em 1886, sendo aprovado apenas em sua quarta submissão, em 1902.
2
Partido oficial dos nacionalistas irlandeses eleitos para a House of Commons of The United Kingdom, engajados
em propostas de independência legislativa e reforma agrária.
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importância reduzida perante a construção da crença na soberania do país, de maneira que o


discurso nacionalista, que originalmente comungava dos ideiais socialistas, passava a
prometer o oposto daquilo pelo que O’Casey ansiava: a luta armada, da maneira como era
proposta, pregava a intensificação do sacrifício do povo, ao invés de lhe oferecer algum
conforto e prosperidade (KRAUSE, 1997, p. 30).
O’Casey também previa que, após tornar-se um país livre, a Irlanda teria ainda que
estabelecer efetivamente sua independência e, portanto, os conflitos armados e os problemas a
eles relacionados não cessariam. Dessa forma, não haveria oportunidade para a implantação
de um sistema socialista, que deixava até mesmo de ser citado pelos líderes revolucionários.
De acordo com Lowery,

Para O’Casey, O socialismo irlandês era confuso ou, no mínimo,


infelizmente, faltava-lhe um rumo. A guerra pela independência e
subsequente guerra civil destruíram a flor de uma geração. Qualquer
consciência trabalista que restara após o levante foi dizimado pela contenda
dos seis anos seguintes. Mesmo após seu fim, a Questão e o Partido
[Nacionalistas] dominavam e permeavam o mais avançado pensamento
político. Não era um solo fértil para a edificação de um movimento
socialista.3 (LOWERY, 1983, p.133, tradução nossa)

Nas Dublin Plays, O’Casey deixa transparecer sua falta de otimismo quanto à
revolução, tanto na ironia das situações em que coloca seus personagens, quanto na própria
elaboração de seus caracteres: ou os personagens não se importam com as transformações
políticas pelas quais o país passa, pois estão muito ocupados em assegurar sua própria
sobrevivência, ou são heróis de caráter contraditório e postura decepcionante.
Não por acaso The plough and the stars teve sua estreia interrompida por protestos de
militantes nacionalistas, que consideraram a peça desrespeitosa à memória dos mártires do
Easter Rising, ocorrido apenas 10 anos antes (MORASH, 2002, pp.167-168). A peça,
povoada por uma gama de personagens que representam diversos pontos de vista politicos,
contém um trecho em que a maioria dessas personas “comparece” a uma renião do partido
nacionalista, na rua. No entanto, a cena se passa dentro de um bar, enquanto apenas
fragmentos do discurso do preletor são transmitidos por meio de uma janela. O público do

3
To O’Casey, Irish socialism was confused, or at the very least it was sadly lacking in direction. The war of
independence and the subsequent civil war destroyed the flower of a generation. Whatever labour consciousness
that remained after the rising was decimated by the following six years strife. Even after it was over, the national
Question and Partition dominated and permeated the most advanced political thinking. It was not fertile ground
for building a socialist movement.
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teatro era capaz de reconhecer que se tratava de trechos de um famoso discurso de Pearse 4,
conclamando o povo à luta armada por meio da imagem de purificação e redenção
propiciados pelo sangue sacrificial, o “rubro vinho dos campos de batalha”. Ironicamente, no
palco, encontram-se personagens literalmente embriagando-se com vinho; ao invés da
purificação cerimonial do sagrado solo da Mãe Irlanda, duas mulheres da ralé se agridem
física e verbalmente por desentendimentos relacionados à fornicação, promiscuidade e filhos
ilegítimos; e os homens convidados a tornarem-se heróis nada mais fazem do que assistir à
contenda, enquanto aguardam a chegada de uma prostituta. Ao contrário do que se poderia
esperar, O’Casey não poupa ironia na elaboração de personagens e situações que fazem
alusão ao socialismo: o jovem Coven não passa de um rapaz de muitas palavras, mal
fundamentadas em sua rasa leitura de um único livro sobre o socialismo, e suas notoriamente
poucas ações, não são em nada melhores que a dos demais personagens.
Em Juno and the paycock, temos um quadro semelhante, porém mais trágico, com a
jovem Mary, que inicia a trama realizando diversas leituras sobre política e participando de
uma greve, e, ao fim, descobre-se mãe solteira, depois de enredada numa trama que a levou a
apaixonar-se por um capitalista inglês, o que a levou a enfronhar-se definitivamente em um
sistema de perpetuação da miséria. Em contrapartida, também o seu irmão Johnny, um jovem
revolucionário que perdeu um braço e aleijou o quadril durante os confrontos da guerra civil,
revela-se, no decorrer da peça, um traidor do movimento nacionalista, responsável por
denunciar um colega, que acabou executado.
The shadow of a gunman não se afasta desse padrão de representação dramatúrgico
característico de O’Casey. Por um lado, o autor dá voz ao povo, focalizando a vida nos
tenements em suas mazelas e conflitos cotidianos, enquadrando-os sob perspectivas
econômicas, políticas, sociais, extraindo das falas e situações vivenciadas pelos personagens
uma variedade de posições ideológicas, com especial ênfase para discussões sobre identidade
nacional, religião e engajamento político. Por outro lado, utiliza O’Casey justamente esses
dramas do dia-a-dia para fazer incrustar no ethos, nos discursos e nas ações dos personagens
perspectivas ou mesmo avaliações críticas que desafiam a rigidez ideológica das doutrinas
nacionalistas e socialistas com as quais se debatia, rasurando em larga medida o apelo político
então vigente ao sacrifício do povo em prol da pátria.
A trama da peça fundamenta-se em um argumento simples, muito simples, mas não
pouco produtivo para a ilustração das teses de O’Casey. Dois jovens, Seumas e Davoren,

4
Um dos principais líderes revolucionários do Easter Rising, executado após a repressão do levante.
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compartilham um pequeno cômodo em um dos tenements dublinenses, suas dificuldades


financeiras sendo evidentes não apenas por habitarem esse espaço de miséria, mas, sobretudo,
por terem seu cômodo invadido, ainda no primeiro ato da peça, pelo senhorio, que cobra a
Seumas as várias semanas de aluguel atrasado, deixando claro que o mesmo teria sublocado o
espaço a Davoren, o que situa ambos os jovens em uma posição que se poderia considerar
abaixo da linha de pobreza. Eles, no entanto, não padecem de falta de instrução, embora
representem perspectivas distintas da vida intelectual, Davoren sendo um poeta de ares
românticos, devoto de Shelley, enquanto Seumas encarna o típico herói nacionalista irlandês,
guerrilheiro comprometido com a pátria-mãe e com a religião católica.
Mal tem início a ação e a visita de um terceiro jovem, Maguire, instaura, no espaço
cênico e na mente do leitor/espectador, um motivo de suspeita, pois que aparece no cômodo
onde vivem os rapazes apenas para desmarcar um compromisso previamente assumido com
Seumas, dizendo ter outra tarefa a cumprir em Knocksedan, sem que explique exatamente do
que se trata o negócio, apenas deixando, num canto do cômodo, antes de partir
apressadamente, um pacote cujo conteúdo não revelado desperta de imediato tensão e
desconfiança. Utilizando-se de ironia, é através do discurso do nacionalista Seumas que
O'Casey tece as críticas mais evidentes ao movimento republicano:

SEUMAS (com um gesto de desespero): Oh, este é um país sem esperança!


Tem gente que pensa que as quatro virtudes cardinais não são encontradas
fora da República Irlandesa. Não quero me gabar (…) mas lembro do tempo
em que eu ensinava gaélico seis noites por semana; de quando estava na
Irmandade Republicana Irlandesa e paguei para alistar meu rifle, feito
homem; e, quando a Igreja se recusou a ter qualquer coisa a ver com James
Stephens, eu fiz uma oração pelo descanso da alma dele nos degraus da
Paróquia [de Santa Maria]. Agora, depois de todo meu trabalho pela Dark
Rosaleen5, a única resposta que se recebe de um republicano arrogante é
“tchau...uu”. O que, em nome de Deus, pode o estar levando a Knocksedan?
(…) estou começando a acreditar que o povo irlandês não é, nunca foi e
nunca será apto a governar a si mesmo.6 (O’CASEY, 1994, p. 84, tradução
nossa)

5
Nome dado à Irlanda em rferência ao poema do nacionalista James Clarance Mangan.
6
SEUMAS (with a gesture of despair): Oh, this is a hopeless country! There's a fellow that thinks that the four
cardinal virtues are not to be found outside of the Irish Republic. I don't want to boast about myself (…) but I
remember the time i taught Irish six nights a week, when in the Irish Republican Brotherhood I paid me rifle levy
like a man, an' when the Church refused to have anything to do with James Stephens, I tarred a prayer for the
repose of his soul on the steps of the Pro-Cathedral. Now, after all me work for Dark Rosaleen, the only answer
ou can get from a roarin' Republican to a simple question is 'good-bye... ee'. What, in the name o' God, can be
bringin' him to Knocksedan? (…) I'm beginning to believe that the Irish People aren't, never were, an' never will
be fit for self-government.
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Seumas sairá de cena logo em seguida, deixando Davoren, o poeta, sozinho no palco
pela maior parte do tempo em que decorre a ação, embora não para compor seus versos, como
desejaria, mas para fazer-se, por força da informalidade da vida no tenement, anfitrião de uma
série significativa de vizinhos que, isoladamente ou aos pares, adentram o cômodo dos jovens
por motivos distintos. Note-se que o dramaturgo utiliza esse recurso de entra e sai de visitas
para nos fornecer uma espécie de figuração de um mosaico humano ilustrativo de tipos e
caracteres diversos, personagens representativos de ideologias e comportamentos sociais
distintos e muito apelativos à decifração crítica da vida como ela é na Dublin da miséria.
É assim que desfila diante dos nossos olhos a primeira persona, Minnie Powell, jovem
desenvolta, atraente e independente, vistosa em seu aspecto físico e apresentada como
experiente no sofrimento, tendo perdido os pais precocemente. Para além de seu caráter
seguro de si, logo se percebe o quanto Minnie anseia por um encontro com um herói
nacionalista, projetando em Davoren a imagem fantasiosa de um guerrilheiro destemido, um
homem de armas. O jovem poeta, que nada tem de herói nacionalista, mas capaz de ler o
anseio de Minnie por uma confirmação de sua pertença ao movimento republicano irlandês,
consente com a fantasia da moça e não desmente a noção romântica da jovem, que se mostra
seduzida pelo pretenso revolucionário:

DAVOREN: Homem nenhum, Minnie, quer morrer por coisa nenhuma.


MINNIE: Exceto por seu país, como Robert Emmet7.
DAVOREN: Até mesmo ele teria vivido se pudesse; ele morreu para não
entregar a Irlanda. O Governo Inglês o matou para salvar a nação inglesa.
MINNIE: Você só está brincando (…) Eu sei o que você é. (…) Um
guerrilheiro em fuga! (...)
DAVOREN (satisfeito com a óbvia admiração de Minnie; encosta-se para
trás, em sua cadeira, e acende um cigarro com plácida afetação): Admito que
no, no começo, a pessoa fica meio nervosa, mas se acostuma, depois de um
tempinho.8 (id., p. 92, tradução nossa)

Não tardará muito e outros vizinhos adentrarão o cômodo, cada qual convocando
Davoren a cumprir determinada tarefa por julgarem-no todos ser ele um herói revolucionário,
personificação de um ser que naquele contexto assume um estatuto messiânico, quase-divino.

7
Nacionalista republicano que liderou uma rebelião contra o domínio inglês, em 1803, que foi reprimida. Foi
condenado à morte por enforcamento e esquatejamento.
8
DAVOREN: No man, Minnie, willingly dies for anything.
MINNIE: Except for his country, like Robert Emmet.
DAVOREN: Even he would have lived on if he could; he died not to deliver Ireland. The British Government
killed him to save the British nation.
MINNIE: You're only jokin' now; (…) I know what your are. (…) A gunman on the run! (...)
DAVOREN (delighted at Minnie's obvious admiration; leaning back in his chair, and lightening a cigarette with
placid affectation): I'll admit one does be a little nervours at first, but a fellow gets used to it after a bit.
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Assim, investido de um papel que não lhe cabe, Davoren será chamado a opinar sobre uma
pendenga judicial envolvendo vizinhos, testemunhará os relatos de outros viventes do
tenement que lhes confidenciarão problemas pessoais, existenciais, financeiros, políticos.
Saberá do álcool, dos amores, das inimizades, das desavenças, enfim, cada tipo que lhe bate à
porta deixa-lhe uma marca impressa de uma humanidade fadada ao sofrimento físico e
material, embora nada disso se dê por via do pathos, ao contrário, chama a atenção o esforço
dessas personas em se manterem dignas, ou em parecerem dignas.
O segundo ato trará Seumas de volta ao lar, mas o sono não chega aos jovens.
Supersticioso, Seumas pressente a própria morte ao julgar ouvir reiteradas pancadas no lado
de fora, espécie de flashforward antecipando a batida policial que será dada no tenement
instantes depois. A chegada das tropas a serviço da coroa inglesa haveria de fazer a peça
correr pelos trilhos da tragédia. Durante a batida policial, uma vez armada a confusão que
exaspera toda a vizinhança, Minnie Powell, numa explicitação óbvia do seu romantismo
idealista, achega-se ao cômodo de Davoren e oferece-se para ajudar o poeta que julga ser
guerrilheiro, imaginando que este corre perigo iminente na revista já em andamento. Num
misto de covardia e admiração pela coragem da jovem, Davoren e Seumas consentem que
Minnie leve consigo o fardo deixado num canto da sala por Maguire, que a esse momento já
sabemos ter sido morto em Knocksedan. Trancafiados no cômodo, apavorados com o
estardalhaço dos agentes da lei e acovardados perante sua própria culpa – Seumas por ser
realmente um guerrilheiro, Davoren por ter se feito passar por um, ambos buscam formas de
racionalizar a grave transferência de responsabilidade com a qual aquiesceram, ao permitir
que Minnie levasse consigo a prova da traição política ao governo inglês. A tragédia não
tardará a realizar-se, bem no estilo grego, fora dos olhos dos protagonistas e longe das vistas
do público, chegando aos ouvidos de todos por via dos disparos que se ouve através da janela
e dos comentários de uma das vizinhas, que nessa hora se faz mensageira da morte: Minnie,
flagrada com a carga de munição, havia sido arrastada e morta pelos agentes da lei. No
cômodo, culpa e perplexidade, nada consistente com o que se esperaria de gloriosos heróis
nacionais. Em lugar de honra e fama, apenas vergonha. Nas palavras de Davoren:

DAVOREN: Ah! ai de mim! Dor, dor eterna, para sempre! É terrível pensar
que a pequena Minnie morreu, mas ainda mais terrível é pensar que Davoren
e Shields vivem! Oh Donal Davoren, vergonha é a tua sina, agora, até que se
rompa o cordão de prata e se quebre o copo de ouro. Oh, Davoren, Donal
Davoren, poeta e poltrão, poltrão e poeta!
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SEUMAS (solenemente): Eu sabia que a batida na parede ia dar em alguma


coisa!9 (O’CASEY, 1994, p. 130, tradução nossa)

O baixar da cortina deixa-nos certamente uma imagem decadente do idealismo


heróico. Nem a tragicidade que atinge Minnie assegura que algum heroísmo será assumido
pelos dois jovens. Rapidamente, a culpa de Davoren escoa para a poesia, a de Seumas faz
ecoar sua crença mística nos avisos do sobrenatural. Nenhum traço de glória heróica, apenas
um sacrifício estúpido de uma jovem que voluntariamente se fez iludir, permitindo-se morrer
por um falso guerrilheiro, enquanto acobertava outro ainda mais indigno. Através desses
exemplos, podemos entender como as peças de O’Casey conseguiam desagradar tanto a
nacionalistas quanto a socialistas. Não se pode dizer, no entanto, que o dramaturgo tenha
esquecido as lições e os anseios de vida socialista, cujas bases permanecem em seus textos, no
pendor do autor para representar as relações entre vida e arte, sublinhando as relações
determinantes e dialéticas entre base e superestrutura, embora não sob perspectivas
dogmáticas ou tragicamente ideologizantes.
Concluindo, esperamos ter demonstrado como o interesse de O’Casey gravita em
torno das pessoas simples e pobres da classe trabalhadora, suas tramas não autorizam a
idealização das figuras de heróis ou líderes políticos, assim como não sonegam ao seu público
a representação das misérias e tribulações causadas pelas guerrilhas. Essas pessoas simples,
pobres, miseráveis, e não teorias políticas ideologizantes, são as estrelas das Dublin Plays,
que mostravam, entretanto, como o sistema social tinha consequências inescapáveis sobre
essas vidas dramaticamente marcadas. Assim, ao invés de apresentar heróis e suas conquistas,
O’Casey foca em pessoas comuns, que ajudam umas às outras em sua vida cotidiana, na qual
são obrigadas a se submeterem à violência, fome, medo e doença. De suas denúncias e críticas
fica-nos a certeza de seu compromisso com um socialismo que não se esgota nem se perde em
ideias e ideais.

Referências

AYLING, Ronald. Popular Tradition and Individual Talent in Sean O'Casey's Dublin Trilogy.
Journal of Modern Literature, Bloomington, Vol. 2, No. 4, pp. 491-504, nov., 1972.
9
DAVOREN: Ah! me alas! Pain, pain, pain ever, for ever! It’s terrible to think that little Minnie is dead, but it’s
still more terrible to think that Davoren and Shields are alive! Oh Donal Davoren, shame is your portion now
till the silver cord is loosened and the golden bowl be broken. Oh, Davoren, Donal Davoren, poet and poltroon,
poltroon and poet!
SEUMAS (solemnly): I knew something ud come of the tappin’ on the wall!
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 534

LOWERY, Robert G. The socialist legacy of Sean O’Casey. The Crane Bag, Dublin, Vol. 7,
No. 1, pp.128-134, 1983.
KOSOK, Heinz. Plays and Playwrights from Ireland in International Perspective. Trier:
WVT Wissenschaftliciher Verlag Trier, 1995.
KRAUSE, David. The plough and the Stars: socialism (1913) and nationalism (1916). New
Hibernia Review, St. Paul, Vol. 1, No. 4, pp. 28-40, 1997.
MORASH, Christopher. A History of Irish Theatre, 1601-2000. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002.
O’CASEY, Sean. Three Plays – Juno and the paycock, The shadow of a gunman, The plough
and the stars. Londres: Papermac, 1994.
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O SIMBOLISMO HÍBRIDO DE YEATS EM “THE COUNTESS CATHLEEN”

Bruno Rafael de Lima Vieira1


UFPB

A Irlanda contemporânea se veste com uma bandeira em três cores: branco, laranja e
verde. Cada cor, entretanto, carrega em si um significado diferente. O verde simboliza os
católicos; o laranja, os protestantes; o branco é o símbolo da paz. Porém, essa harmoniosa
bandeira não é a mimetização do retrato real histórico do país.
O movimento nacionalista foi braço atuante na cruzada pela independência irlandesa
que se estendeu a vários setores da sociedade. A literatura, entretanto, não ficou imune a esse
processo, vários autores, como William Butler Yeats, através de seus textos, se engajaram na
luta pela liberdade da nação contra os ingleses.
Para atingir seus objetivos, no teatro, Yeats deu um tratamento simbólico as suas
peças, dentre elas The Countess Cathleen (1892). Dessa maneira, intentamos fazer uma
investigação de como uma das simbologias mais importante para o dramaturgo, a da rosa,
emana no enredo elementos nacionalistas através da personagem central, Cathleen.
Lembrando que os símbolos usados por Yeats advinham de diferentes fontes, como o
arcabouço mítico próprio da Irlanda, e o simbolismo cristão católico.
A história da Irlanda foi moldada, sem dúvidas, por motivações religiosas que
interferiam diretamente nas decisões políticas. Católicos e protestantes, segundo Martin
(2001), duelaram pela hegemonia do poder irlandês. Os ingleses, que governaram a Irlanda
por mais de 700 anos, tentaram tornar o país uma nação protestante, principalmente a partir do
reinado de Henrique VIII, no século XVI, mas sem sucesso. Parte da sociedade irlandesa,
principalmente os mais pobres, se mantiveram fiéis ao catolicismo.
A luta religiosa na Irlanda deu origem a grupos distintos que buscavam a
independência do país a partir de visões nacionalistas diferentes. Os Anglo-Irish e Irish-
Ireland lutaram, a sua maneira, pela liberdade irlandesa. Os Anglo-Irish , de acordo com
Boyce (2011), abarcavam em seus quadros pessoas que tinham origem inglesa, professavam a
fé protestante, falantes do inglês, mas que viviam na Irlanda. Os representantes do Irish-
Ireland, por outro lado, de acordo com Connolly (2011), tinham origem “tipicamente

1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, membro do Grupo de Pesquisa em Estudos
Irlandeses.
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irlandesa”, eram católicos, e falavam galês. Ou seja, são duas visões distintas do nacionalismo
irlandês.
O nacionalismo é, sem dúvidas, uma das questões mais importantes do processo de
construção da Irlanda. Para Said (1997) o nacionalismo é termo usado em nosso dia-a-dia das
mais variadas maneiras, porém, em sua essência, o termo serve para mobilizar uma força
resistente a uma ocupação alien. O nacionalismo, porém, não é uma característica única da
Irlanda. Toda a Europa passou por ondas nacionalistas nos mais diversos países, no início do
século XIX motivadas, de acordo com Maria (2012), pela Revolução Francesa.
Com advento do nacionalismo, a literatura reage com o romantismo que foi uma
literatura política, mesmo intentando ser apolítica (p.1432).

O romantismo é um movimento literário que, servindo-se de elementos


históricos, místicos, sentimentais e revolucionários, do Pré-romantismo,
reagiu contra a Revolução e o Classicismo revivificado por ela; defendeu-se
contra o objetivismo racionalista da burguesia, pregando como única fonte
de inspiração o subjetivismo emocional. (MARIA, 2012,p.1433)

Maria (2012) diz que os românticos pregavam uma literatura que fosse nacional e
servisse aos ideais nacionais, mas “a literatura romântica, que tantas vezes se gabava de ser
mais nacional e mais nacionalista que do que o Classicismo, construiu, no entretanto, o
movimento literário mais internacional de quantos a Europa até então tinha visto.” (p.1433).
Afirmamos, porém, que o arquétipo que moldou o romantismo é, sem duvidas, única, o ideal
nacional. Contudo, dentro de cada esfera nacional, esse movimento literário eclodiu de
maneira diferente.
Quando o romantismo chegou à Irlanda, em 1789, de acordo Kelleher (2007), o país
estava mergulhado em uma guerra contra os ingleses. Os grupos revolucionários irlandeses
tinham, porém, apoio militar e político dos franceses. Além disso, o Ato de União havia
acabado de ser imposto pela Inglaterra. Sendo assim, em meio a esse cenário conturbado, o
sentimento nacional progredia e avançava principalmente através de debates, panfletos e
poemas que buscavam instaurar no povo o desejo de luta pelas causas da pátria-mãe.
Segundo Kelleher (2007), alguns acadêmicos colocam a literatura romântica
irlandesa alinhada com o que vinha sendo criado na Inglaterra, mas o que ocorreu na Irlanda
foi um fenômeno único, através de nacionalismo cultural consubstanciado pelo celticismo. O
Romantismo na Irlanda, segundo Keller (2007), se desenvolveu de uma maneira nova e
sofisticada de representar a derrota, enquanto tentava manter o um exibicionismo. O
movimento literário abarca na Irlanda anos depois da sua eclosão na Inglaterra.
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O nacionalismo romântico irlandês, de acordo com Costigan (1973), datado entre


1800-1830, segue alguns pontos como: o desenvolvimento místico da idéia de nação, quando
passou a quase substituir a religião, a terra se torna um lugar sagrado; o forte revigoramento
do passado histórico do país; a revitalização da língua gaélica; a urgente necessidade de
sacrifício pela pátria; culto a heróis míticos do país; personificação da pátria como mãe, ou
deusa-mãe; o revigoramento do conceito de amor através das histórias de cavalarias.
Quando Yeats começa sua carreira como poeta, nas últimas décadas do século XIX, o
romantismo Irlandês já tinha acabado, ao menos em teoria, porém, há traços que nos deixam
pressupor que ele usou elementos românticos em seus textos, tanto nas suas poesias, quanto
nas peças para o teatro.
A hipótese mais pertinente para esse revigoramento romântico é ascensão dos grupos
nacionalistas na virada do século XIX para o XX, com já citamos o Anglo-Irish e Irish-
Ireland. Com isso surgem diversos movimentos literários de cunho nacionalistas. Que tinha
como proposta a revitalização da arte através da história do país pelo viés folclórico,
especialmente Celta.
O movimento literário, talvez, mais importante do período seja a Renascença Celta
(Celtic Twilight). A Renascença Celta foi grupo que intentou de forma concisa uma tendência
de representar o povo irlandês, dando ênfase à herança das tradições Celtas na cultura através
da dramaturgia. Em 1897, Yeats, Lady Gregory e Marty, publicaram o Manifest for Irish
Literary Theatre, que mostrava as diretrizes para o teatro que pretendiam fundar, tendo como
base as raízes culturais irlandesas.
O teatro, principalmente o nacionalista, de acordo com Martin (2001), torna- se uma
estrutura com força relevante dentro da sociedade irlandesa à época, o slogan: “Hoje nos
palcos, amanhã nas ruas”, serve para explicar a importância e a influência que os dramaturgos
tinham ao final do século XIX, inclusive na esfera política.
Sepa (1999) diz que no primeiro número do periódico Beltaine, Yeats defendeu tais
idéias:

O Teatro Literário Irlandês tentará realizar em Dublin algo semelhante ao


realizado em Londres e Paris; se tiver uma boa recepção, produzirá em
algum lugar perto do velho festival de Beltaine, no começo da primavera
uma peça com um assunto irlandês. As peças são diferentes daquelas
produzidas por escritores de Londres e Paris porque mudaram os tempos e
porque o intelecto irlandês é romântico e espiritual em vez de científico e
analítico (p. 15).
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Para Yeats, os textos que desenvolver-se-iam no teatro, a época, deveriam ir de


encontro ao naturalismo que tomava conta dos palcos, principalmente na Inglaterra. É nesse
período que Yeats busca dialogar com um teatro que tenha bases simbólicas. Sendo assuntos
recorrentes, o folclore, a mitologia e as sagas irlandesas. O dramaturgo intentou, dessa
maneira, criar um novo teatro com elementos simples, mas não menos rico, usando elementos
típicos irlandeses.
No começo de sua carreira, Yeats participou de vários grupos ocultistas e místicos. Os
rituais que o dramaturgo presenciou na “Hermetic Students of Golden Dawn”, por exemplo, o
encantavam. Yeats era devoto dos elementos femininos acreditando que mulher se
relacionava diretamente com a terra, onde Deus tinha dado ao planeta a forma feminina.
Sendo assim, elegeu como um dos principais símbolos a rosa. Yeats ficou fascinado pela
simbologia que o elemento emanava.
A primeira imagem que nos vem à mente quando falamos da rosa é a sua relação
direta com o amor e a mulher. Porém, a constituição simbólica da rosa vai além. Segundo
White (1971), há uma forte ligação com significados que nos lembram a dor e a morte,
especialmente quando, na Idade Média, se relaciona com a crucificação de Cristo, e seu
calvário.
Quando associado à mulher, o símbolo da rosa é relacionado com a virgindade da
Maria, a pureza, e o amor verdadeiro. Além de simbolizar a mãe-terra, ou a mãe-pátria, dessa
maneira serviu aos propósitos nacionalistas de Yeats. Segundo Chevalier (2012), a rosa é o
símbolo mais usado no ocidente, sendo uma perfeição acabada, uma realização sem efeito.
Para o cristianismo, a rosa vai simbolizar as chagas de Cristo, a dor. A sua cor, vermelha,
simboliza a regeneração, do ciclo eterno da vida.
Yeats usa a rosa como um elemento de simbolismo hibrido, tendo sua significação
vindo dos antigos dos celtas, e emanada do cristianismo, sendo uma mistura de beleza,
inteligência e paz. Frye (2000) diz que na sua busca e utilização dos símbolos, Yeats tomou
duas fontes para si: a mitologia irlandesa, que se estendeu as sagas heróicas, além do já citado
folclore, e o ocultismo que tinha base nas suas crenças espirituais e religiosos.
Na peça The Countess Cathleen, Yeats revestiu seu texto com o simbolismo da rosa.
Poderíamos resumir o enredo da seguinte forma: uma grande fome atinge um vilarejo em uma
região desconhecida da Irlanda. Shemus, o pai de uma família pobre, sem ter quase o que
comer vê na conjuração de demônios uma maneira de ajudar sua família a resolver os
problemas que enfrentam. Os “diabos”, que estão travestidos de mercadores, ao chegarem ao
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vilarejo, cumprem com o que lhes foi pedido, ajudando a família e outros moradores a
conseguir ouro para com isso sanar suas necessidades. Porém, em troca da ajuda, os demônios
pedem algo de muito valioso para os camponeses: as suas almas. A condessa Cathleen, uma
nobre da região, ao saber dos acontecimentos, pede que toda sua fortuna seja vendida para
com isso comprar de volta as almas desses aldeões pobres, mas fica impossibilitada de ajudar
a todos, porque toda sua fortuna foi rouba. Sendo assim, em um ato de sacrifício, Cathleen
entrega sua própria alma pelos camponeses.
Cathleen, durante o curso do enredo, converge para sua caracterização como Deusa-
mãe, ou mãe-terra, lembrando assim a caracterização da rosa como a mãe protetora da nação
que volta ao país quando seus filhos precisam de si. A personagem volta a sua terra, Irlanda,
com a missão de salvar os seus pares dos diabos que tentam comprar suas almas.
Os diabos presentes no texto são uma leitura alegórica da situação vivida pelo país no
período. Cathleen é a representação da Grande-Mãe Irlandesa, ou a Deusa-Mãe, evocada pelo
nacionalismo político. A Grande- Mãe, assim como a Deusa, são personificadas como uma
mulher sem uma casa para morar, que vaga pelos campos verdes irlandeses conclamando
seus filhos para lutarem por ela.
Yeats em seu texto, usa as criaturas demoníacas como uma subjetivação do mal da
condição social irlandesa. Fazendo dessa maneira, uma critica ao capitalismo inglês, e a
rápida expansão da indústria em algumas regiões do país, como por exemplo, Ulster. Isso fica
evidente quando os próprios diabos se apresentam ao povo dizendo que vem do leste.
A passiva aceitação dos camponeses em vender suas almas foi duramente criticado por
grupos nacionalistas como o Irish-Ireland. Acusando Yeats de mostrar os camponeses apenas
pobres e materialistas, buscando um lucro fácil e não brigar pelo que eles mais necessitavam,
sucumbindo assim, facilmente, por um saco de ouro, às tentações inglesas.
A Igreja Católica organizou um boicote a peça, lançando panfletos pelas ruas de
Dublin intitulado “Souls for Money”, em que difamou Yeats, acusando-o de herege e de
mostrar que os pobres irlandeses eram materialistas, não acreditando no poder de Deus, por
venderem suas almas por meros trocados dados pelos diabos.
Seguindo os ideais românticos, Yeats faz com que sua Cathleen mimetize um dos
maiores, e mais conhecidos heróis do panteão irlandês Cuchulain. Ele foi personagem
principal de várias lendas e contos contados pelos irlandeses. O personagem representa a luta
contra a dominação. Sua juventude, força, e beleza eram suas armas contra os inimigos
invasores, especialmente os vikings.
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Yeats se reveste com o simbolismo da rosa na idealização romântica, e vai buscar em


outro herói mítico muito conhecido pelos irlandeses, Jesus Cristo da tradição mítica cristã,
auxílio para criar sua personagem. Há uma ligação entre os três heróis, Cathleen, Cuchulain e
Jesus, eles foram mártires que lutaram por seus ideais, lembrando a dor, o calvário que o
próprio Cristo sofreu. Segundo Luna e Vieira (2014):

Cathleen, assim como Jesus, faz-se “bode expiatório”, oferecendo-se para


salvar seu povo dos pecados e livrar a alma de todos do inferno. O sangue
derramado por Cathleen (metaforicamente), assim como o de Jesus
Cuchulain, está ligado a rituais de passagem. Para os guerreiros, o sangue é
uma marca importante da vitoria ou da derrota, significando a vida ou a
morte. O sangue do “cordeiro de Deus” serviu para lavar o paraíso em um
sacrifício em nome de todos e para todos. (p. 143)

O sacrifício de Cathleen se deixa evidenciar na seguinte passagem:

CATHLEEN: [entrando] E então vocês estão novamente a negociar?


PRIMEIRO MERCADOR: Apesar de você. O que a traz aqui, santa com
olhos de safira?
CATHLEEN: Eu venho para barganhar uma alma por um bom preço.
SEGUNDO MERCADOR: Que importa, se a alma valer o preço?
CATHLEEN: O povo está a morrer de fome, portanto, o povo vai até vocês,
em multidão. Eu ouço um lamento vindo deles
Ecoa em meus ouvidos, noite e dia,
Quisera eu ter quinhentas mil coras
Que os alimentaria até que a fome passasse.
PRIMEIRO MERCADOR: Pode ser que a alma valha isso.
CATHLEEN: Há mais:
As almas que vocês já compraram devem ser libertas.
PRIMEIRO MERCADOR: Nós sabemos de uma única alma que
vale esse preço.
CATHLEEN: Sendo a minha, parece algo inestimável
SEGUNDO MERCADOR: Você nos oferece –
CATHLEEN: Eu ofereço minha própria alma (YEATS, 2011, p. 34,
tradução nossa) 2

2
CATHLEEN (entering) And so you trade once more?
FIRST MERCHANT. In spite of you. What brings you here, saint with the sapphire eyes?
CATHLEEN. I come to barter a soul for a great price.
SECOND MERCHANT. What matter, if the soul be worth the price?
CATHLEEN. The people starve, therefore the people go Thronging to you. I hear a cry come
from them And it is in my ears by night and day, And I would have five hundred thousand
crowns That I may feed them till the dearth go by.
FIRST MERCHANT.. It may be the soul's worth it.
CATHLEEN. There is more: The souls that you have bought must be set free.
FIRST MERCHANT. We know of but one soul that's worth the price.
CATHLEEN. Being my own it seems a priceless thing.
SECOND MERCHANT. You offer us—
CATHLEEN. I offer my own soul. (YEATS, 2011, p. 34)
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A morte de Cathleen, um ato de amor, e sua ação nobilitada, não são aceitos como
representação de um sacrifício pela sociedade irlandesa. Ou seja, o papel de mártir não foi
bem visto pela comunidade católica do país. Os irlandeses, de acordo com Kinealy (2002),
não aceitavam que uma mulher representasse a figura do herói. Mesmo o país tendo em sua
tradição uma valorização da mulher, principalmente na literatura, o papel de Cathleen foi alvo
de duras críticas contra Yeats.
Um dos pontos mais criticados e usados no discurso mais fervoroso foi a falta de valor
simbólico do sangue de Cathleen. O sangue feminino, que jorra no parto, na menstruação, e
na perda da virgindade carrega, de acordo com os ritos pagãos, uma simbologia que evoca a
essência da vida, de caráter regenerativo. Segundo Chavalier (2012), “o sangue é
universalmente considerado o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente. Às vezes, é
ate visto como o princípio da geração.” (p. 800). Porém, para os contemporâneos de Yeats, o
sangue derramado por Cathleen, em amor ao povo, não era algo que tivesse conotação
positiva, pois seria apenas um liquido sujo derramado por uma mulher.
Dessa maneira, é possível notar que Yeats revestiu seu texto com elementos típicos do
período romântico irlandês, baseando-se na simbologia da rosa, além disso, usou os ideais
nacionalistas, sem recorrer, para isso, a um aparelhamento panfletário. Construindo seu texto
de uma forma fina, refinada e literária em uma dimensão simbólica dos eventos históricos que
assolavam o país.

Referências

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CHEVALIER, J. Dicionário de Símbolos. 26ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
2012.
ELLMANN, Richard. Yeats: The Man and the Masks. Londres: Macmillan, 2011.

FOSTER, R. F. The Irish Story: Telling Tales and Making It Up in Ireland. Oxford:
Oxford University Press, 2000.
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1997.
______. W. B. Yeats : a Life. 2, The Arch-Poet : 1915-1939. Oxford: Oxford University
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A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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Página 542

HARRUINGTON, J. Modern and Contemporary Irish Drama. 2° Edição. Nova York: A


Norton Critical Edition, 2009.
HARRIS, S. Gender and Modern Irish Drama. Indiana: Indiana University Press
Bloomgton & Indianapolis, 2002.
LUNA, S; VIEIRA, B. O Sacrifício Mítico na Peça The Countess Cathleen, De William
Butler Yeats. Interdisciplinar, Itabaiana-SE, V. 21, p. 133-144, 2014
MACCULLOCH, J. Celtic Mythology. 1° Edição. Nova York: Dover, 2004
MARTIN, T.; MOODY, F. The Course of Irish History. 4° Edição. Cork: Roberts Rinehart
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MURPHY, P. Hegemony and Fantasy in Irish Drama, 1899-1949. Hampshire: Palgrave
Macmillan, 1999.
YEATS, W. B. The Countess Cathleen. Londres: Digireads, 2011.
______. William Butler Yeats. Selected Poem and Four Plays. 4th ed. New York: Scribner
Papeback, 1996.
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“A HUMANIDADE SOMOS NÓS”: A ALMA DA TRAGICOMÉDIA ESPERANDO


GODOT, DE SAMUEL BECKETT

Klara Maria Schenkel1


UFPB

“Nada a fazer”. A frase de abertura do primeiro ato de Esperando Godot, por si só, já
parece denunciar a completa negação da tradição do “fazer” teatral. Sem desconsiderarmos as
profundas reformulações que a dramaturgia sofreu ao longo do tempo (desde sua
conceituação na Poética aristotélica), os vagabundos beckettianos que esperam
indefinidamente por Godot, plantados sob uma árvore, sem dúvida marcam um momento
paradigmático de ruptura na história do teatro: se não há “ação”, onde está “alma” desta
tragédia? Alguns críticos chegam a declarar que o drama de Samuel Beckett é uma espécie de
“antitragédia”. Em seu prefácio à tradução brasileira do texto, Fábio de Souza Andrade
afirma:

Apesar de inquietante, o sentido de urgência que acompanha a fidelidade de


Vladimir e Estragon a este compromisso misterioso, sempre adiado, não
pode mais ser qualificado como trágico. (...) O heroico há muito se retirou de
um mundo em que a possibilidade do suicídio se esgarça no ridículo de um
cinto que se rompe e de calças que caem por terra. (in BECKETT, 2005.pp
9-10).

Günther Anders é ainda mais radical que Andrade. Para o crítico alemão, Esperando
Godot não pode ser tragédia, nem comédia:

Onde não mais existe um mundo, um choque com o mundo não é mais
possível e, portanto, a possibilidade da tragédia foi confiscada. Ou, para
formular mais precisamente, a tragédia deste tipo de existência reside na
inexistência até mesmo da possibilidade da tragédia e, ao mesmo tempo, no
fato de que ela deve sempre na sua totalidade ser farsa (e não apenas, como
no caso de seus predecessores, eventualmente atravessada pelo farsesco); e
que, portanto, ela só possa ser representada enquanto farsa, enquanto farsa
ontológica, não enquanto comédia. (Idem, p 215).

Paradoxalmente, sobre este enredo em que não há propriamente enredo, jorrou uma
gigantesca fortuna crítica que, de alguma forma, tenta explicá-lo, ou ao menos tenta explicar o
desconforto que esse texto nos causa. E, por mais que se queira ainda hoje “enquadrar”
Esperando Godot em categorias analíticas, a peça nos escapa, troca de lugar, dá pontapés e

1
Doutoranda do PPGL/UFPB, email: klaramarias@gmail.com
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muda de assunto, restando à crítica literária sempre algo a dizer, algo a fazer... e, como diria
Vladimir, “aí vamos nós de novo”.
A fluidez escorregadia desse drama de Beckett já nos parece indício suficiente de que,
ao contrário do que se possa inferir da frase inicial, há muita ação na peça. Conforme Roger
Blin, o próprio Beckett concebia o espetáculo como extremamente dinâmico, “um tipo de
western” (in BECKETT, 2005, p 205). Mas Esperando Godot não é um western, apesar da
agitada movimentação dos atores; não é uma comédia, apesar do humor quase pastelão de
“calças que caem” e, sobretudo, não é tragédia, apesar de ser profundamente trágico. É este
ingrediente trágico - que mais se assemelha a uma sensação, um tormento, um delírio nosso
do que um momento concreto que se mostra explicitamente no texto de Beckett, flagrável e
fixável - que nos leva a interrogar se a ruptura com a tradição do drama aludida a Esperando
Godot se dá de fato pela via da “negação da ação” em cena e da estruturação peculiar do
enredo, ou se temos aqui o oposto: uma radicalização da ideia aristotélica de “mimeses da
práxis”, uma outra volta no parafuso efetuada por Beckett, a ponto de quase espaná-lo.
Segundo Aristóteles, a própria etimologia da palavra drama traz em si o “fazer” (verbo drân).
A arte poética - particularmente o drama – é imitação (mimeses) de ações humanas (práxis),
ou seja, é imitação do “fazer” de homens e mulheres, superiores, inferiores ou iguais a nós; a
tragédia, em sentido oposto à comédia, seria o modo mais elevado de imitação da experiência
humana, posto que imita apenas os atos de “homens superiores”. Ao discorrer sobre as
origens e causas da poesia, afirma o estagirita:

O imitar é congênito ao homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de


todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e
os homens se comprazem no imitado. Sinal disto é o que acontece na
experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas
mesmas coisas que nos causam repugnância, por exemplo as [representações
de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só apraz
aos filósofos, mas também, igualmente aos demais homens, se bem que
menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que [filósofos e
demais homens] se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e
discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo, ‘este é
tal’. Por que, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum
prazer advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da
cor ou qualquer outra causa da mesma espécie. (ARISTÓTELES. IV, § 13 e
14, 1991. p 203)

Se aprendemos imitando, e se gostamos de contemplar imagens de coisas conhecidas,


mesmo que tais coisas nos causem repugnância, a arte poética surge como o meio mais
natural de fixar o já dito, já sentido. O texto de Beckett, por sua vez, funciona como uma
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espécie de coletânea de imitações de ações humanas bastante corriqueiras, a partir da qual as


personagens armam seu jogo cênico, sem necessariamente assumir um caráter definido como
consequência de tais ações: a imitação em Beckett é explícita, porque formalmente expressa,
mas não provoca a adesão das personagens a um único tipo de agir, isto é, contrariamente às
recomendações aristotélicas, as palavras e atos de Didi e Gogô não estão necessariamente em
concordância com seu ethos. Se para Aristóteles, palavras e atos deveriam ser coerentes com
o caráter das personagens a fim de garantir a verossimilhança, em Beckett palavras e atos
assumem o tom paródico, farsesco e, no entanto, reforçam a sensação de verossimilhança,
apesar do “teatro absurdo” que se instaura em cena. Na versão inglesa da peça, Beckett
incluiu o subtítulo: “uma tragicomédia em dois atos”. Quais são, portanto, os tipos de homens
que deveriam ser imitados neste gênero híbrido?
Günter Anders afirma que Vladimir e Estragon são “homens em geral”. De fato, é
possível reconhecer em seus diálogos vários discursos e vários registros, dos mais grosseiros
ao mais refinados, oriundos de um repertório absolutamente eclético e heterogêneo. Porém, a
despeito da afirmação de Anders, Didi e Gogô não “são” homens em geral, mas os “imitam”
(“representam”) sem qualquer censura, e, assim procedendo, imitam a “humanidade”: “Mas
neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos
enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos
atados pelo destino cruel.”, declara Vladimir (BECKETT, 2005. p 160). Desta forma, se os
vagabundos de Beckett nos comovem e se apreendemos ali o elemento trágico, talvez não seja
por nos identificarmos com o “humano genérico”, mas por nos reconhecermos sobretudo
individualmente como parte desse teatro, como atores/imitadores condenados a representar
uma certa imagem que construímos de nós mesmos. Por mais que algumas dessas imitações
nos causem repugnância, sabemos que somos exatamente assim, conhecemos perfeitamente o
original, e nos admiramos com a exatidão da cópia. Não se trata somente de metalinguagem
do teatro, mas metalinguagem do “teatro da vida” em suas várias nuances. Para iluminar
nossa hipótese, vejamos mais detalhadamente o seguinte fragmento da abertura de Esperando
Godot:

PRIMEIRO ATO:

Estrada no campo. Árvore. Entardecer.


Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as
duas mãos, gemendo. Para, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais
uma vez.
Entra Vladimir.
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ESTRAGON: (desistindo de novo) Nada a fazer.


VLADIMIR: (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados):
Estou quase acreditando. (Fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia:
Vladimir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta.
(Encolhe-se, pensando na luta. Vira-se para Estragon) Veja só! Você, aqui,
de volta.
ESTRAGON: Estou?
VLADIMIR: Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre.
ESTRAGON: Eu também.
VLADIMIR: Temos de comemorar, mas como? (Pensa) Levante que lhe
dou um abraço. (Oferece a mão a Estragon)
ESTRAGON (irritado): Daqui a pouco, daqui a pouco.
Silêncio.
VLADIMIR (magoado, com frieza): Pode-se saber onde o senhor passou a
noite?
ESTRAGON: Numa vala.
VLADIMIR (espantado): Numa vala! Onde?
ESTRAGON (sem indicar): Logo ali.
VLADIMIR: E eles bateram em você?
ESTRAGON: Bateram, mas não demais.
VLADIMIR: Os mesmos de sempre?
ESTRAGON: Os de sempre? Não sei.
VLADIMIR: Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu... o
que seria de você...? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de
ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida.
ESTRAGON (ofendido): E daí?
VLADIMIR (melancólico): É demais para um homem só. (Pausa. Com
vivacidade). Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que eu
sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.
ESTRAGON: Chega. Ajude aqui a tirar essa porcaria.
VLADIMIR: De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da
fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos
deixariam nem subir. (Estragon luta com a bota) O que você está fazendo?
ESTRAGON: Tirando minha bota, nunca aconteceu com você?
VLADIMIR: Dói?
ESTRAGON: Dói! Ele quer saber se dói!
VLADIMIR (colérico): Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria
ver se estivesse no meu lugar, o que você diria.
ESTRAGON: Doeu?
VLADIMIR: Doeu! Ele quer saber se doeu!
ESTRAGON (apontando com o indicador): De qualquer modo, você bem
poderia fechar os botões.
VLADIMIR (inclinando-se): É verdade. (Abotoa-se). Nunca descuide das
pequenas coisas.
ESTRAGON: O que você queria? Você sempre espera até o último minuto.
VLADIMIR (sonhador): O último minuto... (Medita) Custa a chegar, mas
será maravilhoso. Quem foi que disse isso?
ESTRAGON: Por que você não me ajuda? (BECKETT, 2005. pp 17- 20)

Vladimir - após breve solilóquio, no qual afirma que, apesar de tentar fugir “disso” a
vida toda, sempre se vê obrigado “a retomar a luta” - inicia o diálogo imitando certos “atos
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de fala” padronizados2, a fim de cumprir um pequeno ritual3 de boas-vindas para Estragon:


“Veja só! Você aqui de volta.”; “Que bom que voltou. Pensei que tinha partido para
sempre”; “Temos que comemorar, mas como?”; “Levante que lhe dou um abraço”. A essas
assertivas, Estragon responde com ironia e má vontade, pois está mais preocupado em tirar
suas botas apertadas – isto sim, uma realidade intrinsecamente carregada de sentido - do que
em cumprir com seu papel no ritual de Vladimir. Parece-nos que Estragon também está
tentando fugir “disso” (dessas falas padronizadas, dos papéis que determinadas cenas
enunciativas nos obrigam a desempenhar?), mas é preciso continuar a luta. Depois do
primeiro silêncio, Vladimir muda o tom (agora “magoado”), marcando outra cena
enunciativa: “Pode-se saber onde o senhor passou a noite?”, frase típica de casal em crise,
reforçando este script com “Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu... o
que teria sido de você...?”; “É demais para um homem só”. Nova pausa, e novo tom: com
vivacidade, Vladimir diz que não adianta desanimar agora (é preciso “retomar a luta”) e que,
se fossem desistir, isto é, pular do alto da torre Eiffel de mãos dadas, deveriam ter feito isso
quando eram “gente distinta” (“Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir.”) Nesta
altura, apesar de seu desinteresse nas falas de Vladimir, sabemos que Estragon apanhou de
desconhecidos e passou a noite numa vala. Este é o primeiro, mas não o único momento da
peça em que a ideia de suicídio não oferece de fato uma solução para a situação de Didi e
Gogô, tópico ao qual retornaremos um pouco mais adiante em nossa discussão. Somente ao
descartar a ideia de suicídio, Vladimir percebe a luta real de Estragon com seu par de botas,
desmerecendo-a e retomando o script do “casal em crise”: “Sapatos a gente tira todo dia,
cansei de explicar. Por que você não me ouve?”. Ao reclamar da resposta irônica de Estragon
2
Em 1962, o britânico J. L. Austin, um dos principais teóricos da Pragmática, publicou How to do things with
words, livro que reunia doze conferências suas pronunciadas na Universidade de Harvard em 1955 - mesmo ano
da estreia em Londres da versão inglesa do espetáculo Esperando Godot. Austin desenvolveu sua teoria dos
“atos de fala” (speech acts) a partir de três aspectos: o ato locucionário (o ato de simplesmente dizer alguma
coisa), o ato ilocucionário (aquilo que se tenta fazer quando se diz alguma coisa) e o ato perlocucionário (o
efeito daquilo que se diz). A “metáfora teatral” é onipresente na Análise do Discurso inspirada pela Pragmática:
nas práticas discursivas, estamos em constante “atuação”, desempenhando “papéis”, consciente ou
inconscientemente, conforme o contexto no qual nos inserimos. Apesar de nos mostrar “how to do nothing with
words”, o jogo proposto por Beckett curiosamente traz à tona de forma bastante clara alguns conceitos-chave
deste ramo da Linguística: Didi e Gogô “imitam” o modo pelo qual aqueles que falam devem assumir
determinados “papéis”, e desta forma perfazer “scripts” pré-determinados pelas “cenas enunciativas” em que se
encontram, ativando esquemas de reconhecimento de eventos e situações estereotipados (como uma visita ao
médico, por exemplo).
3
Conversas sobre a chuva, certas rotinas de polidez do cotidiano (cumprimentos, pedidos de desculpa,
despedidas) ou de situações formais (o modo correto de se dirigir a autoridades políticas ou religiosas), enfim,
todas as expressões “pré-fabricadas” que surgem em função de certas situações padronizadas de comunicação
(“prepatterned speech”), compõem aquilo que Charaudeau chama de “rituais sociolinguageiros”, os quais
resultam, grosso modo, das circunstâncias de produção dos discursos (ou das cenas enunciativas e dos papéis
desempenhados pelos falantes). Ver CHARADEAU e MAINGUENEAU, 2006, p 437.
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sobre a dor causada pelas botas, Vladimir acentua ainda mais o tom queixoso de cônjuge
magoado: “Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se você estivesse no meu
lugar, o que você diria”. Ao comando deste último enunciado, Didi e Gogô literalmente
trocam de lugar: Estragon assume a fala de Vladimir (e vice-versa), perguntando “Doeu?”, e
finalmente entrando no “jogo”. Agora, como é sua vez de ser o “cônjuge queixoso”, Gogô
reclama de Didi: “De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões”; “O que você
queria? Você sempre espera até o último minuto”. Vladimir responde “O último minuto...
(Medita) Custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?”. Na versão
original francesa, (“Le dernier moment... C'est long mais ce sera bon”), “quem” disse isso foi
a voz do senso comum, isto é, trata-se de conhecido provérbio popular ("Plus c'est long, plus
c'est bon" ou "C'est long mais c'est bon"), uma clara exortação à paciência, a qual
notadamente tem seu significado subvertido quando colocada ao lado de “último momento”,
sugerindo agora o desejo pelo derradeiro minuto de uma longa existência. Já na tradução para
o inglês, Beckett seleciona outro provérbio, agora bíblico: “The last moment… Hope deferred
maketh the something sick, who said that?” (“O último momento… A esperança adiada faz
adoecer alguma coisa, quem disse isso?”). Dos versos do Antigo Testamento, “Hope deferred
maketh the heart sick, but when hope cometh, it is a tree of life” (Proverbs 13:12.), Beckett
substitui “coração” por “alguma coisa” (mais adiante, o viajante Pozzo perderá seu relógio de
estimação, e quando seu coração é confundido com o tic-tac do objeto perdido, exclamará:
“Que merda!”). A afirmação final do provérbio bíblico (“mas quando a esperança se realiza, é
uma árvore da vida”) é completamente omitida. Não há sofrimento (“coração”) nem
esperança (“árvore da vida”), apenas a espera pelo último momento, durante um tempo
impossível de ser mensurado. Quer advenham do contexto profano ou do contexto sagrado, os
ditos proverbiais pertencem a ninguém e a todos; se voz do povo, ou voz de Deus, “quem
disse isso” não importa, pois os provérbios fazem parte do imenso repertório das frases feitas,
a “sabedoria popular” repetida e reproduzida ad infinitum, sem qualquer necessidade da
prerrogativa saussureana de criatividade e originalidade do falante. Essa fala automática das
situações banais de comunicação cotidiana, transformada em brincadeira de imitar - ou jogo
cênico em que os brincantes têm permissão para entrar e sair, trocar de papéis, mudar de cena
e recomeçar etc - traz, em verdade, uma estranha sensação de liberdade (“Não estamos
amarrados. Estamos?”, Estragon perguntará mais adiante). Didi e Gogô são livres para entrar
e sair desse jogo, e paradoxalmente o próprio jogo são as algemas que lhes prendem ao
cativeiro da eterna espera por Godot:
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VLADIMIR: E, na sua opinião, onde estávamos ontem à tarde?


ESTRAGON: Não sei. Em outro lugar. Noutro compartimento. Vazio é o
que não falta.
VLADIMIR: Tudo bem. Não estávamos aqui ontem à tarde. Então diga o
que fizemos ontem à tarde?
ESTRAGON: O que nós fizemos?
VLADIMIR: Tente se lembrar.
ESTRAGON: Bom... acho que jogamos conversa fora.
VLADIMIR (se controlando): Sobre o quê?
ESTRAGON: Ah... isto e aquilo... sobre botas. (Com certeza). Isso, me
lembrei, ontem à tarde ficamos falando das botas. A mesma conversa, há
cinquenta anos. (BECKETT, 2005.Segundo ato, p 130)

Esta mesma conversa, que se repete “há cinquenta anos”, tentativa vã de


preenchimento do vazio, é um tema recorrente na obra de Beckett. “É verdade, somos
inesgotáveis”, afirma Vladimir diante da impossibilidade de permanecer calado à espera de
Godot. Por mais que não se tenha nada a dizer, sempre é possível recomeçar o jogo. Para
Beckett, mesmo calados, estamos condenados à verborragia:

Mas eu calo-me, isso acontece, não, nunca, nem um segundo. Choro


também, sem suspender. É uma onda ininterrupta, de palavras e lágrimas. O
todo sem reflexão. Mas eu falo mais baixo, todos os anos um pouco mais
baixo. Talvez. Mais lentamente também, cada ano um pouco mais
lentamente. Talvez. Eu não me dou conta. As pausas seriam mais longas,
entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e
lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os olhos a boca. E eu
deveria ouvir, a cada pequena pausa, se fosse o silêncio como eu digo,
dizendo que só as palavras o rompem. Pois bem não, é sempre o mesmo
murmúrio, jorrando, sem paragem, como uma só palavra sem fim e por
conseguinte sem significado às palavras. (...). Mas continuando a velha
lamentação estúpida, faço a mim mesmo, e até o fim, uma nova pergunta, a
mais antiga, a de saber se isto foi sempre assim. (BECKETT, 2006. 111)

A este jorrar incessante do discurso ao qual estamos condenados, se opõe a


“verdadeira felicidade”, nas palavras de Beckett, “nada para todo o sempre, senão palavras
mortas” (idem, 135). Resta a árvore, peça silenciosa e fundamental no tabuleiro de Didi e
Gogô. Se o impasse trágico dos vagabundos é não conseguir sair de cena, o próprio cenário
lhes oferece uma solução: enforcar-se na árvore. Nos dois atos, Didi e Gogô consideram esta
possibilidade, mas desistem por não conseguirem resolver a logística da ação: no primeiro ato,
o galho é muito alto; no segundo, a corda é muito curta. Na leitura de Anders, o mundo da
“fábula ontológica” de Didi e Gogô é tão abstrato quanto as próprias personagens e, diante
desse “vazio”, a árvore no centro está longe de ser a “árvore da vida”:
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Estragon e Vladimir são claramente homens em geral. Sim, eles são


abstratos no mais cruel e literal sentido da palavra: são ab-stracti, o que quer
dizer ‘extraídos’, ‘postos à parte’. E como eles, tendo sido extraídos do
mundo, não tem mais nada a ver com ele, o mundo tornou-se, para eles,
vazio. Assim, também o mundo da peça é uma “abstração”: um palco vazio,
vazio a não ser por um adereço indispensável ao significado da fábula, uma
árvore no centro, que define o mundo como um instrumento permanente
para o suicídio e a vida como o não cometer suicídio. (in BECKETT, 2005. p
214)

No entanto, como apontamos em nossa análise do texto de abertura da peça, o suicídio


não solucionará o impasse de Didi e Gogô. Ambos giram no interior de um círculo vicioso, ou
ainda, conforme Worton, em uma “espiral descendente” da qual vislumbramos apenas duas
voltas, dois “atos”. O segundo ato retoma situações do primeiro, modificando-o da mesma
forma como Vladimir altera os provérbios que cita pela metade: sabemos que já ouvimos
aquelas falas, mas não exatamente daquele modo. Na segunda volta, segundo ato, algo se
modifica para que tudo continue aparentemente igual. Não sabemos exatamente quando
começou a espera por Godot, e também não sabemos quando terminará. A morte será um
meio efetivo de findar esse “eterno retorno” ao local do encontro? Como frear o girar
incessante da espiral? Se concordarmos com o argumento de Anders, e entendermos Didi e
Gogô como seres “fora do mundo”, a ideia de suicídio se tornará absolutamente estúpida: por
que sair do mundo, quando já se está fora dele? Sandra Luna (2012) esclarece que mesmo os
heróis gregos não são “suicidas em potencial”, mas, diante do impasse trágico, encontram
coragem para combater a morte, real ou simbólica:

Mesmo para um Édipo ou para uma Antígona, o trágico é apavorante,


embora seja preferível a uma vida desonrada (...). Neste caso, a opção pela
morte real é motivada pela rejeição absoluta a uma morte simbólica – a
desonra, o que parece muito significativo para nossa compreensão da
tragédia enquanto racionalização do trágico: o enquadramento da morte real
como uma opção menos aterradora do que uma morte simbólica é uma
estratégia bastante efetiva na rejeição do trágico. (LUNA, 2012. pp 389-
390).

Ora, se Estragon e Vladimir são seres “extraídos do mundo”, então já estão


simbolicamente mortos: Estragon passou a noite numa vala; Vladimir considera que não os
deixariam sequer subir na torre Eiffel para se jogarem lá do alto. Deveriam ter pensado em
suicídio quando eram “gente distinta”, quando ainda poderia haver alguma escolha entre a
honra ou a morte. Se Didi e Gogô fossem heróis trágicos conforme a tradição preconizada por
Aristóteles, isto é, “homens melhores do que nós”, deveria haver ainda, para que o trágico se
instaurasse, alguma espécie de “reconhecimento”; mas isto parece ser sistematicamente
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negado: ninguém os reconhece, eles são incapazes de reconhecer os outros. Didi e Gogô se
apresentam com nomes falsos: um Sr Albert qualquer ou o famoso poeta latino Catulo, tanto
faz o nome que se dê, isto não acarretará qualquer tipo de consequência para os dois. Além de
não terem uma identidade reconhecível, ambos não têm certeza sobre a identidade dos
viajantes Lucky e Pozzo. Sequer estão seguros quanto ao local do encontro com Godot – se
aquela árvore é a mesma ou não - e não sabem se reconhecerão Godot quando este chegar.
Sem memória e sem história, Didi e Gogô nem mesmo têm certeza de que existem de fato.
Diz Estragon: “Reconhecendo! Reconhecendo o quê? Passei minha vida de merda rastejando
nesta lama e você vem me falar de nuances!” (BECKETT, 2005. p. 118). Sua tragédia é “a
sina de ter nascido”, sina esta que não há como evitar e que, segundo Worton, as personagens
beckettianas jamais conseguirão expiar:

Pozzo remarks that ‘[... ] one day we were born, one day we shall die, the
same day, the same second. [... ] They give birth astride of a grave, the light
gleams an instant, then it's night once more’. Death as a final ending, as a
final silence, is absent from the [Beckett´s] plays. The characters must go on
waiting for what will never come, declining into old age and the senility
which will make of them helpless, dependent children again, but decrepit, as
exemplified by Nagg in Endgame, who asks plaintively for ‘Me pap’.
4
(WORTON, 1994).

Presos neste círculo de vida e morte, resta a Vladimir e Estragon inventar passatempos
que deem “a impressão de que existem”. Assim é como percebem seu encontro com os
viajantes Lucky e Pozzo: mais uma distração, outro jogo de imitar. Lucky, burro de carga e
cão guia, já não se preocupa mais em fingir sua humanidade, no entanto ainda sabe como
imitar um homem dançando ou “pensando”; seu monólogo pseudocientífico no primeiro ato é
o ponto alto dessa “mimeses da práxis” distorcida que apontamos no início de nossa
discussão. Pozzo, por sua vez, apesar de ter consciência do eterno círculo de vida e morte, no
entanto, parece nutrir ainda alguma pretensão de existência, nem que seja uma existência
forjada sobre a opressão de seu criado Lucky. Diferentemente de Didi e Gogô, Lucky e Pozzo
estão em movimento, vindos de algum lugar e indo em frente. No entanto, retornam ao

4
“Pozzo observa que ‘[...] um dia nascemos, um dia morreremos, o mesmo dia, o mesmo segundo. [...] Elas
parem montadas numa tumba, a luz brilha um instante, então é noite mais uma vez’. A morte como derradeiro
fim, como silêncio final, está ausente das peças [de Beckett]. As personagens precisam prosseguir esperando
por aquilo que nunca virá, decaindo até a velhice e a senilidade, a qual as tornará indefesas, crianças
dependentes novamente, mas decrépitas, como exemplifica Nagg em Endgame, que pede queixoso: ‘Mim pap’.”
(tradução livre). A tradução de Fábio de Souza Andrade para a fala de Pozzo supracitada é: “[...] um dia
nascemos, um dia, morremos, no mesmo dia, no mesmo instante [...] Dão a luz do útero para o túmulo, o dia
brilha por um instante, volta a escurecer.” (in BECKETT, 2005.p 183)
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mesmo ponto, isto é, os viajantes têm a ilusão de liberdade, mas estão tão atados quanto Didi
e Gogô à roda da existência. Lucky retorna mudo e Pozzo retorna cego ao segundo ato. “Será
que ele prevê o futuro?”, pergunta Estragon. Mas Pozzo não é Tirésias, apesar de ter acordado
um dia “cego como o destino”, afirma que “os cegos não têm noção do tempo”. Caído no
chão, sem saber onde está seu guia, Pozzo pede ajuda; Didi e Gogô ponderam se devem
ajudá-lo, afinal, apesar das pancadas que poderiam levar de Lucky, seria uma “bela maneira
de passar o tempo”. Lembremos aqui do célebre questionamento de Vladimir no primeiro ato:
“um ladrão foi salvo”, apesar de que apenas um dos evangelistas atesta esta versão. Mesmo
em vias de falhar e independentemente da motivação, a compaixão ainda pode ter lugar no
mundo, ou conferir-lhe algum propósito. Disto dependerá um outro tipo de “reconhecimento”,
diferente daquele preconizado por Aristóteles:

A compaixão, que sempre esteve presente em Tchekhov, havia desaparecido,


virtualmente à época de Pirandello e daqueles que o sucederam. O
desmascaramento da ilusão, em Pirandello (e igualmente nas outras obras do
próprio Beckett), carregava uma acerba zombaria que não podia ir além de si
mesma. O mundo e a vida tinham sido ‘vividos até o final’ e pronto. Nas
sequências de Pozzo e Lucky, Beckett dá continuidade a este tom, mas ele o
combina com algo que parecia perdido: a possibilidade de reconhecimento
humano, e de amor, no âmbito de uma condição absoluta ainda sem sentido.
Estranhamente, esta vida que responde, num ponto além do reconhecimento
da aporia, é convincente e tocante. (WILLIAMS, 2002.p 202).

Novamente a árvore. No segundo ato, depois de uma sequência muito rápida de várias
imitações de “atos de fala”, - que vai de uma protocolar troca de mesuras, substituída por uma
troca de xingamentos, culminando com os ritos de reconciliação (BECKETT, 2005. pp 149-
151) – Didi e Gogô se cansam desses jogos discursivos e resolvem fazer exercícios com o
corpo, mas logo se cansam também:

VLADIMIR: Estamos fora de forma. Vamos respirar fundo, assim mesmo.


ESTRAGON: Não quero mais respirar.
VLADIMIR: Tem razão. (Pausa) Vamos fazer a árvore, ajuda no equilíbrio.
ESTRAGON: A árvore?
Vladimir faz a árvore, tremendo.
VLADIMIR (parando): Sua vez.
Estragon faz a árvore, tremendo.
ESTRAGON: Você acha que Deus está me vendo?
VLADIMIR: Quem sabe fechando os olhos.
Estragon fecha os olhos, tremendo mais forte.
ESTRAGON (parando, a plenos pulmões): Deus tenha piedade de mim!
VLADIMIR (vexado): E de mim?
ESTRAGON (como antes): De mim! De mim! Piedade! De mim!
(idem, 2005. pp 153-4)
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A árvore de Esperando Godot é geralmente interpretada pela crítica a partir do ponto


de vista da religiosidade cristã ocidental - e, sem dúvida, Beckett deixa várias pistas ao longo
da peça para que tomemos a árvore, elemento central do cenário, como objeto de alta carga
semântica que gravita em torno da esfera do sagrado. Quer seja a árvore signo do centro do
mundo5, árvore proibida6, árvore da vida (parte do provérbio bíblico omitida por Vladimir) ou
árvore da morte (instrumento de suicídio), é ela quem marca a passagem do tempo em cena
através de suas folhas, que crescem no segundo ato. “Só a árvore vive”, diz Vladimir. Ela
ocupa um lugar na memória que não está ligado à história, isto é, aos atos dos homens, mas à
observação da natureza e, de alguma forma, parece guardar alguma relação com o aspecto
sagrado da existência há muito esquecido. A árvore, signo por excelência da renovação e da
esperança, não sofre com a espera: é de sua essência testemunhar silenciosa e estaticamente a
passagem do tempo.
Beckett, na montagem americana do espetáculo em 1956, indicou ao diretor Alan
Schneider que a “imitação da árvore” no segundo ato é uma clássica postura do Hatha Yoga
(DUCWORTH, 1972). Vale lembrar que, para a religiosidade indiana, a partir do tantrismo –
do qual o Yoga faz parte -, o corpo é entendido como um veículo de ascese. Além de
alongamento e pranayama (exercício respiratório) - envolvidos na montagem das diversas
posturas e também nesta, que é basicamente um exercício de equilíbrio – segundo Maria
Lucia Gnerre (2013), a “postura da árvore” é um dos exercícios mais importantes e
conhecidos de todas as linhas de Hatha Yoga até a contemporaneidade. Um dos objetivos da
postura, senão o principal, além da conexão “homem-árvore” é “a tomada de consciência, por
parte do praticante, de sua existência ‘enraizada’ na Praḳṛti [aspecto material da
existência]”. Através da “estabilidade mental gerada pela postura de equilíbrio”, o praticante
pode “observar a si mesmo em sua condição, e assim caminhar no sentido da própria
transcendência, através de um estado meditativo” (GNERRE, 2013. p56). É curioso notarmos

5
Segundo Eliade (2011), nas sociedades tradicionais, a comunicação entre os planos sagrado e profano causa
uma “rotura” na homogeneidade do espaço e do tempo. O local onde se dá essa rotura passa a ser o Axis mundi,
portanto um local “sagrado”, o qual é expresso por um certo número de imagens todas elas referentes ao “centro
do mundo”: montanha, torre, pilar, árvore marcam o eixo onde Céu e Terra se encontram.
6
Enquanto observam cadáveres, Vladimir e Estragon dizem “O terrível é já ter pensado um dia”, “Devíamos ter
mergulhado profundamente na Natureza”, “Ah, com certeza [ter pensado] não é o pior”, “Mas podíamos ter
passado sem essa”, frases que subliminarmente remetem ao “pecado original”. Adão e Eva, ao ingerirem o fruto
da “árvore proibida”, num único gesto, adquirem discernimento entre bem e mal (o logos passa a operar em suas
consciências), e assim se afastam da natureza (percebem que estão nus). Como punição são condenados por
Deus ao sofrimento (Eva terá de parir seus filhos dolorosamente; Adão terá de “comer o pão com o suor de seu
rosto”) e vigiados para que não comam jamais da “árvore da vida”, que poderia lhes dar a imortalidade.
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que, em meio a tantas referências à mitologia cristã, surja o Yoga para elucidar um dos
aspectos da árvore. Certamente há aqui uma brincadeira com o modismo orientalista de
meados do século XX, já presente há tempos entre os burgueses do velho mundo, e que agora
ganhava força entre os inconformados jovens beatniks da Califórnia. Como Didi e Gogô
imitam qualquer coisa, por que não imitar a “moda do Yoga”? “Deus, tenha piedade de
mim!”, grita o yogue Estragon, tremendo pelo esforço físico. No entanto, em se tratando de
Didi e Gogô, nada é tão ingênuo quanto parece. Como leitor contumaz de Schopenhauer e de
Nietzsche - cujos sistemas filosóficos sofreram inegável influência do pensamento indiano,
especialmente da doutrina budista -, Beckett pode ter tomado contato, por via indireta, com a
doutrina pan indiana dos yugas7, a qual expandiu ao máximo a ideia do “eterno retorno
terrífico” ao ciclo de vida e morte, isto é, à “Roda do Samsara”. O Yoga, enquanto prática de
ascese, visa justamente romper com este ciclo em direção ao “Atmã”, o “Eu primordial”, o
“Absoluto”. No entanto, o “Absoluto” não subsistirá no Budismo que, apesar de derivar do
mesmo ambiente cultural do Hatha Yoga, é radicalmente distante de qualquer conceito deste
tipo: ao invés de encontrar o “Atmã”, os budistas almejam o “Anatmã” (o “não- eu”).
Também não há qualquer ideia no Budismo que se assemelhe a um “Deus criador”, ou
piedade divina. Os filósofos alemães, fascinados pelo ateísmo budista, prontamente o
identificaram com o niilismo. No entanto, o Budismo também é uma religião, e, neste sentido,
visa trazer conforto aos homens. A soteriologia budista mais difundida no ocidente (Budismo
Mahayana, especialmente a escola Zen) toma por base, sobretudo, o exercício da compaixão,
isto é, da compreensão de que entre o “eu” (mundo interno) e o “outro” (mundo externo) não
há distinção, ideia radicalmente diferente da noção de piedade divina cristã. De forma
bastante resumida, podemos afirmar que a doutrina budista mahayana formata seu conceito de
compaixão a partir da análise de que as experiências mundanas são inseparáveis das estruturas
internas da mente, isto é, a “verdade última” de todos os fenômenos e de todas as experiências
sensórias é o vazio. Da mesma maneira, qualquer que seja a apreensão que tivermos do “eu”,
esta não passará de uma construção mental, isto é, o “eu” só existe como delusão, e sua
natureza última é a “vacuidade”. Se nossas estruturas mentais são modificadas, o modo como
percebemos não só os fenômenos, mas sobretudo aquilo que chamamos de “eu”, também se
altera. Não perceber a verdade última do eu e dos fenômenos, significa sustentar uma
compreensão incorreta da existência, manter-se preso na ignorância (avidya, em sânscrito) e

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Esta doutrina elabora o templo cíclico (observável na natureza) como a eterna repetição da destruição e
recriação periódicas do Cosmos. Ver ELIADE, 2001 .
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errar incessantemente nas engrenagens da Roda do Samsara, Não por acaso, o ícone que
simboliza avidya, o primeiro e principal elo entre os doze que formam a corrente que nos
prende à Roda do Samsara, é justamente um cego tateando o chão com uma bengala. Esta é
uma longa discussão, que por ora não cabe no escopo deste artigo.
De todo modo, Beckett parece ter captado de modo peculiar a distância radical da
noção de “salvação” entre a cultura ocidental cristã e o budismo/tantrismo8, mesmo que tenha
sido através de vias indiretas e tortuosas, da filosofia germânica “niilista” ou da contracultura.
Ainda devemos notar que o exercício de meditação, proporcionado também pela postura da
árvore, visa justamente observar o fluxo mental, ou seja, a meta desta prática não é fazer
cessar a verborragia, mas observá-la enquanto ferramenta (de tortura, na maioria das vezes)
que nos prende à roda da existência, “Roda do Samsara”, impedindo-nos de vivenciar o
Absoluto (o “samadi” do yogues), ou a “vacuidade” (o “nirvana” budista). Conforme
afirmamos acima, o vazio para os budistas não é devastação, mas redenção; o vazio, portanto,
não é o sofrimento, mas o cessar de todo sofrimento. Se somos “ocidentais” demais,
demasiado “cristãos” para nos salvarmos através da imitação da árvore dos yogues, ou para
buscar a paz budista na vacuidade do “não-eu”, por outro lado, a ideia da compaixão não nos
é totalmente estranha: “Será que dormi enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora?
Amanhã, quando pensar que estou acordado, o que direi desta jornada?”, Vladimir se
pergunta. No final de cada um dos dois atos, Didi e Gogô resolvem ir embora, e não se
mexem. “Mas como permanecem unidos, sem nada a buscar nem nada a esperar senão
frustração, e no entanto permanecendo juntos, retoma-se assim um ritmo trágico antigo e
profundo.” (WILLIAMS, 2002. p 203). A consciência de que a causa da existência de Gogô
está diretamente ligada à causa da existência de Didi (e vice-versa), e que o “eu” não existe
separadamente do “mundo” (apesar de ambos acreditarem algumas vezes ser possível uma
existência individual, definida fora dessa relação interdependente, isto é, apesar de se
deixarem levar em alguns momentos pela “ilusão do eu”) se aproxima mais da ideia budista
de compaixão (atributo humano) do que de piedade cristã (atributo divino). Mesmo que
continuem a usar a ato da espera como álibi para sua permanência no girar infernal da “Roda
do Samsara”, Didi e Gogô não permanecem juntos porque sentem pena um do outro, mas
porque sentem compaixão: não há salvação individual, pois não há um “eu” que não seja
também o “outro”. Seu drama talvez não seja estar “fora do mundo”, como afirmou Anders,
mas, ao contrário; Didi e Gogô continuam completamente presos ao mundo, ao “Samsara”,

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As possíveis leituras “budistas” da obra de Beckett são discutidas em CASTAGNINO, 2013.
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atados nas engrenagens da roda da vida e, por compaixão, hoje não vão se matar. Talvez
amanhã, se Deus tiver piedade.
Arriscamos dizer que a alma da tragicomédia em Beckett não é a ação, mas a imitação:
paródia, farsa, parábola, quaisquer que sejam as características de gênero que tentemos
atribuir ao texto de Beckett, ele continuará a espelhar quão frágil, quão ridícula e caricatural é
a condição humana, independentemente do modo que tentemos expressá-la através de “nossos
parcos recursos”. Se o inferno é aqui e agora, resta-nos escolher chorar ou rir (ou ambos) de
nossa desgraça, enquanto giramos nas engrenagens da roda da vida. “E se a gente se
enforcasse?”, a esta pergunta de Estragon, Vladimir, carnavalizando a tragédia, responde:
“Um jeito de ter uma ereção” (BECKETT, 2005. p. 34). Da inseparabilidade entre o trágico e
o cômico, entre a morte e a vida, entre “eu” e “não-eu” decorrem as diversas possibilidades de
montagem deste espetáculo. A árvore de Godot, neste sentido, é altamente democrática,
permitindo o passeio num vasto campo de signos - que vai da queda de Adão e Eva ao yogue
no topo dos Himalaias- através do qual cada leitor, cada diretor ou cada cenógrafo pode
traçar seu caminho, sem prejuízo do sentido essencial da peça. A árvore pode ser uma forca,
um crucifixo, um espelho, um cartaz de metrô, um transformador elétrico sobre o qual Didi
pratica yoga (montagem de Joël Jouanneau, 1991), ou somente uma árvore. Didi e Gogô, por
sua vez, não são heróis trágicos por excelência, mas parecem vestir a máscara ridente de
Dioniso diante do sofrimento humano, seguindo os passos do deus, loucos e embriagados.
Estariam, portanto, em outro plano que não o dos humanos “iguais a nós”, talvez no plano dos
deuses? Lembremos que este texto de Beckett surge num momento em que a humanidade
continua buscando a si própria entre os escombros do pós-guerra: não só a poesia, mas o riso
e sobretudo as lágrimas ainda são possíveis depois de Auschwitz? Se, por um lado, Beckett
leva a polissemia da expressão inglesa “to play” ao seu limite (atuar, jogar, brincar etc.), por
outro, ao se apropriar das práticas e falas do senso comum - imitando-as e reordenando-as em
contextos imprevisíveis, parodiando-as para explodir internamente o automatismo das ações
cotidianas, - as “brincadeiras” de Didi e Gogô denunciam algo bastante concreto, tão real
quanto a dor de um par de botas apertadas: estes jogos, dos quais participamos sem perceber,
nada mais são do que estratégias para preencher o tempo de nossa existência, nos distrair de
nossa humanidade. Afinal, somos hábeis em inventar coisas “para dar a impressão de que
existimos”. Godot, esfinge beckettiana por excelência, continua a devorar homens e mulheres:
seria ele a esperança sempre adiada, a morte, Deus, a árvore cenográfica? Ou seria Godot
apenas mais uma distração, uma ilusão necessária de que a vida tem algum propósito, que não
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seja apenas o preenchimento do tempo da própria vida? Vida e morte que não cansamos de
interrogar entre palavras, silêncio, riso e lágrimas.

Referências

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ANDERS, Günter. “Ser sem tempo: sobre Esperando Godot, de Beckett”, in Neue Schweizer
Rundschau, 1954. [Excerto apud BECKETT, 2005. pp 213- 15. Op cit.]
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
Paulo: Cosac & Naify, 2005.
______. Novelas e Textos para nada. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Portugal: Ed.
Assírio & Alvin, 2006
CASTAGNINO, María Inés. “Beckett, budismo, Zen y um acercamiento a Textes pour rien.”
Revista Beckettiana, nº 12. Buenos Aires: Instituto de Filología e Literaturas Hispánicas “Dr
Amado Alonso”, Facultad de Filosofia y Letras, Universidad de Buenos Aires. 2013 (pp 47-
56).
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do
Discurso. Trad. Fabiana Komesu, 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.
ELIADE Mircea. O Sagrado e o Profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 2011
GNERRE, Maria Lucia Abaurre. O corpo moldado no fogo do Yoga: Corporeidade e
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Fora. Fev. 2013. Mimeo.
LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. 2ª ed. João Pessoa: Ideia/ Ed.
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______. Drama social, tragédia moderna: ensaios em teoria e crítica. João Pessoa: Editora
Universitária da UFPB, 2012 (b).
MORRIS, Tony. Em que acreditam os budistas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.
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WORTON Michael. “Waiting for Godot and Endgame: Theatre as Text”, in The Cambridge
Companion to Beckett, ed. John Pilling. Cambridge University Press, 1994. Disponível em:
http://www.samuel-beckett.net/Godot_Endgame_Worton.html Acessado em: 27/01/ 2014.
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BREATH (2000) AND THE CONCEPT OF "NOTHINGNESS": UM ESTUDO


INTRODUTÓRIO DA ESTÉTICA DE SAMUEL BECKETT NA ADAPTAÇÂO DE
DAMIEN HIRST

Débora Gil Pantaleão


Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Letras (PPGL)
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Introdução

Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento


humano, deveria ser a de seus arrependimentos sucessivos e de suas
impotências (CAMUS, 2014).

Em 1942, Albert Camus (1913-1960) publica, durante a Segunda Guerra Mundial, O


Mito de Sísifo - obra em que recusa igualmente o suicídio individual, o suicídio filosófico e o
suicídio político. Para ele: o suicídio individual cancelaria o absurdo que existe na relação do
homem com o mundo; o suicídio filosófico (especialmente no que diz respeito aos "filósofos
existencialistas") teria por essência a evasão metafísica, ou seja, se apresentaria no teor da
explicação e não da descrição; e por fim, o suicídio político, que seria representado pelas
utopias que afirmam serem capazes de banir o absurdo da nossa história. Ora, é preciso então
compreender o que seria esse sentimento de mundo (se é que podemos assim dizer) nomeado
"absurdo" e que é tão precioso para Camus.
Sobre sua origem, ele afirma que "nasce em confronto entre o apelo humano e o
silêncio irracional do mundo" (2014, p. 39), onde o homem absurdo "só sabe que, nessa
consciência atenta, já não há lugar para a esperança" (2014, p. 46) e que enxerga o absurdo
como um estado metafísico desse homem consciente, estado este que não conduz a Deus. É
importante ressaltar que Camus não "exclui" Deus, já que excluí-lo seria afirmar sua
existência.
É dessa impotência perante o estar condenado à morte, uma morte que nos conduz ao
nada, que Martin Esslin utiliza o absurdo de Camus para intitular o estilo teatral ao qual
chamou de Teatro do Absurdo. Ionesco, um dos escritores que Esslin nomeia como sendo um
dos grandes nomes desse estilo, afirmou certa vez, sobre o traço mais característico das
pessoas do seu tempo (o Pós-guerra), que as pessoas perderam "qualquer tipo de consciência
mais profunda de destino" e que não se pode mais evitar questionamentos como "o que
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estamos fazendo na terra e como podemos suportar o peso esmagador do mundo das coisas"
(IONESCO apud BERTHOLD, 2011, p. 522).
Vejamos como se deu o conceito de "absurdo" no teatro e na adaptação fílmica de
Breath (2000), do britânico Damien Hirst (1965).

Beckett e o teatro do absurdo

O Teatro do Absurdo foi um termo criado pelo crítico norte-americano Martin Esslin
(1918-2002), no final da década de 1950, para descrever dramaturgos e diretores, a princípio
bastante diferentes entre si, mas que tratavam suas obras de forma inusitada no que diz
respeito a suas relações com a realidade.
Inspirado nas vanguardas europeias, esse teatro teria por características principais:
diálogos repetitivos e aparentemente sem sentido; personagens simbólicos e não-personagens,
ao invés de personagens clássicos ou problemáticos; personagens em situações ilógicas
(presos em um amontoado de terra a exemplo de Happy Days (1961) ou esperando alguém
que nunca chega, como em Waiting For Godot (1952); um enredo episódico, fragmentado e
não causal; dentre outras características. Vejamos:

Em um período de pós-guerras, com a Europa devastada pela destruição


bélica, doenças, fome e todas as formas de degradação humana vivenciadas
naquela época, os dramaturgos do Teatro do Absurdo trazem todo esse
panorama estético para as suas peças, unindo a comicidade ao trágico
sentimento de desolação. No Teatro do Absurdo, a incerteza e a solidão
humanas vêm à tona por meio do uso de elementos conhecidos (situações
banais, gestualidade cômica) ou menos usuais (construções frasais
aparentemente non-sense, gestos mecânicos repetidos várias vezes, ações
sem motivação aparente) (ESSLIN apud VARGAS, 2013 - grifo nosso).

Samuel Beckett (1906-1989), assim como outros autores do Teatro do Absurdo,


radicalizariam a proposta do Teatro Épico brechtiano, rompendo totalmente com os conceitos
Aristotélicos vistos na Poética e buscando um texto que sacuda a psique do espectador - para
além da representação da realidade. A ideia de conflito, que agora parece muito distante da
ideia convencional (presente no próprio texto) se move do texto ou da cena para a relação
destes com o espectador.
Em Breath (1969), Beckett chega a radicalizar a própria estrutura de suas outras peças,
apresentando um cenário destituído de personagens e que dá lugar a novos atores: ao lixo, a
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uma respiração, a um choro e aos jogos de luzes. É ainda vista por Mahida como a peça mais
curta do mundo da literatura (2011, p.23), contendo por volta de 30 segundos.
A fim de continuar esta investigação, veremos na sequência como as indicações de
palco escritas por Beckett se concretizaram na adaptação fílmica de Damien Hirst.

A peça e a adaptação fílmica de Damien Hirst

O texto de Beckett pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira, indicações
mais gerais sobre luz, tempo de duração de determinado efeito de luz ou choro, etc... E a
segunda, indicações mais específicas, como a posição do lixo, o número preferível de vozes
para o choro, etc. Vejamos a peça a seguir:

PARTE 1 (INDICAÇÕES GERAIS)


CURTAIN
1.Faint light on stage littered with miscellaneous rubbish. Hold for about five seconds.
2.Faint brief cry and immediately inspiration and slow increase of light together
reaching maximum together in about ten seconds. Silence and hold about five seconds.
3.Expiration and slow decrease of light together reaching minimum together (light as in
1) in about ten seconds and immediately cry as before. Silence and hold for about five
seconds.
(BECKETT, 2006, p. 371)

PARTE 2 (INDICAÇÕES ESPECÍFICAS)


CURTAIN
RUBBISH
No verticals, all scattered and lying.
CRY
Instant of recorded vagitus. Important that two cries be identical, switching on and off
strictly synchronized light and breath.
BREATH
Amplified recording.
MAXIMUM LIGHT
Not bright. If 0 = dark and 10 = bright, light should move from about 3 to 6 and back.
(BECKETT, 2006, p. 371)

Ao falar sobre a relação de Beckett com a linguagem, John Calder, em seu livro The
Philosophy of Samuel Beckett (2001), afirma que "if he believed in anything, he believed in
language: ' words have been my only loves, not many.'" (p. 16) e que Beckett sempre se sentiu
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primeiramente um novelista, acreditando que o seu envolvimento com teatro (como diretor,
principalmente) foi de longe um acidente - o que acabou por fazer dele um dos grandes nomes
do teatro do século XX. Ele chega a afirmar, certa vez, que "'the best possible play is one in
which there are no actors, only the text. I am trying to find a way to write one'" (BECKETT
apud CALDER, 2001, p. 16). Em 1969, Beckett encontraria essa fórmula com Breath.
A peça teria sido encomendada por Kenneth Tynan para sua revista vanguardista Oh!
Calcutta! - Breath é até hoje aclamada pela crítica ora como um experimento minimalista que
acarreta toda uma tradição histórica e teórica, ora como um mero non-sense. Tratando-se da
obra em termos convencionais, Breath poderia ser formada por cinco atos, como o próprio
Beckett a chamou na tradução para o francês de "farce in five acts".
Em artigo intitulado Decoding World's shortest play Samuel Becket'st Breath (2011),
Mahida aponta esses cinco atos investigados por William Hutching:

1. The initial pause and the first cry, representing birth, constitute the
"introduction" and "inciting moment" of life in general and of this play in
particular;
2. The inhalation, a symbol of growth and development, is clearly a "rising
action" (of the thorax and diaphragm as well as of the play) which is
appropriate for a second "act";
3.The pause while the breath is held is the climax and the third "act," the
culmination of growth and maturation, the apex of the "vital capacities" of
the lungs and hence of life;
4.The exhalation - a metaphor for the entropic decline of the body with
advancing age, a declining "vital capacity," and death (i.e., complete
exhalation) - constitutes the "falling action" of the thorax and the fourth "act"
of the play, which is followed immediately by
5. The reiterated cry, the "catastrophe" or "resolution" of the play, and a final
silence before the curtain descends (HUTCHING apud MAHIDA, 2011, p.
23-24).

Desse modo, no que diz respeito à estrutura, Breath se apresentaria, de acordo com
Hutching, de modo convencional - com começo, meio e fim, além de apresentar elementos de
clímax e de catástrofe.
Quando partimos para a linguagem cinematográfica, no caso de Breath especialmente,
temos a facilidade do movimento de câmera, da posição do lixo no tablado que se move
também com os recursos que o cinema propõe, ao contrário do que poderia ser feito no palco
de um teatro (mesmo com tantos novos artifícios).
Sobre a mise en scène, no lugar do figurino (normalmente atraente ao espectador) tem-
se os remédios vazios, uma maca de hospital, um monitor e um teclado de computador, filtros
de cigarros, além dos sacos amarelos abarrotados de mais lixo (de aparência hospitalar).
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As cores amarelo, branco e azul podem nos remeter ao lugar hospital, lugar onde
usualmente, ao mesmo tempo, estamos aptos a nascer e a morrer. Temos assim o ambiente,
tudo isso em um tablado, junto com as luzes que ora clareiam, ora escurecem. Já no que diz
respeito à atuação, há a presença da respiração - inspirando e expirando, na interpretação de
Hirst, de forma bizarra. E por fim, a câmera em travelling nos causa a sensação de estar
viajando pelo absurdo e pela brevidade da vida - pontos comuns em Beckett e Hirst.
É importante lembrar que o tema da fidelidade na adaptação não é do nosso interesse.
Hirst faz sua própria interpretação da peça de Beckett, utiliza-se da direção visual dele, de seu
contexto e adiciona novos sentidos à obra - casando sons com suas escolhas visuais.
Ao invés de utilizar lixos variados ("miscellaneous rubbish"), como propõe Beckett,
Hirst escolhe detritos médicos e hospitalares. Tais detritos não estão mais parados no palco do
teatro, mas nos dão a sensação de que se movem de acordo com a câmera, causando no
espectador a sensação de estar atordoado. A única evidência visual do contato humano que
aparece em Hirst são os filtros de cigarro.
Sobre algumas mudanças da peça para a adaptação de Hirst, Kim Clune menciona:

Where Hirst does stray from Beckett's direction is with his use of sound.
Beckett calls for a "faint brief cry and immediately inspiration." Instead,
Hirst foregoes the cry and uses the specific sound of someone inhaling
with great difficulty. The sound is organic, human, painful and strained but
ends on an up note like at the end of a question, perhaps demonstrating hope
as oxygen enters the lungs. The second sound is again devoid of the cry.
The expiration is not normal but the sound of one's last breath as the
muscles of a torso relinguish their ability to expand once more. This sound
is of air trailing out to the still silence of finality. By eliminating the vagitus,
or newborn cry, this film becomes a strict dealing with the end of life and
eventual death, ignoring the beginning altogether (Hirst's version of
Beckett's "Breath". Prática da pesquisa, jan. 2008. Disponível em
<http://atticfox.wordpress.com/2008/01/16/becketts-breath/>. Acesso em: 13
out. 2014 - grifo nosso).

Além das mudanças de som, há a inserção dos filtros de cigarro. Os filtros que estão
no cinzeiro em formato da suástica nazista e os que estão ao lado do cinzeiro jogados
aleatoriamente. A suástica é, desde a Segunda Guerra Mundial, um símbolo de assassinato em
massa e das câmeras de gás nazistas:

FILME BREATH (2000) - DIRETOR DAMIEN SUÁSTICA NAZISTA - SEGUNDA GUERRA


HIRST MUNDIAL
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Em suma, Breath teria como temas "the uselessness of human action, and the failure
of the human race to communicate" (MAHADI, 2011, p. 24) como consequência dos males
das guerras e nos remetendo ao absurdo da existência - esta, que já tratamos na nossa
introdução no que disse respeito às observações de Camus. Embora na adaptação fílmica,
Hirst também deixe aberto a questionamentos a respeito das industrias que produzem cigarros,
que também são máquinas que possuem um efeito de assassinato em massa.

O conceito de "Nothingness" (nada) em Breath (2000)

"O que seria então a vida?" (...) "O desespero." (CAMUS, 2014).

Beckett, em seus tempos de estudos na Trinity College Dublin, chega a encontrar por
acaso, na biblioteca da Trinity, o livro Ethica (1665) do filósofo belga e seguidor de Descartes
(1596-1650), Arnold Geulincx (1624-1669). Geulincx, dentre outros filósofos, viria a
influenciar Beckett no decorrer de toda sua obra. Ele é citado no capítulo 2 de Murphy (1938)
e na peça Waiting for Godot "rien a faire", ou "nothing to be done" - "the essence of his view
of the world is that man is a tiny being of no importance in the immensity of God's creation
and should conduct himself accordingly" (CALDER, 2001, p. 4).
Em ensaio sobre Proust, Beckett chega a tratar da questão da remoção do desejo em
dois de seus personagens: Brahma e Leopardi. No decorrer do seu estudo Calder afirma que a
"remoção" (ou "ablation") seria "the determination to resist the seductions of ambition and to
become nothing, to desire nothing, expect nothing and be nothing, along the lines advocated
by Arnold Geulincx in his Ethica" (2001, p. 4).
É então que surge o conceito de "nothingness", ou nada, na obra de Beckett. Para ele,
apenas o nascer e o morrer possuem verdadeiramente algum significado. O que está no meio
seria apenas uma existência desprovida de qualquer significado: a espera, a rotina, o declínio.
Em outras palavras, uma jornada que não importa ser bem ou mal sucedida nos leva
inevitavelmente ao mesmo fim: a morte. Logo:
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There is neither fault nor shame in failure. The cause, more often than not, is
accident, just as the situation into which one is born is an accident, part of
the chaos and general mess of all existence (CALDER, 2001, p. 9).

Assim, Breath, mais do que qualquer outra peça de Beckett, ouso dizer - inclusive
mais fortemente representada na adaptação de Hirst - apresentaria a vacuidade e o absurdo
presente na nossa existência, esta que alcançamos por um mero e fatídico acidente.
Lembremos que de nenhum modo pretendo igualar o pensamento de Beckett e Camus, pelo
contrário, apenas utilizar o conceito de absurdo formulado por Esslin.
Em The Theology of Samuel Beckett (2012), Jonh Calder dedica o último capítulo, que
chama de "The Meaning of Nothingness", ao estudo do conceito de "Nothingness" em
Beckett. Calder afirma que de alguma forma, Beckett estaria "echoing the last lines of
Macbeth's great speech defining life before he goes into his final battle: "a tale told by and
idiot, signifying nothing" (2012, p. 117).
O conceito de nada nos remeteria então a um sentimento de humildade. Deus seria
visto mais como um tirano, um rei ou um ditador - "to whom one must homage and obey" -
do que como um salvador, embora Beckett nunca tenha se nomeado ateu e tenha sido aberto,
assim como Geulincx à possibilidade de uma "far-away divinity, indefinable expect as a will,
but outside any human understanding" (CALDER, 2012, p. 123). Deus está sempre como um
background na obra de Beckett, mas não como uma divindade que deve ser admirada ou
amada, mas "as the cause of all suffering or as being indiferent to it" (CALDER, 2012, p.
121).
Em Breath, portanto, de Beckett e Hirst, em sua adaptação mais que condizente com a
estética beckettiana, há o que Casanova apresenta como um Beckett que:

[...] pursues the logic of abstraction to its most inhuman extremes; who
refuses the morphine of idealism even when in severe pain; whose work
represents a merciless onslaught on the pretensions of Literature; and who
preserves a compact with silence, breakdown and failure in the face of
historical triumphalism and the self-flaunting word (EAGLETON, 2006, p. 2
- grifo nosso).

Araújo (2009) viria a tratar do "nothingness" em seu aspecto niilista, baseado em


Nietzsche, remontando à desesperança e ao andar em círculos das personagens de algumas
das narrativas de Beckett e Hilda Hilst - denunciando a situação incerta do homem no mundo
contemporâneo, um mundo decadente, que no "otimismo" nietzschiano precisaria ter seus
valores renovados diante do nada, ou seja, diante da inexistência de Deus.
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Referências

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recomeço da narrativa. 2009. 278 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós
Graduação em Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. 2009.
BECKETT, Samuel. The complete dramatic works. London: Faber and Faber, 2006.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CALDER, John. The Philosophy of Samuel Beckett. London: Calder Publications, 2001.
CALDER, John. The Theology of Samuel Beckett. London: Calder Publications, 2012.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
CLUNE, Kim. Hirst's version of Beckett's "Breath". Prática da pesquisa, jan. 2008.
Disponível em <http://atticfox.wordpress.com/2008/01/16/becketts-breath/>. Acesso em: 13
out. 2014.
EAGLETON, Terry. In Introduction: CASANOVA, Pascale. Samuel Beckett: Anatomy of a
Literary Revolution. London: Verso, 2006.
MAHIDA, Chintan A. Decoding world's shortest play Samuel Beckett's Breath. In:
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VARGAS, Vagner de souza. BUSSOLETI, Denis Marcos. Teatro do Absurdo e o Séc. XIX.
<http://historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=242>. Acesso em 12 out. 2014.
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PARÓDIA E A CONSTRUÇÃO DA AÇÃO TRÁGICA EM ARIEL, DE MARINA


CARR

Leonardo Monteiro de Vasconcelos


UFPB

Este artigo pretende, inicialmente, estudar a noção de paródia proposta por Linda
Hutcheon (1985) no seu livro Uma teoria da paródia. Depois de observarmos o conceito
proposto pela referida autora, iremos analisar como o uso de três pré-textos gregos será usado
como referência para o enredo do drama irlandês Ariel, de Marina Carr.
Linda Hutcheon (1985, p.6) estuda como a paródia se faz presente nas artes. À luz da
pós-modernidade, a autora irá desconstruir a noção negativa que o termo remete. Hutcheon
(1985) afirma que paródia é uma forma de imitação, no entanto caracterizado pela inversão
irônica, ou seja, paródia é uma repetição com uma distância crítica.
A fim de se distanciar dos conceitos negativos do termo que a paródia evoca. A autora
irá recorrer a raiz etimológica da palavra para recuperar o seu sentido inicial:

No entanto, para em grego também pode significar “ao longo de” e,


portanto, existe uma sugestão de um acordou ou intimidade, em vez de um
constraste. É este segundo sentido esquecido do prefixo que alarga o escopo
pragmático da paródia de modo muito útil para as discussões das formas de
arte moderna [...]. Nada existe em paródia que necessite da inclusão de um
conceito de ridículo, como existe, por exemplo, na piada, ou burla, do
burlesco. A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e
inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação critica
entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distancia
geralmente assinalada pela ironia (HUTCHEON, 1985, p. 48)

É a repetição com diferença e o caráter crítico que o texto paródico utiliza, que iremos
observar como em Ariel a autora Marina Carr utiliza dos mitos e textos gregos para reatualizar
as obras clássicas. Importando a temática, mas contextualizando a peça num cenário irlandês,
iremos perceber como as problemáticas e a crítica feita as instituições irlandesas, a saber,
família, igreja e Estado, tomam um aspecto mas universal devido ao uso das tragédias
clássicas como base para construção de Ariel.
Nesse contexto paródico, a dramaturgia irlandesa tem apresentado uma produção
significativa em relação aos números de peças produzidas nas últimas décadas, entretanto
pouco prestigiado no Brasil. De fato, o público brasileiro é somente familiarizado com textos
de dramaturgos já consagrados internacionalmente, a saber, Oscar Wilder, W.B Yeats,
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Samuel Beckett e George Bernard Shaw. Recentemente um grupo de dramaturgos vem


ganhando notoriedade tanto do público quanto em relação a crítica especializada. Neste
trabalho destacaremos a dramaturga Marinna Carr e sua peça Ariel.
Marinna Carr nasceu em 1964 e cresceu no condado de County Offaly, situado em
Midlands, área que constitui o triângulo central da Irlanda cujo relevo predomina montanhas e
bogs. Carr estudou Inglês e filosofia na University College Dublin onde ela focou seus
estudos iniciais nas peças de Samuel Beckett. Até o presente sua produção teatral inclui 16
peças. Carr foi diversas vezes premiada, das quais podemos destacar os principais
títulos: Dublin Theatre Festival Best New Play Award, a Macaulay Fellowship, a Hennessey
Award, the Susan Smith Blackburn Prize, and an E. M. Forster Prize from the American
Academy of Arts & Letters. Atualmente ela ensina na Trinity College em Dublin, Irlanda. Sua
obra dramática foi eleita como criativa e original pela Aosdána (afiliação de escritores
Irlandeses). Carr também é escritora residente da Trinity University, Princeton University e do
Abbey Theatre. Para alguns estudiosos, como Nancy Finn (2012) Marina Carr e Brian Friel,
hoje, são considerados como um dos principais dramaturgos Irlandeses desde Samuel Beckett.
Inicialmente a dramaturgia de Marinna Carr era considerado um trabalho
experimental. Quando ela abandonou o seu trabalho de vanguarda foi quando se firmou no
teatro irlandês. Por exemplo, sua pela The Mai (1994) foi a sua primeira peça premiada.
Desde então, podemos perceber que a morte é um tema recorrente nos trabalhos da
dramaturga. Segundo Mesquita (2005), a escritora acredita que é o significado último e maior
de nossas vidas pois existe uma certeza do fim. Ademais, “a dramaturga está convencida de
que a maneira como se morre explica a maneira como se viveu e esclarece, afinal, o motivo
pelo qual estamos aqui” (p.15).
Além do tema da morte, o cenário e o sotaque indicado nas rubricas ajudam a
caracterizar as suas peças irlandesas. O dialeto do Midlands, por exemplo, é uma marca de
Irishness que a autora confere à sua obra. Além do espaço realista, são introduzidas figuras
sobrenaturais que, se por um lado, ultrapassa a representação mimética da realidade, por
outro, vemos alusões a lendas e mitos que ajudam a caracterizar a Irlanda e também expande
o alcance de suas peças quando utiliza de textos gregos como base de suas histórias, por
exemplo. Outra característica importante nos textos de Marina Carr são as suas personagens
femininas que ocupam papeis de destaque, exceto em On Raftery’s Hill (2000) e,
principalmente, em Ariel (2002). (MESQUITA, 2005)
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Ariel foi produzida em 2002 no Abbey Theatre em Dublin, Irlanda. A peça retrata
Ariel, filha de um rico homem de negócios, Fermony Fitzgerald. Sendo um fundamentalista
religioso, Fitzgerald considera um sacrifício de sangue como forma de ascender ao mundo
político. Dez anos depois, o pai de Ariel é uma celebridade, apontado como o próximo líder
da República da Irlanda. Fica, portanto, perceptível que a ascensão de Fitzgerald está
conectada ao desaparecimento da filha. A partir desse ponto, um ciclo de vingança familiar se
instaura na peça. Percebe-se que a trama é construída através da conjunção de três pré-textos
da tragédia grega, a saber, Ifigênia em Aulis, que remete ao primeiro ato de Ariel, o segundo
ato baseando-se em Agamêmnon e o terceiro ato, as Coéforas. “Ariel é o retrato de um mundo
em que os três pilares da sociedade – Igreja, Estado, Família – estão em avançado estado de
decadência “(O’TOOLE, apud (MESQUITA, 2005, p. 18).
Embora Marina Carr utilize mitos gregos como forma de universalizar conflitos e
temas, a escritora conserva a tradição de seu país, utilizando a linguagem local e a
demarcação de espaço que sinalizam uma identidade irlandesa. Em Ariel (2002) os conflitos
presentes no âmbito familiar se expandem para a esfera pública. Na peça, a temática da morte
se faz presente na obra.
Primeiramente, devemos reiterar que Ariel não se configura como uma “versão” da
peça de Euripedes, a ordenação do enredo e a utilização da peça somente no primeiro ato
reitera o traço paródico que mencionamos inicialmente no texto
Inicialmente, tanto em Ariel quanto em Ifigênia em Áulis, o sacrifício de uma jovem é
realizado, pelo próprio pai, a fim de cumprir uma ordem divina. Carr utiliza a morte como
mote da sua história, entretanto observa-se a distância que o texto irlandês em relação ao
grego, pois a forma como acontecesse esse sacrifício e a finalidade da morte de Ariel difere
do texto clássico. Na peça irlandesa, a ação estende-se para além do sacrifício da personagem
que dá origem ao título do livro. Se em Ifigênia em Áulis (2005) surge um mensageiro para
informar que a heroína não morrera, em Ariel a morte é definitiva, pois é a partir da morte
definitiva da personagem Ariel que ocorrerá o encadeamento para as outras peças de
Eurípedes.
Ifigênia em Áulis pertence ao ciclo troiano ou dos Atridas. Os Atridas são os filhos de
Atreu, Agamêmnon e Menelau. Atreu é inimigo do Irmão Tiestes. Agamêmnon mata Tântalo,
filho de Tieste e toma Clitemnestra (até então esposa de Tiestes) por esposa e com ela gera
três filhos, a saber, Ifigênia, Electra e Orestes. Ifigênia está ligada a Guerra de Troia. Ela é
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sacrificada para acalmar a cólera de Ártemis, por conseguinte, os ventos favoráveis para a
partida do exército fossem soprados.
Considerando o sacrifício na peça de Euripedes, em Ariel a peça se inicia in media res,
ou no meio dos eventos importantes, com a festa de aniversário da personagem-título. A
aniversariante está cercada pelo pai, Fermoy, a mãe, Frances, os dois irmão, Elaine e Stephen,
o tio, Boniface e a tia-avó, Sarah. O primeiro ato se inicia no presente na qual as rubricas
responsáveis pela caracterização do espaço situam o leitor em relação ao espaço-tempo: “Sala
de jantar da casa da família Fitzgeral, mesa, CD player, cadeiras” (CARR, 2009, p.66). Como
presente de dezesseis anos, Ariel ganha de presente de aniversário do pai um carro. Só mais a
frente é quando o espectador irá perceber a verdadeira intenção do pai, e a partir de então, o
clima harmonioso que estava presente na festa de aniversário se acaba e várias mortes são
instauradas em toda a trama.
Fermoy Fitzgerald é dono de uma fábrica de cimento e aspirante a uma vida politica.
Anteriormente, ele fora derrotado pelo seu oponoente, Hannafin, mas agora ele acredita que
seu Deus está do seu lado e o guiará para uma vitória certa. Contudo, para ocorrer essa vitória
Fermoy deve sacrificar sua filha, Ariel. Dez anos após a morte de sua filha, Fermoy que agora
está se candidatando a ministro da Irlanda, em entrevista, responde sobre a morte de sua filha

VERONA: Sua filha. Sei que isso é difícil, mas como você poderia nos
contar o que aconteceu com Ariel?
FERMOY: Ariel saiu dessa casa no seu aniversário de dezesseis anaos para
mostrar a amiga seu novo carro que demos de presente. Ela nunca voltou.
VERONA: Eles nunca a encontraram?
FERMOY: Não, eles nunca a encontraram.
VERONA: Você perdeu a esperança, ministro?
FERMOY: Sim, perdi.
VERONA: Você acredita que ela está morta.
FERMOY: Sei que ela está
VERONA: Como você sabe, ministro?
FERMOY: Em meus assos. Não me pergunte como sei, mas eu sei e
desejaria não ter conhecimento. Daria minha vida para vê-la entrar por
aquela porta novamente. Mas isso não irá acontecer. (CARR, 2009, p.109-
110. Tradução nossa)1.
1
VERONA: Your daughter. I know this is difficult, but could you tell us what happened to Ariel?
FERMOY: Ariel walked ouha this house on her sixteenth birthday to show a friend her new car that we’d goh
her as a presente. She never cem home.
VERONA: They never found her?
FERMOY: They never found her, no.
VERONA: Have you given up hope, minister?
FERMOY: Yes, I have.
VERONA: You believe she’s dead.
FERMOY: I know she is.
VERONA: How do you know, Minister?
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Observamos na citação acima a questão do destino e o fato da sua ascensão política


coincidir com a tragédia da sua filha. Fora a questão do sacrifício da filha, as semelhanças
entre Ariel e Ifigênia em Áulis são inúmeras. As personagens-titulos, Ariel e Ifigênia, têm a
mesma idade, ou seja, 16 anos. Ambas são sacrificadas pelos pais (Fermoy e Agamêmnon)
para que cumpram os seus objetivos. Frances Fitzgerald (esposa de Fermoy) e Clitemnestra
foram casadas anteriormente. Em ambas as peças as esposas responsabilizam seus respectivos
maridos pela morte de suas filhas. Os filhos do primeiro casamento das duas mulheres
morreram. A composição familiar também é bastante parecida: Frances e Fermoy tem três
filhos – Ariel, Stephen e Elaine -, assim como Clitemnestra e Agamemnon. Tanto no texto de
Carr quanto na peça clássica, o foco central da peça é o núcleo familiar que se mostra bastante
desajustado e fadado à destruição.
O segundo ato de Ariel ocorre dez anos depois da morte/sacrifício da personagem
título. Percebemos que diferentemente de Ifigênia que foi sacrificada pelo bem coletivo, a
morte de Ariel somente irá beneficiar um personagem: Fermoy Fitzgerald. Percebemos, então,
o individualismo exacerbado em relação ao contexto da tragédia grega.
Em termos aristotélicos, Frances irá reconhecer a loucura do marido em relação a um
Deus particular e sacrifício da filha. Também é importante lembrar que ocorre uma inversão
de toda a situação. Se Fermoy estava sobre o controle da situação, ao revelar sobre a morte de
Ariel ele é morto pela esposa. Anagnorisis e Peripecia irão ajudar a compor a construção da
ação trágica da peça. Podemos definir anagnorisis como sendo “O "reconhecimento", como
indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para
amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita”
(ARISTOTELES, Ano, p.258). Observamos abaixo.

FERMOY: Você está chamando-os de algo que não foram. Deixe-me conta-
la algo, Frances. Antes de colocar os olhos em você, muito antes disso, eu
tinha um sonho. Um sonho tão bonito que eu queria ficar na cama até os fins
dos tempos. Estava num cemitério com Deus e essa garota com asas
apareceu ao lado dele. E eu disse: ‘Quem é o dono dela?’ E Deus disse: ‘Ela
é dele’. E eu disse, ‘Nos dê o empréstimo dela.’ ‘Não’, Ele disse, ‘ela não é
do sabor da terra’, como se estivesse falando de sorvete. Estupidamente eu
disse, ‘levarei-a de qualquer jeito’. ‘Tudo bem’, ele disse rindo para mim.
‘Agora se lembre que ela é só um empréstimo’. ‘Eu sei’, eu disse. ‘E chegará

FERMOY: In my bonés. Don’t ask me how I know, buh I know and wish I didn’t and wish ud was otherise. I
would give me life for her to walk through thah duur agin. Buh that’s noh going to happen. (CARR, 2008, p.109-
110).
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o tempo em que vou querê-la de volta’, ele disse. ‘Sim, sim’, eu disse
voando no cemitério com ela antes que ele mudasse de ideia. Ariel. Aquela
era Ariel
[...]
FERMOY: Eu tive que sacrificar Ariel (CARR, 2009, p.124-125. Tradução
nossa)2.

É através da anagnorisis, que Frances irá vingar a morte de sua filha, matando o seu
marido. Mesquita (2005) afirma que o segundo ato demonstra a ascensão e queda de Fermoy
Fitzgerald. Após arrancar as informações necessárias sobre a morte de Ariel, Frances obtém
dados da possível localização do corpo da personagem principal. Logo, essa informação irá se
configurar como o elo para o próximo ato.
O terceiro ato inicia dois meses após a morte de Fermoy. Esse ato remete para a
segunda parte da trilogia de esquilo, Coéforas. Nas Coéforas, a morte de Agamêmnon é
vingada pelo seu filho mais jovem. Em Ariel, irá acontecer a vingança, entretanto o crime não
será praticado por Stephen, mas sim pelas mãos de Elaine. Com o caixão de Ariel em cena,
revelações são feitas e o ódio que Elaine sente pela mãe é imenso.

ELAINE: Você parece não entender o que está acontecendo aqui, Stephen.
Ela matou nosso pai, cortou-o até o sangue espirrar pelas paredes. Tive que
enterrá-lo em pedações. Era a única de luto no funeral dele. Eu, Boniface, tia
Sarah e você estava consolando Mãe ao invés de ir no funeral do seu próprio
pai. Ela nem permitiu um funeral público. As pessoas amavam-no. (CARR,
.
2009, p.131)

Antes do confronte final entre mãe e filha iremos perceber o desajuste psicológico de
Elaine. Embora, ela foi a única a tomar consciência plena de todos os problemas familiares, o
excesso de conhecimento irá provocar o seu desequilíbrio (MESQUITA, 2005) e dará
tonalidade ao aspecto trágico da peça:

ELAINE: Bem, eu sou Jame. Sou o pai que você esquartejou. Eu sou a Ariel.
Eu sou Elaine com a sua morte na palma de minha mão.
3
Esfaqueia Frances na garganta. (CARR, 2008, p.145. tradução nossa) .

2
FERMOY: You’re callin them everthin except what they were. Leh me tell you something, Frances. Before I
ever laid eyes on you, long before thah, I had a drame, a drame so beauhiful I wanted to stay in it till the end a
time. I’m in a yella cuurtyard wud God and we’re chewin the fah and then this girl wud wings appears by hees
side. And I say, who owns her? And God says she’s his. And I say, give us the loan of her, will ya? No, he says,
she’s noh Earth flavour, like he’s talking abouh ice crame. And stupidly I say, I’ll take her anyway. Alrigh, he
says, smilin ah me rale sly, alrigh, buh remember this is a loan. I know, I know, I says, knowin natin. And the
time’ll come when I’ll want her returned, he says. Yeah, yeah, I say, fleein the cuurtyard wud her before he
changes hees mind. Ariel. Thah was Ariel.
[...]
Fermoy: Yeah, I had to. Ya thin I wanted to sacrifice Ariel? I had to ( CARR, 2009, p.125)
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Nos três atos de Ariel e de forma a construir a sua ação trágica, a autora se remeteu ao
texto clássico de forma a problematizar os problemas Irlandeses. De fato, ao observarmos o
aspecto paródico da peça, observamos que o aspecto risível do termo não é aplicado nesse
contexto. A paródia é um elemento bitextual na qual demanda uma decodificação da sua
estrutura.

3
ELAINE: Well, I am James. I’m james returned. And I’m me father that ya butchered to hees eyeballs. And
I’m Ariel. And I’m Elaine wud you deah ib ne oaknm carved inta my plain a Mars like stone.
Stabs Frances in the throat (CARR, 2009, p.145)
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Referências

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de Souza. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
CARR, Marina. Ariel. In.:_______. Marina Carr: plays 2. London: Faber and Faber, 2009.
_______. Theater in Eleven Dimensions: A Conversation with Marina Carr.: depoimento.
[Julho de 2012]. World Literature Today. Entrevista concedida a Nancy Finn.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX.
Trad. de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.
MESQUITA, Zoraid Rodrigues Carrasco. Intertextualidade em quatro peças de Marina Carr.
São Paulo: USP, 2005. 211 p. Tese (Doutorado) – Programa de Estudos Linguisticos e
Literários em Inglês, Universidade São Paulo, São Paulo, 2005.
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Comunicações
Individuais
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ANÁLISE DO DISCURSO LITERÁRIO

IN NOMINE DEI: UMA TRAGÉDIA EM NOME DE DEUS

José Diego Cirne Santos


IFRN

Considerações Iniciais

O escritor José Saramago surgiu com maior expressão, na literatura lusitana, a partir
da década de 70, sendo o maior expoente do denominado grupo “pós-25 de abril” (MOISÉS,
2008, p. 525). Esses escritores celebraram o fim do regime totalitarista estipulado pelo Estado
Novo durante décadas com uma produção literária marcada pela pluralidade estilístico-
temática. Nesse viés, Saramago produziu poesia, drama e prosa (encontrando, certamente,
maior excelência estética nos romances), versando sobre os mais variados assuntos como: a
identidade portuguesa, a realidade social, o intimismo psicológico, a história, a religião, entre
tantos outros.
Em relação a essa temática religiosa, o autor parecia aficionado pelas crenças e pelos
dogmas judaico-cristãos e desenvolvia a sua atenção ficcional para episódios míticos ou
históricos que marcaram essas instituições eclesiásticas. Entre suas narrativas nessa tendência,
têm destaque os romances O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. Na sua dramaturgia,
são expressivos dessa propensão A segunda vida de Francisco de Assis e In nomine Dei.
Restringindo a nossa discussão ao drama In nomine Dei, verificamos que essa peça, ao
roteirizar em sua trama um episódio histórico, recria, esteticamente, em nossa
contemporaneidade, muitos preceitos do gênero dramático, sobretudo trágico, estabelecidos
pela teoria literária.
O nosso estudo se propõe, portanto, a analisar tal recriação dos elementos trágicos
nesse drama contemporâneo do escritor português. E, para isso, recorreremos a Hegel e à sua
teorização sobre o drama em A estética (1980), com o auxílio dos comentários sobre a teoria
hegeliana de Sandra Luna, em A tragédia no teatro do tempo (2008).

Hegel e a sua Teoria do Drama


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Em seu curso sobre Estética, Hegel parou para estudar a poética, tanto em suas
especificidades de características e de expressão como em seus principais gêneros: a poesia
épica, a poesia lírica e a poesia dramática. Ao introduzir a discussão sobre o drama, o filósofo
o considerou o gênero mais elevado por reunir, em sua ação, os elementos intimistas líricos e
o privilégio dos acontecimentos da épica (1980, p. 277).
Ao definir os detalhes da ação dramática, o autor chama a atenção para a
transcendência do drama sobre a simples progressão da ação. Para ele, de acordo com a sua
visão dialética do mundo, os sucessos dramáticos não prescindem de conflitos, motivados por
paixões opostas, de que se resulta a restauração da ordem, em forma de apaziguamento final
(1980, p. 279).
Em breve exposição da comparação feita com os outros gêneros, podemos inferir que
Hegel tem o entendimento de que o drama é resultado da ação individual abstrata,
diferentemente da motivação coletiva e nacionalista da épica, e essa interioridade está,
necessariamente, atrelada a uma sucessão de acontecimentos, o que não coincide com o canto
subjetivo do lirismo (1980, p. 280-1).

O gênero trágico

O capítulo que trata dos gêneros da poesia dramática diz que os tipos dramáticos são
estabelecidos pelas diferenças entre os caracteres e os fins de cada classe dramática. Essas
diferenças indicam duas variações principais: a tragédia e a comédia (1980, p. 321).
Embora nos possa ser útil algum entendimento do que o cômico, ater-nos-emos, de
acordo com o objetivo deste trabalho, a partir de agora, só sobre os comentários de Hegel
sobre a tragédia.
Como a realização dramática se dá no plano das individualidades, os motivos trágicos
são resultado de uma força motivadora: a vontade (1980, p. 322). O amor, a família, a vida
civil, a pátria etc. são apenas expressões distintas da vontade humana.
Os heróis trágicos são revestidos de uma imagem de elevada grandeza porque a
vontade que motiva a sua ação assume a feição de elemento moral (1980, p. 323), principal
responsável pela sugestão de individualidade nos dramas trágicos.
A ação individual, inspirada no desejo de realização de um fim, tenta se construir em
uma pretensa superioridade (1980, p. 323), o que provoca o isolamento do herói em relação
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aos outros indivíduos e, consequentemente, destes em relação àquele. É, nessas paixões


opostas e nas tentativas de sobreposição, que se instaura a imagem de conflito na tragédia.
Hegel indica que essa substância moral1 é a mãe das forças que criarão as oposições e
os conflitos na tragédia. Ao se movimentarem do estrato subjetivo para a realidade concreta,
essas oposições conflituosas não cabem no mundo real, daí a necessidade de um final trágico
(1980, p. 324), ou seja, o equilíbrio coletivo e a unidade moral só serão restabelecidos através
da supressão das individualidades.
Em comentário sobre o estabelecimento da ordem “intento, ação, conflitos e fim das
desinteligências”, na teoria hegeliana sobre a tragédia, esclarece Sandra Luna (2008, p. 201):

[...] O conflito era a base de seu pensamento [Hegel], daí a importância da


contribuição hegeliana para a compreensão da ação dramática. Se o caráter
estático da lógica aristotélica possibilitou a categorização dos componentes
dramáticos da tragédia, a lógica dinâmica da dialética hegeliana transcende a
categorização dos componentes dramáticos da ação trágica para acompanhar
a dinâmica da interrelação desses componentes.

Realmente, é inegável a influência da Poética aristotélica sobre a teoria do drama que


lhe pospôs. Porém, se coube a Aristóteles, em sua descrição sobre o drama, estabelecer as
categorizações de espaço, tempo e ação, por exemplo, foi Hegel, com o seu método dialético-
idealista, que adequou a caracterização da tragédia à compreensão das relações humanas.
Recorrendo mais uma vez a Luna (2008, p. 203):

[...] Talvez devêssemos considerar que, para Hegel, a dialética não era
somente uma lei do pensamento, mas uma lei do ser, uma lógica dinâmica
que se aplicava à dimensão física e natural, aos indivíduos e à sociedade, aí
incluída a história da raça humana, portanto, uma lógica passível de explicar
também o funcionamento do universo dramático, já que este se apresenta
como uma representação poética dessa realidade explicável pela dialética.

Se para Hegel, o drama nasce da necessidade humana de ver as ações humanas


representadas em conflitos (LUNA, 2008, p. 200), a sistematização da poesia dramática deve
repetir o método dialético de sistematização do mundo humano: a lei do drama é a lei do ser,
até por definição da mimese aristotélica.
Sobre o fim dos conflitos trágicos e a necessidade de retomada da harmonia através do
fim das oposições, Hegel prevê quatro possibilidades de solução: em uma paixão unilateral, o
indivíduo precisa ser sacrificado (1980, p. 348); o sacrifício é dispensado e a paz é

1
Podemos apreender que a ação dramática é fruto direto desse caráter moral que, ao motivar uma escolha, no
âmbito do livre-arbítrio do indivíduo, levará o sujeito da ação ao erro, de que resultará a catástrofe final.
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restabelecida objetivamente por uma força exterior e superior, como nas tragédias antigas, em
que um deus poderia assumir essa função (1980, p. 349); pode-se encontrar um meio de
solução subjetiva, na qual as personagens abandonam a unilateralidade por opção (1980, p.
349); e, ainda no campo da subjetividade, a conciliação pode aparecer quando a personagem
encontra o equilíbrio interior (1980, p. 350).

A análise dos caracteres dramáticos e trágicos de In Nomine Dei

A peça In nomine Dei é uma reconstrução de uma rebelião protestante, ocorrida na


Alemanha, no século XVI. Através da dramatização do conflito entre católicos e luteranos,
Saramago parece querer mostrar aqui, mais uma vez, até que ponto podem ir o fanatismo
religioso e a ganância humana pelo poder.
Esse drama foi escrito em 1993 e tem a sua ação dividida em três atos: o primeiro
composto por sete quadros, o segundo por quatro quadros e o terceiro ato por cinco quadros.
A trama é desenvolvida na cidade alemã de Münster, na década de 1530.
O desenrolar do enredo obedece a três pontos principais: o conflito inicial entre os
católicos e os luteranos e as vitórias iniciais dos protestantes; após o estabelecimento do novo
poder, os conflitos internos se instauram no grupo protestante, como a subdivisão entre
radicais e conservadores ou a disputa pela soberania na liderança da cidade; e a vitória das
forças católicas no cerco à cidade e a supressão violenta dos anabatistas.
A próxima seção do nosso estudo consistirá em traçar, analiticamente, um paralelo
entre a peça em questão e o que foi estabelecido pela base teórica pesquisada sobre a poesia
dramática trágica na Antiguidade e na Modernidade, por intermédio do julgamento crítico da
trama poetizada pelo escritor luso.

A ação trágica

O estabelecimento dos três momentos cruciais do enredo é importante para que se


discuta o teor trágico de In nomine Dei: a primeira parte representa o conflito principal da
peça, é a oposição entre os católicos e os protestantes na cidade de Münster, desde o
confronto inicial pela posse de algumas paróquias até as vitórias iniciais dos revoltosos, no
“primeiro acto”, do “quadro 1” ao “quadro 5”; a segunda seção mostra como, estabelecida a
nova ordem protestante, são criados “microconflitos” entre os radicais e os conservadores,
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entre os luteranos e os anabatistas e entre as personagens que formam o grupo principal, nas
vicissitudes próprias do poder político-religioso, indo do “quadro 6” do “primeiro acto” até o
“quadro 2” do “terceiro acto”; a última e decisiva parte mostra o bloqueio à cidade exercido
pelas tropas católicas, que representaram a lembrança do “macroconflito” durante toda a peça,
e a vitória destas sobre os líderes anabatistas em uma chacina violenta, nos três últimos
“quadros” do “terceiro acto”.

O conflito maior

A indicação do que será representado no “quadro 1” do “primeiro acto” já indica o


grande conflito sobre o qual gira a obra (SARAMAGO, 2010, p. 15):

(Anoitecer. O chão está coberto de cadáveres, homens e mulheres. No meio


deles, alumiando-se com lanternas, vão e vêm soldados armados. Procuram,
entre os corpos, os que ainda dão sinais de vida. Quando encontram algum,
acabam-no com uma punhalada. Pouco a pouco, a luz tem vindo a diminuir.
Um atrás de outro, terminada a tarefa, os soldados retiram-se. A escuridão
torna-se total quando o último vai desaparecer.)

A desgraça exposta nesse quadro revela o uso da linguagem não verbal para chocar o
espectador. A escuridão simbólica e a preponderância da morte sobre a vida revelam o quão
avassaladoras podem ser as lutas religiosas motivadas pela intolerância humana.
Curiosamente, esse também será o último quadro da peça, o que destaca mais ainda a
finalidade didática da imagem: pelo entendimento de que esse é um fenômeno cíclico ou pela
prolepse da catástrofe trágica do final, o público terá a sensibilidade afetada.
O mesmo fenômeno de repetição no final acontecerá com o “quadro 2”, em que uma
voz profética se eleva da escuridão que encerrou a cena anterior para repetir as previsões de
Daniel (SARAMAGO, 2010, p. 15): ‘“Por Aquele que vive eternamente, isto será num tempo,
tempos e metade de um tempo. Primeiro, a força do povo há-de quebrar-se inteiramente.
Então todas estas coisas se cumprirão’.” Agora, esclarece-se melhor a primeira cena: o poder
estabelecido pelos protestantes, que será apresentado a partir do próximo quadro, será
destruído na sucessão do tempo com muita violência, assim que a resistência da cidade for
vencida e tudo isso ocorrerá em nome d“Aquele”.
Depois dessa introdução, poética e incógnita, a ação efetiva da peça irá começar no
“quadro 3” – a lembrança de Hegel parece inevitável: o conflito a ser resolvido ao final é
aquele que se estabelece como referencial no começo (SARAMAGO, 2010, p. 16):
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KNIPPERDOLLINCK
O tempo em que se cumprirão as profecias é chegado.
Eis que o ouço, imperioso, bater às portas de Münster.
Vão já distantes os dias em que mal ousávamos protestar e combater os
mosteiros [...].
Os camponeses que os príncipes alemães andaram a matar no Sul
ressuscitam agora no Norte, mas, desta vez, não exigem somente o pão e a
justiça.
A língua morta deles reencarnou na nossa língua viva, e eis que uma e outra
estão reclamando o trabalho constante de Deus no meio dos homens.
Porque é hora de tornar-se cada homem num enviado e num profeta do
Senhor.
ROTHMANN
A reformada palavra de Deus soprou o ar dos meus pulmões e tomou o
caminho da minha boca quando ainda andava pregando fora das muralhas de
Münster, na Igreja de S. Maurício.
Dali me foi expulsar nefandamente Waldeck, o bispo dos católicos,
cometendo violência contra a minha liberdade e a minha alma.
Mas os mercadores da cidade, esses que na minha juventude, para benefício
da comunidade, me mandaram estudar em Wittenberg, deram-me abrigo e
protecção, e hoje a minha voz ressoa aqui, no coração de Münster, nesta
Igreja de S. Lamberto. [...]

Essa conversa entre o chefe da oposição anticlerical em Münster e o pregador


anabatista, personagens históricas com grande relevância no acontecimento que motivou a
peça, está cheia de representações simbólicas do contexto histórico.
Primeiro, a crença apocalíptica em uma nova era, que também será comum nos
discursos místicos da época, mostra-se em “o tempo em que se cumprirão as profecias é
chegado”, não se esquecendo de que o “novo tempo” indicado é o da Reforma.
Os reformadores, no decênio de 30 do século XVI, já expandem mais as suas
pregações e os verbos “protestar” e “combater” são indicadores das intenções de negação do
catolicismo que caracterizou o movimento, ao qual se atribuiu como uma das denominações a
do “protestantismo”.
A fala de Knipperdollinck aponta a Revolta dos Camponeses, ocorrida alguns anos
antes, como um antecedente que influenciou o movimento em Münster, como se vê em “os
camponeses que os príncipes alemães andaram a matar no Sul ressuscitam agora no Norte”.
As palavras de Rothmann são indicativas do contexto em dois pontos: ao citar “a
reformada palavra de Deus”, o pregador aparenta já ter consciência do que é a Reforma
Protestante; a revelação do patrocínio por mercadores2 para ir “estudar em Wittenberg” indica

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Estaria Saramago sugerindo que a aproximação entre o pensamento mercantil crescente no século XVI e o
protestantismo também se deu na Alemanha? O conhecimento de outras obras suas, como A segunda vida de
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a cidade e a universidade em que Lutero ensinava, como também a influência que este
exerceu sobre os protestantes que lhes pospuseram (BARZUN, 2002, p. 24).
As perseguições do bispo Waldeck sofridas por Rothmann até chegar à Igreja de S.
Lamberto mostram a repressão católica à Reforma na Alemanha e antecipam os confrontos
entre católicos e protestantes que se estenderão por toda a trama.
Após o estabelecimento dos anabatistas na Igreja de S. Lamberto, haverá, no “quadro
3”, um novo confronto entre protestantes e católicos, entre os quais se encontram membros do
conselho municipal e teólogos, de que os reformadores sairão vencedores.
O que levará o bispo Waldeck, no “quadro 4”, a confiscar todas as mercadorias
destinadas a Münster e o líder radical Knipperdollinck a sequestrar os cônegos que estavam
na Catedral. Após a chegada do bispo com soldados armados, a divisão na cidade entre
católicos e protestantes parece óbvia e o confronto armado é iminente. Vejamos a resolução
desse embate (SARAMAGO, 2010, p. 29-31):

SÍNDICO
Busquemos uns com os outros uma solução justa para este conflito.
Embainhai as espadas e os punhais. [...] é nossa obrigação de conselheiros
tudo fazer para poupar a cidade aos sofrimentos duma contenda como esta.
Tanto mais que por Carlos, nosso Imperador, foi em Nuremberga
determinado que, até à realização do anunciado concílio, ninguém pudesse
ser molestado nas suas crenças religiosas.
Tomai então, para a resolução deste caso, vós, bispo Waldeck e nosso
príncipe, e vós, protestantes da cidade, o espírito de Paz de Augsburgo. [...]
KNIPPERDOLLINCK
Eis as nossas condições:
Desembargue o bispo as mercadorias e faça abrir as estradas, e nós
libertaremos os teólogos.
Quanto às paróquias, o que está, está, e assim continuará.
O bispo que tome conta da Catedral e dos conventos.
WALDECK
Há malevolência e atrevimento diabólico na vossa proposta, mas, tendo em
conta a vontade soberana do Imperador e a força das presentes
circunstâncias, condescendo em aceitá-la.
A Igreja esperará o seu dia, pois devíeis saber que o tempo lhe pertence.
E vós pagar-me-eis três vezes e trinta vezes esta ofensa. [...]

Notemos que, ante a iminência de um conflito armado, o síndico, embora católico,


simboliza as medidas políticas da época que tentaram, de certa maneira, resolver
burocraticamente os embates religiosos, como se vê na proposta de “uma solução justa” para
o conflito e no pedido “embainhai as espadas e os punhais”. É importante apontar também

Francisco de Assis ou O evangelho segundo Jesus Cristo, que aproximam a prática religiosa ao pensamento
econômico, pode nos levar a crer que sim.
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que a fala do síndico traz algumas indicações históricas de ações do Imperador Carlos V: o
desejo político de Nuremberg, a tentativa apaziguadora de Augsburgo e a expectativa de
realização do Concílio de Trento, o que só se realizaria a partir de 1545 (ROBERTS, 2005, p.
467).
Após ter sido lembrado pelo síndico de sua situação política delicada como “príncipe”
e “bispo”, Waldeck vai acabar cedendo às imposições dos protestantes. Todavia, a parte final
de sua fala prenuncia uma ação militar mais efetiva pelas tropas católicas, o que não tardará a
acontecer – destaquem-se as presenças simbólicas dos números cíclicos “três”
(CHEEVALIER, GHEERBRANT, 2002, p. 899) e “dez” (CHEEVALIER, GHEERBRANT,
2002, p. 334) nas previsões de vingança do bispo e a sua alusão à propriedade católica do
“tempo” como indicadores da pertinência da profecia anunciada no “quadro 2”, em relação à
futura vitória católica.
Knipperdollinck, Rothmann e os outros protestantes terão a segunda vitória relevante
sobre os católicos, ficando o confronto final entre os anabatistas e as tropas de Waldeck
adiado para o “terceiro acto” da peça.

Os conflitos menores

Se Hegel nos diz que a solução de um conflito pode acarretar outros conflitos, também
nos será permitido dizer que o conflito principal do texto pode dar início a outros conflitos
menores, que serão resolvidos no desenrolar da trama, no tempo em que a solução final é
aguardada.
Então, enquanto não há uma solução definitiva para o confronto entre as duas
religiões, ocorrerá uma série de conflitos internos no grupo protestante: a subdivisão em
conservadores (luteranos) e radicais (anabatistas), as divergências em relação a práticas e
dogmas e as disputas e articulações pelo poder na cidade.
Destacaremos três episódios, agora, como indicadores dessas disputas internas. O
primeiro mostra a divisão do grupo protestante a partir do ritual da comunhão, no “quadro 6”
do “primeiro acto” (SARAMAGO, 2010, p. 35-36):

VON DER WIEK


[...] Que fazem aí esse pão e esse vinho? Quem os trouxe?
ROTHMANN
Esta mesa é a da ceia do Senhor, o pão e o vinho são a Sua carne e o Seu
sangue.
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VON DER WIEK


Demasiado longe levas a tua audácia.
CORO DE CATÓLICOS
Heresia, heresia. [...]

É nítido o confronto de ideias em relação aos ritos sacramentais, como ocorrerá mais à
frente na trama, no episódio do batismo de uma criança, entre os anabatistas, com a sua
postura mais radical, e os luteranos, com a sua postura moderada.
Em todo o início da peça, quem parece ter a função de representar os rituais e dogmas
dos radicais é Rothmann, que será contraposto a Van der Wiek, o novo síndico da cidade,
representante da vitória protestante na disputa pelo Conselho Municipal na cena anterior a
essa.
É-nos lícito dizer que a postura dos luteranos, embora menos agressiva, está mais
próxima a dos católicos, representados, nessa cena, pelo coro, indicando-nos que esse
conjunto de vozes assume uma função permanente na ação da peça.
Com a chegada de uma comitiva da Holanda, a fim de transformar Münster na Nova
Jerusalém, no “quadro 7” do “primeiro acto”, quem assumirá a posição de líder na cidade será
Jan Matthys. A passagem que destacaremos, a seguir, mostra como Jan van Leiden, apóstolo
batizado pelo próprio Matthys, vai articular a morte dele para poder tomar o seu poder, no
“quadro 3” do “segundo acto” (SARAMAGO, 2010, p. 77-79):

MATTHYS
O Senhor mostrou-me as fogueiras dos católicos e só depois ordenou:
“Levanta-te e caminha.” [...]
“Levanta-te e combate”, eis o que o Senhor quis que eu ouvisse. [...]
JAN VAN LEIDEN
Sem dúvida, é vontade claríssima do Senhor que de Münster saiamos a dar
definitiva batalha aos soldados de Waldeck.
Mas repara, Matthys, que Ele não disse: “Levantai-vos e caminhai”, como
seria o próprio se fosse Seu desejo que saíssemos, todos juntos, a lutar contra
os papistas.
A Sua palavra foi clara e imperiosa: “Levanta-te”, disse Ele, e a ti o disse,
“Caminha”, e era a ti que falava. [...]
MATTHYS
Deus iluminou o teu espírito e mostrou-me o que, por humildade, o meu não
tinha sabido compreender. [...]
Como um raio desferido pela irada mão do Senhor, reduziremos a pó e a
cinza o poder de Waldeck.
Tal como a cinza e pó reduzimos os livros e as imagens que ofendiam a
palavra e a face do Senhor. [...]
Adeus, Jan van Leiden.
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É irônico, mas eficiente, o modo como Jan van Leiden usa o suposto dom de Matthys
de se comunicar com Deus e o fundamentalismo deste para levá-lo à morte. O que vai definir
o convencimento do profeta é uma questão gramatical: o verbo está conjugado no singular, o
que exigiria o ato messiânico de Jan Matthys.
O entendimento literal do recado parece ser apenas um meio para satisfazer a vaidade
desse conhecedor dos desígnios divinos, o oposto satírico da “humildade” que ele diz ter em
sua fala. Então, ele parte, acreditando-se redentor de seu povo e herói maior daquela batalha
contra os “papistas” – a quem ele já afetou com a sua iconoclastia reformadora, como mostra
sua fala em “tal como a cinza e pó reduzimos os livros e as imagens que ofendiam a palavra e
a face do Senhor”.
O “adeus” de sua despedida é um indicador claro, não só do insucesso de sua empresa,
como também da morte violenta que lhe aguarda à frente, mostrando, além da intolerância
humana dos católicos, a estupidez do fundamentalismo religioso.
Após a morte de Matthys, será Jan van Leiden quem vai se “autoproclamar” o seu
sucessor no poder de Münster. E, sobre a sua regência, será proclamada a necessidade da
poligamia, no “quadro 1” do “terceiro acto”, Jan van Leiden mandará Rothmann pregar ao
povo a necessidade de as mulheres, que estão em maior número na cidade do que os homens,
casarem e procriarem, como no Antigo Testamento, mesmo que esses homens já sejam
casados. Vejamos o momento de tal enunciação e as suas consequências (SARAMAGO,
2010, p. 104):

ROTHMANN
Todas as pessoas núbeis ficam obrigadas a contrair matrimônio.
As mulheres solteiras aceitarão por marido o primeiro homem que as
solicitar.
Na pureza da aliança e sem luxúria carnal.
Assim constituiremos o Reino de Deus.
CORO MASCULINO (Alegremente)
O Senhor o quis, cumpra-se a vontade do Senhor.
CORO FEMININO (Tom de protesto)
Seremos nós como o gado não curral, que não se lhe pergunta com quem
quer acasalar?
ROTHMANN
Cuidado, mulheres, e homens que estiverdes do lado delas, pois todo aquele
que resistir a esta ordem será considerado réprobo e estará sujeito a ser
executado.
KNIPPERDOLLINCK
A quem anunciou o Senhor a sua vontade? A ti, ou a Jan van Leiden?
Se a ti, por que não está Jan van Leiden aqui presente para sabê-lo, sendo
ele, como sucessor de Matthys, o chefe reconhecido de Münster?
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Se a ele, por que foste tu encarregado de fazer este anúncio ao povo, sendo
eu o porta-espada, aquele que, em autoridade e em poder, vem depois de Jan
van Leiden?

Notemos que as divergências, agora, apresentam-se dentro do próprio grupo


anabatista: além do descontentamento das mulheres em terem que se casar obrigadas,
Rothmann e Knipperdollinck, os líderes iniciais da revolta protestante na cidade, disputam
pela hierarquia do poder e até divergem sobre a legitimidade da ordem dada.
No jogo político, van Leiden mandou que Rothmann fosse dar a notícia aos cidadãos
como se Deus tivesse se apresentado a ele, o que despertou a desconfiança do “porta-espada”,
que não procurará nenhuma esposa para si. O líder deseja que aqueles que estão abaixo dele
na hierarquia lutem entre si e não tentem tirá-lo da soberania que exerce, não nos esquecendo
de mencionar que o mesmo será o “primeiro homem” a escolher mulheres para esposas.
Destaquem-se na fala de Rothmann duas coisas importantes: “na pureza da aliança e
sem luxúria carnal”, os casamentos estão ligados à ideia de que a “Nova Jerusalém”, como
uma cidade santa, não permitirá a prática da sexualidade sem a legalidade do matrimônio,
nem a finalidade da procriação; e “todo aquele que resistir a esta ordem será considerado
réprobo”, ou seja, as ordens religiosas assumem o caráter de leis cívicas, cuja desobediência
será motivo para severas penas, indicando as mesmas arbitrariedades da Idade Média católica,
a quem, supostamente, opuseram-se os movimentos protestantes.
Os coros, mais uma vez, assumem uma função efetiva e conflitante na ação da peça,
destaquemos as rubricas: os homens, como beneficiados pela ordem, aceitarão a poligamia
“alegremente”; enquanto, as mulheres, “em tom de protesto”, sentem-se rebaixadas a animais
irracionais, a quem se usa para a reprodução.

O final trágico

A partir do “quadro 3” do “terceiro acto”, o cerco das tropas papistas é mais intenso,
fazendo com que Waldeck decida “apertar o bloqueio e fazer render a cidade pela fome”
(SARAMAGO, 2010, p. 119).
Embora o agora “rei”, Jan van Leiden, tente distrair o povo de sua cidade com
comunhões festivas e danças extraordinárias, nunca deixando de retaliar violentamente
qualquer oposição, os cidadãos de Münster parecem ter perdido a fé e a esperança em uma
possível reviravolta, como se vê no “quadro 4” (SARAMAGO, 2010, p.128-129):
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CORO GERAL
[...] Os meus inimigos insultam-me todo o dia, como dementes, proferem
imprecações contra mim.
Em vez de pão, como cinza, e a minha bebida mistura-se com lágrimas. [...]
JAN VAN LEIDEN
Que é isto, fiéis anabtistas? Que tristes palavras ouço eu das vossas bocas?
[...] A hora não é, pois, de lamentações, mas de júbilo, porque o dia da
salvação vem perto e, com ele, chegará o castigo dos ímpios.
CORO GERAL
Não duvides, ó rei, da minha paciência, não duvides da fé que me guia, mas
este corpo, de tão exausto e faminto que o levo, já mal pode reter o espírito.

O quadro é desolador, ante a falta de alimentos, o coro representa a própria voz de


Münster em desabafo lúgubre, indiferente aos discursos populistas do rei Jan van Leiden.
Em seu último apelo à fé dos anabatistas, o líder da cidade promete a recompensa
espiritual pela morte ou pelo Juízo Final em “o dia da salvação vem perto”, tentando ainda
acirrar os ânimos contra os católicos em “chegará o castigo dos ímpios”.
Indiferente ao apelo de van Leiden e talvez desejando a morte iminente, como única
solução possível aos sofrimentos, a voz popular simbolizada no coro já vislumbra a vitória
dos opositores, como se vê em “os meus inimigos insultam-me todo o dia”. A substituição de
“pão” por “cinzas” e a mistura da “bebida” a “lágrimas” são indicativas do sofrimento
desgastante a que se expôs a população sitiada, que já parece ter perdido as forças do espírito
pela exaustão do corpo, como é dito em “já mal pode reter o espírito”.
Ante o ápice da opressão de Jan van Leiden ao seu povo e tendo às vistas o grande
sofrimento deste, o agora conselheiro e questionador resoluto do rei, Knipperdollinck mostra
certa decepção com Deus, ainda no quarto “quadro” desse “acto” (SARAMAGO, 2010,
p.132): “Deus não pode querer esta violência”. Apenas descrente de que as atitudes de Leiden
são divinas ou decepcionado com a omissão de seu Deus ante a desgraça que se lhe desenha,
o antigo líder da Reforma em Münster tem a sua fé abalada.
A traição de mercenários contratados para defender Münster faz com que Waldeck
transponha as muralhas da cidade com o seu exército e alguns príncipes aliados, pondo fim ao
conflito, no “quadro 5” (SARAMAGO, 2010, p.141-142):

WALDECK
Deus venceu, louvado seja Deus.
Eis que calcamos aos pés a hidra da heresia e lhe faremos pagar os seus
crimes.
Não invoqueis, malditos, a misericórdia do Senhor, porque é Ele quem vos
quer exterminados.
Eu sou apenas o braço da justiça de Deus. [...]
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Abjurai dos vossos erros, aqui, diante de mim, como diante da Santa Madre
Igreja Apostólica Romana, que, seu bispo, represento.
Abjurai!

A chacina que é posta na cidade, nesse momento, é para a glória de Deus, segundo a
passagem “Deus venceu, louvado seja Deus”, o que nos daria o último entendimento do título
da peça: “em nome de Deus”, será toda essa desgraça.
O levante protestante é considerado herético pelo ‘inspetor” da Igreja, que se julga
representante única da “universalidade” de Deus e dona exclusiva de sua onipotência e de sua
misericórdia, como se constata em “não invoqueis, malditos, a misericórdia do Senhor,
porque é Ele quem vos quer exterminados” ou em “eu sou3 apenas o braço da justiça de
Deus”.
O imperativo “abjurai!”, que encerra a fala do bispo Waldeck, ordena que os
anabatistas neguem a sua religião e aceitem o catolicismo como a única seita verdadeira. Os
conselheiros ainda vivos, Krechting e Knipperdollinck, não abjuram e são presos em gaiolas.
As esposas do rei não abjuram e são mortas. O único que abjura, tentando se livrar da morte, é
Jan van Leiden, mas também será preso.
A solução hegeliana é imprescindível: não havendo abandono da vontade ou acordo
entre as individualidades é preciso que haja a destruição da unilateralidade (1980, p. 325), o
que, nesse caso, será o fim trágico dos anabatistas.

Considerações Finais

Traçando um paralelo final entre In nomine Dei, de José Saramago, e a dramaturgia


trágica, clássica e moderna, a partir das considerações de Hegel sobre o drama em sua
Estética, recordamos o comentário de nossa referência teórica sobre a motivação trágica
antiga que envolve a religião (1980, p. 322):

[...] a vida religiosa, não sob a forma de um misticismo resignado que


renuncia à acção ou como obediência passiva à vontade de Deus, mas, pelo
contrário, sob a forma de uma intervenção activa nos interesses reais e uma
perseguição também activa destes interesses. Esta actividade e este vigor são
inerentes a qualquer carácter verdadeiramente trágico.

3
Para que se entenda a real conotação de sincronia com Deus implícita na expressão “eu sou” ver BRANCO, R.
O poder transformador do cristianismo primitivo. Brasília: Teosófica, 2004.
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Tal embasamento nos faz pensar que essa peça, dentro de sua modernidade, reinventa
esteticamente esses padrões clássicos, em vários aspectos: além de corresponder às ideias de
vontade como motivadora do conflito e de fim trágico como restituidor do equilíbrio a partir
da destruição das individualidades em conflito; o tratamento dado por Saramago ao tema
religioso mostra como a vida religiosa, vinculada, aqui, não à ordem divina, como na
Antiguidade, mas às ações humanas – não nos esqueçamos de que a maioria das personagens
principais era ligada a alguma função religiosa –, assume uma sugestão de atividade
dramática, já que é a dualidade de crenças que irá motivar a ação ao conflito e deste à
catástrofe trágica final.
Podemos, então, encerrar este estudo com a conclusão que o escritor português José
Saramago tem a sua melhor realização dramática em In nomine Dei, na qual ele conseguiu
enlaçar elementos oriundos da tragédia clássica à peculiar reinvenção estética da
modernidade, sem se desprender do tom crítico do estilo neorrealista que o tornou célebre.

Referências

BARZUN, J. Da alvorada à decadência: a história da cultura ocidental de 1500 aos nossos


dias. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
CHEEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: UnB,
1998.
HEGEL. Estética: poesia. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães, 1980.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.; FRANCO, F. M. M. Dicionário Houaiss de língua
portuguesa: com a nova ortografia da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LUNA, S. A tragédia no teatro do tempo: das origens clássicas ao drama moderno. João
Pessoa: Idéia, 2008.
MOISÉS, M. A literatura portuguesa. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo: da pré-história à idade
contemporânea. Trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
SARAMAGO, J. A Segunda Vida de Francisco de Assis. Lisboa, Editorial Caminho, 1987.
______. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. In nomine Dei. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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Página 590

______. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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A AUTORIA E A RESPONSIVIDADE LINGUÍSTICA E DISCURSIVA DE JESUS


CRISTO EM SUA EXPOSIÇÃO ACERCA DO SAL DA TERRA E DA LUZ DO
MUNDO, A PARTIR DO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

Wilder Kleber Fernandes de Santana

O Estudo da Enunciação do discurso a partir de perspectiva oral do uso da língua

Múltiplos estudiosos filiados às teorias textuais têm privilegiado o estudo da


enunciação e do discurso a partir de perspectivas das mais variadas abordagens. Porém,
quando nos colocamos, mesmo com um pequeno levantamento, diante das principais
pesquisas disponíveis no Brasil sobre tal assunto, percebemos a precisão de mais visibilidade
e atenção à temática, e isso se dá pela sua complexidade.
Uma segunda observação nos coloca mediante ao fato de que a maioria dos trabalhos
preferenciam o uso de gêneros discursivos da escrita, conforme um pequeno censo realizado
pelo professor Pedro Francelino (2013, p. 9): “... Possenti (2002), Orlandi (1988, 1997, 2000,
2001a, 2001b), Gallo (1992), Gregolin (2001), Tfouni (2001, 2005), Magalhães (2003),
Corcacini (1999), para citar alguns dos principais”.
Tendo em vista isso, o intuito deste trabalho é o de apresentar uma nova possibilidade
de perspectiva desta autoria, observando como a mesma se constitui em situações sócio-
comunicativas orais do uso da língua, como é o caso do gênero exposição oral. Portanto, para
isso, elencaremos, para a composição deste trabalho, a exposição oral como gênero do
discurso.
Exponha-se o que consta no trabalho de Ana Paula Tosta Teixeira, Roberta Maria
Garcia Blasque e Célia Dias dos Santos1 sobre este gênero:

A exposição oral deve ser tratada como objeto de ensino de expressão oral...
Em alguns casos a exposição vem de uma longa tradição e é constantemente
praticada... Assim, a exposição permanece como uma atividade tradicional...
Ao citar as características gerais do gênero pode-se dizer, segundo Dolz,
Schneuwly et alli (2004), que a exposição é um discurso que se realiza numa
situação de comunicação específica chamada de “bipolar”, unindo o orador
ou expositor e seu auditório, assim, a exposição pode ser qualificada como
um espaço-tempo de produção onde o enunciador vai ao encontro do
destinatário, através de uma ação de linguagem que veicula um conteúdo
referencial. Mas, se esses dois atores encontram-se reunidos nessa troca

1
A partir de informações do próprio trabalho destas autoras, constata-se que, na época de composição do
mesmo, eram estudantes da Universidade Estadual de Londres.
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comunicativa particular que é a exposição, a assimetria de seus respectivos


conhecimentos sobre o tema da exposição os separam: um representa o
“especialista”, o outro, se caracteriza como alguém disposto a aprender algo
(TEIXEIRA; BLASQUE; SANTOS; 2008, p. 1-2).

Refletindo sobre o exposto, selecionamos aqui o discurso de Jesus sobre “o sal da terra
e a luz do mundo”, quando estava assentado sobre um monte, junto aos seus discípulos que se
aproximaram dele (Mt. 5. 1).
É de nosso especial interesse compreender o processo de constituição e de
representação do sujeito discursivo, firmado o fato de que existam divergentes maneiras de se
representar o discurso de outrem no plano enunciativo. Deste modo, iremos adentrar no
entendimento de como se constitui e de como se re(a)presenta o sujeito discursivo Jesus
Cristo, em sua exposição oral sobre a “o sal da terra e a luz do mundo”.
Nesse direcionamento, Sobral (2009, p. 54) afirma que, segundo o Círculo, “(...) o
sujeito é essencialmente um agente responsável pelo que faz, agente que, em suas relações
sociais e históricas com outros sujeitos igualmente responsáveis (inclusive apesar de si
mesmos), constitui a própria sociedade sem a qual ele mesmo não existe.” O sujeito, dessa
forma, constitui um agente mediador entre os sentidos socialmente possíveis e os discursos
produzidos em situações concretas.
Acerca disto, é importante observarmos que a realidade do sujeito se apresenta como
um mundo de vozes sociais em várias relações dialógicas: “relação de aceitação e recusa, de
convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de intersecções e hibridizações.”
(FARACO, 2003, p. 80). É nessas condições de produção de suas enunciações que o sujeito
vai se constituindo discursivamente, pois vai apreendendo as vozes sociais, bem como suas
inter-relações dialógicas.
É o aporte teórico da Análise Dialógica do Discurso que subsidiará a análise do corpus
a ser utilizado nesta produção. A irrupção desse campo de investigação teórica abrange um
conjunto de conceitos elaborados no âmbito do pensamento do Círculo de Bakhtin, cuja
linhagem de pensamentos se embasa em pesquisas desenvolvidas em terreno brasileiro, como
as de Faraco (1993), Fiorin (2006) e Sobral (2009), entre outros.

Domínios, princípios e características linguístico-enunciativo-discursivas pelos quais se


propõe que a autoria seja considerada
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De maneira lacônica, traremos inicialmente uma série de domínios, princípios e


características linguístico-enunciativo-discursivas pelos quais se propõe que a autoria seja
considerada. Nestes, ressignificados por Francelino (2013, p. 10-17), o sujeito se relaciona
com a linguagem, ou seja, se constitui na representação de uma instância produtora de
sentido(s), que é a de autor.
Observemos esta tabela:

Domínios Princípios Características


1_ Domínio da enunciação 1º O autor é uma instância 1. O autor atribui um fim
individual que se constitui provisório ao enunciado.
na alteridade.
2_ Domínio da 2º O autor instaura um 2. O autor se manifesta nas
discursividade leitor/interlocutor no variações que o gênero
processo enunciativo. sofre no decorrer do
processo enunciativo.
3_ Domínio do linguístico --- 3. O autor realiza um
trabalho de
seleção/combinação
lexical no plano
linguístico da enunciação.

Diante do quadro acima representado, salientamos que, para a realização da nossa


análise, centrar-nos-emos apenas na terceira característica linguístico-enunciativo-discursiva,
em que o autor realiza um trabalho de seleção/combinação lexical no plano linguístico da
enunciação, uma vez que a demanda principal de discussão revolve em torno deste eixo de
um querer-dizer por escolha. De acordo com Bakhtin (1997, p. 301),

O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero


do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma
dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do
objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. (BAKHTIN
1997, p. 301) “Grifos do autor”.

Mesmo em se tratando aqui do gênero exposição oral, trazendo especificidades


semânticas, perceberemos que tal gênero se manifestará na forma de variantes, como é o caso
do sermão da montanha, em que “Os discípulos são o sal da terra e a luz do mundo” (epígrafe
do capítulo 5, versículo 13). Este não é um subgênero, mas umas das muitas possibilidades de
roupagem da exposição oral.
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Os discípulos são o sal da terra e a luz do mundo: uma seleção/combinação lexical


enunciativa realizada por Jesus Cristo

Vejamos, primeiramente, o contexto em que se encontrava Jesus Cristo, no momento


em que começou a expor, oralmente, seu discurso sobre o sal da terra e a luz do mundo. De
acordo com o capítulo 5 do Evangelho segundo Mateus, vendo a multidão, Jesus subiu a um
monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele seus discípulos (v. 1). Após ensinar várias
coisas sobre as beatitudes2 (dos versículos 2 ao 12), Jesus adentra ao discurso sobre o sal da
terra e a luz do mundo. Então, conta-nos o escrito que Cristo começou a pronunciar para seus
discípulos:

V. 13: Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de
salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos
homens.
V. 14: Vós sois a luz do mundo: não se pode esconder uma cidade edificada
sobre um monte.

A partir do contexto acima, percebemos que o princípio da seleção lexical é


manifestado pelo sujeito falante Jesus Cristo, a partir do momento em que seleciona uma
combinação de palavras da língua em que enuncia. Essa escolha seletiva se dá em função de
diversos aspectos, dentre os quais podemos salientar, por exemplo, as condições amplas e
imediatas da enunciação.
1 – As condições amplas e imediatas da enunciação. Em outras palavras, para que(m)
eu falo, com que intuito eu falo, que papel(is) social(is) desempenha(m) meu(s)
interlocutor(es) no processo enunciativo e o gênero discursivo nos quais se integram as
interações.
No caso do sujeito enunciativo Jesus Cristo, ele precisou estar de acordo com as
condições emergentes do seu discurso. Como falaria? De que forma falaria, se só havia os
discípulos com ele? Caso seja feita uma leitura mais profunda não só destes versículos, mas
também dos circundantes, veremos que a enunciação discursiva é falada (por Jesus)
unicamente aos seus discípulos, de acordo com Mt 5. 1, pois apenas eles se aproximaram do

2
As beatitudes, no contexto sagrado Bíblico de Mateus 5, fazem referência às bem-aventuranças que estavam
destinadas, guardadas para todos aqueles que cumprissem o mandamento do Senhor Deus, e que os tivessem
cumprindo. Simboliza uma espécie de galardão/recompensa para os que sofreram/ sofrem por amor ao
Evangelho.
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mestre3. Isso muda totalmente o percurso interpretativo, pois nos permite entender o porquê
de Jesus lhes poder falar metáforas profundas:

Mt. 13, 10: E, acercando-se dele os discípulos, disseram-lhe: Por que lhes
falas por parábolas?
V 11: Ele, respondendo, disse-lhes: Porque a vós é dado conhecer o mistério
do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado;
V 13: Por isso lhes falo por parábolas; Porque eles, vendo, não vêem e,
ouvindo, não ouvem nem compreendem.

Neste instante, o sujeito falante teve o intuito de selecionar seu discurso de forma
metafórica e profunda porque sabia que a maior parte dos discípulos o compreenderia, e
estaria preparada para interpretá-lo e principalmente cumpri-lo. Com isso, entendemos que
existe um querer-dizer por parte do enunciador, e ao mesmo tempo um querer-ocultar através
de seu dizer. Neste momento em que Jesus enunciou sua parábola, vários enunciados ficaram
permeáveis à sua expressividade, ou seja, seu discurso poderia ter mais de um sentido ou
significado [a depender de como foi recebido por cada destinatário – o(s) outro(s)]. Como dirá
Bakhtin (1997. p. 318):

[...] em todo enunciado, contanto que o examinemos com apuro, levando em


conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as
palavras do outro ocultas, ou semi-ocultas e com graus diferentes de
alteridade. Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua
e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes
dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e
totalmente permeáveis à expressividade do autor. (BAKTHIN, 1997. p. 318.)

O princípio dialógico no ato enunciativo de Jesus Cristo

E onde está o princípio dialógico, neste ato enunciativo? Como testemunharemos mais
à frente, a dialogicidade deste discurso ocorre na própria enunciação, pois o discurso estava
sendo comum a todos os discípulos. Perceba-se, também, que ocorre sempre uma explicação
posterior, à proporção que cada metáfora é realizada, o que selecionamos aqui como o
segundo momento de cada enunciação. O primeiro momento consiste na exposição das
metáforas, e o segundo, na explicação ou contextualização de cada uma delas. Quando
adentramos, portanto, neste segundo instante dos enunciados de Cristo, entendemos que o
discurso se estabelece dialogicamente com todos os que se prestam a compreender as
metáforas. Demonstremos isso:

3
O termo mestre provém do hebraico “rabi”, e significa também instrutor. Refere-se em diversas passagens
bíblicas a Jesus, pelos seus discípulos, como em Mt 22. 16.
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Primeiro momento do discurso de Segundo momento do discurso de Jesus


Jesus [Explicação ou contextualização]
[Exposição]
Versículo 13 (parte a): Vós sois o sal da Versículo 13 (parte b): E se o sal for
terra. insípido, com que há de salgar? Para nada
mais presta, senão para se lançar fora, e
ser pisado pelos homens.
Versículo 14 (parte a): Vós sois a luz do Versículos 14 (parte b): Não se pode
mundo. esconder uma cidade edificada sobre um
monte.
Versículo 15: Nem se acende a candeia e
se coloca debaixo do alqueire, mas no
velador, e dá luz a todos os que estão na
casa.
Versículo 16: Assim resplandeça a vossa
luz diante dos homens, para que vejam as
vossas obras e glorifiquem ao vosso Pai,
que está nos céus.

A partir da tabela, podemos entender que, ao (a)firmar os discípulos como sendo o sal
da terra, Jesus os identifica como seres de sublime importância na divulgação de seu
evangelho4, dos quais depende o bom gosto, o “salgar”, e os benefícios para que o alimento5
da terra (o pão, que é o próprio Jesus Cristo, de acordo com João 6. 35) seja bom, perfeito e
agradável6. Este enunciado mantém diálogo pleno com o que é contextualizado na carta de
Paulo aos Colossenses, quando este último exorta o povo à oração e sabedoria: “A vossa
palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais como convém responder
a cada um.” (Col. 4. 6) (Grifos nossos). De igual maneira Jesus alerta seus discípulos,
afirmando que se não assumirem a função do sal, para nada mais prestarão, senão para serem
lançados fora do ministério, e serem pisados pelos homens, já que o mundo não os aceitará.
Desta forma, na explicação e contextualização desta passagem, quando a linguagem torna-se
comum a todos, dá-se o princípio dialógico.

4
A respeito disso, veja-se Mc 16. 15: “E disse-lhes: ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”.
5
Ao adentrarmos em estudos mais profundos a respeito deste alimento, perceberemos que se trata do próprio
Cristo, através de seus ensinamentos. É um alimentar-se do pão, que é Jesus Cristo, simbolizado pela sua
Palavra. Acerca disso, vejamos João 6. 35: “E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não
terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”.
6
Confirma-se esta afirmação na carta de Paulo aos Romanos 12. 2: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e
perfeita vontade de Deus” (Grifos nossos).
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De maneira semelhante, entendemos que a dialogicidade do discurso da luz do mundo


se dá na posterior explicação do mesmo. Após primeira exposição do enunciado “Vós sois a
luz do mundo”, continua o sujeito a enunciar: “Não se pode esconder uma cidade edificada
sobre um monte. Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e
dá luz a todos os que estão na casa.” Ou seja, aquilo que está à mostra, aos olhos do povo,
assim mesmo como as obras dos homens, não pode estar escondido, pois é tocante à luz, e a
luz tudo revela.
Acerca disso, discorrerá Paulo em sua Epístola aos Efésios 5. 13, ao falar de coisas
torpes: “Mas todas estas coisas se manifestam, sendo condenadas, pela luz, porque a luz tudo
manifesta”. (Ef. 5. 14) (Grifos nossos). Esta luz, no caso, é a essência do próprio Jesus,
através de seus bons ensinamentos, e de sua palavra bíblica. Confirma-se esta declaração no
Evangelho segundo João 8. 12: “Falou-lhes, pois, Jesus outra vez, dizendo: Eu sou a luz do
mundo. Quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida.” (Jo 8. 12).
Por fim, vem a explicação mais plausível, mais fácil, para que todos os discípulos
possam compreender: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas obras e glorifiquem ao vosso Pai, que está nos céus.” (Mt. 5. 16).

A relação estabelecida entre o sujeito (Jesus Cristo) e a palavra (seu discurso) no


segundo momento de sua exposição oral

Nesta linha expositivo-interpretativa, obtém-se que a significação da palavra, assim


como os seus sentidos, está sendo preservada no processo de utilização coletiva, naquilo que é
usado cotidianamente pelos seus usuários, ou seja, a linguagem está sendo comum a todos,
gerando maiores possibilidades de compreensão – essência do ato dialógico. De acordo coma
Teoria Dialógica do Discurso, todos os enunciados no processo de comunicação são
dialógicos, logo não seria diferente com o discurso de Jesus. Em seu discurso sobre “o sal da
terra e a luz do mundo” existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada pela
palavra do outro (a multidão). A respeito disso dirá Fiorin (2006, p. 19):

“...o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de


outrem, que está presente no seu. Por isso, todo o discurso é inevitavelmente
ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de
sentido que se estabelecem entre dois enunciados.” (FIORIN: 2006, p. 19)
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Jesus, como enunciador, para constituir seu discurso, leva em conta o discurso de
outrem, utilizando-o no seu discurso. Essa compreensão mútua se perfaz a partir do instante
em que Jesus discursa em um plano enunciativo reconhecível a todos, ou pelo menos, à maior
parte das pessoas. Acerca deste aspecto, afirmará Bakhtin (1997):

Enquanto falo, sempre levo em conta o plano aperceptivo sobre o qual a


minha fala será recebida pelo destinatário; o grau de informação que ele tem
da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada
comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções... pois é isso que
condicionará sua compreensão responsiva do meu enunciado (BAKHTIN
1997, p. 321).

Levando em conta as categorias bakhtinianas7 da palavra, e sob o óculo da exposição


oral de Jesus como um todo, somos permitidos a pensar o autor como uma instância subjetiva.
A palavra de Jesus, impregnada de sua expressividade, foi assumida por ele mesmo de forma
bastante específica, a depender da situação. O discurso foi enunciado, porém, não significa
que todos os interlocutores o receberam da mesma maneira. Assim,

O autor, nesse aspecto, é aquele que trabalha num espaço em que as palavras
apresentam-se móveis, flutuantes, polissêmicas, ocupando este ou aquele
espaço sócio-histórico e, para usar uma tese bakhtiniana, refletindo e
refratando tal espaço. O autor institui-se como tal nessa instância saturada
pelos enunciados outros, constituindo-se singular em meio à pluralidade e à
diversidade. (FRANCELINO 2013, p. 18).

Por fim, podemos articular que a individualidade de Jesus, como autor, é marcada na
expressão de seu querer-dizer, de sua projeção discursiva, e finalmente, de sua potencialidade
para o diálogo. Vez que é externado e saturado de enunciação, o discurso sobre a o sal da
terra e a luz do mundo é ressignificado pelo sujeito autor, no contato que estabelece com a
realidade sócio-histórica dos interlocutores que o recebem. Assim entendemos Jesus Cristo
como responsivo linguística e enunciativamente pelo seu discurso sobre o sermão do sal da
terra e a luz do mundo, configurando-se autor de uma construção dialógica.

Considerações finais

7
O autor, a partir do instante em que estabelece relações de pertencimento com a palavra, pode categorizá-las,
como faz Bakhtin (2000, p. 313):
Palavra neutra → que não pertence a ninguém
Palavra do outro → pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios;
Palavra minha → na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva,
ela já se impregnou de minha expressividade.
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Conforme se evidencia nesta produção, a autoria, entendida aqui como uma função,
tanto enunciativa quanto discursiva do sujeito (neste caso Jesus Cristo), é passível de ser
apreendida a partir do instante em que se estabelece contato com a materialidade linguística
do enunciado (no processo da enunciação), ou seja, quando nos reportamos para a sua
exposição oral sobre o sal da terra e a luz do mundo. Passamos a compreender como se
manifesta a dialogicidade do discurso a partir do instante em que são deixados rastros e pistas
padronizados e variáveis, de acordo com Bakhtin/Volochinov (1997).
É na ocupação de uma área linguístico-textual e enunciativo-discursiva que o autor se
coloca num terreno delicado e fluido de uso da linguagem, encontrando-se na zona de
intersecção entre a ordem do individual e a ordem do social. Em outros termos, o lugar da
constituição/ representação de Jesus Cristo é caracterizado pela forte tensão entre suas
palavras e o dizer (o silêncio é uma forma de dizer algo) do outro.
Findando-se esta produção, vale salientar que o universo discursivo deste sujeito
autor, responsável/responsivo pela relação que mantém com o outro – os discípulos (seus
interlocutores) – se mantém pelas interações com a exterioridade que o constitui, ou seja,
enunciados validados pela história e pela memória sociais: o interdiscurso.

Referências

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e
Yara Frateschi Vieira; com a colaboração de Lúcia Texeira Wisnic e Carlos Henrique D.
Chagas Cruz. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2012.
______. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Ermantina
Galvão; revisão da tradução Marina Appenzeller. —2ª ed. — São Paulo Martins Fontes, 1997.
— (Coleção Ensino Superior).
BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Português. 2012. Belo Horizonte: Editora
Atos, 2012.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. — São Paulo: Ática, 2006.
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FRANCELINO, Pedro Farias. Autoria em perspectiva enunciativa. In: Teoria dialógica do


discurso – exercícios de reflexão de análise. João Pessoa: editora da UFPB, 2013.
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin.
Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.
TEXEIRA, Ana Paula Tosta; BLASQUE, et al. A exposição oral na sala de aula. In: VII
SEMINÁRIO DE PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS. 2008. Anais. UEL. Organização
de Mirian Donat e Rogério Ivano – Londrina: Eduel. dez. 2008. p. 1-9.
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A REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO SIMÃO PEDRO NO PRIMEIRO MOMENTO1


DE SEU DISCURSO SOBRE A DESCIDA DO ESPÍRITO SANTO NOS ATOS DOS
APÓSTOLOS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA

Wilder Kleber Fernandes de Santana

Introdução

De acordo com Bakhtin (2012), a linguagem consiste em uma prática que tem sua
situação histórico-social concreta no momento da atualização dos enunciados. Assim, tal
concepção de linguagem é centrada nos interlocutores, apresentando, dessa forma, seu caráter
ativo no ato verbal em que o discurso é produzido. Posto que a enunciação seja o produto da
interação de “dois indivíduos socialmente organizados” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012,
p. 116), todo e qualquer texto, seja ele verbal ou não-verbal, tem uma natureza sociointerativa,
pois quem o produz tem uma intenção de comunicar, de dizer. Como afirma Bakhtin (2003, p.
282), “A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero
de discurso.”(grifos do autor)
Então, é adentrando e se aprofundando em um projeto de investigação a respeito dos
discursos humanos e da interação entre esses seres no processo de comunicação que surge(m)
o(s) conceito(s) de dialogismo, para Bakhtin. Em suas palavras,

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o


discurso. Trata-se da orientação natural a qualquer discurso vivo. Em todos
os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra
com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma
interação viva e intensa. (BAKHTIN, 1988, p. 88)

A partir do exposto, observamos que a língua, em seu vivenciamento, e em sua


totalidade concreta, tem propriedade de ser dialógica. Sendo assim, quando reportamos nossa
centralidade para o(s) sujeito(s) dialógico(s), percebemos que seus discursos só existem na
forma de enunciações concretas, por serem constitutivamente os sujeitos do discurso. Os
enunciados concretos, como unidade real da comunicação, ocorrem a partir da alternância dos
sujeitos dos discursos, isto porque o sujeito termina seu enunciado para passar a palavra ao

1
Por uma questão estrutural de organização do trabalho, selecionamos, aqui, como sendo o primeiro momento
do discurso de Pedro sobre a descida do Espírito Santo o(s) enunciado(s) que comporta(m) dos versículos 14 ao
21 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos.
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outro, tornando-se um ser responsável e participativo pelo que enuncia, um agente produtor de
sentidos dos discursos produzidos socialmente em situações concretas.
Objetivamos, no presente trabalho, analisar a representação do sujeito Simão Pedro em
seu discurso - exposição oral – sobre a descida do Espírito Santo, segundo o relato que consta
nos Atos dos apóstolos (capítulo 2) por entendermos que, no gênero discursivo em foco, os
sujeitos criam (no ato da comunicação e da interação verbal) o efeito de sentido desejado de
compreenderem-se responsivamente, já que incorporam nos seus discursos os discursos de
outrem. Procuramos observar as possibilidades de sentido presentes em seu discurso, na busca
de compreender como ocorre a apreensão das vozes sociais pelo sujeito e observando os
efeitos discursivos a partir dos enunciados que se atualizam. Sob o viés do dialogismo,
buscamos, assim, discorrer sobre o discurso religioso.
A pesquisa é de caráter bibliográfico e documental e o corpus constitui-se de 8 (oito)
versículos bíblicos relatados por Lucas nos Atos dos apóstolos acerca de palavras de Simão
Pedro. A exposição oral geralmente se realiza numa situação de comunicação específica em
que o expositor une-se, pela interação verbal, ao(s) seu(s) destinatário(s). Dessa forma, a
exposição oral se caracteriza pelas diferentes formas de presença do outro, ou seja, presença
de diversas vozes sociais, estas resultantes de relações interdiscursivas. Trata-se, portanto, de
uma pesquisa de cunho qualitativo-interpretativo.
A análise deste trabalho tem por fundamento a Teoria da Enunciação de Bakhtin e o
Círculo (2011, 2012) e os postulados da Análise Dialógica do Discurso, representada por
trabalhos de alguns estudiosos em terreno brasileiro como Faraco (2003), Fiorin (2006) e
Sobral (2009). Primeiramente, abordaremos acerca do conceito de dialogismo de Bakhtin
caracterizado como princípio constitutivo da linguagem. Em seguida, sobre o sujeito Simão
Pedro para, posteriormente, analisar a sua representação no gênero em questão.

Dialogismo como princípio constitutivo da linguagem

A natureza dialógica da linguagem, como definição teórica, desempenha papel


importantíssimo nas obras de Bakhtin. Este último e o Círculo formulam o conceito de
dialogismo, considerado o princípio constitutivo da linguagem, em que a linguagem, sendo
em sua natureza concreta, viva, em seu uso real, tem a característica de ser dialógica. Neste
direcionamento, segundo Sobral (2009, p. 32),
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essa concepção é chamada de dialógica porque propõe que a linguagem (e os


discursos) têm seus sentidos produzidos pela presença constitutiva da
intersubjetividade (a interação entre subjetividade) no intercâmbio verbal, ou
seja, as situações concretas do exercício da linguagem. (SOBRAL, 2009, p.
32)

Assim, Bakhtin/Volochinov (2012), ao tratarem da língua como natureza real/viva,


consideram que a língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas (sistema de formas,
fonéticas, gramaticais e lexicais da língua), mas a entendem a partir desses elementos
linguísticos num contexto concreto preciso, em que sua significação é compreendida numa
enunciação particular.
Neste viés interpretativo, diferentemente de Saussure (e dos que enquadram na
perspectiva do objetivismo abstrato), que desconsidera a fala e apenas vê a língua como um
sistema fechado de formas normativas imutáveis, Bakhtin/Volochinov (2012) valorizam o
aspecto social da fala que está intimamente ligada à enunciação, instaurando a
intersubjetividade, e consequentemente a interação verbal.
Patente a isto, de acordo com Fiorin, nesses enunciados, em seu processo de
comunicação, “existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela
palavra do outro, e é sempre inevitavelmente também a palavra do outro” (FIORIN, 2006, p.
19).
Recuperando a afirmativa de que um enunciado sempre dialoga com outro enunciado,
compreendemos a linguagem como o meio de interação comunicativa pela qual se estabelece
a produção de efeitos de sentidos entre interlocutores (em uma dada situação comunicativa e
em um contexto sócio-histórico e ideológico). Com isso, podemos conceituar os gêneros
discursivos como fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social,
que cooperam no processo de concretização das atividades comunicativas. (Grifos nossos).
Diante das observações constatadas sobre o discurso e a enunciação voltados para a
oralidade, observemos o que consta no trabalho Teixeira, Blasque e Santos sobre o gênero em
questão:

A exposição oral deve ser tratada como objeto de ensino de expressão oral...
Em alguns casos a exposição vem de uma longa tradição e é constantemente
praticada... Assim, a exposição permanece como uma atividade tradicional...
Ao citar as características gerais do gênero pode-se dizer, segundo Dolz,
Schneuwly et alli (2004), que a exposição é um discurso que se realiza numa
situação de comunicação específica chamada de “bipolar”, unindo o orador
ou expositor e seu auditório, assim, a exposição pode ser qualificada como
um espaço-tempo de produção onde o enunciador vai ao encontro do
destinatário, através de uma ação de linguagem que veicula um conteúdo
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referencial. Mas, se esses dois atores encontram-se reunidos nessa troca


comunicativa particular que é a exposição, a assimetria de seus respectivos
conhecimentos sobre o tema da exposição os separam: um representa o
“especialista”, o outro, se caracteriza como alguém disposto a aprender algo
(TEIXEIRA; BLASQUE; SANTOS; 2008, p. 1-2).

Refletindo sobre o exposto, selecionamos a narrativa bíblica em que Simão Pedro


discorre sobre a descida do Espírito Santo no dia de pentecostes, quando “pôs-se em pé, com
os onze outros discípulos, e levantou sua voz” (ATOS, v.14).
É de nosso particular interesse compreender o processo de representação do sujeito
discursivo, reconhecido o fato de que existam divergentes maneiras de se representar o
discurso de outrem no plano enunciativo. Deste modo, iremos adentrar no entendimento de
como se constitui e de como se re(a)presenta o sujeito discursivo Simão Pedro, em seu
discurso sobre a descida do Espírito Santo.
Quando se aborda acerca de dialogismo e interação, necessariamente falamos dos
sujeitos, os quais são partes do processo de construção de sentidos. O sujeito, para Bakhtin e
para o Círculo, é pensado na interação constitutiva da sociedade: precisa da sociedade para
existir e constitui, em suas relações com outros sujeitos, essa mesma sociedade.
A concepção de sujeito, para o Círculo, consiste em que este assume um caráter de
“responsabilidade/responsividade” e de “participatividade” que institui um aspecto responsivo
do agente pelo seu ato. Este envolve o conteúdo e um dado processo por meio da
valoração/avaliação responsável do agente pelo seu próprio ato, e o caráter responsivo a
outros sujeitos que estão envolvidos neste ato.
Nessa horizontalidade, Sobral (2009, p. 54) afirma que, segundo o Círculo, “(...) o
sujeito é essencialmente um agente responsável pelo que faz, agente que, em suas relações
sociais e históricas com outros sujeitos igualmente responsáveis (inclusive apesar de si
mesmos), constitui a própria sociedade sem a qual ele mesmo não existe.” O sujeito, dessa
forma, constitui um agente mediador entre os sentidos socialmente possíveis e os discursos
produzidos em situações concretas. Desse modo, unem-se o individual e o social. Acerca
disto, faz-se importante também destacar que a realidade do sujeito se apresenta como um
mundo de vozes sociais em diversas relações dialógicas: “relação de aceitação e recusa, de
convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de intersecções e hibridizações.”
(FARACO, 2003, p. 80). É nessas condições de produção de suas enunciações que o sujeito
vai se constituindo discursivamente, pois vai apreendendo as vozes sociais, bem como suas
inter-relações dialógicas.
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A exposição oral de Simão Pedro sobre a descida do Espírito Santo no dia de


Pentecostes2

Detectemos, em primeiro plano, o contexto em que se encontrava Simão Pedro, no


momento em que começou a expor, oralmente, seu discurso sobre a descida do Espírito
Santo3 no dia de Pentecostes. De acordo com o capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos (v. 14),
segundo Lucas, Pedro se colocou em pé com os outros 11 discípulos que com ele estavam, e
levantou a sua voz, e disse à multidão presente:

v. 14: ... – Varões judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto
notório, e escutai as minhas palavras.
v. 15: Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a
terceira hora do dia.

Prestando visibilidade ao exposto, alcançamos que Simão Pedro estava rodeado de


pessoas, dentre as quais havia dois grupos distintos, a quem este se dirigia: de um lado, os
judeus. De outro, “todos os que habitavam em Jerusalém4” (ATOS 2 , v 14). (grifos nossos).
Ainda analisando o discurso de Simão, percebemos que a multidão a quem ele se prestava não
compreendera o que tinha acontecido na descida do Espírito Santo, fato que acontecera
anteriormente. Assim, compreendemos o motivo pelo qual Pedro expôs no v. 15: “Estes

2
“Pentecoste, gr. quinquagésimo. A segunda das três grandes festas anuais a que devia comparecer todo o povo
de Deus. Chamada pentecoste porque era observada no quinquagésimo dia depois do segundo dia de páscoa.
Chamada pentecoste porque era observada no quinquagésimo dia depois do segundo dia de páscoa. Conhecida,
também, como a festa das semanas, porque observada sete semanas depois da páscoa, Dt. 16, 9. Também se
denomina a festa das primícias, Ex. 23, 16; Nm. 28, 26. (BOYER, 2009, p. 414) (Grifos do autor).
3
A partir do que constatamos em leituras circundantes ao texto em análise neste trabalho, especificamente Atos
2, dos versículos 1 ao 13, percebemos que A descida do Espírito Santo (grifos nossos) foi uma manifestação
espiritual que aconteceu a todos os adoradores que se encontravam reunidos no mesmo lugar ( que simboliza a
Palavra de Deus). Na descrição desta manifestação, houve “línguas repartidas, como que de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles”, e isso representa um tipo de dom espiritual (veja-se I cor. 12, 10), o de falar em
línguas estranhas e de interpretar.
4
Nesse ponto, ao se dirigir às pessoas, Simão Pedro estabelece uma diferença entre dois povos, selecionando
Judeus de um lado e moradores de Jerusalém de outro. Para entendermos o porquê disso, temos de retornar um
pouco a acontecimentos passados. Se observarmos o versículo 5 do capítulo 2 de Atos, consta que “Em
Jerusalém estavam habitando Judeus, homens religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu” (ATOS 2,
5). Portanto, o termo Judeus, nessa condição de produção, não faz referência a moradores da Judéia, e sim a
seguidores da linha doutrinária da religião judaica, naquele contexto cultural. Logo, no discurso de Pedro, houve
divisão enunciativa por motivos de crença: de um lado os judeus, seguidores da doutrina religiosa das Tribos de
Israel dos hebreus do Antigo Oriente. De outro lado, todos os moradores de Jerusalém, uma referência a todos os
povos estavam presentes no momento da descida do Espírito Santo, e que são descritos dos versos 9 a 11 deste
mesmo capítulo: “Partos e Medos, Elamitas e os que habitavam na Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto,
Ásia, Frigia, Panfília, Egito e em partes da Líbia, junto a Cirene, e a forasteiros romanos, tanto Judeus como
prosélitos, Cretenses e Árabes” (ATOS 2, 9-11).
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homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia 5”: faliu-o no
intuito de recuperar um acontecimento (com toda sua densidade concreta) e de (re)configurá-
lo, prestando-lhe nova roupagem.
Vale frisar que, neste contexto, a representação do discurso de Pedro se faz pela
contradição, no ato de enunciar palavras que soaram em sentido contrário ao pensamento dos
judeus e dos moradores de Jerusalém. A partir do versículo 16, então, para sustentar seu
posicionamento de recusa em relação ao imaginário daquele(s) povo(s), Simão nos traz um
discurso que fora proferido outrora pelo profeta Joel6, ressignificando-o, atribuindo-lhe nova
vestimenta.

v. 16 Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel:


v. 17 E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, Que do meu Espírito
derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas
profetizarão, Os vossos jovens terão visões, E os vossos velhos terão sonhos;
v. 18 E também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as
minhas servas naqueles dias, e profetizarão;
v. 19 E farei aparecer prodígios em cima, no céu; E sinais em baixo na terra,
Sangue, fogo e vapor de fumo.
v. 20 O sol se converterá em trevas, E a lua em sangue, Antes de chegar o
grande e glorioso dia do Senhor;
v. 21 E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será
salvo.

Por mais que o discurso trazido por Pedro seja o mesmo que o do profeta Joel, sem
mudanças no que se refere ao plano linguístico, está revestido de novo significado, pois está
sob novas condições de produção, inserido em um contexto (temporal-espacial) sacerdotal
diferente. A representação do sujeito, neste discurso, não está no fato de ter trazido as mesmas
palavras (forma composicional em que ela ocorre), e sim na atitude de inseri-las em um novo
processo comunicativo. “Todos os enunciados no processo de comunicação, independente de
sua comunicação, são dialógicos” (FIORIN, 2006, p. 19).
Ao recuperar o discurso de Joel, Pedro quis (a)firmar para os judeus e para todos os
residentes de Jerusalém que o acontecimento da descida do Espírito Santo e a manifestação
dos dons espirituais eram verdade, já que se tratavam de uma profecia Justa, tanto perante a
lei dos homens quanto perante a lei de Deus. Com isso, persuadiu os que duvidaram e

5
A terceira hora do dia, no calendário judaico, consiste nas 09:00 horas da manhã.
6
Joel é o autor do segundo livro, dentro da classificação dos doze pequenos livros, conhecido como um dos
“profetas menores” (grifos do autor, para explicar que o termo menores faz referência à dimensão dos livros, que
são pequenos em estrutura linguística)... Filho de Petuel. Em seu sermão no dia de Pentecostes (At. 2, 14 em
diante), Pedro cita a profecia de Joel acerca da redenção de Deus (Jl 2, 28-32), uma profecia de esperança e um
novo começo com Deus. (LOSCH, 2008, p. 264). “grifos do autor”
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zombavam (v. 13), já que os judeus se sustentavam na lei de Moisés (ancorada, por sua vez,
na lei e na(s) profecia(s) dos homens do Antigo testamento). Os outros povos traziam consigo
seus costumes culturais e religiosos. Novamente prestando crédito a Fiorin (2006, p. 19),

O enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de


outrem, que está presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente
ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de
sentido que se estabelecem entre dois enunciados. (IDEM, 2006, p. 19)

Para constituir seu discurso, portanto, Simão tanto levou em conta o discurso judaico
(no momento, contrário ao seu) quanto o de Joel, no qual se sustentou. É nessas condições de
produção de suas enunciações que o sujeito vai se “formando” discursivamente, pois vai
apreendendo as vozes sociais, bem como suas inter-relações dialógicas.

A concepção dialógica do sujeito Simão Pedro

A concepção dialógica apresenta que, antes mesmo de falar, “(...) o locutor altera,
‘modula’ sua fala, seu modo de dizer, de acordo com a imagem presumida que cria de
interlocutores típicos, ou seja, representativos, do grupo a que se dirige.” (SOBRAL, 2009,
p.39). Neste viés interpretativo, segundo Sobral (2009, p. 51), o sujeito, dentre outras
características que o constituem, é aquele que

Age sempre (o que inclui todos os seus atos: cognitivos, verbais etc.)
segundo uma avaliação/ valoração daquilo que faz ao agir/falar, e pela qual
se responsabiliza, e o faz a partir tanto da identidade que forma e vê
reconhecida como das coerções que suas relações sociais lhe impõem ao
longo da vida e que vão alterando essa identidade que ele veio a formar.
(SOBRAL, 2009, p. 51).

O sujeito Simão Pedro, em suas enunciações, assume uma responsabilidade pelo que
faz, a partir tanto de sua identidade como das relações sociais que lhe são impostas e que vão
alterando sua identidade. Pedro, ao se engajar em seu discurso, a exemplo dos versos 14 e 15
(citados, p. 6 deste), reconstrói sua identidade. Ele está ao mesmo tempo considerando o
discurso do outro (o discurso judaico, ainda que discorde totalmente das opiniões alheias),
visto que o sujeito ocupa, na sociedade, múltiplas identidades, pois está sempre em contato
com diferentes interlocutores. Assim, por exemplo, neste momento não assume apenas a
identidade religioso, mas também de apóstolo e defensor da doutrina divina dos dons, do
ministro que está defendendo a espiritualidade profética da manifestação dos dons. Então, é
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assim que sua identidade é compreendida como uma construção socialmente organizada por
meio de outros discursos.
Simão Pedro, como enunciador, para constituir seu discurso, leva em conta o discurso
de outrem, utilizando-o no seu discurso, gerando maiores possibilidades de entendimento.
Essa compreensão mútua se perfaz a partir do instante em que discursa em um plano
enunciativo reconhecível a todos, ou pelo menos, à maior parte das pessoas, neste caso na
recuperação do discurso de Joel (que, por sua vez, já vinha ressignificando, em diversas
passagens, o discurso mosaico, de quem grande parte da multidão era seguidora).

Considerações Finais

O objetivo de analisar o(s) sujeito(s) do discurso no gênero discursivo exposição oral


segundo a ótica de Bakhtin se deveu pelo fato de que há um jogo discursivo de diversas vozes
que perpassam nesse texto. A enunciação dos sujeitos dialógicos mostrou que as vozes
constituem esses sujeitos, pois os mesmos utilizam os discursos de outrem para projetar nos
seus discursos o propósito comunicativo pretendido, a exemplo do que fez Simão Pedro.
Percebemos que este, ao fazer uso de enunciados já citados, os traz para o seu discurso com
sentidos diferentes, pois, sendo o contexto diferente, a função comunicativa torna-se
dessemelhante, e, consequentemente o enunciado torna-se único. “Por isso, todo discurso que
fale de qualquer objeto não está voltado para a realidade em si, mas para os discursos que a
circundam”. (FIORIN, 2006, p. 19) Assim, sempre deve ser considerado o espaço em que é
produzido e o lugar sócio-histórico e ideológico dos sujeitos. Com isso, compenetramos no
reconhecimento de que o sujeito, ao fazer uso da língua num dado contexto, constitui o que
Bakhtin diz que o “eu” está sempre em relação ao “outro” nos processos discursivos,
instituindo-se assim o caráter dialógico.

Referências

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e
Yara Frateschi Vieira; com a colaboração de Lúcia Texeira Wisnic e Carlos Henrique D.
Chagas Cruz. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2012.
______. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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______. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Tradução do russo por


Aurora Fornoni Bernardini et alii. São Paulo: Editora da UNESP e Hucitec, 1988.
BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Português. 2012. Belo Horizonte: Editora
Atos, 2012.
BOYER, Orlando. Pequena Enciclopédia Bíblica. Rio de Janeiro: CPAD, 2009.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
LOSCH, Richard R. Todos os personagens da Bíblia de A a Z. São Paulo: Didática paulista,
2008.
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin.
Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.
TEXEIRA, Ana Paula Tosta; BLASQUE, et al. A exposição oral na sala de aula. In: VII
SEMINÁRIO DE PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS. 2008. Anais. UEL. Organização
de Mirian Donat e Rogério Ivano – Londrina: Eduel. dez. 2008. p. 1-9.
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LINGUAGEM E LITERATURA

MOTTA COQUEIRO OU A PENA DE MORTE, DE JOSÉ DO PATROCÍNIO: UMA


VOZ, UMA CONSCIÊNCIA E UMA LITERATURA

Camila Machado Burgardt


UFPB

[...]
Convém que antes que os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
[...]
Cláudio Manuel da Costa – Vila Rica, 1773.

José Maria do Espírito Santo, mais conhecido como José do Patrocínio (09/10/1853-
30/01/1905), nasceu em São Salvador dos Campos do Goitacazes, no Rio de Janeiro, cidade
mais conhecida como Campos. Filho do cônego João Carlos Monteiro (1799-10/01/1876),
principal figura do clero na cidade, dono de fazenda, maçônico, político (ora deputado
provincial, ora vereador da câmara municipal), que aos 54 anos encantou-se por uma de suas
escravas, Justina Maria do Espírito Santo (12 para 13 anos), que engravidou do menino
batizado como ‘exposto’, ou seja, de pais desconhecidos (ALVES, 2009).
Patrocínio fugiu para a capital do império muito cedo e lá estabeleceu proveitosas
relações que muito o ajudaram financeiramente e em seus estudos, até tornar-se jornalista
famoso e conhecido pela sua luta contra as injustiças sociais. Já no início da década de 1870
começara como colaborador da imprensa, mas foi em 1877 que se estabelece como
funcionário de um “[...] jornal vivo, popular, empenhado em dar aos leitores informações
colhidas por observadores diretos.” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 55), o Gazeta de
Notícias, jornal em que publicaria dois romances-folhetins, Motta Coqueiro ou a pena de
morte, o primeiro, e Os retirantes, o segundo.

Um romance, uma história célebre

O romance de estreia de José do Patrocínio foi publicado em nota de rodapé, na


primeira página do jornal Gazeta de Notícias, começando em 22/12/1877, n. 353, até
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03/03/1878, n. 62. O assunto do romance foi retirado de um fato verídico: Manuel da Mota
Coqueiro, senhor de escravos, fazendeiro em Macabu, no município de Macaé, mas residindo
em Campos, fora acusado de exterminar toda uma humilde família em 1852. É condenado à
morte e executado em 1855, mas muito tempo depois se descobre que a justiça havia
cometido um engano e condenado um inocente a morte.
A história composta de treze capítulos começa com a narração, em flash-back, do dia
do enforcamento de Motta Coqueiro, acusado como mandante do assassinato de Francisco
Benedito e sua família. Logo no início da história, o narrador deixa claro seu pensamento a
respeito da pena capital, como se vê nos trechos que seguem:

[...] a máquina sombria da justiça social.


A sua fealdade comovente, brutal encarnação dos sentimentos da população,
pavoneava-se, entretanto, com o epíteto honroso de instrumento da
desafronta pública.
[...]
A justiça, dinamizando a barbaridade, folga e jacta-se de dar aos
descendentes dos ofendidos uma reparação, mas não vê que não será
multiplicando a orfandade e o desamparo que ela chegará um dia a trancar as
prisões. (PATROCÍNIO, 1977, p. 29)

E todavia parece que há menos torpeza em um homem matar outro, do que


em reunirem-se milhares para matar um só. (PATROCÍNIO, 1977, p. 30)

Observa-se que o narrador marca clara posição contra a pena de morte, de modo que
assinala a ideia capital do romance e procura desacreditar uma ação movida pela ignorância,
atraso cultural ou incapacidade de visão de determinado grupo. Nota-se também que o
narrador privilegia os erros do processo judiciário que culmina com a morte de um inocente,
mas, discretamente, também põe em cena a questão de assassinato político, pois deixa claro
que o fazendeiro fazia parte de um partido e que seria candidato nas próximas eleições,
hipótese levantada e trabalhada na análise de Bruzzi (1959) sobre o romance e sua relação
com o caso real. Segundo Magalhães Júnior (1957), a punição capital – a pena de morte –
sofreu impacto com o livro do jovem poeta e jornalista José do Patrocínio, pois após a
publicação do romance o carrasco não trabalhou mais, uma vez que os condenados acabavam
sempre ganhando indulgência.
Depois desse primeiro capítulo o narrador passa a relembrar, também em flash-back,
minuciosamente, o meio social e os personagens que cercaram Motta Coqueiro até o dia de
sua morte legal, mas essa reconstituição dos acontecimentos não é pertinente para a sua
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defesa, pois a declaração mais significativa a favor do fazendeiro é a declaração de um


moribundo que, no romance, se dá na voz do personagem Herculano.
Retomando a narrativa de Patrocínio, nela o narrador passa a contar a vida no sítio em
Macabu, com toda a história da senzala e seus escravos, com personagens marcantes, como o
feitor Manoel João que era apaixonado por uma das filhas de Francisco Benedito,
Mariquinhas, que também correspondia a paixão do feitor, mas ele acreditava ser inferior a
moça, como observa-se no trecho que segue:

Acreditava mesmo que seria uma loucura, ele, pobre feitor de roça, e demais
disso homem de cor, ir afrontar os escrúpulos da família, quando
Mariquinhas era tão bonita que fácil lhe era escolher um marido entre os
robustos moços trabalhadores dos arredores. (PATROCÍNIO, 1877, p. 50)

Contrastado pela suspeita, o feitor via no lhano entregar-se de Mariquinhas,


não uma prova da bondade daquele coração ingênuo, mas a cilada
indecorosa da mulher decaída, que planeja a reabilitação na profusão dos
afagos.
Os preconceitos haviam-no por várias vezes esmagado, porque pertencia à
raça mista, à raça a que traçam raias ao coração e aos afetos.
Mariquinhas devia partilhar a opinião geral e, portanto, a sua aquiescência ao
amor, que lhe votara, devia ter um móvel ou muito generoso ou
miseravelmente baixo.
A primeira ponta do dilema não feria a imaginação tresvairada de Manuel
João; malferia-o, porém, a segunda.
- É bonita demais para um homem de cor, dizia ele, e ficava a cismar.
(PATROCÍNIO, 1977, p. 61)

Nesse momento, o narrador passa a discutir a problemática racial, pois o feitor mulato
coloca-se numa condição inferior a da moça desejada, principalmente pela sua cor e condição
social e acaba desconfiando do amor de Mariquinhas. Por não acreditar na moça, guiado pelo
ciúmes, até mesmo de Motta Coqueiro, acaba por violentá-la que, a partir desse momento,
passa a repudiá-lo. Ao longo de toda a narrativa, várias outras pequenas histórias dos outros
personagens vão sendo construídas e que, de algum modo, estão ligadas ao fazendeiro.
Outra personagem instigante na trama é tia Balbina, escrava no sítio de Macabu,
feiticeira ainda nova, e é mais respeitada entre os seus do que o próprio personagem principal,
era temida pelos seus conhecimentos de outra natureza, mais conhecidos como espirituais,
configurando uma personagem forte, como a descrição que segue:

O ascendente sobre os crédulos e broncos escravos do sítio foi conquistado


por Balbina pelo dom especial que ela tinha de conhecer as ervas eficazes no
curativo de todas as moléstias e ainda mais aquelas que tinham certas
virtudes especiais, tais como amansar os senhores, apatetar os brancos, e
assentar o juízo dos amantes volúveis.
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Diziam que ela tinha nas suas mãos a vida e a morte de todos, e para dá-las
bastava apenas um olhar ou um assopro.
No eito tinham-na por vezes visto chegar-se junto as cobras adormecidas, ou
enraivecidas, e enxotá-las. Os répteis fitavam-na, agitavam as línguas e as
caudas, tomavam mesmo a atitude de dar o bote, mas de chofre
acovardavam-se e corriam amedrontados à voz da negra que lhes ordenava a
retirada imediata.
Alguns tímidos denunciaram a tia Balbina como feiticeira, e Motta
Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos próprios de
tal arte, para prevenir os envenenamentos possíveis, fez castigar severamente
a escrava. (PATROCÍNIO, 1977, p. 67-8)

Estes dois personagens, entre outros, marcam uma caracterização intensa do ambiente
da senzala e é aí, segundo Santiago (1977, p. 18), que o romance “[...] se afasta da rotina do
romance brasileiro do século XIX, e de certa forma é pioneiro nessa tentativa de configurar
socialmente e de descrever psicologicamente o ambiente da senzala”. Todos os personagens
pormenorizados pertencem, de algum modo, ao círculo social de Motta Coqueiro e as relações
dele com a família de Francisco Benedito e que, de algum modo, resultam e influenciam no
julgamento social da personagem principal que antes de ser julgada pela justiça o é pelo povo
e pela imprensa, condenado como “a fera de Macabu”.
Assim, esses personagens são descritos nos mínimos detalhes, em suas características
mais íntimas, psicológicas, como a paixão insólita de feitor, os rituais religiosos africanos da
tia Balbina, de modo que o negro aparece plenamente com todas as suas características
individuais, o que, afirma Santiago, provem do conhecimento específico de seu autor – José
do Patrocínio – nascido de uma escrava e criado em uma fazenda de muitos escravos, e que
conheceu de perto essas pessoas, presentes agora em sua “memória afetiva” (SANTIAGO,
1977, p. 20).
O personagem de Francisco Benedito é descrito como um homem que, por vezes, bebe
e cometi desatinos. O que a princípio parecia uma boa amizade, tendo Motta Coqueiro como
um bom compadre com o qual é grato, uma vez que ele o ajudou cedendo um pedaço de terra
para que fixasse moradia, com o desenrolar da narrativa torna-se uma relação de ódio, pois
Francisco é enganado por outros personagens da trama e passa a depredar o sítio, não
temendo a lei. Em capítulo intitulado “Como se pagam os benefícios”, assim se expressa o
novo sentimento da família para com Motta Coqueiro: “A família achava-se agora aumentada
por mais um membro, verdadeiro monstro encanecido desde o nascimento, feroz, sanguinário.
O seu nome era o ódio, o seu caráter a perfídia, o seu culto a vingança.” (PATROCÍNO, 1977,
p. 155).
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Já o personagem de Motta Coqueiro é descrito do início ao fim como um homem bom,


de princípios e caráter, o que destoa de quase todos os outros personagens, e que caiu em uma
armadilha, em um erro judiciário e na maldade do povo. No primeiro capítulo, a descrição do
personagem principal que vai a forca inocente, é apresentada no trecho abaixo:

Alto, magro, com as faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande
mancha arroxeada, as pálpebras entrecerradas, completamente brancos os
compridos cabelos, as sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e
as barbas longas de sob as quais pendia-lhe de volta do pescoço até a cinta,
em torno da qual se enroscava, o baraço infamante; Motta Coqueiro tinha
mais a aparência de um mártir do que a de um celerado. (PATROCÍNO,
1977, p. 32)

Observa-se que a narrativa tem o intuito de transformar o acusado em vítima de modo


claro, como mais a frente observa-se que a jornada dele da prisão à forca é semelhante à
caminhada de Jesus rumo à crucificação, ou seja, o autor usa o símbolo da injúria humana e
coloca o acusado no mesmo nível do maior símbolo católico cristão, o que podemos observar:

Motta Coqueiro, desfigurado e trêmulo, ao ouvir os gritos que anunciavam a


sua chegada, com a voz entrecortada disse ao sacerdote:
- Aconselhe-lhes, meu padre, que não zombem de quem vai morrer.
- Perdoa-lhes, irmão, eles não sabem o que fazem. (PATROCÍNO, 1977, p.
32)

A representação do fazendeiro é articulada de tal modo, que torna o personagem


irrepreensível, acima de qualquer suspeita, pois do início ao fim do romance ele apresenta um
caráter inabalável, mesmo diante da sedução de uma das filhas de Francisco Benedito,
apaixonada, Motta Coqueiro não cede, o que também acaba por torná-lo irreal, uma vez que é
difícil acreditar que o sujeito normal não cometa nenhum ato inconsequente.

Um romance de teses

Essa tática, de transformar Motta Coqueiro em um homem excelente, quase a imagem


de Cristo, segundo Santiago (1977), é própria dos chamados romance de tese, pois apresenta
uma única leitura possível, em que o personagem principal é construído de tal modo que
pareça um exemplo simpático aos olhos do leitor. A narrativa não é complexa, já que
encaminha a uma única e possível leitura – aquela que o leitor concorda com o autor, já que a
verdade da obra é de ordem externa a ela, nesse caso, contra a pena de morte. Assim, “[...] ao
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contrário do texto de ficção, ele não exige a nossa reflexão, trabalhando antes com as nossas
emoções mais superficiais” (SANTIAGO, 1977, p. 12).
O que se observa no encadeamento do romance é a elaboração de uma ideia e, para
isso, o autor usa de algumas estratégias, tais como a caracterização e a ligação entre alguns
personagens, como se viu algumas anteriormente, os quais na ocasião do crime foram
importantes na condenação, primeiramente moral e depois judicial, do personagem central.
Outra construção interessante é a do próprio Motta Coqueiro, não só no dia da morte, mas
também no romance como um todo, símbolo de honestidade, trabalho e integridade moral.
Segundo Gomes (1988), na obra de cunho realista e de preocupação social outra tese
se insinua contra a escravidão, principalmente através da voz de uma personagem marginal
conhecida anteriormente – tia Balbina. Ela sutilmente deixa claro que a escravidão é ruim
para o negro, mas também não é boa para o branco, pois ela aparece como a personagem que
desmistifica e dessacraliza mitos relacionados, por exemplo, a “mãe preta”, tida como aquela
incapaz de se voltar contra seus senhores.
Balbina representa a negra que por um tempo serviu dentro da casa grande, como ama
de leite do filho da família, mas que acabada essa função tem de retornar ao trabalho difícil na
lida com a terra, como na passagem abaixo. Pode-se observar na voz da escrava:

Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos
brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho dos brancos estava
doente, Balbina sentia como se fosse filho dela. Menino já está grande; os
brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos
escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido;
Balbina é surrada, como negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é
Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia
soprar a casa grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o sangue que
correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada. (PATROCÍNO,
1977, p. 32)

Um fator importante nesse trecho é de que a personagem fala consigo mesma em


terceira pessoa, como se estabelecesse uma consciência de si própria como uma entidade
isolada do meio ao qual pertencia anteriormente, ou seja, a casa dos brancos, enquanto alguém
importante para a família, mas agora a negra sofre, rejeitada por quem pensava que a queria
bem, como se pode constatar:

- Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a mãe preta, e eles não
deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das
mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas
costas da feiticeira, e o menino nem olha mais para ela. A ririo machucada
morde, a escrava desprezada mata. (PATROCÍNO, 1977, p. 32)
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Agora a negra Balbina sofre a perda de um filho, arrancado de seus braços que, com o
tempo, a desconhece. Sente a ingratidão e a rejeição dos brancos e isso é imperdoável. A
vítima se torna, então, o algoz, a exemplo da narrativa As vítimas algozes (1869), de Joaquim
Manoel de Macedo (1820-1882), pois a vingança germina no coração da negra. A partir
dessas observações, a narrativa se torna interessante não só pela riqueza da composição da
vida na senzala, mas, principalmente, pela configuração de personagens como tia Balbina e o
feitor mulato Manoel João, que, mesmo não sendo escravo, tem-se e é tratado quase do
mesmo modo, ou seja, como ser inferior.
É de um modo original que a escrita abolicionista de José do Patrocínio floresce no
romance, sem estereótipos de escravos sofredores ou cruéis, mas figuras humanas que se
configuram em personagens diferentes, na construção de suas identidades, pois se fala mais
do escravo negro do que da instituição escravidão. A ideia da escravidão é sutilmente
contestada, péssima para ambos os lados da questão – negros e brancos.

O apagamento de um nome e de uma obra

É notório o apagamento do nome de José do Patrocínio enquanto literato, mas esse


estado da historiografia literária brasileira está sendo cada vez mais contestado,
principalmente baseado na questão do valor, pois se sabe hoje que “[...] estar ou não no
cânone é resultado de um processo seletivo que se caracteriza pela legitimação de exclusões.”
(GINZBURG, 2012, p. 21).
A primeira obra de Patrocínio, Motta Coqueiro ou a pena de morte, encontrou
razoável aceitação na época de sua publicação, é o que se pode verificar, por exemplo, em um
dos poucos artigos a respeito do romance, publicado logo após o fim do folhetim, no próprio
jornal Gazeta de notícias e assinado por “Tragaldabas”, pseudônimo de Joaquim Serra1, como
se vê abaixo:

Os leitores d’esta folha leram com avidez o romance, que foi aqui publicado
sob o título de Motta Coqueiro ou a pena de morte.
O auctor d’esse trabalho é um collega de real merecimento, e de risonho
futuro.

1
Segundo a Academia Brasileira de Letras, o maranhense abolicionista Joaquim Serra foi professor, jornalista,
político e teatrólogo, ocupou a cadeira número 21 no estabelecimento, que foi sucedido por José do Patrocínio.
Dirigiu e participou como colaborador de vários jornais durante toda a sua vida. Disponível em
<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=900&sid=225>. Acesso em: 30 Jul. 2014.
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Jornalista incisivo e valente, poeta ameno e original, revelou-se também


romancista engenhoso e conhecedor de todos os effeitos dramaticos.
Patrocinio é um moço de talento horsligne, e que ha de occupar saliente
logar entre os nossos litteratos.
[...]
Entretanto, Patrocinio deu-nos quadros descriptivos de um colorido forte e
seductor, estudo de caracteres com grande conhecimento do coração
humano, scenas sentimentaes e patheticas, dialogação viva, brilhante e cheia
de aticismo, e por fim o mais vehemente protesto contra o assassinato legal,
em nome da mais sã philosophia.
Quiz prestar homenagem á escola realista, tão posta em moda por Goncourt,
Zola e Flombert, e teve as temeridades felizes de Eça de Queiroz, e soube
envernsar os horrores e engrandecer as rugas.
Como Gaboriau, em seus romances judiciarios, o auctor de Motta Coqueiro
teceu uma intriga que, parecendo dar razão á justiça publica, ao mesmo
tempo demonstra quão fallivel e errado é o juizo dos homens.
Accrescente-se que o estylo do livro é sempre imaginoso e poetico, e que
todos os personagens fallam a linguagem apropriada. (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 24/03/1878, n. 81, p. 01, sic).

Observa-se que Serra faz uma crítica positiva do romance e, para quaisquer outros
detalhes, justifica que o romance “[...] foi um trabalho escripto por trechos, destinado a servir
de libelo contra a pena de morte, subordinado a certas exigencias de nossa folha diaria, que
pretende agradar ao maior numero.” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 24/03/1878, n. 81, p. 01), ou
seja, esses pontos devem ser levados em consideração pela crítica na avaliação do romance
que, no todo, mostra-se razoável.
Já em 1880, encontra-se outro artigo da Gazeta de notícias intitulado “Bibliografia”,
assinado por “Da Saison”, em que o autor afirma o sucesso jornalístico do romance de estreia
de Patrocínio, Motta Coqueiro ou a pena de morte, mas com relação ao segundo romance do
jornalista, Os retirantes, a exemplo do trecho que segue:

O romance de estreia, o Motta Coqueiro, alcançou o que chamaremos um


sucesso jornalístico: escrito dia a dia e sofregamente, com avidez foi lido.
Compaginado em volume, pôs a descoberto as falhas e as demasias da
improvisação. Não obstante, o livro não foi mais que o prolongamento do
êxito do folhetim. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 09/04/1880, n. 98, p. 02).

A crítica do romance sempre é acompanhada de um ‘porém’, que aparece para


encobrir as “falhas” do escrito, de modo que desde o princípio a obra é marcada, em geral,
negativamente por ser um folhetim e ter de cumprir com as exigências desse modo de escrita,
é o que o terceiro crítico, Araripe Júnior (1848-1911), do romance também afirma:

José do Patrocínio, no Mota Coqueiro atirou-se para frente com toda a gana
do impressionado. Vê-se incontestavelmente, em mais de um capítulo do
livro, aliás escrito aujourlejour, que só lhe faltou liberdade para chegar às
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maiores exagerações da escola. O romance era uma reminiscência da vida do


autor em Campos, tinha sido por ele vivido em quase todas as suas partes;
vinha, portanto, impulsionado pela verve do entusiasmo daquilo que se
chama a vida ressurgida. Nestas condições de força, e a avaliar pelas cenas
admiráveis de luz, de calor, de verdade, que se encontram em mais de um
lugar do livro, é bem provável que Mota Coqueiro tivesse sido um romance
terrível, se não o coagissem as conveniências do rodapé do jornal para o qual
era composto. (NOVIDADES, 28/03/1888, n.69, p. 02).

Araripe também critica o autor por escrever movido por uma espécie de verve
reformatória, contestatória e ainda por se mostrar demasiadamente ligado a uma tendência
literária específica, o realismo naturalismo. Não se encontra nenhuma análise literária da obra
que conte sua história e analise seus pormenores como personagens, espaço ou enredo e,
desse modo, Patrocínio entra nas histórias literárias como um grande publicista, orador e
crítico brasileiro e seus romances não são nem citados pelas antologias de literatura brasileira.
Esse é o modo de pensar, por exemplo, de críticos literários conhecidos como Silvio
Romero (1851-1914) em sua História da Literatura Brasileira (1954), onde Patrocínio
encontra-se entre “[...] os quatro representantes máximos das raças cruzadas no Brasil neste
século” (p. 1869). O autor concebia como literatura “todas as manifestações de inteligência de
um povo: - política, economia, arte, criações populares, ciências...” (ROMERO, 1980, p. 58),
assim, Patrocínio é classificado mais como um hábil jornalista político do Brasil do que como
escritor de narrativas.
José Veríssimo (1857-1916) também foi um crítico contemporâneo a Araripe Júnior e
Silvio Romero. O autor paraense também escreveu uma História da literatura Brasileira, em
1916, mas para ele a literatura reduzia-se a arte literária, o que limitava os escritos
selecionados, classificação na qual não cabia Patrocínio, mesmo afirmando que ainda era
necessário uma seleção mais rigorosa em nomes por ele mencionados. Assim como Romero
(1980), ele classifica o jornalista no capítulo que trata como publicistas, oradores e críticos.
Paulatinamente, percebe-se que Patrocínio vai perdendo o seu papel de literato, pelo
qual nunca obteve nenhuma espécie de reconhecimento, e continua “sobrevivendo” por outros
motivos que os “puramente literários”, a exemplo de seus escritos jornalísticos na luta contra
a abolição. Nas antologias mais atuais de literatura, como na Formação da literatura
Brasileira (1959), de Antonio Candido, Patrocínio não é mencionado, já na História concisa
da literatura Brasileira (1970), de Alfredo Bosi, o autor aparece listado entre os homens que
tomaram “as letras como instrumento de ação” (BOSI, 1982, p. 286), principalmente política,
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na luta pela liberdade, sem mais explicações sobre os seus escritos, e também nada é dito
sobre a literatura ficcional de Patrocínio.
Constata-se com essa pesquisa, que Patrocínio não contava à época com o que Augusti
(2010, p. 122) denomina de rede de relações, como o aval de um escritor já respeitado no
mundo das letras o que “não apenas auxiliava a divulgação da obra, como também a investia
de prestígio”, uma vez que a indicação era valiosa e normal entre os escritores do século XIX.
Nesse sentido, fora a crítica de Joaquim Serra, sob o pseudônimo Tragaldabas (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 24/03/1878, n. 81, p. 01), e os avisos sobre a venda do romance na Gazeta de
Notícias, encontramos apenas mais duas apreciações superficiais do romance: a apreciação
“Bibliografia”, assinada por “Da Saison” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 09/04/1880, n. 98, p. 02),
e o artigo de Araripe Júnior (NOVIDADES, 28/03/1888, n.69, p. 02).
Embora a crítica literária tenha surgido com a responsabilidade de ser mais um
instrumento de construção da nacionalidade brasileira, outros valores foram sendo
acrescentados e transformaram o termo literatura, que foi sendo construído historicamente, e
que se encontra bem diferente daquele vigente até fins do século XIX. Mesmo na época de
sua publicação, Motta Coqueiro ou a pena de morte não teve uma boa recepção por parte do
público e, segundo os valores estéticos atuais, também não é considerado um bom livro. É o
que afirma a escassez de trabalho sobre o livro e também as Orientações curriculares
nacionais (OCN’s), no trecho que segue:

[...] por transgredir por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de
determinado contexto, [...] ainda é insuficiente [...] se não revelarem
qualidade estética. [...] Muitas obras de grande valor cultural têm escasso
valor estético, até mesmo porque não se propuseram a isso: é o caso, por
exemplo, dos escritos de José do Patrocínio” (OCN’S, p. 56-7, grifos meus).

Ao fazer tal afirmação, de forma vaga, essa instância legitimadora, uma vez que passa
a intervir de maneira determinante na produção, circulação e recepção dos discursos
publicados (CHARTIER, 2011), acaba por afastar a leitura das obras de Patrocínio do cânone
literário e, por consequência, da sala de aula, privando muitos brasileiros de conhecerem um
escritor e jornalista que marcou com seus textos o fim do Império e o início da República, e
que pode ser tomado como parceiro tanto no processo de conhecimento histórico quanto
literário por ter trabalhado um tema relevante para o Brasil, mesmo nos dias atuais, como a
violência.
Assim, pensar a literatura como um simples prazer estético de ler uma obra fechada
em si mesma, desconexa com a realidade das condições de produção e recepção dos textos, ou
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seja, decretar uma leitura imanente dos textos e a procura de verdades eternas ou imanentes
aos homens, segundo Ginzburg (2012, p. 33), “[...] supõe desconsiderar as diferenças,
repressões e conflitos de perspectivas com que convivem as sociedades.”, uma vez que diluem
os conflitos humanos a ponto de se tornarem irreconhecíveis, em sua generalidade e
abstração.

Considerações finais

Segundo Ginzburg (2012) e Reis (1992), o cânone brasileiro é marcado,


principalmente, pela ausência, por exemplo, da tradição oral, do cordel, das mulheres, dos
negros e chegam à conclusão que essas escolhas são, essencialmente, ideológicas. Desse
modo, é mais fácil entender a exclusão de uma obra que oferece brechas de análises
importantes, anteriormente analisadas, até mesmo pela instância responsável, o Ministério da
Educação, em primeiro lugar, por sancionar e consolidar o que os alunos desse imenso país
devem ler em todas as regiões e, segundo, pela formação de cidadãos conscientes e críticos.
Observou-se que a obra Motta Coqueiro ou a pena de morte é importante enquanto
representante legítimo, por exemplo, da escrita de uma época, de um autor, da história
brasileira e de temas pertinentes e fundamentais na formação de todo cidadão, como a
violência, desde nossas raízes com a pena de morte e a escravidão, mas também com a
questão da alteridade (ZANELLA, 2005), ou seja, pensar o outro na plenitude da sua
dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença.
Patrocínio escreveu um romance único ao propor duas teses fundamentais: contra a
pena de morte, mas também contra a escravidão, afirmando que ela não é boa nem para o
escravo e nem para o seu senhor e família. Nesse sentido, fica claro os diversos usos que o
texto de um negro abolicionista de destaque, do século XIX, pode ter em sala de aula, na
formação do cidadão consciente de suas raízes e de suas responsabilidades com a sociedade.

Referências

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Garamond, 2009.
BRUZZI, Nilo. José do Patrocínio: romancista. Rio de Janeiro: Edição Aurora, 1959.
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CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. 5ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.
GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, FAPESP, 2012.
GOMES, Heloisa Toller. O negro e o romantismo brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. 2ª ed. São
Paulo: LISA; Rio de Janeiro: INL, 1972.
______. O império em chinelos. São Paulo: Editora Civilização Brasileira S/A, 1957.
OCN: Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006.
PATROCÍNIO, José do. Motta Coqueiro ou a pena de morte. Rio de Janeiro: F. Alves;
Instituto Estadual do livro, 1977.
REIS, R. Cânon. In: JOBIM, J. L. (Org) Palavras da crítica. Rio deJaneiro: Imago, 1992.
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Volume I. Rio de Janeiro: José
Olympio; Brasília: INL, 1980.
______. História da Literatura Brasileira. Volume 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
SANTIAGO, Silviano. Desvios da ficção. In: Motta Coqueiro e a pena de morte. Rio de
Janeiro: F. Alves; Instituto Estadual do livro, 1977.
VERÍSSIMO, J. História da Literatura Brasileira. 5ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1969.
ZANELLA, Andréa Vieira. Sujeito e alteridade: reflexões a partir da psicologia histórico-
cultural. Rev. Psicologia e sociedade [online]. 2005, vol.17, n.2, pp. 99-104.
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A DESAUTOMATIZAÇÃO NO POEMA “O MORCEGO”, DE AUGUSTO DOS


ANJOS

Felipe Sósthenes Ferreira de Assis1


UFPB
Daniela Maria Cavalcanti Costa2
UFPB

Introdução

O presente artigo objetiva uma análise do poema “O morcego”, de Augusto dos Anjos,
sob o prisma da desautomatização proposta pelo formalista russo V.Chklovski (1978).
Segundo o autor, a construção poética necessita de um reforço perceptivo, isto é, o
procedimento para a criação artística não passa pela clareza de ideias, mas sim, pelo
obscurecimento. Dessa forma, amplia a percepção do leitor e desconstitui as imagens
previamente estabelecidas para, assim, alcançar um resultado de reflexão poética a partir da
imagem particularizada na significação criada pelo autor.
Para que essa criação poética promova a desautomatização do leitor, como explicitado
acima, é necessário, ao poeta, valer-se de diversos recursos, entre eles a metáfora.
Em “O morcego”, Augusto dos Anjos demonstra um claro exemplo de
desautomtização ao utilizar o animal “morcego” como uma metáfora equivalente à
consciência humana.
Sendo assim, a construção dos conceitos e imagens do senso comum a respeito da
consciência e do próprio morcego são revistas e associadas de forma inesperada e
surpreendente, possibilitando uma nova reflexão do leitor sobre as imagens paras as quais já
havia construído um significado.

O processo de desautomatização

O entendimento do processo de desautomatização passa, primeiramente, pela


compreensão de como o ser humano torna-se automatizado.

1
Aluno da graduação, em licenciatura, do curso de Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista
do projeto FCPLP (Formação Continuada de Professores de Língua Portuguesa), da mesma Universidade.
2
Aluna da graduação, em licenciatura, do curso de Letras/Português, da Universidade Federal da Paraíba.
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As demandas diárias fazem com que se cumpram uma série de tarefas, ou que se
realizem diversas ações, desde as mais simples às mais complexas. Contudo, essa execução
excessiva faz com que o ser humano condicione-se, habitue-se. Ao habituar-se, diminui,
substancialmente, sua capacidade perceptiva, abrindo mão dos detalhes presentes na
observação desse ato quando executado pela primeira vez. Nisso consiste o processo de
automatização. Uma mecanização devida ao excesso de contato com um ato, seja ele simples
ou complexo, resultando numa diminuição perceptiva.
A maioria das atividades presentes no nosso dia a dia é cumprida irrefletidamente.
Quem nunca executou uma delas e ao fim perguntou-se como conseguiu chegar àquele
resultado? O processo intermediário, localizado entre o início e o término da tarefa, foi
perdido, ou melhor, suplantado pela mecanização do ato. Os primeiros passos dados na vida
de um ser humano não se comparam aos passos dados aos vinte, por exemplo. As sensações
epidérmicas e a emoção de ter seu corpo sustentado pelos membros inferiores pela primeira
vez são sensações perceptivas perdidas com o passar dos dias e da repetição do ato, pois as
demandas diárias exigem um infinito transitar entre uma parte e outra do espaço.
No filme Tempos Modernos, Carlitos tinha como tarefa apertar as porcas nos
parafusos, mas, ao fim do expediente ele saía a apertar parafusos, e não-parafusos, por toda a
parte, numa mera mecanização do ato.
O indivíduo automatizado, portanto, torna-se cada vez mais insensível às coisas
presentes no seu espaço próprio; executando tarefas mecanicamente. No fim, seria como se
não mais andasse, ou não mais visse, e o pior, não mais vivesse. A automatização perceptiva é
algo que assombra o poeta, razão pela qual ele utiliza recursos em seu fazer poético para
aumentar o tempo da percepção.
Neste sentido, “A arte é pensar por imagens” — como bem cita o formalista Vicktor
Chklovski, Potebnia, em A arte como procedimento —, nada mais é que o fazer poético, como
criação artística, carregado de um reforço perceptivo. Segundo o formalista, há dois tipos de
imagens: “a imagem como meio prático de pensar, de agrupar os objetos e a imagem poética,
meio de reforçar a impressão”, ou seja, a arte poética está longe de ser uma criação clara, pelo
contrário o que se busca é um obscurecimento do simples para que o tempo de percepção seja
aumentado. Então se a arte, no geral, é pensar por imagens, o valor da arte poética reside no
obscurecimento dessas imagens.
Para que o indivíduo detenha-se por mais tempo na leitura do poema, o autor utiliza
uma série de recursos para causar um aumento do tempo de percepção através do
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estranhamento do que se lê, ou mesmo do estranhamento da imagem formada na mente,


quando lê. Por exemplo: um poeta produz o verso “seus olhos eram duas esmeraldas”, o leitor
deter-se-á na percepção desta imagem. Como uma pessoa pode ter olhos de esmeralda?
Indagar-se-á, mas com o esforço exigido para o entendimento ver-se-á que os olhos não são
esmeraldas, mas possuem características semelhantes a uma esmeralda, como cor, brilho e até
mesmo valor.
Esse é um recurso utilizado abundantemente: a metáfora, como veículo
proporcionador de um maior esforço do leitor para a compreensão da imagem poética. NO
que se refere à imagem, Chklovski diz que:

“A imagem não é um predicado constante para sujeitos variáveis. O objetivo


da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação
que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e
não o seu reconhecimento.”(p.50)

Assim, o estranhamento pode ser entendido como sendo o mesmo que visão, e esta
como o contrário de reconhecimento. O objetivo da imagem, logo, não é o de causar um
esclarecimento, mas um obscurecimento através da particularização do objeto. Particularizar,
ou singularizar um objeto é subverter a lógica simples da visão automática das coisas. Visão
automática, nesse caso, analisada como reconhecimento. No caso do recurso metafórico,
como meio desautomatizador, a particularização é feita através do comparativo, o que ocorre
no exemplo citado anteriormente “olhos de esmeralda”, ou seja, olhos comparados a
esmeraldas. Essa foi uma maneira de definir um objeto de uma forma não conhecida antes,
como o diz Chklovski:

“(...) a singularização(...) é a base e o único sentido de todas as adivinhações.


Cada adivinhação é uma descrição, uma definição do objeto por palavras que
não lhe são habitualmente atribuídas(...)”(p.52)

Para o autor adivinhação não está ligada a mera interrogação “o que é, o que é...”, mas
a atribuição de um sentido não usual à coisas do cotidiano. Por exemplo: é como dizer que a
vida, algo que tem como sentido literal “estado funcional comum a todos os animais e
vegetais”, “é a vereda pela qual percorrem os bois o caminho do matadouro”². Esta é uma
imagem criada com intensão de fazer o leitor deter-se mais tempo sobre ela. No caso desta,
como em sua grande maioria, trata-se da comparação: Bois = seres humanos; veredas =
trajetória de vida; matadouro = fim comum a todos (morte). Então um comparativo como esse
não é por uma questão de floreio, nem muito menos de mera comparação, mas é uma forma
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de reforçar a impressão. A poesia, pois, é uma linguagem que não será obrigatoriamente
extensa para trazer consigo um imenso significado.
Contudo, vale mencionar que de nada adianta utilizar metáforas desgastadas para
causar um efeito singularizador nas coisas. Como a relação Amor-coração, que é algo tão
utilizado que já perdeu sua força de impressão. Além do mais, qual estranhamento poderia ser
causado numa expressão como: “eu te dou meu coração”? De novidade não há nada nessa
expressão, portanto, não é capaz de causar estranhamento, nem muito menos um reforço de
impressão. Isso não quer dizer, necessariamente, que a metáfora deva ser fresca, mas sim, que
deve ser reinventada. Como bem frisa o formalista, “a língua da poesia é uma língua difícil,
obscura, cheia de obstáculos”, desta feita, se o que se lê for algo simples, límpido e fluente,
deve ter algo errado, pode ter o título de poesia, mas anda longe de sê-la.
O discurso poético, neste sentido, pode ser entendido como um “discurso difícil,
tortuoso”, ou mesmo “elaborado”. Ora, como se identifica a arte poética senão no
obscurecimento de suas imagens. A poesia é, pois, uma forma de reviver o perdido, ou de
tatear por uma superfície que se subentende como conhecida, mas que, na verdade, está
mascarada pelas imagens criadas pelo poeta. Dessa forma, vê-se o corriqueiro por trás de uma
expressão estilística que o torna extraordinariamente novo.

Analisando O Morcego

Em toda a produção poética de Augusto dos Anjos, são recorrentes os usos de recursos
que proporcionam um aumento no tempo de percepção no leitor, como o recurso metafórico,
o qual daremos maior ênfase nesta análise.
No caso de O Morcego a grandiosidade da metáfora morcego = consciência reside em
sua revelação, que ocorre, precisamente, no primeiro verso do ultimo quarteto. Se fosse uma
metáfora pobre, ou mesmo gasta, esse revelar-se poderia ser um fator responsável pelo
comprometimento da beleza do poema, mas longe disso, a revelação de que o morcego é a
consciência humana funciona como fator estranho. Ora, a intenção do poeta quando se cria
uma forte metáfora é de proporcionar um obscurecimento, mas o eu lírico, antes de terminar o
poema, desmascara a imagem do morcego. Contudo, ao mesmo tempo em que ele faz essa
revelação o leitor é obrigado a retornar ao inicio do poema para conferir os detalhes que se
sobressaem na cena. Logo, a beleza do poema O Morcego está no estranhamento pela
revelação. Vejamos o poema desde o início:
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II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
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Página 626

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.


Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

Neste início o eu lírico está narrando um fato. O mesmo recolhe-se a seu quarto com o
objetivo de dormir, não fosse este morcego que surge e o atrapalha, chegando a mordê-lo
ferozmente. Nesta primeira estrofe não há nada de estranho, ou obscuro. Vejamos, pois, a
próxima:

"Vou mandar levantar outra parede..."


— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Nessa segunda estrofe parece ser uma solução não muito racional erguer uma nova
parede para conter uma simples ameaça como um morcego, o que pode denotar que o eu lírico
encontram-se em um estado entre sonho e realidade. Talvez por ser um horário tardio, de
transcendência entre um dia e outro. Notemos também o jogo de palavras da primeira e
segunda estrofes: rec(olho), m(olho), ferr(olho), olho(forma verbal) e olho(substantivo).
Todas elas apresentam em sua constituição a palavra OLHO. Como se todas carregassem em
si a figura do morcego, projetada em um olho que tudo vê.
Continuando a análise, no primeiro terceto, ele faz uma indagação. Vejamos:

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

Nesta estrofe o eu lírico dá ênfase ao último verso “que ventre produziu tão feio
parto?!”, numa clara intenção de reforçar as primeiras estrofes. Isto é, um ser tão pequeno
apoderar-se de um ambiente completo, desassossegando e desestruturando emocionalmente a
sua vítima, o eu lírico.
Por fim, no último terceto, surge a revelação da imagem do morcego, que é, na
verdade, a consciência humana. Vê-se que inexistindo essa revelação, de que forma
concluiríamos que o morcego é a consciência humana? A beleza do poema está, de fato,
contida na última estrofe, não por revelar o mistério, mas por ser a responsável em trazer um
novo significado ao restante do texto:

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
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Imperceptivelmente em nosso quarto!

Assim, nos é exigida uma releitura a fim de verificar a relação entre o que diz o eu
lírico. A consciência é como o morcego, capaz de passar pelas frestas mesmo quando
achamos que estamos livres.
A imagem metafórica utilizada é de comparação morcego=consciência, mas não com
relação à estética do morcego, e sim com a característica da imperceptibilidade.
No caso do jogo entre as palavras com a terminação “olho”, não há relação direta com
o morcego, pois esses animais são praticamente cegos, mas sim pode estar relacionada à
consciência, pois é algo interior, implacável com os erros passados. Como o morcego é capaz
de encontrar seu alvo mesmo no escuro do claustro, assim também é a consciência, que chega
a nos atormentar por mais que tentemos nos desvencilhar dela. Não há como fugir da
consciência, por mais que se construam paredes e se fechem ferrolhos, nenhum desses
elementos é capaz de obstaculizar a entrada da consciência, do pensamento.
Deste modo, duas imagens são particularizadas, devido ao comparativo: morcego e
consciência. Ambas dentro do poema mantêm uma relação simbiótica, ou seja, isoladamente
não têm força para dar uma maior impressão, mas juntas fornecem ao leitor toda a carga de
significado que o poeta pretendeu.

Conclusão

Observa-se, portanto, que a ideia da desautomatização está presente de forma bastante


elucidativa no poema “O morcego”, de Augusto dos Anjos. A metáfora do morcego para
discorrer sobre a consciência, de fato, traz ao poema a possibilidade de revisitar conceitos e
características tanto do objeto real a que se referia o eu lírico — a consciência —, quanto da
metáfora, o morcego.
A maestria de Augusto de Anjos trouxe um significado diferenciado a um tema de
discussões recorrentes como é a consciência humana e faz com que o leitor possa revisitá-la
através do morcego, como mencionado anteriormente, uma associação inesperada e
surpreendente.
Neste sentido, não se encerra aqui a possibilidade de investigação do uso da linguagem
nesse poema, sendo este apenas um dos múltiplos aspectos a serem extraídos dessa rica
expressão de Augusto dos Anjos.
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Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
CHKLOVSKI, Viktor. A Arte como Procedimento. In.: EIKHENBAUM, B. Teoria da
Literatura: Formalistas Russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978.
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A IMAGEM DO BRASIL NAS CANÇÕES UFANISTAS E DE PROTESTO

Maria Edivania S. Oliveira1


Paulo Aldemir Delfino Lopes2

Palavras iniciais

As canções ufanistas ganharam evidência na época da Ditadura Militar, ocasião em


que a política brasileira foi governada por militares, marcando uma era caracterizada pela
perseguição política, ausência de democracia e dos direitos constitucionais. Nessa época, o
governo buscava passar a imagem de um país promissor e otimista e para isso investia nas
músicas positivistas como uma forma de doutrinar a população, induzindo-a a aceitar o
sistema militar vigente.
Conhecidas também como canções de exaltação ou de autovalorização do país, como
forma de obter prestígio junto à população, os cantos ufânicos eram rechaçados com as
canções de protestos que buscavam, em suas letras, denunciar a violência e os excessos
cometidos pelo regime. Durante essa época, a repressão e a censura estiveram em destaque,
mas não foram capazes de sufocar os momentos de insatisfação gerados pelo governo
opressor. O estudo comparativo que versa sobre variados estudiosos sobre o assunto abrange
uma análise histórica e poética dos elementos históricos que se sobressaem e que, exatamente
por isso, tornam possível classifica-las como ufanistas ou de protesto.
O objetivo desse trabalho é fazer uma análise, histórica e poética do momento em foi
evidenciada a canção ufanista no Brasil em consequência do Regime Militar, fazendo um
comparativo com canções que, diferentemente da ufanista, se destacaram por denunciar e
protestar os excessos cometidos pelo governo ditatorial.
Nas canções submetidas à apreciação, é possível observar a estrutura e os elementos
poéticos constituintes que mais se destacam e que contribuíram para que essas canções
tenham se tornado ícones de uma determinada época e, especificamente no caso do Hino
Nacional Brasileiro, o marco da representação de uma nação.

1
Aluna do curso de Letras (habilitação em Língua Portugesa), da Universidade Federal da Paraíba.
2
Professor do curso de licenciatura em Língua Portuguesa da Universidade Estadual da Paraíba, Campus VI, e
professor do curso de Letras LIBRAS Virtual da Universidade Federal da Paraíba.
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Entre silenciamentos e apagamentos, um pouco do que sabemos sobre Ditadura Militar


no Brasil

A Ditadura Militar foi um período da política brasileira em que militares governaram o


Brasil (1964-1985), caracterizada pela ausência de democracia, omissão dos direitos
constitucionais, censura, perseguição política e repressão à oposição. Antes disso, porém, na
Era Vargas, o Brasil já havia experimentado regime semelhante, época de que datam os
primeiros cantos ufânicos.
O Ufanismo é a autovalorização do país, no caso específico, o Brasil. De modo
comparativo, é similar a um determinado grupo, coligação ou corporação que busca angariar
méritos extraordinários a si mesmo.
Houve uma fase em que o governo lançou a propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”,
com o objetivo de induzir a população a uma situação de otimismo, visando camuflar os
problemas do regime, dessa forma, tentavam persuadir as pessoas a aceitarem a ditadura,
restando aos que não concordassem que deixassem a nação.
Forçosamente, o ufanismo acabou se tornando a marca da música popular daquela
época. Independente da classe social ou do gênero de certos estilos musicais, o que se viu
durante os anos do governo ditatorial foi uma certa “harmonia” dos ditadores com o meio
musical.

Onde tudo que se planta dá

Aquarela do Brasil é provavelmente a canção ufanista mais famosa do mundo.


Composta por Ary Barroso em meados de 1939 ficou conhecida no exterior apenas como
"Brazil". Foi interpretada por grandes nomes da música brasileira como: João Gilberto,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, e artistas internacionais como: Frank Sinatra, Julio
Iglesias, e os tenores Pavarotti, Carreras e Plácido Domingo. Aquarela do Brasil foi a canção
mais eloquente da era Getúlio Vargas e por esse motivo, despertou sentimentos contraditórios.
Pertencendo à primeira fase do romantismo nacional, com seu ufanismo típico e suas
expressões pouco comuns, ficou conhecida como samba-exaltação, um estilo de samba
sofisticado, que exalta as belezas do Brasil. Essa primeira geração do Romantismo foi
influenciado pela Independência do Brasil. A poesia buscava a identidade do país com suas
raízes históricas, linguísticas e culturais. É voltada ao lirismo, a subjetividade e a emoção.
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Aquarela do Brasil
Compositor: Ary Barroso

Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
4 Vou cantar-te nos meus versos

O Brasil, samba que dá


Bamboleio, que faz gingar
Ó Brasil, do meu amor
8 Terra de Nosso Senhor

Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim

Ah, abre a cortina do passado


12 Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado
Brasil
Pra mim!

16 Deixa cantar de novo o trovador


A merencória luz da lua
Toda canção do meu amor

Quero ver essa dona caminhando


20 Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado

Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim

24 Brasil!
Terra boa e gostosa
Da morena sestrosa
De olhar indiferente

28 O Brasil, samba que dá


Bamboleio, que faz gingar
Ó Brasil, do meu amor
Terra de Nosso Senhor

32 Brasil!
Pra mim, pra mim, pra mim

Ô, esse coqueiro que dá coco


Aonde amarro a minha rede
36 Nas noites claras de luar
Brasil!
Pra mim

Ouve estas fontes murmurantes


Aonde eu mato a minha sede
41 E onde a lua vem brincar

Ah, esse Brasil lindo e trigueiro


É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro
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45 Brasil!
Pra mim, pra mim
Brasil, Brasil,
Pra mim, pra mim
Brasil, Brasil, Brasil, pra mim...

A canção consiste num poema laudatório que exalta as belezas do país, usando de um
discurso referencial, evocando o sincretismo religioso em versos como “Terra de Nosso
Senhor” e logo em seguida “Tira a mãe preta do serrado”. As águas, o samba e a vegetação
também são exaltados como ícones da nacionalidade brasileira. Constroi-se o retorno a um
Brasil paradisíaco que se viu, talvez, na Carta do Descobrimento. O que se afirma reiteradas
vezes é que esse país, utópico Brasil, é um país pra mim e que com tantos atributos, é
impossível deixá-lo.
É com a copa do mundo de 1970 (no México) que surge o ufanismo na TV. A
população eufórica pela vitória na primeira transmissão ao vivo de uma Copa ia às ruas para
cantar versos patrióticos, unindo governo e futebol num carnaval fora de época.
A música Eu Te Amo meu Brasil foi gravada no período em que a ditadura estava
vendendo a imagem de um País promissor, veiculada nos meios de comunicação, através de
propagandas para adquirir prestígio junto à população. Composta por Dom e Ravel pela
conquista do tricampeonato mundial, teve forte influência no meio artístico e na crítica, fez
com que a dupla ficasse conhecida como os “filhotes da ditadura”, garotos propaganda de um
governo que oprimia a liberdade de expressão com a censura sem trégua, daqueles que não se
aderissem ao sistema.

Eu Te Amo Meu Brasil


Compositor: Dom e Ravel

Escola…
Marche…

As praias do Brasil ensolaradas lá lá lá lá


O chão onde o país se elevou lá lá lá lá
5 A mão de Deus abençoou
Mulher que nasce aqui tem muito mais valor

O céu do meu Brasil tem mais estrelas lá lá lá lá


O sol do meu país mais esplendor lá lá lá lá
A mão de Deus abençoou
10 Em terras brasileiras vou plantar amor

REFRÃO
Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul, anil
Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Ninguém segura a juventude do Brasil
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15 As tardes do Brasil são mais douradas lá lá lá lá


Mulatas brotam cheias de calor lá lá lá lá
A mão de Deus abençoou
Eu vou ficar aqui porque existe amor

No carnaval os povos querem vê-las lá lá lá lá


20 No colossal desfile multicor lá lá lá lá
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar amor
REFRÃO
Adoro meu Brasil de madrugada lá lá lá lá
Nas horas que eu estou com meu amor lá lá lá lá
A mão de Deus abençoou
A minha amada vai comigo aonde eu for

As noites do Brasil, tem mais beleza lá lá lá lá


A hora chora de tristeza e dor lá lá lá lá
Porque a natureza sopra e ela vai-se embora
Enquanto eu planto o amor
REFRÃO

A literatura romântica do século XIX demonstra o deslumbramento pela paisagem


brasileira, característica desse que é mais um canto ufanista. A introdução apresenta
“Escola… Marche…”, voz de comando usada por militares para organizar pelotões de
soldados. Essa introdução, embora aceitável à realidade da época, não parece adequada ao
teor da canção. Faz uso de um patriotismo descritivo, exibindo em sua letra a exaltação das
belezas naturais do Brasil e das mulheres.
É composta por estrofes de quatro versos denominadas Quadras. Com exceção do
Refrão, as demais terminam em rima com a palavra “amor”, demonstrando uma composição
Lírica. Possui versos livres (não se comprometem com a métrica).
Identificam-se as seguintes figuras: Prosopopeia (figura de linguagem que atribui
características humanas a seres inanimados): “A hora chora de tristeza de dor”, “Porque a
natureza sopra e ela vai-se embora”; Metonímia (a parte pelo todo): “O Chão onde o país se
elevou”. “País” representando povo ou cidadãos que trabalharam para elevar uma nação;
“país” significa apenas “conjunto de terras” e em “A mão de Deus abençoou”, pois a “mão”,
que é uma parte, valendo pela ideia integral de “Deus”; Hipérbole em: “Mulatas brotam
cheias de calor”, há uma intensificação ou aumento da ideia de “calor”, ou seja, de mulheres
sexualmente “quentes”, associada à figura da mulata; Metáfora (palavra que substitui outro
termo, numa relação de semelhança entre dois significados): “Enquanto eu planto amor”,
nesse caso, o “eu” está associado àquele que planta ou é plantador de amor; o “eu”
corresponde ou é similar ao “plantador de amor”.
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Mas nem tudo são flores

Durante 20 anos a censura atingiu os meios de comunicação de massa, entre eles a


música. O objetivo da censura musical era abolir as músicas cuja letra se opusesse a ditadura
ou que propagasse novos conceitos que não atendessem a seus interesses.
Chico Buarque foi um dos mais vigiados pelos censores. Suas obras eram apreciadas
por aqueles que as consideram intelectuais, porém eram condenadas por aqueles que julgavam
que suas letras eram de natureza política e, portanto, nocivas.
Cálice apresentava críticas à censura do regime. A canção vetada pela censura no ano
de sua composição (1973), só foi lançada em 1978. Chico Buarque ficou conhecido pela
censura, fato que o fez adotar o codinome Julinho Adelaide em suas produções.

Cálice
Compositor: Gilberto Gil/Chico Buarque

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
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Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Composta em parceria com Gilberto Gil, expõe a angústia sentida por muitas pessoas
no período ditatorial, para isso, faz uso de um acontecimento bíblico: a crucificação de Jesus,
para fazer uma crítica aos eventos do momento e por que não de seus anseios?!

“Pai! Afasta de mim esse cálice


de vinho tinto de sangue”.

Nesse trecho podemos identificar diferentes figuras de linguagem para a mesma


palavra, são elas: Pai, metáfora de Deus, também é metonímia se analisado sob o ponto de
vista daquele que detinha o poder, no caso “o pai da nação”.
Sob outro ponto de vista, Pai também remete ao religioso, assumindo tom de súplica,
porém a repetição torna-a “política e alegórica” e especialmente nesse contexto (da época da
ditadura), Pai remete ao “povo, fonte de um poder coletivo capaz de salvar o país da ditadura.
Sangue é metáfora de sofrimento ocasionado pela ditadura. Cálice é Paranomásia (uso de
palavras com sonoridade semelhante: Cálice :: cale-se.
Chico Buarque faz uso de Metáforas para criticar as perversidades do governo, dando
a entender que as armas já foram tão usadas que agora não servem, demonstrando um
desgaste do sistema: “De muito usada a faca já não corta” e dessa forma seu protesto está a
ponto de ser exclamado: “Essa palavra presa na garganta” e parece querer ir para o confronto.
Este órgão não polpa ninguém, sua abrangência independe do meio do indivíduo,
compreensível a partir do trecho com eufemismo: “De que me vale ser filho da santa? /
Melhor seria ser filho da outra/ outra realidade menos morta”, “filho da outra”, num sentido
literal submete à prostituta, o que identificaria a figura de linguagem chamada de Eufemismo
(usada para suavizar expressões), porém se “filho da santa” for interpretado como Metáfora
de um país estimado, “filho da outra” seria Metáfora de outro país qualquer . “Mesmo calado
o peito, resta a cuca”, é metáfora, mesmo proibido de falar, o pensamento continua livre,
inviolável.
O autor usa palavras como “amarga”, “dor”, “morta”, “mentira”, “força bruta”,
“atordoa”, entre outras, para sinalizar os dispositivos de coerção de um sistema que não
perdoava ninguém.
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Soeiro (2010) corrobora nossa análise ao indicar:

“De vinho tinto de sangue”: O “cálice” diferente do sentido bíblico, na


canção pode ser compreendido como o sangue das vítimas da repressão.
“Como beber dessa bebida amarga”: É uma metáfora que faz referência
do quanto era difícil aceitar tal situação.
“Esse silêncio todo me atordoa”: Submete as torturas e repressão, como
meio de silenciar as vítimas.
“De muito gorda a porca já não anda”: “porca” seria uma referência ao
sistema ditatorial, que pouco a pouco torna-se ineficiente.
“Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato
consumado”: Possibilidade de um novo tempo, de melhoras.
“Quero cheirar fumaça de óleo diesel / Me embriagar até que alguém
me esqueça”: Chico denuncia uma das táticas de tortura, os repressores
queimavam óleo diesel dentro de uma sala para que as vítimas ficassem
desnorteadas.

Considerações Finais

As canções ufanistas representaram um momento na história do Brasil em que houve


uma supervalorização do país e embora estivessem em evidência, sempre houve quem se
opusesse ao governo, protestando independente dos meios repressivos e coercitivos da época,
estimulando a população a refletir e questionar.
Como duas forças oponentes, as canções ufanistas e de protesto, representam os dois
lados (poder / resistência) de um capítulo doloroso da história do nosso país, período de
muitas incertezas e poucos direitos e que é necessário ser constantemente relembrado para que
jamais se repita.

Referências

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musicblog.com.br/268045/aquarela-do-brasil-a-historia-da-cancao/. Acesso em: 28 Jun. 2014.
ARAÚJO, Rodrigo da Costa. Textualidades do Brasil: literatura, música e imagens em aulas
do ensino médio. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixfelin/trabalhos/pdf/67.pdf,
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ALONSO, Gustavo. Ame-o ou Ame-o: música popular e ufanismo durante a ditadura nos
anos 70. 2014. Disponível em: http://www.tempopresente.org/index.php?option=com
_content&view=article&id=5828:ame-o-ou-ame-o-musica-popular-e-ufanismo-durante-a-
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 637

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Disponível em: http://www.uss.br/pages/revistas/revistaMestradoHistoria/v13n22011/pdf/00
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CANDIDO, Antonio. O Estudo Analítico do Poema. 3 ed. São Paulo, disponível em
http://www.literatura.bluehosting.com.br/estudoanaliticopoema.pdf, acesso em 6 de julho de
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CASTRO, Leonardo. Era Vargas. Disponível em: http://novahistorianet.blogspot.com.br/
2009/01/era-vargas.html, acesso em 29 de junho de 2014.
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http://everaldofarias.blogspot.com.br/2008/09/independncia-musical-do-brasil.html, acesso
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A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 638

SÁ, Karina A. Ferreira de. Também Somos Brasileiros. 2000. Disponível em:
http://www.ecs.org.br/site/Interna/Images/hino_nacional.pdf. Acesso em: 29 Jun. 2014.
SOEIRO, Sergio. Análise da música Cálice. Disponível em: http://dialogolinguistico.
blogspot.com.br/2010/05/analise-da-musica-calice.html. Acesso em: 11 Jul. 2014.
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A METAFONIA DO LÉXICO AVÓS

Edilene Maria Oliveira de Almeida


FAMASUL-PE, UNIDERC-PE

Do Latim ao Português – Diacronia

Os estudos do latim com as reconstruções feitas para o latim imperial, a partir de


fontes documentais, sobretudo do estudo comparado das línguas derivadas do latim
deduziram que, em grande parte da România, incluída a área do noroeste peninsular
hispânico, a do galego-português, percebe-se que as dez vogais do latim clássico – cinco
longas representadas pelo macron ( ~ ) e cinco breves representadas pela bracquia ( ﬞ )
correspondiam a sete vogais em cujo sistema a duração vocálica já havia desaparecido com
base na oposição de timbre entre as vogais médias anteriores e posteriores. Esquematizando:

Lat.clás. ĩ ǐ ē ě ā ǎ ǒ ō ǔ ũ
Gal.-
i e ε a o/ ǒ o u
Port.
Ditongo-
œ æ
Lat.clás.

Acrescenta-se os ditongos do latim clássico, monotongados no latim imperial, ou seja,


galego-português, como:
œ > ǐ - ē > e: sǐtum > sede, pœnam > pena;
æ > ě > ε: těrram > terra; cæcum > cego
Esse sistema de vogais em posição acentuada, constituído de sete unidade distintivas,
como: / ĩ/ > /i/ - fĩcum > figo; / ē /, / ǐ / > /e/, sǐtum > sede; acētum > azedo; / ě / > /ε/ - těrrum
> terra; / ǒ/ > / ó / - pǒrtam > porta; / ō/, / ǔ / > /u/ - amōrem > amor, bǔccam > boca; / ǔ/,
/u/ - pũrum > puro. Entretanto o sistema com um /a/ aberto e outro /a/ fechado, vigorava já
em grande parte da România na época do latim imperial, prossegue na fase galego-português
medieval e continua na maioria dos dialetos de hoje da língua portuguesa. A oposição /a/ : /ã/,
se faz hoje no presente e no perfeito dos verbos da 1ª conjugação, sendo que nos dialetos do
norte (Minho e Douro, litoral), ambos as formas verbais se pronunciam abertas e do sul de
Portugal se pronunciam fechadas como no Brasil, por exemplo: amamos (presente) e amamos
(perfeito), cantamos (presente) e cantamos (perfeito).
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Daí afirma-se como conservador o sistema vocálico em posição acentuada em


português. No entanto ao longo da história da língua portuguesa houve mudanças fônicas
decorrentes de empréstimos por causa de contatos interdialetal e interlinguístico, afastando-se
das regras das “leis fonéticas”, explicadas pelas gramáticas históricas.
Entre as mudanças fônicas das vogais acentuadas, destacam-se as assimilações
metafônicas, ou seja, a metafonia em que a abertura da vogal acentuada no mesmo timbre,
como em: formōsu, formōsa, formōsos, a par das inflexões vocálicas, ocorre o fechamento do
timbre da vogal acentuada condicionado pela proximidade de determinados elementos
fônicos: semivogal - lat. něrviu > nervo e consoante palatal, nasal - lat. ingěniu > engenho.
Quando a mudança do timbre, de acordo com o étimo latino está evidente na grafia fica
melhor para compreender este fenômeno apontado pela regra geral. É o caso, por exemplo, da
grafia isto por esto, que veio do latim ǐpsu > esto > isto, ou lat. tōtum > todo > tudo. Nesses
casos o timbre /e/ ou /o/, muda para /i/ ou /u/ por assimilação à vogal final, realizada como
vogal posterior /u/, /i/ - tōtum > tudo / ipsu > isso.
Portanto, segundo Williams (2001, 106), “A metafonia é a influência assimiladora
exercida por uma vogal final sobre a vogal tônica”. Ele diz, que essas formas isto e tudo já
aparecem no século XIII, percebível na grafia, encontradas nos cancioneiros primitivos. A
forma isto ocorre apenas numa rima, disto: o ante tristo (isto é, o Anticristo), entretanto a
forma tudo não ocorre em rima, apenas em verso obscuro. E, acrescenta que a metafonia,
além do galego-português, também se encontra no leonês, em alguns dialetos italianos e em
romeno. Afirma também que a metafonia não é um fenômeno fonológico independente, está
associado com a flexão, que se fez necessária em português.
A metafonia apareceu em português pela influência do a e do o finais sobre o e e o o
tônicos, sendo neutro o do e final. Levando em consideração a extensão do e : /e/, /ε /, /i/,
enquanto a extensão do o era a série: /o/, /ó /, /u/. Temos a seguinte transformação:
O a final abriu o /e/ tônico para / ε /: ǐstam > /e/sta > /é/sta. Observe que houve a metafonia
em /e/ > /é/.
O a final abriu o /o/ tônico para /ó/: formōsam > form/o/sa > form/ó/sa. Metafonia
entre /o/ e /ó/.
O o final fechou o /é/ tônico para /e/:: mětum > medo > m/e/do; e fechou o /e/ tônico
para /i/: ǐpsum > /e/sso > isso: metafonia entre /e/ > /i/.
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O o final fechou o /ó/ tônico para /o/: f ǒcum > fǒgo > fogo: metafonia entre /ó/ > /o/,
e fechou o /o/ tônico para /u/: tōtum > todo > tudo. Metafonia entre /o/ > /u/. Trata-se de caso
raro na língua portuguesa, de um o tônico passar a u.
Percebe-se que não houve metafonia em palavras invariáveis, como: lǒcum > l/ó/go;
como também não ocorreu metafonia onde não houve risco de ambiguidade, exemplo: dǒlum
> dó, mas em avozinhos (de auviǒlum), que evoluiu para avós, houve metafonia em
decorrência de: aviǒlum > avǒlos > avoos > avós que corresponde aos pais do pai ou da mãe:
meus avós. A metafonia ocorreu entre /o/ tônico de avôos e /ǒ/ tônico de aviǒlum, gerando
avós. O plural avós tem vogal aberta porque é o resultado da forma romance avǒlos, que pela
contiguidade do /o/ final de aviǒlos houve o fechamento do /ǒ/ tônico, causando a síncope do
l e apareceu avôos com três sílabas (a-vô-os) e, por contração gerou avós.
Na Idade Média, a queda do l intervocálico deu origem a avoos que se contraiu no
moderno avós, mas é uma forma que evoluiu de um masculino plural, único caso na machista
língua portuguesa, pois as línguas em que dois gêneros são tradicionalmente “machistas”,
ocorre sempre que nos referimos a um casal, recorremos ao masculino, por exemplo: mãe e
pai= meus pais; tia e tio= meus tios; prima e primos= meus primos; irmã e irmãos= meus
irmãos. No entanto avô e avó=meus avós no feminino, nesta ocorrência, tornou-se um plural
metafônico, devido ao singular masculino fechado e singular feminino aberto, resultando no
plural avós, lembrando que a metafonia realiza-se no singular.
A forma avós é também o feminino, que evoluiu de aviǒlas (avozinhas) diminutivo
plural por intermédio da forma medieval e ainda hoje galega avoas. A mudança da forma
feminina plural foi a seguinte: aviǒla > avǒla > avoa > avós. No feminino, a vogal tônica
manteve-se aberta, como ocorre em cola, bola, argola entre outras. Hoje corresponde as mães
dos nossos pais.
Há, portanto duas palavras latinas que convergiram numa única forma, avós. A forma
avôs teria aparecido para flexionar o masculino plural, correspondendo aos vários (avô),
ajudando a reduzir a ambiguidade existente em avós.
Percebe-se que a evolução das palavras avô, avó e avós da língua latina para a língua
portuguesa foi longa e muito complexa. Na língua latina, avus [ávus] corresponde a avôs e
avia [ávia] corresponde a avós. Só que avus no latim clássico quer dizer os antepassados,
corresponde avôs em português, havendo metafonia entre /o/ e /ǒ/ avôs (no latim) > avós (no
português) ambos significam os antepassados.
Observa-se, portanto que a forma avós na diacronia houve metafonia em:
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 decorrência da vogal aberta ser o resultado da forma romance avǒlos, que pela
contiguidade do /o/ final de aviǒlos houve o fechamento do /ǒ/ tônico, causando a síncope
do l e apareceu avôos com três sílabas (a-vô-os) e, por contração gerou avós, significando
ambos – avô e avó: meus avós.

 avus no latim clássico quer dizer os antepassados, corresponde avôs em português,


havendo metafonia entre /o/ e /ǒ/ avôs (no latim) > avós (no português), ambos significam
os antepassados.
A linguística histórica e a fonologia moderna mostram que é no singular que se
verifica a metafonia, visto que, segundo Williams (2001,, p, 106, 121 e 134):
 do latim para o português, foi o o final que fechou um ó aberto tônico para o fechado no
singular, mas não no plural: fócum > fógo > fogo, no plural fógos; nóuum > nóvo > novo
no plural nóvos.
 Do ponto de vista fonológico, o singular com /o/ fechado é que é metafônico, porque é o
singular que se manifesta a nível fonético, provocando aplicação de um maior número de
regras fonológicas.
Quanto à analogia, esta tem sentido para o aparecimento de plurais com ó aberto não
etimológico ou para a existência de variação no plural. Por exemplo, o ponto de vista
diacrônico, o feminino e o masculino plural de formoso tinham o o fechado como no singular,
mas passaram a ter ó aberto por analogia com itens como: nova, novas e novos. Hoje na
gramática normativa, considera-se que o plural de acordo é acordos, com o fechado. Embora
que há falantes que pronunciam o plural com ó aberto por analogia com a alternância
existente entre fogo e fógos. Outros exemplos dessa variação, o plural com o fechado é tido
por mais correto: coros, coros, bolso, bolsos.
Nas línguas primitivas, era o sexo dos indivíduos indicado por substantivos diferentes,
como: bode, cabra; cavalo, égua; pai, mãe entre outros. Com o passar dos tempos adotaram os
sexos serem designados pelo mesmo substantivo com a mudança da terminação, exemplo: os
nomes terminados em, o, mudam em, a, como: Júlio, Júlia; pombo, pomba. Exceto, avô, avó.
(AUGUSTO FREIRE DA SILVA, 63), na sua Grammatica Portugueza de 1886. Ele afirma
também que o ǒ breve não mudou em 1886, como: fǒcus > fogos.
Entretanto, José Joaquim Nunes (1945, p.151) afirma que o ó passa frequentemente a
ô, quando precede a sílaba final e esta termina em ô (metafonia); assim: fǒcu > fogo; grǒssu >
grosso; jǒcu >jogo; mǒrtu > morto. Já o ó com proximidade com semivogal i ou consoante,
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ele se fecha, assim como: mǒorio > mouro ou moiro; ǒcto > oito; ǒclu > olho > olhos; aviǒlus
> aviolos > avós.
Said Ali (1931, p, 23) disse que o ǔ breve do latim clássico para o latim vulgar,
tornou-se /o/ fechado.
Napoleão Mendes (1967, p, 97) menciona que são masculinos os substantivos
terminados em: o, i e u, como em: litro, caju, álibi. Exceto: avó que é feminino.
Carlos Eduardo (1926, p. 64-65) disse que o ǔ e ǒ > ô como em: pǒpulam > povo;
jǒcum > jogo; fǒcum > fogo; ǒculum > olho; sǔper > sobre.
Em Gonçalves Viana (1904, p. 157), na sua Ortografia Nacional, registra avô, avó com
os acentos circunflexos e agudos, tentando organizar à acentuação gráfica em Português. Ele
compreendeu que em avô, avó, há parônimo, como também em avós – plural de avó no
gênero; e avós – os antepassados; avós – meus avós, ambos.
Gonçalves Viana chama atenção, que no uso dos acentos agudo e circunflexo nesses
vocábulos avô, avó, avós, na distinção que podemos fazer entre esses parônimos, cuidado
para que não haja dúvida sobre o modo de ler-se, e, portanto de entender-se. O que se
diferencia na fala não deve, em regra, confundir-se na escrita. (GONÇALVES VIANA, 1904,
p. 175-176).
Na língua literária culta, especialmente na terminologia científica, aparecem o sufixo –
ulo, (-ula), no caso de aviǔlum (diminutivo) – avozinho, hoje encontra-se em palavras
eruditas, como em: gotícula, partícula, opúsculo, glóbulo, radícula, febrícula.
Nas 45 palavras da lista que Viana apresenta, suprimiu avô, por fazer avós no plural
dos dois gêneros, e observa que se cometem erros como “avôs”. Fora da lista, constam os
particípios, geralmente empregues como adjectivos ou substantivos, torto(s), torta(s), ambos
com o aberto, posto com o fechado e postos com o aberto, postas (com o aberto), que seguem
a regra dos adjetivos em -oso, como formoso, formosa, formosos, formosas, estes três com o
aberto. Ei-las então: abrolho, almoço, cachopo, caroço, choco, choro, composto, corcovo,
corno, corpo, corvo, despojo, destroço, escolho, esforço, esposo, estorvo, fogo, forno, foro,
imposto, jogo, olho, osso, ovo, pescoço, poço, porco, posto, preposto, reforço, renovo, rogo,
soro, socorro, suposto, tijolo, tojo, tordo, torno, tremoço, troco, troço.
Segundo Gonçalves Viana, a origem da mudança acha-se nos nomes latinos neutros,
que tinham a terminação -um no nominativo (grifo meu) singular e -a no plural. Trata-se, diz,
dum caso de refração (ou metafonia) que se estendeu a outras palavras por falsa analogia. Nos
adjetivos é excepcional o caso de tôdo, tôda, tôdos, tôdas, sempre com o fechado. Os nomes
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graves de vogal tônica e mantêm geralmente o som etimológico do e (ê < é, i latinos; é < e),
como em grego, seco, belo, certo, dedo, com femininos e plurais com iguais ee (és): cégo,
etc.; sêco, etc.; vélho, etc. A refracção ou metafonia, escreve, são as influências das vogais
átonas finais nas tónicas da sílaba precedente (Umlaut, em alemão): formôso, f. -ósa; pl. -
ósos, -ósas (por causa do -u final) (< lat. -um), escrito com o em português.
Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca, na sua pesquisa, verificou que em 1873,
Augusto Epifânio da Silva Dias, na 2.ª ed. da sua Gramática Portuguesa, nota que não abriram
o o da sílaba tônica no plural as palavras adorno, bolso, estojo, folho, globo e molho (ô). Mas
em 1883, dez anos depois, A. R. Gonçalves Viana, no Essai de Phonétique et de Phonologie
de la Langue Portugaise, diz que já se pronunciava geralmente adornos (ó) e até gostos (ó),
mas este termo só os algarvios o pronunciam assim.
Augusto d’Almeida Cavacas, em A Língua Portuguesa e sua Metafonia, publicada em
1920. Este acrescenta à lista dos plurais que abrem o ô do singular as seguintes palavras:
estojo, corvo, horto, novo, sogro, bolso, forro; por outro lado, não abre no plural o ô do
singular de esboço e de polvo, o que hoje muitos já fazem.
Há casos com hesitações, como em: estolho, escolho, esposo, poço, logro, tijolo,
tremoço, conforto, acordo, contorno, socorro, folho, troco, adorno, despojo e torno.
Entretanto, já Viana abria, e outros também já abriram, isto é, de 1920 para cá.
Para Cavacas também há o plural pescôços, e acrescenta o adjetivo môrno (mórnos).
Os adjetivos em -oso, tais como formoso, ansioso, animoso, famoso, honroso, etc., também
abrem o o tônico no plural. Posteriormente, os não registados, bisavô, estofo, desporto,
arroto, colono, cachopo, rosto, torto, etc., abrem o o tônico no plural.
Atualmente nos plurais com alteração de timbre da vogal tônica, alguns substantivos,
cuja vogal tônica é o fechado, além de receberem a desinência –s, mudam, no plural, o o
fechado [o] para aberto [ǒ ], assim como: caroço, caroços; olho, olhos; povo, povos; porco,
porcos. Entretanto em muitos substantivos conservam no plural o [o] fechado do singular,
como: bolo, bolos; namoro, namoros; rosto, rostos entre outros. Esses plurais, a norma culta
de Portugal e do Brasil, divergem. É o caso dos substantivos almoço, bolso e sogro, que, no
plural, apresentam a vogal aberta [ ó ] em Portugal e fechado [o] no Brasil.
As alternâncias metafônicas de plurais como nos vocábulos formoso > formosa >
formosos > formosas na diacronia têm o fechado em analogia com novos, novas, abre o o
pronunciando formósos, formósas. Esses casos de o fechado ou o aberto têm causado muito
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constrangimentos nos falantes e nos ouvintes, porque fica sempre a dúvida será se esse o
paroxítona é fechado ou aberto?
Os desenvolvimentos da língua latina residuada nas neolatinas refletem nos falantes,
frequentemente nas pronúncias das palavras que há metafonia, sobretudo, nos plurais e as
explicações pouco seguras por latinista nos deixa irritado, insatisfeitos com as explicações.

Considerações Finais
Sintetizando a evolução de avós:
Designou do diminutivo plural - auiǒlum
auiǒlum > aviǒlum > avǒlos > av/o/os > avós.
Houve metafonia entre av/o/o e avós
Entre auiǒlum e avós é o único caso na machista língua portuguesa que um vocábulo
masculino convergiu em um feminino. Exemplo: tio + tia: meus tios; primo+ prima: meus
primos e outros. Avô + avó: meus avós – significa ambos, neste caso não é o plural de avôs.
No gênero – veio do diminutivo plural – aviǒla > avǒla > avoa > avós – significa várias avó.
Na língua portuguesa, por ser flexiva, surgiu avôs para corresponder ao gênero masculino,
significando vários avôs. Estas formas avôs, avós houve metafonia entre o o fechado e o o
aberto. Na sincronia, ajuda evitar ambiguidade.
A forma: Avus era avôs em latim clássico, significando: os antepassados. Um caso de
pluralia tantum - são os substantivos que só apresentam forma plural. Avus no latim, avós em
português. Também não é plural de avôs.
Na Semântica
Há caso de Parônimo na forma avós.
Avós: antepassados
Avós: ambos - pai + mãe: meus avós
Avós: plural de avó para designar o gênero.
Caso de Psicanálise
As alternâncias metafônicas de plurais como nos vocábulos formoso > formosa >
formosos > formosas na diacronia têm o fechado em analogia com novos, novas, abre o o
pronunciando formosos, formósas. Esses casos de o fechado ou o aberto têm causado muito
constrangimentos nos falantes e nos ouvintes, porque fica sempre a dúvida será se esse o
paroxítona é fechado ou aberto?
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Com esta pesquisa esclarece as hesitações, como em: saber quando avós é feminino
plural de avôs, avós sem ser feminino plural de avôs e avós pluralia tantum.

Referências

ALI, M. Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 5. ed. São Paulo:


Melhoramentos, 1965.
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 20. ed. São
Paulo: Saraiva, 1967.
BECHARA, Evanildo. Gramática Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna,
2002.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3. ed.
Lisboa; João Sá da Costa, 1986.
NUNES, José Joaquim. Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa: fonética e
morfologia. 4. ed. Lisboa: Livraria Clássica, (1945?).
PEREIRA, Eduardo Carlos. Grammatica Historica. 7. ed. São Paulo: companhia Editora
Nacional, 1932.
SILVA, Augusto Freire da. Compendio da Grammatica Portugueza. 5. ed. São Paulo,
1886.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O português Arcaico: fonologia, morfologia e sintaxe. São
Paulo: Contexto, 2006.
WILLIAMS, Bucher Edwin. Do Latim ao Português: fonologia e morfologia histórica da
língua Portuguesa. Traduzido por Antônio Houaiss. 7. ed. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro,
2001.
VIANA, A. R. Gonçalvez. Ortografia Nacional: simplificação e uniformização sistemática
das ortografias portuguesas. Lisboa: Viuva Tavares Cardoso, 1904.

ANEXO

Texto
Regime de engorda!
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Certa hora, uma jovem e leda senhora, muito amorosa, convidou-me para um almoço.
Já fui convidado a almoços muito saborosos na casa dela. No último deles teve salada de
miolo, ou melhor, de miolos de repolhos, ovos de codorna e deliciosas alfaces. Começamos
tomando uma sopa maravilhosa com pescoços de galinha. Como os sogros dela criam porcos
gordos a poucos metros de onde ela mora, era lógico que o prato principal foi um pernil de
porca sem ossos feitos no forno de tijolos (receita da sua sogra). Esta menina tinha dois
fornos. Estes fornos, um era a lenha e outro a gás. Meus olhos gulosos brilhavam quando
viram aquela mesa com todos os comes e bebes. Para a sobremesa, ela havia feito vários
bolos, tortas e umas bolas cremosas de chocolate. Além disso, ela ainda me oferece paçoca de
amendoim que ela soca aos socos no pilão. Ela sempre dizia: deves experimentar tudo, bebe
mais um copo de vinho, aquele vinho que está alí perto da porta é vinho do porto. Mas eu sei
que devo controlar-me, pois tomo remédios muito fortes. Carinhosamente ela retomava: perde
a vergonha, come bastante, pois sei que corres e te moves muito e o pior é que moras longe
daqui e deves subir muitos morros. Comi tanto neste dia que me senti como sete lobos fartos,
ou melhor, como porcos gordos sem piolhos. Ah, quase esqueci de dizer que esta graciosa
moça era a querida canhota dos meus avós (grifo meu) da minha avó.

(Texto elaborado por Marcelo Jacó Krug, março de 2007)

Edilene Maria Oliveira de Almeida


Edilene_almeida@uol.com.br
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UM DIÁLOGO ENTRE OS POEMAS DEBAIXO DO TAMARINDO E VOZES DA


MORTE: DOIS ESPAÇOS IDEOLOGICAMENTE ANCORADOS

Flaviano Batista do Nascimento


Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

Introdução

Este trabalho objetiva fazer uma análise semiótica da espacialização de dois poemas
do poeta sapeense Augusto dos Anjos, enfatizando nos mesmos o procedimento de
ancoragem, as noções espaciais (embreagem/debreagem), alguns aspectos relacionados à
referência e, ainda, observando a relevância do espaço para a constituição destes poemas
como textos discursivos.
O corpus consta dos poemas Debaixo do Tamarindo e Vozes da morte, presentes no
livro “EU: poesias completas” (1963), de Augusto dos Anjos.
A escolha do corpus é importante porque poder-se-á aplicar aos poemas angelinos, a
partir da semiótica francesa, alguns procedimentos textuais e extratextuais relacionados à
referência, à ancoragem, ao diálogo semiótico, à espacialização e ao espaço, já que existe uma
imensa fortuna crítica que trata das poesias deste autor, porém há pouquíssimos trabalhos que
utilizem a semiótica greimasiana como modelo prático de análise para tratar do mesmo.
A teoria considerada foi a semiótica de linha francesa, também chamada greimasiana,
que se atém ao estudo da significação, concebida como função semiótica, prevista e
manifestada em discurso. Esta teoria apresenta três níveis de análise: a estrutura fundamental,
as estruturas narrativas e as estruturas discursivas. No entanto, para este trabalho, priorizou-se
a categoria espacialização, a qual está contida na sintaxe discursiva (primeira componente das
estruturas discursivas).

A espacialização e o espaço

Na semiótica, a espacialização é a constituição do espaço. Ela leva em consideração as


percepções que os sujeitos fazem dos espaços contidos nos textos. Estes ora estão embreados
ou próximos do espaço do discurso, ora estão debreados ou distanciados do mesmo.
Segundo Greimas (1979), a espacialização é uma das componentes do discurso que
discursiviza as estruturas semióticas mais profundas, projetando as operações espaciais de
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embreagem e de debreagem, as quais são realizadas pelo enunciador no momento da


enunciação. Este sujeito, ao dialogar com o enunciatário, produz um discurso que pelo
processo de ancoragem, delimita tanto o tempo discursivo, quanto o espaço.
Greimas (ibidem) concebe a ancoragem, na fase da enunciação figurativa, como “as
várias formas temporais e espaciais, relativas aos índices de tempo e de espaço”, ou seja, ela
leva em conta os topônimos e os cromônimos, nos dizeres greimasianos, visando a
constituição de referentes externos introduzidos no discurso, a fim de produzir o efeito de
realidade.
A ancoragem relaciona grandezas semióticas distintas seja imagem/objeto, seja uma
pintura e seu nome. Ela também confronta instâncias discursivas como: texto e título,
referente textual e referente extratextual, temas e figuras, tempo e espaço tanto interno, como
externo etc. e também produz efeitos de realidade, a fim de transformar grandezas que estão
contextualizadas, desambiguizando à outra grandeza a que o texto faz referência.
Uma grandeza espacial como por exemplo: Parque Sólon de Lucena, se incorporada a
um texto, poder-se-á, em uma primeira instância, fazer referência à lagoa, localizada no centro
de João Pessoa, mas a mesma passará a ser um elemento discursivo intratextual, não mais
extralinguístico, embora se saiba que tal espaço é factível, concreto e pertencente ao mundo
real. Este fato, logo, importará mais a semiótica arquitetônica do que a semiótica linguística.
Mas esta não dissuade o espaço externo que for incorporado ao texto, uma vez que o mesmo
será revestido de novos significados pelos sujeitos.
Diana Luz, analisando os elementos discursivos, fornece uma definição bastante
significativa e esclarecedora sobre a categoria semiótica ancoragem:

“A ancoragem é o procedimento semântico do discurso por meio de que o


sujeito da enunciação "concretiza" os atores, os espaços e os tempos do
discurso, atando-os a pessoas, lugares e datas que seu destinatário reconhece
como "reais" ou "existentes" e produzindo, assim, o efeito de sentido de
realidade ou de referente” (BARROS, 1999: 80).

Sendo assim, os sujeitos, embreados ou debreados com o discurso, têm a percepção de


que tanto o tempo como o espaço são verdadeiros e fazem referência, mesmo que
imaginariamente, a momentos históricos diversos e a espaços externos vários. Porém, uma
vez que os mesmos sejam absolvidos pelo texto, estes referentes externos passam a ficar em
segundo plano, podendo serem considerados caso possuam uma relevância autobiográfica
esclarecedora.
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Página 650

Na espacialização, os sujeitos ao se comunicarem, podem estar em concomitância ou


não-concomitância tempo-espacial. A localização do tempo e do espaço se dá quando um
sujeito toma a palavra e os institui no discurso, passando a fazer parte do mesmo. A
espacialização topologiza assim como o tempo faz em relação à anterioridade, à
posterioridade e à concomitância e à não-concomitância. Como afirma Diana Luz:

“O sujeito da enunciação instala o tempo e o espaço do enunciado segundo


dois sistemas de referência: o primeiro sistema simula metaforicamente o
tempo e o espaço da enunciação e tem como ponto de remissão o aqui e o
agora do enunciado; o segundo sistema retoma metonimicamente o tempo e
o espaço da enunciação e parte do então e do lá do enunciado. O tempo e o
espaço resultantes são ditos, respectivamente, subjetivos e objetivos.
Quaisquer que sejam os sistemas de referência, o tempo e o espaço
determinam-se pela categoria topológica da /concomitância vs. não-
concomitância/ e a /não-concomitância/ articula-se, por sua vez, em
/anterioridade vs. posterioridade/” (BARROS, 2002: 88).

Greimas (2011) diz que a organização do espaço, localizada no nível pragmático do


discurso, é diferente da espacialização cognitiva, a qual investe de aspectos espaciais os
sentidos ou os relaciona aos mesmos, levando em conta apenas o mundo natural, como faz a
proxêmica. Portanto, as relações espaciais ocorrem entre actantes narrativos e sujeitos
discursivos, já que também existem tempo e espaço narrativos.
A dimensão cognitiva se superpõe à dimensão pragmática, sem serem, pois, análogas
entre si. O espaço cognitivo se situa fora da semiótica discursiva, já que este tipo de
semioticistas se preocupa com a espacialidade externa, ou seja, ele deixa de lado a
espacialização discursiva, logo textual, para explorar os espaços que estão fora da semiótica,
sem dá importância à espacialização discursivizada nos textos. Mas não se pode esquecer que
eles estão interessados por outros níveis de análise que não é semiótico, no sentido da
semiótica greimasiana.
Para Greimas, o espaço é considerado “uma grandeza plena, sem continuidades”,
estanque em si mesmo. Portanto, não é variável, mutável, mas estagnado. Daí a relevância de
se considerar as percepções que os sujeitos têm dos espaços, a fim de evitar
incompatibilidades espaciais e análises que se restrinjam apenas à superficialidade e à
identificação. Ainda para o semioticista lituano, o espaço implica a participação de todos os
sentidos e qualidades sensíveis (táteis, visuais, olfativas, acústicas etc.) que os sujeitos usam
em seu favor para exprimir suas sensações textuais, através do espaço.
É mister destacar que a semiótica espacial faz parte e está inserida no texto, embora se
confunda, às vezes, com a semiótica do mundo natural, a qual também possui seus espaços, só
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que estes funcionam como referentes a que a semiótica espacial faz referência textualmente.
Eles são visuais, físicos, porém, ao serem inseridos no discurso, os sujeitos os utilizam com
valores respectivos que lhes constituem como tal.
Além da espacialização narrativa e discursiva, a semiótica usa o espaço cognitivo que
relaciona os sujeitos com suas percepções intersubjetivas. Este espaço cognitivo faz parte do
discurso, cujo referente principal é o próprio sujeito, formado pelos procedimentos de
enunciação ou as relações intersubjetivas que ocorrem entre enunciador e enunciatário.

Análise da espacialização do poema Debaixo do tamarindo

No poema Debaixo do tamarindo, nas duas primeiras partes, dois espaços são
confrontados pelo sujeito: um, o espaço onde ele e seu pai viveram; outro, o espaço atual onde
o mesmo ancora seu discurso, a fim de retratar que o presente traduz seu passado. Embora as
noções espaciais sejam distintas, posto que denotam momentos diversificados da vida deste
sujeito, no que diz respeito ao tempo interno do poema, percebe-se nitidamente que se trata da
mesma localização espacial, no caso o tamarindo, só que o sujeito observa de ângulos
inversos aos olhos e de posições distintas. No primeiro momento, o sujeito está localizado
debaixo do tamarindo, no segundo momento, ele encontra-se à frente da árvore,
provavelmente da mesma noção espacial referenciada textualmente.
Como se nota, na infância, numa primeira instância espacial, este sujeito usou o
espaço tamarindo para descansar à sua sombra, da lida do dia a dia, conforme conota a
linguagem hiperbólica usada pelo poeta nos trechos: “Chorei bilhões de vezes com a canseira
de inexorabilíssimos trabalhos”. Em outra instância espacial, especificamente no segundo
quarteto, já distanciado tempo-espacialmente, ele reflete e conclui que esta árvore, metonímia
de tamarindo, preserva sua memória e a dos seus antepassados. Deste modo, o ontem
pressuposto na passagem “No tempo de meu Pai” e o hoje, presente na passagem “Hoje, esta
árvore de amplos agasalhos”, o tempo ancorado pelo sujeito discursivo, geram uma oposição
também espacial. Porque ele, pelo processo de debreagem, evade-se no tempo e no espaço,
produzindo outras noções espaciais que explicam o presente vivido pelo mesmo, que agora,
embreado no hoje, portanto ancorado pelo próprio discurso, mostra que, embora seja o
mesmo espaço, tamarindo, o tempo do discurso é outro e as percepções espaciais são outras,
como também a perspectiva ou o ponto de vista do observador.
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Apreende-se claramente que as oposições espaciais denotam dois momentos da vida


deste sujeito: um espaço infantil onde seu pai estava junto a ele, outro espaço adulto onde o
sujeito tem o tamarindo, espaço que por si só o faz refletir sobre o passado e sobre o presente,
porém seu pai já não mais existe. Por isso a necessidade dele dizer que a árvore guarda “a
paleontologia dos Carvalhos”. Carvalhos tanto pode referir-se à planta carvalho, quanto ao
sobrenome do poeta e de seus ancestrais. É importante salientar, como afirma Fiorin (2009),
que não se está falando, no que diz respeito ao sobrenome Carvalho, em Augusto dos Anjos
de carne e osso, mas uma imagem do mesmo ou dos seus ancestrais construída
discursivamente no texto. Isto também se aplica ao tamarindo, pois esta árvore, como
elemento espacial externo, existiu e fez parte da vida do mesmo, portanto é um objeto
extralinguístico a que o texto faz referência, como se nota no trecho: (Lembro-me bem do
grande Pau-d'Arco escondido, com a sua casa-grande acachapada, a senzala em ruínas, o
tamarindo gigante dando sombra” (REGO, 1973:166). É preciso compreender que tamarindo
também pode ter sido usado em sentido genérico, podendo, então, significar todo e qualquer
tamarindo. Todavia, não se pode dissuadir os dados biográficos do autor, já que os mesmos
também fazem parte do contexto em que ele viveu; e tais traços, quando aparecem nos
poemas de Augusto dos Anjos, são usados de maneira esporádica, provavelmente devido ao
seu estilo científico-filosófico. Daí a importância de considerar a biografia deste poeta.
Nas duas últimas partes do poema, percebe-se um distanciamento espacial do sujeito
com o espaço tamarindo. Ele, embora embreado no discurso, projeta um dois espaços futuros
que não são tão palpáveis como os dois espaços vistos na primeira parte da análise. A partir
deste momento, o sujeito imerge no nível das possibilidades e imprevisibilidades. A temática
da morte já surge como elemento mediador do sujeito. Daí a necessidade dele criar uma
ambiguidade discursiva, plasmada no adjunto adverbial de lugar aqui.
Nesta parte do poema, são dispostos e projetados mais dois espaços possíveis:
primeiro, o espaço certo, exato que pressupõe o espaço da morte, detectado na oração
subordinada adverbial temporal desenvolvida “Quando pararem...” e na presença da
metonímia disposta na passagem: “E a voz dos necrológios”; segundo, o espaço provável,
ambíguo, produzido pelo advérbio aqui que pode denotar terra, o lugar onde o poeta se
encontra próximo ou, ainda, aqui debaixo do tamarindo.
Se se pensar no dêitico aqui como um elemento anafórico, poder-se-ia afirmar que o
mesmo equivale a dois espaços diversos: o espaço tamarindo e o espaço terra (o lugar onde o
sujeito está escrevendo o poema), que podem está afastados ou próximos do sujeito. Estes
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espaços ancorados pelo sujeito do discurso podem conotar dúvida, imprecisão, ambiguidade
espacial, já que a percepção que este sujeito tem dos mesmos pode ser negativa ou positiva.
Ele pode querer permanecer ao lado dos seus antepassados e perto do tamarindo, então, o
aqui seria um espaço positivo; também o sujeito pode querer ficar enterrado longe daquele
espaço familiar. O aqui, no caso, seria um ponto negativo para este sujeito, correspondendo a
outro espaço, algum lugar alhures, não mais o tamarindo.
Nota-se, no entanto, que a primeira parte do poema influencia a segunda parte do
mesmo, visto que o espaço tamarindo é um espaço onde o sujeito chorou, onde ele trabalhou
incansavelmente e onde conserva sua memória e a dos seus antepassados. Neste caso, o aqui
ganha outra nuança significativa a qual denota uma noção espacial que é prejudicial a este
sujeito, pois é um espaço onde ele foi infeliz ou onde ele não se realizou socialmente. Assim,
de certa maneira, a imprecisão espacial sugerida pelo último verso do poema é desfeita.
Porém, independentemente do tempo futuro denotar o espaço da morte, o mais relevante é
observar a constituição metafórica do mesmo. Por isso o dêitico é fundamental para
confrontar o passado e o presente deste sujeito.
O poema “Debaixo do tamarindo” foi escrito em na Paraíba, em 1909 e publicado
pela primeira vez em 18 de abril de 1909, no jornal “A União”, na cidade de Paraíba, atual
João Pessoa (PB). Se se levar em consideração este espaço e este tempo externos,
relacionados tanto à publicação do poema, quanto à produção do mesmo, poder-se-ia dizer
que o sujeito, nos dois primeiros espaços produzidos pelo poema, está próximo do tamarindo
espacialmente, mas distanciado no tempo. Já em relação à segunda parte do poema, a
ambiguidade produzida pelo advérbio aqui é desfeita, já que aqui estaria relacionada ao lugar
que o poeta estaria inserido, no caso Paraíba, por sua vez, o tamarindo seria o lá, ou seja, o
espaço longe, distante do poeta. No entanto, caso só se considerasse estas relações tempo-
espaciais, empobrecer-se-ia o poema, posto que ele é um texto expressivo, polissêmico e
carregado de ambiguidades e riquíssimo em conotação ou linguagem conotativa. Daí a
necessidade de se priorizar inicialmente o espaço interno e, em seguida, confrontá-lo com o
espaço externo.

Análise da espacialização do poema Vozes da Morte

Neste poema, percebe-se que o sujeito encontra-se próximo do espaço tamarindo. Dois
fatores são importantes para que isto aconteça: um, a presença do adjunto adverbial de tempo
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agora; outro, por causa da presentificação verbal, disposta na forma indicativa vamos. Este
espaço, mesmo usado pelo sujeito para evitar uma morte solitária, pode ter dois sentidos
possíveis: primeiro, o tamarindo pode funcionar como um espaço responsável pelas
infelicidades deste sujeito, visto que o mesmo passou a vida inteira distante desta árvore
estimada; segundo, pelo fato do tal espaço representar um obstáculo a este sujeito, já que o
mesmo lhe foi nocivo na infância. Ainda que nos versos seguintes se note que este sujeito está
velho e pretende partilhar sua velhice com o tamarindo.
Outro espaço relevante presente no poema é o espaço da noite,, o qual sugere
desfalecimento, frustração, certeza, solidão, tristeza e pressupõe tanto a morte do sujeito,
quanto a do tamarindo. Nesta parte do poema, novamente surge o desejo que o sujeito tem de
morrer junto do tamarindo, a fim de afastar sua solidão, daí a explicação para o animismo ou
prosopopeia criada na passagem: “E essa futura ultrafatalidade de ossatura, a que nos
acharemos reduzidos!”. Posto que este sujeito crê que o tamarindo se assemelha a ele, no
aspecto mortal e físico. Agora, esta leitura somente é possível por causa de dois aspectos: um,
a presença da palavra ossatura que significa ossos de animais ou relativo à estrutura óssea. No
poema, esta palavra denota a ideia de esqueleto, caveira; outro, a frase “a que nos acharemos
reduzidos” que sugere a morte dos dois sujeitos. O tamarindo, nesta passagem, só é
considerado sujeito devido à sua personificação.
Na segunda parte do poema, o sujeito cria mais dois espaços possíveis e prováveis:
primeiro, o espaço do futuro que pressupõe sua eternidade espiritual e a perpetuação do
tamarindo; segundo, o espaço da morte onde haverá a completude dos dois sujeitos, embora a
eternidade da árvore já esteja discursivizada na passagem: “Não morrerão, porém, tuas
sementes!”. Todavia, segundo o sujeito, isto só é possível ocorrer por causa do amor mútuo
que os dois mantiveram em vida.
O poema “Vozes da morte” foi escrito no engenho Pau-d’Arco, em 1907 e publicado
em 24 de maio de 1907, no jornal “O Comércio”, na Paraíba. Percebe-se, neste caso, que há
uma compatibilidade entre o espaço interno do poema com o espaço externo, já que o sujeito
que fala no poema está junto do tamarindo, como se verifica na passagem: “Agora, sim!
Vamos morrer, reunidos, tamarindo de minha desventura!”; e o poeta também está próximo
do espaço tamarindo, como se percebe nos dados biográficos que foram explicitados
anteriormente. Todavia, o espaço externo só é relevante para se fazer uma análise superficial
do poema, visto que não é possível delimitar o espaço da morte fora do texto poético. Assim,
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mais significativo será mostrar a importância deste espaço externo para a construção do
poema como um todo discursivo.

Conclusões

Os dois poemas retratam de maneiras distintas a infelicidade de dois sujeitos que, ora
estão debreados, ora estão embreados do tamarindo, o qual, no primeiro poema, funciona
como um espaço onde o sujeito sofreu com a labuta diária, mas ainda guarda boas
recordações infantis e suas memórias familiares. No segundo poema, o tamarindo está
próximo do sujeito todo momento, isto porque o sujeito está infeliz e necessita da companhia
do mesmo.
Ainda nos dois poemas há a presença do espaço da morte. No segundo poema, este
espaço se mostra certo, preciso, mais evidente e mais presente, a começar pelo próprio nome
“Vozes da morte”. Por sua vez, a morte no primeiro poema aparece como algo possível,
hipotético, repleto de possibilidade, não como certeza absoluta.
Portanto, os dois textos apresentam várias circunstâncias espaciais que precisam de
uma atenção maior e mais cuidadosa. Entretanto, talvez em outro trabalho se possa explorá-
las, já que uma sistematização ou uma tipologia do espaço pressupõe um estudo de mais
fôlego.

Referências

ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.
ALMEIDA, H. Augusto dos Anjos. Razões de sua Angústia. Rio de Janeiro: Graf. Ouvidor,
1962.
AUGUSTO DOS ANJOS – A HETEROGENEIDADE DO EU SINGULAR (Organizadoras:
Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e Ana Isabel de Souza Leão
Andrade). João Pessoa – Paraíba: Mídia Gráfica e Editora Ltda., 2012.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Humanitas, 2002.
BATISTA, M. F. B. M. A enunciação: do fazer persuasivo ao interpretativo. In: XIX Jornada
Nacional de Estudos Linguísticos, 2002, Fortaleza. Programa & Resumos - XIX Jornada
Nacional de Estudos Linguísticos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. v. 1. p. 72-72.
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O percurso gerativo da significação. Revista do GELNE (UFC), Fortaleza, v. 3, 2001.


Semiótica e cultura: valores em circulação na literatura popular. Manaus: Anais da 61ª
Reunião Anual da SBPC, 2009.
______. O discurso semiótico. In:______. ALVES, Eliane Ferraz; CHRISTIANO, Maria
Elizabeth Affonso. Linguagem em foco. João Pessoa: Ideia, 2001. p. 133-157.
CRETELA JÚNIOR, José A. Poesia de Augusto dos Anjos. São Paulo, Rev. Tribunais, 1954.
COUTÊS, Joseph: Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra: Livraria
Almedina, 1979.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2009.
GREIMAS, Algidas Julien. Sobre o Sentido: Ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975.
______. SEMÂNTICA ESTRUTURAL. São Paulo: Editora Cultrix, 1966.
GREIMAS, A. J. COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2011.
______. Dicionário de semiótica. São Paulo: EDITORA CULTRIX, 1979.
REGO, José Lins do. AUGUSTO DOS ANJOS. In: Augusto dos Anjos, textos críticos
(coletânea organizada por Afrânio e Sônia Brayner). Brasília: Instituto Nacional do Livro,
1973.
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa: Editora Universitária,
1962.
REIS, Zenir Campos. Para cantar de preferência o Horrível! In: Os pobres na literatura
brasileira (org. Roberto Schwarz). São Paulo; Brasiliense, 1983.
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1967.

ANEXOS

Anexo 1

DEBAIXO DO TAMARINDO

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,


Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
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Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,


Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

Anexo 2

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,


Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!


E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!


E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,


Pelo muito que em vida nos amamos,
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Depois da morte, inda teremos filhos!


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GLOSSÁRIO DAS EXPRESSÕES REGIONAIS DA OBRA LITERÁRIA MORTE E


VIDA SEVERINA

Gabriella Cristina Chaves Ferreira


UFPB

Introdução

A literatura é utilizada pelo escritor como um meio para registrar um contexto sócio-
histórico-cultural de determinada época ou povo, e através do léxico divulga certas expressões
ou lexias que tornam conhecidas as características presentes em uma determinada região. Por
sua vez, o léxico de uma língua traduz a cultura, a história e as características de um povo,
presentes tanto na língua falada quanto na língua escrita.
Partindo dessa afirmativa é que este trabalho tem como proposta fazer um estudo
lexicográfico das expressões populares regionais presente na obra Morte e Vida Severina
(auto de natal pernambucano) de João Cabral de Melo Neto, com a finalidade de elaboração
de um glossário. A escolha da obra deve-se a relevância que a mesma tem na produção
literária doautor, bem como a fidelidade em retratar a região sertaneja, o homem sertanejo e
suas peculiaridades, tais como religião, condições sociais e culturais, enfim.
O glossário elaborado aqui tem como intuito proporcionar aos leitores da obra um
melhor entendimento das expressões e lexias bem peculiares utilizadas pelo autor, embora
não se esgotem os significados apresentados, podendo surgir outras interpretações.
Percebemos que os estudos relacionados ao fazer lexicográfico da obracitada é ínfimo, sendo
realizado alguns trabalhos no âmbito do contexto sócio- histórico, linguístico ou
literário,diante disso torna-se interessante e pertinente fazermos um estudo lexicográfico do
léxicopopular regional da obra citadaa fim de conhecer a cultura, o meio social e histórico da
região e do povo.
Para a realização do objetivo proposto, foram colhidas as lexias de cunho popular
regionale analisadas, de acordo com o contexto social e geográfico da obra, observando-se
também as características linguístico-gramaticais. Posteriormente registramos as lexias sob a
forma de um glossário, de acordo com a teoria lexicográfica. Os resultados mostraram que a
maioria das lexias são complexas e textuais, possuindo uma carga social e cultural bem típica
da região em que se passa a obra literária, tornando, assim a obra Morte e Vida Severina um
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registro lexical do falar típico das regiões sertanejas de Pernambuco, por vezes se
assemelhando as demais regiões sertanejas do Nordeste.
O presente trabalho está organizado em três partes, além da introdução e conclusão, a
saber: na primeira parte apresentamos,brevemente, os conceitos teóricos da Lexicologia, e da
Lexicografia, assim como o conceito e características de um glossário, pautados nos grandes
teóricos que discorrem sobre essas áreas; na segunda parte apresentamos um breve histórico
sobre a vida do autor e uma síntese da obra para melhor situar o leitor; e na terceira parte
teremos o glossário das expressões populares regionais da obra literária estudada.

Ciências do léxico: Lexicologia e Lexicografia

O léxico é o conjunto de todas as palavras ou unidades lexicais de uma língua. É a


vertente da linguística que possuium sistema instável e dinâmico, mudando a todo momento,
seja pelos empréstimos internos ou externos à língua nativaou pelos neologismos, tornando a
língua de um determinado povo rica e diversificada. Para Correia (2010, p.54):

[...] o léxico é o conjunto virtual de todas as unidades de uma língua,


incluindo [...] as unidades que ocorrem não apenas nos diferentes registros
especializados, como também unidades que ocorrem em diferentes outros
tipos de registros (oral/escrito, formal/informal, etc.), assim como em
diferentes variedades da língua (nacionais ou regionais).

Segundo Biderman (1998, p.11) o léxico é gerado através da nomeação dos seres e
objetos do universo,além da “cognição da realidade” que se cristaliza em “signos linguísticos:
as palavras”. Assim, o léxico representa os aspectos culturais, históricos e sociais pelos quais
passa um povo, e suas mudanças transformam e enriquecem o léxico, ampliando
sobremaneira o acervo linguístico.
No âmbito do léxico, é importante termos conhecimento sobre a unidade lexical, que é
o objeto de estudo tanto da Lexicologia como da Lexicografia. Segundo Lucena (2008, p.27),
Pottier chama de lexia a unidade lexical memorizada, que se distingue em formas simples,
composta, complexa e textual. Segundo o autor a lexia se concretiza no léxico da língua
através dos lexemas e dos gramemas, a primeira é “responsável pelo conceito e essencial para
existência da lexia”, e a segunda “geralmente indica(m) a função da lexia”. As lexias
presentes no glossário deste trabalho são complexas e textuais, havendo poucas lexias simples
e composta.
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Os estudos na área do léxico cresceram em sua importância, necessitando, assim, de


uma ciência que norteasse essa área da linguística- A Lexicologia. Para Lorente (2004, p.19) a
Lexicologia é “entendida como a disciplina que se ocupa do léxico das línguas de forma
completa e integrada...”.
Segundo Barbosa (1990, p.153) à Lexicologia “cabe-lhe numerosas tarefas...”, dentre
elas podemos citar a possibilidade de analisar as expressões de um determinado contexto,
identificando aatuação dentro de um contexto possível. É nessa perspectiva que buscaremos
nesse trabalho colher e analisar as expressões presentes na obra Morte e Vida Severina que
identificam os traços característicos da linguagem popular regional e suas representações nos
contextos social e cultural da região em que se passa a obra.
No que se refere aos registros dos diversos usos da língua temos a ciência da
Lexicografia. Para Biderman (1998, p.15) “a lexicografia é a ciência dos dicionários.”. Assim
a Lexicografia é a disciplina que trata da produção de dicionários, vocabulários e glossários,
em geral. Este trabalho como já expomos tem como intuito elaborar um pequeno glossário,
portanto se faz necessário a explanação de algumas considerações acerca do mesmo.
De acordo com Correia (2003, p.31), o glossário “é uma lista restrita de vocábulos de
um determinado domínio do conhecimento, de um determinado registro linguístico [...],
específicos da obra de um autor, constituída por neologismos, arcaísmos, regionalismos, etc.”.
Diferente do dicionário, o glossário traz informações reduzidas para cada verbete, bem como
um reduzido número de entradas.
Entendemos, também, que o glossário faz um estudo sincrônico e/ou diacrônico da
língua. Contudo, a finalidade do glossário é o registro das unidades lexicais utilizadas dentro
de um contexto específico de discurso, usadas concretamente pelos falantes em uma
determinada época.

Morte e Vida Severina (um auto de natal pernambucano)

A obra analisada no presente trabalho foi escrita entre 1954-1955 a pedido de Maria
Clara Machado com o intuito de ser encenada no Teatro Tablado. O autor João Cabral de
Melo Neto foi um dos principais representantes da “geração de 45”, época em que seus poetas
preocupavam-se com a construção do poema e sua forma visual.
Morte e Vida Severina (auto de natal pernambucano)é um poema composto de 18
trechos apresentados pelo personagem principal- Severino, trazendo imagens fortes e
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sensibilizantes, tanto dos personagens quanto dos locais em que se desenvolve a história,
como também, elementos característicos do social nordestino. A obra foi inspirada nos autos
pastoris medievais e possui uma linguagem que se assemelhaao registro oral do sertanejo
nordestino. Para Moura (2006, p.12) “Trata-se, portanto, de uma obra híbrida no que se refere
aos gêneros e formas, mas que apresenta uma harmonia perfeita entre a forma, o conteúdo e a
linguagem, que se tornam um todo indissociável.”
A obra apresenta a história do retirante nordestino Severino, que como outros de sua
terra natal, abandona o sertão rumo ao litoral em busca de melhores condições de vida. Em
seu trajeto ele encontra os “irmãos das almas”, expressão que designa as pessoas que
preparam o defunto e enterram, nessa ocasião Severino descobre uma oportunidade de
trabalho e consequentemente uma fonte de renda. Durante sua caminhada ele assiste a
enterros e cortejos fúnebres, sempre lidando com a dor e a morte. Desiludido com os
acontecimentos e ciente da sua condição miserável, Severino resolve se suicidar, porém, antes
conversa com José, mestre carpina a respeito da profundidade do rio Capibaribe. Quando, o
mestre carpina, recebe a notícia do nascimento de um menino Severino se alegra e com as
outras pessoas vai visitar e levar presentes ao menino, esta cena é uma referência nítida do
nascimento de Cristo. O diálogo final é uma resposta do mestre carpina a Severino sobre a
vida do nordestino, que embora seja frágil e dura é uma prova de resistência do povo do
Nordeste.
A obra Morte e Vida Severina é caracterizada pelas construções orais que representam
o léxico dos retirantes nordestinos, bem como as criações lexicais que em sua maioria são
neologismos semânticos, tais como metáfora, a metonímia e a sinédoque. Como por exemplo
em ave-bala, que é uma metaforização de um projétil, bala quevoa como uma ave. Segundo
Cotrim (2009,p.34) as criações lexicais características das obras do autor “engendram efeitos
de sentido que corroboram para a combinação entre expressão e construção, própria da
composição cabralina e demonstram a engenhosidade arquitetônica do poeta, justificando seu
cognome: “o poeta da construção”.”.

Glossário de expressões e vocábulos de Morte e Vida Severina (um auto de natal


pernambucano)

ÁGUA GROSSA E CARNAL- referência ao rio, se este é ou não caudolento: “...sabe me


dizer se é funda esta água grossa e carnal?” p.230
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ALUGUEL COM A VIDA- tempo de vida: “...ao meu aluguel com a vida.” p.229
A MARÉ FEZ PARAR O SEU MOTOR- seguir o curso natural, baixar e subir: “Foi por ele
que a maré fez parar o seu motor...” p.234
A MEIAS- forma popular de meio a meio: “...trabalhávamos a meias” p.215
A MORTE AJUDAR- fazer com frequência os procedimentos fúnebres: lavar, vestir e velar o
defunto: “...vivo de a morte ajudar.” P.215
ARRANCAR ROÇADO DA CINZA- referência a esperança do lavrador nordestino no
plantio da agricultura no solo seco e rachado: “Somos muitos Severinos... a de querer
arrancar algum roçado da cinza.” p.204
AVE-BALA- metaforização da bala de uma arma de fogo que projeta uma trajetória
semelhante a um voo de uma ave: “... quem contra ele soltou essa ave-bala?” p.206
BALA VOANDO DESOCUPADA- bala (projétil) disparada para matar alguém a ermo:
“...sempre há uma bala voando desocupada.” p.206
BANDA DE MARUINS- bando de mosquitos; comum na linguagem popular: “E a banda de
maruins...” p.234
BEBEU O MOÇO ANTIGO- envelhecimento do sertanejo devido ao trabalho na lavoura:
“Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo).” p.220
BEBEU TEU SUOR VENDIDO- exploração do trabalho braçal do sertanejo: “Esse chão te é
bem conhecido (bebeu teu suor vendido).” p.220
BEBEU TUA FORÇA DE MARIDO- exploração do trabalho braçal do sertanejo: “Esse chão
te é bem conhecido (bebeu tua força de marido)” p.220
BRAÇOS DE MAR- curso de um rio seco: “...são grandes braços de mar?” p.231
CAIXÃO MACIO DE LAMA- caixão feito da lama do rio, referência as pessoas que morrem
no rio e nele se enterram: “...que o coveiro descrevia: caixão macio de lama...”p.230
CALVA DA PEDRA- parte mais dura da pedra: “...de terra pouco há; mas até a calva da
pedra.”. p.213
CEMITÉRIOS ESPERANDO- os cemitérios são as saídas das pessoas que esperam conseguir
uma vida melhor: “...poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando cemitérios
esperando.”. p.228
COISAS DE NÃO- algo negativo; uso da preposição de em vez do substantivo negativas:
“Dize que levas somente coisas de não...” p.210
CÔMODAS DE PEDRA- referência à habitações pequenas: “...com suas cômodas de pedra.”
p.225
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CONTA EM CONTA- referência ao nome dado aos nós que compõe a corrente do rosário
utilizado na prática religiosa da Igreja Católica: “...saltando de conta em conta...” p.209
CONTA MENOR- menor porção de terra: “...com palmos medida, é a cota menor...” p.218
DANINHA- algo ruim, negativo: “...há de ser sempre daninha.” p.238
DÁ VAU- maré baixa: “...a esta altura dá vau?” p.230
DEFUNTOS ENCOMENDAR- rezar pela alma de algum morto; expressão religiosa popular
nordestina: “...sabe cantar excelências, defuntos encomendar?” p.215
DE PIA- expressão utilizada no Nordeste do Brasil para referir-se a menino: “O meu nome é
Severino, como não tenho outro de pia.” p. 203
DERRADEIRA- última: “...derradeira ave-maria...” p.223
DE SOL A SOL- expressão popular com mesmo sentido que a expressão de dia a dia: “...mas
o sol, de sol a sol...” p.214
DESPERTAR TERRA- referência ao trabalho do lavrador nordestino na tentativa de plantar
na terra seca: “Somos muitos Severinos... a de tentar despertar terra sempre mais extinta...”
p.204
FACA SOLAR- referência a intensidade e força do calor do sol: “...e de outras escalavradas
pela seca faca solar”. p.214
FRANZINA- pessoa magra, frágil; comum na linguagem popular: “...é uma criança
franzina...” p.239
FUGIU DE TEU PEITO A BRISA- não há mais vida; não há ar nos pulmões: “...que fugiu de
teu peito a brisa.” p.221
GENTE FINA- pessoa culta, educada: “...e o bairro de gente fina...” p.225
GUENZO- pessoa magra, raquítica, fraca; comum na linguagem popular nordestina: “...é um
menino guenzo...” p.239
IRMÃO DAS ALMAS- pessoa presente nos rituais fúnebres do Nordeste, responsável por
lavar, vestir, velar e enterrar o defunto de forma gratuita: “A quem estais carregando, irmão
das almas...” p.205
LÁ DE CIMA- expressão usada para se referir a algum lugar mais alto. Faz referência aos rios
da terra do personagem: “Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima...” p.209
LÁ DE RIBA- expressão popular lá em cima: “E esse povo lá de riba...” p.228
LINHA DO RIO- curso do rio: “...que a linha do rio enfia...” p.223
LUTOU A BRAÇO- grande esforço físico realizado: “...e para quem lutou a braço contra a
piçarra da Caatinga...”. p.217
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MAGROS LÁBIOS DE AREIA- referência a pouca areia em meio as tantas pedras: “Nos
magros lábios de areia...”. p.206
MAIS MÍNIMA- aumentar o sentido de pequeno, mínimo; forma popular da flexão no
feminino do substantivo mínimo: “...a diferença é a mais mínima.” p.222
MINHA LINHA- referência à vida; destino; curso da vida: “...e como o Capibaribe
interromper minha linha?” p.211
MINHA SINA- meu destino: “...não plantarei minha sina?”. p.217
MISÉRIA É MAR LARGO- grande quantidade de pessoas que vivem em condições
consideradas miseráveis: “...sei que a miséria é mar largo...” p.231
MORRE GENTE QUE NEM VIVIA- pessoas sofridas, apáticas, mal nutridas, sem habitação,
entre outros: “...crescendo a cada dia; morre gente que nem vivia.” p.228
MORTALHA MACIA E LIQUIDA- morte no rio: “...caixão macio de lama, mortalha macia
e líquida...” p.230
MORTE MATADA- morte ocorrida por interferência de algum agente externo ao natural;
assassinato: “Até que não foi morrida... esta foi morte matada...” p.206
MORTE MORRIDA- morte ocorrida de forma natural: “... essa foi morte morrida...” p.205
MORTE SEVERINA- substantivo próprio Severina adjetivado; expressão refere-se aos tipos
e causas da morte da maioria dos nordestinos que, por sua vez, possuem em sua maioria o
nome Severino: “E se somos Severinos... morremos de morte igual, mesma morte severina...”
p.204
MORTO DE BALA- referência a causa da morte que ocorreu com bala (projétil) de arma de
fogo: “Este foi morto de bala...” p.206
NESTA CHÃ- forma popular reduzida do substantivo chão: “Conheço todas as roças que
nesta chã podem dar...” p.213
O MAU-CHEIRO NÃO VOOU- odor característico dos mangues encontrado nos rios: “...e o
mau-cheiro não voou.” P.234
OMBROS DA SERRA- metaforização da serra; local mais alto da serra, comparado com uma
parte do corpo humano: “...todas nos ombros da serra...” p. 207
PARAGENS BRANCAS- paisagens sem nenhuma composição, seja, de pessoas, bichos ou
plantas: “...há certas paragens brancas...” p.209
PÁSSARA- substantivo epiceno utilizado no feminino para se referir a bala (projétil): “...e o
que havia ele feito contra a tal pássara?” p.206
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PEDRA AVARA- flexão no feminino do adjetivo avaro; pedra mesquinha, que não dá:
“...que podia ele plantar na pedra avara?” p.206
PRAÇAS-DE-PRÉ- militar de categoria inferior na hierarquia militar: “...e praças-de-pré dos
comerciários” p.227
PUXÃO DAS ÁGUAS- correnteza da água: “...por que ao puxão das águas...” p.231
RIO DE ÁGUA CEGA- sem brilho: “E este rio de água cega...” p.234
RIO DE COMER TERRA- rio seco: “E este rio... de comer terra...” p.
RIO NA CHEIA- maré alta, cheia: “...ou como rio na cheia...” p.232
RIO NÃO CORTA- o rio não seca: “...o rio não corta em poços...” p.223
ROÇADOS DA MORTE- analogia entre as muitas mortes ocorridas no sertão aos roçados de
plantações: “...Só os roçados da morte compensam aqui cultivar...” p.216
SALA NEGATIVA- ambiente com pessoas que tem opiniões negativas: “...é tão belo como
um sim numa sala negativa.” p.240
SALTAR FORA DA PONTE E DA VIDA- suicidar-se na ponte e morrer: “...a de saltar,
numa noite, fora da ponte e da vida?” p.233
SALTOU PARA DENTRO DA VIDA- nascer: “...não sabeis que vosso filho saltou para
dentro da vida?” p.233
SANGUE DE POUCA TINTA- sangue fraco, sem nenhuma linhagem nobre: “Somos muitos
Severinos iguais em tudo na vida... e iguais também porque osangue que usamos tem pouca
tinta.” p.204
SEMENTE DE CHUMBO- projétil de arma de fogo cujo material é o chumbo; referência à
semente de plantas: “...com a semente de chumbo que tem guardada?” p.207
SERRA MAGRA E OSSUDA- referência às características físicas da serra da Costela: “Mas
isso: se ao menos mais cinco havia... vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu
vivia.” p.203
SOL COM SUAS LÍNGUAS-referência aos raios do sol a queimar: “...pelas roças, pelos
bichos, pelo sol com suas línguas?”. p.212
TÃO FEMININA- forma popular reduzida de estão: “...está aqui, tão feminina.” p.217
TAMBÉM CORTA...PERNAS QUE NÃO CAMINHAM- referência a seca nordestina que
assola os rios; metaforização do curso do rio: “...e no verão também corta, com pernas que
não caminham.” p.210
TERRA BRANDA E MACIA- mais serena, calma, com um clima ameno: “Bem me diziam
que a terra se faz mais branda e macia...”. p.217
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TERRA DADA NÃO SE ABRE A BOCA- paráfrase do provérbio popular cavalo dado não
se olha os dentes: “...mas a terra dada não se abre a boca.” p.219
TERRA DE LÁ- sertão; uso da preposição de em vez do substantivo natal: “...o que fazia o
compadre na sua terra de lá?” p.213
TERRA-MÁ- referência à terra seca e improdutiva do sertão nordestino: “...lavrador de terra
má...” p.213
VAZIOS DA FOME- estômago seco, sem alimentos: “...quando ao vazios de fome...” p.231
VENTO VIVE A ESFOLAR-a intensidade do vento: “Tirei mandioca de chãs que o vento
vive a esfolar...”. p.214
VESTIDO NEGRO DE LAMA- coberto por lama: “...na ilha do Maruim, vestido negro de
lama...” p.237
VIAGEM SE FINA- viagem acaba, termina; linguagem popular; próclise do pronome se em
vez da ênclise: “...e esta minha viagem se fina.” p.223
VIDA A RETALHO- vida construída a cada dia, tempo: “...há nessa vida a retalho...” p.232
VIDA SEVERINA- substantivo próprio Severina adjetivado; expressão refere-se ao modo e
qualidade de vida da maioria dos nordestinos que, por sua vez, possuem em sua maioria o
nome Severino: “...foi de vida severina...” p.211
VIVENDO NO MEIO DA LAMA- condições sub-humanas em que vivem os retirantes
nordestinos: “...fica vivendo no meio da lama...” p.228
VOAR AS FILHAS-BALA- referência ao projétil de arma de fogo; balas atiradas após outras,
seriam, pois, as filhas; vindas depois: “...tem mais onde fazer voar as filhas-bala.” p.207

Conclusão

Tendo em vista que a obra literária representa através de sua linguagemos diversos
aspectos sociais, culturais e históricos, percebemos, então, na obra de João Cabral de Melo
Neto características marcantes que permeiam o meio do popular regional nordestino. É
importante ressaltar as diversas criações lexicais, próprias da composição do autor, seja nas
lexias complexas, simples ou textuais, criações essas que fazem da obra analisada uma das
mais representativas na produção literária do poeta.
O glossário foi composto de 82 lexias, em sua maioria complexas e textuais, dispostas
em ordem alfabética para facilitar a consulta. O presente trabalho mostra a possibilidade de
elaboração do glossário e estudo das lexias, que carregam aspectos intrínsecos à sociedade.
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Podemos considerar a obra Morte e Vida Severina, um registro lexical, cultural e histórico da
oralidade das regiões sertanejas do Nordeste, embora existam alguns neologismos criados
pelo autor para enriquecer o poema. Vale salientar que os significados trazidos aqui não se
esgotam, podendo surgir outras possíveis intepretações.

Referências

BARBOSA, Maria Aparecida. Lexicologia, Lexicografia, Terminologia, Terminografia,


Identidade Científica, Objeto, Métodos, Campos de atuação. II Simpósio Latino-
Americano de Terminologia. I Encontro Brasileiro de Terminologia Técnico-Científica.
Brasília- Brasil, 1990, p.152-158.
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. O léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P.; ISQUERDO, A.
N. (Orgs.). As Ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande,
MS: Ed. UFMS, 1998, p.11-20.
CABRAL, Tomé. Novo Dicionário de Termos e Expressões Populares. Fortaleza, CE. Ed.
UFC, 1982.
COTRIM, Rosana Maria Sant’Ana. Entre o “lápis bisturi” e o “verso cicatriz”: criação
lexical e efeito(s) de sentido na poética de João Cabral de Melo Neto.SLG 8- Estudos
Lexicais no discurso literário. 2009. p. 16-35. Disponível em: <www.simelp2009.uevora.pt>
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CORREIA, Margarita. Para a compreensão do conceito de ‘empréstimo interno’: primeira
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______. Os dicionários portugueses. Lisboa: Caminho, 2009.
LORENTE, Mercé. A lexicologia como ponto de encontro entre a gramática e a semântica.
In: KRIEGER, M. G.; ISQUERDO, A. N. (Orgs.). As Ciências do Léxico: lexicologia,
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LUCENA, Josete Marinho de. Uma palmeira em muitos termos: a terminologia da
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Lingüística do Departamento de Letras Vernáculas, Fortaleza, CE, 2008.
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MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas: 1940-1965. 2°ed. Rio de Janeiro, J.
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MOURA, Maria José Acioly Paz de. O auto da morte e da vida: João Cabral de Melo
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Letras e Artes, João Pessoa, PB, 2006.
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IMAGENS DO TROVADORISMO PORTUGUÊS NA POÉTICA DE CHICO


BUARQUE

José Sandro dos Santos1

Em 1955, quando o mundo buscava sanar os infortúnios da 2ª guerra mundial, no


Brasil, Juscelino Kubitschek foi eleito Presidente da República. No período que corresponde
aos cinco anos da sua administração, houve um crescimento na economia baseado na
lucratividade, mas, nos diversos campos da arte, também aconteceram mudanças
significativas. Assim, podemos lembrar aqui o Cinema novo que fazia surgir Cineastas
dotados de excêntrica criatividade artística e, ao mesmo tempo, envolvidos com os problemas
sociais e políticos da nação, a exemplo disso citamos os nomes de Glauber Rocha e Rui
Guerra.
Mais tarde, destaca-se também o CPC – Centro Popular de Cultura, pela influência
exercida aos jovens universitários da época. Todavia é na música que, nesse período, nascem
movimentos marcantes nesse cenário; podemos citar aqui a bossa nova, que com melodias
mais intimistas traz à tona compositores como João Gilberto e Tom Jobim.2 No entanto, com
as mudanças políticas acontecidas na década de 1960, depois do surgimento do beco das
garrafas, esses artistas, aos poucos foram deixando de lado o contexto musical ligado aos
problemas afetivos e dedicaram-se a questionar com acidez a penúria da condição humana.
Surge então a canção de protesto inserida num clima de autoritarismo excêntrico.
Assim, os primeiros anos da década de 60 foram marcados por uma espécie de canção
popular com participações efetivas na esfera política e social do Brasil. Nesse cenário
apareceram compositores comprometidos politicamente que procuravam misturar as
concepções técnicas da bossa nova com outras informações musicais voltadas para as
condições culturais dos primeiros anos dessa década. Surge assim um tipo de produção
musical denominada de MPB.3
Assoma então, uma geração de artistas constituída por nomes como os de Milton
Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque entre outros tantos que
não achamos necessário mencionar nesse trabalho.

1
Professor Mestre da FABEJA – Faculdade de Ciências Humanas e Aplicadas de Belo Jardim e da Rede de
Ensino Estadual de Pernambuco.
2
Informações extraídas da obra História do Brasil, Nelson Campos e Jorge Hélio. Ed. Lowes. Ceará, 1997, p.
254.
3
NAVES. Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. 2001, p. 31.
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O golpe militar de 1964 promove o fechamento do CPC e a prisão e o exílio de artistas


intelectuais do Teatro Arena e compositores que, por meio da arte engajada, buscavam uma
necessidade de conscientização política, social e cultural do povo brasileiro.
É no contexto dessa geração de intelectuais e eruditos ligados ao meio artístico,
cultural e político que surge o artista Chico Buarque de Holanda, nascido no dia 19 de junho
de 1944, filho do historiador Sergio Buarque de Holanda e Maria Amélia Cesário Alves
(pianista amadora). Em 1950 foi morar na Itália, onde ficou até 1957. Lá estudou na Escola
Americana, onde aprendeu Inglês e Italiano. De volta a São Paulo estuda no colégio de padres
progressistas do Canadá (Colégio Santa Cruz), nesse período já começa a escrever contos e
crônicas no jornal da escola.
Chico Buarque sonhava em ser escritor, pois o gosto pela Literatura veio antes do
interesse pela música, porém a experiência que teve com a batida do violão de João Gilberto
no LP Chega de Saudades terminou por levá-lo a experimentar primeiro a sensação de ser
compositor e, posteriormente, Chico passaria a ser, também, dramaturgo e ficcionista, sendo
autor de diversos livros como Gota d’gua, Ópera do Malandro, Calabar: o elogio da traição,
Roda Viva, Budapeste...só para citar algumas de suas mais importantes elaborações literárias.4
No ano de 1963, Chico é aprovado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,
mas o seu envolvimento com a música não permite a conclusão do curso, fazendo-o desistir
três anos depois. No ano seguinte participa da primeira audição do Programa O Fino da
Bossa, que vai ao ar em 1965 na TV Record. Nesse mesmo ano compõe a melodia de Morte e
vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e lança o seu primeiro disco em compacto
contendo as músicas Pedro pedreiro e Sonho de um carnaval. Em outubro de 1966, com a
música A banda, Chico Buarque divide o primeiro lugar com a música Disparada, de Geraldo
Vandré e Theo Barros no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.5 Estava
selada a carreira do artista Chico Buarque de Holanda.
A composição da música A banda rendeu-lhe comentários muito preciosos de
escritores e críticos renomados. Apenas como exemplo, podemos citar os que aparecem no
livro Chico Buarque do Brasil. Vejamos:

Carlos Drummond de Andrade diz sobre ‘A banda’, em crônica publicada no


Correio da Manhã alguns dias depois de a canção ser premiada no Festival:
‘A felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão

4
HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009, p. 11ss
5
FERNANDO, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional,
2009, p. 26
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simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de um
pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem
a ideia de como andávamos precisando de amor’. Nelson Rodrigues dirá, em
O Globo, que, ao ouvir a ‘marchinha genial’ de Chico, teve vontade de sair
de casa, ‘de sentar no meio-fio e começar a chorar’. Rubem Braga também
se manifesta. Considera Chico naquele momento ‘a coisa mais importante
em matéria de música popular’. E conclui, enternecido: ‘A Banda é algo que
todo mundo entende e que emociona todo mundo... ‘É uma boa crônica,
cheia de poesia.6

Esse artista que se notabilizou por composições como A banda, Apesar de você, Roda
viva, Cálice, Sabiá... que compôs canções consideradas como músicas de protestos, com
versos elaborados e uma veia de poeta revolucionário, apesar de comportado, também
escreveu belíssimos textos líricos, capaz de encher os olhos daqueles participantes mais
radicais e mais visionários. Suas composições, tanto as líricas como as de protestos,
arrancaram elogios dos mais renomados jornalistas e críticos brasileiros. A exemplo disso,
citamos aqui os nomes de Suênio Campos de Lucena, Tarik de Souza, Regina Zilberman,
Regina Zappa, Mário Chamie, Moacir Scliar, Luiz Tatit, Leonardo Boff, José Nêumane Pinto,
Antônio Carlos Secchin, Afonso Romano de Sant’anna, entre tantos outros que poderíamos
citar.
Mas, na impossibilidade de tratar aqui de todas as temáticas das composições de Chico
Buarque, podemos nos deter, nesse trabalho, àquelas canções em que o poeta/compositor, de
forma direta ou indireta, fez alusão às cantigas líricas do Trovadorismo português –
movimento literário da Idade Média.
Esse estilo de época compreende um período que vai do séc. XII até meados do séc
XIV e representou o surgimento de uma cultura leiga, já que naquele período poucas pessoas
tinham acesso aos livros; a igreja católica concentrava todas as atividades culturais em torno
dela e só incentivava a propagação da arte relacionada à ideologia cristã. Assim, no
Trovadorismo, o surgimento dessas cantigas – composições orais e de fácil memorização,
ligadas às expressões populares – possibilitou a manifestação das camadas populares tratando
a arte com temas mais voltados para o cotidiano das pessoas, separando-a dos valores
considerados sagrados pela igreja.7
As cantigas do Trovadorismo português podem ser divididas em dois grupos; um está
mais ligado às expressões afetivas, são as composições poéticas denominadas de poesia lírica
e podem ser divididas em cantigas de amor e cantigas de amigos. O outro grupo está mais

6
Idem, p. 27.
7
CEREJA, Willian Roberto e COCHAR, Thereza Magalhães. Panorama da Literatura Portuguesa. 2ª Ed. São
Paulo: Atual. 1997, p. 5.
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voltado para um tipo de composição que procura fazer críticas às pessoas e às instituições, são
as chamadas cantigas satíricas que se dividem em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. O
poeta, por sua vez, era chamado de trovador (troubadour) e o poema era denominado canto ou
cantigas.
As cantigas de amor tratavam de temáticas “dolorosas” onde o trovador falava de suas
angústias lamentando a irresolução amorosa; o amor era apenas idealizado, pois a dona
(senhora) era inacessível aos seus apelos sentimentais. Aqui podemos dizer que as investidas
do poeta classificam-se mais como uma espécie de confissão “quase elegíaca”, pois segundo
Moisés:

(...) os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de


idealidade ou contemplação platônica, mas entranham-se-lhe no mais fundo
dos sentidos; o impulso erótico situado na raiz da súplica transubstancia-se,
purifica-se, sublima-se. Tudo se passa como se o trovador “fingisse”,
disfarçando com o véu do espiritualismo, obediente de conveniência social e
da moda literária vinda da Provença, o verdadeiro e oculto sentido das
solicitações dirigidas à dama. À custa de “fingidos” ou incorrespondidos, os
estímulos amorosos transcendentalizam-se repassa-os um torturante
sofrimento interior que se segue à certeza inútil da súplica e da espera dum
bem que nunca chega. É a coita (=sofrimento) de amor que, afinal, ele
confessa.8

Esse sentimento de rejeição era comum, pois se tratava de uma senhora/dama que ou
pertencia a uma classe social superior a do trovador e, por este motivo, era alheia aos seus
apelos, pois não era comum pessoas de níveis sociais diferentes unirem-se, ou aquela dama
era comprometida, e, por isso, estava vetada a possibilidade da realização amorosa com o
trovador.
Nesse sentido, podemos inferir que Chico Buarque, enquanto compositor, também
escreveu diversas músicas na quais é perceptível a analogia que existe com as cantigas
trovadorescas daquele período. A exemplo disso, podemos pensar na composição da música
Quem te viu, quem te vê (1966). Vejamos:

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala


Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua

Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você


Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais esquece não pode reconhecer
8
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª edição. São Paulo: Cultrix. 1999, p. 20.
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Quando o samba começava você era a mais brilhante


E se a gente se cansava você só seguia adiante
Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado
Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado

O meu samba assim marcava na cadência os seus passos


O meu sono se embalava no carinho dos seus braços
Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão
Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão

Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe


De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia

Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria


Quero que você me assista na mais fina companhia
Se você sentir saudade por favor não de na vista
Bate palma com vontade
Faz de conta que é turista.9

Se pensarmos aqui que a mulher, na idade média, não tinha direito de relatar seus
desejos, suas angústias e seus sonhos, era apenas aquela que estava relacionada ao pecado. Ela
precisava casar logo cedo, para assim, ser considerada “dona” de alguma coisa. Nas cantigas
de amor a palavra “dona” estava mais relacionada com a questão lírica; a mulher passa a ser
vista como senhora/dona do coração do trovador, acontece uma espécie de vassalagem
amorosa, uma relação de servo (trovador) e senhor (senhora), fazendo uma analogia ao que
acontecia na situação envolvendo senhor e servo, característica comum nas sociedades
feudais.
Na composição citada acima, temos uma espécie de narrativa, onde o narrador assume
a função de trovador. É evidente que os tempos são outros, a sociedade e seus valores não são
mais os mesmos, assim, podemos dizer que o compositor é, nessa canção, um trovador
contemporâneo.
Nos versos da canção, apresenta-se um eu lírico movido por sentimentos do passado,
temos um mestre-sala completamente envolvido por um sentimento de perda, um amor
dilacerado outrora dedicado a uma mulher que, assim como nas cantigas de amor, permanece
inacessível aos seus sentimentos. Para o poeta trovador, a trova estava sempre voltada para
uma mulher/dama, uma senhora importante da sociedade que permanecia fria aos apelos do
poeta. O narrador da canção Quem te viu, quem te vê, meio que transforma a sua adorada em

9
TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de texto. Petrópolis: Vozes.
2009, p. 68. (a letra está na íntegra, fizemos modificações na estrutura dos versos).
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uma mulher também muito cobiçada na sociedade nos períodos carnavalescos, a “cabrocha”.
Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala, essa cabrocha também era “a mais
brilhante” e “favorita”, como o eu lírico deixa claro nos versos Todo ano eu lhe fazia uma
cabrocha de alta classe/ De dourado eu lhe vestia para que o povo admirasse. Dessa forma,
temos, nesses versos, um amor idealizado, não correspondido no momento presente pela
dona/cabrocha, pois ambos assumem uma relação de oposição no contexto social; ela, que
antes era dona do coração daquele sujeito que fala no texto, a morena faceira de bom rebolado
que acompanhava aquele mestre-sala nos ensaios, nos barracões e na avenida, agora, inserida
em outro contexto, pertence à “nata” da sociedade. Isso fica claro quando ele diz Hoje a gente
anda distante do calor do seu gingado/ Você só dá chá dançante, onde eu não sou
convidado10.
Temos então um sujeito sambista, que se encontra em uma posição social considerada
inferior, que apela pelos sentimentos de uma mulher e que permanece insciente à invocação
do eu lírico; esse, através do samba, estará sempre à procura da realização amorosa com essa
mulher que, segundo o narrador, procurou transformar a ficção em realidade, pois a morena
que brincava de princesa, no período do carnaval, acostumou na fantasia.11 Aqui, “o
sofrimento interior do trovador”, segue com a “certeza inútil da súplica e da espera dum bem
que nunca chega”.
Assim, Chico Buarque, manifesta pela palavra, “os valores sociais contraditórios”.12
Fica claro que a impossibilidade da realização desse amor dá-se através da contradição desses
valores.
Como acontecia no período medieval, no que diz respeito às realizações amorosas,
pessoas de classes sociais diferentes dificilmente se misturavam; isso é visível nas trovas em
que trovadores e menestréis, voltados para uma contemplação platônica, dedicavam versos de
amor às suas supostas senhoras.
Nessa canção, o poeta/trovador contemporâneo, a exemplo dos trovadores medievais,
procura mostrar, pela palavra, além da incapacidade das realizações amorosas, valores e
conceitos que são atribuídos às pessoas através da distinção de classe. A morena agora
pertencia à classe dominante, não estava mais nos morros, nos barracões, ou até mesmo na
avenida, lugar de certa forma privilegiado (apenas nos períodos carnavalescos), mas o espaço

10
www.revistazunai.com/ensaios/roberta_moura_cavalvanti_chico_buarque.htm. P. 08
11
Idem, P. 08ss.
12
BAKHTIN. Mikhail (1999) Apud. BAFFA, Alda Mendes. In. GEROLD, Nanci. Diálogos Bakhtinianos:
Bakhtin no texto, na Literatura e na sala de aula. São Paulo: Porto de ideias. 2011, p. 140.
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dela agora é na galeria, ambiente reservado àqueles que pertencem a um nível social mais
elevado.
Essas possibilidades intertextuais das canções de Chico Buarque com as cantigas de
amor do Trovadorismo português também podem ser observadas em canções como As
vitrines, Moto-contínuo, Será que Cristina volta... entre tantas outras que fazem parte do
repertório desse compositor.
Deixando de lado a questão que mostra a relação de algumas composições de Chico
Buarque com as cantigas de amor, podemos refletir também sobre a indagação de alguns
traços poéticos que suas canções possuem com as cantigas de amigos do Trovadorismo
português.
Essas cantigas apresentavam um caráter narrativo e, ao mesmo tempo descritivo; nelas
o trovador apresenta-se com o eu lírico feminino, a pessoa que fala narra o seu sentimento
pautado pelo sofrimento da ausência do amigo. Aqui, a palavra amigo significa namorado ou
amante. Vejamos as palavras de Moisés (1999):

Esse tipo de cantiga focaliza o outro lado da realização amorosa: o fulcro do


poema é agora apresentado pelo sofrimento amoroso da mulher, (...) O
trovador, amado incondicionalmente pela moça humilde e ingênua do campo
ou da zona ribeirinha, projeta-lhe no íntimo e desvenda-lhe o desgosto de
amar e ser abandonada, em razão da guerra ou de outra mulher.13

Nessas cantigas, o trovador projeta-se na subjetividade da pessoa que fala e exprime os


seus sentimentos. O poeta ou é o homem com quem a donzela se envolveu, ou ele procura
mostrar o estado afetivo da moça pelo fato de ela não ser alfabetizada.
As experiências afetivas, nesses textos, são sempre espontâneas. A mulher, na maioria
das vezes, é sempre de origem humilde e procura elementos da natureza como as árvores, os
pássaros, os riachos e, até mesmo as mães para confessar os seus sentimentos. A paixão é
sempre incompreendida e a donzela entrega-se sem medidas, enquanto o homem permanece
inacessível. A partir do sentimento de ausência e perda, a mulher narra e descreve suas
angústias pautadas na esperança da volta do amado e, consecutivamente, da realização
amorosa.14
Dessa forma, envoltas nas temáticas do isolamento, do desgosto e da saudade, essas
cantigas procuram mostrar uma atmosfera misantrópica. Portanto, essas canções, apesar de

13
MOISÉS, Op. Cit., p. 22.
14
Idem, p. 22.
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serem compostas por um homem, o eu lírico é feminino e está costumeiramente lamentando a


ausência do namorado.
No Trovadorismo português, esse tipo de composição foi amplamente difundido
através dos cancioneiros – coletâneas de diversos tipos de poemas e de vários autores - entre
os mais importantes, podemos citar o Cancioneiro da Ajuda, o Cancioneiro da Vaticana e o
Cancioneiro da Biblioteca Nacional.15
Como nessas cantigas, diversas músicas do poeta/cantor Chico Buarque, apesar de a
composição ser de autoria masculina, é a voz feminina que se enuncia. É o sentimento da
mulher que viveu uma grande história de amor e fora abandonada, que aparece em uma parte
do repertório poético musical desse trovador contemporâneo.
Cereja e Cochar (1997) apontam alguns aspectos que são fundamentais nas cantigas de
amigo do período feudal, entre eles podemos destacar o “eu lírico feminino”, a “presença de
paralelismo” e o “motivo literário principal: o lamento da moça cujo namorado partiu”.16
Dessa forma, citamos aqui para evidenciar esses aspectos nas canções de Chico Buarque as
músicas: Com açúcar, com afeto, Sem açúcar, Tatuagem, Olhos nos olhos, Ana de
Amsterdam, Folhetim, Terezinha, Atrás da Porta, Pedaço de mim, Bastidores, entre outras.
A existência dessa construção poética feminina é presença constante em enes músicas
desse compositor, porém, para esse trabalho, observemos esses aspectos apenas na
composição Tatuagem. Vejamos:

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem


Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina


Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas


Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas

15
CEREJA e COCHAR. Op. Cit., p. 05
16
CEREJA & COCHAR, Op. Cit., p. 14.
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Quando a noite vem


Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes.17

Temos nessa canção uma história de amor contida na voz feminina, configuração
muito comum nas cantigas de amigo do Trovadorismo, onde podemos perceber a presença de
elementos narrativos e, ao mesmo tempo, descritivos. O eu lírico apresenta suas lamentações
no momento em que seu amante, Calabar, está sendo executado como “traidor”.
Essa história de amor apresentada na enunciação do eu lírico pode ser observada,
especialmente, no verso quando a noite vem, onde podemos ver a expressão noite como
metáfora da morte, assim esse verso poderia ser entendido da seguinte forma: “quando a
morte vem. O sentimento feminino cria uma substância de apelo exagerado, pois essa mulher
estaria disposta, prontificada a seguir a mesma viagem do seu amado sentenciado. Aqui, como
nas cantigas de amigo, a amada lamenta a ausência do amante que está prestes a fazer uma
viagem. Desta feita, o sofrimento é mais angustiante, pois se trata de uma ida sem retorno.
Calabar, seu amante, está sendo executado.
Outro recurso frequente nas cantigas de amigo é o uso continuado de expressões
paralelísticas, como podemos ver nos versos de Martim Codax.

Ondas do mar de Vigo,


Se viste meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,


Se viste meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!

Se viste meu amigo,


O por que eu sospipo!
E ai Deus, se verrá cedo!

Se viste meu amado


Por que hei gran cuidado!
18
E ai Deus, se verrá cedo!

17
Abril Coleções. Calabar, o Elogio da Traição ou Chico Canta. São Paulo: Abril, 2010.
18
CODAX, Martim. In: Ledo, Teresinha de Oliveira. Manual de Literatura: literatura portuguesa. São Paulo:
DCL, 2001. Disponível em http://www.cci401.com.br/Util/HandlerArquivoBiblioteca.ashx?arq=122. P. 11
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Temos nessa canção a repetição dessa construção sintática em alguns versos,


consistindo assim em uma cadência melódica simples, própria de povos de regiões
campestres, isto é, comum às poesias populares mais primitivas de diversas regiões da
península Ibérica.
O paralelismo sintático, segundo Platão e Fiorin é

(...) a combinação de palavras em estruturas sintáticas que se refletem ao


longo do texto (...), o mesmo tipo de sujeito seguido do mesmo tipo de verbo
com o mesmo tipo de complemento (...), pode ser para mostrar que os
significados transmitidos pelas construções paralelas mantém entre si algum
tipo de simetria.19

Assim, na canção citada de Chico Buarque, observamos essa construção sintática nos
versos que iniciam a 1ª, a 2ª e a 3ª estrofes. Vejamos: Quero ficar no teu colo, Quero brincar
no teu colo e Quero pesar feito cruz. Temos aqui o mesmo sujeito, seguido do mesmo verbo e
do mesmo complemento. Podemos ainda observar essa repetição no quarto verso da 1ª, da 2ª e
da 3ª estrofes a expressão Quando a noite vem.
Percebe-se então que os significados mostrados por essas construções paralelísticas
servem para assegurar certo tipo de simetria na construção sintática.
Por fim, podemos nos deter agora em outro aspecto apontado por CEREJA e
COCHAR (1997), O motivo literário principal: o lamento da moça cujo namorado partiu.
Como foi mencionado anteriormente, a angústia da amada é profunda, pois, nessa canção, o
eu lírico tem a certeza de que a sua realização amorosa chegou ao fim, pois seu amado fora
enforcado e, posteriormente, esquartejado; o tema da ausência apresenta-se como uma
presença contínua em todos os versos da canção. A solidão apresentada por Bárbara, pessoa
que fala no poema/canção, ilustra bem o abandono perene representado no seu sofrimento.
A música apresentada pertence à trilha sonora da peça de teatro que tem como título
Calabar, o elogio da traição. O drama versa sobre uma suposta traição de Calabar
(personagem histórico), em relação aos portugueses. Por esse motivo ele é capturado e
condenado à morte por enforcamento. Bárbara, amante de Calabar, no momento da execução
do seu amante, começa a cantar essa a referida composição.
O lamento do eu lírico se constitui como o motivo literário principal, pois seu homem
foi para uma viagem sem volta.

19
FIORIN, José Luiz e PLATÃO, Francisco Savioli. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática.
2001, p. 341.
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Finalizando, dizemos então que, nessa composição musical, Chico Buarque exercita a
sua anima a serviço da arte apresentada em tons melancólicos através da saudade feminina, a
exemplo das cantigas de amigo do Trovadorismo português.

Referências

www.revistazunai.com/ensaios/roberta_moura_cavalvanti_chico_buarque.htm.
ABRIL, Coleções. Calabar, o Elogio da Traição ou Chico Canta. São Paulo: Abril, 2010.
BAKHTIN. Mikhail (1999) Apud. BAFFA, Alda Mendes. In. GEROLD, Nanci. Diálogos
Bakhtinianos: Bakhtin no texto, na Literatura e na sala de aula. São Paulo: Porto de ideias.
2011.
BOARQUE, Chico. E GUERRA, Ruy. Calabar: o Elogio da Traição. 35ª Ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque : análise poético-musical. Rio de Janeiro: Codecri,
1982.
CEREJA, Willian Roberto e COCHAR, Thereza Magalhães. Panorama da Literatura
Portuguesa. 2ª Ed. São Paulo: Atual. 1997.
CODAX, Martim. Apud. MOISÉ, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São
Paulo: Cultrix. 1998.
FERNABDO, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação
Biblioteca Nacional, 2009.
FIORIN, José Luiz e PLATÃO, Francisco Savioli. Para entender o texto: leitura e redação.
São Paulo: Ática. 2001.
HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009..
MADDALUNO, Fernanda Bastos Moraes. A intertextualidade no teatro e outros ensaios.
Niterói: EDUFF, 1991
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª edição. São Paulo: Cultrix. 1999.
NAVES. Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. 2001
Nelson Campos e Jorge Hélio. História do Brasil. Ed. Lowes. Ceará, 1997.
TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de texto.
Petrópolis: Vozes. 2009.
ZAPPA, Regina. Para Seguir Minha Jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 681

VELOSO, Caetano. Literatura Comentada por Paulo francetti e Alcyr Pêcora. 3ª Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1990.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 682

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO ROMANCE-FOLHETIM O FILHO DO


PESCADOR, DE TEIXEIRA E SOUSA

Josy Kelly C. R. dos Santos


UFPB

O presente trabalho pretende analisar, sob o enfoque da representação da mulher, o


romance O Filho do Pescador, escrito pelo mulato Antônio Gonsalves Teixeira e Sousa.
Considerado o primeiro romance brasileiro por Aurélio Buarque de Holanda (1951), Antonio
Candido (1964) e Proença Filho (1997), O Filho do Pescador foi relegado das instâncias de
legitimação e do cânone brasileiro, e um dos motivos desse afastamento deve-se a maneira
audaciosa que o romancista Teixeira e Sousa buscou representar a mulher oitocentista, “[...] o
romance de Teixeira e Sousa não passava de uma sucessão de lances estrambólicos,
envolvendo as aventuras amorosas de Laura” (HOLANDA, 1951, nº 35).
Filho do comerciante português Manuel Gonçalves, e da mãe, mestiça, Ana Teixeira
de Jesus, Antônio Gonsalves Teixeira e Sousa (28/03/1812 – 01/12/1861) – mulato –
começou a estudar logo cedo, porém o menino teve seus estudos interrompidos em virtude
das condições econômicas da família. Vendo-se obrigado a trabalhar para ajudar em casa,
Teixeira e Sousa abandona sua cidade natal, Cabo Frio, para se dedicar e se aperfeiçoar na
profissão de carpinteiro na cidade do Rio de Janeiro. Após perder os cinco irmãos e, em
seguida, o pai, Teixeira e Sousa retorna a Cabo Frio no intuito de retomar os estudos cessados
enquanto criança.
Nesse espaço de tempo, Teixeira e Sousa se vê sozinho e com pouco dinheiro, então,
opta por voltar as terras cariocas onde conhece Paula Brito, livreiro, tipógrafo e redator do
jornal A marmota1. O jovem Teixeira e Sousa, que passa a trabalhar com Paula Brito, logo é
incentivado pelo amigo a compor seus primeiros escritos. Paralelo às letras, Teixeira e Sousa
exerceu outros trabalhos, como magistério, comerciante e escrivão, mas a sua vocação era
para as letras, o seu primeiro verso, segundo Proença Filho (1997, p. 10) foi o poema épico A
independência do Brasil (1847-55). Além desta produção poética, Teixeira e Sousa compôs
Canticos lyricos (1842), Os três dias de um noivado (1844), O cavaleiro teutônico ou A freira
de Mariemburg (1855), Cornélia (1840), bem como Tarde de um pintor ou As intrigas de um
jesuíta (1847), Gonzaga ou A conjuração de Tiradentes (1848-51), Maria ou A menina

1
Disponível no site: http://hemerotecadigital.bn.br/
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roubada (1852-53), A providência (1854), As fatalidades de dous jovens (1856) e O filho do


pescador (1843).
Apesar do seu apagamento na literatura nacional, Teixeira e Sousa foi um folhetinista
que escreveu sem se preocupar com a realidade ou com os aprimoramentos estilísticos
(TINHORÃO, 2000), publicando intensamente nos jornais da época, em especial no periódico
A marmota fluminense, cujo subtítulo era “jornal de modas e variedades”. Neste suporte,
constatamos a publicação diária do romance Maria ou A menina roubada, que circulou de
10/09/1852 a 18/02/1853 e ocupou lugar de destaque na primeira folha do jornal. Seis anos
depois da sua primeira publicação, o romance é reeditado pelo mesmo jornal no dia
04/10/1859, desta vez, a ficção foi divulgada no rodapé do periódico. Em uma breve
apresentação, o jornalista Paula Brito justifica a reprodução da obra dizendo que “não foi
possível imprimir, nessa occasião, em volume separado, esta bellissima composição do nosso
2
ingenhoso romancista e por isso o vamos agora reimprimir no nosso folhetim...” (A
MARMOTA, 1859, p. 01, sic). Ainda no jornal A marmota (1859), encontramos anúncios
referentes ao romance Maria ou A menina roubada.
Um ano depois, no dia 06/07/1860, encontramos outra publicação de Teixeira e Sousa
no periódico de Paula Brito, desta vez o romance histórico Gonzaga ou A Conjuração do
Tira-Dentes, de curta duração, a ficção teve sua última circulação no dia 30/10/1860,
ocupando, segundo o redator do jornal, quatro volumes da Marmota. Os textos que fazem
referência à produção de Teixeira e Sousa não se limitam a seção folhetim, pois é frequente a
publicação de anúncios que divulgam os seus poemas e romances no jornal, como acontece
com A Independência do Brasil (26/04/1859), Fatalidade de dous jovens (03/05/1859) e A
sorte (1851). Este último livro aparece, praticamente, em todos os anúncios que circularam
durante o ano de 1851 na Marmota. Já no jornal O Brasil, temos o anúncio de algumas obras
como Canticos lyricos (1842-43) e Os três dias de um noivado (1844).
A presença constante de Teixeira e Sousa nestes periódicos cariocas nos atenta para a
boa aceitação do autor no século XIX, mas, apesar do aceitamento, o romancista ficou
marcado pela história literária brasileira como um escritor menor, “[...] primeiro pela inegável
distância, em termos de valor, que o separa de todos, como Macedo, Alencar, Manuel
Antônio de Almeida, Bernardo Guimarães e Taunay; a outra diz respeito à situação do

2
Os fragmentos transcritos mantêm a grafia original, bem como eventuais erros tipográficos e ortográficos da
época.
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romance na fase inicial da cultura romântica” (BOSI, 1994, p. 102). Mas estas informações
não constam nas publicações que circularam no jornal A marmota. Observemos:

Pode-se dizer que não possuímos romances nacionaes! A excepção das


limitadas producções que nesse gênero devemos aos senhores Dr. Macedo,
Teixeira e Sousa e Alencar, não é desarrazoado de clarar-se, que nada mais
temos, e comquanto a Moreninha, o Moço Loiro, a Vicentina, as
Fatalidades, a Providência, o Guarany e a Visinha... (A MARMOTA,
07/05/1861, p. 02)

Neste breve trecho, nota-se que F. T. Leitão3 equipara os romances de Teixeira e


Sousa aos demais romancistas da época, mencionando, como exemplo de ficção nacional, a
obra Providência (1854), porém nos tempos atuais não se vê críticas nem estudos a seu
respeito. É notório que esta obra, como os demais romances de Teixeira e Sousa surgiram e se
desenvolveram num contexto específico e se estabeleceram em um lugar específico da
história – 1º metade do século XIX –, sendo esquecido nos séculos posteriores. Ainda neste
artigo de F. T. Leitão, constatamos quanto o crítico está insatisfeito com a forma como o
romance estava sendo explorado no Brasil, pois as narrativas brasileiras que aqui circulavam,
resumiam-se a Macedo, Teixeira e Sousa e Alencar.
De toda essa produção, Teixeira e Sousa conseguiu algum reconhecimento apenas com
a obra O filho do pescador. Considerado o primeiro romance brasileiro, foi publicado pela
primeira vez no jornal O Brasil, de 06/07/1843 a 22/08/1843, na seção folhetim; e,
posteriormente, foi reeditado no jornal A marmota, de 17/06/1859 a 20/09/1859, também na
seção folhetim. No número que antecede a publicação do romance na Marmota, Paula Brito
utilizou a tática do reclame para anunciar o sucesso da obra de Teixeira e Sousa em outra
época, garantindo assim um público numeroso, e ao mesmo tempo legitimando a leitura da
ficção para o público leitor. Vejamos:

O Filho do Pescador
Todo o publico conhece, tão bem como nós, o – Filho do Pescador – um dos
primeiros romances sahiados da fecunda imaginação do Snr. Teixeira e
Sousa (hoje escrivão do Juizo); romance tão procurado como desejado. Pois
bem, o vasio que existia entre nós, pela falta de exemplares d’essa
ingenhosaproducção, nós vamos agora preencher, fazendo uma nova edição
da que foi impressa em 1843 na nossa typographia.
Começaremos, portanto, a dar aos assignantes da Marmota, no
proximonumero, o mesmo folhetim que o periodicoBrasil deu aos seus, em
um dos mais bellosperiodos de sua não curta existencia.

3
No jornal A Marmota (RI), F. T. Leitão aparece como crítico e colaborador do periódico e, dentre seus escritos,
consta o artigo “Litteratura Patria – Romances Brasileiros”.
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Correcto pela mesma pena que o escreveu, é de esperar que o – Filho do


Pescador – seja tão feliz, em 1859, como o foi em 1842 e 1843. (A
MARMOTA, 14/07/1859, p. 01)

Apesar de ter passado dezesseis anos de uma edição para a outra, nada pode garantir
ao editor do jornal A marmota que o sucesso de O Filho do Pescador de 1859 seja o mesmo,
ou maior de quando circulou em 1843, pois estamos tratando de outro público, outro contexto,
enfim; mas vale salientar que essa circulação e troca de textos e de escritos entre os jornais era
uma prática muito comum à época, sendo esta uma das “táticas para cativar o leitor”
(BARBOSA, 2007, p. 51).
Outra tática utilizada no romance O Filho do Pescador diz respeito à inserção da
“carta de Emília” como uma espécie de “proêmio” para a obra. Nesta missiva, que abre o
romance, Teixeira e Sousa de maneira sucinta estabelece alguns protocolos de leitura
(CHARTIER, 2011, p. 20). Primeiro ele “esboça seu leitor ideal”; em seguida “define quais
devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto”, constatemos:

(...) Que tarefa! Um romance para uma senhora casada e mãe; para um
marido e pai, e enfim para dois jovens!...
Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto posso de moral,
para que vos sejam úteis; junto-lhes as belezas da literatura, para que vos
deleitem (O FILHO DO PESCADOR, 1997, p. 01).

Cumprindo seu papel de entreter e deleitar os leitores do século XIX, o romance de


Teixeira e Sousa levanta de forma aguçada o problema da correspondência entre a obra
literária e a realidade que imita, “conto-vos, pois, uma história, que me hão contado” (ibid).
Se a história é verídica ou não, isso pouco importa, pois o que percebemos no decorrer da
leitura da narrativa, é que o romance é movido único e exclusivamente pela finalidade
moralizadora, toda a obra gira em torna de uma mulher que ora é endeusada, ora é cruel e sem
escrúpulos. Para Candido (2002, p. 40), Teixeira e Sousa é um “[...] escritor de terceira
ordem, que apostou na peripécia e na mais desabalada complicação, ao modo dos livros de
aventura e mistério que eram então devorados pelo público”.
O romance O Filho do Pescador é dividido em vinte capítulos, todos antecipados por
uma epígrafe que contextualiza o leitor na história e, ao mesmo tempo, conduz o sentido da
leitura. Apesar de ser uma ficção rodeada por vários motes, este trabalho analisará apenas a
figura da mulher, ou seja, a forma como Teixeira e Sousa representou a figura feminina da
primeira metade do século XIX em sua obra.
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Representação da mulher em O Filho do Pescador

“O filho do pescador é um interessante romance-folhetim, com ação passada


no Rio de Janeiro, na cidade e, mais notadamente, em Copacabana, então um
bairro longínquo e despovoado. No centro da ação, uma mulher fatal, Maria
Laura. Mulher romanticamente senhora de rara beleza. No alvorecer da
adolescência, em torno dos treze anos, belamente sedutora, apaixona-se por
Sérgio, que mais tarde saberemos ser um mau-caráter e logo se vê arrebatada
por ele de seu primeiro lar e de sua mãe. A consequência desse
arrebatamento é, um ano depois, a gravidez e o nascimento de um filho. O
pai abandona então a indigitada genitora e leva o filho com ele. Laura,
imediatamente, seduz outro parceiro com quem foge, numa embarcação, na
perigosíssima travessia da baía de Guanabara, na direção do Rio. O destino
decreta o naufrágio. O amante morre. Laura consegue chegar próximo às
areias de Copa-Cabana. É salva por Augusto, filho de um pescador local. A
paixão à primeira vista é fulminante. Augusto se casa com Laura, contra as
advertências do pai preocupado com as vicissitudes do amor. O poder de
sedução da jovem é incontrolável: seguem-se amantes sucessivos, mortos
cada um pelo seu sucessor nas preferências da jovem” (PROENÇA FILHO,
1997, p. 30).

Na introdução do romance O Filho do Pescador, Proença Filho nos apresenta esse


breve resumo da obra. Percebe-se que Teixeira e Sousa desempenhou seu papel histórico
enquanto romancista, pois apesar de não ter praticamente modelos para seguir, o romancista
procurou e conseguiu ambientar o leitor na narrativa, nos mostrando que a história se passa na
cidade do Rio de Janeiro, e que todos os acontecimentos perpassam pela protagonista – Laura
– uma jovem moça, muito bonita, que é apresentada para o leitor logo no primeiro capítulo
como sendo uma viúva, “[...] pobre! Vítima da desgraça! Cercada da miséria, escapa a um
naufrágio” (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 06). Nos três primeiros capítulos há uma
representação de uma Laura doce, frágil, tímida, amorosa, pura, ou seja, características típicas
de uma moça do século XIX, cujo objetivo era cuidar da casa e da família. Segundo Freyre
(2008, p. 96), “[...] docilidade e mesmo acanhamento eram a principal graça de uma
sinhazinha [...]. A moça brasileira da década de 1850 tornava-se por vezes mestra dessa
delicadíssima arte, a timidez”.
Antes de analisarmos a representação literária da personagem Laura em O Filho do
Pescador, bem como o papel desempenhado pelo romance nesta prática representacional,
tomarei como base a noção de representação em consonância com Chartier (1991, p. 17):
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A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto


identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social e construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa
deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamental de percepção e de apreciação do real. Variáveis
consoantes as classes sociais ou os meios intelectuais são produzidas pelas
disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas
intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente
pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.

“As heroínas dos romances, portanto, funcionaram como paradigmas de feminilidade”


(VASCONCELOS, 2007, p. 133). Desse modo, as personagens femininas da época deveriam
ser vistas pelas leitoras como um modelo, ou seja, uma representação da mulher oitocentista a
ser seguida. Ainda conforme Antonio Cândido (2002, p. 41),

O que mais atraiu o leitor daquele tempo em matéria de romance parece ter
sido o de costumes, no qual ele encontrava a vida de todo o dia, sem prejuízo
dos lances romanescos que eram então indispensáveis. O brasileiro parecia
gostar de ver descritos os lugares, os hábitos, o tipo de gente cuja realidade
podia aferir, e que por isso lhe davam a sensação alentadora de que o seu
país podia ser promovido à esfera atraente da arte literária.

Além da representação da mulher, Teixeira e Sousa faz uma representação de


casamento que se opõe ao que era pregado no século XIX, ou seja, um casamento por
interesse. Del Priori (2012, p. 119) considera o casamento no período oitocentista como um
negócio tão sério que, “não envolvia gostos pessoais, ele se consolidava entre as elites. As
esposas eram escolhidas na mesma paróquia, família ou vizinhança. Ritos sociais
organizavam, então, o encontro de jovens casais que logo chegam ao casamento”. No capítulo
dois do romance, Augusto tem uma longa conversa com seu pai, este que é contra o
casamento do filho com a jovem Laura, na verdade, ele não quer que o filho se case com
mulher nenhuma. Augusto afirma a todo o momento que ama Laura e que quer se casar com
ela em nome desse sentimento, porém o seu pai argumenta que o casamento não é feito
apenas de amor e que ele não pode se casar com uma moça que ele não conhece e nem sabe a
procedência da sua família, além disso, o pai de Augusto enfatiza que o casamento não é
sinônimo de felicidade e que o amor com o tempo desaparece. Logo temos uma representação
dispare entre casamento e amor, no qual ambos caminham por estradas diferentes, o que não é
normal nos romances românticos do século XIX.
Nota-se no romance de Teixeira e Sousa, que a personagem até o momento do seu
casamento com Augusto, o filho do pescador, mantem um comportamento íntegro e
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admirável, porém após o casamento Laura já começa a apresentar marcas avessas a moral e
aos bons costumes. Vejamos:

Os desejos dessa mulher eram para ele leis imperiosas, às quais se


sacrificariam as mais absolutas necessidades! Prever os desejos de sua
mulher, satisfazê-los incontinenti, era para este bom dos bons maridos a
maior felicidade da terra! Laura, por sua parte, de um gênio nimiamente
ríspido, caprichosa, mal-educada, além e atrevida; pagava dignamente a seu
marido as dívidas que sobre seu coração, ou para melhor dizer, sobre sua
gratidão contraía todos os dias um tão estremecido amor! À princípio o seu
bom marido reputava os atrevimentos de sua mulher por belas vivacidades
de uma senhora de talento!... Sendo ela sobremaneira orgulhosa de seus
encantos, parecendo até não amar a seu marido, era sobremodo ousada em
seus desabridos ciúmes!... célebre contradição!
Às primeiras audácias de sua mulher, Augusto respondia com beijos
repudiados! Com abraços não correspondidos, e enfim com rejeitadas
carícias!... (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 36).

Em menos de um ano de casados, Laura já demonstrava ser uma moça tempestuosa,


interesseira e grosseira. Percebe-se que aquele modelo de mulher virtuosa e perfeita não
pertence à personagem, mas em se tratando de uma época em que tanto se falou em
moralidade o romancista Teixeira e Sousa estava arriscando, e muito, ao estabelecer como
personagem principal uma moça que não seguia, passo a passo, o manual de conduta moral
oitocentista. Ora amorosa, ora perspicaz Laura modifica seu humor em vários momentos da
história, este descompromisso em reproduzir a realidade no romance só foi possível, pois o
romancista mostrava-se preocupado, apenas, em retratar um romance moralista, ou seja, “[...]
Teixeira e Sousa não estava preocupado em aprofundar as contradições da vida de sua
estranha e maquinadora personagem Laura” (TINHORÃO, 2000, p. 57).
No quarto capítulo, quando a casa em que mora com seu marido Augusto pega fogo,
Laura se mostra uma mulher apaixonada e desesperada por saber que o seu “amor” está em
meio ao incêndio, “[...] Algumas pessoas se dirigiam a ela, e lhe perguntavam por seu marido.
Laura, como em um delírio, dizia tremendo, e cheia de uma horrível agitação: - Meu
marido!...” (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 29). Porém, no oitavo capítulo somos informados
pelo narrador que Laura não é esse anjo de candura que nos foi apresentado durante a
narrativa. Em um diálogo com o melhor amigo de Augusto, amante de Laura, ela confessa ter
sido abandonada pelo seu primeiro marido que fugiu com seu filho. Ao chegar ao Rio de
Janeiro, a moça se apresentou como viúva, mentindo que o marido havia morrido afogado por
falta de socorro. Após fingir a morte de um falso marido, a jovem casa-se com Augusto, que
sofrerá um atentado em sua própria casa a mando de Laura em colaboração com o amante,
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como não obteve êxito, a jovem então o matou envenenado. Laura confessa para Florindo, seu
cumplice e atual amante, todos esses crimes com muita frieza e desprezo, “[...] e em verdade o
sangue-frio com que esta mulher terrível acabava de proferir a última parte de seu discurso era
para horrorizar...” (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 54).
A mulher do século XIX “tinha de ser naturalmente frágil, agradável, boa mãe,
submissa e doce” (DEL PRIORI, 2012, p. 208), a paixão e o desejo por outros homens que
não fosse o marido, ou seja, o adultério era tido como uma doença, uma manifestação
histérica. Ainda de acordo com Del Priori (2012), no período oitocentista, os homens não
escondiam seus sentimentos, bem pelo contrário eles demonstravam o que Teixeira e Sousa
demonstrou muito bem no romance O Filho do Pescador, pois todos os homens com quem
Laura se envolvia, demonstravam amor, fidelidade e cumplicidade a jovem.
Em meio a tantos crimes, Laura conhece e se apaixona por Pedro, cujo pseudônimo é
Marcos. Assim como fez com os demais homens, a jovem enfeitiçou o rapaz, “Laura tinha
consciência do muito poder de seus encantos, o que obstava a mudança de seu coração!”
(TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 110). Ao ser chamada pelo antigo amante – Florindo – de
adúltera, e se sentindo ‘ameaçada’, Laura promete ficar com Marcos, seu atual homem, se ele
matar Florindo. Vale salientar que, no século XIX as mulheres adúlteras eram mal vistas pela
sociedade e, Teixeira e Sousa enfatiza isso no romance. Vejamos:

Podemos, pois, concluir que os crimes mais horrorosos em suas


consequências, por irremediáveis, são o homicídio, e o adultério! Entretanto
parece que nações existem que o têm considerado como uma passageira
galanteria de moços facetos, e de senhoras.
Todavia, o homicídio pode algumas vezes ser justificado pela defesa da
própria vida, da honra...
O adultério, porém, nunca será justificável; (TEIXEIRA E SOUSA, 2007, p.
59).

Apesar de ter cometido tantos delitos, e por várias vezes ter se mostrado como uma
moça cruel e vingativa, a representação de Laura é marcada por vários adjetivos que
funcionam como amenizadores, como – encantador sorriso, graciosa, formosa, anjo, bela etc.
De acordo com Vasconcelos (2007, p. 133),

Ao pôr a virtude de suas personagens à prova, mesmo que seja para


reafirmá-la, triunfante, ao final, excitam a imaginação do leitor e deixam vir
à tona o avesso da moral que proclamam, revelando a ‘sombra’ que esta
derivação do romanesco – o gótico – saberá tão bem encampar.
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Ao mesmo tempo em que Laura é representada como uma mulher de gênio infernal e
imprevisível, ela também pode ser um anjo; isso acontecerá de acordo com o momento e a
situação em que a jovem está inserida na narrativa, uma vez que o seu comportamento muda
em virtude dos seus interesses. Porém, a leitora que fantasia e que muitas vezes se coloca no
lugar da personagem, pode não entender que os crimes cometidos por Laura a levará ao
‘abismo’, ou seja, esse tipo de comportamento pode incitar as mulheres leitoras a uma
conduta inadequada, mesmo Teixeira e Sousa enfatizando a todo o momento o teor
moralizante de sua obra, como bem constatamos no prefácio da obra, nas epígrafes e no
capítulo nove, observemos:

Eu, pois, vos prometi, bela Emília, dar-vos uma história moral; é bem: sendo
assim, é justo que faça algumas reflexões sobre este desastroso passado que
acabastes de ouvir. À vista do quanto fica dito, difícil cosia, sem dúvida, é o
determinar qual destas duas criaturas, infinitamente criminosas, a mais
criminosa era (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 57).

Ao dirigir tais informações ao leitor, o romancista procura impor o sentido e a forma


correta como seu texto deve ser lido e interpretado. Sendo assim, Teixeira e Sousa tende “[...]
a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é
indicado, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja
que esteja” (CHARTIER, 2011, p. 97). Apesar de o romancista castigar a personagem Laura,
enviando-a para um convento, Teixeira e Sousa utiliza do discurso do filho da moça –
Emiliano – para justificar os erros e as más escolhas da jovem:

As mulheres na sociedade são sempre o que nós queremos que elas sejam,
visto sermos nós os diretores delas. Nós, pois, somos os seus originais; nós
lhe damos o tipo de suas ações; seus costumes são obra nossa; nós as
exemplificamos; nós dirigimos a sua conduta, porque somos os motores de
seu pensamento pelo que respeita à sociedade. O gênio de uma nação nada é
mais que uma idéia que representa as mais fortes e decididas inclinações da
nação; esta idéia pertence a todos os indivíduos dela, salvas algumas raras
modificações (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 138).

Logo, a partir do discurso final de Emiliano, o leitor percebe que Laura não tem culpa
da mulher adúltera e criminosa que ela se tornou, pelo contrário, a jovem, que agora recebe o
atributo de fraca, é fruto dos homens que conviveram com ela. Assim, temos múltiplas
representações de mulheres no romance de Teixeira e Sousa, segundo o romancista, todas
estas representações tem o intuito de moralizar. Ao retirar a culpa da mulher, e atribuí-la para
os homens, Teixeira e Sousa acaba contribuindo para que sua obra não permaneça na história
da literatura, tendo em vista que a sociedade do século XIX era estritamente patriarcal.
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Considerações Finais

O romancista Teixeira e Sousa, tido nos tempos atuais como um escritor


marginalizado ou esquecido pela história literária por não pertencer ao cânone brasileiro, teve
grande importância para o processo de formação e consolidação do gênero romance,
“justamente porque nos permite trazer à luz os elos esquecidos no processo de constituição do
gênero” (VASCONCELOS, 2007, p. 147).
Ademais, podemos observar que o primeiro romance brasileiro – O Filho do
Pescador– escrito por um romancista nacionalista e mulato, não retratou nenhuma
problemática ou temática negra. Apesar de conter personagens negros (escravos), Teixeira e
Sousa não faz nenhuma referência a tal assunto, pelo contrário, o autor da obra tende a
encaixar seus personagens em um padrão Europeu, ou seja, homens e mulheres de pele branca
e olhos azuis. Vale ressaltar que estamos tratando de uma obra em que o próprio romancista é
mulato, e este também pode ter sido um dos fatores que afastou Teixeira e Sousa da história
da literatura brasileira, pois temos poucos mulatos no cânone, basicamente Machado de Assis.
O que mais atraia os leitores do período oitocentista era os romances românticos de
costumes (CANDIDO, 2002), o descompromisso com a verossimilhança fazia com que o
público se imaginasse nas obras ficcionais, sendo este um dos papéis do romance, bem como
um dos traços característicos do Romantismo. Apesar de audacioso, podemos dizer que
Teixeira e Sousa obteve êxito, pelo menos no século XIX, com a obra O Filho do Pescador,
pois segundo o jornal A Marmota (1859) que publicou a narrativa, o romancista correspondeu
ao gosto do público ao moralizar o seu texto. “As relações entre romance e moralidade, tão
fortes no período de que nos ocupamos, podem ter levado os romancistas a se empenhar em
pôr o romance a serviço de uma causa que era exterior” (VASCONCELOS, 2007, p. 183).
O proêmio e as epígrafes presentes na obra, por exemplo, reiteravam infatigavelmente
os propósitos edificantes de Teixeira e Sousa em insistir na virtude imaculada da mulher
oitocentista. Apesar de ser uma narrativa de teor moralizante, Teixeira e Sousa rompeu com a
representação de mulher que se tem do século XIX, ao colocar como personagem principal
uma mulher inserida em uma sociedade patriarcal que comete os delitos e erros que Laura
cometeu, o romancista acaba por desfazer o parâmetro de referência familiar que atendesse
aos interesses da sociedade, ou seja, mulher fiel, doméstica e mãe, e homem trabalhador, que
trabalha o dia todo e sustenta a família.
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Referências

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históricas e teóricas. Porto Alegre: Nova Prova, 2007.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO, Antonio. Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas, 2005.
______. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. Vol. II.
______. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas/FFLCH/SP, 2002.
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estud. Av. [online]. 1991, vol.5, n.11, pp.
173-191. Disponível: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v5n11/v5n11a10.pdf>. Acessado em: 28
Maio 2014.
______. Práticas da leitura. 5ª Ed. São Paulo: estação Liberdade, 2011.
DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. São Paulo: Global,
2008.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Revista do Brasil. Rio de Janeiro, maio de 1951, ano IV, 3º
fase, nº 35.
SILVA. Hebe Cristina da. Considerações acerca da recepção de O Filho do Pescador.
Disponível em: <www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos>. Acesso em: 28 Maio
2014.
SOUSA, Antônio Gonsalves Teixeira e. O Filho do Pescador. Rio de Janeiro: Artium, 1997.
TINHORÃO, José Ramos. A música popular no romance brasileiro (vol. I: século XVIII e
XIX). São Paulo: Ed. 34, 2000.
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LITERARIEDADE E VISÃO DE MUNDO: A QUESTÃO DE FORMA E CONTEÚDO


EM LIMA BARRETO

Paulo Alves
Universidade Federal da Paraíba-UFPB

A questão da forma em literatura é um ponto que tem preocupado teóricos e críticos


desde Aristóteles até os nossos dias. Seguindo o movimento de um pêndulo as concepções
artístico-literárias têm-se alternado ao logo da história dando ênfase entre o realismo e o
subjetivismo, entre o imanentismo e o transcendentalismo, entre o formalismo e o
impressionismo. O formalismo que nas décadas de 60 a 80 do século XX pontificou no Brasil
como novidade criada pelos russos, nada, porém, era mais antigo do que esse método de
abordagem da arte. Foi o próprio Aristóteles, que abrindo sua Poética, escreveu: “Falemos da
natureza e espécies da poesia, [...] começando, como manda a natureza, pelas noções mais
elementares” (2005, p.19). Ou seja, falar da literatura nela mesma, sem preocupação com o
contexto nem com a vida de quem a escreveu. Assim, o formalismo, ideologias à parte, não é
um processo analítico elitista e excludente. Sua aplicação é que desandou em classista,
canônico e excludente. A proposta de Aristóteles é clara e simples: investigar a literatura
apenas sem influências externas. É claro que ele faz sua escolha e seleciona o que há de
melhor na literatura grega de então. Nem precisa dizer que elementos do contexto e da vida do
autor são importantes para entender melhor a obra e para o procedimento de certas análises.
Basta serem usados com equilíbrio. Mas a retomada do formalismo na versão russa chegou
em hora devida; pois em todo o século XIX a crítica e a teoria literárias foram dominadas pelo
historicismo e psicologismo impressionista, sobretudo em sua versão francesa.
Neste trabalho, desenvolveremos nossa proposta em três tópicos: no primeiro,
discutiremos a questão da forma a partir de alguns conceitos oriundos dos formalistas russos
especificamente Eikhenbaum e Chklovski. No segundo, nos centraremos sobre a proposta
literária de Lima Barreto, y compris forma e conteúdo, ao mesmo tempo em que
procederemos a análise de sua obra no que toca a relação desses dois elementos, à luz do
formalismo, buscando ver como este autor conseguiu equalizar forma e conteúdo, procurando
a forma que melhor se adequasse ao conteúdo que tencionava desenvolver e adaptando-a da


Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, sob a
orientação do Prof. Dr. Fabrício Possebon.
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melhor maneira. Num terceiro momento, veremos rapidamente, à guisa de conclusão, a


motivação e consequências desta opção formal do autor.
O formalismo uma proposta de abordagem artística

A proposta crítica do Formalismo, na versão russa, surge em 1916-17 com o grupo


conhecido como Opoiaz (Sociedade de Estudos da Linguagem Poética), que se estendeu até o
ano de 1930 quando foi dissolvido. Mas despontará no cenário literário mundial a partir de
1955, com o livro Russian Formalism publicado por Victor Erlich, apresentando ao mundo
esta nova forma de abordagem textual linguística e, sobretudo, literária. A proposta destes
teóricos era encontrar ou identificar uma linguagem poética para a literatura, uma linguagem
que se diferenciasse daquela cotidiana. Segundo Krystyna Pomorska, todos os métodos de
análises dos teóricos russos “têm um denominador comum: todos eles focalizam o produto em
si mesmo, não o processo ou a gênese desse produto; concentram-se sobre fatores estritamente
literários, artísticos ou linguísticos e não sobre aspectos que estão além da esfera do ‘texto’
em si”. E continua: “Especulam sobre um produto em contraposição a uma atividade ou às
condições do nascimento desse produto (circunstâncias ambientes, personalidade do criador a
assim por diante)” (1972, p.28, grifos da autora). Essa linguagem diferenciada da corrente era
o que constituía literatura em si, conferindo ao texto literariedade.
Só assim, seria possível proceder uma análise sobre um texto literário com um método
que oferecesse segurança nas conclusões porque científico, isto é, um método formal tais os
utilizados com as ciências naturais e exatas. Nas palavras de Eikhenbaum, “Estabelecíamos e
estabelecemos ainda como afirmação fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o
estudo das particularidades específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer
outra matéria, e isto independente de fato” (1971, p.08). Citando Roman Jakobson, o teórico
expõe de outra forma o objeto mesmo do projeto empreendido, isto é, da ciência criada. “O
objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literaturidade [literaturnost], ou seja, o que
faz de uma obra dada uma obra literária” (p.08). Nem que para isso eles, os formalistas,
tivessem que enfrentar dificuldades em relação aos teóricos e poetas vigentes no contexto de
então: “a ciência jornalística composta pela teoria simbolista e pelos métodos da crítica
impressionista” (p.07). Dada esta configuração intelectual da época, afirma Eikhenbaum:
“Entramos em conflito com os simbolistas por arrancar-lhes das mãos a poética, liberá-la de
suas teorias de subjetivismo estético e conduzi-la rumo aos estudos científicos dos fatos”
(p.07). Eikhenbaum fala de uma realidade que todos o trabalham com literatura,
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especialmente com a teoria desta, conhecem muito bem. A história e teoria literárias eram
desenvolvidas segundo os moldes do autobiografismo, realizando uma crítica literária
impressionista, em que o plano sociológico e filosófico eram a concepção aplicada a literatura
o que mudará radicalmente com os formalistas que o texto é o objeto investigado em si
mesmo com a linguagem sendo o único aspecto considerado relevante e capaz de fazer
compreender o texto. Para isso, a linguagem fora analisada, dissecada mesmo à exaustão.
Na nova concepção, a linguagem tornou-se a senha de acesso à obra literária,
porquanto ela passou a ter nova importância nos domínios literários e, assim a linguagem
literária constituía-se um ser diferente daquela cotidiana dada ao vulgo. Esta era
automatizada, aquela, desautomatizada, era produzida ad hoc com sentido aditivado e
controlado para determinado efeito. O que para Chklovski era uma língua cheia de
particularidades conformando um discurso poeticamente singular (p.53).
Basicamente o que sugerem os formalistas russos sobre a cisão entre língua literária e
língua cotidiana é intermediado pelo que eles denominam de desautomatização. “A arte é
compreendida com um meio de destruir o automatismo perceptivo, a imagem não procura nos
facilitar a compreensão do sentido, mas criar uma percepção particular do objeto, busca a
criação de sua visão e não de seu reconhecimento”. E concluir afirmando: “Daqui deriva a
ligação habitual da imagem com a singularidade” (Eikhenbaum, p.14-5). Tanto imagem
quanto singularidade são conceitos importantes para o formalismo, no que toca à imagem, o
artigo de Chklovski, “A arte como procedimento”, aborda esta questão de maneira precisa,
postulando que sem a forma de comunicação imagética não há arte, essa pois é a forma
fenomênica da arte. Inicialmente parodia Potebnia, afirmando que “Arte é pensar com
imagem [...] Não existe arte e particularmente poesia sem imagem”. Em seguida, ele mesmo
afirma: “A poesia é uma maneira particular de pensar, a saber um pensamento por imagens;
essa maneira traz uma certa economia de energias mentais, uma ‘sensação de leveza relativa’,
e o sentimento estético não passa de um reflexo desta economia” (p.39). Isso, afirma ele,
pelas razões apresentadas logo a seguir: “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como
visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização
do objeto e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a
duração da percepção” (p.45). Isso tudo porque “para desenvolver a sensação de vida, para
sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama de arte” (p.45). Para
essa turma, arte é condição para que haja vida, sensação do entorno e certeza do
conhecimento produzindo e/ou adquirido.
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Em se tratando de particularidade, um dos excertos acima traz informação explícita.


Primeiro diz textualmente: “sem imagem não há arte e há uma habitual ligação da imagem
com a singularidade”, noutro excerto afirma: “o procedimento da arte é o procedimento da
singularização do objeto”. No primeiro, coloca arte e singularidade como elementos de
estreita relação entre si; no segundo, evolui para uma condição sine qua non da singularidade
para que exista a arte. Essa pedra de toque, que o formalismo enfatiza, não é exclusividade da
arte formalista, mas da ontologia da arte mesma. Cada obra de arte é e sempre foi única. E a
característica mais intrínseca da unicidade é a singularidade. Por esse ângulo, a Eneida não é
igual ao Dom Quixote, que não se confunde à Divina Comédia, e nenhum desses são similares
de Memórias póstumas de Brás Cubas, Triste fim de Policarpo Quaresma ou Vidas Secas.
Talvez os partidários do biografismo, do psicologismo impressionista não tivessem tão claro
assim esse aspecto da arte em si; assim, cada obra e, sendo mais radical cada capítulo de uma
obra, requer uma compreensão própria, uma interpretação específica.
Na compreensão dos formalistas russos, desautomatização da linguagem, que constitui
uma língua poética, em relação ao seu oposto a língua automatizada, isto é, a língua prosaica
usada vulgarmente no cotidiano, é o que faz a diferenciação de um texto literário dos outros
tipos de texto, conferindo-lhe a característica da literariedade e estabelecendo acima dos
demais tipos de produção textual. Contudo, Chklovski afirma que “A imagem, o símbolo, não
constitui o que distingue a língua poética da língua prosaica (quotidiana)”. Para ele a distinção
encontra-se noutro patamar. “A língua poética difere da língua prosaica pelo caráter
perceptível de sua construção. Podemos perceber seja o aspecto acústico, seja o aspecto
articulatório, seja o aspecto semântico. Às vezes, não é a construção, mas a combinação de
palavras, a sua disposição que é perceptível” (p.15). Então, a literariedade, elemento
qualificador do texto como literário e, conceito que para nós se mostra plausível, é gerador de
controvérsia e a exemplo de outro conceito literário, mimesis, cria muita dissenção, mal-
entendidos. Para muitos, essa caraterística não existe stricto sensu, sequer há literatura. Terry
Eagleton problematiza o conceito de literatura pelo viés mesmo da literariedade e chega à
conclusão que assim insiste ou se reduz a literatura à poesia ou se tem sérias dificuldades para
definir o objeto literatura. “Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. É possível,
por exemplo, defini-la como escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção – escrita esta que não
é literalmente verídica...” (1983, p.1).
Como visto, para que haja literariedade é necessário que haja linguagem
desautomatizada, que causa no leitor o estranhamento necessário à percepção de que não se lê
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um texto prosaico. Forçoso é admitir que essa proposta dos formalistas cobre apenas o
literário enquanto poético. Esse estranhamento linguístico ocorre com frequência na poesia.
Não é possível afirmar que eles tiveram essa intenção, se tinham clareza dessa limitação, pode
se dizer, ou se nem se deram conta. Em Aristóteles, fica claro que em seu conceito de mimesis
está contido, como literário, apenas o poético “...do número e natureza das partes e bem assim
da demais matéria dessa pesquisa [...] A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o
ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo” (2005, p.19).
Para se obter o efeito da literariedade na prosa é mister considerar o todo da obra, é
recorrendo ao efeito artístico do todo da obra que se percebe se tratar de um conjunto
simbólico e formal literário. Pois apesar de um romance ter, por vezes, relações muito
estreitas com o referente social para dar o tom de mimético, ao mesmo tempo, ele apresenta
estranhez, que lhe conferindo singularidade diferencia-o da realidade, inclusive linguística. A
obra de arte constitui-se um mundo à parte do mundo que representa, como tal, não se pode
confundi-la com outros mundos: nem o da realidade social nem o da realidade ficcional. Bem
diferente é o universo poético. Grande parte de um poema ou mesmo o texto inteiro é envolto
numa atmosfera de extranheza, isto é, literariedade.
Por exemplo, os excertos que se seguem. “//Deus saiu pedalando sua bicicleta/ Pra
olhar melhor o que se passa nas esquinas/ Deus não entendeu nada/ Quando viu uma mulher
comendo coisas no lixo/ E um homem vendendo água/ (...)/ Deus largou a bicicleta/ Pegou
um foguete/ E voltou pra casa//” (Miró)1. Este poema, “Não esqueça da minha caloi” (sic),
apesar de estar calcado nos fatos da vida e constituir-se uma desconcertante crítica social,
traz como marca poética, a desautomação linguística, causando grande estranhez: o Deus
cristão andando de bicicleta e se surpreendendo como qualquer mortal. Ou neste outro
clássico exemplo de Cruz e Sousa, retirado do poema “Marche aux flambeau”. “//Essa marcha
a final penetrará aos urros,/ Titânica, sinistra e bêbeda, irrisória,/ Num caos de pontapés,
coices, vaias e murros,/ Na eterna bacanal ridícula da História.//” (2000, p.423). Todo o
poema, não só este excerto, consiste numa crítica ácida à sociedade da época, mas
textualmente é desautomatizado, apenas em situações bem restrita e extrema é que se usaria
esse discurso para descrever pessoas; e o autor se refere a pessoas, porquanto no último verso
três termos denunciam: “bacanal”, “ridícula”, “História”. Esses termos aplicam-se apenas a

1
Miró. “Não esqueça da minha caloi”. Poema disponível em: https://pt-
br.facebook.com/AgenciaBetonico/posts/160090847415928. Acessado em: 09/10/2014.
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pessoas, e aqui (as pessoas) são apresentadas pelo poeta como bestas em avançado estágio de
descontrole.

A narrativa barretiana entre a forma e o conteúdo

Segundo Lukács, diferentemente do que conclui Bakhtin, a evolução do romance se dá


a partir da epopeia e ocorre seguindo as transformações da própria sociedade. Esta teoria põe
a literatura e as artes em geral em consonância com a sociedade. De forma que, cada
sociedade produz formas literárias distintas de acordo às suas metamorfoses internas. Grosso
modo, a epopeia corresponde e dá sentido a um mundo organizado e estruturado sob as ordens
de um ser superior, isto é, Deus; ao passo que com a dessacralização da sociedade surge o
romance, correspondendo ao mundo fragmentado e imanente, carente de totalidade. “Epopeia
e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções
configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a
configuração”. E continua: “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade
extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade” (2000, p.55).
O mundo epopeico conserva o conceito de um sujeito solar, integrado, total,
opostamente ao sujeito vigente no mundo romanceiro que é fragmentado, ilhado em si
mesmo, singularizado por suas próprias limitações. O mundo retratado pela epopeia conserva
o que depois caracterizará o pensamento de Platão: harmonia, cada coisa ocupa seu devido
lugar. Ele é, portanto, um mundo fechado, estruturado e explicado, enquanto mundo, em si
mesmo, porque comunga da essência divina. Assim, o indivíduo torna-se total, porque,
enquanto singular, só tem importância integrado à universalidade.

“Totalidade do ser só é possível quando tudo é homogêneo, antes de ser


envolvido pelas formas; quando as formas não são uma coerção, mas
somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como
vaga aspiração, no interior daquilo a que se devia dar forma; quando o saber
é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidência o sentido
do mundo” (Lukács, 2000, p.31).

O mundo romanesco é bem outro. Nele não há a pretensão da sociedade perfeita,


porque é um mundo dessacralizado, isto é, destituído da presença divina; assim, torna-se um
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mundo imanente, desprovido de sentido externo. Qualquer tentativa de sentido deve ser
buscada ou construída internamente. É como se seguisse a linha de Nietsche: seja seu próprio
salvador, porque outro não há. Essas duas linhas seguem o homem nas duas concepções de
mundo, respectivamente, como visto acima.
Como na epopeia o herói é íntegro, inteiro, representante de toda uma sociedade,
porque assim era constituído, como exemplo que ilustra, farol que ilumina, e aponta o
caminho; no romance ocorre o inverso. No universo romanesco, o herói debate-se só com seu
destino, não representa ninguém, salvo a si mesmo e aos seus problemas. “Neste mundo a
totalidade é fragmentária ou almejada” (p.60), nunca conseguida e completa. O herói
romanesco não é exemplar, pode ter o efeito catártico para o leitor ou expectador, mas se se
aplicar o termo exemplo, em relação a ele, seria o exemplo a não ser seguido. “O romance é a
epopeia do mundo abandonado por Deus”; por isso “a psicologia do herói romanesco é a
demoníaca”, ou problemática (p.89).
Se se aplica essa teoria à obra de Lima Barreto, percebe-se que o escritor carioca
estava plenamente dentro da melhor tradição romanesca. A grande maioria dos seus
personagens é tomada por problemas e trilha um caminho envolto nas brumas da incerteza. E
todos seus protagonistas e antagonistas são ilhados, solitários, isolados num universo sem ter
a quem recorrer, isto é, num mundo sem Deus que possa salvá-los. Esse insulamento ocorre
das mais variadas formas: geograficamente, por inadaptação ao meio, por incompetência e
inaptidão de se integrar ao grupo de que faz parte, por não encontrar quem comungue das
mesmas ideias, por experimentar um drama que a ninguém interesse, ou por viver imerso num
segredo que a ninguém possa revelar. Seus grandes personagens todos sofrem desse mal.
Lima Barreto tinha objetivos claros em relação a sua literatura. Ele tinha bom
conhecimento prático e teórico da literatura, mas como era um autodidata, creio que ele nem
viu teorias de como se compor um personagem de romance. Por essa época, A teoria do
romance de Lukács nem imaginava-se existir. Esse livro fora escrito em 1914-15 e publicado
apenas em 1920, em Berlim e traduzido para o português somente em 1965. Quando o autor
de Policarpo Quaresma encerra sua obra em 1922, com a redação de Clara dos Anjos. Sua
obra, sua técnica, seu estilo, se assim se pode dizer, foram muito intuitiva e necessária. Sua
técnica de escrita, que alguns chamam de estilo, era simples, direta e eficiente; buscava ter
função expressa na sociedade. Como afirma Sevcneko, consistia em “captar um máximo de
realidade e compô-lo com um mínimo de ficção” (1983, p.200), porque literatura para ele não
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significava “o sorriso da sociedade”, como escreveu Afrânio Peixoto, mas militância, luta
contra a corrupção das elites em favor dos deserdados.
Motivo pelo qual queria uma literatura próxima ao referente, com pontos claros de
convergências e arcabouço alegórico que pudesse ser aplicado a várias situações semelhantes,
que pudesse chegar à memória do leitor, sem se confundir com fatos reais específicos. Para
tal, o texto deveria ser de fácil compreensão, como ele trata disso tanto em textos ficcionais
como em artigos e crônicas. Falando pela boca da personagem Isaías Caminha diz: “Se me
esforço por fazê-lo literário [um livro que escrevia] é para que ele possa ser lido, pois quero
falar [...] ao espírito geral e no seu interesse, com linguagem acessível a ele. É este é o meu
propósito”. E mais à frente: “mas, não é a ambição literária que me move o procurar esse dom
misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a
opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo” (IC, 1961, p.120)2.
Utilizando-se da personagem Gonzaga de Sá, prorrompe de forma impetuosa: “Se eu pudesse,
[...] se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao
meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor de violência, de força, de coragem calculada,
que lhe corrigisse a bondade e a doçura deprimente” (GS, 1956, p. 134).
Mas, num artigo datado de 31 de agosto de 1916, respondendo a uma carta anônima,
que lhe fazia reparos ao seu Policarpo Quaresma, expõe não sua concepção de literatura, mas
sua função que correspondia ao seu objetivo. Afirma ele: “Não desejamos mais uma literatura
contemplativa [...] não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em
deuses para sempre mortos”. E continua: “Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma
literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu [...] O meu
correspondente acusa-me também de empregar processos do jornalismo nos meus romances,
principalmente no primeiro”. E prossegue explicando a forma de sua literatura porque visava
a objetivos específicos.

Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo


vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se dê o contrário, não lhes
vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para
comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os
motivos de desinteligência entre os homens que me cercam (HS, 1956, p.34).

2
As obras de Lima Barreto, utilizadas neste trabalho, serão citadas por iniciais que a identificam, para não criar
confusão pelo fato de a maioria ter o mesmo ano de publicação. Assim: BG=Bagatelas; CRI e
CRII=Correspondência Vols. I e II; GS=Vida e morte de MJ Gonzaga de Sá; HS=Histórias e Sonhos;
IC=Recordações do escrivão Isaías Caminha; IL=Impressões de Leitura; MG=Marginália; VU=Vida Urbana.
As mesmas citações trarão o ano de publicação da obra apenas na primeira vez que forem citadas, a partir de
então, serão fornecidas somente as iniciais da obra e página.
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Num texto que escrevera para ser uma palestra e que não chegou a apresentá-lo, criticando
Coelho Neto, Afrânio Peixoto e companhia que se queriam puros estetas e viviam embebidos
de imagens da Grécia antiga ele rebate.

Mesmo que a Grécia – o que não é verdade – tivesse por ideal de arte
realizar unicamente a beleza plástica, esse ideal não podia ser o nosso,
porque, com o acúmulo de ideias que trouxe o tempo, com as descobertas
modernas que alargaram o mundo e a consciência do homem, e outros
fatores mais, o destino da Literatura e da Arte deixou de ser unicamente a
beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser cousa muito diversa (IL,
1956, p.64).

Continuando suas considerações sobre o ser da literatura, que, de acordo com o tipo de
conteúdo, define a natureza da forma, Lima Barreto afirma que a literatura tem um destino. “E
o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de poucos a
todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina” (IL, p.68). Em carta a
Albertina Berta, datada de 31 de dezembro de 1916, parafraseia Carlyle afirmando, “Minha
senhora, a literatura é um perpétuo sacerdócio, diz Carlyle, desde que li isso, eu não me sento
na minha modesta mesa para escrever sem que pense não só em mim, mas também nos
outros” (CRI, 1956, p.284). Essa expressão, ele usa repetidas vezes em sua obra, era uma
concepção que lhe agradava. Se se tiver que extrair uma concepção de literatura barretiana,
não seria a de passatempo ou de pura estética formalista, mas sim de militante e
transformadora da sociedade. Vale ressaltar ainda que para este autor a literatura em si tomava
status de personagem animado como se fosse uma prosopopeia, tanto no texto “O destino da
Literatura”, como em outros artigos seus, inclusive o termo é grafado com maiúscula.
Então, definido o ser da literatura e posto o seu objetivo, como tinha desde sempre, o
conteúdo a ser desenvolvido, Lima tratou de procurar uma forma que comportasse a sua
literatura, tarefa pesada que o indispôs com todo um grupo de figurões autores e críticos
literários, segundo suas palavras “o mandarinato das letras”. Nem que para isso tivesse que
alterar a linguagem, a narrativa, o léxico, a sintaxe etc, de forma que seus textos não seguiam
o academismo reinante. Findou por criar um estilo literário mais moderno que o Modernismo,
que viria anos mais tarde. Nas palavras de Alfredo Bosi, “As realidades sociais e morais, isto
é, o conteúdo pré-romanesco [...] não parece de nenhum modo forçado a ilustrar inclinações
puramente subjetivas. O resultado é um estilo ao mesmo tempo realista e intencional, cujo
limite inferior é a crônica”. E enfatiza:
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Nos romances de Lima Barreto, há, sem dúvida, muito de crônica:


ambientes, cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida burocrática, às
vezes só mencionados ou esboçados, naquela linguagem fluente e
desambiciosa que se sói atribuir ao gênero. O tributo que o romancista pagou
ao jornalista [aliás, ao bom jornalista] foi considerável: mas a prosa de ficção
em língua portuguesa, em maré de conformismo e academismo, só veio a
lucrar com essa descida de tom, que permitiu à realidade entrar sem
máscaras no texto literário (1973, p.95).

Aliás, Lima era nada afeito à linguagem empolada e luxuriante vigente à época nem a
gramatiquices. Em carta a Jaime Adour, datada de 30 de março de 1919, considera que essa
questão de toillete literária é coisa de mesquinho. “Aqui, no Rio, já não há mais essa
preocupação boba de ‘escolas’ e a tal tolice de estilo, no ponto de vista do falecido Artur
Dias, que só julga isto o escrever à moda de Rui; será enterrada com o Coelho Neto”. E joga a
pá de cal: “Ainda há o óleo de rícino da colocação dos pronomes, mas desta questão só se
preocupam os ratés e despeitados” (CRII, 1956, p.160). A julgar por essa e outras passagens,
Lima Barreto não atribuía o menor valor a um escritor que cultivasse a forma pela forma com
os únicos objetivos plásticos e estéticos. E a excessiva preocupação com a gramática
implicava essa superficialidade quase frívola, que merecia total desprezo do escritor. Como
noutra carta, a Lucilo Varejão, datada de 18 de fevereiro de 1921, o autor diz: “Meu caro
Lucilo [...] Digo-te uma coisa: eu temo tanto esses clássicos e sabedores de gramática como a
qualquer toco de pau podre por aí” (CRII, p.226). Essa definição dos gramáticos fala por si só.
Considerando essas escolhas e definições de Lima em sua obra, percebe-se que ele
praticara algo que décadas mais tarde Antonio Candido veio a teorizar. Diz o tarimbado
crítico: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra”. E conclui: “Sabemos, ainda, que o externo [no caso, o social]
importam não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na construção da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (2000, p.4, grifos do
autor). Assim é que funciona forma e conteúdo na obra barretiana: uma unidade, exatamente
como afirma Yuri Tynianov. Para o teórico russo a relação forma x conteúdo não funciona
como a relação conteúdo x continente, especialmente no tocante aos líquidos que tomam a
forma do recipiente. “A unidade da obra não é uma entidade simétrica e fechada, mas uma
integridade dinâmica que tem seu próprio desenvolvimento; seus elementos não são ligados
por um sinal de igualdade e de adição, mas por um sinal dinâmico de correlação e de
integração”. Desse modo: “A forma da obra literária deve ser assentida como uma forma
dinâmica”. E conclui: “Mas, se a sensação de interação dos fatores desaparece [e ela supõe a
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presença necessária de dois elementos, o subordinante e o subordinado] o fato artístico apaga-


se; a arte torna-se automatismo” (1971, p.102-3). Segundo essa concepção artística, não é
possível apontar onde está a forma e onde, o conteúdo, separa-os apenas para efeito didático
de compreensão, mas ao construir uma obra artística forma e conteúdo constitui-se um todo
coeso. Como na obra barretiana.
Assim, como forma de expressão escolheu uma linguagem direta, sincera, despojada,
despretensiosa. E essa linguagem contém o próprio conteúdo. Com efeito, comunicava sem
rebuço, sem enfeite de palavras pomposas, sem sinuosidade, de modo direto, com objetivo de
informar para conscientizar. Por isso, não utilizava fantasias: a linguagem expõe mais a
verdade quando mais simples e transparente. E essa linguagem despojada mostrava-se
próxima do povo simples, para quem ele escrevia, não praticava presunção como seus
coetâneos que escreviam para seus pares ou para iniciados aos “mistérios” da literatura, de má
qualidade por sinal. Sua literatura, ao menos do meio para o fim de sua produção, não tinha
mais a pretensão de invadir os salões, de ser lida e comentada pela gente chic “botafogana”,
tampouco acalentava a ilusão de com ela obter sinecura ou vantagens próprias. Então, essa
meta-forma de realizar sua arte fazia parte da forma escolhida para apresentar seu conteúdo.
Assim, explica-se sua escolha de literatura através da negativa. “O Senhor Neto quer fazer
constar ao público brasileiro que literatura é escrever bonito, fazer brindes de sobremesa, para
satisfação dos ricaços”. Depois ele apresenta as implicações da verdadeira literatura, isto é, a
que ele escolheu: “Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não
rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos” (IL, p. 190-1).
O autor opta pelo romance não muito longo, aliás como vários outros grandes
escritores brasileiros, por exemplo: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector;
isso demonstra que os grandes romances não precisam serem romances grandes, para mostrar
o contrário Jorge Amado está de prova. Esta escolha pelo romance curto e pelo conto em
menor proporção aponta sua opção em consonância com o conteúdo em função do objetivo de
comunicar às massas; por ser de leitura mais rápida e, pela opção da linguagem direta, de fácil
compreensão. O romance como visto em Lukács é o espaço de expor o mundo dessacralizado,
habitado pelo herói problemático representando o mundo em que vivia o autor e o povo a
quem ele queria despertar, para que enxergasse e transformasse esse mundo; o conto segue
aproximadamente essa mesma máxima. Exemplos de contos dessa comunicação ligeira são
“O homem que sabia Javanês”, “Cló”, “O filho da Gabriela” e “Clara dos Anjos”, este depois
tornado romance.
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A opção pelo artigo e pela crônica jornalísticos tem um apelo mais popular e mais
imediato ainda. Além de ser uma ajuda no seu ganha-pão, abordavam diretamente os
problemas sociais e políticos, que afetavam as pessoas, dando voz muitas vezes aos anseios,
desejos e necessidades populares, sendo ao mesmo tempo de mais fácil leitura e assimilação.
Outra escolha formal nesta mesma linha são as sátiras em que ele discorre gostosamente, de
maneira cortante, sobre os problemas sociais, os vícios políticos, imbecilidades dos figurões
poderosos e manias do povo, este formato de texto se encontra em Os Bruzundangas e Coisas
do reino do Jambon, e em alguns contos, sem falar na sua produção jornalística. Eis um
exemplo de vício da sociedade: “É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem. Todas as almas e
corpos são arrebatados [...] Os cofres das repartições e dos bancos sangram... as inteligências
trabalham, as imaginações associam elementos para estelionatos, peculatos e concussões...”
(GS, p.104). Segue-se uma outra passagem que chama a atenção para a parvoíce dos ditos
homens cultos. Os que conversam, segundo o narrador, são de classe abastada, que afetam
serem cultos: “O mais moço então perguntou, olhando os fios de transmissão elétrica: –
Porque será que os passarinhos tocam nos fios e não são fulminados? – É que de dia a
comunicação está fechada” (GS, p.111).
Já a escolha do léxico e da linguagem em tom menor é o que mais se destaca em sua
obra e a que maior tributo lhe exigiu. O vocabulário carregado de termos pouco usual na
literatura vigente, sentenças incisivas, por vezes, agressivas, mas revelando a verdade contida
na sociedade de então, segundo sua visão. Um pouco catártico pelo lado do escritor, mas,
sobretudo, empenho de narrar e representar a “tragédia” que gira de forma endêmica a
sociedade brasileira e que se abate sobre os pobres. “Quando saio da casa e vou à esquina da
Estrada Real de Santa Cruz, esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por esse Rio de
Janeiro” (MG, 1956, p.90). E mais: “Há centenas de pessoas que não têm um palmo de terra
para fincar quatro paus e erguer um rancho de sapê” (BG, 1956, p.90). Períodos curtos para
maior agilidade na leitura e facilidade na compreensão da mensagem é outra escolha do
escritor sempre procurando ajudar na “digestão” de suas ideias naqueles que o lessem.
Como uma das coisas que dificultam a apropriação intelectual de um texto é o
hipérbato, isto é, a inversão da ordem das palavras, ele primava, geralmente pela ordem direta
na frase. Como o hipérbato é uma figura de linguagem que embeleza o discurso e demonstra a
maestria do escritor sobre a língua, e não estando Lima Barreto preocupado com esses
recursos e tipos de penduricalhos da linguagem, ele agia de forma oposta, tanto porque seu
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objetivo literário era o maior número de leitores e uma maior compreensão, para transformara
o pensar do leitor e assim transformar a sociedade.
Ainda uma outra escolha formal na construção de sua obra é a ironia, essa, perpassa
toda a sua obra, seja a ficcional seja a de ocasião, seja ainda a de motivação íntima. Isso
quando não desanda em sátira ou sarcasmo. Contudo, suas sátiras, seguindo o que afirma os
teóricos, são plenas de poesia, lembremo-nos do Policarpo Quaresma, em que se mistura
tragédia e comédia com ironia, sátira e poesia, resultando em momentos alternados de riso e
lágrima. Mas também há de se fazer jus ao Gonzaga de Sá, sua obra mais equilibrada
humanamente, cerebrino, no seu dizer, muito irônico e o mais poético dos seus romances. No
trecho que se seguem, há ironia, crítica, poesia e tragédia.

[Gonzaga de Sá] Nada me dizia; pouco depois, porém, passamos diante de


um casarão brutal. Gonzaga me perguntou, apontando o convento de Santa
Teresa: – Sabes quem mora ali? – Freiras. – Mora também um conde, e creio
que princesas. – Mortas? – Sim, mortos! Vês lá o sinal da morte? – Não, está
sorridente e alegre. – E este casarão ali? – Está aqui, está desabando. –
Morto, não é? Sabes porque? Porque não guarda nenhum morto.
Continuamos a subir. Ao chegar ao jardim de sua casa, que olhava para a
Lapa, para a Glória, para a Armação, para Niterói, contemplou o mar
insondável, abaixou-se para colher uma flor que me oferecera, mas caiu, e
morreu (GS, p.42-3).

Motivação e escolha de um estilo ou à guisa de conclusão

A motivação para a escolha de uma forma ou de vários elementos formais, criando o


que alguns identificariam como estilo, como já foi visto, parte de sua visão de literatura e do
que ele entendia como função literária, corroborado, é claro, com sua visão de mundo. citando
Taine afirma: “A obra de arte tem por função dizer o que os simples fatos não dizem” (IL,
p.73). Não percebendo arte como um passatempo ele alçou a literatura à categoria de tribuna,
de onde se anuncia, denuncia, proclama conquistas e cobra atitudes probas a quem de direito.
Era assim quando ele defendia os pobres da carestia (inflação) que os fazia passar fome,
levando-os a trilharem caminhos não ortodoxos; nem que para isso o autor tivesse que
esbravejar na imprensa contra ministros de Estado e outros figurões da sociedade. Era assim
quando denunciava abusos de poder dos ministros chefe do Itamaraty, exigindo que tivessem
lisura com a coisa pública. Era assim quando denunciava o genocídio perpetrado por ninguém
menos que o Presidente da República (Rodrigues Alves), clamando por justiça em favor dos
protestadores contra a Revolta da Vacina, que foram arbitrariamente presos, torturados e os
que não morreram, foram deportados para o Acre, para lá se finarem da maneira mais
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ignominiosa. Era assim quando denunciava uxoricídios e toda a sorte de assassinatos contra as
mulheres, exigindo, contra a cultura corrente oficial e social, que punissem os assassinos.
Talvez, por isso mesmo, ele afirme: “Minha vida há de ser um protesto eterno contra todas as
injustiças” (VU, 1956, p.140). Assim, a forma em Lima Barreto não tinha outra função a não
ser adequar-se ao conteúdo e veiculá-lo, fazendo-o atraente e eficiente, para atingir o maior
número de pessoas, conscientizando-as e levando-as a agirem transformando a sociedade em
mais humana.

Referências

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BARRETO, Lima. Bagatelas. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
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______. Impressões de Leitura. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
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MIGUEL-PEREIRA, Miguel. Lima Barreto. In. ______. Escritos da maturidade. Rio de
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A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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Página 707

POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
SOUSA, Cruz e. Obras Completas. Org. de Andrade Murici. 2. reimp. Rio de Janeiro: Nova
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TYNIANOV, J. A noção de construção. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da
Literatura: formalistas russos. Editora Globo, 1971. p.99-103.
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A ILUSÃO DE UM SUJEITO: AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS ENTRE


ENUNCIADOR E ENUNCIATÁRIO

Thiago da Silva Almeida


Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

Introdução

A razão fundamental deste trabalho funda-se na discussão a respeito das relações


intersubjetivas presentes no soneto “Ilusão”, do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Para o
desenvolvimento das análises, será utilizada a teoria semiótica desenvolvida pelo lituano A. J.
Greimas e dela serão destacadas, especificamente, as intervenções argumentativas entre o
enunciador e o enunciatário, categorias da sintaxe discursiva.
O soneto escolhido compõe o acervo poético de Augusto, enquadrado em seus Poemas
esquecidos, trata-se de uma produção que escapa a linguagem científica que predomina no
“Eu”, mas que conserva o tom pessimista sobretudo por sua influência em Schopenhauer.
A terminologia utilizada por Greimas elenca categorias que estão na ordem do
discurso, uma delas é a de sujeito, cuja significância vai além da noção de participante da
comunicação. A noção de sujeito prevê, em suas próprias fronteiras, um outro sujeito que
tanto pode estar situado num plano sintagmático, isto é, na materialidade textual ou plano
paradigmático, ou seja, na virtualidade. Portanto, este sujeito, na estrutura semiótica do
discurso, contrai as categorias de enunciador e enunciatário, em que o primeiro executa um
fazer-persuasivo e o segundo, um fazer-interpretativo. O processo desta interação traduz o
jogo de relações argumentativas em que sujeito enunciador tentará manipular, ou persuadir o
sujeito enunciatário. Segundo esta reflexão, acredita-se que o uso da terminologia sobre a
qual se insere a categoria eu-lírico prevê apenas a voz poética, restringindo-se a ela. Porém,
no soneto escolhido, traz marcas que projetam os tipos de sujeitos acima expostos, como tu
que, pelo seu caráter de dêitico pessoal, dialoga com as justificativas teóricas apontadas.
Com base nestas proposições, será verificado se o enunciador ao projetar o
enunciatário, ele se dirige para si mesmo, num diálogo reflexivo, mesmo projetando um “tu”,
ou realmente existe outro sujeito que de fato está lá para persuadi-lo.
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Teoria Greimasiana

A teoria semiótica de vertente francesa ou greimasiana é a ciência que se empenha


com o estudo da significação. Esta se define como a relação de dependência entre o plano do
conteúdo e o plano da expressão no interior do texto. Greimas entendeu a significação como
um percurso gerativo que dá investimento semântico às ações dos sujeitos e, para tanto,
trabalha com três níveis de análise. Estes vão do mais superficial ao mais profundo e que são
denominados: Estrutura fundamental, Estruturas narrativas e Estruturas discursivas. Os dois
primeiros níveis dispõem de dois componentes: um sintático e outro semântico, que são
categorizadas em sintaxe narrativa, semântica narrativa, sintaxe discursiva e semântica
discursiva.
A estrutura profunda ou nível fundamental é o patamar que elenca as categorias
semânticas que estão em oposição no texto. A organização fundamental é representada,
espacialmente, através de um octógono semiótico onde são definidas as relações de
contrariedade, de contraditoriedade e de implicação do texto.
As estruturas narrativas elencam uma sintaxe e uma semântica. A sintaxe narrativa
compreende o percurso de um Sujeito em busca de seu Objeto de valor, sendo impelido por
outro actante, o Destinador, podendo ter ou não um auxiliar positivo, o adjuvante, e o auxiliar
negativo, o oponente. O sujeito é o actante sintático cuja existência semiótica é pressuposta
pela presença ou existência de outro actante, que é seu objeto de valor.
O destinador é o actante narrativo responsável pela transmissão e circulação dos
valores modais, exerce um fazer sobre o sujeito, qualifica-o para a ação e com ele estabelece
um contrato. Ou, ainda, o destinador “exerce um fazer visando provocar o fazer do sujeito”
(COURTÉS, 1979, p. 32). A partir dessa definição, infere-se que o destinador tem a função de
manipulador do sujeito, exercendo um fazer persuasivo. O destinador pode, inclusive,
manifestar-se a partir de um ente que se encontra no próprio sujeito e, neste caso,
manifestando-se uma autodestinação.
O destinatário é o actante narrativo que recebe a competência para fazer, ou seja, nele
são investidas todas as qualificações propiciadas pelo destinador. O destinatário exerce o
papel de manipulado e, consequentemente, opera um fazer interpretativo, podendo aceitar ou
recusar a relação contratual e ainda ser sancionado positivamente ou negativamente pelo
destinador.
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O adjuvante é o actante narrativo que tem o papel auxiliar o sujeito, facilitando sua
busca. De modo contrário, o oponente tanto pode ser ele mesmo um incômodo como gerar
obstáculos para o sujeito, impedindo-o de realizar seu objetivo.
Opondo-se ao sujeito, tem-se o antissujeito que é o actante sintático que disputa com o
sujeito o mesmo objeto de valor ou cujo objeto-valor se opõe ao do sujeito. Este actante, da
mesma forma que o seu oposto, permite acionar mais dois outros actantes: o antidestinador,
que é seu destinador e o antidestinatário, que estabelece uma relação contratual com o
antidestinador.
O sujeito e o objeto se apresentam numa relação transitiva, que pode ser de natureza
conjuntiva ou disjuntiva. A partir disso, diferenciam-se os enunciados conjuntivos (sujeito
tem posse do objeto) dos enunciados disjuntivos (sujeito não obtém o valor desejado), que são
generalizados sob um eixo categorial denominado enunciado de estado.
Há ainda os enunciados de fazer que dizem respeito às transformações ocorridas na
narrativa e operadas pelo sujeito do fazer. Este fazer transformador é o resultado das ações
que o sujeito executa e que o põe em conjunção ou em disjunção com o objeto almejado.
A semântica do nível narrativo é o estudo das modalizações que estão na construção
dos valores disseminados na narrativa e também “determina a modalidade assumida pelo
sujeito no seu percurso em busca do valor” (BATISTA, 2009, p. 3).
São, portanto, cinco os tipos de predicados modais: querer, dever, saber, poder e crer.
Estes regem outros predicados de base que são o ser e o fazer. Da combinação dos predicados
modais com os predicados de base resulta na formação de predicados complexos: querer-ser,
querer-fazer, dever-ser, dever-saber, saber-ser, poder-ser, poder-fazer, crer-ser, crer-fazer.
Pelo exposto, vê-se que existem dois tipos de modalização: uma do ser e outra do
fazer. A primeira diz respeito ao predicado do ser que é chamada modalização do ser ou
modalização veridictória que incide nos enunciados conjuntivos e nos enunciados disjuntivos,
modificando, assim, as relações do sujeito com o objeto de valor. A outra modalização está
vinculada ao predicado do fazer e incide sobre a ação do sujeito que transforma o mundo.
A competência é a fase em que são atribuídos valores modais ao sujeito da ação. Neste
sentido, a competência do o sujeito realizador é constituída de um poder e/ou um saber. Esta
fase pressupõe a o seguinte, a performance, que é a fase em que ocorre a transformação
essencial da narrativa mediada por um fazer. É aqui que o sujeito entra em conjunto ou
disjunto do seu objeto de valor. Se a desempenho se realizou, então se tem a última fase do
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percurso, a sanção, que compreende as punições e recompensas destinadas aos atores


envolvidos na narrativa.
O percurso narrativo do sujeito é composto de uma estrutura complexa compreendida
de quatro fases conhecidas como manipulação, competência, performance e sanção. Cada um
dos actantes explanados acima é passível de se manifestar nestes estágios e sua ausência é
inteiramente justificável.
A discursivização tem a característica de ser o patamar mais superficial em relação
aos outros níveis de significação, pois as relações são manifestadas na superfície do texto.
Aqui, o sujeito do discurso adquire voz e, por meio do discurso-enunciado, escolhe os temas,
as figuras, os atores, o tempo e o espaço discursivos. Portanto, o discurso é a unidade máxima
onde se manifestam, no plano do conteúdo, categorias temporais, espaciais, argumentativas,
temáticas e figurativas.
O nível discursivo é também constituído de dois componentes: sintaxe discursiva e
semântica discursiva. Cabe à sintaxe do nível discursivo analisar as relações intersubjetivas
entre enunciador e enunciatário, os efeitos de realidade ou referente e os efeitos de
proximidade e distanciamento produzidos pela enunciação.
Nas relações intersubjetivas, ocorridas entre enunciador e enunciatário, o enunciador
executa um fazer persuasivo, levando-o ao enunciatário, que executa um fazer interpretativo,
do que está sendo dito. Neste fazer persuasivo, o enunciador utiliza dois procedimentos para
tentar manipular o enunciatário: os efeitos de realidade e os de proximidade e distanciamento.
No entender de BARROS (1999, p.61), os procedimentos de referência à realidade são:
actorialização, que é a constituição das pessoas do discurso; a espacialização, a constituição
do espaço e a temporalização, constituição do tempo.
A actorialização é o processo em que se dá a escolha do ator, que é uma entidade
discursiva que cumpre papéis actanciais e, além disso, exerce uma função social a qual
denominamos papel temático; a espacialização se refere ao lugar propriamente dito e a
percepção que os Sujeitos têm desse espaço. Deve-se levar em consideração o contexto
sociocultural e o espaço discursivo que o emissor e o receptor vivem; a temporalização diz
respeito à percepção que os Sujeitos têm em relação ao tempo cronológico, englobando o
tempo histórico, o momento de duração do discurso e o próprio tempo textual produzido pelo
discurso.
A semântica do nível discursivo compreende os percursos temáticos e figurativos do
enunciado, também chamados de procedimentos de tematização e figurativização.
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A figurativização é o procedimento semântico através do qual os percursos temáticos


são revestidos pelas figuras, que são conteúdos concretos do mundo natural e, como os temas,
selecionam componentes do léxico da língua.

“A figurativização consiste em transformar em figuras de superfície as


figuras do plano do conteúdo, utilizando-se a nomenclatura proposta por
Hjelmslev (...). A tematização inicia-se pela identificação dos traços
semânticos pertinentes ao discurso e neles reiterados, podendo-se colocá-las
em sequência pela ordem em que aparecem no texto”. (BATISTA, 2001,
p.3-4)

A tematização é o procedimento pelo qual o sujeito da narrativa dissemina, sob a


forma de temas, os valores inerentes a si mesmo quanto os que foram obtidos. A tematização
pode ainda incidir na figura do sujeito a partir do seu papel temático, que é a sua função social
no discurso. Quando um determinado agente, humano ou antropomorfizado, desempenha um
papel actancial no discurso e, ao mesmo tempo, possui uma dada função social, este indivíduo
é reconhecido, em semântica discursiva, como um Ator.

Análise do Corpus

O enunciador começa seu discurso estabelecendo um diálogo com outro sujeito, o seu
enunciatário, marcado pela desinência do verbo: -s, em dizes. Este não toma a palavra no
discurso, porém o acesso às suas percepções se dá através dos sentimentos do enunciador. Em
relação a este último, os primeiros indícios de seu estado de ser se constroem a partir de
proposições de aspecto breves e que sustentam a aparência de um ser lacônico, introspectivo,
além de estabelecer o tom melancólico do poema:

Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes/ Tudo que sentes.

O procedimento que esse sujeito utiliza para convencer o tu implicado no discurso é


assumindo a veracidade da frase “Não mentes”. Assim, o sujeito assegura um primeiro estado
em relação ao enunciatário: o de conformismo. Mas este sentimento não se anuncia como
verdadeiro, trata-se de um estado do ser dado pela aparência, isto é, o sujeito pretende mostrar
que essa felicidade não ultrapassa as fronteiras da percepção do enunciatário: trata-se apenas
da imagem que este constrói do enunciador. Ou seja, para o sujeito da enunciação, a
concepção que o outro tem de si não passa de simples sensação, de uma aparência do espírito,
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pois o enunciador não está envolvido com felicidade alguma. Sendo assim, não se trata de sua
verdade, mas da verdade do enunciatário.
Portanto, em “não mentes”, essa possível mentira não tem a pretensão de afirmar uma
possível felicidade, pelo contrário, se configura como uma verdade que respeita apenas os
sentidos do enunciatário e não do enunciador. Esta mesma ideia, poderia ser parafraseada
como sendo: “não mentes para ti que sou feliz”. Ao isentá-lo deste estado, o enunciatário
afirma a sua completa infelicidade, argumentando que:

A infelicidade/ Parece às vezes com a felicidade./ E os infelizes mostram ser


felizes!

para mostrar que os indivíduos, além de serem sempre iludidos de que são felizes, assumem
uma postura falsa diante de si e dos outros. Trata-se de uma maneira de enxergar o ser
humano a partir de relações interiores que são transmitidas na aparência. Ao aceitar tal
condição, o ser se afirma no estado de infelicidade, o que poderia pensar que isto seria um
elemento disfórico para o sujeito, o que é exatamente o contrário, pois, como a completude do
ser é garantida através deste sentimento de infelicidade, esta passa a ser um fator positivo para
o enunciador, ou seja, um valor eufórico.
Não se sabe em que período histórico se encontra este sujeito, apenas tem-se a
convicção de que todo o soneto é construído no tempo presente que corriqueiramente se diz
que é o tempo da certeza. Como a intenção não é analisar o tempo e o espaço do soneto, neste
caso, em particular, será preciso apontar porque o enunciador transporta-se para o período da
antiguidade egípcia, a fim de estabelecer que relação se edifica entre este tempo e o aspecto
pelo qual o sujeito se encontra.
A remissão a um tempo tão antigo tem a função de mostrar primeiramente o aspecto
contínuo durante o qual o sentimento da infelicidade perdura, a sua permanência no sujeito,
visto que o mesmo não acredita em um estado de felicidade entre os homens.
Segundo, é mencionada Isis, deusa da mitologia egípcia que, além de muitas virtudes,
se caracterizava também por possuir a “felicidade perfeita1”. E este dado não é à toa, devido à
concatenação com a temática abordada, pois o enunciador, tendo a liberdade de citar qualquer
outro deus, preferiu esta para dialogar com sua condição atual. Tem-se, portanto, as escolhas
feitas pelo enunciador enquanto mecanismo de persuasão: enquanto a deusa, símbolo da
imortalidade, possui uma felicidade plena; o mortal, em sua limitação, é desprovido de
qualquer felicidade.
1
Cf. http://www.ocultura.org.br/index.php/%C3%8Dsis
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A múmia de um herói, cuja heroicidade é reconhecida pelas cicatrizes que carrega, é


uma figura que servirá de comparação à figura do enunciador que tentará estabelecer a
persuasão através de um paralelo hierárquico, na qual ele é apenas um ser mundano, sem
perspectiva alguma, unilateral, mas ao mesmo tempo se constrói na relação com o outro: o
herói egípcio, que carrega um aspecto plural no seu ser, reconhecido pelos seus feitos e
batalhas estampados nas cicatrizes, para ele símbolo da eternidade. Ora, a intenção precípua
do enunciador é mostrar que o guerreiro está sujeito a uma vida ilusória, mesmo com todas as
suas conquistas e proezas que o colocariam sob um status de ser imortal. Em outras palavras,
o enunciador operar um fazer-persuasivo a fim de justificar que não existe a felicidade plena
entre os mortais, se comparado a condição da deusa Isis.

Quem vê o herói, inda com o braço altivo


Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo
E, persuadido fica do que diz...

Percebe-se que o herói egípcio se identifica, do ponto de vista gramatical, como o ele,
a não-pessoa que Benveniste (1989 p.101) se referia. Enquanto as relações argumentativas se
dão por meio de um eu para um tu, o ele instaurado no discurso não participa do processo de
persuasão e, no entanto, a recorrência ao ele, pode ser interpretado como um mecanismo de
defesa do enunciador para que o seu argumento não seja refutado.

Bem como tu, que nessa crença infinda


Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz!

Nestes versos, o enunciador conclui comparando a crença do enunciatário àquela


projetada no herói egípcio. Percebe-se que o enunciador encara o valor do enunciatário como
algo dogmático: “crença infinda”. Traduzindo a certeza por parte do enunciatário de que o
sujeito enunciador possui felicidade. Os dois últimos versos confirmam o que se abordou no
início destas considerações: que a ideia de felicidade está apenas na concepção de tu, e não do
eu. Mais uma vez repete-se uma proposição de ordem paradoxal: “Feliz me viste no Passado”,
“Te persuades de que sou feliz!” que funciona como uma ironia, para mostrar que este sujeito
nunca conheceu a felicidade, e que o enunciatário está enganado ao achar que o enunciador a
possui.

Conclusões
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Em todo o soneto, verifica-se o constante jogo de persuasão entre os dois sujeitos,


apesar de que a única voz presente é a do eu. No entanto, há uma dupla sensação de que o tu
inscrito no discurso pode se apresentar tanto ausente como presente no diálogo com o eu,
podendo este último até mesmo está falando consigo mesmo, estabelecendo um conflito
interno em que o sujeito ora afirma a felicidade, ora a nega.
As pesquisas em semiótica greimasiana aplicadas em texto poéticos ainda se
encontram em estágio de desenvolvimento. Nesta abordagem foi priorizada a apenas as
relações argumentativas entre os sujeitos que compreendem apenas um momento do percurso
gerativo da significação: a sintaxe discursiva. Porém esta compreende, ainda, estudos
referentes ao espaço e tempo da enunciação, fatores que, mesmo levantados timidamente, não
puderam ser totalmente excluídos durante a análise, pois o próprio soneto exigia abordá-los.

Referências

ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José,1963.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
BATISTA, M. F. B. M. O percurso gerativo da significação. Revista do GELNE (UFC),
Fortaleza, v. 3, 2001.
BATISTA, M. F. B. M. Semiótica e cultura: valores em circulação na literatura popular.
Manaus: Anais da 61ª Reunião Anual da SBPC, 2009.
BENVENISTE. Émile. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães
et al. Campinas: Pontes, 1989.
COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria
Almedina, 1979.
GREIMAS, A.J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Tradução de Ana Cristina Cruz Cezar
[e outros]. Petrópolis: Vozes, 1975.

Anexos

Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes


Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!
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Assim, em Tebas - a tumbal cidade,


A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!

Quem vê o herói, inda com o braço altivo,


Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...

Bem como tu, que nessa crença infinda


Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz!
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A POÉTICA DE MANOEL DE BARROS: DESVENDANDO A LINGUAGEM COM


PERCURSOS DA ECOLINGUÍSTICA E DA POLÍTICA LINGUÍSTICA

Vânia Maria de Vasconcelos


UFPB

A crítica, que só recentemente reconheceu a poesia de Manoel de Barros1, passou a


tratá-la como poesia imagética, poesia do devir, poesia paradoxal, poesia ecológica, entre
outros tantos adjetivos. Na verdade as referências têm todas o seu lado, vamos discutir aqui
algumas dessas passagens e desvendar a verdadeira linguagem poética de Manoel de Barros.
Numa abordagem linguística, Olga de Sá (1997: 11) diz que a poesia de Manoel de
Barros prefere romper com os padrões gramaticais, gozando de total liberdade em suas
construções. Afirma que o poeta constrói paradoxos como forma de brincar com a linguagem,
errando a língua depois de conhecer bem seus usos corretos, mas sem perder o uso da razão.
Essa perspectiva linguística, em nosso entendimento, pode ser atribuída a um senso de
política pois, na verdade, o que o poeta procura defender, mesmo que de forma velada, é o
direito de se aplicar uma linguagem, que fuja aos padrões de prestígio da sociedade, para ser
livre, uma poética contestadora do discurso oficial como única forma de expressão,
provocando, assim o distúrbio linguístico como criação. Conforme podemos ver em O
Guardador de águas:

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.


Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-lo até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
(GA, 63)

O que compreendemos como política linguística, refere-se a uma teoria que se aplica
às questões de planificação. De acordo com Kloss (1969), é preciso fazer uma distinção entre
a planificação do corpus e planificação do status. A primeira diz respeito às intervenções na
forma da língua (criação de uma escrita, neologismos), já a segunda refere-se às intervenções
nas funções de uma língua como status social diante de outras. Haugen (1983) adepto de

1
. In. Orelha do Livro: Retrato do Artista Quando Coisa. De Barros (1998).
2
“Minha poesia só se tornou conhecida quando Millor Fernandes a indicou para ser lida” (declaração dada pelo
próprio poeta em entrevista que nos concedeu).
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Kloss, adota as noções de status e corpus para distinguir a forma da língua (planificação
linguística) da função (cultura da língua). E Fasold (1984) estabelece sete funções
linguísticas: oficial, nacionalista, de grupo, veicular, internacional, escolar e religiosa.
Savedra e Lagares (2012) nos apontam para a relação de subordinação entre os dois conceitos
aqui apresentados:

Política linguística é definida como sendo a determinação de grandes


escolhas relativas às relações entre línguas e determinadas sociedades e
planificação linguística como a política linguística posta em prática,
representando um ato de autoridade.
(SAVEDRA e LAGOS, 2012: 12)

De outra parte, recorrendo ao estilo literário, Castro (1991) defende que Manoel de
Barros é único em sua obra, não merecendo, uma vez que sua obra não aceita, qualquer rótulo
de classificação que force a natureza de sua liberdade sob argumentos de características
comuns. Se esta poesia merece o reconhecimento da crítica, manter-se-á como
individualidade artístico-poética dentro de suas características. Sua obra individualiza-o,
identifica-o, como portador de um universo e de uma dicção poética originais que lhe
alicerçam a perenidade, conforme segue a afirmação:

Manoel de Barros é poeta lírico da liberdade, roubando a expressão de


Bachelard, o poeta da liberdade pura e do encantamento que, comungando
com todo o devir, com os animais, com os pássaros, com as coisas, expressa
a liberdade concreta e material em tantas metáforas, tais como caramujo-
flor, beija flor de rodas vermelhas, alicate cremoso, imitador de Auroras, o
homem de lata... é o artista que, mediante a palavra, constrói com o
material que está à mão o esplendor do universo que vê, contempla e
descortina-nos, para além da grandeza do pantanal, a grandeza da vida.
Colhe no silêncio da palavra o brilho da existência, que torna concreto no
verso, no poema.
(Castro, 1991: 17)

Castro (op. cit) entende, ainda, que as publicações barrenses podem ser divididas em
três períodos: primeiro, que compreende as três primeiras obras Poemas concebidos sem
pecado (1937), Face Imóvel (1942), e Poesias (1956), as quais representam o início de um
caminho poético, com características de uma poesia de vanguarda  com verso funcional,
liberdade formal, técnicas surrealistas  que se utiliza do poema-retrato e do poema-crônica
para retratar a vida pacata da cidade de Corumbá do início do século e de personagens que
conheceu na infância; já o segundo, com o surgimento de outras três grandes obras,
Compêndio para uso dos pássaros (1961), Gramática Expositiva do Chão (1969) e Matéria
de Poesia (1974) significa um marco, no qual o poeta se aprofunda na descoberta de sua
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poética, fixando-se nas coisas, nos pássaros, no chão e no vasto mundo vegetal; e o terceiro
que, como conseqüência, refere-se a uma inovação constante, por uma poética de
desvelamento de novas perspectivas, sem deixar de lado o pantanal, tornando-se, assim,
universal, compreendida nos livros: Arranjos para Assobio (1982), Livro de Pré-coisas
(1985), O Guardador de Águas (1989) e Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave (1991).
Analisa estas obras a partir da utilização da hermenêutica heideggeriana, por considerá-la apta
para interpretar um pensar autêntico, original como o do poeta Manoel de Barros.
Pelas citações ao conjunto da obra de Manoel de Barros, já em Castro, podemos
verificar as impressões imagéticas de uma paisagem ecológica nessa poética, o ciclo natural
da vida salta de cada obra. Nesse viés, recomendamos as entrevistas do próprio poeta que
rejeita todo e qualquer rótulo de poesia ecológica.
A questão não é rotular porque a poesia é livre de tendências, que podem representar
ciladas ao processo criativo, no sentido de não se dobrar à produção por encomenda, por
exemplo.
Entretanto, as marcas de discurso do natural e, ao mesmo tempo, combativo às normas
vigentes revela-se na poesia de Manoel de Barros como linguagem inaugural, como o próprio
poeta revela também em O guardador de águas:

Um novo estágio seria que os entes já transformados


Falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
Edênica, inaugural.
Que os poetas aprenderiam  desde que voltassem
Às crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? (...)
(Idem, 64)

O que deixa visível a intenção transformadora da linguagem como ruptura e


transcendência. Tal relação da linguagem com a transformação aponta-nos mais uma vez para
a questão política, mais especificamente nos estudos contemporâneos da ecolinguística, como
sugere Cáccamo:

Precisamos de um paradigma ecolinguístico desde onde pudermos re-situar


a diversidade da fala como instrumento mediador ao serviço do sujeito no
seu esforço histórico transformador do ambiente eco-social... Cumpre, por
uma parte, uma compreensão e avaliação crítica das táticas e sistemas
locais de troco ecolinguístico, isto é dos ‘domínios’ da sociolinguística
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clássica mais a dimensão de produção material e social que acompanha a


própria produção do signo.
(CÁCCAMO, 1997: 89)

É nessa mesma linha de pensamento que Silva (1998) faz uma leitura da obra de
Manoel de Barros a partir de parâmetros colhidos nas filosofias religiosas do extremo oriente
(o budismo e o taoísmo), confrontando os textos por meio de feixes temáticos, os quais
podem ser comparados analogicamente com o pensamento oriental como preferência pelos
cenários bucólicos, harmonização com o cosmos, aprendizagem como processo de abdicação
das coisas inúteis, concepção do homem como único elemento de desarmonia na Natureza,
caráter religioso do relacionamento com os elementos naturais, e a busca de uma linguagem
que não comprometa a relação direta com a realidade, uma vez que caracteriza a obra de
Manoel de Barros como uma busca às mais primitivas conexões entre a palavra e a realidade,
as quais proporcionam ao homem uma consciência de seu papel de estar no Universo.
Marques (2000) demonstra que a ordinariedade apresenta-se na poesia de Manoel de
Barros de forma coerente entre o que é temazidado e como isto é materializado no código
verbal: tanto a partir dos temas que sugerem o homem ordinário, aquele que é socialmente
marginalizado (bêbados, loucos, velhos insanos), ao lado das coisas que o circundam (latas,
pregos enferrujados); quanto por meio da linguagem da oralidade, distinta do conceito de fala,
correspondendo ao que Benveniste chama de l’oral tâtomont, como ocorrência de um discurso
de titubeios, que está na língua escrita espontânea. Esta linguagem está presente na poesia
contemporânea. Ao lado dessa análise, aponta o discurso poético de Manoel de Barros como
um discurso crítico, e até contestador da sociedade.
Dado o exposto, percebemos que os autores acima apontam características comuns da
poesia de Manoel de Barros, quando se referem à questão da oposição aos padrões da norma,
da utilização de paradoxos e subversões nessa obra de arte que retrata a realidade local (o
pantanal). Bem como, no tocante à originalidade e busca do novo, do que é inaugural na
linguagem poética. E que, a nosso ver, configura-se numa busca metalinguística pela criação
de uma nova poética.
Como vemos, também, apesar do hermetismo, também apontado por outros críticos, e
do reconhecimento tardio da crítica, a poética de Manoel de Barros vem sendo alvo de muitos
estudos com abordagens linguística e discursiva. O que só vem contribuir para a divulgação
de uma poética que se firma no cenário nacional e se harmoniza com o natural, a partir de um
veio filosófico, sociológico, erótico, psicológico, religioso, e que, acima de tudo, foge da
mesmice, da formalidade, rompendo com o sistema linguístico, estético e social.
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Em Santaella (1992: 185), encontramos as referências a Sevcenko a respeito das obras


literárias e artísticas, em nossa historicidade, as quais são marcadas pelo seu ‘potencial
desestabilizador’, na ‘mobilidade imprevisível com que o artista estreita a vinculação,
inelutável, entre a arte e os quadros de valores’. Em seguida, a autora cita Barthes que criou
no âmbito da Literatura, uma teoria não teorizável: o texto, concebido por deslizamento ou
inversão das categorias tradicionais de obra. O texto literário é subvertor, paradoxal, dilatório,
plural, passagem, travessia, disseminador, tecido, rede, jogo, gozo, prazer sem separação.
Ainda indica que Cage chegou a declarar que a arte é um ato criminoso. Não obedece a
regras, nem às suas próprias.
Neste sentido, acreditamos que em se tratando de análise literária o que se pode fazer é
uma delimitação de espaços específicos em um mesmo país, ou seja, um mapeamento que
reúna não só tipos convergentes quanto ao estilo, mas também que se harmonizem a partir de
lugares e espaços. Na literatura brasileira atualmente há aqueles que pertencem ao
concretismo, como Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari; os
experimentalistas; e os que são tidos como poetas marginais; ainda, os poetas de temáticas
feministas; e mais uma série de outros poetas, que é difícil classificar, pois não temos
perspectiva histórica.
Manoel de Barros é, por assim dizer, o poeta da descoberta primeira da linguagem que
não se preocupa com os pré-requisitos da gramática. Como exemplo das construções
gramaticais inusitadas do tipo: Nem folha se move de árvore, neologismos como
desacontecem, apodrecente, desemendar, paradoxos ou inversões de ordem sintática e
semântica do tipo Quando o mundo abandonar o meu olho / Quando o silêncio que grita de
meu olho não for mais escutado. Escolhas gramaticais transformadoras que se ligam ao tema
existencial e natural que se revela nessa poesia, e que, portanto, reivindicam o lugar da
palavra poética no ecossistema.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que


empoema os sentidos das palavras
Aflora uma linguagem de desfloramentos, um
Inauguramento de falas.
(GA, 1998; 62)

Empoema e inauguramento são neologismos criados para marcar a poesia


reivindicatória de seu espaço como primeira a expressar dessa forma, ou seja, como original e
fiel ao seu lugar, no seu estado puro, que não sai ao encontro do outro, mas que se deixa
encontrar como tal, sem artifícios de língua oficial.
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Nesse aspecto observamos que Manoel de Barros é comparado apenas ao estilo em


prosa de Guimarães Rosa, que também monta uma linguagem própria, ou melhor, segundo as
palavras de Manoel de Barros “dobra a linguagem” ao seu jeito, sendo esta característica que
ressalta nos dois autores, como responde o nosso poeta em entrevista ao ser comparado ao
escritor mineiro.
Por outro lado, são reconhecidos os esforços no sentido de se consolidar uma literatura
ecológica, conforme podemos ver, por meio de Silva (1998: 79), em Gary Snyder e outros
escritores americanos que demostram possuir características comuns, que, na realidade,
resumem-se numa influência religiosa particularmente o budismo que busca uma integração
de todos os seres no universo. Apesar disso, Manoel de Barros não se restringe ao tema,
prefere defender a forma trazendo a Natureza para sua poesia a partir de sua própria
experiência que transcende a realidade, pelo menos como a conhecemos. Transcendência esta
que se insere numa interação entre o ser vegetal, e seres pequenos como os insetos e o poeta,
que sugere uma poesia da transmutação, quer a partir de temas, quer a partir da própria
materialização da linguagem poética. Desta forma, o fenômeno é o tema dessa poesia e a
linguagem é mesmo uma metáfora desta manifestação do ser em comunhão com o universo
que o circunda, seja a partir de influência religiosa ou não. Daí também se explicar a
preferência do poeta por utilizar quase sempre o recurso metalinguístico que é a forma que o
poeta usa para explicar o próprio código, posto que não é costumeiro para o leitor fazer estes
tipos de metamorfoses.
Uma outra breve análise dos poemas de Manoel de Barros a partir da abordagem
linguística e semiótica dos discursos poéticos, podemos verificar as passagens ecolinguísticas
que se configuram numa política linguística, como ilustra o conceito de poesia por Manoel de
Barros:

Poesia é quando a tarde está competente para


Dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando o trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
(LI, 1993:13)

Percebemos no poema que a propriedade semântica irrompe as possibilidades da


língua no que tange às noções de aceitabilidade e restrição do verbo na personificação de a
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tarde está competente e o dia dorme, bem como o trevo assume a noite, e ainda o homem faz
sua primeira lagartixa e o sapo engole as auroras.
Enfim, toda poesia de Manoel de Barros é marcada por essa oposição à norma, ao que
é normal. Como nas poesias de vanguarda, a presença de paradoxo é o que caracteriza a
diferença, o caos, pois é através da crise que o universo evolui e não da harmonia. Ou seja,
identidade não existe numa poesia de cultura híbrida. A partir da crise tem-se dois, ou seja, de
uma reação, de uma tensão, surge a paixão, seja por paisagem, por animal, seja por qualquer
outra forma de paixão.

Referências

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______. O Guardador de Águas. 2 ed. Rio de Janeiro, Record, 1998.
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SAVEDRA M.M.G., LAGARES, X.C. Política e planificação linguítica: conceitos,
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NEOLOGISMO SEMÂNTICO-LITERÁRIO EM O MORCEGO DE AUGUSTO DOS


ANJOS

Willian Lima de Sousa


(Universidade Federal da Paraíba)

Considerações iniciais

Uma vertente de estudos pouco abordada nas análises literárias concerne à


estruturação do neologismo semântico-literário. Dubois (2006) entende que o neologismo
pode ser estruturado de três formas distintas. Uma diz respeito à estrutura interna da palavra, a
morfologia, outra forma é o empréstimo advindo de outro idioma e por fim, a neologia
semântica. A partir dessa classificação proposta por Dubois, analisamos e comparamos as
vertentes que concernem as neologias morfológicas e semânticas, assim como, relacionamos
o neologismo semântico ao neologismo literário, este último proposto por Gilbert (1975).
Após uma discussão crítica sobre as duas categorias de neologismos selecionadas para
essa análise, intentamos evidenciar uma relação tênue entre as formas de neologias semântica
e a literária. Nesse procedimento, relacionamos citações de Platão, Aristóteles, Pound e
Chklovski sobre a formatação da linguagem artística, pois ela difere decisivamente da
linguagem cotidiana, ou seja, uma linguagem que busca minimizar a pluralidade de
significados, uma linguagem objetiva.
Buscando exemplificar o neologismo semântico literário por meio do texto artístico,
selecionamos o soneto O morcego, de Augusto dos Anjos, pois entendemos que essa obra
evidencia mais claramente a configuração dessa tipologia de neologismo. Diferentemente da
neologia morfológica, automatizada e que não foge ao que é estabelecido como paradigma, a
neologia semântico-literária tende ao método em que palavras de campos semânticos
diferentes são aproximadas visando um efeito poético e assim atribuindo um novo significado
para a lexia em uso.
Todavia, o grande objetivo desse pesquisa é demonstrar que os estudos entre língua e
literatura seguem trajetórias que se cruzam, pois o corpus desses dois ramos do saber são o
mesmo, a linguagem. Através dessa peculiaridade entre ambos e do entrecruzamento de
teorias podemos, não de maneira deformada, chegar ao conhecimento de mais uma das facetas
da linguagem, linguagem camaleoa que se reveste de vários disfarces, mas que
gradativamente por meio de análises, essas facetas são evidenciadas. Desse modo,
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dialeticamente podemos comparar as funções estabelecidas entre a linguagem cotidiana e a


linguagem artística e as sua especificidades.

Neologismo ou neovetusto? O neologismo semântico-literário

Não sendo pleonástico, acreditamos que devemos começar pelo começo. No


dicionário de lingüística encabeçado por Dubois, temos a seguinte definição de Neologismo:
“chama-se neologismo toda palavra de criação recente ou emprestada há pouco de outra
língua, ou toda acepção nova de uma palavra já antiga”. (DUBOIS, 2006, p. 431).
De acordo com essa definição proposta por Dubois, podemos inferir três categorias de
neologismos. São elas: morfológico, por empréstimo e semântico. Deixemos aquele que
concerne ao empréstimo para uma futura análise, desse modo, nosso foco convergirá para o
morfológico e semântico.
Sobre essas duas tipologias, Dubois faz a seguinte diferenciação.

Distinguem-se neologia de forma e neologia de sentido. Nos dois casos,


trata-se de denotar uma realidade nova (nova técnica, novo conceito, novos
realia da comunidade linguística). A neologia de forma consiste em fabricar,
para fazê-lo, novas unidades. A neologia de sentido consiste em empregar
um significante que já existe na língua considerada, conferindo-lhe um
conteúdo que ele não tinha até então – que esse conteúdo seja
conceitualmente novo ou que tenha sido até então expresso por outro
significante. (DUBOIS, 2006, 430).

A primeira categoria está centrada na morfologia da palavra do que em outros aspectos


lingüísticos. Um exemplo singular desse fenômeno é o caso do ministro Magri e de sua
célebre frase: o direito de greve é imexível. Com essa lexia, “imexível”, o ministro queria
abordar uma situação concernente ao ato de não mexer, não alterar algo. No sistema e norma
da língua portuguesa essa palavra não existia, porém agora existe na norma do português, ou
seja, dicionarizada. Entretanto, vejamos a pseudo inventividade proposta pelo ministro. Esse
léxico é formado a partir da junção do prefixo negativo (in-) ao adjetivo mexível, isso está de
acordo com a formatação morfológica do português brasileiro, logo, dentro de um paradigma
formal da língua. Desse modo, a criação dessa “nova” lexia corresponde ao processo de
automatização lingüística, um fenômeno intrínseco da construção morfológica de palavras na
língua portuguesa. Resumindo, O neologismo morfológico não foge ao paradigma estrutural
da formação de uma palavra na língua portuguesa.
Vejamos alguns exemplos similares:
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Indiscutível;
Insubstituível;
Infalível;
Ilegível.
Os paradigmas supracitados demonstram a abundância de lexias referentes ao processo
inventivo proposto pelo ministro Magri. Os estudiosos dessa área específica denominam esse
fenômeno lingüístico de neologia da forma. Ele é criado a partir de mecanismos existentes e
possíveis na língua portuguesa, ou seja, uma lexia que vem a tona por meio da virtualidade ou
potencialidade da língua.
Dentro dessa lógica explicitada, uma crítica deve ser feita. Isso é um neologismo ou
neovetusto? Acreditamos que seja um neovetusto, pois o processo de criatividade é mínimo
por parte do falante. Morfologicamente, tudo é previsto na estrutura da língua portuguesa.
Uma atividade salutar é imaginar a composição de uma lexia não existente nesse exato
momento. Em minha mente ocorreram duas palavras, a primeira é desguardar, a segunda é
bonitar. Sem nenhum desdobramento analítico, elas são possíveis na estrutura interna da
língua portuguesa.
Se buscássemos realmente uma inventividade por parte do falante e por parte do
sistema do português, as novas lexias deveriam obedecer uma configuração distinta daquelas
que temos até o momento. Se o ministro citado proferisse: o direito de greve é mexívelin.
Nesse caso, o paradigma composicional da formação de palavras da língua portuguesa teria
sido rompido, desse modo, teríamos efetivamente algo novo na formação de uma palavra.
Esse preâmbulo é significativo para inserirmos nossa proposta, o neologismo
semântico-literário1. Um dos primeiros estudos que versam essa vertente de neologismo foi
concebido por Gilbert nos anos 70. Um dos pontos significativos dos estudos desse teórico é a
discussão sobre a estrutura e semântica do neologismo. Assim como exposto anteriormente,
as estruturas dessas novas lexias cumprem sempre regras interna e tácitas. No caso do
neologismo semântico, a segunda categoria de Dubois, a lógica criativa segue um padrão
diferente do morfológico, pois a lexia passa por uma atualização semântica. Vejamos um
exemplo de neologismo semântico difundido na linguagem cotidiana.
Exemplo.: Sinistro

1
Gilbert (1975) abordou o fenômeno com neologismo literário. Nessa pesquisa, relacionaremos o termo
semântico ao literário e utilizaremos a nomenclatura neologismo semântico literário.
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Essa lexia, diacronicamente, vem passando por diversos processos de atualização


semântica. Em um primeiro momento, sinistra era a mão esquerda. Após o que, ela sofreu
uma atualização e passou a significar algo sombrio, nebuloso. Na atualidade, os jovens
atualizaram “o sinistro” novamente, nessa oportunidade, a carga semântica negativa que ela
carregou no passado foi anulada e na contemporaneidade falar em sinistro é o mesmo que
semanticamente referir-se a algo legal, maneiro, incrível. É necessário destacar que nesta
tipologia de neologismo há uma convenção para que o uso possa ser disseminado e entendido
pelos falantes ou usuários da língua.
Essa possibilidade de atualização semântica de uma lexia é abordada poeticamente no
poema videovocalizado de Arnaldo Antunes, cujo título é Carnaval.
árvore
pode ser chamada de
pássaro
pode ser chamado de
máquina
pode ser chamada de
carnaval
Nessa letra de Antunes, percebemos a retomada de uma discussão histórica entre os
convencionalistas e naturalistas gregos, no Crátilo, de Platão e em Saussure, no Curso de
Lingüística Geral, a temática é a arbitrariedade e convenção referente ao signo lingüístico. Na
leitura que fazemos desse poema, podemos ver que árvore poderia ser chamada de qualquer
coisa (arbitrariedade), porém essa nova semântica deve passar pelo crivo da convenção, pois
essa modalidade de neologismo abrange os falantes em geral e sem essa peculiaridade o ato
comunicativo seria caótico.
O neologismo literário está intrinsecamente relacionado ao fator semântico ou
neologia do sentido, pois palavras de campos semânticos distintos são aproximadas causando
o estranhamento e o efeito poético. Rey (1976), confirma essa relevância semântica na
composição do neologismo literário. O autor assevera que: “Tomamos o neologismo em um
conceito pragmático considerando que não existe neologismo em si, mas em um conjunto de
usos, e ainda, o fato de que a novidade semântica está presente em todos os neologismos sem
exceção”.
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Essa novidade semântica é deveras substancial na poesia, porém, diferente da


linguagem cotidiana, automatizada2. Na literatura, o processo de desautomatização da
linguagem favorece a estruturação dessa vertente de neologismo. Veremos isso adiante na
leitura de um poema de Augusto dos Anjos.

O neologismo semântico literário em O morcego

Antes de analisarmos algumas lexias da obra em questão, assim como a visualização


do neologismo semântico-literário criado pelo poeta paraibano, observaremos algumas
singularidades teóricas sobre o texto literário e as relações que podemos vislumbra com a
tipologia de neologismo estudada nessa pesquisa.
Na República, livro X, Platão descreve que o texto artístico é aquele que foge ao senso
comum. Essa referência Platônica condena o procedimento artístico no seio da república.
Entretanto, se tomarmos essa referência a partir de outro prisma, o estético, ou seja, arte não é
a linguagem comum, mas a palavra trabalhada artisticamente, isso seria fundamental para
entendermos o texto artístico e as suas especificidades. Essa primeira definição de arte, rompe
com o processo de automatização da linguagem.
Complementando o seu mestre, Aristóteles em sua Poética argumenta que: De modo
geral, o impossível se deve reportar ao efeito poético, à melhoria, ou à opinião comum. Do
ângulo da poesia, um impossível convincente é preferível a um possível que não convença.
(ARISTÓTELES, 2005, p. 50).
Nessa referência Aristotélica, observamos que o texto literário tem a sua autonomia
preservada, assim como os procedimentos aplicados pelos artistas. A lógica interna da obra
não deve e não tem obrigação alguma de se restringir a factualidade do mundo, paradigmas
lógicos. Dessa forma, pelo contraste, podemos visualizar de forma didática a citação
aristotélica, ou seja, aquilo que é impossível na lógica factual do mundo é possível na arte.
Ezra Pound, em ABC da Literatura, descreve que “grande literatura é simplesmente
linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. (POUND, 2006, p. 32).
Nessa construção de significados, o poeta deforma, transforma, desfigura, recria uma lexia.
Nesse processo, a construção de significados é latente. Drummond, no poema Manhã, usa
uma palavra que destoa do campo semântico hospitalar, caçadores. Em uma segunda, terceira

2
Essa automatização aborda não somente os fatores semânticos, mas a relação de um fonema e outro. A língua
em si segue paradigmas predefinidos, a ruptura desses paradigmas acarreta um caos lingüístico ou
estranhamento.
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leitura, o leitor compreende o sentido dessa palavra em relação ao campo semântico


hospitalar, aqueles que trabalham em um hospital são pessoas que caçam as dores dos
pacientes. Nesse caso, a palavra está completamente desautomatizada, não cumpre sua função
estigmatizada.
Chklovski aborda essa questão de automatização/desautomatização da linguagem.
Esses dois conceitos dos formalistas russos trazem à baila as duas tipologias de neologias
esquematizadas por Dubois. A neologia da forma está para o conceito de automatização,
assim como, a neologia do sentido está para o conceito de desautomatização da linguagem.
Exemplificaremos a partir da leitura do soneto O morcego, de Augusto dos Anjos.

O morcego

1 Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.


2 Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
3 Na bruta ardência orgânica da sede,
4 Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

5 "Vou mandar levantar outra parede..."


6 — Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
7 E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
8 Circularmente sobre a minha rede!

9 Pego de um pau. Esforços faço. Chego


10 A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
11 Que ventre produziu tão feio parto?!

12 A Consciência Humana é este morcego!


13 Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
14 Imperceptivelmente em nosso quarto!

Não teceremos uma análise estrutural do poema, nessa oportunidade observaremos


somente alguns versos e algumas lexias desse poema. No verso número 12, o eu - lírico
aproxima duas palavras de campos semânticos completamente díspares. Observemos essa
abonação: A Consciência Humana é este morcego. Em um tratado de psicologia, o autor
jamais associaria a consciência humana à figura de um morcego. Assim como, na biologia,
um pesquisador dificilmente relacionaria o morcego à consciência humana. Somente a arte é
capaz de equipara tais lexias. Platão, Aristóteles, Pound e Chklovski estão justificados nesse
único verso.
O processo de desautomatização da linguagem no verso 12 do soneto é relevante para
o entendimento do neologismo semântico-literária. A linguagem cotidiana é extremamente
automatizada, podemos dizer que, no cotidiano a linguagem é esgotada em significado, pois o
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objetivo é a informação precisa, objetiva. A linguagem poética não segue essa ordem, ela é
carregada de significado, subjetiva, pois o que é em um verso, não é em outro. O morcego
presente no verso número 2 é o mesmo do verso 12? Não é.
Notemos que o processo de neologia semântico-literária é distinto da neologia
semântica em geral. O ponto de divergência é a convenção abrangente em uma modalidade e
a singularidade em outro. Como destacado anteriormente, o neologismo semântico em geral
está centrado em uma convenção amplamente disseminada para que os falantes possam se
apropriar da lexia e utilizá-la com desenvoltura e pertinência.
No caso do neologismo semântico-literário, o sentido é interno, endofórico, ele só é
possível e compreensível dentro do texto. Somente nesse poema, o dito “morcego” é
atualizado semanticamente em consciência humana e vice-versa. No cerne da obra, essa
relação não é arbitrária, pois a construção artística do soneto aproxima essas duas lexias. O
que era uma relação semântica tão distante, por meio da verve do poeta, essa distância foi
superada pela lógica interna dos elementos artístico constitutivos do poema.
Outra referência significativa e curiosa é a construção semântico em torno da lexia
quarto. Abordaremos a aparição dessa lexia no primeiro e último verso da obra. Em sua
primeira aparição, temos a seguinte abonação: Meia-noite, Ao meu quarto me recolho. Nessa
referência ao quarto, o leitor não tem dificuldade em reconhecer que esse quarto é um espaço
físico em que o eu - lírico dorme, repousa. Nesse início, o poeta não utiliza o artifício
“desautomatizador” da linguagem. Porém, no último verso, toda a carga semântica é
artisticamente elaborada e o quarto assume uma significação outra, o quarto é a mente, cabeça
do eu – lírico. Essa edificação da lexia quarto é mais singular do que a metáfora Consciência
Humana e morcego, pois, neste caso, as duas lexia são dadas ao leitor. A relação entre quarto
e mente ocorre elipticamente e o leitor só chega ao entendimento através da lógica textual.
É necessário esclarecer que o neologismo semântico-literário só pode ser entendido,
em sua completude, dentro de uma obra específica. Logo, a configuração dessa modalidade
de neologia só serve para uma obra particular e o processo de transferência semântica dos
elementos citados nessa análise para outro poema de Augusto do Anjos é algo arriscado, pois
dificilmente a construção semântica presente em um soneto será a mesma em outro.
Observamos que o neologismo semântico-literário é fruto do entrecruzamento entre
uma definição linguística e acepções relacionadas à teoria da literatura. O texto artístico tende
a uma subversão da ordem imposta pela língua. Barthes identificou essa característica da
língua. O autor assevera que:
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Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária,


nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir
de dizer, é obrigar a dizer. (BARTHES, 2013, p. 15).

A língua, por meio de seu mecanismo interno, impõe todos os paradigmas de


funcionamento, partindo do fonológico e passando pelos vieses morfológico, sintático e
semântico. Uma lexia respeita esse funcionamento, como vimos na composição do
neologismo morfológico. Sintaticamente, a ordenação de uma frase segue o paradigma da
elaboração morfológica. No português a sequência sintagmática é: sujeito + verbo +
complemento. Semanticamente, os paradigmas não fogem a um campo de significação tão
arbitrário; belo – bonito – lindo. A língua busca restringir a multiplicidade de formas em
todos os níveis gramaticais. Gramática, nesse caso, concerne ao funcionamento que uma
língua possui. Essa discussão traz à baila o fascismo da língua, pois em todos os seus níveis
gramaticais, “ela não impede de dizer, ela obriga a dizer”.
No que diz respeito à literatura, Barthes tem o seguinte posicionamento:

Mas a nós que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta,
por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder no esplendor de uma revolução permanente de linguagem, eu a chamo,
quanto a mim: literatura. (BARTHES, 2013, p. 17).

O neologismo semântico-literário segue essa vertente proposta por Barthes, as regras


estabelecidas gramaticalmente são trapaceadas visando uma cisão com o automatismo da
língua, o poeta não está a serviço da mesmice. A linguagem literária possibilita ao leitor
visualizar a língua fora do poder, isso implica em um profundo estranhamento, pois o leitor
está imerso tacitamente em um universo em que a objetividade desponta como predominante.
O processo de relacionar palavras de campos semânticos diversos, romper com o padrão
sintático são exemplos de trapaças ou desautomatização da linguagem, algo intrinsecamente
inerente ao viés literário e que inevitavelmente poucos são os que fruem.

Considerações Finais

Essa pesquisa buscou aprofundar, um pouco mais, as discussões sobre os tipos de


neologismos, assim como, visamos estreitar as relações entre estudos lingüísticos e literários.
Percebemos que esse intercâmbio é salutar e que algumas vertentes teóricas quando
combinadas podem favorecer o entendimento de um fenômeno da linguagem, neste caso, a
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junção de conceitos teóricos possibilitou o entendimento de mais uma vertente de


neologismo.

Referências

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ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2005.
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Literatura: Formalistas Russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978.
DUBOIS, J. e col. Dicionário de lingüística (trad.). São Paulo, Ed. Cultrix, 2006
GUILBERT, L. La créativité lexicale. Paris, Lib. Larousse, 1975
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POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução Augusto de Campos e José Paulo Paes, São
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Discografia

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LITERATURA POPULAR / REGIONAL

A POESIA ENTOADA: PERFORMANCES POÉTICAS DA VOZ NO ABOIO DE


GADO NORDESTINO

Amarino Oliveira de Queiroz


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Do ponto de vista conceitual, oralidade, oratura, oralitura, formas de arte verbal ou


literatura oral constituem, ainda, matéria de complexa definição. Sabe-se, no entanto, que os
registros históricos brasileiros acerca do interesse pela pesquisa do tema não são recentes,
tendo mobilizado ao longo do século XX escritores, pesquisadores e críticos literários como
os nordestinos Sílvio Romero e Luís da Câmara Cascudo, ou o paulista Mário de Andrade.
Em Sílvio Romero, por exemplo, a discussão das relações entre a literatura oral e a escrita
constitui, conforme assinala Claúdia Neiva de Mattos (1995, pp. 55-71), uma espécie de
marco primordial que abriu espaço para a apreciação crítica da presença do negro na cultura
brasileira, “desrecalcando um legado comprometido pelo estigma da escravidão”, ainda que
acabe rejeitando “toda a produção híbrida que não leve a sanção de um trabalho artístico
oficialmente reconhecido”.
Segundo o escritor potiguar Luís da Câmara Cascudo (1984, pp. 23-30), Mário de
Andrade, por sua vez, em viagens de pesquisa pelo país, se empenharia no registro de um
“grande número de peças poético-musicais, às quais acrescenta ricas observações críticas”,
numa combinação de textos e partituras em que os territórios da música e da literatura “se
iluminam mutuamente, contando ainda com a contribuição de percepções afinadas nos
trabalhos sobre artes plásticas”. Na própria obra poética desenvolvida por Mário de Andrade
se revela uma reiteração do motivo musical, como a sugestão das “modas, rondós, toadas,
cocos, improvisos, acalantos etc, onde se explora o ritmo sincopado da musicalidade
popular”.
Cascudo destaca ainda que as primeiras referências europeias para uma discussão em
torno do que se convencionou chamar de literatura oral teriam tido lugar a partir do final do
século XIX, através das considerações teóricas traçadas por Paul Sébillot. Numa primeira
tentativa de definição formal, Sébillot a classificaria como a reprodução daquilo que tem
como característica a persistência pela oralidade, ocupando o lugar da produção literária
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escrita entre os segmentos iletrados da população, ou seja, o conjunto formado pelos


provérbios, as adivinhações, os cantos, as orações e os contos transmitidos oralmente.
Essa catalogação inicial aplicada por Cascudo ao caso brasileiro se ampliaria mais
tarde, incluindo, além das fontes exclusivamente orais, com a estória, as danças cantadas, as
rondas infantis, os acalantos, os aboios, as xácaras ou os romances portugueses com solfas, a
reimpressão dos folhetos provenientes da Península Ibérica, ou seja, herdados da tradição dos
pliegos sueltos espanhóis e da literatura de cego dos portugueses. Com ou sem fixação
tipográfica, essa matéria pertenceria, segundo o autor, à chamada literatura oral, posto que
elaborada para o canto, para a recitação e a leitura em voz alta, sendo rapidamente absorvida
na poética dos desafios praticados no Brasil pelos poetas cantadores. De acordo com a
apreciação de Cascudo, uma literatura oral brasileira mais amplamente definida
compreenderia, ainda, a reunião dos elementos indígenas, ibéricos e africanos “num
enovelado alucinante de convergências, coincidências, presenças e influências”, bem como
“elementos de fundo oriental, dispersos no continente europeu pela permanência árabe”.
Para Idelette Muzart Fonseca dos Santos (1995, pp. 33-38), contudo, a definição de
literatura oral mudou consideravelmente desde Paul Sébillot, que, em palavras da autora, a
assimilava popular e analfabeta. Referindo os estudos de Paul Zumthor (2000), Idelette Santos
assevera que o pesquisador suíço “denuncia a abstração do termo oralidade e daquilo que se
denomina literatura oral”, preferindo o termo vocalidade e falando de literaturas da voz.
Apoiando-se também no pensamento de Gérard Genette desenvolvido em Fiction e Diction,
de 1991, Santos ressalta que, ao questionar em que condições um texto, oral ou escrito pode
ser percebido como uma obra literária, ou mais amplamente como objeto verbal com função
estética, o autor “colocava mais uma vez a questão da literariedade de um texto sem
distinguir, e mais precisamente insistindo em não distinguir, entre oral e escrito”.
Esse e outros aspectos representam, segundo ela, indícios de que o estudo acerca da
literatura oral “está saindo do gueto da folclorização que interpunha uma barreira rígida entre
as abordagens da escrita e da oralidade” para mover-se “entre as fronteiras da escritura e da
voz, do literário e do não literário, do indivíduo e do coletivo, da tradição e da criação”, uma
vez que a chamada literatura popular brasileira, oral e escrita, particularmente no Nordeste,
“não é composta de relíquias e vestígios, pacientemente recolhidos antes de desaparecer para
sempre: é uma poesia viva e atual”.
Concluindo seu raciocínio, Santos assegura que o conjunto poético recitado, cantado,
improvisado ou escrito, presente nos bairros populares, nos centros nervosos das grandes
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cidades, nos meios de comunicação de massa, do rádio à internet, ilustra, “as complexidades
das relações possíveis entre voz e escritura, tradição e criação” fundamentando-se nos termos
da comunicação que “podem ser modalizados pela voz e/ou pela escrita”, o que vem de
encontro às teorias que “insistem em ver no oral a infância da literatura e na escritura o
desembocar e a diluição da tradição oral”.
Por outro lado, a idéia de Nordeste que se pretende vislumbrar daqui, concordando
com Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999), se funda na tentativa de estabelecer outras
visibilidades e dizibilidades para a região, buscando movimentar-se, para dizê-lo com
palavras do autor, além da produção imagético-discursiva formada a partir de uma
sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente. Nessas bases, o estudo das
relações entre as poéticas da tradição e da contemporaneidade aqui tratadas não tenciona
abordar a poesia oral e as chamadas literaturas e culturas populares como manifestações “ao
lado (ou no fundo) da cultura dominante”, mas, conforme assinala Marilena Chauí (1987, p.
24), “como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela”.
O conceito de performance é, por sua vez, igualmente escorregadio devido à grande
abrangência de sua aplicabilidade. No que tange às poéticas da oralidade, somente a partir da
experiência sobre o funcionamento da voz poética com os griots do Burkina-Faso, os
rakugoka do Japão ou os repentistas do Nordeste brasileiro, entre outros, é que Paul Zumthor
(2000) apresentaria, de forma que se pretende mais conclusiva, uma idéia particular de
performance, antes tratada empiricamente como o único modo vivo de comunicação poética.
A performance compreenderia, então, um fenômeno heterogêneo, do qual se torna possível
dar uma definição geral simplificada. O próprio significado da palavra voz, em idiomas como
o espanhol, dá conta de aplicações mais amplas que aquelas correntes na língua portuguesa,
conforme observa a professora e pesquisadora Jerusa Pires Ferreira (2000), em nota de
tradução do texto de Paul Zumthor para o português, informação que se confirma através de
verbete específico:

Voz s.f. 1. Sonido que se produce al pasar el aire de los pulmones por la
laringe, haciendo vibrar las cuerdas vocales. 2. Grito: Al verle en la calle le
dio una voz. 3. Cantante. 4. Palabra: Walkman es una voz inglesa.
(DICCIONARIO escolar de la lengua española. Madrid: Editorial Santillana,
1996, p.910)

Tomando-se o exemplo dos griots ou contadores de histórias africanos mencionados


nos estudos de Paul Zumthor, pode-se tentar interpretar mais livremente os significados que o
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conceito de voz passa a assumir nesta discussão, envolvendo um caráter de som, grito, cantor
e palavra.
Na perspectiva de registrar outras formas de expressão cultural dinamizadas pela voz,
passaremos a referenciar a poesia dos vaqueiros cantadores entoada no Nordeste do Brasil e
inserida no conjunto maior representado pela arte dos cantadores e repentistas. Dentro do
universo da Cantoria nordestina, repentista seria o poeta que improvisa versos com ou sem
suporte musical. Na primeira situação, aparecem, por exemplo:

1. O poeta cantador ou repentista violeiro, que tem como suporte musical a viola, instrumento
de origem árabe introduzido na Península Ibérica e herança da colonização portuguesa;
2. O embolador de coco, fazendo uso do pandeiro, instrumento cuja origem também remonta à
cultura dos povos árabes, através do antigo adufe;
3. O tirador de coco-de-roda, de praia, de umbigada, samba de coco, mazurca etc, modalidades
que incluem a dança e outros instrumentos como o ganzá indígena, para marcar os versos
improvisados, além da percussão de bombos e pandeiro.

Na situação dos poetas improvisadores que não utilizam nenhum instrumento além da
própria voz, destaca-se o poeta do grito: o aboiador.
Classificado inicialmente como um canto de trabalho do vaqueiro, o aboio de gado,
não versejado, caracteriza-se por um canto de vogais que obedece a uma divisão assimétrica,
cheia de microtons, diferenciando-se da forma conhecida na escala musical do Ocidente. No
Brasil, ocorre principalmente na região compreendida entre o Norte de Minas e o sertão
nordestino, com variações conhecidas pelos nomes de aboio mineiro, aboio catingueiro etc. A
perfomance vocal do aboiador, para referir o pensamento desenvolvido na perspectiva de Paul
Zumthor, acaba sendo pontuada pelo ruído metálico produzido pelos chocalhos do gado em
movimento, se está em atividade de pastoreio.
Nos últimos anos, contudo, vem crescendo bastante a modalidade versejada do aboio
ou toada de vaqueiro, caracterizada por uma poesia entoada que se faz presente nos
campeonatos de vaquejada e outros eventos festivos. Vários poetas cantadores vêm se
dedicando ao aboio e às toadas em versos improvisados, como neste fragmento de Todo o
Nordeste entristece quando se acaba um vaqueiro, tirado por Galego Aboiador, de Ferreiros,
Pernambuco:

Quando um vaqueiro falece


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em festa de apartação
Se acaba a diversão
e o prazer desaparece
E logo tudo entristece
no Nordeste brasileiro
A falta de um guerreiro
que o amigo não esquece
Todo o Nordeste entristece
quando se acaba um vaqueiro, ô 1

Esses aboios de improviso apresentam uma variedade temática bastante significativa.


Estruturados em décimas, os temas podem ser desenvolvidos a partir de um mote, geralmente
tratando da lida com o gado, das relações entre o patrão e o vaqueiro ou até em louvor à
bravura no trabalho duro e as paixões do poeta cantador. É o que se pode constatar nesse
Quero morrer pecador, também composto por Galego Aboiador:

Quero falar de mulher


que é rainha da beleza
Nascida da natureza,
mulher é quem tem mister
Nasci para amar mulher,
por mulher sou sofredor
Diz Galego Aboiador
que por mulher é gamado:
Se amar for um pecado
quero morrer pecador, ê

Morena cor-de-canela,
bonita, do cabelão
Acabo todo o carvão
estando ao lado dela
Vendo o cavalo e a cela
só pra ganhar seu amor
E sentir o seu calor
com o seu corpo abraçado
Se amar for um pecado
quero morrer pecador, ê 2

Antes, durante o intervalo e após os versos improvisados que cria, o poeta aboiador
emite sons melodiosos e melancólicos, caracterizados pelo prolongamento das últimas sílabas
ou vogais. Esta prática vocal, na modalidade não versejada, funciona como uma espécie de
chamamento para as reses que, estando dispersas pelo mato, tornam a reunir-se atraídas pela
voz do vaqueiro.

1
ABOIADOR, Galego. Raízes Nordestinas. Rio de Janeiro, Copacabana 499876-2, s.d., digital, stereo, CD.
2
Idem.
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No ambiente das festas de vaquejada, exposições de animais e outros eventos, os


temas tirados de improviso variam mais ainda, assim como a estruturação dos versos proposta
nesta performance de Gaguinho:

Eu tenho que agradecer


A essa massa nordestina
Aos vaqueiros do Nordeste
Que admiram minha rima
O boi mugindo na serra
O que me falta na terra
Jesus me manda de cima, ê

Essa gente tão dengosa


Do estúdio de Faria
Cabocla de Mirador
Que gosta de cantoria
Que já conhece Gaguinho
O símbolo da poesia 3

Pelo exposto, podemos observar que no Nordeste brasileiro a arte de aboiar de há


muito ultrapassou os limites das atividades laborais no campo, migrando também para a
cidade e aí se estabelecendo como modalidade poética em eventos especiais, inclusive
flertando com o rap praticado no Recife pelo grupo Faces do Subúrbio, como poderemos
verificar através destes versos do poeta de Cordel e aboiador paraibano Abdias, registrado em
parceria com o supracitado coletivo rapper:

Minha toada é meu grito


Alerta da solidão
De quem vive insatisfeito
Com os defeitos da nação
Perdida sem governança
Na ânsia da escravidão, ô

É preciso resistir
Aos desmandos da lei
Pesquisar, saber por quê
Sem ficar só de não sei
Refletir sobre o universo
Dos versos que aqui deixei, ô 4

Assim como o cante a palo seco, gênero de poesia oral realizado sem qualquer
acompanhamento pelos cantaores flamencos da Espanha, numa combinação de performance
vocal e recitação poética que, aliás, recebeu uma homenagem em versos escritos pelo poeta

3
GAGUINHO ABOIADOR. Canto Nordestino. Mega Music/Ouver Records, 3408120-2, digital, stereo, CD.
4
ABDIAS, Faces do aboio. In: Faces do Subúrbio, Como é triste de olhar. São Paulo: MZA 129742, digital,
stereo, CD.
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pernambucano João Cabral de Melo Neto, o aboio praticado no Nordeste brasileiro também
vai encontrar suas origens na tradição oral dos povos árabes e ciganos.
Considerando as perspectivas teóricas de Paul Zumthor expostas ao longo de seu
estudo (2000), segundo as quais a poesia parece residir em um fato de ritualização da
linguagem onde a palavra oral designaria as bases subjetivas da palavra escrita, poderíamos
sugerir que desde todos os praticantes da voz do passado e do presente, desde os griots
africanos, os cuicanis astecas, os rapsodos gregos, os haravicus incas, os medejs árabes, os
pajés indígenas, os bardos celtas até os repentistas nordestinos, os toasters jamaicanos, os
rappers da contemporaneidade, enfim, todos os meios que também em nosso tempo operam
uma ressurgência das energias vocais da humanidade, a transmissão da obra pela voz vem
promovendo uma multiplicidade de encontros entre ela e seu público.
Também através do aboio e da toada dos vaqueiros nordestinos, enquanto discurso
poético dirigido à comunidade humana parece fazer-se cumprir, através do poder da
linguagem, o papel performativo desta, reintroduzindo a voz nos funcionamentos
fundamentais do corpo social. Pela arte do aboio e da toada de vaqueiro se afirma, portanto, a
perspectiva zumthoriana das literaturas da voz e do uso performático desta como forma de
transmissão oral da poesia entoada, ilustrando e dignificando o sentido ampliado que a própria
palavra voz assumiu na discussão.

Referências

ABDIAS, “Faces do aboio”. Faces do Subúrbio, Como é triste de olhar. São Paulo: MZA
129742, digital, stereo, CD.
ABOIADOR, Galego. Raízes Nordestinas. Rio de Janeiro, Copacabana 499876-2, s.d.,
digital, stereo, CD.
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste. Recife: FJN/Editora
Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.
AYALA, Maria Ignez Novaes. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina. São
Paulo: Ática, 1988.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia / Rio de
Janeiro: Melhoramentos, 1984, pp. 23-30.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 2a edição, 1987, p. 24.
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DICCIONARIO escolar de la lengua española. Madrid: Editorial Santillana, 1996, p. 910.


FERREIRA, Jerusa Pires. Nota de tradução. In: ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
leitura. São Paulo: Educ, 2000.
GENETTE, Gérard. Fiction et diction. Paris: Seuil, 2000, p. 7.
GAGUINHO ABOIADOR. Canto Nordestino. Mega Music/Ouver Records, 3408120-2,
digital, stereo, CD.
MATTOS, Cláudia Neiva de. “Literatura brasileira e folclore: de Sílvio Romero a Mário de
Andrade”. In: Bernd, Zilá e Migozzi, Jacques (Orgs). Fronteiras do literário: literatura oral e
popular Brasil/França. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1995, p.55-71.
QUEIROZ, Amarino Oliveira de. “Repentismo, rap e repente: performances da voz na poesia
oral nordestina”. In: SANTOS, D.; GALVÃO, M.A.M.; DIAS, V. C. A. (Orgs): Dizeres
díspares: Ensaios de Literatura e Linguística. João Pessoa; Ideia, 2010, pp. 96-11
______. Ritmo e Poesia no Nordeste Brasileiro: Confluências da Embolada e do Rap. Feira
de Santana - Ba: Universidade Estadual de Feira de Santana -PosLDC, 2002. Dissertação de
Mestrado.
SANTOS, Idelette Muzart Ferreira dos. “Escritura da voz e memória do texto: abordagens
atuais da literatura popular brasileira”. In: Bernd, Zilá e Migozzi, Jacques (orgs). Fronteiras
do literário: literatura oral e popular Brasil/ França. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 33-
38.
SEBILLOT, Paul. Littérature orale de la Haute Bretagne. Paris: Le Floklore, 6.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura.. Tradução de Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo: Educ, 2000.
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DESVIO E DANAÇÃO NA LITERATURA POPULAR: RESÍDUOS DA


MENTALIDADE PUNITIVA MEDIEVAL

Camille Feitosa de Araújo1


UFC
Elizabeth Dias Martins2
UFC

A cultura do cordel chegou ao Nordeste do Brasil por meio do colonizador europeu,


pois este não trouxe consigo apenas suas caravelas e seus bens materiais, mas toda uma
tradição cultural e literária que encontrou terreno propício para desenvolver-se na região
brasileira, pois existiam condições sociais e culturais que favoreciam, inclusive, a criação de
uma literatura popular própria: “a organização da sociedade patriarcal, o surgimento de
manifestações messiânicas, o aparecimento de bando de cangaceiros ou bandidos, as secas
periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família (...)”
(DIÉGUES JÚNIOR, 1973, p.14), entre outros fatores típicos da sociedade da época.
Assim, a origem de nossa literatura popular tem raízes lusitanas3 porque chegou-nos
via romanceiro peninsular, este formado por uma hibridação cultural de vários povos, e
remonta às “folhas volantes” portuguesas medievais que, segundo estudos de Diégues Júnior
(1973), eram folhetos de caráter narrativo, presos em barbantes ou em cordéis, vendidos em
feiras, em romarias e em ruas. Dessa forma, não foram os valores renascentistas que chegaram
ao Brasil no início da colonização, mas aqueles que estavam mais arraigados na cultura dos
povos ibéricos de então: os medievais.
Dito isso, fica claro que, ainda que não tenhamos tido, cronologicamente, uma Idade
Média, herdamos, desse período, muitas contribuições, de modo que podemos afirmar que,
conquanto alguns séculos nos separem do período, muitos dos valores, das crenças e dos
costumes mediévicos continuam presentes em nosso imaginário, pois os resíduos atravessam
o tempo e os espaços, remanescem, cristalizam-se e influenciam culturas posteriores.

1
Mestrado em Letras no PPGL da Universidade Federal do Ceará –UFC.
2
Professora Doutora do PPGL da Universidade Federal do Ceará –UFC. Professora orientadora deste estudo.
3
Além das raízes lusitanas e peninsulares, Diégues Júnior (1973) aponta também a influência da tradição
africana de narrar fatos acontecidos, contar “estórias”, que se fundiu, sem muita dificuldade, com a tradição
lusitana em terras brasileiras: “Também os escravos vindos para o Brasil tinham não somente seus trovadores
como também o hábito de contar suas histórias, cantando ou narrando; são os famosos akpalô registrados pelos
especialistas em estudos africanos no Brasil.” (DIÉGUES JÚNIOR, 1973, p.11)
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Neste breve estudo, pretendemos analisar dois cordéis de três importantes autores
nordestinos, legítimos representantes da cultura popular: os poetas paraibanos Pedro Bandeira
e Antônio Araújo de Lucena; e o cearense, de Juazeiro do Norte, Expedito Sebastião da Silva.
Nossa proposta é identificar a presença de resíduos da mentalidade punitiva medieval na
escrita desses poetas populares, pois suas criações são importantes e refletem a cultura e o
imaginário de seus povos. Ambos os folhetos escolhidos trazem, em suas narrativas,
personagens transgressores de condutas morais estabelecidas e, por isso, punidas via
metamorfose corporal. Para tanto, utilizaremos como base teórica a Teoria da Residualidade,
sistematizada por Roberto Pontes, crítico literário, poeta, professor e estudioso de Literatura.
Sua contribuição vem sendo utilizada em importantes estudos literários, tanto no Brasil
quanto no exterior, pois a Residualidade tem por intuito explicar como se dá a permanência
de uma mentalidade de um povo em culturas subsequentes, de forma a preencher lacunas no
âmbito dos estudos literários e culturais.
Para compreendermos o papel do resíduo na formação das culturas, faz-se mister
observarmos as palavras do sistematizador da Teoria em apreço:

O resíduo é aquilo que resta de alguma cultura. Mas não resta como material
morto. Resta como material que tem vida, porque continua a ser valorizado e
vai infundir vida numa obra nova. Essa é a grande importância do resíduo e
da residualidade. Não é reanimar um cadáver da cultura grega, da cultura
medieval, e venerá-lo num culto obtuso de exaltação do antigo, do morto,
promovendo o retorno ao passado, valorizando a melancolia e a saudade,
como fizeram os portugueses durante a fase do Saudosismo literário; não é
isso. A gente apanha aquele remanescente dotado de força viva e constrói
uma nova obra com mais força ainda, na temática e na forma (PONTES,
2006, p. 09).

A Teoria da Residualidade explica-nos que o processo de formação etnológica decorre


do contato entre diversas culturas de épocas e de espaços geográficos distintos, resultando em
novas formas de expressão, híbridas, pois são formadas a partir de diferentes traços culturais.
Tal hibridação ocorre porque as culturas encontram-se e influenciam umas às outras, e a
mentalidade coletiva dos vários povos remanesce através dos resíduos, que, embora
transformados, mantêm uma essência que resiste ao tempo. Segundo Roberto Pontes (2006),
“a mentalidade não pode se dissociar-se de resíduo.” (PONTES, 2006, p.10), porque para
conhecê-la precisamos considerar os vestígios, as remanescências que ficaram dos períodos.

Na historiografia, o conceito de mentalidades passou a designar as atitudes


mentais de uma sociedade, os valores, o sentimento, o imaginário, os medos,
o que se considera verdade, ou seja, todas as atividades inconscientes de
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determinada época. As mentalidades são aqueles elementos culturais e de


pensamento inseridos no cotidiano, que os indivíduos não percebem. Ela é a
estrutura que está por trás tanto dos fatos quanto das ideologias ou dos
imaginários de uma sociedade. Tal conceito está muito ligado à questão
temporal, pois a mentalidade é considerada uma estrutura de longa duração.
Além disso, ao contrário dos fatos, que acontecem muito rapidamente, a
mentalidade permanece durante muito tempo sem modificações, e suas
mudanças são tão lentas a ponto de nem serem percebidas. (SILVA &
VANDERLEI SILVA, 2009, p.279)

Elizabeth Martins (2000) assinala que “A Residualidade se caracteriza por aquilo que
resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes
mentais arraigadas no passado próximo ou distante” (MARTINS, 2000, p. 265). Logo, o
resíduo é tudo aquilo que fica de uma cultura antiga em uma nova cultura, porém cristalizado,
transformado, pois, ao longo do tempo, passa por um processo natural de modificação
denominado cristalização. Assim, embora os resíduos mantenham o substrato do período de
origem, estão sempre se modificando, afinal cada nova cultura possui um contexto diferente,
suas próprias especificidades. Por fim, vejamos o que nos diz Raymond Williams (1979): “o
residual foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não
só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente.”
(WILLIAMS, 1979, p.125).

Resíduos da punição medieval no imaginário da poesia popular

Durante a Idade média, a noção de pecado foi amplamente difundida pela Igreja como
um modo de disciplinar as condutas a serem seguidas pelos cristãos. É quase impossível
discorrer sobre o período medieval sem falarmos em pecado, em sanções, em castigos e em
punições.

Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado.


A concepção do tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção de
saber, a idéia de trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações
sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e visão de mundo do
homem medieval gira em torno da presença do pecado (CASAGRANDE &
VECCHIO, p. 337, 2002).

A Igreja tinha grande poder para normatizar e para moralizar a vida social cristã, era
ela, por exemplo, que especificava quais atos sexuais eram permitidos e como poderiam ser
praticados. Destarte, o “esforço da Igreja para controlar a sexualidade tinha um aspecto
positivo (...) canalizar a atividade sexual para o casamento e estender o controle da Igreja ao
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casamento, transformando-o de uma instituição em grande parte secular num sacramento”


(RICHARDS, 1993, p.35). Assim, a regulamentação da sexualidade foi uma das grandes
preocupações da Igreja durante o Medievo, principalmente no século XII, quando, segundo
Richards (1993), houve campanhas contra homossexuais, segregação de mulheres prostitutas,
sacralização do casamento, bem como uma reafirmação do monopólio clerical acerca do
acesso a Deus. Dessa maneira, havia uma mentalidade de punir com o isolamento aquelas
minorias consideradas desviantes dos preceitos morais estabelecidos, que deveriam ser
seguidos pelos cristãos, notadamente as prostitutas, homossexuais e mesmo os leprosos, pois
se acreditava que “a lepra era o sinal externo e visível de uma alma corroída pelo pecado e,
em particular, pelo pecado sexual.” (RICHARDS, 1993, p.153). Dessa forma, os grupos
sociais rotulados como transgressores estavam, de alguma maneira, associados ao sexo que,
por sua vez, tinha uma relação com o pecado da luxúria, pecado que tem por matéria o prazer
sexual, a concupiscência da carne: “Sob a influência do cristianismo, uma nova ética sexual
impôs-se na Idade Média. A carne e o corpo são demonizados, como fonte do pecado. (...)”
(LE GOFF, 2010, p.137). Ademais, durante muito tempo, o sexo foi visto como um “mal
necessário” apenas para fins de procriação porque atrapalharia a inclinação maior do ser
humano, a perfeição espiritual que transcenderia as veleidades carnais. Elizabeth Martins
(2011) ressalta que “Para a Igreja, o sexo era o denominador comum entre todos os grupos
minoritários na Idade Média, considerados estes em razão do descomedimento da libido, uma
ameaça iminente aos cristãos ‘saudáveis.’”. (MARTINS, 2011. p.56).
Foi durante o período medieval que os pecados foram listados e classificados, pois se
acreditava que, ao classificá-los, seria possível conhecê-los, isto é, “determinar-lhes a
natureza, a gravidade, as relações recíprocas, mas significa também reconhecê-los a cada vez
que se apresentam no cotidiano da experiência pessoal ou da prática pastoral”
(CASAGRANDE & VECCHIO, 2002, p.344). A classificação dos pecados capitais remontam
a João Cassiano, séc. V, readaptados mais tarde por Gregório Magno. Tinham, segundo os
estudos de Lauand (2004), como fim, organizar a experiência antropológica voltada para a
realidade concreta. Os pecados capitais eram assim denominados porque dariam origem a
outros pecados e levariam os homens à danação eterna. “Muitas vezes modificado no decorrer
dos séculos, o sistema gregoriano apesar de tudo permanece, até o fim da Idade Média, como
o instrumento mais eficaz e mais difundido para classificar os pecados.” (CASAGRANDE &
VECCHIO, 2002, p.345).
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Os vícios capitais tiveram, ainda, a contribuição de Tomás de Aquino, que os


classificou em sete: vaidade, inveja, avareza, ira, luxúria, gula e acídia. “Hoje, em lugar da
vaidade, a Igreja coloca a soberba, e em lugar da acídia, é mais frequente encontrarmos a
preguiça (...).” (LAUAND, 2004, p.66). A luxúria foi o pecado que a partir do século XII
sofreu as maiores condenações, pois, como salientamos, naquele século deu-se a sacralização
do casamento, portanto o sexo tinha como única finalidade a reprodução, ficando proibida a
prática sexual com o intuito de obter prazer.

O pecado da carne tem seu território tanto na terra como no inferno. A


exibição no tímpano de Moissac* da luxúria –uma mulher nua com serpentes
a morder-lhe os seios e o sexo –por muito tempo será uma obsessão para o
imaginário sexual do Ocidente. ‘Não fornicarás absolutamente’ Pode-se
apreender o comportamento conjugal e sexual dos homens e mulheres do
início da Idade Média graças aos manuais redigidos para uso dos
confessores. (LE GOFF, 2010, p.151)

De maneira geral, as penitências aos desvios das normas estabelecidas pela Igreja
medieval eram diversificadas, porém, em nosso estudo, interessam-nos saber daquelas que
segregavam os grupos minoritários rotulados como transgressores, afastados e repudiados
pela sociedade cristã, como as prostitutas, os leprosos, etc. Segundo Martins e Pontes (2011),

Tais minorias, consideradas desviantes das normas cristãs, foram fadadas à


segregação, ao isolamento, e rotuladas de modo a servir como exemplo e
prevenir a contaminação dos cristãos. Isso foi apenas o reforço do Concílio
já havido em 1179, em cuja assembleia foi referendada a segregação dos
leprosos. A tanto se somou a prática persecutória aos hereges e demais
indivíduos considerados desviados e transgressores. (MARTINS &
PONTES, 2011, p. 56)

Consideramos importantes tais esclarecimentos acerca da mentalidade do Medievo,


visto que eles nos ajudam a notar a presença dos resíduos mentais daquela época no
imaginário presente nas narrativas populares que serão analisadas neste trabalho, pois, assim
como os grupos anteriormente citados foram alijados do convívio normal em sociedade, e
seus pecados estavam intimamente relacionados ao sexo, à luxúria, também ocorrerá com as
personagens transgressoras dos cordéis analisados neste trabalho, visto que perdem a forma
humana, o que as separa das comunidades nas quais estão inseridas, e que nós entendemos ser
um reflexo residual de uma mentalidade que nos antecede, a medieval, de castigar aqueles
que vão de encontro às condutas e normas morais e/ou religiosas definidas. Dessa maneira,
partindo do que aqui foi exposto, seguiremos para a análise dos folhetos escolhidos.
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Em A mulher que virou porca porque açoitou a mãe, de Pedro Bandeira e Expedito
Sebastião da Silva, encontramos a história de uma mulher de trinta anos, prostituta, que agride
a própria mãe, que com ela morava. Idosa muito religiosa, a mãe reclamava do modo como a
filha se vestia, pois, além de ela exercer a profissão do pecado, ainda andava quase despida. O
cordelista considera que o mundo está tal qual Sodoma, cidade destruída por Deus com uma
chuva de enxofre e de fogo, segundo o livro de Gênesis, pelos constantes atos pecaminosos.

Na corrupção o mundo
está igual a Sodoma
os exemplos que sucedem
não há quem saiba da soma
vive o povo encegueirado
num sofrer desesperado
e por castigo não toma

Porque muita gente vive


guiada por satanaz
desconhece e não dá crença
as virtudes divinais
quer levar tudo de eito
faltando com o respeito
até pra com os seus pais
(BANDEIRA & SILVA, p. 01, s/d)

Desde o início do cordel, verificamos que o imaginário do poeta popular é conduzido


por uma visão cristã do pecado, e a narrativa inicia-se com considerações acerca da
protagonista: “vivem no mundo/ só para fazer ruindade/ esse ser fraco e sem lume/ mora perto
dum cortume/ num bairro desta cidade” (BANDEIRA & SILVA, p.02, s/d). A cidade é
Juazeiro do Norte e, segundo o poeta, trata-se de uma história verídica. Certo dia, ao ver a
filha “imoralmente vestida”, a mãe reclama do traje e avisa-a que, um dia, ela ficará diante de
Deus, e Ele não a abraçará, pois as vaidades banais levariam-na para o inferno, junto a
satanás. A filha, no entanto, não se preocupa com a profecia e ainda responde com desdém:

Disse ela: minha mãe


da minha vida me gabo
pois quando saio na rua
ouça dizer: o diabo
te leve pra minha cama
outro dacolá exclama:
oh! Que pedaço de rabo!
(BANDEIRA & SILVA, p. 03, s/d)

A figura do diabo, durante o Medievo, era, também, associada à prática sexual fora do
casamento pela Igreja medieval: “A Igreja associava o sexo ilícito ao Diabo e sua legião de
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demônios, os quais assolavam o mundo, causando danos e colocando a tentação no caminho


dos cristãos comuns.” (RICHARDS, 1993, p.51).
Após a resposta recebida, a mãe considera que, se ainda fosse “perfeita”, daria na filha
uma surra, para ensinar-lhe o respeito. Esta, contrariada e insatisfeita com o que ouvira,
resolve que ela é quem daria a tal surra na velha senhora.

Aí a bicha danou-se
disse: velha desgraçada
você diz que bate em mim
porém está enganada
como me desafiou
se apronte que eu vou
dar-lhe uma surra danada

E alí pegou irada


a velha pela goela
atirou-a sôbre o chão
e depois montou-se nela
a bicha do gênio mau
com um pedaço de pau
pôs-se açoitar a mãe dela
(BANDEIRA & SILVA, p. 04, s/d)

A pobre senhora apanhou muito, gritou o quanto conseguiu, mas ninguém a socorreu.
A filha só terminou a agressão depois que viu a mãe inerte, estirada sobre o solo, sufocada
pelo sangue que de sua boca saía. Com grande esforço, a velhinha ainda conseguiu clamar a
Deus, confiante no poder divino, e jogou na filha uma praga, desejando-lhe que ela se
transformasse em uma porca que toda noite saísse a correr. Após algumas semanas, sem
nenhum tratamento de saúde, a mãe da jovem morreu, e o caso ficou encoberto, porque não
houve nenhuma testemunha do acontecido. A moça fica sozinha e, considerando-se livre,
resolveu que seu lar seria a rua, e que poderia andar vestida ou nua. Porém, em uma sexta-
feira, ao retornar de mais uma folia, ao passar por um local completamente escuro, sentiu uma
tontura e, sem conseguir equilibrar-se, caiu em agonia.

Ela sôbre o chão tomou


um aspecto diferente
ficou todo corpo dela
peludo rapidamente
a forma humana acabou-se
numa porca transformou-se
mas com cara de gente
(BANDEIRA & SILVA, p. 05, s/d)
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Nesse trecho da narrativa, observamos a metamorfose corporal da personagem, ou


seja, a concretização da praga de sua mãe. A moça, então, perdeu a imagem humana e,
portanto, a semelhança com o Criador, ganhando um aspecto monstruoso, a forma corporal de
um porco, porém com rosto humano, de tal modo que não seria confundida com um suíno
qualquer. Ao sair correndo pelas ruas durante a madrugada, acordava todos com seus roncos
descomunais. Além disso, ganhou um rabo comprido e orelhas grandes, comia todo tipo de
bicho que encontrasse pelo caminho e em todos causava grande medo.
Percebemos que a personagem, desde o início da história, é classificada como ser
fraco e sem luz, isto é, destinada às trevas, e, por transgredir importante mandamento divino,
honrar aos pais, e por ser amaldiçoada pela genitora, perde a forma física como punição, o que
a alija do convívio natural em sociedade. A jovem infringe o mandamento sagrado, pois não
aceita os conselhos de sua mãe e a agride, porque seu desejo de trajar-se de modo a chamar a
atenção masculina é grande, desejo que podemos associar ao pecado da luxúria. O cordelista
caracterizou-a por meio de suas vestes e classificou-a como ser “sem lume”. No Medievo, as
prostitutas, segundo estudos de Jeffrey Richards (1993), eram diferenciadas das mulheres
decentes por meio da “marca da infâmia”, uma roupa ou peça distintiva; eram também
condenadas à segregação, tal como acontecia, por exemplo, aos leprosos, isto é, às minorias
consideradas desviantes, pois a lepra, como dissemos, também era associada ao sexo, uma
punição aos desvios morais intimamente ligados aos pecados sexuais, e a mulher era
considerada um vetor potencial de contaminação. “A lepra tem sua origem na sexualidade
culpada (...) e a mancha da fornicação cometida pela carne aparece na superfície do corpo.”
(LE GOFF, 2010, p.149). A metamorfose física da filha pecadora é a sua punição, algo que
ela carregará como penitência concreta, manifesta. Entendemos que essa foi a maneira que o
poeta popular encontrou para demonstrar que aqueles que infringem as normas da doutrina
cristã, desrespeitando as leis divinas, serão punidos exemplarmente. Assim, o castigo sofrido
pela personagem mantém estreita relação com as práticas punitivas medievais de segregação
dos pecadores, e essa mentalidade é retomada pelo poeta através dos resíduos mentais e
culturais que perpassam o tempo, e mesmo o espaço, sobrevivendo no imaginário popular.
Em A moça que virou cadela, de Antônio Araújo de Lucena, o autor inicia seus versos
refletindo sobre o pecado e sobre o castigo divino e, em seguida, anuncia a história que irá
contar.

Ninguém acredita mais


Em santo e milagres seus,
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Nem que haja, atualmente,


Algum castigo de Deus,
Estamos virando hereges
Ou, pelo menos, ateus!

Por causa dessa descrença


Certa mocinha donzela
Das bandas de IPUEIRAS,
Teve que virar cadela
E ver muito vira-lata
Na mira do rabo dela
(LUCENA, p. 05, s/d)

A mocinha chamava-se Creuza, e a punição recebida por ela deu-se em uma sexta-
feira da paixão, quando a mãe dela, dona Aurora, convidou-a para se confessar. A jovem,
todavia, esquivou-se do convite, dizendo que, se fosse para dançar, a mãe não a convidaria;
ela gostava de “farrear” e de namorar, por isso tinha três namorados, e ressaltava que velha na
viuvez é quem gosta de confissão: “Eu gosto é de namorado/ Pra isso já tenho três,/ Quando
um falta, o outro vem/ E não me falta FREGUÊS” (LUCENA, p.06, s/d). A mãe alertava-a
para os castigos de Deus e ensinava que o intuito do namoro é o matrimônio.

A mãe lhe disse: Cuidado!


Deus pode lhe castigar!
Que NAMORO É MUITO BOM,
Mas pra gente SE CASAR,
Tomar conta duma casa,
Fazer de tudo... e AMAR.
(LUCENA, p. 07, s/d)

[...]

É melhor que me respeite!


– disse a mãe – E vá rezar
A Deus pedindo perdão,
Ou então, se confessar,
Acompanhe a procissão
Que acabou de passar.
(LUCENA, p. 08, s/d)

O ensinamento que Aurora transmite à filha retoma a mentalidade medieval acerca do


casamento, pois, naquele tempo, havia um esforço da Igreja para o controle da sexualidade,
por isso, no século XII, segundo Hilário Franco Júnior (2005), o casamento foi transformado
em sacramento, “única modalidade aceitável de vida sexual cristã” (FRANCO JÚNIOR,
2005, p.127). Além disso, a mãe da protagonista retoma a prática da confissão, importante
naquele período. Richards (1993) assinala:
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Em 1215, o Concílio Lateranense tornou obrigatória a confissão anual para


todos os cristãos, e isso, somados ao trabalho extensivo de comentários que
vinham das universidades, acarretou numa nova safra de manuais para
confessores, as Summae Confessorum, que colocavam ao alcance do padre
comum, de forma acessível e abrangente, um compêndio enciclopédico de
leis e ensinamentos da Igreja sobre todas as questões morais (RICHARDS,
1993, p. 39).

Creuza questionava tal ideia, falando para a mãe: “Quem se casa é quem se lasca!”.
Apontava a união matrimonial dos pais como exemplo, pois, para ela, o pai abandonava a
esposa para ficar no “meio do mundo”, do que a mãe discordava, porque, embora eles fossem
idosos, amavam-se, e ele saía apenas para ganhar o sustento da casa. A filha continuava
levantando suspeita sobre o casal, dizendo que até a mãe deveria aprontar quando o pai estava
fora. A velha senhora pediu que a filha a respeitasse, aconselhando-a a rezar e a pedir perdão
a Deus, acompanhar a procissão e confessar seus pecados e seus arrependimentos. A
protagonista, no entanto, afirmava ainda ser donzela, e que a religião dela era dançar e tirar
sarro, beber cerveja e quentão, pois tinha que gozar a mocidade, visto que o resto era ilusão. E
foi assim, por blasfemar da religião e preferir os prazeres mundanos, que a jovem
transformou-se em cadela:

Mas antes sair daqui


Virada numa CACHORRA,
No meio dos vira-latas
Do que ir para aquela porra.
Se a senhora quiser,
Vá logo, dispare, corra!

Dona Aurora ajoelhou-se


E orou muito por ela,
Mas foi perdido: a garota
Tão nova, atraente e bela,
Dentro de poucos minutos
Tinha virado cadela!
(LUCENA, p. 09, s/d)

Após a perda da forma humana, a cachorra rasgou o vestido, farejou objetos, uivou e
deu latidos. Aurora chorou muito ao ver a filha metamorfoseada. Dizia: “coitadinha, ficou
amaldiçoada!.../ O que será de minha filha/ Tão diferente e mudada?! (...)” (LUCENA, p.10,
s/d). A cachorra, porém, não achou ruim o castigo, achando aquelas palavras uma grande
besteira, e analisando que o bom daquilo tudo seria encontrar a cachorrada. Saiu alegre, de
rabo levantado, encontrou um par para si e, quando se lembrava, voltava à antiga casa muito
contente.
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Em ambos os cordéis, as protagonistas desrespeitam os pais. Em A mulher que virou


porca porque açoitou a mãe, a filha prostituta afronta a genitora porque deseja andar pelo
mundo com pouca roupa, e se “gaba” de os homens a desejarem, e de viver na orgia. Afirma
também que precisa andar daquela forma para mostrar a “mercadoria”. Já a segunda narrativa
apresenta-nos uma personagem que se diz donzela, mas que gosta de farra, que prefere viver
como uma cachorra a rezar, por isso namora vários homens. Entendemos que as duas
protagonistas são metamorfoseadas em animais como penitência por desrespeitarem aos seus
pais e pelas blasfêmias proferidas, tudo por não admitirem os conselhos maternais. As
transgressões cometidas pelas jovens podem ser localizadas como consequências do pecado
da luxúria, pecado capital listado durante o período medieval.

A luxúria, objeto sempre privilegiado da cultura do pecado, vê pesar sobre si


as mais severas condenações a partir do século XII, quando uma nova
doutrina matrimonial impõe aos leigos regulamentação mais rigorosa da
sexualidade, subordinando-a exclusivamente a fim de reprodução.
(CASAGRANDE & VECCHIO, 2002, p. 349).

A transformação das personagens em animais exclui-as da vida comum na sociedade


em que vivem, modo como eram tratadas as minorias rotuladas desviantes da Idade Média. A
representação da punição escolhida pelo cordelista, metamorfose em animal, pode ser
compreendida a partir das considerações de Vladimir Propp (1992):

Há animais cuja aparência, ou aspecto exterior, fazem-nos lembrar certas


qualidades negativas dos homens, por isso, a representação de uma pessoa
com aspecto de porco, macaco, gralha ou urso indica as qualidades negativas
correspondentes do homem (PROPP, 1992, p. 66).

Além disso, “o pecado, nas palavras dos pregadores, nas páginas dos tratados, nas
imagens pintadas e esculpidas no interior das igrejas, é representado: animais reais ou
imaginários, doenças imundas e contagiosas tornam-se pouco a pouco símbolos de sua ação
maligna (...)”. (CASAGRANDE & VECCHIO, 2002, p.339)
Acrescenta-se que a confissão proposta pela mãe à transgressora, no último cordel
analisado, era prática comum do mundo medieval, importante conduta cristã que aprofundava
o conhecimento da Igreja sobre as condutas e vícios humanos.
Concluímos esta análise, ressaltando que a Igreja tinha, no Medievo, grande controle
da vida social: ela regrava as condutas e as normas a serem seguidas pelos cristãos e ditava as
penitências para os que as infringissem. A mentalidade punitiva medieval ainda está presente
no imaginário popular contemporâneo, pois os resíduos daquele período histórico, de maneira
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geral, não se perderam no tempo; ao contrário, cristalizaram-se e influenciaram,


sobremaneira, a formação das culturas posteriores. Segundo estudos de Franco Júnior (2005),
imaginário significa um “conjunto de imagens, verbais e visuais, que uma sociedade ou
segmento social constrói com o material cultural disponível para expressar sua psicologia
coletiva. Logo, todo imaginário é histórico, coletivo, plural, simbólico e catártico” (FRANCO
JÚNIOR, 2005, p.183). Destarte, a bagagem cultural que nos antecede tem, portanto,
contribuído para a formação de nossa cultura.
Com o apoio da Teoria da Residualidade, conseguimos compreender como
permanecem vivos os resíduos mentais de um tempo que, cronologicamente, não tivemos:
Idade Média, da qual herdamos muitos dos valores e das crenças que adotamos na
contemporaneidade.
O presente estudo faz parte de uma pesquisa maior, ainda em andamento, que
continuará a ser realizada, pois várias são as possibilidades de investigação e de
aprofundamento, visto ser a literatura popular rica e representativa da cultura de um povo; no
caso deste estudo, do povo nordestino.

Referencias

BANDEIRA, Pedro; SILVA, Expedito Sebastião da. A mulher que virou porca porque
açoitou a mãe. Juazeiro do Norte, s/d.
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. “Pecado”. Tradução: Lênia Márcia Mongelli.
In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Bauru - SP: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. “Ciclos Temáticos na Literatura de Cordel”. In: Literatura
Popular em Verso. Estudos. Tomo I. Rio de Janeiro: MEC/Fundação Casa de Rui Barbosa,
1973. p.3-151.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2005.
LE GOFF, Jacques. Uma Longa Idade Média. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
LINS, Ivan. A Idade Média: a cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica
(cooperativa), 1939.
LUCENA, Antônio Araújo de. A moça que virou cadela. Paraíba: FUNCESP, s/d.
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LAUAND, Luiz Jean. “Introdução” In: TOMÁS DE AQUINO, Santo. Sobre o ensino (De
magistro), os sete pecados capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
MARTINS, Elizabeth Dias. “O caráter afrobrasiluso e residual no Auto de Compadecida”. In:
Anais da XVII Jornada de Estudos Linguísticos – Vol. II. Fortaleza: UFC/GELNE, 2000.
______; PONTES, Roberto. “Três casos de metamorfose residual para além da alegoria
popular em verso”. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade de Passo Fundo, v. 7, n. 1, p. 52-64, jan./jun. 2011.
PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes,
concedida à Rubenita Moreira, em 05/06/06. Fortaleza: (mimeografado), 2006.
______. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Fortaleza / Rio de Janeiro: EUFC / Oficina do
Autor, 1999.
PROPP, Vladímir. Comicidade e Riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
Andrade. São Paulo: Editora Ática, 1992.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Tradução:
Marcos Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.1993.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. Waltemir Dutra. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores, 1979.
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REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA POESIA POPULAR DE RENATO CALDAS

Daniel Francisco da Silva


UFRN
Eidson Miguel da Silva Marcos
UFRN

Introdução

Segundo o pensamento do crítico Vítor Manuel de Aguiar e Silva (Coimbra, 1988, p.


116-118), a designação de literatura popular é complexa, dada a polissemia do termo
"popular". Desta forma, numa perspectiva romântico-tradicionalista, ele afirma que literatura
popular significa "aquela literatura que exprime, de modo espontâneo e natural, na sua
profunda genuinidade, o espírito nacional de um povo, tal como aparece modelado na
particularidade das suas crenças, dos seus valores tradicionais e do seu viver histórico".
A literatura popular, como tantas outras expressões artísticas, sempre apresentou a
mulher em suas mais diversas formas e características. Alguns estudos vêm comprovando as
posições atribuídas à visão do feminino nesses gêneros literários demonstrando um nível de
interesse acadêmico cada vez maior. Partindo da designação dos estudos da representatividade
feminina na poesia, buscamos analisar esses aspectos presentes no livro Fulô do Mato do
poeta potiguar Renato Caldas, procurando identificar de que forma se encontra esta temática
na obra do referido autor.
Nesta obra, o autor atribui à poesia contornos diversos, o que revela uma
grandiosidade no seu discurso, refletida nas angústias e frustrações diante da complexa vida
nordestina, mas, acima de tudo, um eu reflexivo diante desses acontecimentos. Em outros
aspectos, observa-se a condição que envolve as personagens femininas, a condição que rege
os mecanismos que compõem a época em que viveu. Paralelamente, Renato Caldas traz
discussões de questões relativas às consequências das divisões sociais na vida nordestina. A
figura feminina, em Fulô do Mato, é peça importante para compreendermos que a Literatura
tanto pode enaltecê-la quanto denegri-la. As mulheres de Renato Caldas são sempre o seu
complemento e a sua necessidade de viver. Não se trata de um folhetinista, de um cordelista,
nem seus poemas são cordéis. Renaldo Caldas é um poeta que aproxima o leitor do cheiro do
mato e o convoca a conviver com os mais diversos panos de fundo da nossa terra por meio da
sua poesia matuta.
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Representações da mulher negra na literatura brasileira

Historicamente falando, as mulheres viveram, por séculos, à margem de todo processo


social, à sombra da figura masculina. SILVA NETO (2012, p. 322) vai nos dizer que “foi
apenas no século XIX que a mulher, mesmo que incipientemente, iniciou sua caminhada na
história, em termos de registros documentais”. Tratar, portanto, da questão do feminino, da
presença da mulher como personagem na Literatura Brasileira é algo extremamente
complexo, requer noções contextualizadas, observando aspectos históricos, sociais, étnicos e
destacando, principalmente, a participação dessas nos espaços que lhes foram negados. Ao
pensarmos na mulher negra, especificamente, o quadro se amplia e se agrava. Como afirma a
poetisa, ensaísta e militante do movimento negro, Miriam Alves:

Ao pensar a participação das mulheres negras na literatura afro-brasileira, é


necessário refletir sobre o passado colonial, as condições de superexploração
e a violência vivenciada por mais de três séculos e que perduram na
contemporaneidade através da desigualdade de oportunidades e a
discriminação racial velada ou ostensiva, revelando a forte dimensão racial
que permeia a sociedade brasileira em todos os níveis. Essa sociedade
acabou construindo categorias sociais ao longo do tempo, com base em
diferenças físicas, ascendência genealógica, sexo (enquanto gênero) e cor da
pele, fatores usados para predeterminar, ou seja, excluir ou incluir, pessoas
na estrutura social, gerando esquemas de valorização que acabam influindo
no pensamento cotidiano, na postura intelectual e na representatividade do
imaginário nas artes, em geral, e na literatura, em particular. (ALVES, 2010,
p. 60)

Os estudos das representações da mulher negra na poesia brasileira tiveram como


ponto de partida as obras ditas “canônicas” de autores consagrados em textos de diferentes
épocas e escolas literárias. Todos os aspectos encontrados nessas obras constatam uma
relação de erotismo e de servilidade dada às condições de uma sociedade patriarcal, que
perpetua estereótipos relacionados ao físico feminino.

Enquanto personagem, a mulher afrodescendente integra o arquivo da


literatura brasileira desde seus começos. De Gregório de Matos Guerra a
Jorge Amado e Guimarães Rosa, a personagem feminina oriunda da diáspora
africana no Brasil tem lugar garantido, em especial, no que toca à
representação estereotipada que une sensualidade e desrepressão. “Branca
para casar, preta para trabalhar e a mulata para fornicar”: assim a doxa
patriarcal herdada dos tempos coloniais inscreve a figura da mulher presente
no imaginário masculino brasileiro e a repassa à ficção e à poesia de
inúmeros autores. Expressa na condição de dito popular, a sentença ganha
foros de veredicto e se recobre daquela autoridade vinculada a um saber que
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parece provir diretamente da natureza das coisas e do mundo, nunca de uma


ordenação social e cultural traduzida em discurso. (DUARTE, 2009, p. 6)

Com o tempo, alguns estudos se voltam para obras de autores preocupados com uma
questão ancorada na relação de determinações sociais; autores com perspectivas que elevam
essa visão e a colocam de lados opostos. “O texto afrobrasileiro inscreve a mulher num outro
diapasão, no qual o corpo mais do que nunca expressa sua condição de vítima de uma ordem
social calcada na exploração e no preconceito”. (DUARTE, 2009, p. 16)
Essas obras, até então desconhecidas aos olhos da comunidade acadêmica, nos levam a
refletir sobre a condição da mulher negra nas diversas esferas que perpassam e perpassaram a
sociedade brasileira desde a sua origem. Elas “surgem para agregar um perturbador
suplemento de sentido ao conjunto de figurações marcadas desde sempre pela expressão das
fantasias sexuais aqui plantadas pelo discurso do colonizador”. (DUARTE, 2009, p. 17)
A literatura, com seus estereótipos, frequentemente reforça o grau de uma sociedade
patriarcal, sexista e racista em diferentes momentos e nos apresenta os lugares sociais
assinalados ao gênero feminino durante todo o período de formação. Tal afirmativa vai de
encontro com a seguinte formulação:

A representação hegemônica da mulher negra na literatura brasileira, ao


longo da história, resultou, como sabemos, de construções de escritores
brancos: integrou uma tripartição de funções socialmente atribuídas a
mulheres brancas, mulatas e negras, elaborada pelo imaginário masculino
eurodescendente. Centrada nos interesses do projeto de hegemonia deste
segmento, via patriarcalismo, não apenas nas relações entre os gêneros, mas
também nas econômicas, de dependência da mulher ao homem, e políticas,
de marginalização dela da esfera pública e, sobretudo, do poder. (CAMPOS,
sd, p. 1)

Na chamada literatura popular não é diferente; apresenta essas características com


relação à mulher e procura estabelecer um vínculo entre os valores sociais da época, ou seja,
essa representação feminina é dividida em dois lados: ora como senhora, dona do lar,
dedicada aos afazeres domésticos e ao marido, ora como objeto de desejo, sedutora, em que as
personagens normalmente trocam as posições sociais, a prostituta torna-se senhora do lar e a
senhora do lar torna-se a “vadia”. São colocados amplos modos de comportamentos, mas que
estão quase sempre ligados a uma construção estereotipada da mulher como submissa,
destinada ao trabalho doméstico, cuja função se resume basicamente à procriação. A intenção
é refletir sobre essa influência dos modelos patriarcal e católico em que consiste a composição
de folhetos, cuja temática predominante é a do ciclo moral religioso.
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Até meados do século XX, é predominante no cordel um discurso ideológico


de base católica que corrobora para a construção de representações
femininas a serviço do interesse de um discurso patriarcal que pretende
impor a sua cosmovisão como universal. Nos textos, os valores religiosos
impõem uma unidade de comportamento que leva à construção de uma
identidade feminina uniforme, sobrepondo-se a outras. Em função deste
propósito, prevalecem em muitos cordéis estereótipos com os quais os
leitores devem se identificar, unificando pessoas de origens distintas graças à
imposição de um mesmo discurso político e moral, que cala as diferenças e
marginaliza grupos. (BARBOSA, 2010, p. 49)

No final do século XX surgem cordéis com um novo enfoque da visão da mulher que
desvincula o discurso católico patriarcal, embora esse ainda persista, passando a apresentar
uma fusão de traços históricos, cômico e satírico, recriando novos hábitos e transfigurando a
conduta feminina, além da inversão de papéis dos gêneros masculino e feminino que
continuam presentes no século XXI. Até então, predominava um discurso com o objetivo de
ridicularizar a mulher, rebaixando-a, em relação ao homem. Neste sentido, objetivamos
apreciar a poesia de Renato Caldas destacando aspectos como a questão étnica e a
representação da mulher nas vertentes destacadas acima, que em uma leitura primeira pode-se
chegar à conclusão de que o sujeito lírico não apresenta esses traços; porém, ao
aprofundarmos nossas reflexões, constatamos que ele sugere as mesmas visões em relação à
mulher.

As mulheres de Fulô do Mato

Ao se discutir questões como etnicidade na poesia de um autor potiguar como Renato


Caldas, não podemos deixar de considerar o contexto no qual tal discussão está inserida: o
Rio Grande do Norte. Mesmo tendo no termo potiguar1 um gentílico para quem nasce no
Estado, verifica-se um marcado processo de apagamento étnico, onde importantes atores da
história e da cultura são relegados ao segundo plano, quando não eliminados da historiografia
oficial. Segundo atesta a antropóloga Julie Cavignac:

nas representações nativas do passado, percebemos uma ausência dos


principais atores da história colonial. Nos dois casos, as populações
autóctones, os escravos e seus descendentes, são relegados ao segundo
plano. (CAVIGNAC, s/d, p.1).

1
O termo potiguar remete à ‘potiguara’, denominação de tribo que habitava o litoral brasileiro à época da
chegada dos europeus ao continente americano. Atualmente existem cerca de 22 comunidades potiguara
distribuídas nos municípios de Marcação, Rio Tinto e Baía da Traição no Estado da Paraíba.
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Isso se verificaria pelo fato de que, no Nordeste,

e ainda mais no Rio Grande do Norte, a história foi primeiramente escrita


fora dos contextos acadêmicos e, essencialmente, pelas elites locais que
tentaram apagar, a todo custo, as especificidades étnicas ao longo dos
séculos. (Idem, s/d. p. 1),

Ou seja:

Logo após a retomada do território pelos portugueses na segunda metade do


século XVII, podemos pensar que houve uma ação planejada e coordenada,
visando a eliminação física das populações nativas e que, ao mesmo tempo
se desenvolveu um movimento contínuo e generalizado de apagamento
sistemático da presença cultural dos grupos nativos; movimento que resultou
numa amnésia coletiva. Neste sentido, o aniquilamento do elemento indígena
nas consciências, inclusive dos próprios descendentes, a erradicação física
aliada ao apagamento dos índios nos documentos administrativos, pode ser
interpretado como sinais do pleno sucesso do colonizador. (Idem, s/d, p. 10)

Nesse sentido, podemos vislumbrar uma repercussão desse apagamento também no


campo semântico das palavras. Algumas expressões como negro/a, caboclo/a, moreno/a
acabaram sofrendo, ao longo do tempo, uma ressemantização dos seus conteúdos, com
acréscimos de novos sentidos. Desta feita, usam-se no Brasil em geral, e no Nordeste em
particular, expressões como nego/a, caboco/a, moreno/a não exatamente (ou não somente)
para designar o homem/mulher de cor, ou o mestiço resultante do cruzamento de branco com
índio, branco com negro ou negro com índio, mas como expressões genéricas para designar
um indivíduo, sem especificá-lo quanto a características étnicas. Por exemplo, quando se fala
em uma “caboca da terra”, não se está falando necessariamente de uma “mestiça”, mas de
uma “mulher”, ou seja, a expressão não está especificando uma condição etnorracial, mas
apenas o gênero da pessoa, equivalendo, portanto, a moça ou mulher. Também expressões
como “nego” ou “nega” ganham conotação afetiva em falas do tipo “meu nego” e “minha
nega”.
É muito importante atentar para o uso dessas expressões na poesia de Renato Caldas,
que as usa constantemente para designar as personagens de suas poesias. Sua obra Fulô do
Mato (1980) apresenta características bem particulares. Por meio de uma linguagem simples,
bem coloquial, a sua poesia traz à tona uma riquíssima descrição dos problemas nordestinos
da época em que foi escrita e que perduram até os dias atuais. Existe em seus escritos uma
constante reflexão do eu sobre esses aspectos que são colocados em prática por meio de
construções semânticas bem elaboradas nos poemas. Outros pontos levantados são as
diferenças sociais e a falta de compromisso dos políticos com a nossa terra. Mesmo tratando
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de outros assuntos, a mulher está sempre presente como elemento ratificador do discurso
proferido pelo sujeito lírico. Vejamos a expressão “Está certa a Dona Gena!”, constante no
poema “Trovas” (p. 96):

Está certa a Dona Gena!


― Cabe mais felicidade,
Numa casinha pequena
Onde há tranquilidade.

O eu-lírico volta-se em alguns poemas como para uma crítica às divisões sociais,
retratando essas diferenças e relatando que não existe felicidade maior do que no seu grupo de
convívio, ou seja, as classes menos favorecidas, como vimos no supracitado trecho do poema
Trovas. No poema “Avariantes” (p. 95) o poeta também expressa a lealdade de alguém
quando ama, ao ponto de aceitar qualquer possibilidade. Neste caso trata de um amor que não
pode ser realizado, pois o sentimento aqui referido seria um amor do negro pela patroa. Na
penúltima estrofe traz de volta a questão da representação social, quando afirma que o negro
não tem o mesmo cheiro do branco, mas o branco só cheirava por causa do trabalho do negro.
Os pontos de exclamação tem uma função intensificadora muito interessante: retratam um
desabafo, um grito reflexivo, expondo a sua angústia por causa dessas diferenças que faziam
com que o negro não tivesse o seu amor correspondido:

O branco anda cherando!


O nêgo só tem fedô!
Mais foi o nêgo lidando,
Qui deu cheiro ao seu Sinhô.

Nos poemas “Reboliço” (p. 47) e “Pra que oiá?” (p. 49) vemos que o poeta focaliza a
sensualidade da mulher, levando em conta aspectos que poderiam demonstrar uma visão
vulgar; destaca-se a beleza atribuída à menina, fazendo com que os homens fiquem seduzidos
pelo seu rebolado. No primeiro poema, o eu lírico questiona se a cabocla poderia explicar por
que, quando vê homens, remexe a cintura, provocando-os; afirma ainda que se tivesse algum
valor a prenderia para admirá-la:

Menina me arresponda,
sem se ri e sem chorá:
Pruque você se remexe
quando ver home passa?
Fica tôda balançando,
remexendo, remexendo...
Pensa tarvez, qui nós véio,
nem tem óio é e nem tá vendo?
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Mas, se eu fosse turidade,


se eu tivesse argumvalô,
eu botava na cadeia
êsse seu remexedô...
E adespois dele tá preso,
numlugá, bem amarrado,
eu pedia: ― Minha nêga,
remexe pro delegado.

Nesse poema, o eu-lírico usa a expressão “Minha nêga” não para designar a condição
etnorracial da mulher, mas para denotar uma afetividade em relação à menina a quem se
dirige, afetividade esta carregada de um tom de censura, como fica evidenciado no último
verso: “remexe pro delegado”.
No segundo poema, o sujeito lírico expõe emoções provocadas pela passagem daquele
corpo maravilhoso. Em ambos os poemas, defende a ideia de que queria tê-la para si, apenas
para admirá-la, já que estava velho e não poderia “fazer nada”:

Me fazia de dengoso
Pachola, esperto, amorôso...
Porém, nada de avançá.
... Práquêfazêtraquinage?
Véio só tem pabulagem...
Farta na hora legá.

Em outros poemas como “Resposta de cabôca”, Renato Caldas assume um eu lírico


feminino, numa expressividade que lembra as cantigas de amigo galaico-portuguesa:

Cabôco te quero tanto!


Qui nem podes maginá.
Longe de ti, o meu pranto,
Meus óio, véve a lavá.

Mais uma vez o poeta vai utilizar o designativo “Cabôco” para referir um indivíduo do
sexo masculino, alvo do desejo da “Cabôca”, ou seja, para expressar afetividade. As
terminações “Cabôca” e “Cabôco” podem ser utilizadas pelo eu-lírico também para se referir
ao negro, como no poema “Inxurrada Mardíta”, onde ele destaca a cor dos olhos e dos cabelos
como pretos, descrevendo uma mestiça ou uma negra de fato:

Uma cabôca fermósa...


Tão bonia...Cuma o quê?!
Os óio, os cabelo dela,
eram pretos de duê
E o resto daquele anjo,
num tem quem possa dizê.
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No poema “Mulata”, mais uma vez o poeta traz uma descrição da beleza da mulher
negra nascida no pé de serra sertanejo; ao mesmo tempo em que se refere a essa denominação
também usa o termo “morena” na mesma poesia, cofirmando o que propõe na sua obra, uma
mestiçagem feminina.

“Mulata da minha terra”!


(...) qui eu infeite as tampa morena,

No poema “Meu tudo” (p. 69), Caldas traz uma questão curiosa: ao tempo em que
trata do erotismo, expõe a valorização da mulher. Aqui o poeta faz um diálogo com o patrão,
descrevendo toda a riqueza do mesmo e a vida que leva com muita prosperidade sem
conhecer necessidade. Em seguida relata que mesmo na sua vida simples reinava a mesma
felicidade e que não trocava nada que tinha por toda a riqueza do patrão. Diz ainda que a
maior fortuna, o maior tesouro de ambos são as esposas, suas mulheres:

Apois bem, essa riqueza,


essepodê e grandeza,
essa fartura sem fim...
Deus, nosso Pai de Grandeza,
Dentro da minha pobreza,
me deu tambem tanto assim.

Minha casa é um ranchinho,


nabêrada do caminho,
todo cercado de frô...
Num tem nada de grandeza...
Mais lá dentro hai uma riqueza:
Minha muié. Meu amô.

No poema “Lôvação à rainha dos estudantes” (p. 124) o autor começa relatando um
contexto histórico por meio do discurso que ouviu o avô contar: a época que Pedro II
governava o país. Em seguida lembra-nos da ditadura militar que ocorreu por volta de 1964 a
1985, fala da queda do regime e de uma nova eleição, temas que desagradaram o seu avô. De
forma subjetiva, trazendo as divisões dos poderes, faz uma crítica aos acontecimentos
históricos que não ajudaram em nenhum momento a vida do povo brasileiro.
Posteriormente, realiza uma quebra total da temática que vinha abordando e volta-se
para o poder da mulher sobre o homem, afirmando que elas são as verdadeiras representantes
da monarquia de uma nação, tendo poder supremo ao controlar o coração. Uma suposta
valorização da mulher pode ser relativizada no momento em que se distingue um tom
depreciador de um possível comando feminino:
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Mas, agora é deferente.


O povo faz o qui qué.
Aqui num hai Presidente;
Quem vai manda é muié.

O poema Hirisia (p. 25) é uma representação da contradição estabelecida nesta obra,
ora especificando a mulher com características medonhas, ora com santidade. O termo usado
heresia significa algo que uma doutrina religiosa não aceita, nesse caso o fato dele colocar a
mulher acima da Mãe de Jesus que não teria os olhos tão bonitos quanto da morena do poema.

Mas, juro inté pela cruz,


pula Santa Imaculada,
pula hósta consagrada,
juro pru tudo e arrepito
qui nem a Mãe de Jesus,
tem uns óio tão bonito.

A mulher retratada em “Confissão” (p. 30) chega a ser comparada a uma santa que
mesmo fechando os olhos ainda assim consegue vê-la, uma idealização da perfeição da
amada. Já em “Juramento” (p. 33) o poeta fala de todo o sofrimento que ela proporcionou
para ele, mas, que um dia Deus abençoaria, ele esqueceria e nunca mais olharia para nenhuma
mulher.
O poeta demonstra ter uma fissura enorme por olhos, constantemente ele remete ao
prazer que tem na troca de olhares. No poema “Incandiado” (p. 41) destaca que é impossível
olhar nos olhos de Sá Dona que reflete uma luminosidade tão grande que não deixa ver nada
além dos seus olhos.
A mulher, o desejo, a malícia, estão presentes na poesia de Renato Caldas, mas um dos
pontos mais colocados em seus poemas é o cheiro e a beleza da mulher, no poema “Fulô do
mato” (p. 17), por exemplo, o poeta quer demonstrar uma exclusividade de um cheiro tão
forte que nenhuma superava:

Podem fazê um cardume,


de tudo quifôprefume,
de tudo quifôfulô,
quí nem um, nem uma só,
tem o cheiro do suó
qui o seu corpinho suô.

No poema “Lagoa das moças” (p. 46) o poeta deixa em aberto por meio de perguntas,
por que, aquela lagoa cheira tanto, seria por causa das moças da região que tomavam banho
ali todos os dias? Ainda coloca que queria ser a lagoa para ter o prazer de olhar para elas.
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Eu num sei pruquerezão


essa água cheira tanto?
Num sei mesmo pruque é...
Mas, descunfio e agaranto:
sê do suó das muié.

A mulher retratada será o monopólio masculino, à cabocla que ele canta, passa a ser
sublimado pela harmonia que ele busca destacar entre ela e a natureza, fundindo-a à flor, à
terra, à água, ao sagrado e ao profano. A poesia de Renato caldas, portanto, apresenta
representações da mulher que contemplam o erótico, o ético, o etnorracial, o social dentre
outras. Assim, uma possível valorização da mulher como objeto poético passa a ser
relativizada no momento em que percebemos traços de estereótipos machistas referentes ao
feminino.

Referência

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8.a ed. Coimbra: 1988, p. 116-
118.
ALVES, Miriam. Mulheres negras, militância e literatura. In: ______. Brasil Afro
Autorrevelado. Belo Horizonte: Nandyala, 2010, p. 60
BARBOSA, Clarissa Loureiro Marinho. As diferentes abordagens sobre a mulher no cordel.
In: ______. As representações indenitárias femininas no cordel: do século XX ao XXI.
Recife-PE: UFPE, 2010. Dissertação de mestrado.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Representações da mulher negra na literatura
brasileira. UERJ/PEN CLUBE DO BRASIL
CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em
perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; EDWIN,
Reesink; CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,
alteridades. Natal: EDUFRN, 2011.
DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade. Terra
roxa e outras terras - Revista de Estudos Literários. Volume 17-A (dez. 2009) – ISSN 1678-
2054. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa.
SILVA NETO, Lourival Bezerra da. Memorial da Mulher: perspectiva historiográfica. In:
Presença da Mulher na Literatura do Rio Grande do Norte .Academia Feminina de Letras do
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RN – Memorial da Mulher/Zelma Bezerra Furtado e Kacianni de Sousa Ferreira. Jundiaí/SP:


Paco Editorial, 2012.
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ATRAVESSANDO AS VEREDAS DO SERIDÓ: UMA LEITURA DE “A NEGRA DA


CACHOEIRA DOS SAPOS”, DE AIRTON DE NEGREIROS MONTE

Eidson Miguel da Silva Marcos


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Amarino Oliveira de Queiroz
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Em seu artigo “Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura” Ligia
Chiappini apresenta a seguinte constatação:

O regionalismo é um fenômeno universal, como tendência literária, ora mais


ora menos atuante, tanto como movimento – ou seja, como manifestação de
grupos de escritores que programaticamente defendem sobretudo uma
literatura que tenha por ambiente, tema e tipos uma certa região rural, em
oposição aos costumes, valores e gosto dos citadinos, sobretudo das grandes
capitais – quanto na forma que concretizem, mais ou menos livremente, tal
programa, mesmo que independentemente da adesão explícita de seus
autores. (CHIAPPINI, 1995, p. 154)

Dessa forma, mais que identificar um movimento que setores da crítica literária
consideram ultrapassado, o regionalismo pode ser lido no presente como um fenômeno
conectado à globalização, a despeito de retratar o que se costuma referir por “tipicamente
local". A estética dita regionalista, dessa forma, acabaria participando da construção de
identidades culturais outras, a exemplo do que se verificou em alguns momentos da trajetória
literária de países oficialmente lusófonos como Cabo Verde, nitidamente influenciada pelo
Regionalismo nordestino de 30, ou, como assegura Lygia Chiappini, alimentando pesquisas
atuais, “ganhando uma amplitude maior na intersecção dos estudos literários e artísticos,
históricos e etnológicos” (CHIAPPINI, 1995, p. 153).
Nesse sentido, identidades espaciais são construídas em um dado momento histórico,
dotados de uma visibilidade e de uma dizíbilidade por certos mecanismos de poder, a exemplo
da emergência de uma identidade para a região Nordeste do Brasil enquanto objeto de saber e
espaço de poder. Em A invenção do Nordeste e outras artes Durval Muniz de Albuquerque Jr.
trata do universo de imagens e estereótipos, positivos e negativos, que engendrou a própria
ideia de “região Nordeste”, para a qual concorreu decisivamente a literatura.
Assim, o chamado Regionalismo nordestino, ou Regionalismo de 30, estava
diretamente ligado a eventos históricos bem marcados, como a crise das economias açucareira
e algodoeira do final do século XIX e princípio do século XX, especialmente na região
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Nordeste do Brasil. Tal crise desencadeou um processo de declínio dos grupos políticos
dominantes dessa região, sendo que as principais características estéticas e ideológicas do
Regionalismo de 30 se configurariam como desdobramentos dos valores dessas elites em face
de tal declínio:

Na produção literária brasileira, o regionalismo já se manifestava, pelo


menos desde as décadas de cinquenta e sessenta do século XIX (...) em que a
simples descrição do Brasil como um conjunto de paisagens atemporais dá
lugar a uma visão genealógica das diversas áreas do país e de sua população,
mais precisamente de suas “elites”. Emerge o narrador oligárquico,
provinciano, que se especializa em escrever a partir da história de suas
províncias e das parentelas dominantes. (...)
Um regionalismo que, após a Proclamação da República, passa a se
expressar cada vez mais sob o disfarce do nacionalismo. (ALBUQUERQUE
JR., 2011, p. 65)

Com esse regionalismo, várias partes do Brasil foram mapeadas via literatura,
ganhando uma projeção nacional enquanto espaços socialmente reconhecidos e consagrados
como entidades ontológicas. No Nordeste, características comuns presentes em uma gama de
obras cristalizou certas imagens e discursos sobre a “região”. No Rio Grande do Norte,
ganhou certo destaque no cenário nacional o escritor José Bezerra Gomes através de obras
como Os Brutos e A Porta e o Vento. Nesses romances, o autor retratou, a partir de recursos
estéticos peculiares ao Regionalismo de 30 sua terra natal, a então Vila de Currais Novos,
localizada no sertão potiguar.
Com tal ambiência em seus textos, José Bezerra Gomes acabou projetando uma
microrregião para o país: o Seridó potiguar, região fisiográfica situada dentro de dois Estados:
Rio Grande do Norte e Paraíba. Retratando temas recorrentes da estética regionalista como a
seca, a migração, o memorialismo, Bezerra Gomes também projetou idiossincrasias dessa
região intra e interestadual, a exemplo da tradição patriarcalista e da cultura algodoeira,
“símbolo” econômico e cultural do Seridó.
Descendente de antigas elites decadentes da região, José Bezerra Gomes, como tantos
outros, projetou em seu trabalho literário, ensaístico e historiográfico todo um imaginário
oriundo de um grupo social específico. Assim:

a territorialização do espaço que hoje é referenciado como Seridó pelos


órgãos de planejamento, sofreu modificações ao longo do tempo, recortado
que foi pela definição e redefinição dos limites de atuação de suas elites.
Cada novo desenho do Seridó seja no mapa, seja no discurso, correspondeu a
uma forma de dizibilidade desse poder. (MACÊDO, 2012, p. 221)
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Elite cuja “série genealógica legitimava-o como um individuo que não parte de um
lugar social [e étnico] qualquer” (MACÊDO, 2012, p. 112). Elite com a qual muitos dos
produtores literários regionalistas se identificaram, como o próprio José Bezerra Gomes, que
não deixou de legitimar o lugar social e étnico desse grupo social em sua obra literária e
historiográfica. Exemplos disto são poemas como “Sobretudo Currais Novos”, onde o autor
exalta a origem de sua terra natal: “cidade de Currais Novos/ Advinda do Capitão-Mor
Cipriano Lopes Galvão/Fundador/Filho/do Coronel Cipriano Lopes Galvão/Primeiro Coronel
do Regimento da Ribeira do Seridó” e arremata: “Unos/Ambos/Assumem/a paternidade/ de
Currais Novos/diante do testemunho do tempo percorrido” (in: SOUZA, 2011, p. 17-18). Já
em Sinopse do Município de Currais Novos, Bezerra Gomes aponta que:

contrastando com o tipo mestiço, morfológico, característico do meio


seridoense, de cabeça chata, observa-se a presença ainda hoje viva do
elemento branco, de olhos azuis e cabelos brancos, caracterizando o
seridoense, enobrecido pela sua origem genealógica, oriundo do antigo
marinheiro (dólico-louro), de origem lusa, lembrando loirões e alentejanos,
originários de Portugal. (GOMES, 1975, p. 41-42)

A formulação acerca da caracterização étnica identitária do seridoense de Bezerra


Gomes é um tanto confusa. Ele parece dizer que, embora exista um tipo mestiço característico
no Seridó, é o elemento branco, “de olhos azuis e cabelos brancos, enobrecido pela sua
origem genealógica dólico-loura lusitana” que representa o seridoense característico.
Em outro de seus poemas, intitulado Seridó, José Bezerra Gomes define a região em
apenas duas palavras: “Casa Grande”, provavelmente uma referência a um lugar social,
afetivo para ele. De fato, a história tida como oficial em muitas localidades do Rio Grande do
Norte dá conta de origens protagonizadas pelo homem branco, proprietário de terras e de
títulos de honra, representado na figura do coronel. A sugestão de uma espécie de limpeza
étnica e social, portanto, parece operar na construção desses discursos fundacionais
verificáveis em contextos como o seridoense.
No Estado do Rio Grande do Norte, então, é perceptível a existência de regionalismos
internos, como o que confere à região do Seridó uma identidade diferencial dentro de uma
“potiguaridade” ou uma “paraibanidade” mais amplamente compreendidas. Discursos e
imagens da literatura, em seus mais variados gêneros, dotam o Seridó de características típicas
no que tange a hábitos, linguagem, história e condição etnorracial de seu povo. No
Romanceiro popular podemos encontrar os ‘marcos’, “transposição para a forma escrita do
valor que os cantadores atribuíam a suas ribeiras, vistas por muitos deles como castelos em
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que, abancados, resistiam ao ataque de qualquer cantador, permanecendo donos da praça.”


(SOBRINHO, 1981, p. 11). Em 1927, o poeta Manoel Tomaz de Assis escreveu o Marco do
Seridó, produzido em Currais Novos, no qual declara: “Está nos anais da fama/ O Marco do
Seridó/ O Marco está defendendo/ Natal, Assu, Mossoró/ Ouro Branco, Serra Negra/ São
João, Jardim e Caicó”.
Verifica-se, no entanto, que boa parte dessas imagens e discursos traz em seu bojo o
legado de um projeto colonial que seleciona fatos, imagens e nomes para alçá-los à condição
de uma identidade única, em detrimento de outros traços, como os que se referem às
alteridades negra, indígena e cigana, por exemplo.
Ao procurar retratar o sertão seridoense em sua obra Veredas do Seridó, o potiguar
Airton de Negreiros Monte se mostra reencontrando um lugar perdido, um lugar que devolve
uma identidade a um “expatriado”. Esse lugar é o Seridó dos vaqueiros de gibão e chapéu de
couro, de agricultores e tropeiros inseridos em um espaço rural, atemporal. Nas vinte e duas
narrativas curtas que integram seu trabalho, Airton mistura relato de experiência,
historiografia e contação de causos, mesclando o factual e o fictício, o documental e o literário
para construir o Seridó que tanto respeita e admira.
Em seu primeiro conto no livro, “A Negra da Cachoeira dos Sapos”, Airton apresenta
um cenário rural, de fazendas de criação de gado, com coronéis e vaqueiros encourados. A
narrativa apresenta uma estrutura que funde características do conto, do relato pessoal, da
pesquisa historiográfica e do causo, gênero da oralidade, desenvolvendo uma construção
textual de entre - gênero alicerçada entre a oralidade e a escritura, a factualidade e a
ficcionalidade, a memória e a imaginação criadora. O enredo gira em torno da gesta do gado,
temário pertencente ao romanceiro popular de origem ibérica, adaptado ao contexto
brasileiro1.
Um grupo de vaqueiros, representantes de várias localidades do sertão seridoense se
une para a captura de um barbatão – touro selvagem, sendo um desses vaqueiros uma mulher,
negra e grávida, a qual termina por realizar uma façanha na empreitada. A narrativa inicia
com uma referência temporal imprecisa: “Há muitos anos”, típica dos gêneros literários orais
como os contos de fadas e as histórias de trancoso. Prossegue com informações etnográficas
sobre o modo de vida dos sertanejos e fazendas de gado, até chegar ao ponto de onde brota a
narrativa em questão:

1
Ver: CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
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Na freguesia do Acari, que se estendia desde a Serra do Doutor, no Rio


Grande do Norte, até Piancó, na Paraíba, numa extensão de mais de cem
léguas, corria de boca em boca uma dessas histórias de barbatão, cantada em
prosa e em versos pelos melhores violeiros da terra e admirada por todos os
sertanejos. (MONTE, 1992, p. 10)

Uma história buscada na tradição oral, na cantoria, nas vaquejadas vai ilustrar esse
Seridó pintado até o momento com tintas de documentário etnográfico. Então, “contava-se
que o negro Chico Luiz (...) juntamente com Zé Cardozo e Pedro Preto faziam uma rotineira
inspeção no gado (...) quando o barbatão apareceu pela primeira vez.” (MONTE, 1992, p. 10).
Aparecem os vaqueiros que caracterizam a paisagem humana desse Seridó representado no
texto, com destaque para aspectos etnorraciais de alguns. Um deles traz na alcunha a
identificação referente ao fenótipo de sua pele: “Pedro Preto”; outro é referido como “negro”.
Característica essa não recorrente com relação a outras qualificações étnicas, diga-se de
passagem. Personagens, a exemplo de Antônio Mulato e Ana Filomena, também vão ser
etnicamente identificados como negros.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas, ao tratar da alienação do negro, Frantz Fanon
ressalta a importância do fenômeno da linguagem para a “compreensão da dimensão para-o-
outro do homem de cor” (FANON, 2008, p. 33). No desenvolvimento de seu raciocínio,
Fanon aborda a adoção da língua francesa pelos seus compatriotas martinicanos e pela
maneira como os brancos se dirigem aos negros – forma de aproximação e distanciamento
entre negros e brancos, respectivamente. No caso do contexto de “A Negra da Cachoeira dos
Sapos”, os negros são nomeados, constituídos como negros: são etnorracialmente
identificados. Os coronéis, por exemplo, não são identificados dessa forma, o que nos leva
ainda para a questão de que é apenas o vaqueiro, o empregado que é distinguido pela sua
condição étnica. Uma posição social subalterna estaria também atrelada a essa mesma
condição étnica.
Seguindo a narrativa, alguns coronéis da região decidem que o barbatão deve ser
capturado. Reúnem-se, então, vaqueiros de várias localidades circunvizinhas para a
empreitada. O último vaqueiro a chegar ao lugar de onde partiria a expedição de captura é o
representante da fazenda Cachoeira dos Sapos. No entanto, quando este vaqueiro se apresenta
aos demais:

Todos ficaram pasmados. Ali estava, frente a eles, uma negra taluda, toda
encourada, segurando pelas rédeas um bonito cavalo alazão. O
encouramento, já bastante surrado, mal cobria uma enorme barriga, dando à
negra um aspecto hilariante e desajeitado. (...)
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Mesmo assim, com aquela aparência grotesca e desafiando o sorriso


debochado dos outros vaqueiros, a negra Filomena mantinha-se serene e
aguardava a hora da partida, que seria ao primeiro canto do galo. (MONTE,
1992, p. 12)

A negra Filomena é descrita pejorativamente como uma figura quixotesca, que


desperta o riso dos outros vaqueiros. De fato, é notadamente incomum, para uma cultura
patriarcal e machista, pensar em uma mulher exercendo um trabalho de “homem”, ainda mais
exercer uma atividade que requer força, destreza, habilidade e coragem em estado avançado
de gravidez. No entanto, esse dado incomum será o gerador do desfecho da história.
Os vaqueiros saem à procura do barbatão no dia seguinte. Ao encontrar o animal,
todos empreendem perseguição a ele. Esse touro, por sua vez, assim como nas gestas de gado,
possui força e destreza fora do comum, o que torna a sua captura um ato de heroísmo e
distinção para o vaqueiro. No meio da caatinga, muitos vaqueiros sucumbem à habilidade do
barbatão e aos obstáculos do meio, como o terreno acidentado e as árvores espinhosas. Os
homens não conseguem subjugar o animal e ainda se perdem da negra Filomena. Exaustos,
decidem voltar ao ponto de partida e retomar as buscas no dia seguinte, do barbatão e de
Filomena:

No outro dia, cedinho, dez vaqueiros saíram à procura da negra Filomena.


Arrastaram por todos os confins da caatinga, varando riachos e capão de
mato, serrotes e lageiros, e nada de Filomena. Numa distância de mais de
quatro léguas da lagoa da Serra Malhada, Zé Luiz esbarrou com a negra
Filomena, que sentada à sombra de uma frondosa oiticica, segurava em seus
braços fortes um robusto recém nascido, que sofregamente sugava o seio
materno. Mais adiante, um enfurecido touro preto, de patas quase disformes,
majestoso e belo, se debatia tentando desvencilhar-se da corda, máscaras e
peias...
Era o barbatão. (MONTE, 1992, 13)

Assim termina a história, com um final surpreendente, beirando o inverossímil,


característica típica do causo. A questão de gênero, dessa forma, ganha mais destaque na
narrativa: a mulher aparece em uma situação de desafio à ordem de valores estabelecida,
ocupando um lugar que “não deveria” ser o seu, mas de um homem. Ao final ela demonstra
ter uma capacidade sobre-humana, realizando uma proeza que nem todos os vaqueiros
homens juntos conseguiram realizar. Evidentemente, a leitura de uma contestação ao
machismo pode ser relativizada no momento em que consideramos a façanha realizada por
Filomena associada ao “fora do comum”, ao inverossímil, podendo ser um dado da invenção
para gerar o espanto do ouvinte, característico do gênero causo.
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Quanto à questão étnica, vemos um Seridó potiguar ganhando, ou reproduzindo uma


visibilidade e uma dizibilidade construídas, principalmente, pelo viés literário. Um Seridó
rural, povoado por coronéis e vaqueiros onde o real se mistura com o fictício, seja na mescla
de gêneros literários, seja na de informações e imagens. Nesse cenário, o negro ou mestiço é
nomeado como tal, constituindo uma presença comum, distinguido, mas comum. Estamos,
assim, diante de um Seridó negro, mestiço, onde o indivíduo não branco ganha certo
protagonismo, constituindo uma presença marcante nessa “região”.
Tal cenário esboçado nas Veredas do Seridó estaria indo de encontro a discursos com
fóruns de oficialidade que operam um apagamento simbólico de alteridades diferenciais,
conformadoras da história e cultura do espaço, nomeadamente o negro e o índio, ou ainda o
cigano. Pois, como afirma a antropóloga Julie Cavignac:

nos estudos sobre o Rio Grande do Norte, as referências a identidades


diferenciais são discretas, também nas representações nativas do passado,
percebemos uma ausência dos principais atores da história colonial. Nos dois
casos, as populações autóctones, os escravos e seus descendentes, são
relegados ao segundo plano. (CAVIGNAC, 2011, p. 195)

No conto “A Negra da Cachoeira dos Sapos”, que integra a obra Veredas do Seridó de
Airton de Negreiros Monte, imagens e discursos emergem do texto apresentando uma
identificação etnorracial do Seridó potiguar que, de certo modo, ainda que permeado por
estereótipos e clichês, ensaiam uma desinstituição dos discursos que relegam o negro à
obscuridade histórica. Um Seridó rural, legatário de uma herança regionalista, fenômeno
histórico e cultural que o dotou de imagens e discursos “típicos”, um Seridó protagonizado
também por vaqueiros negros e mestiços.

Referências

ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 5 ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
ASSIS, Manoel Tomaz de. “Marco do Seridó”. In: SOBRINHO, José Alves (org.).
Romanceiro Popular Nordestino: marcos e vantagens. Campina Grande: UFPB, URNE,
1981, p. 195 a 217.
CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em
perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; EDWIN,
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Página 773

Reesink; CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,
alteridades. Natal: EDUFRN, 2011.
CHIAPPINI, Ligia. Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. In:
Estudos Históricos. vol. 8, n. 15. Rio de Janeiro, 1995, p. 153-159.
FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, José Bezerra. Antologia Poética. Natal: Fundação José Augusto, 1973.
______. Sinopse do município de Currais Novos. Natal: Manimbu, 1975.
______. Obras Reunidas: romances. 2 ed. Natal: EDUFRN, 1998.
MACÊDO, Muirakytan K. de. A Penúltima Versão do Seridó: uma história do regionalismo
seridoense. Natal/RN; Campina Grande/PB: EDUFRN e EDUEPB, 2012.
MONTE, Airton de Negreiros. Veredas do Seridó. Natal/RN: Fundação José Augusto, 1992.
SOBRINHO, José Alves (org.). Romanceiro Popular Nordestino: marcos e vantagens.
Campina Grande: UFPB, URNE, 1981.
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Centenário de José Bezerra Gomes. Currais Novos/RN:
Fundação Cultual José Bezerra Gomes, 2011.
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ORALIDADE E ESCRITA NA LITERATURA POPULAR TRADICIONAL: UMA


ANÁLISE DO ROMANCE O SOLDADO JOGADOR

Jailto Luis Chaves de Lima Filho


UFPB
Fernanda Barboza de Lima
UFPB

Introdução

O romanceiro tradicional apresenta muitas semelhanças com o folheto de cordel. Os


limites entre ambos são apontados pelos estudiosos no que diz respeito ao código lingüístico
utilizado, oral para o romanceiro e escrito para o cordel. Como no romance oral, muitos são
também tradicionais, tendo atravessado gerações na memória de poetas populares. No
entanto, lendo um romance de cordel e um romance oral, observam-se diferenças estruturais
marcantes entre eles, o que nos levou a realizar o presente trabalho que teve por objetivo
caracterizar as duas peças populares do ponto de vista de sua discursivização, destacando as
semelhanças e diferenças entre ambas.
A semiótica constitui a teoria adotada, especialmente os investimentos da semântica
discursiva, a saber: tematização e figurativização. O corpus analisado foram as versões oral e
escrita do romance popular tradicional Soldado Jogador. A versão oral foi coletada em
Aracaju, Sergipe, e a versão escrita trata do folheto de cordel de autoria do poeta popular
Leandro Gomes de Barros. Ambas as versões pertencem ao acervo do Programa de Pesquisa
em Literatura Popular (PPLP), que possui uma biblioteca de literatura popular em verso
estimada entre as maiores do país. Além disso, é responsável pela preservação e difusão da
cultura popular em prosa, conto, literatura oral e obras que trabalham essa literatura.
O nosso trabalho tem a possibilidade, portanto, de contribuir para uma revalorização
da cultura popular. A Paraíba projetou-se, no passado, como um dos principais pontos de
irradiação da cultura popular, impondo-se à UFPB como uma instituição capacitada a
desenvolver a documentação de tais manifestações artísticas. Procuramos fazer um resgate
disso, tendo uma importância, não só individual como social e cultural.
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Considerações sobre oralidade e escrita

São polêmicos os estudos feitos sobre a oralidade e escrita. É muito comum


encontrarmos enganos referentes a essas duas modalidades de uso da língua. A partir desse
ponto de vista, tentaremos apresentar algumas observações sobre o assunto, procurando
desfazer esse mito de que a escrita seja superior à fala no nosso contexto social.
A oralidade e a escrita são comumente confundidas com nível popular, aquele que
foge a regra gramatical vigente e nível erudito, que, ao contrário, se pauta pela gramática
normativa. Na realidade, sabemos que é possível encontrar ambos os níveis, tanto na fala
quanto na escrita, em diferentes situações. Podemos citar, por exemplo, uma pessoa ao
escrever uma carta a um parente próximo, ou até mesmo, ao enviar um e-mail a um amigo, a
modalidade escrita poderá ser usada sem nenhum compromisso com a gramática normativa.
Podemos, também, citar um discurso político, uma palestra ou algo do gênero, como
exemplos de oralidade presentes na sociedade, nos quais sabemos que haverá uma certa
preocupação com relação às regras gramaticais, mesmo considerando que ambos os exemplos
possam partir de documentos escritos.
Fica claro, desse modo, entender que oralidade é social e acontece no eixo
falante/ouvinte, possuindo o fonema como sua unidade operacional, ou seja, ela é realizada
através do som provocado pelo falante e recebido pelo ouvinte. A escrita, por sua vez,
acontece no eixo escritor/leitor, tendo como sua unidade operacional o grafema, ou seja, é
utilizando a grafia que o escritor concretiza essa relação, mesmo que apenas ele seja o leitor.
Retornando aos exemplos anteriores, podemos verificar a presença de outra confusão
feita entre a oralidade e a escrita, que atribui à primeira o nível informal e à segunda o nível
formal, o que sabemos não ser verdade quando percebemos que a formalidade está
fortemente presente nos textos de cordel (com métrica, rima, estrofação etc.). Inversamente
proporcional, os exemplos relativos à modalidade escrita, a carta enviada a um parente ou um
e-mail a um amigo, que podem não possuir vínculo algum com a formalidade da língua.
Claro que há outros exemplos e situações corriqueiras que mostram uma outra
realidade, mas aqueles são exemplos muito simples que podem nos ajudar a esclarecer alguns
dos nossos conceitos ou, ao menos, instigar-nos a conhecer um pouco mais sobre essas
“práticas sociais”.
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Outro esclarecimento a ser feito diz respeito ao destinador e ao destinatário


discursivos: a questão do sujeito do discurso e da autoria. Todo sujeito discursivo é um sujeito
assujeitado, ou seja, produto de valores históricos anteriores a eles. Quanto à questão da
autoria, podemos encontrar dois tipos de autor: legião e individual. Percebe-se uma confusão
entre estudiosos em relação aos conceitos de autor legião e autor individual. É comum, entre
os autores, afirmar-se que o primeiro compete aos textos populares e o segundo aos textos
eruditos. No entanto, muitos são os textos populares cujos autores são individuais e
conhecidos como o caso da maioria dos textos de cordel, não competindo com a noção de
autor legião que diz respeito à totalidade dos repetidores das histórias orais que lhes
acrescentam traços de sua cultura ou do seu modo de ser, transformando-as, variando-as.
“Cada variação, segundo Batista (1999, p. 121), é, pois, uma recriação e não uma repetição do
texto original: visto por esse ângulo, o informante é também autor, responsável pelas
modificações e acréscimos que opera no texto original, transformando-o”.
Pode-se afirmar que o romanceiro é originariamente oral, passando para a escrita
quando transcrito. Caminha, portanto, de uma oralidade para uma escritura (que é gráfica),
enquanto que o cordel é originalmente escrito, embora seja uma escritura que se deixa
influenciar por traços da oralidade. Mas nem tudo que caracteriza linguagem do romance
popular possa ser atribuído à oralidade. Tomemos alguns exemplos: se em “mininu”,
“percusso”, “biliscar”, eu tenho uma escritura claramente moldada no oral, em “entonce”,
“em riba de”, “cara” (por rosto), “pru mode” são exemplos de expressões tipicamente
populares, conservadorismos de fases antigas da língua que podem ser encontradas na
oralidade e na escrita. O fato é que a língua popular possui um vocabulário próprio que a
torna diferente do erudito.
Marcuschi (2003, p. 20) afirma que apesar de a escrita ter origem bem mais recente
que a oralidade, ela vem se tornando um bem social indispensável, chegando a simbolizar
educação, desenvolvimento e poder. Porém, num ponto de vista mais voltado à realidade
humana, a oralidade se sobressai devido ao homem ser considerado um ser que fala.
Apresentando as modalidades dessa maneira, ele defende que, apesar de cada uma possuir
características próprias no uso da língua, elas não podem ser consideradas uma dicotomia,
nem tão pouco caracterizar dois sistemas lingüísticos, porque ambas são capazes de produzir
os mesmos fenômenos, partindo do seu meio básico de realização: o som, para a fala e a
grafia, para a escrita.
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Essa visão é de maior tradição entre os lingüistas e considera a fala como “o lugar do
caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua”
(MARCUSCHI, 2003, p. 28). O autor rejeita esse ponto de vista, ressaltando a importância
dos textos produzidos e dos fenômenos dialógicos e discursivos, que representam a língua
real.
Uma outra perspectiva, a variacionista, apresenta o equilíbrio entre a fala e a escrita,
mostrando que, em ambas, se podem encontrar: língua padrão e variedades não-padrões,
línguas culta e coloquial, ou seja, a variação aparece nas duas modalidades, evitando a
identificação da escrita como padronização da língua. Sendo a escrita e a fala duas
modalidades lingüísticas, o aluno que domina a escrita, torna-se bimodal, no entender de
Marcuschi (2003, p. 30).
Características dessas duas modalidades foram encontradas, também, em Fávero et
alii, quando apresentam um quadro comparativo entre a fala e a escrita, permitindo-nos
perceber, com clareza, suas respectivas condições de produção, que, segundo as autoras, essas
condições “possibilitam a efetivação de um evento comunicativo e são distintas em cada
modalidade” (Fávero et alii, 2002: 74). Entre essas características, podemos citar a interação
que, na fala, é realizada face a face, enquanto que, na escrita, à distância, tanto no espaço,
quanto no tempo e o planejamento que, na fala, é simultâneo à produção e, na escrita, é
anterior.

O folheto de cordel: uma literatura popular escrita

Literatura oral é o conjunto de produções literárias, transmitidas oralmente de geração


em geração. Apesar de estar ligada à tradição, não podemos tomá-la como algo ultrapassado,
mas como cultura que persiste na memória do povo, modificando-se, constantemente, para
adaptar-se à atualidade, devido à falta de documentos escritos. Ela pode ser encontrada em
diversas categorias, como a prosa, que abrange contos, lendas, mitos, adivinhações, anedotas,
etc; e em poemas cantados ou recitados: romances, quadrinhas, parlendas e cantigas, ou seja,
versos. É a partir daí que se formam os romanceiros, que são um conjunto de romances orais,
e os cancioneiros, que são o conjunto de cantigas.
Folhetos de cordel são textos curtos, em verso, de natureza marcadamente popular,
que retratam a memória de um povo. Esses textos eram apresentados nas feiras em cordéis
(termo de origem lusitana, que significa corda fina, daí o nome) acessíveis às camadas
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populares. Pessoas pobres podiam viver dessa arte, mas o que tornava os textos populares,
acessíveis ao povo, não era o autor ou o público, mas, em essência, seu material, aparência e
preço.
A sua origem está relacionada não apenas à divulgação de histórias ainda armazenadas
na memória popular, como também à aparição de fatos recentes que chamavam a atenção do
público. Essa literatura também está relacionada como tipo de poesia encontrada no
romanceiro popular, que, por sua vez, não possui raízes apenas em Portugal, mas também em
toda a Península Ibérica, daí ser chamado “romanceiro peninsular”. Podemos identificar essas
narrativas não apenas no Brasil, país colonizado por Portugal, como também na cultura
popular dos países hispano-americanos, como o México, Argentina, Nicarágua e Peru, países
colonizados por espanhóis. Na Espanha, país peninsular, o folheto de cordel era conhecido
como pliegos sueltas, o que corresponde em português a “folhas volantes”. Quando chegam à
América, sobretudo nos países colonizados pela Espanha, o folheto era conhecido por “o
corrido” e possuía características semelhantes à nossa versão por tratarem de assuntos, não
apenas tradicionais, mas também de fatos circunstanciais, como revoluções locais, etc.
A diversidade temática dos textos produzidos era tão acentuada que poderíamos
encontrar cordéis que falassem de quase todos os acontecimentos, desde fatos rotineiros do
cotidiano até ocasiões especiais, como também, glosas, provérbios, narrativas históricas e
religiosas, muitos até transformados em teatro. Esses textos eram relacionados, em sua
maioria, com realidade popular, observada e transformada em literatura pelos autores. Os
folhetos conseguiam diluir o grande abismo entre cultura popular e cultura de elite, pois os
mesmos eram de interesse da elite econômica, sendo uma de suas principais fontes de lazer.
Portanto os folhetos dependiam da aceitação dos seus leitores para sobrevivência. Aqueles
que não tinham grande aceitação, não vendiam, portanto, não eram reeditados, nem
memorizados, desaparecendo rapidamente.

O romanceiro: literatura popular oral

O romanceiro compreende “um conjunto de romances populares que compõem a


tradição de um povo ou de uma região e que são difundidos, através da oralidade, de uma
geração a outra desde épocas antigas da língua” (Batista, 2001: 01). “Caracteriza-se pela
natureza poético-musical, pelo conteúdo épico ou épico-lírico, pela forma dialogada ou
dramatizada, pela riqueza de variações, no conteúdo e na forma, através de sua transmissão
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oral, com uma linguagem informal e descontraída, sobretudo quando o emissor sente que está
agradando” (Batista, 2001: 01).
Os romances orais tiveram sua origem aristocrática, mas foi apenas a partir dos
séculos XV e XVI que eles foram muito difundidos, adaptados ao gosto do povo. Vieram ao
Brasil com os portugueses na época da colonização, passando a se instalar, principalmente,
nas zonas interioranas. O nome romance provém do fato de terem sido escritos, inicialmente,
na língua do Império Romano, o romanço, que foi estágio intermediário entre o Latim e as
línguas neolatinas. Da designação dada a língua, passou-se, depois, às composições literárias
nessa língua (Batista, 2000: 20).

Análise do corpus

Procuramos fazer, nesse trabalho, uma análise comparativa entre as duas versões do
romance popular O Soldado Jogador: o oral, coletado em Aracaju, Sergipe, e a escrita, em
folheto de cordel, composta por Leandro Gomes de Barros.
A peça conta a estória de um soldado, de origem francesa, que era jogador
profissional, numa época em que a Igreja Católica acumulava os poderes político e religioso.
Ricarte é obrigado a assistir à missa, quando desejava jogar cartas. Em vista disso, ele fica
fisicamente presente, mas com pensamento no jogo. Retira do bolso as cartas e começa a
jogar, sem perceber que atrás dele havia um sargento que o observava. Após a missa, o
sargento o prende e o leva ao comandante. Ali, questionado sobre o motivo de estar na igreja
jogando cartas, o soldado explica ao comandante que se utilizava das cartas para rezar e dá
um significado religioso para cada carta, com grande astúcia, o que leva o comandante não
apenas a deixá-lo solto, como também a dobrar-lhe o soldo.
O texto oral segue o seguinte percurso temático: identificação do soldado (nome,
profissão e arte); descrição do serviço prestado à Igreja pelo povo francês; prisão do soldado,
que é levado ao comandante; questionamento do comandante sobre a atitude errada do
soldado; justificativa do soldado, que afirma estar agindo corretamente, uma vez que reza com
as cartas; explicação do soldado sobre o valor das cartas, convencendo magnificamente o
comandante; comparação do valete com o sargento; sanção dada ao soldado pelo comandante
(absolvição, promoção e aumento de soldo).
No texto escrito, acrescentam-se mais alguns momentos: descrição da situação
financeira de Ricarte, cujo soldo havia acabado; tentativa do soldado de descobrir onde
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poderia conseguir dinheiro; ida do soldado à missa; jogo do soldado durante a celebração;
desculpa do soldado sobre o motivo por que não tinha o missal.
Nos dois textos, os temas são recobertos pelas mesmas figuras de conteúdo e de
expressão:

I – Identificação

Versão Escrita
Nome do soldado
Lugar de origem
Profissão (soldado e jogador)
Esperteza no jogo

Versão Oral
Nome do soldado
Lugar de origem
Profissão (soldado e jogador)
Esperteza no jogo

II - Serviço prestado à igreja pelo povo francês

Versão Escrita
Seguir a religião
Obedecer às leis que o Papa ditava

Versão Oral
Seguir a religião
Obedecer às leis que o Papa ditava

III – Prisão do soldado


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Versão Escrita
Observação do sargento
Erro agravante
Ida ao comandante

Versão Oral
Observação do sargento
Erro agravante
Ida ao comandante

IV – Explicação do soldado

Versão Escrita
Explicação do sentido das cartas
Sentido religioso para cada carta
Omissão do valete

Versão Oral
Explicação do sentido das cartas
Sentido religioso para cada carta
Omissão do valete

V – Comparação do valete com o sargento

Versão Escrita
Pergunta do comandante pela carta
Exclusão do valete
Lembrança do sargento
Comparação da carta às características do sargento

Versão Oral
Pergunta do comandante pela carta
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Exclusão do valente
Lembrança do sargento
Comparação da carta às características do sargento

VI – Sanção dada ao soldado pelo comandante

Versão Escrita
Liberdade
Promoção
Aumento do soldo

Versão Oral
Liberdade
Promoção
Aumento do soldo

Quanto ao acréscimo no percurso temático do texto escrito, pudemos identificar as


seguintes figuras.

I – descrição da situação financeira: falta de soldo; escassez de tempo para o jogo;


necessidade do dinheiro para adquirir objetos.

II – ida à missa: chamada; pedido de dispensa; negativa do sargento; esperteza no jogo.

III – jogo durante a missa: tira as cartas; forma uma patota;

IV – desculpa por não ter um missal: soldo mesquinho para a compra do livro, compra do
baralho por ser mais barato, reza com as cartas;

Pode-se pensar que o texto oral é o resultado de um texto escrito, memorizado pelo
informante que enxugou o texto, eliminando as passagens secundárias (excessos de descrições
ou repetições). O texto oral apresenta lacunas e, ainda, repetições de momentos já referidos,
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que deve ser atribuído a lapsos na memória do informante e, até mesmo, à necessidade de
rima para seu texto.

Versão Escrita

“(...) Os cinco me faz lembrar


Aquele dia de fel
As cinco chagas de Cristo
Feitas por mão tão cruel
Que matou crucificado
O filho de Deus de Israel.
(...)
Os 7 lembram-me a hora
Negra, triste, amargurada
Os sete passos de Cristo
Em sua paixão sagrada
Com sete espadas de dores
A Mãe de Deus foi cravada
(...)”

Versão Oral

“(...) Os cinco lembra-me os cinco


Passos de Cristo
Na sua paixão sagrada
Com cinco espadas de dores
A mãe de Deus foi cravada
(...)
Quando pego nos sete
Me lembro dos sete passos de Cristo
Na sua paixão sagrada
Com cinco espadas de dores
A mãe de Deus foi cravada
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(...)”

O enunciador-narrador e o enunciatário-narratário são os sujeitos discursivos


encontrados nas duas versões, portanto, se encontram distantes do enunciado e dos atores no
tempo e no espaço.
Raros são os momentos em que o ator assume a voz do enunciado, o mais comum,
com verbo dicendi. No oral, entretanto, o discurso omite o verbo em algumas passagens.

Versão Escrita

“(...) Então disse o comandante:


— Você vem errado à mim.
Disse o soldado: — eu explico,
Do princípio até o fim;
Como é essa oração?
Disse o soldado: — é assim: (...)”
Versão Oral

“(...)
— Não, senhor, eu estou certo.
Do princípio até o fim.
(...)”

A versão escrita é constituída de trinta e três estrofes regulares de seis versos,


denominadas de sextilhas pelos estudiosos. Já a versão oral, que não apresenta uma estrofação
regular, é constituída de vinte e três estrofes, organizadas com oito, seis, cinco e quatro
versos. Podemos ver essa organização nos seguintes trechos, semelhantes nas duas obras:

Versão Escrita
“(...) O soldado na igreja
Chegou, se ajoelhou
Trouxe no bolso da blusa
Um baralho ele tirou
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E endireitando as cartas
Uma patota formou
(...)
— Pronto, senhor comandante
Está aqui preso um soldado,
Que foi ao templo ouvir missa
Lá estava ajoelhado
Encarmassando um baralho
Que traz no bolso guardado
(...).”

Versão Oral

“(...) Ricarte foi à igreja


E não viu que detrás dele
Estava um sargento sentado
E depois do ato lhe disse:
Esteja preso, soldado.

(...)

— Pronto, senhor comandante


Está aqui preso um soldado,
Que foi ao templo ouvir missa
Estava com um baralho empacotado”

Considerações Finais

Examinamos, aqui, dois romances populares tradicionais, ou seja, que vieram de um


passado longínquo e chegaram até a modernidade. Ao lado da semelhança no conteúdo,
aproximam-se quanto ao nível de língua utilizado, o popular. Observamos, entretanto,
diferenças estruturais entre as duas peças.
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A Literatura Popular apresenta duas modalidades distintas quanto ao código utilizado:


a oral que usa o fonema como unidade operacional e a escrita que usa o grafema. No romance
de cordel, há um autor individual, muitas vezes conhecido, enquanto que, no romance oral,
existe o chamado autor legião: todos repetem o texto e lhe acrescenta algo, o que faz surgir
variações.
Outro fato que pudemos detectar, no corpus analisado, é que ambos os romances,
embora sejam em linguagem popular, apresentam um grau de formalidade pelo fato de
utilizarem rima e métrica, perdendo-se a descontração que caracteriza a informalidade.
Sabemos que o informante do texto oral já tinha conhecimento do folheto de cordel.
Ou seja, em O Soldado Jogador, temos a idéia de que houve uma reprodução do folheto de
cordel, quando o informante, através da memória, conta-o enxugando partes do texto
consideradas excessos, como descrições e repetições. Atribuímos, pois, essas lacunas no texto
oral, à necessidade de rima para o prazer da leitura e, também, a lapsos de memória do autor.
Vimos, ainda, que o texto escrito é mais organizado, no que se refere à forma,
possuindo um percurso temático-figurativo maior, visto que é mais longo que o texto oral.
Estas, enfim, são características que aproximam ou distanciam as duas obras,
permitindo conhecer a ideologia que delas emana.

Referências

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BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A Tradição Ibérica no Romanceiro
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Paulo, 1984.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
GREIMAS, A. J. e COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4ª ed.
São Paulo: Cortez, 2003.
PAIS, Cidmar Teodoro. Texto, Discurso e Universo do Discurso. In: Revista Brasileira de
Lingüística. São Paulo: Plêiade, 1995.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 787

______. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: HUCITEC.


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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 788

A FUGA E MORTE DE LAMPIÃO NA PERSPECTIVA DA LITERATURA


POPULAR

Renata Pinto Uchôa de Araújo


UFPB
Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
UFPB

Introdução

O folheto O último dia de Lampião retrata, de uma forma geral, a vida de Virgulino
Ferreira, mais conhecido por Lampião, um nordestino que ganhou fama em todo o país pela
sua valentia e pelo ódio que conquistou de seus inimigos, representados por militares e
fazendeiros, que eram as maiores vítimas desse astucioso cangaceiro. O cordel traz toda a
trajetória de Lampião, seu nascimento, seu ingresso no cangaço, as batalhas violentas em que
se envolvia com seu bando, as mulheres que o acompanhavam e as perseguições que o
cercavam, a última delas, realizada pelo tenente João Bezerra, resultou na morte trágica do
valente Lampião e dos demais componentes do bando.

Análise do corpus

 A propósito do sujeito semiótico 1:

O sujeito semiótico 1 (S1) surge figurativizado por Virgulino Ferreira, o famoso


Lampião, e apresenta um percurso marcado por dois momentos. O momento inicial reflete a
instauração do S1 através da modalidade do dever-ser cangaceiro, porquanto, coagido pelo
destino, o sujeito inseriu-se na vida de crimes, o cangaço (OV1), e passou a saquear fazendas
(OV2) e a pelejar contra militares e fazendeiros (OV3). Esses conflitos resultavam na morte e
no ferimento de muita gente (OV4) por Lampião e seu bando, que tem na valentia,
característica marcante do S1, uma adjuvância. Veja-se:
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Percebe-se que o S1 iniciou e terminou seu percurso conjunto com seu objeto de valor
principal, que era sua inclusão no cangaço. Ele é o responsável direto pela continuidade do
estado de conjunção, ou seja, o próprio sujeito semiótico 1 realiza o fazer transformador que
mantém essa relação de conjunção.
O segundo momento do percurso surge em decorrência dos combates travados por
Virgulino, que atraiu ódio e fez muitos inimigos. Como consequência dessa inimizade, o
sujeito semiótico 1 passou a ser perseguido pelos seus adversários e se instaura pela
modalidade de um dever-fugir. Destinado pelo amor à sua liberdade, procurou esquivar-se de
seus perseguidores (OV1) e iniciou um estado de constantes fugas (OV2). Sem lugar fixo para
residir, o sertão nordestino se transformou em sua morada (OV3). Contudo, a determinação de
um inimigo em capturá-lo, o Tenente João Bezerra, representando aqui o anti-sujeito, pôs fim
à sua fuga. O militar foi informado por um delator sobre a localização do esconderijo do S 1
(OV4), é quando este é capturado e morto (OV5). O esquema seguinte oferece uma
sistematização do percurso:
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Nesse segundo momento, o S1 encontra-se num estado inicial de conjunção com seu
objeto de valor, passando para um estado final de disjunção com o mesmo.
O percurso completo do S1, com os dois momentos, é esquematizado no esboço a
seguir:

 A propósito do sujeito semiótico 2:

O Tenente João Bezerra reveste figurativamente o sujeito semiótico 2 (S2). Organizado


por um querer-vingar-se e incitado pela ira, possui como alvo, como objeto de valor principal
(OV1), matar Virgulino e, para isso, aproveita-se de sua respeitada posição hierárquica de
tenente e compõe um forte batalhão para ir em perseguição ao criminoso sertanejo (OV2).
Para concretizar sua vingança, o S2 percorre quase todo o Nordeste (OV3), porém nunca
conseguia encontrar-se com Lampião, até que um dia, ao receber a exata localização do
fugitivo através de um informante (OV4), realiza uma emboscada (OV5) e mata Lampião,
como também todo o seu bando. O esquema abaixo sintetiza o percurso do sujeito semiótico
2:
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No início do percurso, o S2 achava-se numa posição disjunta com seu objeto de valor,
no entanto, após o fazer transformador efetivado por ele próprio, conclui o percurso conjunto
com o referido objeto.

 A propósito do sujeito semiótico 3:

O sujeito semiótico 3 (S3) aparece no texto figurativizado pelos cangaceiros que


seguiam Lampião, representados pela formação inicialmente e final do grupo. A primeira era
composta por seus irmãos Antônio, João, Livino e Ezequiel. O bando final era constituído de
apenas quinze homens, número reduzido devido aos violentos combates em que Lampião e
seus companheiros se envolviam, que acarretavam em muitos mortos, tanto do lado inimigo,
como do lado dos cangaceiros. São eles: Coruja, Corisco, Quinta-feira, Açu, Peitica, Criança,
Bentevi, Lavandeira, Xexéu, Pinto D’água, Cajazeira, Beija-flor, Andorinha, Pedro Cândido e
Tananjeira. Todos eles foram acometidos pelo destino a uma vida de privação e se viram
obrigados a ingressarem no mundo de crimes para sobreviver (OV1). Dessa forma, o S3 é
constituído através da modalidade do dever-ser um criminoso, um cangaceiro. Com o auxílio
de Virgulino, sertanejo valente, representante maior do cangaço, formaram um bando e
passaram a infringir leis (OV2), praticando roubos (OV3) e enfrentando com violência os
militares que os perseguiam (OV4). O S3, com a liderança de Lampião, transformou-se no
representante do cangaço no Nordeste do Brasil.
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Averigua-se que esse percurso assenta-se numa relação prévia de conjunção. Ao


receber os valores modais que o possibilitam a agir, o S3 executa uma performance que lhe
agracia com a obtenção do objeto.

 A propósito do sujeito semiótico 4:

Da mesma forma que o S3, cuja figurativização era composta por diferentes atores, o
sujeito semiótico 4 encontra-se numa situação análoga. Na narrativa, S4 está sob o
revestimento figurativo das mulheres que compunham o bando de Lampião: Enedina, Cila,
Maria Bonita e Bentinha. É um sujeito instaurado pela competência modal de um querer-ser
companheiro, porquanto, por amor aos cangaceiros e recebendo o auxílio da coragem que
detém, o S4 se absteve de uma vida calma e de um lar fixo para acompanhar esses homens
numa trajetória arriscada, regada a perigosos conflitos. Esse acompanhamento representa o
objeto de valor do S4.

O S4, como pode ser constatado no percurso acima, é sancionado positivamente, ou


seja, mantém a conjunção com o objeto de valor desejado. O fazer que possibilita esse estado
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juntivo advém do próprio S4 que adquire competência para realizar a performance e obter seu
objeto. Não existiu uma ação que impedisse a realização dessa obtenção.

Conclusão

O enunciador revela seu posicionamento em relação aos fatos que noticia e procura
representar os valores sociais e culturais de seu povo. No texto analisado, em particular, o
enunciador transmite um fato muito marcante do Nordeste, o cangaço, e, por representar o
povo nordestino, torna-se um sujeito defensor desse histórico movimento.
A análise das estruturas narrativas, com relação à quantidade de sujeitos envolvidas,
mostrou-se simples. Apresenta sincretismo actancial, ou seja, quando o mesmo ator funciona
como dois sujeitos semióticos. Em todos os sujeitos existentes, a maioria apresenta a
conjunção com seus Objetos de Valor no estado final, sendo, pois eufórico.
O que se percebe, ao analisar um folheto de cordel noticioso, é que, com o passar dos
anos, a função informativa do cordel está cada dia mais em crescimento. É grande a presença
de folhetos com essa função, nos dias de hoje, dispostos à venda. Retratam casos de corrupção
na política, escândalos no mundo dos famosos, fatos que chocam a população etc. Podemos
afirmar que a velocidade com que as informações são espalhadas se torna um fundamental
contribuinte na intensa produção desses folhetos.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. Sao Paulo: Atica, 1990.
BATISTA, Maria de Fatima Barbosa de Mesquita. O Discurso Semiotico. In: ALVES, Eliane
Ferraz et alii (org). Linguagem em Foco. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Ideia, 2001. pp.
133-157.
FIORIN, Jose Luiz. Elementos de Análise do Discurso. Sao Paulo: Contexto, 2001.
FUNDACAO CASA DE RUI BARBOSA. Literatura Popular em Verso. Estudos TOMO I.
Colecao de Textos da Lingua Portuguesa Moderna. Rio de Janeiro:, 1973.
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O LÉXICO NO CONTO DE LUÍS JARDIM COMO MARCA DA CULTURA


REGIONAL

Helenita Bezerra de Carvalho Tavares


UFPB

Introdução

A língua é um poderoso instrumento de identificação de um povo, enquanto a fala é a


modalidade mais comum, autêntica e dinâmica do uso da língua, por isso, é um instrumento
cuja utilização é dos mais eficazes para delimitação de comunidade nas pesquisas linguísticas.
A linguagem está presente em todas as atividades humanas, estabelecendo
comunicação entre os homens. Ela é responsável para se apreender, descrever e explicar a
visão de mundo de um grupo sociolinguístico-cultural, e suas relações em contexto, surgindo,
assim, o léxico como o nível da língua que melhor desempenha essa função. Inúmeras são as
questões voltadas para as manifestações culturais brasileiras, que se refletem no discurso e
têm sido abordadas nas teorias linguísticas, com pressupostos teóricos, relativos ao léxico,
que vêm se estendendo da Lexicologia, chegando a outros ramos linguísticos. Sabemos que as
relações entre língua sociedade e cultura, estão interligadas, visto que, de modo geral é o
léxico que reflete marcas dialetais sociais e culturais dos seus usuários. “As relações entre
linguagem regional, sociedade e cultura, estudadas pela Dialetologia, Sociolinguística e
Etnolinguística, fazem parte de um todo integrado nos estudos linguísticos”. (ARAGÃO,
1978).
A linguagem está presente em todas as atividades humanas, estabelecendo
comunicação entre os homens. Ela é responsável para se apreender, descrever e explicar a
visão de mundo de um grupo sociolinguístico-cultural, e suas relações em contexto, surgindo,
assim, diversas ciências que procuram estabelecer relação com a linguística, como a
Lexicologia, Lexicografia, Sociolinguística e Etnolinguística. Vale ressaltar que, os avanços
nos estudos sociolinguísticos e os etnolinguísticos têm mostrado o quanto o conhecimento
dessas variações pode ajudar num maior aprofundamento das análises linguísticas e no melhor
conhecimento das línguas.
Podemos dizer que, nas próprias marcas de cada falante, está presente o dizer da
localidade que reside, e do grupo social ao qual pertence. São essas marcas que constituem a
riqueza desta abordagem. Assim, tudo que é dito pelo falante interessa ao estudo da
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Sociolinguística, que considera o falar natural do indivíduo e analisam as formas linguísticas


usadas no seu meio social.
Sabemos que através do processo de comunicação, é demonstrada a maneira como o
indivíduo fala, onde e em que momento e como diz. Pois, ao falar ele revela a sua identidade
cultural.
Sabemos que os estudos da Sociolinguística e da Etnolinguística têm conseguido um
avanço na investigação da língua como reflexo da cultura. Nossa proposta é fazer uma analise
sócio cultural, com a finalidade de resgatar a cultura e a linguagem regional popular.
A escolha pelo conto, “Os Cegos” de Luís Jardim, foi devido à linguagem regional
retratada neste conto, sobretudo pelo modo como o autor assimila, caracteriza e expande a
cultura popular da região, retratando-a com muita clareza, na vida sociocultural. Essas
reminiscências se fazem perceber pela identidade literária do autor nas suas histórias cômicas
como no episódio trágico, presente no conto estudado, o autor inspira-nos a escutá-lo e
participar das aventuras de suas personagens, provocando-nos emoções com os seus
comentários, despertando a grandeza dramática desse conto; com a experiência poética
demostrada por “Jardim”, na sua linguagem coloquial, sem excesso de regionalismo, refletida
no seu discurso.
O trabalho em questão apresenta uma análise das lexias e variações lexicais, numa
interação com fatores do dialeto regional, que são comuns na linguagem espontânea falada,
presentes no conto pesquisado; com a finalidade de valorizar a cultura da linguagem
regional/popular, a linguagem usada nesta região, e suas características significativas
marcantes na identidade nordestina. Portanto, objetivamos fazer uma reflexão sobre o
regionalismo deste conto, mostrando a riqueza de sua linguagem, para inspirar outros
trabalhos.

O Léxico

O léxico de uma língua mantém uma estreita relação com a história cultural da
comunidade, refletindo o seu modo de vida, como encerra a realidade e a maneira como os
seus membros organizam o mundo no qual vivem, bem como sistematizam os referentes, os
signos linguísticos que remetem ao universo referencial. Dessa forma, o léxico de uma língua
vive num processo de expressão permanente. Segundo Biderman o léxico é:
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“Ao reunir os objetos em grupos identificando semelhanças e, inversamente,


discriminando os traços distintivos que individualizam esses objetos em
entidades diferentes, o homem foi estruturando o mundo que o cerca,
rotulando essas entidades discriminadas. Foi esse processo de nomeação que
gerou o léxico das línguas naturais”. (BIDERMAN, 2001, p.81)

Em outras palavras, a criação do léxico tem se processado por meio de atos


consecutivos de compreensão ou apreensão da realidade e da categorização das experiências
que se cristalizam em signos linguísticos. Assim, o léxico varia de acordo com os falantes
que, por sua vez, o utilizam de formas diversas, dependendo do contexto no qual estão
inseridos. Isso acontece, não só de um indivíduo a outro, mas, também, de uma época para
outra no mesmo indivíduo. Já Mário Vilela, assim o definiu:

“[...] o léxico é a parte da língua que primeiramente configura a realidade


extralinguística e arquiva o saber linguístico de uma comunidade. Avanços e
recuos civilizacionais, descobertas e inventos, encontros entre povos e
culturas, mitos e crenças, afinal quase tudo, antes de passar para a língua e
para cultura dos povos, tem nome, faz parte do léxico. O léxico que é
repositório do saber partilhado que apenas existe na consciência dos falantes
de uma comunidade”. (VILELA, 1994, p.6)

A mais verdadeira visão de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas


socioculturais das comunidades humanas são refletidos em seu léxico. Dessa forma, deixa
transparecer muitas informações, sua cultura, suas crenças e hábitos, mudanças sociais
econômicas e culturais.
Aqui trataremos dos aspectos léxicos dos falares de uma comunidade do Agreste
Meridional, a marca dessa cultura regional. Portanto, os itens lexicais aqui estudados poderão
mostrar a diversidade de visões do léxico desse universo.

Lexicologia

A Lexicologia é a ciência responsável pelo estudo e análise da palavra, da


categorização lexical e da estruturação do léxico num sentido mais amplo. Segundo Coseriu
(1979), a Lexicologia é:

“[...] ramo da linguística que estuda a estrutura do vocabulário da língua, sua


composição, variedade, origem, mudanças históricas e adaptações às
condições sociais da comunidade respectiva. Na lexicologia parte da palavra,
como unidade natural das línguas naturais. Modernamente esta disciplina
estuda a estrutura interna dos vocábulos; por exemplo: a análise
componencial, suas regras de subcategorização e inserção no marco
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oracional e suas modalidades morfológicas a partir de entidades subjacentes


como lexemas”.

A Lexicologia se apresenta como o ramo da Linguística dedicado ao estudo científico


do Léxico. Assim, entre as muitas tarefas da Lexicologia, são apontadas por Barbosa (1992,
p.154) como: “conjunto de palavras de determinado sistema, ou de um grupo de indivíduos,
como universo léxico ou conjunto vocabulário”.

Lexicografia

A Lexicografia observa e descreve o léxico através de informações que revelam a


experiência cultural, mudanças históricas e sociais, responsáveis pela produção do discurso
desta comunidade linguística e, por meio da Lexicografia, arte ou técnica de elaborar
dicionários.
Para Biderman (2001, p.17), os trabalhos lexicográficos é uma atividade antiga e
tradicional que se iniciou nos princípios dos tempos modernos. Embora tivesse precursores
nos glossários latinos medievais. A lexicografia só começou, de fato, nos séculos XVI e XVII,
com a elaboração dos primeiros dicionários monolíngues e bilíngues (latim e uma língua
moderna).
Ainda segundo Biderman (2001), a descrição do léxico foi realizada pela Lexicografia
e não pela Lexicologia, mas era executada como uma práxis pouco científica. Segundo a
autora, é muito recente o fazer lexicográfico fundamentado numa teoria lexical com critérios
científicos. Desse modo, a Lexicografia vem despertando grande interesse entre os linguistas.
Segundo Barbosa (1990, p. 153):

“A Lexicografia é definida como sendo uma tecnologia que trata da palavra


no que concerne à atividade de copilação, classificação e análise das
unidades do léxico e sua organização em dicionários, vocabulários técnico-
científicos e vocabulários especializados. Na verdade, a Lexicografia é uma
aplicação dos fundamentos teóricos metodológicos da lexicologia”.

A principal missão da Lexicografia será auxiliar os falantes nativos de uma língua com
as suas dificuldades de ortografia, de categorização e gramatical de palavras, além de prestar
esclarecimentos sobre o significado e o uso de uma palavra pouco utilizada, incluindo
algumas informações etimológicas.
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A Sociolinguística

A sociolinguística é a área da linguística que estuda as relações entre linguagem e


sociedade, pois os seres humanos vivem organizados em sociedade sendo detentores de um
sistema de comunicação oral, uma língua. Partindo do pressuposto de que linguagem, cultura
e sociedade são consideradas fenômenos inseparáveis, linguistas e sociólogos trabalham lado
a lado e de modo integrado. (COSERIU, 1978, p. 5) “A sociolinguística corresponde ao
estudo da variedade da variação da linguagem em relação com a estrutura social da
comunidade falante”. Desse modo, o condicionamento social da linguagem está em
consonância com traços que se enraizaram, de forma muito profunda, na mente coletiva da
comunidade linguística, e os dados aí coletados é que possibilitam a análise que confirma a
mudança linguística que ocorre em função de pressões sociais.
A Sociolinguística constrói o futuro linguístico de um povo, buscando compreender os
fatores de variações e mudanças linguísticas e divulgando as características da Linguagem, da
Cultura e da Sociedade pesquisada e realiza pesquisas sobre linguagem e língua, preconceito
linguístico, linguagem e sociedade.
As variações observadas na língua são relacionáveis a diversos fatores dentro de uma
mesma comunidade de fala, pessoa de origem geográfica, de idade, de sexo diferente fala
distintamente. “[...] é o grau de conhecimento e utilização das normas gerais do falar em
relação com a estrutura sociocultural das comunidades” (COSERIU, 1979). Logo, não há
casualidade entre o fato de nascer em uma determinada região, ser de uma classe social e falar
de certa maneira.
Neste contexto, é importante dizer que se aprende a falar na convivência, quando
devemos falar de certa maneira, ou quando não devemos falar. Isto porque os membros de
quaisquer comunidades adquirem as competências comunicativas das sociolinguísticas para o
uso próprio da fala abrangente da realidade linguística brasileira.

Etnolinguística

A Etnolinguística como diz Pottier (1972): “É o estudo das relações entre uma língua e
a visão de mundo daqueles que falam”. É o estudo do próprio código de sua função e de suas
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mensagens; que ao se colocar em confronto povos culturalmente distintos em seus hábitos,


percepções e modo de expressão linguística, poderão ser modificados, valorizados, aceitos ou
negados.
É importante ressaltar que, a Etnolinguística trata das relações língua-cultura, e com a
sociolinguística, que estuda as relações língua-sociedade. Vemos que essas ciências têm
objetivos bem delimitados, mas têm, também, uma grande área de intersecção.
Apesar da dificuldade quanto à instituição de sua nomenclatura, à delimitação do seu
objeto de estudo, a Etnolinguística é definida por Coseriu como “o estudo da linguagem em
relação com a civilização e a cultura das comunidades falante” (COSERIU, 1979, p. 28).
Assim podemos afirmar que a Etnolinguística, trata dessas relações entre a língua e a
cultura na sociedade a que pertencem os seus falantes. Por isso, se diz que cultura é o
conjunto das práticas e dos comportamentos sociais que são inventados e transmitidos dentro
do grupo. Coseriu diz que “cultura é o conjunto das práticas e dos comportamentos sociais
que são inventados e transmitidos dentro do grupo”. Segundo o autor, “a língua pode revelar
os modos de vida e os valores culturais de uma sociedade” (1979. p. 50). Segundo Cascudo:

“O povo tem uma cultura que recebeu dos antepassados. Recebeu-a pelo
exercício de atos práticos e audição de regras de conduta, religiosa e social.
O primeiro leite da literatura oral alimentou as curiosidades meninas”.
(CASCUDO, 1983, p. 678)

Cultura é um conjunto de valores, crenças e comportamentos apreendidos e


partilhados por um grupo de pessoas. Cultura também é algo aprendido com outros: a família,
amigos, na escola, em instituições religiosas Pode-se dizer que estas crenças, valores e normas
aprendidas são visíveis quando são expressos no comportamento.
A definição, deste modo, está fundamentada nas relações entre linguagem regional,
sociedade e cultura, estudadas pela dialetologia, sociolinguística e Etnolinguística, e faz parte
de um todo integrado nos estudos linguísticos.
Fazer um estudo etnolinguístico implica considerar os fatos da língua como resultado
de conhecimento acerca das coisas, como forma de apreensão do real por meio da utilização
do léxico. Na busca de um entendimento entre linguagem, e o estudo da expressão idiomática
de uma cultura ou parte dela, se processa a análise cultural de uma língua.

O autor
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Luiz Inácio de Miranda JARDIM nasceu em 08/12/1901 em Garanhuns-PE, onde


Passou a infância e adolescência, mais tarde foi morar em Recife, onde trabalhou em venda de
livros, conheceu o escritor Gilberto Freyre diretor de A Província, que o incentivou escreveu
o seu primeiro artigo. Escreveu os livros da literatura infantil, O Tatu e o Macaco, O boi de
Arauá (1940), livros de contos Maria Perigosa e As confissões do Meu Tio Gonzaga.
Traduziu a peça teatral A Morte do Caixeiro Viajante. Também, Escreveu Proezas do menino
Jesus (1971) da literatura infantil, e ainda literatura infanto juvenil. Aventuras do Menino
Chico de Assis, inspirado na vida de São Francisco de Assis (com ilustrações do autor),
colaborou com a imprensa do Rio de Janeiro.
Teve seus primeiros desenhos publicados no jornal A Província, também Ilustrou
muitos livros, dentre os quais destacam-se: o Guia Prático Histórico e Sentimental da Cidade
do Recife, de Gilberto Freyre.
Luís Jardim, já em idade madura, aconselhou, em suas palestras: “meninos e meninas
[...] aprende-se [também] sem professor. Os professores mudos são os livros, de modo que
vocês nunca deixem o livro de lado, não. Ele é que nos prepara para a vida, o que seremos
depois, a significação do que temos e tudo mais [...]. os livros podem fazer isso por qualquer
um.”.
Além de escritor, desenhista e pintor, Luís Jardim foi tradutor do poemas. Também foi
premiado pela Academia Brasileira de Letras, nos anos de 1958 com a peça “Isabel do
Sertão” e, em 1968, com o Prêmio Monteiro Lobato de Literatura Infantil com “As Proezas
do Menino Jesus”. Em 1971, publicou “Aventuras do Menino Chico de Assis” e, em 1977,
“Façanhas do Cavalo Voador e Outras Façanhas do Cavalo Voador” onde reúne figuras
mitológicas, bichos, mata e coisas do Brasil.

O conto “Os Cegos”

No conto (Os Cegos. JARDIM, Luís, 1976) a impassibilidade do relato acentua a


atmosfera que o autor fala com propriedade e sabor, sem excessos de regionalismo; a sua fala
representa um compromisso particularmente feliz que parece abolir as divergências da
linguagem regional, da linguagem comum, também na poesia as coisas são observadas e
usadas com grande firmeza das frases. Como é possível observar no início do conto “Os
Cegos”:
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“Quando o velho Borges botou a cabeça fora da janela, sentindo o tempo, a barra da
manhã nascia na Serra do Tará. O cinzento da madrugada diluía-se no clarão que vinha
surgindo, e o chão, distante, ia tomando formas entre as sombras da mataria detrás de casa.
Na frente, na burra-leiteira onde se amarravam os cavalos, os passarinhos cantavam.”
Seus contos poéticos provêm da essência das coisas, da firmeza das frases, dão
impressão de completa naturalidade; trazendo uma contribuição preciosa para prosa brasileira
é o humor peculiar, indireto e aparentemente casual, que se desprende dos pormenores da
narrativa, em circunstâncias mais imprevistas, que se assemelha a de José Lins do Rego.
O autor ainda ilustrou o livro com belas gravuras, as quais impressionam pelo frescor,
transmitidos pela emoção.

Alguns termos lexias / regionais

ALTOZINHO – Lugar alto, usado no diminutivo. Ex.: Desceu um altozinho de pedras.


ASSENTAR O COURO – Espancar, surrar, bater. Ex.: Teve vontade de assentar o couro
no filho.
AVIA-TE – Apressa-te, venha rápido. Ex.: Avia-te senão chega à noite.
CONDENADO – Pessoa ruim. Ex.: Tu não me respeita não, condenado.
DANOU-SE – Saiu apressado. Ex.: E Joaquim danou-se no mundo.
DESFEITAS – Confusão desordem. Ex.: Criei-te como a um filho e tu na minha vista me
desfeita não.
ENVERDECEIRA – Ficar verde. Ex.: Tudo enverdeceira.
ESTICAR AS CANELAS – Morrer, falecer. Ex.: E não dou mais dois dias pra ela esticar
as canelas.
ESTREMUNHADO – Acordar de repente (a quem está dormindo). Ex.: O velho Borges
pediu-lhe a benção, ainda meio estremunhado.
ESTREBUCHOU – Agitar as pernas e os braços debater-se. Ex.: O cego estrebuchou, com
um berro medonho.
FICOU REMOENDO – Ficar repetindo muitas vezes a mesmas coisas. Ex.: Joaquim
emudeceu e ficou remoendo.
FORQUILHA DO POTE – Pequena forcada de três pontas pau ou tronco, Vara. Ex.: As
duas foices encostadas na forquilha da porta, pau ou tronco.
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GIROZINHO – Andar, passar por um determinado lugar. Ex.: De tarde, o sol já pendendo, o
velho foi dar um girozinho por trás de casa.
GUENZO – Expressão nordestina que significa pessoa ou animal magro e doente; capenga,
caindo aos pedaços. Ex.: Já disse que tua mãe morreu guenzo.
JIRAU – Cama. Ex.: D. Marica dormia na camarinha, Zumba no jirau.
MAGOTES – Quantidade, coletivo de pessoas. Ex.: Formavam-se naturalmente os magotes,
uns aqui, outros lá adiante.
MARTELAR O JUÍZO – Pensar, ficar pensando. Ex.: O único pensamento que lhe vinha
martelar o juízo.
MATUTANDO – Pessoa pensando; absorto; falando com seus botões. Ex.: Matutando a
última coisa, Joaquim deu um murro com toda força.
MEIÁGUA – Casa de telhado de um lado único, inclinado com telhado inclinado. Ex.: Na
meiágua, um foguinho de cabeça de candeeiro.
MINGAU-DAS-ALMAS – Secreção saída da boca durante o sono. Ex.: Lavou o rosto,
bochechou, tirando o mingau das almas.
NATUREZA DE COBRA – Pessoa ruim. Ex.: Nem esta seca danada que abrasa tudo, tem
poder sobre a tua natureza de cobra.
PURGA DE CABACINHO – Planta com larga utilização como medicinal, outros usos, em
veterinária, parasiticida. Ex.: Até milho cozido eu dei. A purga de cabacinho foi mesmo que
nada.
QUIZILA – Quizila antipatia, inimizade, briga, rixa. Ex.: Ora vocês já viram uma quizila
dessas!
RABO DE OLHO – Olhar pelo canto do olho sem mover a cabeça ou mover muito pouco ou
levemente para o mesmo lado que o olho foi direcionado. Ex.: Joaquim passou um rabo de
olho em cima do cego.
RAPÉ – Ex.: Ouviam-se perfeitamente o resfolegar do velho, entupido de rapé.
REMANCHANDO – Remanchar andar devagar, atrasar, demorar, tardar, preguiças. Ex.:
Vocês estão remanchando, preguiças.
RESTIAZINHA – Pequena sombra. Ex.: Acaso o cego enxergava uma restiazinha qualquer.
TEMPEROU A GOELA – Pigarro, tosse seca. Ex.: O velho Borges temperou a goela.
VENTAS AGUÇADAS – Ventas, o mesmo que o nariz, nariz com olfato ativo. Ex.: Sentia
um cheiro diferente daquele com o qual suas ventas, aguçadas, pela ausência da vista.
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Conclusão

Compreendemos que o trabalho de linguagem regional oferece vários campos de


análise, com denominações no léxico, que caracterizam modelos sociais e culturais, que vão
das questões políticas, socioeconômicas até as interpretações eminentemente linguísticas.
Procuramos mostrar aqui um pouco da linguagem encontrada na obra literária de
Jardim, que mostrou a formação de lexias, as caraterísticas diferentes da derivação flexão em
relação ao uso de unidades lexicais seu domínio e aplicação na linguagem literária de Jardim,
argumentado através das variações Sociolinguísticas.
Com essa pesquisa foi possível identificar elementos lexicais que caracterizam a fala
das personagens do conto estudado, que mostra um repertório socioetnolinguístico referente a
área em foco, que possibilitou o registro de lexias, simples, compostas e complexas e algumas
expressões, algumas dicionarizadas, outras com sentido equivalentes e complementares,
outras até dicionarizadas, mas com sentido diferente das lexias encontradas.
O trabalho aqui apresentado contribuirá para o estudo socioetnolinguístico do
regionalismo nordestino, ainda pouco explorado, no que diz respeito a realidade linguística,
levando em conta: língua-cultura-sociedade.
Muito ainda há o que percorrer quanto às pesquisas lexicológicas e socilinguísticas dos
falares regionais e suas variantes. Pretende-se poder dar continuidade a novas pesquisas, para
que o tema seja amplamente investigado, enriquecido, para outros aspectos não contemplados
neste estudo. Espera-se assim, estar contribuindo para novas pesquisas neste ramo da
Linguística.

Referências

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de um projeto para o nordeste. I Congresso Nacional de Sócio e Etnolinguística. João Pessoa:
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BARBOSA, M. A. O percurso gerativo da enunciação, a relação de equivalência lexical e
o ensino do léxico. Estudos linguísticos XXI. Anais de Seminários do GEL. , 1992.
______. Lexicologia, Lexicografia, Terminologia, Terminografia: identidade cientifica,
objeto, métodos, campos de atuação. Anais do II Simpósio Latino-Americano de
Terminologia. Brasília, 1990.
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BIRDEMAN, Maria Tereza. Teoria Linguística: leitura e crítica. São Paulo: Martins Fontes,
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CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, 341 p.
COSERIU, Eugenio. Principos de semantica estructural. Madrid, 1978.
______. Teoria da Linguagem e Linguística Geral. Trad. Agostinho Dias Carneiro. Rio de
Janeiro: Presença USP, 1979.
JARDIM, Luís. Maria Perigosa, Contos brasileiros. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1976.
POTTIER, B. Estruturas linguísticas do português. Trad. Albert Audubert e Cidmar Pais.
São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1972.
VILELA, Mário. Problemas de Lexicologia e Lexicografia. Porto: Livraria Civilização,
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______. Estrutura lexical do português. Coimbra: Almeidina, 1994.
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O MITO E O SIMBÓLICO NAS NARRATIVAS ORAIS DO AMAZÔNIDA


PARAENSE: UMA INTERPRETAÇÃO

Joaquim Nepomuceno de Oliveira Neto


Faculdade Cosmopolita

Introdução

O estudo das ciências humanas, nos dias de hoje, é um verdadeiro desafio. A história
dos nossos dias aponta as ciências voltadas às áreas tecnológicas como donas da verdade no
mundo moderno, principalmente porque, para muitos, são elas capazes de resolverem os
problemas mais emergentes da humanidade.
Percebendo o crescente desenvolvimento das áreas tecnológicas, os teóricos e
humanistas, então, buscaram dinamizar as ciências humanas, preocupando-se de forma efetiva
com a pesquisa dos aspectos culturais como um todo e, cujas partes, ciência, tecnologia,
literatura, filosofia, arte, religião etc. apesar de traçarem seus próprios objetivos se
completam e, muitas vezes, se interpretam.
Na verdade, o homem não pode viver voltado apenas para o lado objetivo da vida;
necessita também de aguçar sua sensibilidade para construir seu mundo interior e reconstruir
um mundo sempre melhor, a fim de que, desenvolvendo-se cada vez mais, contribuirá
também para o desenvolvimento de seus semelhantes, pois a vida se compõe de fragmentos
que arranjamos em torno de um tema; tema que se apossa do nosso corpo, podendo ser uma
melodia, uma imagem, um toque, e as variações vão se repetindo, sempre iguais, sempre
diferentes. Às vezes o script é trágico, no entanto, ficamos fiéis a ele, por ser belo, já que é
isto que nos faz continuar a ouvir a música que nos corta a alma e a continuar a leitura do
livro que nos dilacera. A dor pode ser bela, mas todos estamos destinados à beleza. Pois,
antes de se acreditar em mitos, antes de termos tido a consciência do bem e do mal, já
estávamos enamorados da beleza...
Assim, as obras culturais, de um modo geral, comunicam algo de profundamente
humano: arma-se uma comunicação entre intimidades, uma comunicação integral. Isso
significa que, entre tantas obras, o apreciar de qualquer uma delas, não se faz
superficialmente, envolve-se emocionalmente com o autor, o tema, o colorido, os sons, as
imagens, as linguagens.
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A literatura, neste caso, também como arte, manifesta-se como meio para romper, de
certa forma, a solidão. Para desfrutar o prazer da literatura é necessário educar a sensibilidade
e apurar o espírito crítico, buscando as formas do passado em comparação com às do presente.
Quanto às obras culturais, elas apresentam um nível ideológico ou mental que se refere
às relações do homem com o plano superior, transcendental. Daí a necessidade de esse
homem explicar sua existência através das ciências, das artes, da filosofia e da religião.
A cultura objetiva, fruto dos produtos culturais, compreende o patrimônio de bens e
valores que se transmite de geração a geração: uma informa à outra suas descobertas,
conquistas, criações, invenções pesquisas e experiências, pelas mais diversas formas de
linguagem que, segundo Hjelmslev (1968), designa qualquer sistema semiótico.
Em se falando de linguagem, sabemos que um dos seus objetivos é a comunicação e a
informação. Do ponto de vista lógico, essa comunicação e essa informação se dão também em
um nível semântico e estético. Níveis esses que nortearão uma das funções da linguagem que
é a total integração do homem enquanto organismo, enquanto psiquismo e enquanto pessoa.
É levando em conta todos esses aspectos, que estamos a estudar o mito e o simbólico
nas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense - um subprojeto integrado ao
projeto: O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense-
IFNOPAP/UFPA, a fim de verificar de que forma o mito e o simbólico se intercruzam
nessas narrativas e em que medida a relação entre o mito e o simbólico atua como marca
interferidora no discurso das formas do imaginário popular do amazônida paraense. O suporte
teórico que sustentará a análise será os relacionados à literatura mítica e aos estudos sobre os
aspectos simbólico-semiótico-semânticos.
Para esse estudo, levantamos a seguinte hipótese: através das narrativas orais
populares da Amazônia paraense, o homem amazônico manifestará a crença e o sentimento
que lhe está arraigado culturalmente, e se elevará enquanto indivíduo amazônida, pela sua
realidade mítica e simbólica. Para isso, o corpus escolhidos para análise foram as narrativas
constantes da publicação: Abaetetuba Conta...

O Mito e o Simbólico: perspectivas

Estudar a relação entre o mito e o simbólico nas narrativas orais de o Abaetetuba


Conta... é, sem dúvida, uma tentativa de buscar a identidade cultural da Amazônia paraense.
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No entanto, para nos situarmos melhor, é necessário que se faça algumas considerações entre
esses dois elementos, a fim de entendermos como eles se interpõem nesse tipo discursivo.
Comumente alguns autores afirmam que um exame da palavra mito revela, de
imediato, que esta é empregada de modo ambíguo na linguagem contemporânea. Assim
podemos assinalar a existência de uma dupla valorização, negativa e positiva do termo.
O sentido negativo é evidente na linguagem comum, na qual o mito aparece como
sinônimo de mentira, falsificação intencional, ilusão, querendo significar que há uma
hipervalorizarão do sujeito, com base em qualidades às vezes de fato existentes ou vistas de
modo deturpada, hipertrofiadas. O sentido positivo do mito está na expressão simbólica, por
imagens de valores. Esta expressão é carregada de conotações afetivas, o que caracteriza o
poder de sedução do mito. Abrangendo uma totalidade dificilmente apreensível de modo
direto e imediato pela consciência discursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo,
conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede de absoluto e
de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude.
Para Eliade (1991), o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode
ser abordada e interpretada através de perspectiva múltiplas e complementares é nessa
perspectiva que, para Cassirer (1972: 18):

“Tudo a que chamamos de mito, é, segundo seu parecer, algo condicionado e


mediado pela atividade da linguagem: é, na verdade, o resultado de uma
deficiência linguística originária, de uma debilidade inerente à linguagem.
Toda designação linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade,
nesta “paronímia” das palavras, está a fonte primeva de todos os mitos”.

Isto porque, uma abordagem do pensamento mítico já esbarra em alguns escolhos


aparentemente intransponíveis. É que a especificidade desse modo de ver a realidade tem
componentes que são impermeáveis às estocadas da racionalidade, esta, por sua vez,
constituindo-se como o instrumental mais aguçado de que dispomos, com sua lógica própria
e, de certa maneira, implacável na destituição de tudo o que não se enquadra em seus moldes.
Apesar de o mito ser, também, compreendido em várias esferas, na concepção mítica
de Eliade (1972) o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. É sempre, portanto, a narrativa de uma
criação: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. Segundo Rocha (1991, p.
7):

“O mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as


sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos,
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dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir


sobre a existência, o cosmos, as situações de estar no mundo ou as relações
sociais”.

Sem nos afastarmos dessas concepções míticas. Neste trabalho, porém, não será esse o
caminho que pretendemos percorrer, em relação ao mito, nem tampouco aquele da rigidez
clássica que afirma ser o mito uma narrativa, um discurso, uma fala. A nossa percepção, sem
desprezar as demais concepções, é situarmos o mito como uma forma de compreender uma
determinada estrutura social já que o mito é capaz de revelar o pensamento de uma sociedade
a sua concepção da existência e das reações que os homens devem manter entre si e com o
mundo que os cerca. O mito não será ficção engano e falsidade, mas sim, um modo de falar,
de ver e de sentir as dimensões da realidade inatingíveis racionalmente, dando-lhes
significado e consistência.
Quanto ao simbólico, em seu sentido etimológico significa encontro, conjunção, é o
elemento que, no mundo mítico, eleva os indivíduos ao mais alto grau da realidade. É algo
vital e, portanto, frequentemente repetido, recriado pela sociedade. É a expressão simbólica,
por imagens, de valores. Esta expressão é carregada de conotações afetivas, o que caracteriza
o poder de sedução do mito. Abrangendo uma totalidade dificilmente apreensível de modo
direto e imediato pela consciência discursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo,
conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede do absoluto e
de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude.
O vigor do simbolismo em nossa cultura e a presença indubitável de um pensamento
racional em toda sociedade invalidam sem dúvida a concepção de uma humanidade primitiva
irracional ou por insuficiência ou por sistema; no entanto, não se invalidam a concepção de
um simbolismo irracional. Daí porque, estudar o simbolismo é postular que ele se constitui
em um sistema e procura os princípios que o regem. Afirmar que os princípios da
racionalidade nele intervêm insuficientemente ou não intervêm de modo algum não
apresentaria interesse a não ser que a própria racionalidade estivesse definida; de um modo ou
de outro, não seria uma definição do simbolismo em si. Nessa percepção o simbolismo,
enquanto sistema de signos está ligado, como a língua, a uma semiologia. A língua tem sinais
próprios, que não se definem a não ser por sua articulação recíproca e por sua relação no
sentido linguístico. O simbolismo utiliza como sinais os elementos, os atos ou os enunciados
que existem e também se interpretam independente dele.
Assim, segundo Spencer (1974), um mito se apresenta primeiro como um discurso
ordinário. Para quem conhece a língua em que ele é narrado, ele não é mais difícil de
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parafrasear que qualquer outro relato e sua interpretação não traz à baila nenhum problema
linguístico particular. Mas esta interpretação lingüística não lhe esgota o sentido; ela constitui
antes um sinal complexo, que deve constituir o objeto de uma segunda interpretação, desta
vez simbólica. O sentido manifesto, e muitas vezes absurdo, um mito, nada mais é que um
instrumento da significação simbólica.
O uso ordinário da linguagem utiliza as categorias para enunciar proposições sobre o
mundo. O pensamento simbólico, pelo contrário, utilizaria proposições sobre o mundo para
estabelecer relações entre categorias. Assim sendo, todos os elementos do mito se tornam
pertinentes desde que se encontre pelo menos um outro elemento com o qual eles estejam
numa relação de identidade, de implicação ou de contradição. O conjunto dessas relações
analíticas constituiria, senão a totalidade, pelo menos o essencial da interpretação simbólica
do mito.

A Dualidade Mito e Simbólico nas Narrativas Orais do Abaetetuba Conta...

Com essa visão entre o mito e o simbólico é possível, a partir de agora, verificar de
que forma a dualidade entre esses elementos se constitui nas narrativas orais populares da
Amazônia-paraense, especialmente, nas narrativas do Abaetetuba Conta... (1995). Dada
extensão territorial do Município de Abaetetuba, e a data de sua fundação, em 1724, é fácil de
nos apercebemos que os mitos que constroem a história de uma nação, de um estado, de um
município são, na verdade, a construção de sua própria identidade. É daí que vem, a nossa
disposição em nos atermos nos aspectos míticos e simbólicos que fizeram e continuam
fazendo a história do município de Abaetetuba.
E, para isso, faremos algumas considerações dos aspectos míticos e dos aspectos
simbólicos em algumas narrativas que constituem o acervo do material Abaetetuba Conta...
por nos parecerem mais importante a este trabalho, conforme os dados que se constituem
abaixo:

L1 Mariana, tem uma comida de veado muito importante. Vamos matar esse
veado hoje.(...) Foi, foi, eu ouvi uma zoada, assim. Não demorou muito
aquilo Ah...Ah...Ah...Ah...(...) Eu vou, eu vou ver parar com esse negócio
(...) Dessa vez quase eu morro de medo, sabe? Porque eu não não
acreditava que tinha visagem (p.11-13).

L2 E tinha um homem de bruços, aberto assim (...) Volta, Volta! (...) Aí, eu
cheguei, foquei, ele não estava mais. Essas coisas que eu [...] já vi, uma
visão, não? Uma visão, não sei... ( p. 14-15)
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O uso da palavra visagem na produção discursiva dos narradores, apresenta duas


faces. Para o L1, a visagem está no nível do perceptível, mas não no nível do visível. Ele
nada viu, apenas percebeu algo estranho. No entanto, para o L2, a visagem enquanto visão
está no nível do visível, afinal, ele viu o homem de bruços. É nessa dualidade que as
narrativas vão se construindo, a fim de que o narrador interaja com o documentador - seu
interlocutor, assim, quem sabe venha a se envolver nas façanhas das narrativas. No aspecto
mítico visagem está no plano dos acontecimentos sobrenaturais, no aspecto simbólico
representa o fantasmagórico, o ilusionismo. Quanto à visão também se apresenta no campo do
sobrenatural e, no aspecto simbólico enquanto imagem vã, algo visto pelo pavor, pelo medo.

L3 A criança estava assombrada pelo curupira e tinha muita força, estava


com muita força. Pegaram a criança e levaram para casa, e a criança
sobreviveu. ( p.49)

O curupira, a mãe da mata, tem como uma de suas funções o assombramento. Um


assombramento que só se efetiva àquelas pessoas a quem ela simpatiza, como no caso da
menina que ela veio buscar na ausência da mãe. A menina estava assombrada, isto é,
aterrorizada, espantada. No entanto o narrador usa primeiro a expressão tinha muita força.
O verbo ter está relacionado à menina, que enquanto assombrada ultrapassava os limites de
suas forças. Quando usa a expressão estava com muita força, o verbo estar relaciona-se à
força da menina que é impulsionada por uma força misteriosa, que vem de fora para dentro,
isto é, o poder que o curupira exerce nas pessoas por ela assombradas. No aspecto mítico
temos o currupira como um ente sobrenatural que aparece a quem por ele é escolhido. No
aspecto simbólico é o símbolo da proteção das matas, isto é, seu papel é o de proteger as
matas daqueles que nela penetram sem pedir o devido consentimento.

L4 Falavam de uma bela ilha que, com aproximação de pessoas,


transformava-se em um lindo navio, todo luminoso. (p.50)

L5 Aquele navio baixando vinha por cima da praia. Uma coisa nunca vista!
Era um canto de papagaio. Era conversa do povo. Era música. (p.96)

L6 Aí, veio o navio já debaixo para cima, entrou na boca do rio


Tucumanduba. Música, casal de papagaio, de animais de todo quanto, e,
aí, desceu a correnteza pro fundo do mar, no fundo do rio. (p.98)

Temos três narrativas em que o aparecimento do navio é o ponto central. O navio


aparece sempre iluminado, ouvem-se vozes, canto de pássaros - o papagaio, bem como de
outros animais. No entanto, materialmente nada é visto, porque tudo está no nível do
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encantamento. Os encantados que estão no navio não se materializam e não se importam


que suas vozes e os seus movimentos sejam ouvidos e percebidos. O navio é um transporte
fluvial, representa uma viagem, o deslocamento de um ponto ao outro, também a alegria, o
conforto, a descontração, a felicidade. Os que lá se encontram é porque podem desfrutar dos
prazeres que o navio pode proporcionar aos seus tripulantes e passageiros. O navio aparece na
praia ou se dirigi para o rio. Na verdade o que está em jogo não é o tamanho do navio em sua
escala. Mas este navio que se mostra às pessoas que os têm em suas mentes apenas enquanto
ícone, pois jamais viram um navio. No aspecto mítico o navio desponta na praia ou no rio é o
sobrenatural que se torna visível aos olhos dos que podem contemplá-lo. No aspecto
simbólico representa o sonho, as inspirações nobres, mas irrealizáveis, do ideal impossível. É
também a imagem da vida, cuja direção cabe ao homem, afinal é ele quem o dirige.

L7 Certo dia, um curioso resolveu desembarcar na ilha. Chegando lá,


avistou um miritizeiro, com uma enorme cobra toda enrolada, ao mesmo
tempo uma voz forte lhe dizia: - Você tem coragem? Ele respondeu que
“sim”, então, a voz lhe disse para que voltasse em casa e de lá trouxesse
um copo de leite de peito e um terçado, e nela desse um golpe. O homem foi
em casa e voltou com o material, porém, não teve coragem para executar o
serviço. Então a voz, dessa vez mais forte e brava lhe disse: - Desgraçado,
redobraste meu encanto”.( p.50)

L8 Era uma vez uma moça virgem que morava numa casa deserta. Aí, ela
estava menstruada, ela foi tomar banho no rio (...) Quando ela estava
tomando banho, aí passou uma cobra, aí passou na perna dela e ela gritou.
Aí, a mãe dela veio e conseguiu tirar a cobra da perna , que estava trançada
na perna dela (...). Aí, ela pegou foi embora pra terra (...) aí começou a
crescer a barriga dela (...) aí, quando foram fazer exame, ela estava grávida
(...) Quando estava com dor, ela teve uma cobra, uma cobrinha (...) ela
pegou e jogou num rio (...) aí, ela cresceu, a cobra (...) aí, (...) uns nove
anos (...) apareceu um rapaz. Ele estava sentado numa ponte. (...) Aí, ela
disse bem assim, para o rapaz: Tu tem coragem? (...) Aí, ele disse tenho!
Então desce aqui. Aí, ele desceu (...) aí ela disse, assim, a cobra: (...) Então,
tu vem meia-noite, aqui e traz um terçado e um copo de leite (...) Mas tu
não conta pra ninguém, que tu vem aqui meia-noite (...Aí, quando foi meia-
noite, ele pegou o facão dele. É facão virgem. Pegou e foi pra lá. Aí, ela
colocou o rabo, e ele, ele cortou. Ai, ela se transformou numa linda moça
e casou com ele. (p. 141)

A cobra-grande tem sido a personagem constante das narrativas. É uma cobra


que pela ironia do destino sempre nasce de uma mulher que fora engravidada por uma cobra.
Essa cobra ao nascer tem dupla identidade é cobra por ter como pai uma cobra. É também
humano por ter uma mãe que é uma mulher. É nessa dualidade de identidades que vivem as
cobras-grandes que são encantadas. Ao se transformarem em seres humanos, são sempre
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mulheres e homens muito lindos. Quase sempre não aceitam sua condição de animal cobra e
vivem implorando a coragem de alguém que se predisponha a ajudar a perder o encanto.
Sempre que pedem ajuda orientam o preterido que leve um facão virgem, isto é, um
facão que nunca tenha sido usado em uma única outra atividade, por esta razão, não está
contaminado por nenhuma bactéria evitando, assim, inflamação do ferimento causado pelo
golpe. Este facão, que é o símbolo do sacrifício, serve para a execução, para a morte, para a
vingança. Aqui, porém, tem a simbologia do afastamento das influências maléficas, no caso
da narrativa, da cobra-grande que deseja libertar-se do encantamento.
Ao ter o rabo cortado sangrará, sairá então o sangue do animal enquanto cobra e fica
esperando a restauração de sua identidade humana pelo leite materno que deve ser jogado em
cima o corte, assim que cortado.
O leite materno, obviamente, é o leite de uma mulher que ainda está amamentando.
Este leite representa a pureza, por ser um leite natural, isto é, puro tem o poder de cicatrização
imediata à imunização e à cura após o encantamento. No aspecto mítico temos uma cobra que
enquanto metamorseada poderá ter decisões súbitas, mas que no lado humano simboliza a
vida. É uma hierofania do sagrado natural, não do espiritual, mas do material.
Quanto à solicitação do desencantamento há dois caminhos, ou o agraciado assume o
compromisso, transformando a cobra em um ser humano (homem ou mulher) e é premiado
por ela, ou então desiste de praticar o ato prometido, redobrando o encantamento do/da
solicitante, segundo as lendas cada encantamento redobrado tem um período de 07 (sete)
anos. Dado que o compromisso assumido não foi realizado, o solicitado sempre morre e, sua
morte, é sempre em decorrência de uma forte dor na cabeça.

L9 (...) Numa certa noite, já estávamos preparados para dormir, e estava


todo mundo conversando na sala e, de repente, a gente... Nós ouvimos o
assobio da matintaperera. Aí, o pessoal começou: - Oferece uma
cachimbada de tabaco (...) oferece uma cachimbada de tabaco para ela vir
buscar amanhã (...) Quando foi no outro dia, cedinho, eu levantei, fui fazer
o café (...) E quando eu estava escovando os dentes, apareceu uma senhora
lá, uma pessoa que agente considera muito, por nome tia Ermita. Ela veio e
disse: - Rai, eu quero... Eu vim aqui pra ti me dar um pouco de tabaco, que
eu vou pro matapi, e não tenho dinheiro pra comprar tabaco... Tu me dá?
(p. 57)

O matintaperera é um dom que as pessoas trazem. Durante a noite, elas saem para
cumprir sua penitência - ficar assobiando. As pessoas que ouvem o assobio, numa tentativa de
saber quem é a pessoa que está com o fado, prometem, na manhã seguinte, uma cachimbada,
isto é, uma porção de tabaco, que dá para encher um cachimbo. Em decorrência do
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oferecimento a matinta, quase sempre uma mulher, vai logo de manhã buscar a cachimbada
de tabaco, prometida. O tabaco tem um poder de transmutação por ter nicotina é um
alucinógeno, é um tóxico, capaz levar o homem a um estado de alucinação. No entanto, no
caso da oferta à matintaperera, o tabaco assume o papel de ser, dentre outros, um dos produtos
mais consumidos pelos caboclos, aqueles que não o têm, buscam com os demais vizinhos e
assim nessa roda viva, o fumo passa a ser quase que uma obrigação, um “passar o tempo”, um
reviver de um passado. No aspecto mítico a matinta representa um ser humano que quando
transmutada é conhecida pela forma especial de assobio. O tabaco simboliza a disposição, a
alegria, dando à matinta, força para continuar a cumprir o que a natureza lhe impôs.

L10 (...) Ela chegou na cabeça da ponte, e ficou olhando as águas do rio. De
repente, um rapaz muito lindo, e bem vestido, veio se encontrar com ela e
desceram as escadas da ponte. (...) O primo curioso foi atrás dela (...) No
outro dia, ele contou tudo a seu tio (...) Nessa mesma noite, precisamente,
meia-noite, a filha saiu para a cabeça da ponte (...) Ele aproximou-se com
cautela (...) E qual não foi o seu susto, ao deparar com um peixe muito
grande, que rodava e mergulhava nas águas do rio, fazendo piruetas e a
moça toda risonha, conversando com ele. Então o pai entendeu que a filha
estava sob o encanto do boto. (...) ele voltou a casa e reuniu alguns homens
(...) para fazerem um cerco e matarem o boto (...) ouve-se um estampido de
uma arma de fogo e o peixe boiou e tornou a fundar. A moça deu um grito e
jogou-se no rio, atrás de seu amado. (...) pularam na água e não mais
acharam nada, nem a moça, nem o peixe. (133)

A lenda sempre enfatizou o boto - um peixe da água-doce, como um ser que se


transforma em um homem sempre de branco, é o consquistador, o sedutor das donzelas que
moram às margens do rio. A transformação de peixe/boto para homem se efetiva,
preferencialmente, à meia noite, uma vez que essa é a hora da fantasmagoria, do
sobrenatural que realiza suas façanhas. O boto enquanto homem vem buscar a moça na
cabeça da ponte, depois volta a ser boto e vai para a água. Da água ele conversa com a moça.
A conversa se dá entre o boto e a moça, enquanto boto sua voz não é ouvida, pelas outras
pessoas, que não entenderão o conteúdo da conversa. O diálogo interessa apenas aos dois
enamorados. A moça está mundiada pelo boto, entregue aos seus encantos, afinal não
interessa a ela a forma de peixe percebida pelas demais pessoas, a ela interessa o seu amado o
homem que ela vê. Daí o mito do boto que, simbolicamente, se vira em um belo homem. Se
o faz é porque seu encantamento o permite, é um animal que tem os órgãos genitais tal qual
de um homem. Ele prefere a condição de estar nessa constante metamorfose, pois sendo um
homem que advém de uma outra realidade, conhece bem mais as façanhas da sedução, razão
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por que sempre prefere continuar como boto, em nenhuma narrativa se ouviu caso em que ele
(boto) pedisse para ser desencantado.
Quando o boto é baleado vem à tona, emerge, a moça grita e atira-se na água, a partir
desse momento, ela passa a um outro plano o do encantamento.

L11 (...) O meu pai dizia que lobisomem era um porco. Ele se virava em
porco. (...) O meu pai dizia que o lobisomem só saía na noite de lua. (...)
Eles saíram pra lancear (...) Aí, eles lanceram um bocado. Que quando eles
viram, eles viram aquele passo, aquele andar pra perto deles. Um andar
igual um andar dum bicho, mas um bicho muito grande. Mas eles olhavam e
não enxergavam nada (...) Você quer saber de uma coisa, eu já vou acabar
com este... Com isto que está nos perturbando. Pegou a espingarda e deu um
tiro, assim, por baixo. Pegou a perna do lobisomem (...) pegou um bago de
chumbo na perna dele (...) Ele caiu (...) Mas eles não enxergavam (...)
Quando foi no outro dia, nós soubemos que o homem... O nome dele era,
era, era, pois, Pedro o nome dele. (...) ele estava malíssimo na casa dele,
com uma bala na perna.. (157)

A narrativa contada pelo L11 é a amostra de que as narrativas se adequam às culturas.


O lobisomem é um porco. O porco é o animal com o qual o caboclo convive no seu habitat.
Conhece muito bem as façanhas do porco, seu modo de vida, alimentação etc. O homem ao
virar porco vai adquirir durante esse tempo não apenas as características físicas, mas também
comportamentais do animal. Prefere as noites de luar, assim pode preservar melhor sua
identidade e regozijar-se com os feitiços da lua. Como o período em que vira porco é um tanto
curto, aproveita para um passeio nas matas, ou nos arredores das casas e dos rios. Nunca pede
para perder o fado, talvez porque a condição não humana é por um curto período - uma noite.
Durante o dia volta à sua forma humana. Outro fato é o de que, quando ferido, nunca o
ferimento o atinge em uma parte mortal, sempre o atinge em algum local em que ele possa
chegar até sua casa. Como o atirador sempre sabe do ato praticado, é fácil, então, identificar
quem é a pessoa que se transforma em lobisomem. Uma vez que a notícia de alguém ferido se
espalha rapidamente pela vizinhança. Como o porco é um animal que gosta de banhar-se na
lama, anda sempre sujo, simbolicamente representa a dor o sofrimento, já que a sujeira tende
levar a isso.

Conclusão

Após essas considerações, o presente trabalho procurou decifrar e compreender


o verdadeiro significado do mito e do simbólico, pois sabemos que nada fazemos sem
primeiro sabermos o que somos verdadeiramente, pois o mito quando estudado ao vivo não é
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uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz
reviver uma realidade primeira, que satisfaz as profundas necessidades do homem, suas
aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas.
Estudando o mito e o simbólico refletimos sobre o seu sentido e significado,
buscando sua constante atualização, procurando ter em mente que ele é um dos ingredientes
vitais da civilização humana e, apesar de ser uma realidade cultural extremamente complexa
pode e deve ser abordado e interpretado através de perspectivas múltiplas e complementares,
nas narrativas amazônica, em especial, nas narrativas de Abaetetuba Conta...

Referências

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CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972.
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UMA SEMIÓTICA DA INSTAURAÇÃO DO SUJEITO

Márcia Ferreira de Carvalho


Universidade Federal da Paraíba - UFPB

O presente trabalho tem como objetivo analisar a xilogravura que ilustra o folheto
popular impresso, denominado A velha que matou o filho pra ficar com seu dinheiro, ambos
de autoria de José Costa Leite. Este poeta paraibano, que nasceu em Sapé, no ano de 1927, é
um dos xilogravadores que melhor representam esse imaginário feminino, criando assim uma
expressividade própria. Na sua arte, apresenta mulheres que assumem diversos papéis sociais
ainda que ocupem o mesmo espaço nordestino. Nota-se que em sua obra permeiam-se
mulheres traídas, revoltadas, escravizadas, embora fortes, valentes, guerreira e outros. Nessa
análise, buscamos identificar valores dos sujeitos investidos na narrativa, bem como a
modalização, responsável pelo agir do sujeito.
A semiótica greimasiana, modelo teórico escolhido, tem como objeto de estudo a
significação que compreende um percurso que vai, segundo Pais (2003) da mente do falante à
mente do ouvinte, sendo constituída de três níveis de estudo de analítico: nível fundamental
ou profundo, nível narrativo ou intermediário e nível discursivo ou superficial. O primeiro
nível representa o primeiro momento do percurso gerativo, tratando de explicar a produção, o
funcionamento e a interpretação do discurso; O segundo nível acontece em torno do
desempenho de um Sujeito que realiza um percurso em busca do seu Objeto de valor, sendo
instigado por um Destinador que é o idealizador da narrativa e ajudado por um Adjuvante, ou
prejudicado por um Oponente; e o terceiro nível é encarregado de retomar as estruturas
semióticas de superfície e colocá-las em discurso. O sujeito enunciador organiza as categorias
de sujeitos do discurso, os atores, o espaço, o tempo, os temas, bem como as figuras que os
põem em discurso, para convencer o enunciatário daquilo que ele deseja afirmar. Vejamos a
xilogravura para análise:
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Essa xilogravura está em conformidade com o título do cordel que aparece ambíguo a
partir da ligação que o pronome possessivo “seu” possibilita. Ocorre que esses sentidos, a
mais, na mensagem enriquecem o objetivo do autor em conquistar o leitor. Num primeiro
momento, o título exposto em letra evidente envolve três circunstâncias. O pronome “seu”
funciona, numa primeira interpretação, como sendo o dinheiro posse do filho; numa segunda
concepção, a posse do dinheiro é da própria velha. A terceira interpretação que o pronome
“seu” gera é o dinheiro ser posse do próprio leitor que se depara com esse título e fica
desconfiado, principalmente, se coincidir com alguma economia que o mesmo possua, e
julgue que não está bem guardada. Na dúvida, prefere adquirir esse significante para ter
certeza da sua significação. Em resumo, isso reforça a capacidade do produto chegar até o seu
destino pleiteado: as mãos do seu público leitor.
O xilogravador chama atenção da sociedade para mostrar que dinheiro pode ser algo
muito perigoso. É por causa da sedução do fetiche do dinheiro que muitas pessoas tornam-se
assassinas e poderão perder a vida, cedendo lugar para a tragédia litigiosa, inclusive em
família. Dessa forma, a cena que poderia ser de afeto, com os membros da família se
abraçando e expressando amor, converteu-se numa imagem irreversível de horror que traz, em
sua estrutura narrativa, três Sujeitos Semióticos:
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O Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado pelo enunciador, tem por Objeto de valor
mostrar que, numa sociedade onde o dinheiro supera o valor da vida humana, há uma
passividade de erros. O Destinador desse sujeito é ele próprio e o Adjuvante, o conhecimento
colhido através da experiência de vida. Eis o programa narrativo de S1:

O S1 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:


(S1  O)  (S1  O)
que se lê: S1 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S1 em conjunção com seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 2 (S2), figurativizado pela velha, tem por Objeto de valor obter
uma vida boa. Para isso, S2 terá que sacrificar uma vida. O seu Destinador é a coragem para
cometer essa barbaridade. O Adjuvante desse Sujeito é a foice que utilizou para decepar a
cabeça de um ser humano, o filho. Eis o programa narrativo desse Sujeito Semiótico:

O S2 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:


(S2  O)  (S2  O)
que se lê: S2 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S2 em conjunção com o mesmo.

O Sujeito Semiótico 3 (S3), figurativizado pelo filho, tem por Objeto de valor viver
feliz com a família. Para tanto, S3 procura ficar perto da mãe. O Destinador de S3 é ele
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próprio. O Oponente é a mãe que lhe tira a vida. O programa narrativo do Sujeito Semiótico
S3 é configurado da seguinte forma:

O S3 conclui a narrativa disjunto de seu Objeto de valor da forma seguinte:


(S3  O) (S3 O)
que se lê: em conjunção com seu Objeto de valor passa a S2 em disjunção com o mesmo.

Na estrutura discursiva, deparamos-nos com uma mulher perigosa, traiçoeira,


assassina e compulsiva por dinheiro, que não pode ser uma representante coletiva da mulher
do Nordeste, considerando que existem, nessa região, mulheres humanas, sensíveis e
amorosas. Essa mulher, de qualquer forma, representa uma classe de mulheres que, devido ao
sofrimento ocasionado pela fome, miséria e submissão ao machismo etc , adquire
características avessas a feminilidade que é um traço tão comum às mulheres. Até porque, no
panorama machista do senso comum masculino, nesse tempo e espaço, a mulher, ao perder a
beleza e o vigor sexual, passa a ser vista numa concepção pejorativa, como feia, fedorenta,
aborrecida e masculinizada. Por exemplo: pela projeção da velha segurar a foice - deixando
alguns centímetros da parte final do cabo, onde segura com a mão esquerda, e com a mão
direita segura a parte que se chama eivado – demonstra está empunhalando uma arma de fogo
em posição de ataque, o que lhe assemelha com a mulher do cangaço.
O xilogravador se vale muito de evidências tipográficas para chamar a atenção do
público. Tanto é que escolhe a cena mais chocante, onde o corpo do rapaz, ainda ereto,
projeta-se para cair sobre a própria cabeça que já está ao chão com a face para o alto,
desprotegida contra o baque do corpo. Enquanto isso, a velha de rosto firme, demonstrando
coragem e frieza de espírito, impunha-se a foice suspensa como se preparando para com este
instrumento empurrar o cadáver decapitado, apressando, assim, a queda do corpo do rapaz
que ainda, em pânico, tem forças para atar a mão esquerda ao peito como quem,
intuitivamente, procura socorro. Já sua mão direita desfalece primeiro e se projeta inerte,
pendurando-se sem força. A velha acompanha essa cena, sempre protegida, fazendo da foice
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um escudo. Ela está tão obcecada pelo dinheiro que nem mesmo os pingos de sangue que
largam da foice para caírem sobre o corpo chegam a assustá-la. Esse é um momento estático
em que os pingos ficam parados no ar entre a foice e o rapaz, de modo a se alinharem entre os
olhos da velha, o gume da foice e o corte certeiro no pescoço do filho.
A mulher aqui em análise, que tem o papel temático de mãe, deveria ser carinhosa e
dotada de ações maternais, no entanto retira da cabeça (lugar da razão) experiência e
conhecimento suficientes para realizar o que idealizou: obter dinheiro, mesmo que para isso
tenha que matar o filho. Se este estivesse no lugar da mãe, com toda a efervescência da
mocidade e vigor físico, não causaria tamanha estranheza um ato desse.
Com relação ao tempo nessa xilogravura, este fenômeno está marcado pelo branco que
sobrepõe a massa impressa, o que nos diz que a morte do rapaz ocorreu durante o dia. Já o
espaço é o sertão, identificado a partir da forma estética da foice da velha, pois em outros
lugares o instrumento mais utilizado para trabalhos agrícolas e atividades domésticas é o
facão ou uma roçadeira que tem a parte final volteada e longa, fazendo lembrar a forma de
uma interrogação. Já a foice é utilizada no sertão, através de uma prática primitiva e
antiecológica, na derrubada de árvores para as queimadas e, consequentemente, organização
do roçado. É um instrumento resistente que se aproxima do machado, servindo para cortar
árvores fortes, como Jucá, pau ferro, arueira e outras vegetações típicas da caatinga sertaneja.
Entre outras possibilidades, apreendemos alguns temas que ocorrem com muita
frequência nessa xilogravura: Família, figurativizado na mãe e no filho; Riqueza que se
expressa no traje do rapaz; Pobreza que tem como figuras a velha e a foice; Velhice,
figurativizado no cabelo da velha que está preso em forma de cocó, nas rugas, nos sapatos
masculinos, nas sobrancelhas grossas, nos peitos muchos que quase não se nota, na estatura
baixa, em sua pouca vaidade e em sua força masculina; Juventude, representado pelo rapaz,
que é alto, vaidoso, mas pouco experiente para se defender; Morte, figurativizado em gotas de
sangue, corpo sem cabeça, mão no coração e olhos abertos.
Dessa xilogravura, foram extraídos dois conflitos que serão, a seguir, representados
em forma de octógono.
O conflito, civilização versus barbárie, encontra-se internalizado no enunciador que,
de um lado, mostra a civilização na família unida e sem dinheiro enquanto meio para realizar
seus objetivos e serem felizes coletividade. De outro, expõe a barbárie na família desunida por
causa de um assassinato ocorrido no meio familiar, numa demonstração de tirania em
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ambição pelo dinheiro. Esta oposição, vista através do octógono, apresenta-se da forma a
seguir:

A tensão dialética da narrativa se centra entre civilização e barbárie. As relações, entre


civilização e não-barbárie representam a família unida. Enquanto que barbárie e não-
civilização definem a família desunida. Não-barbárie e não-civilização correspondem a
inexistência semiótica que está representada pelo zero cortado.
O conflito, obediênciar versus desobediência, instaura-se no interior da velha. Esta, de
um lado, obedece aos princípios da vida em sociedade convivendo com seu filho. De outro, é
desobediente, tornando-se assassina do próprio filho. Esta oposição, vista através do
octógono, apresenta-se da forma a seguir:

A tensão dialética da narrativa se centra entre obediência e desobediência. As


relações, entre obediência e não-desobediência representam a velha convivendo bem com seu
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filho. Enquanto que desobediência e não-obediência definem a velha como um ser terrível
que mata o próprio o filho. Não-desobediência e não-obediência correspondem a inexistência
semiótica que está representada pelo zero cortado.

Configura-se neste texto um flagrante da banalização da morte em simultaneidade com


a desvalorização da vida. A cena exposta aqui na xilogravura em análise é apenas uma réplica
das inúmeras cenas trágicas (chacinas, assassinatos, torturas, sequestros, abandonos, traições
etc) que ocorrem diariamente em nosso país e outrem. Basta imaginar o somatório de pessoas,
famílias e comunidades que fortalecem a audiência de programas televisíveis que tem caráter
sensacionalista e que se nutrem de violência em geral, corroendo a dignidade humana. Ao
assistirem as tragédias, através dos sentidos, os indivíduos captam essas informações e
conduzem-nas ao cérebro. Essas imagens são guardadas em arquivos, constituindo assim a
memória psicossocial. De qualquer forma, a repetição desses fatos promove uma espécie de
aceitação pelos indivíduos, concebendo-os como algo natural.
Dessa forma, a violência ganha espaço e crédito no cotidiano dessas pessoas,
chegando a ser a ação de matar um ser humano uma convenção, um ato honroso, uma
necessidade para a sobrevivência e até para fazer com que esse indivíduo tenha um status
social elevado.
Principalmente em lugares onde a administração pública não cumpre o seu papel
constitucional de garantir sobrevivência, cidadania, segurança e respeito aos cidadãos; onde o
dinheiro é considerado cogitado muito acima dos valores humanos e da própria vida, neste
contexto, fica fácil entender que a atitude da velha, apresentada nessa xilogravura, está
coerente com o momento atual pelo qual passa a maioria das populações vitimadas por um
sistema capitalista desumano que mais parece uma máquina diabólica que inferniza a
dignidade das famílias em suas respectivas sociedades.

Referências

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Pós-Graduação em Letras, João Pessoa: Idéia, v. V, nº1 2000.
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ANÁLISE SEMIÓTICA DO FOLHETO A DONZELA TEODORA

Nélson Barbosa de Araújo


Universidade Federal da Paraíba - UFPB

Elegemos para análise este romance tradicional, por ser eleito um dos cinco livros do
povo, e também por fazer parte das mais bonitas histórias que ouvia recitado, lido e cantado,
durante a minha infância, no sertão paraibano. Além do mais, outros valores de ordem
discursiva, histórica, cultural, envolvendo o saber empírico e tantas outras relevâncias para a
memória popular, conforme registra o folclorista Cascudo (1979, 38), que apresenta um
estudo aprofundado sobre todos estes cinco livros1.
De acordo com este pesquisador, que esteve pessoalmente pesquisando em Portugal, a
sua primeira impressão possível da História da Donzela Teodora data de 1712, assim como, é
provável ser a mais antiga das traduções portuguesas. No entanto, Portugal já recebeu essa
obra da Espanha, cujas impressões feitas por outros pesquisadores espanhóis2 da Donzela
Teodora. Assim como no Brasil, Consta um número vasto de publicações espanholas,
inclusive, uma que é a mais antiga, impressa na cidade espanhola de Toledo, no ano de 1498
por Pedro Hagembach.
Conforme Cascudo (1979, p. 48) que classificou a história da Donzela Teodora, um
dos cinco livros do povo – a origem dessa história deve ser considerada da seguinte forma:

De um original árabe perdido foi feita a primitiva versão castelhana, a dos


códices do Escurial, já adaptada à moral cristã e afastando-se da massa
informativa muçulmana, divisão e origem do Koran, rito de fórmulas da fé,
oração, protocolo das refeições, a ponte Sirat, os homens e animais ligados à
história de Maomé, as adivinhas do ovo, da agulha, do fogo, etc, etc. A
leitura da DOCTA SIMPATIA evidenciará a distância.

Realmente a Docta Simpatia é anterior à Donzela Teodora, e, conforme esse estudo


comparativo realizado por Cascudo (1979), apoiado nessa mesma afirmativa dita
anteriormente por Teófilo Braga (1986, p.265), comprova-se a identidade entre um e outro,
salvo as diferenças de ambiente e de concepção religiosa. Enquanto a primeira recorre a

1
História da Donzela Teodora, História do Grande Roberto, Duque da Normandia, História da Princesa
Magalona, História da Imperatriz Porcina, História de João de Calais e História do Imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França.
2
Segundo CASCUDO (1979, P. 37), a divulgadora essencial da DONZELA TEODORA foi feita por: Ticknor,
Gayngos, Salvá, Menéndez y Pelayo, e mais duas edições catalogadas por Fernando Colón, sendo uma datada de
1424 e outra, adquirida em 1420 em Medina del Campo e outra, provavelmente de 1520.
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Maomé e ao alcorão como fontes de sabedoria para as respostas, a segunda blinda-se com a
religião católica apostólica romana com os seus representantes divinos e humanos para vencer
aos sábios de El-rei.
Tomamos para análise uma Versão Portuguesa, o exemplar de Lisboa, traduzido do
castelhano para o português, em 1712, na Oficina dos Herdeiros de Antônio Pedrozo Galraõ,
constando no total de uma introdução e oito capítulos, transcrita integralmente para Os Cinco
Livros do Povo3, ocupando 23 páginas, contada por um narrador ou narradora anônimo(a) que
detalha a história de forma calma, como se estivesse rezando uma oração, inclusive,
dispensando a abertura típica das histórias comuns, geralmente iniciadas com “Era uma vez
...”. Durante a narrativa, é concedida a voz aos atores, no entanto, no final desta o ator-
narrador conclui com uma pequena oração que é típica das rezas: “Seja por tudo louvado
Nosso Senhor Jesus Cristo, para todo o sempre. Amém” (p.143).
Já a Versão Brasileira da História da Donzela está escrita ao estilo do Folheto de
Cordel Nordestino, que foi publicado em 1910, transcrito para a antologia Leandro Gomes de
Barros - No Reino da Poesia Sertaneja4 narrada em 142 Estrofes regulares em sextilhas
heptassilábicas. Em todas as estrofes as rimas seguem o modelo tradicional ocorrendo no final
do 2º, 4º e 6º versos de cada estrofe.
Na versão Portuguesa a narrativa inicia com a voz do enunciador narrador, contando
de um negociante anônimo, natural da Hungria, que encontra numa casa comercial de um
mouro uma escrava cristã à venda. Por achá-la interessante, compra e a leva para casa, daí em
diante investe bastante nos estudos da escrava, que se faz sábia pela capacidade de
inteligência e conhecimento em todas as artes e ciências.
De acordo com Cascudo (1979. P.45), esse negociante mercador anônimo que compra
a Donzela é um cristão da Hungria, um reino que já era constante nos romances e novelas
populares da Península Ibérica, chegando a ser o reino mais conhecido nos fabulários e
cancioneiros da Europa do século XVI. O ambiente onde ocorre a história é Túnis, muito
divulgada na tradição oral do sul da Europa e do mediterrâneo, enquanto centro de interesse
comercial, industrial e cultural, principalmente durante o domínio dos Hafsidas.
O rei comprador da Donzela5 é o sultão da Babilônia. Abomelique Almançor, Harum
Al Raxid em Bagdá ou Miramolin Almançor em Túnis, títulos estes que são peculiares a
soberanos orientais, nas histórias populares da idade média, em Bagdá. Esse sultão tinha

3
CASCUDO, 1979, ocupando as páginas entre p.120 - 143.
4
NEDEIROS, Irani (Org.). Idéia, João Pessoa, 2002, p 281 - 293.
5
Conforme o códices de Escurial.
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evidente lugar na sociedade sobre a qual exercia poderes e tornara-se figura literária e popular
nos romances e novelas francesas e italianas dos séculos XV e XVI.
Nesse ambiente, onde concentra o conhecimento científico, cultural, artístico, musical,
linguístico, religioso, que produziu mulheres com potencial de catalogar e produzir obras
livrescas, poderia também ter dado abrigo à Donzela Teodora, com os caprichos e a sabedoria
completa com que desafiou os sábios do rei Miramolin Almançor, provocando a sua mudança
residencial para morar entre as feras, em consequência da derrota para a musa casta da
Espanha.
Nessa passagem da história, a figura de Almançor era considerada contraditória, uma
vez que, de um lado era violento, fervoroso, destruidor impiedoso. Relatam os historiadores6
que suas investidas caracterizavam-se pela perseguição constante e pela política sistemática
de pilhagem e de destruição executada por suas tropas, no espaço de tempo entre 980 e 1002,
quando esse rei foi morto. De outro lado, Almançor aportou-se de uma administração
especializada, de modo que, mediante estreita vigilância, confiada a cristãos e escravos.
Todavia, mesmo com propósito de demonstrar poder e civilidade, Almançor reuniu em seu
palácio poetas, músicos, letrados, médicos e astrônomos que, no século X, contribuíram para
o engrandecimento da cidade de Córdova. Ambiente digno de receber uma sábia como a
Donzela Teodora que tão bem se identificava com essas ciências. Vale dizer que o fato de ser
uma Donzela cristã vendida por um mouro traz à tona um discurso chocante na história dessas
duas civilizações, que se juntam, mas não se misturam. Ato contínuo, a história fornece
elementos que contribuem para sedimentar a narrativa e suas evidências com a literatura.
Voltando à narrativa, quanto ao tipo de heroína, entende Cascudo7 que a Donzela
Teodora inaugura na Europa o perfil da moça sábia que tem voz nas tradições cristãs mais
populares do Oriente Médio, irradiando-se do Egito. A base essencial da Donzela Teodora
estaria associada à lenda da discussão entre a moça e os doutores que perfaz o tema central da
lenda de Santa Catarina de Alexandria8, que se tornou mártir no início do século IV da nossa
era cristã. Nessa discussão,

Resistiu a Maximiano Daia que reuniu cinquenta gramáticos, dialéticos e


reitores em Alexandria. Catarina venceu-os a todos, convertendo-os ao
cristianismo. Converteu Faustina, mulher do Imperador e a Porfírio, chefe

6
Rucquoi, 1995.
7
( CASCUDO, p. 52)
8
Comenta Cascudo (p.53) que o nome de Catarina concebido a Dorotéia, partir do batismo cristão (Cathara=
pura, casta) justifica a tríplice coroa do martírio, da virgindade e da sabedoria, conforme explicava São
Gerônimo.
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dos guardas e a duzentos legionários. Foi degolada e seu corpo arrebatado


9
para o Monte Sinai onde fez repetidos milagres

Vale dizer que, conforme esse estudioso10 já havia a tradição popular da Imperatriz
Teodora do reinado Bizantino, entre 527 e 548, que tinha poderes nas decisões políticas de
alto porte e demais atividades enérgicas, estendendo o seu nome por todo o Oriente, embora o
vocábulo Teodora seja passivo de interpretação grega, significando “Dávida de Deus”.
Existem essas raízes possíveis que consubstanciam a Donzela, na história, mas ela está
revestida dos valores cristãos, em postura de uma Santa justiceira que trama essa farsa toda
para refletir fatos ligados à história a fim de compensar valores subtraídos da sua gente, pelo
próprio El-rei, que era muçulmano.
Em todas as versões já conhecidas a história começa com a Donzela Teodora posta à
venda numa praça, por um mouro, que aqui, para efeito de análise, consideramos como
espaço 1 do ator Donzela Teodora. Já na versão brasileira de Leandro Gomes de Barros,
editada em 1910, além de ser adotado esse mesmo começo, o mouro ainda é agraciado com o
verso: alma pura e constante. Em ambas as versões a Donzela tem nacionalidade espanhola e
beleza casta, de modo a chamar a atenção e fascinar as pessoas que a olham. Mesmo na
humilde condição de escrava, apresenta figuras extraordinariamente fidalgas, num padrão de
formosura superior, de modo a despertar no comprador uma vontade de educá-la ao máximo
que pudesse. Como esse mercador anônimo era o mais rico da Hungria (Espaço 2), mandou-a
para a escola (Espaço 3) a fim de que a Donzela aprendesse a ler e escrever, e também, todas
as artes possíveis. Então esta aprendeu tanto, principalmente em filosofia, música e em
demais artes, que excedeu a todos os homens e mulheres da época. Aqui se observa que, na
versão brasileira, o enunciador-narrador opta por dar ênfase à narrativa, fazendo uso de
adjetivos e até deslocando trechos que se referem, por exemplo, às qualidades da Donzela nos
estudos, chegando ao exagero:

Mandou ensinar primeiro


Música e filosofia
Ela sem mestre aprendeu
Metafísica e astrologia
Descrever com distinção
História e anatomia.

(...)

9
(Idem)
10
(CASCUDO, p. 53)
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Admirou todo o mundo


O saber dessa donzela
Tudo que era ciência
Podia se encontrar nela
O professor que a ensinou
Depois aprendeu com ela.

Tal ênfase deve-se provavelmente pela forma rimada e metrificada como os poetas
cordelistas brasileiros tecem as suas obras, que implicam em buscar as respectivas palavras
rimáticas com extensão silábica exata.
Para a versão portuguesa, o que promove motivo é o fato de uma catástrofe marítima
ter arruinado bruscamente a vida do mercador, dono da Donzela. Nessa feita, o homem mais
rico da Hungria acha-se mergulhado em descabida pobreza. Dessa forma, o conflito
estabelecido no interior dessa personagem é ponto crucial para uma inquietação exaustiva de
remédio para tal pobreza, de modo que o enunciador, sutilmente revela suas pretensões
religiosas e persuasivas:

E como as coisas neste mundo sejam mudáveis e inconstantes, foi vontade


de Deus dar ao mercador um contratempo que, carregando umas
embarcações de fazendas de grande valor, e com uma boa fortuna, estas se
perderam, de maneira que não sabia dar remédio à pobreza em que se
achava;

Vale observar que esta reflexão identifica um enunciador religioso que afirma ser o
mundo vulnerável (inconstante e mudável), diante dos poderes da vontade de Deus, o que
provoca uma sensação de temor religioso no enunciatário. Em seguida, este enunciador prima
pela veracidade e faculta diretamente a condução do discurso ao infortuno mercador para que
este se retrate e tome medidas seguras para o problema. á na versão poética brasileira (13ª
estrofe), o enunciador prefere intensificar esse efeito discursivo, abalizando o leitor no eixo
dos opostos, fazendo realçar os extremos:

Atrás do bem vem o mal


Atrás da honra a torpeza
Quando ele saiu de casa
Levando grande riqueza
Voltou trazendo somente
Uma extrema pobreza

Essa polarização aqui identificada é fruto da pregação religiosa, onde se opõem céu e
inferno, vida e morte, salvação e perdição. É para banir o mal entre as pessoas que foi criado o
Tribunal da Santa Inquisição. Na colonização brasileira, até a língua tupi, nativa dos Índios,
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não podia ser falada porque os catequistas consideravam como uma manifestação do diabo.
Conforme Silva11.
Em seguida, tanto na versão portuguesa, quanto na brasileira, a narrativa avança de
forma similar. O mercador vale-se das suas habilidades profissionais e, ao invés de invocar
sua fé em Deus, opta pelo resultado do investimento humano que fizera e tenta favorecer-se
do saber da Donzela como solução para o seu maior problema. Para tanto, adicionou uma
justificativa clamorosa, de modo a sensibilizar a Donzela e arrancar um magnífico conselho,
dentre tantos que constituíam aquela fonte máxima de sabedoria. Ao que a Donzela,
imediatamente, lhe oferece dois conselhos: ter fé em Deus e seguir fielmente o que ela vai
mandar. Vale dizer que esta tem lugar privilegiado nesse discurso, uma vez que alimenta o
tema da religiosidade, figurativizado em: cristã, donzela, alma pura, Virgem Santa, devota etc.
E pelo próprio comportamento de fé e justiça, nota-se protegida pelas forças divinas. Sua
direção aponta sempre para o que diz ser devota de Deus, através da única religião santa e
verdadeira, que seria o catolicismo ibérico. Interessante ver que essa narrativa traduz-se numa
linguagem aparentemente coloquial, popular, que permite ser entendida com mais facilidade.
Porém, essa mesma voz popular, linguisticamente permite uma estrutura sintaticamente
erudita, pondo em uso construções pronominais típicas do discurso bíblico (próclise,
mesóclise, ênclise), produzindo efeitos de respeito e temor.
Em outro momento, encontramos um terceiro espaço: a casa do mercador, onde a
Donzela vive. E é nesse espaço que esta transmite as instruções para o mercador, tornando-se
assim enunciador-ator: (...); e assim, levantai-vos, e ide ver se achais algum amigo que trate
em joias, ornatos e enfeites com que as mulheres se costumam compor, (...). Na verdade,
esses ornamentos são para ela própria se compor e poder chegar à presença de El-rei, que é
muçulmano. No entanto, a Donzela não se inclui no discurso ao omitir o pronome pessoal do
caso reto nós. Assim, a Donzela prefere ocupar, por si mesma, um lugar fora da sociedade das
mulheres que integravam a sua sociedade na época. Nesse panorama, Braga12 fala da moda
feminina, inclusive em época coincidente com a da Donzela, descrevendo lugares e classes,
por vias de folhetos publicados, constando um impresso em 1751, que promove uma lista de
utensílios, a saber:

11
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Histórias de Portugal – Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz,
Editora Estampa, 1995, p. 69.
12
BRAGA, Joaquim Teófilo Fernandes. OPOVO PORTUGUÊS NOS SEUS COSTUMES, LENDAS E
TRADIÇÕES, Volume I, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985, p. 288.
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(...), meias bordadas, espartilhos, fitas de cintura com ricas bordaduras, saias
de veludo, contas de ouro, roupinhas bordadas de prata e ouro, charpas
bordadas de ouro e prata, guarda-pés matisados de ouro e prata, leques de
marfim, pelatinas de arminho, pulseiras, manguitos riquíssimos, sapatos
bordados, caixinhas de sinais, frasqueiras de água de flor, alcanfor, circílios,
bordas de polvilhos, frascos de óleo de jasmim, papelinhos de pós da França,
frascos de água de Córdova e de Hungria, caixinhas de macilha, sabonetes
de cheiro, pomadas, etc.

Nesse caso, a Donzela, enquanto escrava não teria obrigação de conhecer tantas peças
que a tornassem digna de entrar no passo de El-rei. Mesmo assim, foi ela prática e direta ao
termo, resumindo tudo o que seria conveniente, reservando o seu lugar de sábia e esquivando-
se de ser uma mulher comum como as daquela sociedade. Por outro lado, o ato de ficar fora
daquela classe social (feminina|) deixa margem para alguém pensar que ela fosse Nossa
Senhora.
Na versão do Brasil, o enunciador-narrador utiliza um método mais prático, referindo-
se especificamente à Donzela:

O que ele oferecer-lhe


De muito bom grado aceite
E veja se ele lhe vende
Vestidos que me endireite
Compre dele todas as joias
Que a uma donzela enfeite.

Pelos dois primeiros versos dessa estrofe, subentende-se que a Donzela antevia o bom
resultado do plano, já que esta não mediu os riscos em contrair uma dívida grande para o seu
Senhor. Pois, se ocorresse um resultado contrário, isso arruinaria ainda mais a situação
econômica deste. Mas, ela foi confiante, categórica e decidida no plano, ordenando ao
mercador que trouxesse tudo o que lhe fosse oferecido. E ainda, a propósito que não se
esquecesse de transmitir aquela proposta com zelo e persuasão, de modo a sensibilizar a
compaixão do vendedor. Felizmente, o mouro de bom coração possuía os objetos de valor,
que eram meio para determinado fim. Dessa forma, as palavras da Donzela na voz do
mercador conseguiram provocar lágrimas que minaram a resistência de Maomé. Assim, este
passou a oferecer tudo quanto quisesse de tudo que ele tivesse.
A versão portuguesa também mostra que tudo se torna fácil nessa missão, ante a
sabedoria da Donzela em planejar o feito, considerando também pequenos detalhes como, a
roupa parecia ter sido feita para ela, de modo a ficar tão perfeita em formosura, conforme El-
rei gostava de apreciar essa virtude. Tanta elegância ampliou a credibilidade ao acesso ao rei,
que abriu as portas para recebê-los. Vejamos que esse ambiente menciona a riqueza, que se
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consagra num tema, permeado de figuras como: roupa elegante, El-rei, rico, mercador,
fortuna, ouro, vestidos, enfeites, joias, pedrarias, sedas, lãs, cabedal, dobras de ouro etc.
El-rei dirige-se ao mercador para saber o motivo de sua visita àquele passo, lugar aqui
denominado Espaço 4. Ao ser informado sobre os investimentos que culminaram com
supervalores da Donzela, olhou-a e ficou impressionado, por bastante tempo. Em seguida,
pediu-lhe que mostrasse a face e quando viu seus olhos ficou pasmo diante dela. Sua beleza e
formosura pareciam-lhe nunca ter visto em toda sua vida, em ninguém.
Já a versão brasileira ratifica essa ação e ainda destaca a habilidade do mercador em
negociar com El-rei, quanto ao preço da Donzela:

Disse o mercador: El Rei


Não é cara esta donzela,
O dobro desta quantia
Gastei para ensinar a ela,
Excede a todos os sábios
A sabedoria dela.

Essa precisão astuta de argumentos faz lembrar algumas peculiaridades da região


nordestina do Brasil, onde viveu o autor desses versos13. Isso tem reflexo na frequente
presença de ciganos trocadores, nas feiras livres, atuando no comércio de animais domésticos
(cavalos, éguas, burros), armas de fogo etc. Esses ciganos eram muito conhecidos pela
argumentação persuasiva, persistente e labiosa para convencer o ganjão, alcunha com que
tratava cada pessoa em comum. A origem desses ciganos remonta a cristãos-novos e outros
muçulmanos que por várias circunstâncias procuraram abrigo na caatinga sertaneja, entre
Pernambuco e Paraíba, ocultando-se de serem vistos em grandes centros. Foram habitar ali,
temendo as consequências pela expulsão dos holandeses, dos capitães do mato e da Santa
Inquisição14.
Vale dizer que, para apreendermos melhor os valores investidos em cada versão,
organizamos um gráfico estatístico que se constata que, das 57 perguntas feitas na versão
portuguesa, pelo terceiro sábio, 44 envolvem assuntos direta ou indiretamente ligados à
religião católica, equivalendo a 80%; restando 20% para os demais assuntos como história,
mitologia, astrologia, filosofia, sabedoria popular etc.

13
Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918), natural da cidade de Pomba, - PB. - Brasil, escreveu mais de mil
folhetos, com mais de dez mil publicações.
14
Ver: PE. ANTÓNIO VIEIRA - A MISSÃO DE IBIAPABA. Org. António de Araújo, Almedina, Coimbra,
2006.
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Já na versão brasileira, o número de perguntas feitas pelo terceiro sábio reduz-se para
27 perguntas, sendo 14 sobre sabedoria popular, 06 sobre religião, 05 sobre filosofia e 02
sobre história, embora as perguntas também envolvam as outras disciplinas. Dessa forma, na
versão brasileira do nordeste, o tema da sabedoria popular superou a religião, havendo uma
inversão com relação à versão portuguesa.
Quanto ao Mercador, tanto na versão portuguesa, como na brasileira, o mesmo solicita
da Donzela apenas um parecer, ao que obedece às instruções dadas por ela na estratégia para
encontrar remédio para a tamanha pobreza em que se encontra.
Quanto a El-rei, na versão portuguesa, há indícios de uma conversão deste ao
catolicismo, considerando que das 06 perguntas feitas à Donzela, com exceção da primeira,
todas são tocantes ao Catecismo da Doutrina Cristã.
No final das contas, o Rei saiu vencido ao aceitar como superados os valores
substanciais do Islamismo, diante da supremacia católica. Isso retoma os preceitos da idade
média, a exemplo da história de São Cipriano e outros, na esfera religiosa. Nesse caso,
Almançor foi vencido e convencido por uma mulher, o que seria uma desmoralização,
considerando os preceitos maometanos, bem como, a formação e a cultura do mesmo.
Foi assim que El-rei pagou o preço pela Donzela, mas não a teve para o seu mau
aproveitamento como queria de início. Esses resultados inesperados deixaram-no sem moral,
o que foi ideologicamente justo, tanto por ter devolvido parte dos tesouros saqueados à
península, como por se apresentar nessa história com cara de quem comprou, mas não levou,
como se diz nas expressões populares do nordeste brasileiro.
Além disso, no contexto da catequização em que se dão as respostas da Donzela,
ainda se presume a dilatação desse exercício, do que não ficou incluído no texto, mas que foi
anunciado na voz do próprio enunciador: Seja por tudo louvado Nosso Senhor Jesus Cristo,
para todo o sempre. Amém. Essa fala do enunciador-narrador caracteriza aqui uma expressão
conclusiva que se utiliza tipicamente no final das orações e rezas católicas, ritmada e
impostada num tom melódico que se encerra com a afirmativa convicta do coro: “Amém”.
Não é por acaso essa maneira de finalização dessa história, esta vislumbra, tanto em Portugal,
como no Brasil, relacionada entre outras narrativas de estrutura similar e que também
compõem essa coleção de novelas tradicionais citadas anteriormente. Ao mesmo tempo, sua
reprodução consta em tiragens diversas impressas e distribuídas principalmente no Brasil para
efeitos de catequização, dentre farto material de cunho religioso, incluindo orações e rezas
que integram o culto à Virgem Maria. Isso teve início desde 1549, quando os colonizadores
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jesuítas desembarcaram na Bahia, em longa missão religiosa, liderada por Tomé de Sousa,
José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e outros. Observa um investigador15, num comentário
referente à produção o Padre José de Anchieta, que, (...) a Arte de Gramática da Língua Mais
Usada na Costa do Brasil publicada no século XVI (1595), e noutro, as criações literárias de
objetivo pedagógico: poesias, canções, hinos, monólogos, diálogos e sobretudo autos,
escritos em português, espanhol e tupi-guarani (CASTELLO, 1960, p. 43). Já no que se
refere ao pleito espiritual, esse autor16 menciona que, com relação à obra catequizadora de
Anchieta, contam-se aqui os sermões e sobretudo, as poesias de sentimento ou inspiração
religiosa escritas em latim, destacando-se, no caso, o poema De Beata Virgine Dei Matre
Maria. Nos demais aspectos da obra desse missionário, configurava-se o uso de obras
literárias com objetivo pedagógico em relação à catequese, traduzidas, sobretudo pelo teatro
em verso e a poesia épica laudatória.
Já na versão brasileira ocorre uma diminuição nas perguntas e El-rei não precisa fazer
perguntas à Donzela para se tornar vencido. O debate tange para o banal e ganha feições
humorísticas de comédia, a partir de um vocabulário regional demasiadamente ousado. O
sábio não quis tirar a ceroula17, ficou com uma cara envergonhada e foi preciso a intervenção
de El-rei para sanar o problema:

Não quis tirar a ceroula


O rei mandou que ele desse
Ou pagaria à Donzela
O tanto que ela quisesse
Tanto que a indenizasse
Embora que não pudesse.

E o caso se resolveu assim, porque com palavra de rei não se brinca. Dada a sentença
do valor do pagamento pela compra da moral do sábio, colhia enfim o que havia plantado com
suma sabedoria:

Cinco mil dobras de ouro


A donzela recebeu
O sábio também ali
Nem mais satisfação deu,
Aquilo foi um exemplo
Que a donzela lhe venceu.

15
CASTELLO, José Aderaldo In: Manifestações Literárias da Era Colonial, A Literatura Brasileira. Editora
Cultrix, I Volume São Paulo, 1967, p. 43.
16
Idem.
17
Última peça das vestimentas que um homem tira para se despir por completo. Era assim que se chamava a
cueca, antigamente, no Brasil.
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Já El-rei Almançor manifesta sua constante arrogância e vulgar subestimação pela


inteligência e capacidade das mulheres. Mas vendo aquela com tanta sabedoria e formosura,
já julgando ser o seu dono, descuidou-se e falou mais do que deveria:

O rei ali disse a ela


Donzela podes pedir
Dou-te palavra de honra
Fazer-te o que exigir
De tudo que pertencer-me
Poderás tu te servir.

A Donzela que havia provocado tudo isso, para sair igualzinho dessa maneira, no
flagrante do instante decidiu:

Ela beijando-lhe as mãos


Disse-lhe peço que dê-me
A quantia de dinheiro
Que meu senhor quer vender-me,
Deixando eu voltar com ele
Para assim satisfazer-me.

Foi quando El-rei procurou terra nos pés, mas não encontrou como se diz numa
situação dessas lá no interior nordestino. Tal qual a situação do sábio Abraão, já era tarde para
El-rei se recompor ou corrigir o que havia feito errado:

O rei julgou que a donzela


Pedisse para ficar,
Tanto que se arrependeu
De tudo lhe franquear
Mais a palavra de rei
Não pode se revogar.

Após conversar muito com a Donzela e ficar ciente de tudo o que ela falou, não restou
ao rei outra escolha senão de mandar buscar o dinheiro e pagar uma fortuna à mesma. E ainda
como garantia ordenou que uma guarda de honra acompanhasse a Donzela e o Mercador até a
residência destes. Foi assim que a Donzela Teodora venceu ao rei mais temeroso e poderoso,
bem como aos seus sábios, pondo por terra o reinado mouro e erguendo sobre seus escombros
a supremacia ibérica cristã. Ninguém imaginava que viesse essa vitória através de uma mulher
tão sábia, pura, justa e casta! Esta é a Donzela Teodora, intercessora em favor da pobreza,
espelho de Nossa Senhora, Advogada dos pobres!
Feito este exame longa História da Donzela Teodora, com uma versão portuguesa e
outra brasileira, chegamos às conclusões que a narrativa da Donzela Teodora, aqui em análise,
envolvendo um conjunto de conhecimentos tradicionais recolhidos do da sabedoria popular,
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exibindo belezas de espetáculos que se exibem de forma inteligente, em diversas camadas,


mas arquitetada no sentido de persuadir, educar, funcionar com outras facetas propositais.
Finalmente, é válido aqui refletirmos sobre essa obra literária, dentre as demais - como
Princesa de Pedra-Fina, Roberto do Diabo, a História de Carlos Magno e os Doze Pares de
França, Princesa Magalona, História da imperatriz Porcina, a História de João de Calais e
outras - nunca inferiores pela qualidade e durabilidade. Justo dizer que não é qualquer
produção que, até onde conhecemos, firmou batismo no Livro das Mil e Uma Noites, Arábia,
século IV da nossa era cristã; migrou para a Península Ibérica, com a invasão dos mouros, a
partir de 711; depois de séculos de atuação, embarcou para o Brasil, com os jesuítas em 1549,
ajudou a colonizar o Brasil, enraizou-se no nordeste brasileiro, devido à sua identificação com
as diversidades culturais. Não quis voltar para a Europa com a família real. Preferiu as
tipografias que Leandro Gomes de Barros serviu-se para promover o espetáculo dos Folhetos,
através do qual a Donzela fez-se musa dos cordelistas e dos repentistas cantadores de viola
nas cantorias nordestinas e continua a florescer e a se expandir.

Referências

BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. O romanceiro tradicional no Nordeste


do Brasil: uma abordagem semiótica. Tese de doutorado apresentada ao Curso de Pós-
graduação em Lingüística. USP, São Paulo: 1999.
BRAGA, Teófilo. O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições. Vol. I.
Publicações Dom Quixote: gráfica Barbosa & Santos, Ltda: Lisboa, 1985.
______. O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições. Vol. II. Publicações
Dom Quixote: gráfica Barbosa & Santos, Ltda: Lisboa, 1986.
CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco Livros do Povo. 2 ed. Editora Universitária- UFPB:
João Pessoa/PB, 1979.
CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações Literárias da Era Colonial (1500-1808/1836).
Vol. I, 3 ed., Editora Cultrix: São Paulo, 1960.
______. A Literatura Brasileira. Vol. I - Manifestações Literárias da Era Colonial (1500-
1808/1836). 3 ed. Editora Cultrix: São Paulo, 1967.
CATECISMO DA DOUTRINA CRISTÃ. Livraria Fundação Portucalense, 2012.
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA. Catecismo da Igreja Católica
(COMPÊNDIO). Gráfica de Coimbra 2: Coimbra/PT, 2005.
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GREIMAS, Algirdas Julien. Du sens. Essais sémiotique. Seuil, Paris : 1970.


MEDEIROS, Irani. No Reino da Poesia Sertaneja. Idéia: João Pessoa/PB, 2002.
PAIS, Cidmar Teodoro. Sociossemiótica, semiótica da cultura e processo histórico:
liberdade, civilização e desenvolvimento. In: Anais do V encontro nacional da ANAPOLL.
Porto Alegre: 1991.
______. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de Lingüística. Plêiade,
v.8, n.1, ano 8, São Paulo: 1995.
SARAIVA, Arnaldo. Folhetos de Cordel e outros da minha coleção. Catálogo com
colaboração de Isabel Ventura, Ângela Carvalho, Luciana Cabral Pereira e Mariana Gomes.
Execução Gráfica: T. Nunes, Ltda: Porto/Maia, 2006.
PAIS, Cidmar Teodoro. Sociossemiótica, semiótica da cultura e processo histórico:
liberdade, civilização e desenvolvimento. In: Anais do V encontro nacional da ANAPOLL.
Porto Alegre: 1991.
______. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de Lingüística. Plêiade,
v.8, n.1, ano 8, São Paulo: 1995.
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ASPECTOS RESIDUAIS DA REPRESENTAÇÃO DO DIABO MEDIEVAL EM


GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Romildo Biar Monteiro


Elizabeth Dias Martins
Universidade Federal do Ceará - UFC

Início da Jornada

Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é inequivocamente um marco na


literatura brasileira. Obra que teve, desde sua publicação, incontáveis interpretações, sejam
elas, de cunho histórico-sociológico, linguístico, regionalista ou mesmo esotérico-metafísico.
Antes de adentrarmos pelas infindáveis veredas desse monumental romance, faz-se
necessária uma rápida explanação acerca da escrita literária de Guimarães Rosa e do enredo
que compõe o monólogo autobiográfico de Riobaldo.
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908.
Faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 1967. Formou-se em Medicina, em 1930, e
pouco tempo depois, ingressou no Itamarati. Atuou como diplomata em Hamburgo, e em
1948, retorna definitivamente para o Brasil.
Guimarães Rosa foi, sobretudo, um prosador. Escreveu novelas e contos: Sagarana;
Primeiras estórias; Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; Noites do sertão e
ainda, o romance Grande Sertão: Veredas, este último, objeto de nosso estudo.
Com a publicação de Sagarana, em 1946, o escritor agitou os círculos literários
brasileiros pelo estilo até então desconhecido em nossa literatura, e pela instigante sondagem
do universo do sertão mineiro, revelando íntimas questões humanas.
Guimarães Rosa é detentor de um estilo único, resultante de um intenso trabalho de
pesquisa e elaboração linguística. Sua linguagem é repleta de regionalismo, termos científicos
e arcaísmos. Podemos acrescentar ainda, o vasto conhecimento que ele possuía de idiomas,
traduzindo por vezes, diversas expressões que eram incorporadas ao seu fazer literário. Essa
complexa hibridação de recursos, resultou em narradores que contam em alta voz suas
histórias, emprestando ao texto certo tom de oralidade, “de onde provêm a força de seu brilho
e o fulgor de resíduo em épocas diversas” (MARTINS; PONTES, 2011, p. 54).
As narrativas de Guimarães Rosa situam-se basicamente no sertão mineiro. Entretanto,
isso não estabelece uma relação de regionalismo pitoresco, isto é, o escritor ao delinear os
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dramas vividos por seus personagens no ambiente sertanejo das Minas Gerais, revela na
verdade, dramas de caráter universal.
Em Grande Sertão: Veredas, a seiva elaborada que percorre toda a narrativa do ex-
jagunço Riobaldo está intimamente ligada à questão do pacto com o Diabo, se ele ocorreu
verdadeiramente, ou não. É de fato, o intrigante e evidente questionamento metafísico que
deságua no dilema da existência entre as forças do Bem e do Mal, de Deus e do Diabo.
Esse imenso romance relata a vida de um ex-jagunço e o estranho sentimento amoroso
por um companheiro de jornada no sertão brasileiro. A narrativa tecida por Riobaldo dá conta
de suas aventuras como jagunço, seu sentimento por Diadorim e a dúvida da conclusão do
pacto com o Diabo, na tentativa de concretizar a vingança contra seu rival – Hermógenes.
Assim, em meio aos sentimentos de medo e culpa, Riobaldo vai expondo suas
convicções e incerteza acerca da existência do Diabo. Agora, em decorrência do
direcionamento da pesquisa, achamos coerente deixar ao leitor o prazer de desfrutar da escrita
imaginativa de Guimarães Rosas, por entendermos que um resumo seja desaconselhável.
Muitos têm sido os enfoques pelos quais vem sendo abordada a produção literária de
Guimarães Rosa e há até mesmo os que tomam como objeto de análise o romance Grande
Sertão: Veredas e seu elemento pactário. Entretanto, o que aqui se busca é extrair os aspectos
residuais, ou seja, perceber os resíduos de outras épocas como elementos pujantes que
imprimem aspecto de vivacidade ao romance. Nesta análise, tais resíduos são os concernentes
à figura do Diabo medieval, do qual destacamos o pacto diabólico supostamente realizado por
Riobaldo.

Nas veredas da residualidade

Na busca de compreender como a mentalidade medieval acerca do imaginário do


Diabo manifesta-se ativamente no romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa, faremos uso da Teoria da Residualidade Literária e Cultural, proposta teórico-
investigativa sistematizada por Roberto Pontes1, que pode ser sintetizada no axioma: “Na
cultura e na literatura nada é original; tudo é remanescente; logo, tudo é residual”. (PONTES,
s/d, p.01)

1
Poeta, crítico, ensaísta. Doutor em Literatura pela PUC - Rio. Professor do Departamento de Literatura e do
Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
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A Teoria da Residualidade busca encontrar a função do imaginário popular no fazer


literário, ao revelar substratos mentais, que foram ao longo dos tempos incorporados e que
são empregados pelo autor, na criação do texto literário. Ao escrever, o autor lapida esses
sedimentos, num procedimento de cristalização, como tentaremos mostrar em Grande Sertão:
Veredas. Desse modo, a teoria em questão diz respeito ao resíduo, isto é, a “aquilo que
remanesce de uma época para outra e tem a força de criar de novo toda uma cultura, toda uma
obra” (PONTES, 2006, p. 08).
No que tange ao termo residualidade, podemos afirmar que este foi utilizado a partir
de uma nova perspectiva, por Roberto Pontes, na obra intitulada Literatura insubmissa
afrobrasilusa (1999), como afirma o teórico. A pesquisadora Elizabeth Dias Martins, coautora
deste artigo também discorre sobre o termo para ressaltar que:

A residualidade se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um


tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes mentais
arraigadas no passado próximo ou distante, e também diz respeito aos
resíduos indicadores de futuro. Este último é o caso de artistas que,
independente da estética à qual pertençam, incluem em suas obras uma
linguagem precursora, sendo por isso comumente considerados artistas
“avant la lettre”. Mas a residualidade não se restringe ao fator tempo;
abrange igualmente a categoria espaço, que nos possibilita identificar
também a hibridação cultural no que toca a crenças e costumes (MARTINS,
2003, p. 518).

Faz-se necessário compreender como o resíduo se mantém vivo. Nesse sentido,


podemos pensar que essa conservação dá-se através de dois processos: hibridação cultural e
cristalização. O primeiro ocorre quando há a união de duas ou mais culturas, como no Brasil,
em que podemos facilmente notar resíduos culturais derivados das culturas portuguesa,
indígena e africana, como esclarece a transcrição abaixo:

Ora, todos sabem que a transmissão dos padrões culturais se dá através do


contato entre povos no processo civilizatório. Assim, pois, com os primeiros
portugueses aqui chegados com a missão de firmar domínio do império luso
nos trópicos americanos, não vieram em seus malotes volumes d’Os
Lusíadas nem das Rimas de Luís de Camões, publicados em edição princeps
apenas, respectivamente, em 1572 e 1595. Na bagagem dos nautas,
degredados, colonos, soldados, e nobres aportados em nosso litoral,
entretanto, se não vieram exemplares impressos de romances populares da
Península Ibérica nem os provenientes da Inglaterra, Alemanha e França,
pelo menos aqueles homens trouxeram gravados na memória os que
divulgavam pela reprodução oral das narrativas em verso. Assim, desde
cedo, e à mingua de uma Idade Média que nos faltou, recebemos um
repositório de composições mais do que representativo da Literatura oral de
extração geográfica e histórica, cujas raízes estão postas na Europa ibérica
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do final da Idade Média, justamente quando ganhavam definição as línguas


românicas (PONTES, 1999, p. 01).

Ou seja, a hibridação cultural é a combinação de diferentes formas que, ao final,


emerge como um novo elemento. No caso do repertório cultural brasileiro, este é formado por
um pilar de caráter afrobrasiluso2.
A cristalização, por sua vez, é a ação lapidadora pela qual determinado sedimento
cultural passa, adaptando-se ao novo clima, a uma nova realidade, isto é, cristalizando-se.
Entretanto, o que permanece não é algo estático, mas algo que está em constante
transformação. O remanescente desse procedimento é o resíduo; não algo que foi melhorado,
mas que, ao passar por um refinamento, conserva-se vivo no presente, sob um novo aspecto,
mas mantendo sua essência.
Entretanto, será possível afirmar, no que toca ao imaginário diabólico, que no Brasil
existem resíduos da mentalidade medieval, mesmo considerando que não tivemos Idade
Média? Podemos assegurar que sim. E isso se deve ao mecanismo de colonização, a partir do
qual, no “Prolongamento modificado do imaginário europeu, o Brasil passava também a ser
prolongamento da Metrópole, conforme avançava o processo colonizatório. Tudo que lá
existe, existe aqui, mas de forma específica, colonial” (SOUZA, 2005, p. 31). Podemos ainda
considerar o pensamento de Massaud Moisés:

Com a colonização, veio-nos a Idade Média, em vez da Renascença foram os


padrões medievais que nos moldaram como povo e cultura. A Idade Média
foi, nas palavras convincentes de um ilustre historiador, ao concluir
substancioso estudo acerca das “Raízes Medievais do Brasil”, “nossa
infância e adolescência, fases de fragilidade, inconstância e hesitações, mas
também de crescimento, aprendizagem, experiência, consolidação”. E
acrescenta: “Mesmo não tendo tido Idade Média no sentido cronológico
concebido pela historiografia, o Brasil é indiretamente produto dela”; O
Brasil não conheceu a Idade Média, mas descende dela, tem-na dentro de si.
É seu neto, ainda que não o saiba” (Hilário Júnior, p. 19). E não se tratava da
Idade Média na sua ampla diversidade, senão uma certa Idade Média,
cavaleiresca, fantástica, ou antes, que encontrava na Companhia de Jesus,
cuja ação sobre o pensamento se estendeu até o século XVIII, a sua
fisionomia mais acabada (MOISÉS, 2003, p. 60).

Consequentemente, por intermédio dos colonizadores, o Brasil tornou-se depositário


de fortes influências medievais. E muito embora não tenhamos tido uma cultura mediévica ao
tempo devido, possuímos uma cultura pré-colombiana milenar e um profundo sincretismo
cultural, pois nosso país é recebedor de diversificadas fontes.

2
Termo cunhado por Roberto Pontes que teve origem “na compreensão de que a identidade nacional de cada
povo se dá após uma transfusão de resíduos culturais” (MARTINS, 2003, p. 519).
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Com base nos conceitos aqui descritos, buscaremos assinalar como Grande Sertão:
Veredas, obra ímpar de nosso acervo literário, mantêm substratos mentais acerca do Diabo
próprio do medievo, especificamente na dúvida do pacto faústico, de acordo com o que é
relatado pelo narrador.

O diabo residual em Grande Sertão: Veredas

Escritor de fama internacional, João Guimarães Rosa dispensa e suscita comentários,


no que é atinente ao universo literário delineado por esse mineiro de Cordisburgo. Sua obra,
repleta de matizes, nos conduz a uma imersão no oceano lustral da oralidade, de onde provém
o material popular, tangenciado por um sertão mágico, do qual brotam resíduos mentais da
Idade Média, sobretudo, os relativos à literatura medieval e ao medo acerca da existência do
Diabo.
O Diabo é uma das figuras basilares do imaginário cristão ocidental, recebendo
diversificadas definições ao longo dos séculos, sendo considerado, por vezes, o responsável
pelas atrocidades, dramas, pecados e infortúnios dos homens. Essa personagem se instalou na
mentalidade popular sob os mais variados moldes. Em alguns, assumia os traços de um anjo
de luz, belo e sedutor, em outros, se revestia de semblante grotesco, aproximando-se ao
monstruoso. E, no imaginário cristão ocidental, continuou ganhando mais contornos e até
mesmo se hibridizando com entidades pagãs:

Na hora de pintar o Diabo, os artistas tinham enorme dificuldade. Não


existia tradição literária digna do nome e, o mais exasperante, não havia
tradição pictórica alguma. Nas catacumbas e nos sarcófagos não há Diabo.
Essa inexistência de tradição pictórica, combinada a fontes literárias que
confundiam o Diabo, Satã, Lúcifer e demônios, são razões importantes para
a ausência de uma imagem unificada do Diabo e da iconografia irregular.
Mas alguma coisa sempre é melhor do que nada. E havia algo que o artista
cristão podia tirar das fontes clássicas que os comentários teológicos
corroboravam – Pã. (LINK, 1998, p. 53).

Nas terras brasílicas, o Diabo aportou junto com as naus portuguesas por volta de
1500, quando ocorreu o início da colonização, e estabeleceu sob estas terras seu domínio. O
choque cultural provocado pelo contato entre os colonizadores e os ameríndios, torna-se ponto
de partida para uma interpretação demonológica acerca dos costumes e crenças dos habitantes
das terras de além-mar, transformando o Diabo na “grande vedete da demonologia americana”
(SOUZA, 2001. p. 29).
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A leitura do romance Grande Sertão: Veredas nos revela a figura Diabo como
representação do mal. Naquele, a dualidade entre o Bem e o Mal é latente, principalmente, a
partir do reaproveitamento do mito faústico. Nesse sentido, nosso objetivo é a priori analisar
os aspectos residuais da representação do Diabo medieval, que se fazem presentes no
romance por meio de elementos que permitem entrever o imaginário diabólico, oriundo da
distante Idade Média europeia.
Este longo monólogo conta os acontecimentos na vida de um ex-jagunço, Riobaldo,
em meio ao sertão mineiro. A estória contada firma-se na exposição de suas aventuras como
jagunço, sua afeição por Diadorim e a dúvida quanto à concretização do pacto com o diabo,
no intuito de realizar a vingança contra Hermógenes, seu inimigo. É pelo fio da memória que
Riobaldo narra sua vida, e o processo de rememoração dá-se com uma palavra estranha e
compacta: “– Nonada”. Essa palavra parece querer significar uma dupla negação, o não que é
nada. Desse modo, mergulhamos desde o início em uma profusão filosófica da “existência em
meio a forças desconhecidas, internas e externas” (HELENA, 2012, p. 227).
Na narrativa de Riobaldo, instaura-se uma voz ancestral que se sobressai e é
ressignificada pela ficção. Essa voz que se mostra delineada por um espaço mítico, denso, e
arraigado em ensejos antigos e repetidamente ecoados por povos e eras, acende na
modernidade a chama do estranhamento e da inquietação:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão
é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas,
demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui
não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os
pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar
com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do
arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que
na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom
render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura,
até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem
tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em toda a parte (ROSA, 2001, pp. 23-
24).

No excerto, fica evidenciado que existe uma espécie de “código contratual”, no qual se
faz necessário que o leitor/ouvinte tome para si a crença nas tradições populares tal como
ocorria na sociedade medieval, atualmente substituída pela crença na racionalidade e no
combate às superstições.
A despeito de, no início do diálogo, Riobaldo asseverar: ”– Do demo? Não gloso.
Senhor pergunte aos moradores (ROSA, 2001, p. 24)”, percebemos que de fato, não é o que
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ocorre no transcorrer dos três dias de histórias narrados pela personagem. O romance possui
um caráter “polimórfico”, “em que a produção de sentido se faz valer enquanto metamorfose
inestancável” (HELENA, 2012, p. 223). Nele, a figura do Diabo está em toda parte, assim
como no pensamento medieval, “o diabo regula seu estado preto... nas plantas, nas águas, na
terra, no vento... O diabo na rua, no meio do redemoinho...” (ROSA, 2001, p. 26-27).
Encontramos ainda, a demonização do imaginário sertanejo, por meio de animais que evocam
uma aura de trevas, tais como a cobra cascavel, os corvos e aves de canto agourento, como a
acauã e a coruja.
A partir desses elementos, torna-se possível visualizarmos que os aspectos físico-
naturais fazem surgir no sertão uma espécie de locus horrendus diabólico, representativo da
alma sertaneja, como se encontra na fala de Riobaldo: “sertão: é dentro da gente” (ROSA,
2001, p. 325).
Em Grande Sertão: Veredas, o Diabo é apresentado desde a epígrafe do livro: “o
diabo na rua, no meio do redemoinho...”. João Guimarães Rosa apropria-se da cultura popular
para revelar a presença do Diabo no imaginário sertanejo. Em consonância com as crendices
popular, o “Dito-Cujo” encontra-se no meio do redemoinho, e também, nas deformidades da
natureza:

Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os


olhos de nem ser – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não
quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse
figura rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o
demo. Povo prascóvio. Mataram (ROSA, 2001, p. 23).

Nesse fragmento o caráter defeituoso do animal que possui feições humanas e


animalescas é infligido aos movimentos sobrenaturais. Assim, podemos notar semelhanças
entre o imaginário sertanejo e o imaginário medieval. Uma vez que esses indivíduos
encontravam-se necessitados de princípios científicos, os acontecimentos inexplicáveis a sua
lógica são atribuídos ao Diabo. É interessante perceber que essa culpabilidade é residual, pois
no período medieval, tudo era possível, isto é, a mentalidade do homem mediévico aceitava
que acontecimentos sobrenaturais pudessem ocorrer, porque a crença fazia parte do universo
dos medievos.
O Diabo ganha corpo na obra por meio das definições dadas por Riobaldo,
sobremaneira, aquelas que apontam para uma oposição à Deus, uma vez que, “na esfera
divina, não existe Deus sem o Diabo” (SOUZA, 2005, p. 24). Desse modo, encontramos
pensamentos como: “Deus é paciência. O contrário, é o diabo” (ROSA, 2001, p. 33); Deus é
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definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (ROSA, 2001, p. 58) e ainda, “Deus nunca
desmente. O diabo é sem parar” (ROSA, 2001, p. 325). É interessante percebemos a
existência de um embate dualístico entre Deus e o Demônio, tão característico do período
medieval, ― “onde a sociedade se divide sempre em duas facções em constante peleja”
(NOGUEIRA, 2004, p. 62).
Paulatinamente, se o Diabo pode ser definido, esse tem de certa forma, existência.
Embora, não haja um diabo em forma corpórea, ele existe no âmbito do universo mental, na
imaginação, no campo da conceituação, enfim, ele existe por meio da imanência oral. A esses
exemplos, podemos acrescentar os relatos de possessões, a ideia de que Hermógenes era
pactário e, ainda, as maldades de alguns jagunços.
Um dos principais penhores residuais que unem a obra em análise à efígie do Diabo
medieval é sem dúvida, o seu aspecto de onipresença. Ainda que no romance não seja
efetivamente corporificado, aquele encerra em Riobaldo um constante desassossego. E, além
disso, podemos perceber que o Tinhoso, isto é, o Diabo é evocado por meio de seus mais
variados nomes, progênitos da cultura popular, tais como: “Pai do Mal, o Tendeiro, o
Manfarro” (ROSA, 2001, p. 434), o que é caracterizado pelo temor em proferir o nome de
Você-Sabe-Quem, ocorrência muito trivial na Idade Média, e que permanece em nossa
cultura.
O Diabo surge nas diferentes culturas, sob variadas roupagens, basta ler o que escreve
Jérôme Baschet sobre tal personagem e sobre seu forte vínculo com o medievo. É válido
ressaltarmos que a afirmação se faz tendo como parâmetro a mentalidade cristã medieval
arraigada no ocidente peninsular:

Sob seus diversos nomes e com suas aparências multiformes, o diabo, satã e
seus demônios é seguramente uma das figuras mais importantes do universo
do ocidente medieval. Encarnação do mal, oponente das forças celestes,
tentador dos justos, inspirador dos ímpios e dos pecadores, verdugo dos
condenados, ele é onipresente e seu terrível poder se faz sentir em todos os
aspectos da vida e das representações mentais medievais, é o príncipe desse
mundo segundo João capítulo 12, versículo 31, aqui ele faz a festa (LE
GOFF, 2002, p.319).

Em Grande Sertão: Veredas, o assomo físico, ou seja, o sedimento externo percebível,


que alude à presença do Diabo, é o redemoinho, que segundo Leonardo Arroyo na cultura
popular constitui “o elemento natural do Diabo, quando não do Saci, que vive, ou viaja no
meio dele” (ARROYO, 1984. p. 184). Quando Riobaldo dirige-se até as Veredas-Mortas no
intuito de pactuar com o Diabo, aquele deseja ver esse, na “lufa de um vendaval grande, com
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Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro” (ROSA, 2001, p. 437). O
próprio espírito demoníaco já é evocado pelo nome do lugar, “Veredas-Mortas”, uma
encruzilhada.
Encontramos no romance, resíduos da tradição teológico-erudita e popular, no que
concerne à representação do Diabo. A seguir, veremos como Riobaldo imagina o encontrar na
primeira tentativa de chegar até o retiro da Coruja:

Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhada, na morte das horas,


salforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados
austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim,
beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu
vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo
assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não
acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei. (ROSA, 2001, p. 427)

No imaginário medieval a presença de odores ruins indicava a presença do Diabo, do


pecado e da doença. Assim, “os signos da ocupação diabólica são sempre a sujeira, o mau
cheiro e o desarranjo gestual” (SÁEZ, 1999, p. 19). Esse mesmo pensamento é aparentado ao
de Muchembled, quando afirma que “o mau cheiro evocava ao mesmo tempo, a imagem do
diabo, das doenças e dos remédios olfativos indispensáveis para sobreviver às mesmas, a dos
gozos carnais e da culpa resultante do fato de a isso entregar-se com demasiada intensidade”.
(MUCHEMBLED, 2001, p. 138).
O pacto diabólico é outro sinal que evoca a figura do Diabo medieval para o romance.
Entretanto, não há um pacto nos moldes clássicos, naquele em que a outra parte corporifica-se
e concretiza o pacto:

Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um


lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui
surgindo. Ali esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando
tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse
rodeando. Aí, friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha de ser melhor
debaixo dum pau-Cardoso – que na campina é verde e preto fortemente, e de
ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore
nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa – porque no chão bem debaixo dela
é que o Careca dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que
não cresce nem um fio de capim; e que por isso de caparosa-dojudeu nome
toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de qualidade dessas. Cheguei lá,
a escuridão deu. Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo
lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse
um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes. Desengasguei
outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? [...] Eu não ia temer. [...]
O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! [...] Ele
tinha que vir se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou
jajão. Mas, em que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de
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bestas na poeira rolarem. De repente, com um catrapuz de sinal, ou


momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito
o Bode- Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar – tão longe e perto de
mim, das reformas do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, o cão que
me fareja. [...] Ao que não vinha – a lufa de um vendaval grande, com Ele
em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro. O que eu agora
queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável.
Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o
demo?” – sofri um velho pensar. [...] Então, ele não queria existir? Existisse.
Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu
estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita,
horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar: – “Lúcifer! Lúcifer!...” –
aí eu bramei, desengolindo. Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum
ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão
arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho
ninhante mal-acordado dum totalzinho sono. – “Lúcifer! Satanás!...” Só
outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
(ROSA, 2001, p. 435-438).

Após chamar pelo Diabo, a resposta que Riobaldo recebeu foi o silêncio. Todavia, o
ex-jagunço sentiu algo perpassar seu corpo, uma espécie de gozo acompanhado pelo
fenômeno do redemoinho, anunciador da presença do “Cão-Miúdo”:

Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.


Ao que recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas
tranquilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de
meu pai. Vi asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser
mais? A peta eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim, a
gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do
sagrado. Absolutas estrelas! (ROSA, 2001, p. 438)

É interessante notarmos que, mesmo o Diabo não se materializando, a personagem


sente sua presença. No entanto, mesmo afirmando que sentiu a presença do Diabo, Riobaldo
durante todo o relato nega sua existência, pois se sente atormentado até o íntimo da alma pela
possibilidade de que possa ter completado um pacto com o Diabo. De tal modo, o velho
sertanejo deseja “armar o ponto dum fato, para depois pedir um conselho” ao doutor da
cidade, na tentativa de achar a voz que o alivie e dê-lhe a fidúcia da inexistência do Diabo.

Deixando as veredas e buscando travessias

A partir do exposto, percebemos que Riobaldo reflete a mentalidade da sociedade


medieval, no que diz respeito ao imaginário diabólico, o que vem ratificar a ideia de que
Grande Sertão: Veredas é um escrito residual. Ficou demonstrado que espaços, tempos e
culturas entrecruzam-se, convergem e possibilitam a permanência de determinados objetos
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culturais ao longo dos séculos. Isso porque esse fragmento cultural que permanece ativo,
independente da forma como se apresente a essência de seu modo de pensar e de agir – seu
caráter residual –, remanesce, por hibridação cultural e por cristalização, no imaginário
popular.
Com esta análise almejamos dar apenas uma mostra do rico compósito de temas para
investigação, contido no Grande Sertão: Veredas. Cabe lembrar de que estas páginas não
esgotam o assunto, como é óbvio, havendo muito mais a ser desvendado dentro dessa obra de
universo tão abrangente, pois se constitui de inúmeras veredas nos quais, a partir desta
análise, encontramos os aspectos da residualidade, da mentalidade, dos resíduos mentais, da
memória (individual e coletiva) e do imaginário cristão e pagão.
Portanto, muito mais fica para ser desvendado e analisado nesta e em tantas outras
obras relativas à questão do pacto diabólico na literatura, em geral, e na literatura brasileira,
em particular.
Por fim, “o diabo existe e não existe”? Nossa resposta encontra-se no próprio
pensamento de Riobaldo: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do
homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA, 2001, p. 26). E no fim,
o que existe é “Travessia” (ROSA, 2001, p. 624).

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SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______. Inferno atlântico: demonologia e colonização, sécs. XVI-XVIII, São Paulo,
Companhia das Letras, 2001.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 849

POESIA BRASILEIRA

O AMOR EM REMATE DE MALES: MÁRIO DE ANDRADE, TRANSGRESSOR DA


TÓPICA AMOROSA

Angela Teodoro Grillo


FFLCH/ USP- FAPESP

Em 1930, Mário de Andrade, consolidado como escritor modernista, lança seu quarto
livro de poemas, Remate de Males. A obra colige versos datados de 1924 até o ano da
publicação do livro. Há um vasto campo possível de análise em Remate de males, de poemas
políticos, ligados à ideia do local e universal desgeografizados, como no “Canto do mal das
Américas”, a poemas de tom biográfico - o “Improviso do rapaz morto”, por exemplo, remete
à precoce morte do irmão mais jovem do escritor. Compõem a maior parte do livro os
conjuntos líricos que abordam três diferentes experiências amorosas: “Tempo da Maria”
(1926); “Poemas da Negra” (1929) e “Poemas da Amiga” (1929-1930), nos quais podem se
inferir os temas, respectivamente, da paixão idealizada e irrealizada, do amor pleno e cósmico
e do desejo realizado no plano erótico/sexual, seguido de insatisfação. Adianto que em
“Poemas da Negra”, segundo Gilda de Mello e Souza encontra-se o auge do lirismo amoroso
de Mário de Andrade (2005), motivo pelo qual foi eleito os ciclos de Remate de males para
tratar do tema.
Nesta comunicação, apresentarei um estudo breve dos três conjuntos, trata-se de uma
parcela da minha tese de doutoramento, Losango preto: o negro na criação de Mário de
Andrade, que desenvolvo no Programa de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo
com financiamento da FAPESP. O objetivo é demonstrar os recursos pelos quais o poeta,
conhecedor da tópica amorosa, serve-se para infringir as leis da tradição. Na verdade, é
preciso ressaltar que no estudo mais amplo que desenvolvo sobre a poesia do modernista, foi
possível observar que Mário de Andrade é um transgressor de tópicas em geral, não apenas da
amorosa, trata-se de um artista e intelectual erudito e inovador. Mário conhece bem as
fronteiras da literatura ocidental, e assim o modernista estende-as ou apaga-as.
Em “Tempo da Maria”, conjunto composto de sete poemas - “I- Moda do Corajoso”;
“II- Amar sem ser amado, ora pinhões!”; “III- Cantiga do ai”; “IV- Lenda das mulheres de
peito chato”; “V- Eco e descorajado”; “VI- Louvação da Tarde” e “VII- Maria” - o sujeito
lírico diante do sentimento não recíproco experimenta a diluição de si mesmo no amor.
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Pensando com Emil Staiger, o máximo do lírico amoroso acontece quando o poeta e a amada
amam-se mutuamente, formam “um coração e uma alma”, o amor não correspondido “diz um
‘você’ que o eu sabe não terá eco” (STAIGER, 1997 p.49). Essa imagem é usada
coincidentemente por Mário de Andrade no poema “Eco e descorajado”, com a figura de
personificação fictícia do “eco” como resposta negativa da amada:

Pois então, eco bondoso,


Você que sabe a razão
Porque deixando o tumulto
De Pauliceia, aqui vim:
Eco, responda bem certo,
Maria gosta de mim?...
E o eco me responde: – Não!
(ANDRADE, 2013, v.1, p. 329)

O sujeito lírico sofre a paixão, o amor não correspondido está evidente nessa imagem.
Porém, o poeta está consciente de que se encontra em um estado amoroso que terá fim. Maria,
ainda que inalcançável como as musas da tradição, não recebe promessa de amor eterno, ao
contrário, a temporalidade do sentimento é prevista desde o título, no substantivo que no
singular referenda a contingência: “Tempo” e não “Poemas da Maria”. Refém do momento,
resta-lhe a resignação:

Que bonita que ela é!... Não


Me esqueço dela um momento!
Porém não dou cinco meses,
Acabarão as fraquezas
E a paixão será arquivada.
Maria será arquivada.

Por enquanto isso é impossível.


O meu corpo encasquetou
De não gostar senão de uma...
Pois, pra não fazer feiura,
Meu espírito sublima
O fogo devorador.
Faz da paixão uma prima,
Faz do desejo um bordão,
E encabulado ponteia
A malvadeza do amor.

Maria, viola de amor! ...


(ANDRADE, 2013, v. 1, p. 315-316)

Para a criação de “Tempo da Maria”, de acordo com Cristiane Rodrigues de Souza


(2009), o poeta faz uso da composição musical das modas de viola. O ritmo trazido pelos
portugueses colonizadores era sobretudo executado no instrumento que acompanhava os
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cantos dedicados às mulheres na terra distante, aspecto observado por Mário de Andrade
etnógrafo em “O sequestro da dona ausente”. Acrescento que, diferentemente da experiência
amorosa com a Amiga e com a Negra, de certa forma, Maria é também uma “dona ausente”,
pois com ela a relação física não se consuma - “Isto, em bom português, é amor platônico...”,
(“Louvação da tarde”; verso 82).
Antonio Candido estudou com afinco “Louvação da Tarde”, o crítico discute a
aproximação do modernista com a poesia romântica inglesa, principalmente no que tange a
tradição temática da “louvação” na literatura ocidental. Mário de Andrade bebe nas fontes do
romantismo para transfigurar uma nova poesia, “não se trata de recuo ou de apostasia, e sim
de uma demonstração de validade do modernismo por meio de seu entroncamento na
tradição.” (CANDIDO, 2004, p. 234). Há um diálogo com a tradição e também uma
inovação, Antonio Candido observou que, pela primeira vez na literatura, o passeio bucólico,
tão caro aos românticos, é realizado pelo modernista em um automóvel, ressalta-se que o
poeta brasileiro não faz apologia à velocidade, como Marinetti, ele insere nos versos
elementos de sua época, neste caso, a máquina, mas que não se sobressalta à natureza.
Como crítico literário, Mário de Andrade interessa-se pela poesia romântica brasileira,
nela investiga o amor vinculado ao medo (ANDRADE, 2002); conclui que houve, da parte
dos poetas, uma repulsa generalizada ao sexo, que, assustados, fugiam ante qualquer
possibilidade de encontro carnal. Na criação poética, o modernista dialoga com os jovens
líricos, por exemplo, em “Amar sem ser amado, ora pinhões!” que parodia o título do exaltado
desejo de “Amar e ser amado”1, no poema de Castro Alves. Como os poetas brasileiros do
século XIX, o sujeito lírico de “Tempo da Maria” também não se realiza, mas, neste caso, não
por receio de investir, e sim porque há uma barreira social entre o poeta e Maria; nos versos,
infere-se que ela é rica, casada e branca, o que impossibilita a aproximação amorosa.
No que tange à cor da pele, em “Tempo da Maria”, entre as mulheres, dos três
conjuntos de Remate de males, é a única descrita como branca: “ela é quieta e clara, ela é
rosicler” (“Cantiga do ai”; verso 15). E quando a questão envolve a “aceitação” no meio
aristocrata, o sujeito lírico se toma como um ridículo negro de suéter que não se encaixa no
modelo branco/europeu, desejado pela elite paulistana.

Poeta sossegue, ela é casada...


Pois sim. Pensemos em outra coisa.

1
MA estudou com afinco os poetas românticos, em sua biblioteca encontrasse o exemplar, com rasuras do leitor:
ALVES, Castro. Obras Completas. Compilação de Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1921, v.1 e0 2.
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No que será?... Negro de suéter,


Que engraçado! ... mas... que tristeza!
Esta vida não vale nada!...
Vou cantar a Louvação do Éter!
(ANDRADE, 2013, vol.1, p. 320)

Nessa estrofe, duas vozes do mesmo eu poético dialogam e planejam uma forma de
fugir do sofrimento, a saída é olhar para o negro de suéter, isto é, distrair-se, mas ao buscar o
escape, o poeta arlequinal depara-se com mais uma parte dos “eus em farranchos”, pois o
sujeito lírico encontra em si mesmo, também, o paradoxo engraçado/triste que se reporta a
uma cena grotesca relacionada à origem racial.
Nos “Poemas da Amiga”, a transgressão da tópica destaca-se em dois elementos, o
amor que se realiza e a descrição da mulher que a afasta de um modelo idealizado:

Vossos olhos são um mate costumeiro.


Vossas mãos são conselhos que é indiferente seguir.
Gosto da vossa boca donde saem as palavras isoladas
Que jamais não ouvi.
Porém o que eu adoro sobretudo é vosso corpo
Que desnorteia a vida e poupa as restrições.
(ANDRADE, 2013, v. 1, p. 395)

Os olhos castanhos da Amiga, “mate costumeiro”, sem enigma, assim como as mãos
benfazejas e o mistério das palavras não cativam o poeta que visa o corpo da mulher; ela lhe é
puro erotismo. Nos “Poemas da Amiga”, é possível dizer que existe a progressão no desejo
“Se acaso a gente se beijasse uma só vez.../ [...] Sei que era um riacho e duas horas de sede,/
Me debrucei, não bebi.” (“II”; v. 1, 4-5), até a realização do encontro sexual sugerido no
poema “III”:

Agora é abril, ôh minha doce amiga


Te reclinaste sobre mim, como a verdade,
Fui virar, fundeei o rosto no te corpo.

Nos dominamos pondo tudo no lugar.


O céu voltou a ser por sobre a terra,
As laranjeiras ergueram-se todas de-pé
E nelas fizemos cantar o primeiro sabiá.

Mas a paisagem foi-se embora


Batendo a porta, escandalizadíssima.
(ANDRADE, 2013, p. 387)

O sujeito lírico ainda que tenha o desejo sexual realizado, instala-se nele
imediatamente a insatisfação. Após esses versos que transfiguram o encontro íntimo do casal,
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o poema seguinte inicia-se com o lamento: “Ôh! Trágico fulgor das incompatibilidades
humanas! / Que tara divina pesa em nosso corpo vitorioso/Não permitindo que jamais a
plenitude satisfeita/ Descanse em nosso lar como alguém que chegou!...” (“IV”; verso 1-4). E
ao orgasmo sucede a possibilidade de outra experiência amorosa: “Um pensamento se
dissolve em mel e à porta/ Do meu coração há sempre um mendigo moço esmolando...”
(verso 13-14).
O termo “amiga” remete a seu sinônimo “amante”, consignado no dicionário e na voz
popular na época do escritor. Sendo essa “Amiga” talvez casada, esconde a interdição
determinada por uma regra social. Consequentemente, o ocultamento da relação recorre a um
espaço de utopia, o Grão Chaco, silenciando a consciência do poeta sobre seu país:

Contam que lá no fundo do Grão Chaco


Mora o morubixaba chiriguano Caiuari,
Nas terras dele nenhum branco não entrou.
São planos férteis que passam a noite dormindo
Na beira dum lagoão calmo de garças.
Enorme gado pasta ali, o milho plumeja nos cerros,
E os homens são todos bons lá onde o branco não entrou.

Nós iremos parar nesses desertos...


Viajando através de fadiga e miséria,
Os dias ferozes nós descansaremos abraçados,
Mas pelas noites suaves nossos passos nos levarão até lá.
E ao vivermos nas terras do morubixaba Caiuari,
Tudo será em comum, trabucaremos como os outros e por todos,
Não haverá hora marcada para comer nem pra dormir,
Passaremos as noites em dança, e na véspera das grandes bebedeiras
Nos pintaremos ricamente a riscos de urucum e picumã.
Pouco a pouco olvidaremos as palavras de roubo, de insulto e mentira,
[...]
Ôh, doce amiga, é certo que seríamos felizes
Na ausência desse calamitoso Brasil!...
(ANDRADE, 2013, v. 1, p. 389-390)

Para Adna Candido de Paula (2005), em seu estudo sobre alteridade na poesia
mariodeandradiana, os versos marcam uma “visão mítica do paraíso” onde não existe o bem e
o mal nesse lugar reinado por divindades indígenas, é preciso dar atenção ao pronome “nós”
que não contempla apenas o poeta e sua “Amiga”, há um desejo de comunhão que abarca
todos os homens: “O seu desejo amplo, é do espaço [idílico] para todos” (PAULA, 2005, p.
173). Diferentemente, nos “Poemas da Negra”, o poeta, ao lado de sua musa de azeviche,
constrói um espaço restrito ao casal.
Os “Poemas da Negra”, segundo ciclo na ordem do livro, ficam por último pela
relevância que têm, não apenas em “Remate de Males”, na obra do poeta. Em carta ao amigo
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Manuel Bandeira que não havia gostado dos poemas, datada de 31 de dezembro de 1930,
Mário de Andrade responde: “mas talvez haja no poema sobretudo pela falta de exotismo com
que valorizei, humanizei uma negra fazendo-a sair das facilidades da concepção
baudelaireana, talvez haja uma naturalidade nova que você, irredutível pessoal, inda não
concedeu aos poemas” (ANDRADE & BANDEIRA, 2001, p. 476). Mário provavelmente
está referindo-se ao poema “À une Negrèsse” de Charles Baudelaire que está em sua
biblioteca. O poeta francês elogiou a beleza de uma africana, mas não a retirou do lugar do
exótico e erótico, tão comumente dado às mulheres negras; no Brasil, pode-se observar esse
tratamento desde a literatura colonial (GRILLO, 2013) aos dias de hoje, como no programa
transmitido pela emissora mais assistida do país, intitulado “O sexo e as nega”, dirigido por
Miguel Falabela.
Os “Poemas da Negra”, composto de doze partes, têm Recife como cenário, não a
cidade, mas o mangue, no cais do porto, na época, zona de prostituição. Mário de Andrade
data o poema de 1929, ano de sua segunda viagem etnográfica de Turista Aprendiz. Em
fevereiro, passara o carnaval na capital de Pernambuco na companhia dos amigos Ascenso
Ferreira, poeta, e Cícero Dias, pintor a quem dedica os "Poemas da Negra". Este lhe agradece
em carta de 1930:

Mário, você não calcula como fiquei contente com os Poemas da negra[...].
Eu li aquela crônica sobre Murilo Mendes e você errou quando disse que ele
fechou com alguma chave de ouro o ano de livros poetas e poesias, foi você
Mário que fechou tudo com os Poemas da negra. (Documento IEB, série
correspondência MA)

Cícero Dias compreendera a beleza desses poemas que firmam a mais intensa
expressão amorosa do vate em toda sua obra poética. Os versos concentram-se em uma única
noite vivida com uma prostituta negra. Desde “Tempo da Maria”, vê-se que Mário de
Andrade desloca a tópica amorosa da tradição literária ocidental do amor pleno ligado à
eternidade, neste caso, os poemas concentram-se em uma única noite de amor, com uma negra
e prostituta que será deslocada de seu lugar social e torna-se a própria natureza. Mário
conhece, como prova sua biblioteca, os ícones das musas ocidentais: Laura, de Petrarca, e
Beatriz, de Dante Alighieri, amadas brancas e intocáveis. Em Clã do jabuti, obra anterior a
Remate de males, o poeta já anunciara seu desdém pelo modelo europeu:

Meu Deus como ela era branca!...


Como era parecida com a neve...
Porém não sei como é a neve,
Eu nunca vi a neve,
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Eu não gosto da neve!


E eu não gostava dela...
(ANDRADE, 2013, 202)

Na literatura canônica brasileira, exceto na obra de Luis Gama, não se havia alçado a
mulher negra ao lugar de musa do poeta, lugar sempre ocupado pela branca. Além disso, na
poesia de Mário de Andrade, o poeta transgride a própria condição social dessa mulher,
prostituta que vive no mangue.
O encontro amoroso, inexistente no “Tempo da Maria”, e erótico nos “Poemas da
Amiga” inicia-se com a Negra no nível espiritual quando os dois primeiros versos insinuam
uma ancestralidade em comum, africana, responsável pela atração: “Não sei porque espíritos
antigos/ Ficamos assim impossíveis”. A Negra transcende a sua realidade na comparação e
nos adjetivos que a afastam da condição de prostituta.
Restrinjo-me a apresentar apenas um dos doze poemas na Negra, suficiente para
demonstrar a expressão lírico amorosa elaborada pela transfiguração do encontro, todo um
espaço cósmico permite retirar a mulher de sua condição social para o lugar de amada do
poeta:

Não sei por que espírito antigo


Ficamos assim impossíveis...

A lua chapeia os mangues


Donde sai um favor de silêncio
E de maré.
És uma sombra que apalpo
Que nem um cortejo de castas rainhas.

Meus olhos vadiam nas lágrimas.


Te vejo coberta de estrelas,
Coberta de estrelas,
Meu amor!

Tua calma agrava o silêncio dos mangues.


(ANDRADE, 2013, p. 343)

Além dos elementos transgredidos da tópica amorosa já apresentados - a idealização


da mulher branca, eterna e inalcançável - o poeta ainda faz outro deslocamento neste poema,
ele toma pra si o verbo “vadiar”, que em algumas regiões do Brasil tem conotação sexual
ligada a um comportamento estereotipado do gênero feminino; são os olhos dele, do homem,
mergulhados em comoção, e não a mulher, que andam de um lado para o outro.
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O modernista que conhece profundamente a literatura ocidental brinca com ela na sua
criação poética, desconstrói o modelo hegemônico e realiza o amor junto à mulher negra
escolhida como grande musa de sua poesia.

Referências

ANDRADE, Mário. Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de


documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2013, v. 1 e 2.
______. “Amor e medo”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 2002, p. 221-251.
CANDIDO, Antonio. “O poeta itinerante”. In: O discurso e a cidade. São Paulo/ Rio de
Janeiro: Duas Cidades- Ouro sobre Azul, 2004.
“Amor e medo”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002,
p. 221,251
Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Org., intr. e notas de Marcos
Antonio de Moraes. São Paulo, Edusp, 2000. (2ª ed. 2001).
GRILLO, Angela Teodoro. “De lasciva a musa: a representação da mulher negra em versos
de Gregório de Matos a Mário de Andrade”. Revista Uniandrade. vol. 11, nº 2. Jul.-Dez.
2013. Curitiba, p. 76-94.
SOUZA, Cristiane Rodrigues de. Remate de males: a música de poemas amorosos de Mário
de Andrade. Tese de doutorado. Orientador: Alcides Celso de Oliveira Villaça. FFLCH-USP,
2009. SOUZA, Gilda de Mello. “A poesia de Mário de Andrade”. In: A ideia e o figurado.
São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2005, p. 27-36.
STAIGER, Emil: Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de
Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1997.
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UM VERSO INSUBMISSO NA GERAÇÃO 60 OU A POESIA DE ROBERTO


PONTES

Elizabeth Dias Martins


Universidade Federal do Ceará

A tradição em que se insere

A poesia é um gênero literário quase sempre associado ao estado anímico lírico, muito
embora saibamos que ela se manifesta igualmente através do épico e do dramático, como é
consenso entre os teóricos. Desse modo a poesia tem servido, ao longo de milênios, para
exprimir o clima lírico, ou seja, a disposição anímica decorrente de uma vibração interior do
eu dirigida a um destinatário disposto a fruir o prazer poético num momento único. O
requisito primeiro para a vibração do eu lírico é a solidão. A exclusividade do momento
captado e transbordado (PONTES, 1999, p. 24) é condição prévia sem a qual falha a fruição
do destinatário, sendo fundamental a disponibilidade deste para o gozo do poema escrito ou
falado. O poema lírico tem por essência a recordação, daí seu clima quase sempre
memorativo, evocatório.
O mesmo não acontece com o épico, pois a essência desse gênero é a representação de
fatos e ações, fundamentalmente associados a feitos históricos, de modo que no épico
predomina a objetividade da escrita e não a subjetividade.
Também o clima lírico não ocorre de forma decisiva no dramático, porque a essência
desse gênero vem a ser a fusão do lírico e do épico em suas formas expressivas.
Desses três conceitos, um deles, o épico, será mais aplicado nas páginas deste artigo.
Não o do recorte tradicional, que parte dos paradigmas greco-latinos, nem o renovado dos
tempos modernos, muito menos o correspondente ao modelo contemporâneo. O epos a ter
lugar em nosso trabalho é o presente em poemas curtos, que registram hoje, apropriadamente,
a luta dos homens contra as adversidades enfrentadas, sobretudo as de ordem política e social.
Tal fenômeno já tinha sido percebido por Bertolt Brecht por volta da década de 30 do século
XX, nos seguintes termos: “Así como la política es uma acción contra la imperfección del
planeta, puesto que simpre se hará política sólo porque nada es satisfactório sobre la Tierra,
así también la literatura es uma acción contra la imperfección del hombre” (BRECHT, 1973,
p. 78). Escrevendo sobre Maiakovski e sua geração, citando-o, Roman Jakobson observa: “O
apelo revolucionário do poeta é dirigido a todo aquele que se sente oprimido e que não
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suporta mais”; e noutra parte: “Segundo uma conhecida exigência de Maiakovski, o poeta
deve apressar o tempo” (JAKOBSON, 2006, pp.15, 12).
Estas considerações nos levam às feitas por Pedro Lyra em páginas dedicadas a definir
o que ele denomina “as 4 vertentes do discurso” da Geração 60, a saber: “A) a herança lírica;
B) o protesto social; C) a explosão épica; D) a convicção metapoética” (LYRA, 1995, p. 100-
111)
Presente nas quatro vertentes taxonômicas propostas por Pedro Lyra se encontra a
poesia de Roberto Pontes, objeto desse estudo. Por duas vezes, o autor de Literatura e
ideologia observa ser a poesia de Pontes, de protesto social, acrescentando que uma parte dela
é “protesto de procedência regionalista com Lições de Espaço, livro I”; (...) “protesto de
procedência política, fruto do enfrentamento direto da situação que a geração encontrou ao
entrar em cena” (LYRA, 1995, pp. 104, 105).
E Lyra encerra assim seu comentário relativo ao protesto de procedência política da
Geração 60 e de seus poetas, forma superior de dizer não aos rumos impostos ao país:

em livros monotemáticos ou poemas coletados, eles levaram para a poesia as


inquietações e os dramas, os tormentos e as decepções mas também a
resistência e a esperança, a luta e a libertação do povo brasileiro sufocado
pela ditadura. Em conjunto: uma poesia de rejeição, feita no calor da hora,
numa linguagem frequentemente despojada, se não com o deliberado intuito
ao menos com o desejado efeito de tocar não apenas a sensibilidade, mas,
sobretudo a consciência do leitor, numa tentativa de intervenção
desalienadora e numa forma de convite à participação. A mais radical poesia
dessa vertente é a daqueles poetas que sofreram na prisão. (LYRA, 1995,
p.100-111)

Portanto, embora Roberto Pontes também trabalhe com “um lirismo ostensivamente
erotizado” em Memória Corporal; em Lições de Espaço explore “um dos temas épicos do
nosso tempo – a conquista do Cosmos” (LYRA, 1995, pp. 105, 108); embora igualmente se
valha da metapoética, encontrável em todos os seus doze livros, é exclusivamente da poesia
insubmissa contida em Verbo encarnado que trataremos. Sobre essa obra escrevemos
anteriormente:

Todos os poemas desse livro são de natureza política, em parte, dedicados a


vergastar a tirania dos regimes de exceção, em parte para registrar e
denunciar as mazelas universais que intranquilizam o homem. Poemas
circunstanciais e datados, é certo, mas realizados com muita habilidade
técnica, o que os faz transcender o reles plano do panfletarismo, como bem
ressaltaram Moacyr Félix e Fernando Py. (MARTINS, 2006a)
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Para proceder a análise necessário se faz firmar o conceito de poesia insubmissa que
figura no título do artigo. Roberto Pontes, além de poeta, também é crítico e ensaísta, havendo
teorizado sobre assuntos que dizem respeito à literatura e à cultura. Dentre estes, estabeleceu
o conceito aludido que ora adotamos:

A poematização que se designa sob o sintagma poesia insubmissa é uma


singularidade literária pouco estudada, sendo até mesmo evitada por críticos
e ensaístas da área. Esquecimento ou desinteresse, a omissão não se justifica,
porque a fala insubmissa tem por finalidade não apenas a captação e a
interpretação da realidade pelo poeta, mas também a intervenção sobre ela
através do agir poético e político. Assim já era no mito de Orfeu, que, como
se sabe, amansava as feras com seu canto, metaforicamente entendida dessa
forma a ferocidade humana. De Arquíloco, por sua vez, se diz ter sido
“revoltado, impiedoso, mesquinho”; o poeta “que uma única cousa sabe:
retribuir com cruéis males [através das palavras e versos] o mal que lhe
fazem os inimigos. Talvez seja ele o poeta mais remoto na tradição da
palavra insubmissa. Com efeito, Horácio em sua Ars poética, afirma: “A
cólera armou Arquíloco de iambos todos seus, esse pé adequado ao diálogo,
que sobrepuja a zoada do público, e nasceu para a ação”. (PONTES, 1999, p.
26)

Na verdade, a fala insubmissa está presente na Antiguidade clássica em Aristófanes,


Sófocles, e na Idade Média, principalmente através do repertório de sirventeses de que temos
registro. Por volta de 1700, assinala Ernst Fischer, surgem na Europa os romanceiros
populares compilados pelo bispo Percy, que contêm exemplos de poesia insubmissa
(FISCHER, s.d., p.188). E daí passamos aos chamados “poetes civiques de la littérature
française: Ronsard, Malherbe, Corneil, André Chénier: force de la pensée, noblesse de
convictions, plénitude du verbe” (OUSSE, VIER, 1948, p. 179). Nesse panorama da poesia
francesa têm realce Alphonse de Lamartine (1790-1869) e Victor Hugo (1802-1885). O
primeiro, exemplo irrecusável de como pode haver um ótimo poeta que seja capaz de
desempenhar concomitantemente a ação política; o segundo, de como pode um poeta oferecer
através de um poema, no caso, o intitulado “Fonction du Poète”, logo convertido em linha
programática do romantismo social participante na França e no mundo. Outros nomes de
relevo na poesia francesa praticaram a poesia insubmissa, sendo impossível omitir os de
Louis Aragon e Paul Éluard. E ficamos nestes exemplos por não ser este o espaço para exame
da tradição comentada.
Na poesia brasileira também há uma tradição de poesia insubmissa, como faz ver
Pedro Lyra, que a chama de “poesia de participação”:

a poesia de participação – aquela que toma a realidade social do momento


como tema com a ostensiva intenção de interferir no processo político e no
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destino histórico da sociedade – é a presença mais constante em nossa


evolução. Ela tem uma tradição que decola de suas origens (Gregório, século
XVII), atravessa todos os nossos períodos literários (Critilo, no Arcadismo);
Castro Alves, no Romantismo; Raimundo Correia, no Parnasianismo; Cruz e
Sousa, no Simbolismo; Moacyr de Almeida, no Pré-modernismo) e chega ao
nosso tempo (Mário, Drummond, Cabral, Moacyr, Gullar) com vigor
proporcional à urgência dos problemas que a provocam. A especificidade da
praticada pela Geração-60 deriva da peculiar situação histórica que o país
atravessava, com a iminência da conquista do poder pela esquerda e depois
com o protesto pela frustração desse projeto: nesse instante, os poetas mais
conscientes da natureza social da arte, os mais ideologicamente esclarecidos
ou mais politicamente empenhados envolveram a poesia nas lutas populares,
acreditando na eficácia revolucionária da palavra poética. (LYRA, 1995, p.
102-103)

É nesse quadro de poetas participantes (ao qual faltam nomes como os de Thiago de
Melo, Vinícius de Moraes, Afonso Félix de Sousa e Geir Campos) que se insere a poesia
insubmissa de Roberto Pontes.
Vamos agora, tendo em vista estar a edição de Verbo encarnado (PONTES, 1996)
hoje esgotada, transcrever o texto de abertura da “Nota Posterior”, no qual o autor nos dá
esclarecimentos indispensáveis à compreensão da gênese dos poemas da coletânea:

Este volume reúne poemas de 1964 a 1983, excetuado o ano de 1976. Ao


organizar a sequência dos escritos optei pelo alinhamento cronológico, não
só para situá-los no tempo, mas também para ressaltar a unidade temática e a
coerência da linguagem através dos anos. Assim, ao elaborar o índice
mergulhei nas pastas de originais manuscritos ou datilografados, nos mais
diversos momentos, tentando resgatar títulos antigos e datas. Destas,
algumas nunca foram assinaladas na primeira escrita; ficaram perdidas para
sempre. Se procurei indicá-las, o fiz por aproximação. Faço a referência
espácio-temporal, além de assinalar o fato gerador da maioria das peças,
esclarecendo algumas dedicatórias, porque muitas pessoas fazem-me
indagações a respeito de poemas contidos no Contracanto, Lições de espaço
e Memória corporal. Quanto ao conteúdo, tenho hoje que a literatura não é
brinquedo. Não é exercício para narcisos interessados na contemplação do
próprio umbigo. Não é ofício para rasgos de vacuidade. A fala humana – e
nesta a poesia – é a trincheira do ser acossado pela opressão totalitária sob a
qual vivemos hoje. Neruda via a poesia como insurreição e Paul Eluard
como combate. Podemos com eles dizer: poesia é fala insubmissa. Mas não
concebo a fala insubmissa apenas como resistência. Vejo-a muito mais como
incitação das consciências. Necessária subversão dos valores apodrecidos
sob o primado do dinheiro, do capital, da força, do imperialismo e do
colonialismo impostos aos trabalhadores do mundo inteiro, sob crescente
militarização dos governos das nações. Verbo encarnado foi anunciado pela
primeira vez no Jornal de Letras (Rio de Janeiro, agosto, 1976) na coluna do
poeta Pedro Lyra. Faço a ressalva para apontar a precedência do uso do
título. Para mim seu significado é tanto qualificativo quanto verbal. Assim
foi concebido. Exprime a plasticidade do vermelho. No Brasil, sobretudo no
Nordeste, encarnado é sinônimo de vermelho, havendo nas festas populares
acirradas disputas entre os partidos azul e encarnado. O qualificativo, porém,
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sugere do mesmo modo, posposto ao substantivo verbo, a palavra


plenificada de vida a habitar entre os povos. Existe uma estreita ligação entre
a força bíblico-religiosa do termo verbo e a voz poético-política do vocábulo
encarnado, a qual procurei acentuar no conjunto do livro. Evidente é a inten-
ção política. Ao manusear os antigos papéis pude retornar à origem dos
versos com um misto de alegria e sentimento de perda, bem como meio
perplexo com a avassaladora violência de hoje, muito menos intensa há vinte
anos. Mas, passemos a esclarecer cada poema. (PONTES, 1996, p. 99-100)

A “Nota Posterior”, na realidade, se desdobra em quarenta e cinco notas extremamente


úteis para entendimento do motivo do poema. Essa preocupação do autor com o leitor tem
precedentes na produção literária e deles darei dois exemplos de poetas altíssimos que não
hesitaram em revelar o móvel de suas produções líricas: o de J. W. Goethe, em Memória:
Poesia e verdade (1986), o livro todo; e o de Rainer Maria Rilke, tal como lemos em Poemas
e Cartas a um jovem poeta (1992). Mesmo que as elucidações tratem de realidades e situações
diversas têm o mesmo fim, qual seja o de orientar o destinatário numa certa direção sem que
tal fato o impeça de fruir o poema composto. Ao contrário, permitindo-lhe uma fruição mais
completa do texto.

Análise da natureza social e política de alguns poemas

Na impossibilidade de realizarmos nos limites deste artigo o exame dos cinquenta e


nove poemas que compõem o quarto livro de Roberto Pontes (sessenta se contarmos “Les
absents”, tradução para o francês de “Os ausentes”), selecionamos alguns deles para o fim a
que nos propusemos. Serão transcritos na íntegra, dada a dificuldade de obtenção do livro
onde se encontram. E passemos ao primeiro, DISPLICÊNCIA: “Pouco me importa a violência/ a
farsa/ se a verdade/ eu bebo pelos poros.// Fosse eu alguém/ mais forte/ e não temesse/
convocaria/ a minha geração.// Rubro demais/ explodiria/ em guerra.” (PONTES, 1996, p.
26).1
Esse poema de 1966 registra o impasse poético-político após os primeiros anos do
golpe militar que depôs o governo constitucional brasileiro, substituindo-o pelo arbítrio e o
caos econômico.
De fato, na primeira das três estrofes dos versos dados temos a recusa da
arbitrariedade expressa no substantivo feminino “violência”, que implica em outros
significados a ele associados, como a qualidade do que ou quem é violento, a ação de

1
Todos os poemas transcritos constam da edição referida. Portanto, daremos daqui por diante, nos parênteses,
apenas as páginas onde eles se encontram.
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violentar, o constrangimento físico ou moral, força e coação. Esse substantivo feminino é


posto ao lado de outro, “farsa”, indicativo de ação burlesca, ridícula, enganosa e sem
seriedade. Recusando essas realidades postas em prática pelo regime militar de 1964, o eu
poético declara a certeza numa verdade obviamente de caráter ideológico, que o faz firme,
desde que assimilada pelo maior órgão do corpo humano, a pele, onde estão os “poros”.
A segunda estrofe sugere uma natural hesitação do eu poético no processo do
enfrentamento da situação sócio-política adversa, mas a disposição anímica, ainda que
registrada no condicional, exprime a convocação geracional, através do verso, para a luta e a
resistência.
Na terceira estrofe, a aparente indecisão apontada é reforçada pelo desejo manifesto de
tingir o mundo de vermelho, numa significativa condensação verbal decorrente da aceitação
guerreira: “Rubro demais/ explodiria/ em guerra”.
O segundo poema é GRITO CONTRA O VENTO: “O meu poema compele/ ao que não
temo/ com estas mãos em concha/ e o grito contra o vento./ O meu poema acusa/ o que não
temo/ e o punho viril/ agita o gesto/ golpeando o tempo./ Ouve, opressor,/ a fanfarra a
caminho./ Ninguém pode extinguir/ uma chama tão luzente./ Nada pode mudar/ o destino de
um povo./ O meu poema condena/ a ti, torpe tirano./ Todos sabemos/ que os nossos pés/
desconhecem o cansaço;/ que os nossos olhos/ inflamam muitos outros/ infundindo-lhes
fraternidade./ Ouve, ouve meu parceiro:/ As armas são as grandes bem-amadas./ Guardemos
tochas para o dia da vitória!” (p. 35).
O poema transcrito representa um reforço do ânimo poético do autor, que empresta
tanto sua voz quanto sua ação à luta contra a ditadura de 1964, nos dias antecedentes à edição
do famigerado Ato Institucional nº 5, alcunhado AI-5. Metaforicamente, nos versos iniciais
fica declarada a função a que se destina. Nos quatro primeiros, o eu poético afasta de si a
possibilidade de temor e converte as mãos em megafone para opor-se ao “vento”. É bom
lembrar que a força do vento faz dobrar as estruturas mais sólidas e essa imagem tem sido
usada em poesia para indicar a intempérie, no caso, a política, que se abateu sobre o Brasil a
partir de 1º de abril de 1964. Os versos vergastam os agentes da ditadura instituída que, seres
artificiais, desempenham o papel, para eles essencial, de “constituir obstáculos aos caminhos
do futuro”, mas “a máquina do tempo há de cuspi-los inevitavelmente” (JAKOBSON, 2006,
p.26).
Estamos também diante de um metapoema, porquanto aqueles versos declinam seu
propósito. A segunda estrofe, tão metafórica quanto a primeira, traz uma acusação ao regime
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de exceção instituído pelo golpe e o gesto de atingir o tempo com o punho deve ser lido como
ação efetiva dirigida contra o momento antidemocrático capitaneado pelo regime militar. Este
sinal de luta vem acompanhado do anúncio do movimento de oposição com “a fanfarra a
caminho”, ou o próprio som das ruas mobilizadas por todos os quadrantes do país, e ainda o
propósito ideológico da decisão de manter aceso o ânimo combativo através do símbolo
traduzido naquela “chama tão luzente”. As certezas são em si revolucionárias. Inclusive
aquela que sentencia: “Nada pode mudar/ o destino de um povo”.
A tanto se segue uma invectiva direta: “O meu poema condena/ a ti, torpe tirano” que,
dentro do contexto histórico no qual se insere, leva endereço certo. E o poema, provido em
sua dinâmica estrutural pela repetição, volta a fortalecer o ânimo daqueles a quem se dirige,
descartando o “cansaço” ao fazer da ação fraterna a tônica da luta comum. O poema se
encerra conativamente, com a proclamação da necessidade da luta armada e uma crença
imperativa na vitória sobre a opressão.
E passemos a um dos poemas mais conhecidos de Pontes, OS AUSENTES: “Os ausentes
necessitam sempre/ bilhetes, cartas e coisas/ vezes pequenas lembranças/ uma gravata, um
poema, um postal.// Os ausentes são tão necessitados/ que ninguém os lembra/ nem só por
saudade ou falta.// Os ausentes têm mãos invisíveis/ e figura tão diáfana/ que os versos para
eles/ já nascem feitos poemas.// Os ausentes por qualquer acaso/ jamais fogem ao nosso
convívio/ ainda que a distância seja tanta.// Dos ausentes fica sempre um sorriso/ como as
pinturas recheias/ de surpresa, reencontro e irreal.” (p. 43).
Datado de1969, vai dedicado ao colega do Liceu do Ceará, companheiro do autor na
Juventude Estudantil Católica. Frade da Ordem dos Dominicanos, Tito de Alencar Lima, ou
Frei Tito, cristão fervoroso da ala progressista da Igreja, puro e intrépido, que passou à
condição de mártir nos porões da ditadura. Seu esquife retornou ao chão de Fortaleza, como
semente de fé revolucionária, nos braços dos amigos e do povo. Este poema foi vertido pelos
monges do convento de La Tourette, L’Arbresle, Lyon, France. Circulou como abertura do
Dossiê Tito da Anistia Internacional, por iniciativa dos dominicanos franceses. Alguns versos
de “Os ausentes” foram superpostos pela família Alencar Lima à fotografia do rosto do
religioso, tão sordidamente destruído por seus algozes implacáveis. Foi ela distribuída no dia
da primeira missa rezada em intenção de sua alma. O livro se abre com o texto em francês.
Assim, o autor procurou ressaltar a dimensão humana de Frei Tito, hoje universal. Roberto
Pontes conseguiu nesse poema demonstrar que a ausência do amigo será sempre presença.
Seus versos revelam a certeza dos princípios religiosos e ideológicos não traídos, e da
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vocação cristã cumprida. O poema expressa a homenagem e o respeito à firmeza de


propósitos do amigo, e constitui marco vivo de uma inabalável amizade.
Quando da leitura desses versos, ficamos diante de um tom solene, porque as palavras
selecionadas transmitem respeito pelo outro. É que o poema soa verdadeiramente como
mensagem de alerta em favor dos que se encontram "exilados", carentes de "pequenas
lembranças" que possam dar ânimo ao distanciado de suas raízes, da pátria, e do convívio
fraterno de amigos e familiares.
Não sei se seria necessário observar mais alguma coisa a respeito desse poema, do
qual já notou Angela Gutiérrez atingir a “quase diafaneidade” (GUTIÉRREZ, 2006). Talvez
ainda se possa estender o preito prestado ao frade dominicano barbaramente perseguido e
torturado nos porões da ditadura de 1964, aos demais heróis sucumbidos na luta pela
redemocratização do Brasil. O poema “Os ausentes” traz em seu título a idéia de coletivo e
não de singular. Compreende-se, pois, o condão que tem a poesia de transfigurar o individual
em coletivo, sobretudo quando o artista exerce sua consciência de ser historicizado.
E não só de luta se faz a poesia insubmissa de Roberto Pontes. Nela temos momentos
de reflexão que buscam assegurar a firmeza de propósitos de quem se envolve num confronto
com a dimensão do ocorrido no Brasil durante a ditadura de 1964. É o que lemos em NÃO
DESESPERES NUNCA: “Não desesperes nunca./ A vida é assim mesmo./ Um dia para a dor/ um
outro pra esperança./ E não te furtes/ ao convívio do que é belo/ pois a pureza espera sempre
além./ Olha como se amam as borboletas/ que fiam corpos vivos no mistério/ e não dizem
versos/ porque fazem voos./ O amanhã é sempre diferente./ O amanhã é verde como as folhas/
que apaziguam nossos olhos com seu mar./Não desesperes nunca./ A vida é mesmo assim./
Um dia é para o mal./ O outro é pro perdão.” (p. 55).
Escrito em Fortaleza entre 1973/74, esse poema prenuncia a anistia que mais tarde será
conquistada pelos opositores do regime ditatorial de 1964. Mas seu alcance é bem mais amplo
e é o próprio poeta que revela: “Sou eu a dizer-me, e aos outros, que apesar do tempo não
podemos desesperar.” (PONTES, 1996, p. 105).
Esse poema é político e insubmisso, tanto quanto o anterior, mesmo que o seu tom não
seja o da proclamação, o da convocação, nem o da invectiva direta, mas o da acalmia de uma
certeza de experiência feita, como nos disse Camões. Tanto o seu tom quanto o seu ritmo
requerem a verificação realística da vida individual e social por trás dos pares antinômicos
dor/esperança, mal/perdão.
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Podemos dizer que a sobriedade desse poema é alcançada na sentença expressa no


primeiro verso: “Não desesperes nunca” que, se por um lado é de teor imperativo, não se
afasta da ternura necessária à adesão do ser humano a um comando imprescindível. O verso
seguinte é constatativo, mas não no sentido conformista da aceitação pura e simples dos fatos.
Os terceiro e quarto introduzem a noção da alternância dos estados opostos constituintes da
existência humana. Aliás, a vida não pode ser diferente, pois da sucessão de tais estados surge
a possibilidade de experienciarmos valores. Mesmo na adversidade, o eu poético sugere
ficarmos “ao convívio do que é belo”; logo, ao lado dos valores positivos da vida. Os
melhores, segundo o enunciado textual, estão numa expectativa futura, “sempre além”. Os
versos oitavo, nono, décimo e décimo primeiro atingem o mesmo grau de diafaneidade antes
apontado num exercício de contemplação de detalhes imperceptíveis à sensibilidade das
pessoas ocupadas com atividades cotidianas e comuns. Linguagem metafórica por excelência:
borboletas personificadas não fecundam nem se deixam fecundar, pois são alçadas ao estatuto
de tecelãs de novos seres extraídos não do sêmen, mas do mistério; e bem que poderiam
“dizer versos”; contudo não os dizem “porque fazem voos”. Implícita é a admiração do eu
poético pela verdadeira arte das borboletas, para ele, mais importante do que a dos poetas.
Os versos doze, treze e catorze retomam o tom e o ritmo sentencioso dos iniciais, a fim
de abrir a possibilidade de alternância antes mencionada, tendo como bandeira o verde da
esperança. No décimo quinto verso o sintagma-título se repete, como se fosse um refrão, para
manter o ânimo lírico desejoso sempre da tranquilidade ante a adversidade. O décimo sexto,
de teor constatativo, se repete com ligeira inversão de efeito estético, e prepara a sentença
final de confiança e equilíbrio: “Um dia é para o mal./ O outro é pro perdão”. Esses dois
versos podem ser lidos, já o dissemos, como uma intuição poética da anistia, se considerado o
contexto social de onde se originam, ao modo de entendimento proverbial popular necessário
à compreensão da vida.
Dentre as alternâncias favoráveis e desfavoráveis constitutivas da existência humana,
um sentimento tem sido motivo frequente de poemas para vários autores: o medo. É o que
lemos em FALA SOBRE O MEDO: “O medo medra/ no meu jardim./ Tem as folhas afiadas/ para
seu mister/ carnívoro./ O medo luta/ com as plantas/ do meu jardim./ As mais tenras/ ele rói/
feito bicho-gafanhoto./ As flores/ ele mastiga/ nas aspas/ dos porcos dentes./O medo ameaça
tudo./ As raízes/ folhas, flores/ os pistilos/ caules, galhos/ que plantei/ reguei, tratei/ com
armas de operário./ O medo medra/ no meu jardim./ Em luta/ comigo mesmo/ eu sei/ ele é o
joio/ crescendo em mim.” (p. 58).
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Esse poema, de 1974, é atinente ao acentuado pânico que toma conta de todos os
cidadãos brasileiros diante da perseguição oficial e oficiosa, as quais recrudescem a cargo dos
órgãos de segurança nacional e dos grupos paramilitares, contra os opositores do governo de
exceção.
“Fala sobre o medo” trata do receio generalizado, entre os brasileiros que viveram a
ditadura militar de 1964, de haver até entre os mais íntimos, informantes dos órgãos de
segurança encarregados de detectar “ações subversivas”, segundo o entender das autoridades
militares e policiais contrárias ao regime de força. Daí os versos em medida curta e irregular,
mas com o ritmo (ou arritmia) de quem se sente perseguido na própria casa. Pode haver algo
mais assustador do que um espião delator no jardim de uma residência? Pode haver algo mais
terrífico do que uma planta carnívora disposta a deglutir o espionado? A intensificação do
medo vai se dando progressivamente, através da repetição da palavra que o designa, ideia
disseminada por todo o poema, concluído com o símile do joio bíblico que deve ser arrancado
da boa seara. O poema de Pontes nos oferece uma noção do clima de terror vivido durante os
anos cinzentos da última ditadura ocorrida no Brasil.
Façamos agora a leitura de EXORTAÇÃO: “Se não te derem trabalho/ procura bem
depressa o sindicato/ ou funda um./ E, se te faltar a comida,/ planta à força mil sementes/ em
chão que não o teu/ para teres o alimento./ Se te faltar a morada/ vai três dias ao relento/ que
então vem a consciência./ Se não te derem ouvidos/ une-te a companheiros./ Faz um partido
na luta./ Se não te derem o medo/ mune-te de palavras/ e ensina aos outros./ Se não te derem a
morte/ faz desta Pátria/ um vasto paraíso./ E, ao não te sobrar mais nada,/ pressentindo ter-se
ido/ a LIBERDADE/ arranca a primeira pedra da calçada/ e luta/ pela única razão que vale a
pena.”(p. 73).
Esse poema é de 1978, marco temporal que assinala a conjuntura de articulação do
Partido dos Trabalhadores – PT, do qual Pontes foi fundador no histórico ato de instituição
em São Paulo, tendo depois se encarregado com outros militantes, de implantá-lo no seu
estado de origem, o Ceará. Assim, Pontes demonstra a mesma concepção de militância
literária de Pablo Neruda, José Gomes Ferreira, Bertolt Brecht, Maiakovski, Thiago de Mello,
Ferreira Gullar, e dos demais poetas citados nas páginas de abertura deste artigo.
Em novembro de 1979, caía um dos sustentáculos principais da ditadura estamental
militar: o bipartidarismo. Logo estaria aprovada uma reforma partidária que dava lugar ao
PMDB, criado a partir do antigo MDB; ao PDS, formado pelos ex-integrantes da ARENA; ao
PTB de Leonel Brizola – que fundou o PDT depois de perder a sigla na Justiça para a ex-
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deputada Ivete Vargas – e ao PT. Pontes, a exemplo de Maiakovski na U.R.S.S., se desiludiu


com o rumo tomado pelo partido que ajudara a fundar, porém isso não tira a importância do
poema que escreveu por ocasião de seu envolvimento com o trabalho articulatório da nova
agremiação que, pelo quadro esboçado, parecia ser a alternativa para dias melhores no país.
O poema nasceu didático e circunstancial, entretanto não padece desses limites que,
em alguns casos, prejudicam a atualidade do texto. “Exortação” se reveste do tom que Brecht
empresta a seus versos. Objetiva didaticamente a conscientização de convicções político-
ideológicas. É importante notar o uso anafórico da conjunção “Se”, sempre complementada
por um imperativo pedagógico, indicador dos instrumentos de luta dos trabalhadores.
Primeiro, o sindicato, a fim de haver solução para carências imediatas. A seguir, a criação de
um partido para intervir na esfera decisiva do poder. Depois, e tudo falhando, que seja feita a
arregimentação geral através da conscientização. Por fim, suprimida mais uma vez a
LIBERDADE, o eu poético sugere algo que lembra o suplício de Sísifo: novamente a luta
“pela única razão que vale a pena”.
Façamos agora a leitura de ANISTIA: “A-nis-ti-a !/ Para pôr fim à delação./ A-nis-ti-a !/
Para cessar a noite negra./ A-nis-ti-a !/ Para alcançar frutos de paz./ A-nis-ti-a !/ Para livrar os
oprimidos./ A-nis-ti-a !/ Para entender os condenados./ A-nis-ti-a !/ Para aplacar os
descontentes./ A-nis-ti-a !/ Para sustar vingança e ódio./ A-nis-ti-a !/ Para louvar os nossos
mortos./ A-nis-ti-a !/ Para embalar os torturados./ A-nis-ti-a !/ Para voltar o exilado./ A-nis-ti-
a!/ Para a memória dos sumidos./ A-nis-ti-a !/ Para cessar a hipocrisia./ A-nis-ti-a !/ Porém:
ampla, geral e irrestrita!” (p. 74).
De 1979, esse poema foi dito na Praça José de Alencar, Fortaleza, em comício do
Movimento Feminino pela Anistia. Dedicado ao jornalista de O Globo, Luiz F. Papi, poeta,
autor do livro Arado Branco, apreendido pelos órgãos de repressão do Rio de Janeiro, sem
jamais ter sido devolvido ao seu autor.
O poema se estrutura consoante a técnica de composição da poesia primitiva cristã, a
da sua hinologia. As repetições, nessa modalidade poética religiosa, têm por fim levar os fiéis
participantes da liturgia a se irmanar em torno dos conteúdos cantados. No caso de “Anistia”,
não há suporte melódico. Sua sonoridade é obtida pela repetição, da mesma forma que seu
ritmo acontece guiado por quem o puxa. O ritmo silabado e exclamativo da palavra “A-nis-ti-
a!” confere à interpretação certo andamento, tom e timbre, logo seguidos intercaladamente
pelo verso que é palavra de ordem.
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Eis aí um poema de interveniência direta, escrito para um ato público, que continua a
causar grande impacto no ânimo dos ouvintes quando dito por grupos de poesia que o
interpretam. E como não poderia deixar de ser, “Anistia” é antes de tudo denotativo, pois
assim exigia a hora de sua gênese.
Vale registrar que Roberto Pontes é um dos anistiados, dentre tantos, que lutaram e
esperaram pela conquista desse estatuto legal necessário à consolidação do Estado de direito
no Brasil.
Dito isto, passemos a mais um poema, INCITAÇÃO À VERDADE: “Companheiro, põe
algo maior em tua vida./ Contorna a cordilheira de perigos/ e o vulcão de míseros desejos./
Não deixa a saudade te curvar/ nem tomba nas menores das fraquezas.// Há que pensar e,
sobretudo,/ na estrela dentro da estrela/ ou na frágil luz da vela/ que a luzir treme e resiste.//
Companheiro, se puseres/ algo assim em tua vida/ não valerá a tormenta/ a pele será couraça/
e os acenos fraternos/ virão dos braços dos campos/ dos que voam sem ter asas/ dos que
pescam pelos mares.” (p. 83).
Esse e mais sete poemas “transbordaram” nos meses de maio e junho de 1983. Em
maio Pontes conheceu o poeta Thiago de Mello, fato que influiu na feitura dos poemas
(PONTES, 1996, p. 107). O verbo transbordar, assim flexionado, consta de outro livro do
mesmo autor, onde lemos:

O termo transbordamento aqui se emprega para exprimir a eclosão das


percepções acumuladas no ânimo do poeta. Contrapõe-se ao conceito assente
de inspiração, termo este vago, pouco científico, não convindo seu emprego
num trabalho técnico. Já transbordamento contém em si a ideia de acúmulo
e arrebentação de experiências sensíveis, parecendo assim mais adequado
para designar o fenômeno da criação em ambas essas fases. Portanto, usa-se
o termo aqui como o fez Pablo Neruda, que, considerando o esplendor do
idioma espanhol, aurífero após Cervantes, atribuiu tal fato a um manancial
poético anterior que “tinha que ver com o homem inteiro, com sua grandeza,
sua riqueza e seu transbordamento”. (PONTES, 1999, p. 24-25)

“Incitação à verdade” se compõe de três estrofes. A primeira exprime um


chamamento aos militantes engajados na luta contra a ditadura de 1964 para manterem
sempre o objetivo maior na vida, a determinação ideológica e utópica de restaurar o estado
democrático e marchar em direção a uma sociedade justa, apesar dos percalços do caminho.
A segunda põe o destinatário diante de dois símbolos: a estrela, que tem significado
emblemático para a esquerda política mundial, e a luz da vela que, embora frágil, resiste, tal
qual a firmeza ideológica calcada no desejo de Liberdade.
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A terceira, conclusiva, assume tom e ritmo tranquilos, repassando um conselho amigo


capaz de retemperar a firmeza ideológica de propósitos dos militantes na luta contra a
opressão política, cuja recompensa virá dos “acenos fraternos” advindos das mãos imaginárias
dos trabalhadores e heróis tombados na luta contra a opressão.
Outro poema selecionado para exame neste artigo, dedicado a Thiago de Mello, é
POEMA DE ADESÃO: “Visto-me agora de branco/ pois atendi ao chamado/ do poeta que
escreveu/ “A canção do amor armado”.// Busquei a roupa mais alva/ e na mão, da mesma
cor,/ sustento a rosa da espera/ com a certeza de flor.// Busquei o pano que é feito/ com o suor
do tecelão/ com a dor da bordadeira/ e a fome do artesão.// Aceitei à luz do dia/ o claro do
alvaiade/ porque as vozes da paz/ são fogo que nos invade.// Mas a paz não é jazigo/ nem
tampouco calmaria./ É muito mais a certeza/ da vitória certo dia.// É muito mais a esperança/
de uma vida em comunhão/ onde a estrela sempre brilha/ e o irmão ajuda o irmão.// Busquei
a bata mais clara/ e o seu timbre de cantor./ Mantenhamos, companheiro,/ a nossa crença na
flor.// E vou agora de branco/ a escandir nosso brado/ que é jamais olvidar/ “A canção do
amor armado”. (p. 87).
Esses versos “transbordaram” entre maio e junho de 1983 e celebram a opção que o
poeta caboclo, amazonense de Barreirinha, fez pelo traje branco símbolo da Paz. E teria
Pontes de chamar inevitavelmente, a este “Poema de adesão”, personagens populares como o
tecelão, a bordadeira, o artesão, além de símbolos como a rosa branca e a estrela, e ideias a
exemplo das contidas em palavras como certeza, fogo, vitória, comunhão, inclusive, as de
solidariedade e participação implícitas em versos como “e o irmão ajuda o irmão” e “A
canção do amor armado”. Este último sintagma é título de um dos livros mais conhecidos de
Thiago de Mello, que sobre Roberto Pontes escreveu: “poeta que reparte o seu canto com o
povo, porque sabe que o povo precisa de pão e poesia”2.
“Poema de adesão” revela a sintonia não apenas poética, mas igualmente política, na
produção e na ação de ambos esses poetas comprometidos com o destino de seu povo e da
humanidade. A homenagem prestada é mais do que justa porque Thiago de Mello soube como
ninguém instituir poeticamente “Os estatutos do homem”3.
E, para terminar, façamos a leitura de QUANDO O VENENO, ofertado laconicamente a
Moacyr Félix, por ser ele o prefaciador de Verbo encarnado, outro poeta tão comprometido

2
Autógrafo oferecido a Roberto Pontes no ano de 2001, por Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto e
A canção do amor armado.
3
Este poema de Thiago de Mello foi estudado detalhadamente pela Dra. Cássia Maria Bezerra do Nascimento,
da UFAM, na sua tese de doutoramento intitulada “A complexidade nos Estatutos do Homem Thiago de Mello”,
em 312 páginas. O texto, de 2014, está disponível no Banco de Teses da CAPES.
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com a Liberdade quanto Thiago de Mello:“Se não tens dignidade/ tu serves a qualquer
um./Tanto faz que seja ao néscio/ quanto ao fero ditador./ Tanto faz que seja ao próprio/ ou
qualquer de seus vassalos/ pois há mil formas distintas/ de vender e de comprar./ Em todas
vem o veneno/ com seus destilos mortais.// Quando o veneno é poder/ então ele é servido/ em
bandejas de ouro e prata./ Assim se disfarça o mal/ que vai ganhando as entranhas.// E é
sabido que o poder/ infeta somente a quem/ numa vaidade consente.// Mas a ter dignidade/ se
se tem roteiro certo/ não haverá concessão/ pois o longe é sempre longe/ e distingue bem
miragens.// A salvação não virá/ para quem servir negando/ as forças do temporal/ e o céu que
cobre o mundo./ Quando o veneno restar/ um dia subvertido/ serão bandejas de barro/cozidas
por mão de homem/ que servirão a verdade/ pra desespero do mal!// Aí, se não tens
dignidade,/ por favor, recolhe a mão!” (p. 89).
Félix foi um intelectual sério, poeta dos melhores, militante de esquerda, editor de
revistas da Editora Civilização Brasileira, sem as quais não se poderia hoje contar a história
das ideias no Brasil contemporâneo. Foi preso e torturado durante o regime militar.
Juntamente com Ênio Silveira desempenhou papel relevante ao lado de outros intelectuais que
se opuseram ao regime ditatorial alçado ao poder após a deposição de João Goulart. Moacyr
Félix foi poeta de intensa participação no período de que ora tratamos. Teve poemas
publicados nos Cadernos do Povo Brasileiro e publicou livros de títulos significativos como
Canção do exílio aqui (FÉLIX: 1977), Invenção de crença e descrença (FÉLIX: 1978) e Em
nome da vida (FÉLIX: 1981).
No “Prefácio” a Verbo encarnado escreveu o seguinte:

Roberto Pontes está convencido de que a fala insubmissa do poeta não deve
ser concebida “apenas como resistência” e sim “muito mais como incitação
das consciências”. E a partir dessas ideias estrutura neste livro uma
verdadeira lição do que deve ser verdadeiramente uma poética. (FÉLIX,
1996, p. 11-13)

O motivo do poema é a dignidade, que durante a ditadura de 1964 foi fruta rara, a não
ser entre os oprimidos, excetuados os delatores. Moacyr Félix, já falecido, permanece
exemplo vivo de homem digno. E o poema de Pontes é enfático: “Mas a ter dignidade/ se se
tem roteiro certo/ não haverá concessão/ pois o longe é sempre longe/ e distingue bem
miragens”. Outra vez a poesia do autor de Verbo encarnado aspira à integridade de caráter, à
persistência no propósito de vencer a opressão política em seu país.
Nos versos finais desse poema, o eu poético entrevê metaforicamente a derrocada do
poder ditatorial e a ascensão de outra condução política da sociedade. E no momento da
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mudança decisiva, adverte com desprezo: “Aí, se não tens dignidade,/ por favor, recolhe a
mão!”.
A leitura de Verbo encarnado repercutiu além-fronteiras, como se depreende do
seguinte trecho de Norma Pérez Martín, crítica e professora da Universidade de Buenos Aires,
que anseia pela divulgação universal do livro:

Un libro como este merece cruzar por todos los rincones del mundo. Ojalá
cada hombre, cada mujer leam estas páginas y dia a dia la humanidade
aprenda a ser más justa, más solidaria, más pacífica. La responsabilidad es
de todos. El poeta lanza la llamarada de su canto como una antorcha de
esperanza¡ Adelante Poeta!(MARTÍN, 2010, p. 106)

Conclusão

No presente artigo procedeu-se ao estudo da poesia insubmissa de Roberto Pontes,


poeta da Geração 60 brasileira do século XX. A abordagem se fez de forma a mostrar que
seus versos foram usados como arma para restabelecer a ordem democrática no Brasil, ao lado
dos de outros poetas da sua e de outras gerações, que fizeram uso da palavra poética no
combate à ditadura imposta aos brasileiros no negro período político-social iniciado com o
golpe militar de 1º de abril de 1964, mantida pela força até 1985. A opção feita pela poesia de
Pontes é plenamente justificada por estarem seu nome e sua obra referenciados na
Enciclopédia da literatura brasileira organizada por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa
(2001); na História da literatura brasileira de Luciana Stegagno Picchio (1995 e 2005); na
História da literatura brasileira de Carlos Nejar (2011), e ainda porque seus poemas estão
incluídos em mais de vinte antologias importantes, nacionais e internacionais, a exemplo de
Sincretismo: a poesia da Geração 60 organizada por Pedro Lyra (1995), A poesia cearense
do século XX organizada por Assis Brasil (1996), Antología Primer Festival Internacional de
poesia de El Salvador organizada por Federico Hernández Aguilar (2002); e Roteiro da
poesia brasileira: anos 60 organizado por Pedro Lyra (2011).
A significância do estudo da obra do autor foi assinalada por Fernanda Diniz no texto
recente de sua dissertação de mestrado, no qual observa:

A trajetória de Roberto Pontes, enquanto poeta e pesquisador, bem como a


presença de seu nome como representante da Literatura Brasileira em obras
nacionais e internacionais, mostram a importância do autor para o contexto
artístico do nosso País. (DINIZ, 2013, p. 95)
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E o acolhimento de sua obra vai chegando, a cada dia, de lugares os mais inesperados,
por exemplo, Divinópolis-MG, de onde Pedro Pires Bessa em artigo recentíssimo nos
assevera:

Uma das principais características da alta poesia brasileira contemporânea é


estar espalhada por todo o território nacional, conforme Fábio Lucas e
Marco Luchesi. Um dos exemplos desse fenômeno é Roberto Pontes, que, de
Fortaleza, Ceará, é um dos mais brilhantes poetas brasileiros da atualidade.
(...) Os surpreendentes poemas de Pontes são cada qual um punhal poético
mais afiado que o outro a penetrar profundamente na nossa alma. (BESSA,
2013, p.2)

Ao fim deste artigo, esperamos ter aclarado a dialética geradora da literatura


inventiva/interventiva ocorrida a partir da relação entre sociedade e poesia, no caso, a de
quem tomou parte ativa no combate político e poético às atrocidades cometidas durante os
iníquos “anos de chumbo” pelos agentes e comandantes do todo poderoso regime de exceção
de 1964. Roberto Pontes é daqueles que, se quisesse, poderia afirmar de sua obra e de sua
ação, o mesmo que o romântico Alphonse de Lamartine (1790-1869) disse de si: “Eu sou da
cor daqueles que são perseguidos”.
As minúcias informativas trazidas a este artigo são cabíveis no tipo de leitura feita,
pois ao percorrermos as páginas de Verbo encarnado é inevitável a sensação de estarmos
diante de um roteiro através do qual se representa, em poesia insubmissa, o gráfico oscilatório
de um tempo de opressão ocorrido, infelizmente, no Brasil, durante os chamados “anos de
chumbo”.

Referências

AGUILAR, Federico Hernandez (Org.). Antología primer Festival Internacional de Poesía de


El Salvador. Consejo Nacional para La Cultura y El Arte – CONCULTURA, 2002.
BESSA, Pedro Pires. “Roberto Pontes”, Agora, O Diário de Divinópolis, Divinópolis-MG,
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DINIZ, Fernanda. A presença de Eros em Memória corporal, de Roberto Pontes. In: DINIZ,
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O CARÁTER DE DUPLICIDADE DO SUJEITO LÍRICO NO POEMA


“O VELHO DO ESPELHO”

Laura Regina Mangueira Barros


UFPB

Proposição

O presente artigo faz um estudo analítico do soneto “O velho do espelho”, de Mário


Quintana (2005)1, com base na Teoria dos Gêneros, exposta por Anatol Rosenfeld (1997)2. O
objetivo primordial do trabalho é direcionado à análise do caráter de duplicidade do eu-lírico,
que tem o espelho como signo indicador e representativo na construção desse processo.
A teoria clássica determina ser do gênero lírico todo texto que expresse os sentimentos
de uma voz central, eu-lírico, exprimindo um estado de alma essencialmente emotivo; à
musicalidade é dada grande importância, fazendo-se o uso de palavras ritmadas; o tempo é
estático, “eternizando-se” o momento presente, e o personagem, quando citado, é apenas
nomeado para justificar a manifestação dos seus sentimentos.
Com base nesses princípios, o soneto fica caracterizado como tendo conteúdo lírico.

Justificativa

A poesia de Mário Quintana, especificamente o poema em estudo, merece especial


atenção pela sutileza com que retrata o estado de alma do eu-lírico e por ser um dos contos
mais interessantes e instigantes da obra do autor. Possui características peculiares que nos
levam a reflexões sobre os principais conflitos, problemas e alternâncias do ser humano, além
de demonstrar detalhadamente questões da natureza humana para diferenciar a inter-relação
entre alteridade e identidade, numa atmosfera negativa e desiludida.
Vale ressaltar a pertinência e a recorrência de diferentes situações e elementos
constitutivos dentro do poema, que nos levam a perceber esse caráter de duplicidade do eu-
lírico associado ao espelho, elemento maior de representação e ligação, e que permite
pressupor de forma crítica o reconhecimento da voz lírica na imagem especular, vista por ele

1
QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p.410.
2
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos Gêneros. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997, p.p. 15-24.
(Debates, 193).
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próprio. Sendo assim, o reflexo imprime na imagem refletida o “eu” que se tornará o “outro”
que olha para o “eu”. A identidade do sujeito, portanto, depende da total visão que vem de
fora do espelho.
A escolha da base teórica deve-se ao fato de apresentar conceitos relevantes que
elucidam a compreensão do poema; e o objetivo principal proposto neste trabalho contribui
para esclarecer de que forma o espelho associa-se ao funcionamento da duplicidade eu/outro
dentro do poema.
O espelho serve como um canal, um meio material que permite a passagem da
informação e fornece um caráter ilusório do duplo; as imagens do espelho reafirmam
provisoriamente uma identidade imaginária, porque permite que vejamos a nós próprios em
outros seres; o que ocorre no poema.
Com base nesses princípios, o eu- lírico fica devidamente caracterizado como tendo
um perfil de duplicidade em que a “alma exterior” absorve a “alma interior” e o sujeito não se
reconhece em “si mesmo” no seu estado de alma.
A categoria analítica escolhida é recorrente dentro do poema e fornece subsídios para
ser analisada, à medida que trata do estado de alma do eu-lírico, portanto, justifica-se a sua
escolha.

Análise crítica

Apresentação do poema

O poema a ser analisado está no livro Poesia Completa (2005). Eis o poema de Mário
Quintana:

“O VELHO DO ESPELHO”

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse


Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“o que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
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Mas, sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! -


Vi sorrir, nesses cansados olhos um orgulho triste...
Análise Textual

Conforme Anatol Rosenfeld (1997, p. 17), o gênero lírico tem como pressupostos
básicos o eu-lírico, voz central dentro de um poema breve, que expressar seus sentimentos e
seu próprio estado de alma, essencialmente emotivo, e o traduz por meio de um discurso
ritmado; o tempo deve ser estático; o momento presente deve “eternizar-se”; o personagem
pode ser recordado para justificar seus sentimentos; a intensidade expressiva deve ser extrema
e subjetiva; o mundo objetivo é inexistente; a alma que canta funde-se com o mundo
subjetivo, evocado e nomeado, para com maior força exprimir sentimentos de um estado
interior e de um caráter imediato da voz lírica. Diz Rosenfeld:

“Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele


não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz
central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de
alma.” (ROSENFELD, 1997: 17).

Observa-se, na citação acima, que o teórico quer demonstrar a grande importância de


se expressar o estado de alma do eu-lírico, em poemas breves, como um canal para promover
a dependência da voz lírica em relação às intensas emoções de subjetividade que exprime e
que permite, no momento em que a “alma exterior’ absorve a “alma interior”, a busca da sua
própria identidade.
Vejamos agora a possibilidade de aplicação dos pressupostos no poema a ser
analisado:

“Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse” (QUINTANA, 2005:


410).

Percebe-se, já no primeiro verso, o estado de alma do eu-lírico a partir do seu


questionamento inesperado, no momento em que se reconhece na imagem especular e
constata ali um rosto desconhecido; demonstra através da expressão surpreendo-me, o
estranhamento do eu-lírico ao reconhecer-se numa identidade imaginária através do espelho.
O verbo surpreender é usado na voz presente, que indica a ausência de distância, geralmente
associada ao pretérito, e permanece à margem do fluir do tempo, como um momento
inalterável, como presença intemporal. O Eu não diz surpreendi-me; isso daria à recordação
uma característica narrativa do tipo: há certo tempo recordei-me isto ou aquilo. Usando o
verbo no presente, ele individualiza o sujeito e o coloca no tempo, por isso, também no
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espaço. A manifestação verbal “imediata” de uma emoção ou de um sentimento é o ponto de


partida da Lírica. Vejamos como o Rosenfeld dispõe essa teorização:

“Este caráter do imediato, que se manifesta na voz do presente, não é,


porém, o de uma atualidade que se processa e distende através do tempo
(como na Dramática) mas de um momento eterno” (ROSENFELD, 1997:
23).

O caráter “imediato” do poema lírico, acima citado, projeta a impressão de plasmação


imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo subjetivo. Portanto,
percebe-se claramente, no questionamento da voz lírica do poema em questão, a manifestação
de dúvida e não reconhecimento de sua própria identidade, além de adicionar a ideia da
duplicidade do eu/outro em conformidade com as duplicidades velhice/juventude,
experiência/imaturidade. Podemos identificar esses pontos marcantes do lirismo no segundo
verso do poema de Mário Quintana. Vejamos:

“Que me olha e é tão mais velho do que eu?” (QUINTANA, 2005: 410).

O que o verso nos revela é que existe um caráter de duplicidade do Eu, que tem o
espelho como signo indicador e representativo na construção da sua identidade, associada à
construção sintática do verso, que é ritmado e sonoro, portanto, nos lembra a célebre frase de
um famoso conto de fadas: Existe alguém no mundo, mais bela do que eu? Dessa forma,
reforça a ideia de “diálogo” com o espelho, através de um questionamento subjetivo e do
caráter de duplicidade entre o eu/outro, também em conformidade com o caráter duplo do
belo/feio, do real/irreal.
Essa teorização é disposta da seguinte forma por Anatol Rosenfeld:

“À intensidade expressiva, à concentração e ao caráter “imediato” do poema


lírico, associa-se, como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da
musicalidade das palavras e dos versos. De tal modo se realça o valor da
aura conotativa do verbo que este muitas vezes chega a ter uma função mais
sonora que lógico-denotativa”. (ROSENFELD, 1997: 23).

Os elementos constitutivos de um poema lírico, colocados na citação, evidenciam a


expressão de emoções e disposições psíquicas, sentimentos subjetivos, visões, concepções e
reflexões que devem ser vividas e experimentadas intensamente pelo eu-lírico, e é através
desses elementos que a voz poética construirá o processo de inter-relação entre alteridade e
identidade. Portanto, se estabelece um diálogo entre a teoria e os versos que se seguem.
Vejamos como essa colocação será aplicada:
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“Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...


Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!” (QUINTANA, 2005: 410).

Outra marca que denota a contração dos ascendentes numa só imagem é o verbo
parecer, também usado na voz presente para enfatizar algo que é permanente, não é passado,
bem como demonstrar na voz lírica um sentimento de dúvida sobre a própria imagem
especular; evidencia cada vez mais o seu caráter de duplicidade, em que o “eu” se tornará o
“outro” que olha para o “eu”, no momento do encontro imaginário com o velho pai que já
morreu, agora fundido no seu próprio perfil e que está, também, associado com a duplicidade
morte/vida, negativo/positivo. Dessa forma, a identidade do sujeito dependerá da total visão
que vem de fora do espelho.
A junção do Eu com o mundo subjetivo é muito bem teorizado por Rosenfeld, que diz:

“Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância
entre sujeito e objeto. (ROSENFELD, 1997: 23).

A teoria reforça que o mundo objetivo é subordinado às intensas emoções da


subjetividade que se exprime, tornando-se inexistente a partir do momento em que os traços
líricos se salientarem, e a voz lírica expressar um estado interior de alma e não se constituir
em um mundo à parte. Assim, percebemos nos versos que se seguem do poema de Mário
Quintana, várias evidências que comprovam essas colocações. São assim apresentadas:

“Como pude ficarmos assim?


Nosso olhar – duro – interroga:
“o que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste” (QUINTANA, 2005: 410).

No primeiro verso percebe-se a proposital discordância entre o sujeito na primeira


pessoa do singular e o verbo ficar, conjugado na primeira pessoa do plural, assim como o uso
do pronome possessivo “nosso”, para demonstrar a contração dos sujeitos numa só imagem.
No terceiro e quarto versos, vê-se uma pergunta e/ou exclamação dirigida de pai para filho ou
vice e versa. Isso descreve o comportamento duplo do Eu, em que um “Tu” pergunta e
responde a “si mesmo” diante do espelho. Eles se contrapõem e se complementam ao mesmo
tempo. Deve-se aqui mostrar que no poema os elementos pai e filho não se configuram como
personagens, pois é apenas expressão de um estado emocional e não a narração de um
acontecimento.
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Segundo Rosenfeld, esses elementos são apenas evocados. Vejamos como são
apresentados teoricamente:

“... a bem-amada, recordada pelo Eu-lírico, não se constituirá em


personagem nítida de quem se narrem ações e enredos; será apenas nomeada
para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central”.
(ROSENFELD, 1997: 23).

Cabe aqui comentar, que o gênero lírico acima definido, é o mais subjetivo, pois no
poema lírico a voz central deve exprimir o estado de alma e traduzi-lo subjetivamente por
meio de orações, sem que se interponham eventos distendidos no tempo, e a extrema
intensidade expressiva dos sentimentos e emoções da voz central deve prevalecer como traço
estilístico fundamental. Nos versos seguintes do poema de Mário Quintana, podemos ver
como esse traço se configura.

“Lentamente, ruga a ruga... Que importa? Eu sou, ainda,


Aquele mesmo menino teimoso de sempre”. (QUINTANA, 2005: 410).

No primeiro verso, a memória lírica do Eu demonstra sua resignação e o seu


reconhecimento subjetivo diante do seu conflito existencial, através das expressões Que
importa? e Eu sou ainda, para só então exprimir, no segundo verso, seus sentimentos de
pureza, ternura, simplicidade, saudade, admiração e nostalgia da infância; associado à
duplicidade eu/outro e representado, também, pelo caráter duplo do menino/homem e do
presente/passado, os versos acima demonstram características específicas que nos revelam os
principais conflitos, problemas e alternâncias do ser humano, bem como as questões da
natureza humana.
Citando a teoria de Anatol Rosenfeld, vejamos como essas características se
apresentam:

“Ao contrário, o mundo, a natureza, os deuses, são apenas evocados e


nomeados para, com maior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegria
da alma que canta”. (ROSENFELD, 1997: 23).

O que Anatol teoriza é para reforça a tendência natural do gênero lírico de expressar
sentimentos subjetivos e nos levar a reflexões detalhadas sobre as questões da natureza
humana, quase sempre numa atmosfera negativa e desiludida, em que as intensas emoções e
os sentimentos de um estado interior são recorrentes em diferentes situações.
Tal relevância é pertinente e remete para o poema de Mário Quintana, pois tais
características se assemelham. Vejamos:
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“E os teus planos enfim lá se foram por terra.


Mas, sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos um orgulho triste...” (QUINTANA, 2005:
410).

Os versos revelam como o universo subjetivo do Eu se torna expressão de um


complexo estado interior melancólico, dependente das intensas emoções intrínsecas à
subjetividade que se exprime; fornece as (re) descobertas através da imagem especular - meio
material que descreve a identidade imaginária e o caráter ilusório eu/outro - em contraposição
com a duplicidade tristeza/alegria, que expressa um conceito positivo e deixa subentendido
outro, negativo.

Considerações finais

Diante do exposto, fica evidenciado que a escolha da base teórica merece atenção por
fornecer recorrentes e pertinentes situações que remetem para a compreensão do poema e para
as reflexões sobre os principais conflitos e questões da natureza humana.
Em compensação, a Lírica revela elementos específicos e peculiares para atingir o
objetivo proposto neste trabalho, porque demonstra o caráter duplo do eu-lírico, associado
diretamente ao espelho – meio material e representativo, que reafirma provisoriamente a
identidade especular e imaginária da voz lírica.
O Eu, dentro do poema, ganha sua importância a partir do momento em que expressa
todo seu estado de alma interior e emotivo, disposições psíquicas, sentimentos subjetivos e
não se constitui em um mundo à parte; em outro momento é dado grande destaque a vários
outros elementos constitutivos do poema lírico, como: à musicalidade, o tempo estático e aos
personagens, citados e nomeados, apenas, para justificar a manifestação dos sentimentos do
eu-lírico.
Outros elementos contraditórios e complementares como velhice/juventude,
experiência/imaturidade, belo/feio, real/irreal, morte/vida, negativo/positivo, menino/homem,
presente/passado, tristeza/alegria, aparecem em conformidade com o caráter do duplo da voz
poética; ajudam a demonstrar como a duplicidade eu/outro se configura nesse processo e
diferenciam, numa atmosfera desiludida e negativa, a inter-relação entre alteridade e
identidade existente no ser humano.

Referências
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
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QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p.410.
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos Gêneros. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1997, p.p. 15-24. (Debates, 193).
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UMA LEITURA MEMORIALISTICA DO POEMA MATER, DE DA COSTA E SILVA

Daíse Cardoso1

Introdução

A poética de Da Costa e Silva, é marcada, visivelmente, pelo registro das


reminiscências dos momentos vividos na infância, entre outras lembranças, o que possibilita
uma análise pelo viés da memória, tendo em vista que é possível averiguar a relação entre o
discurso ficcional da literatura e a realidade vivida pelo autor. A poesia e a memória
evidenciam o dialogo entre um tempo que se presentifica por intermédio do discurso
subjetivo. Memória que não se reduz à rememoração fiel e cronológica, mas sim, a que está
ligada a um tempo poético.
O poema “Mater”, texto que nos propomos a realizar a analise, é composto por dois
sonetos e, é recorrente a representação da figura da mãe, sempre como uma mulher de grande
afeto e de práticas religiosas. Há um jogo entre a saudade e a memória. O sujeito lírico busca
reter o tempo passado por intermédio dos registros escritos, evocando o comportamento do
ser materno com saudosismo e, não obstante, com traços de melancolia e suave tristeza.
Esses aspectos são perceptíveis não somente pelo encadeamento – relação semântica –
das palavras, mas pela própria estrutura do poema, a exemplo da construção do ritmo poético,
fato que nos auxilia na compreensão do intercambio entre memória e poesia. Partindo dessas
ideias, o presente trabalho objetiva analisar a relação entre os registros memorialistas e a
escrita poética. Almeja-se também compreender a representação da figura da mãe na
construção do discurso poético e, por fim, verificar os elementos estruturais que compõe a
tessitura do poema.
Diante desse contexto, seguiremos o percurso metodológico de análise baseado nos
pressupostos teóricos de estudiosos como Maurice Halbwachs (1990), que nos apresenta o
conceito de memória individual, seguido do pesquisador Paulo Britto (2000) que delineia seu
estudo sobre memória e poesia. Outro nome de destaque em nossa pesquisa é Jaques Le Goff
(2012), que como historiador nos faz um panorama da memória na civilização, principalmente
após o surgimento da escrita. Alfredo Bosi (2000), Antonio Candido (2006), Octávio Paz

1
Mestrando em Letras pela UESPI – daiseoliveira@hotmail.com
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(2012) e outros servirão de base para nossa analise estrutural do poema, nos oferecendo
subsídios para alcançarmos os objetivos propostos.

Intersecções entre Memória e Poesia

Não raro, encontramos nos escritos de poetas referencia à memória, seja enaltecendo-
a, maldizendo-a, ou até mesmo buscando, em uma tentativa lírica, defini-la. A poesia insere-
se no terreno da memória, revela, através dos versos, a relação intrínseca entre o sujeito lírico
e suas reminiscências do tempo passado. Tempo este não necessariamente ligado ao chronos,
mas sim em relação ao:

[...] tempo da memória, do tempo do esquecimento, do tempo da finitude, do


tempo do tédio, do tempo do humano, do tempo poético, do tempo
ontológico, do tempo autodialógico. Todas as dimensões temporais que não
se ajustam a medida de nenhuma ordem. (GUIDA, 2013, p. 35).

A poesia e a memória evidenciam esse dialogo entre um tempo que se presentifica por
intermédio do discurso subjetivo. Memória que não se reduz à rememoração fiel e
cronológica. Assim, como destacamos na citação anterior, se configura como um mecanismo
que dá suporte à criação, à imaginação, ou seja, a uma memória poética. O eu lírico se deixa
influenciar no presente pelos acontecimentos do passado. Nesse entremeio, a memória se
torna a responsável por selecionar aquilo que considera relevante e organizar de maneira
lógico-coerente.
Le Goff (2004, p. 423) define a memória como uma “propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
como passadas”. Esse jogo entre conserva e atualização de informações é responsável pelas
reminiscências do passado. Evocações do tempo vivido, ou até mesmo, como o próprio
historiador destaca, que se considera como passado.
Segundo o poeta Álvaro Pacheco (2001, p. 70):

A memória
...é um prólogo - um mastro solitário
esperando a bandeira e o vento
para as solenidades que passaram,
um processo elaborado do sono
no início de sua gestação, o começo
e também o fim do registro, mesmo
que não se percebam estes caminhos.
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Esse prólogo permite uma leitura pela via do tempo poético, descompromissado com a
linearidade, mas que mantém uma forte relação com o vivido, ou seja, com as lembranças que
pouco a pouco alcançam o reservatório da memória individual. Essa definida por Halbwachs
(1990, p. 42) como um ponto de vista das reminiscências vividas por um determinado grupo
social, tendo em vista que, “uma parte de nossas lembranças não se adaptaria a nenhuma
memória coletiva” e, não seria capaz de explicar todas as nossas lembranças. Assim, o
registro poético memorialístico assume a função de tornar permanentes os acontecimentos do
tempo pretérito.
Rever e relatar o que passou surge como uma a luta contra o esquecimento. As
narrativas, sejam elas orais ou escritas, atuam como forte mecanismo de representação das
lembranças. Porém, essas recordações podem ser representadas por intermédio de múltiplas
facetas e em diversas áreas, não somente pela história – bem como, estamos habituados a
pensar. Nesse sentido, a Literatura, aqui, entendida de maneira objetiva e sem minúcias, como
a arte da palavra, contempla os aspectos memorialísticos e nos permite um diálogo com a
memória.
A poesia, como parte integrante da literatura, de igual modo, também possibilita uma
leitura pelo viés memorialístico, uma vez que, desempenha um caráter natural da linguagem
por intermédio da forma poética. Apresenta marcas singulares na escolha vocabular,
organização frasal, estilo e outros aspectos. Estratos inerentes ao fazer poético, que nos
auxiliam na construção de sentido do texto escrito, aqui, em especial, referente à poesia.
A relação entre memória e poesia se mostra possível desde a Grécia períodos antes de
Cristo. Simônides de Céos, que “estava próximo de memória mítica e poética, compondo
contos de elogios aos heróis e cantos fúnebres” (LE GOFF, 2004, p. 440), foi o primeiro a
atribuir à mnemotecnia2 o caráter profissional à ação de escrever poesias. Com a progressão
da escrita em relação à oralidade, aperfeiçoou o uso do alfabeto, tendo em vista que, remorar e
transmitir acontecimentos passados apenas pela oralidade, não era uma tradução “palavra por
palavra”.
Para o poeta dois elementos são primordiais à memória artificial3: “a lembrança das
imagens, necessária à memória, e o recurso a uma organização, uma ordem, essencial para

2
Memória combinada com a invenção da escrita – nova técnica de memória – Le Goff (p. 440)
3
Classificação dada por Leroi-Gouhan que em sentido lato classifica-a em três tipos: memória específica (para
definir a fixação dos comportamentos de espécies animais), memória étnica (assegura a reprodução dos
comportamentos nas sociedades) e memória artificial (eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem
recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados). Le Goff, 2004, p. 420
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uma boa memória” (ibdem). Depois de Simônides, engedraram-se estudos que também
relacionavam memória e escrita através da mnemotécnica, chegando, durante o período da
Idade Média, a ser considerada a quinta operação da retórica – arte das palavras.
Neste sentido esquemático, Graça Aquino (20005, p. 34; 75), destaca que quando a
voz lírica faz uso dos resíduos do passado para estilizar sua escrita, está pautado em um
esquema de “vida-memória-poesia”. Assim, olhando para o passado, o sujeito lírico revela em
seus versos “ecos de um tempo abolido através dos anos, mas que resiste na memória”.
Angela Guida (2013, p. 47), ratifica que “o tempo que persiste na memória é o tempo
poético”. A deusa Mnemosine se torna a “responsável por revelar o passado, atuando como
antídoto contra o esquecimento” (LE GOFF, 1992, 438). Assim, os versos de Mater se
apresentam como uma organização poética de reminiscências, como verificaremos na seção
seguinte.

Mater: uma poética da memória

Nos versos de da Costa e Silva, elogiado pelo pesquisador Alfredo Torres (2010)
como um arquiteto do verso e engenheiro das palavras, o poeta amarantino propõe, em seus
registros, um regaste ao rigor clássico de versos alexandrino, que obedecem a uma métrica
exata. “Procura se pautar em uma estética na qual os sons são a base material do fazer
artístico. As palavras, desse modo, ligam-se umas às outras mais pela questão da afinidade
fônica do que mesmo pelo sentido que procura expressar” (TORRES, 2010).
Em Mater, poemas que nos propomos a analisar, a riqueza da sonoridade vocabular
expõe, com os versos, uma sequência de imagens que representam uma mãe de
comportamento terno e carinhoso. Uma mulher de ritos religiosos, que roga e intercede
sempre pelo filho. Sempre em prantos. A mãe representada em Mater é semelhante à maioria
das mães apresentadas na antologia do poeta, semelhante à mãe em Mater venerada, Saudade,
Carta à minha mãe e outro.. O eu lírico dacostiano busca sempre compor a imagem de uma
mulher que surge nos momentos de solidão e saudosismo. Há a presença latente do manto
protetor, intensificando o jogo imaginário, entre a mãe de Cristo e a mãe do eu lírico. “Tão
dócil, tão bela” (SILVA, 200, p. 322). O poeta destaca que “a saudade é vovozinha da
memória” (idem, p.100). Para ele, lembrar é diminuir ou diluir a saudade em versos. “O poeta
se vale da memória e a escrita surge experimentando um forte apelo ao exercício
memorialístico” (AQUINO, 2005, p. 86). Vejamos:
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Mater I
De lagrimas de mãe formou-se um rio...
Lenda que todo mundo desconhece,
Mas existe no sonho que enternece
A alma de um ser excêntrico e sombrio.

Triste, ungido de luz, num desvario


De suspiros de dor, o rio desce,
Levando à tona, num fervor de prece,
Rosas e lírios trêmulos de frio...

Mãe, que rogas por mim, piedosa e triste,


Em lágrimas de afeto e bondade,
Talvez nem saibas que este rio existe...

Não o sabes; contudo, em doce calma,


Há o rio invisível da Saudade,
Onde, em lírios de amor, boia a minh’alma...

II

Olhos perdidos na solenidade


Do céu, pelas estrelas peregrino
A cismar nessa imagem de piedade,
Que anda velando pelo meu destino.

Gotas de luz – o orvalho cristalino


Dos astros lembra, pela imensidade,
Um rosário de lágrimas, um hino
Tecido de esperança e de saudade...

Que mistério anda a errar nesses mistérios,


Onde a lua é Verônica perdida
Nos chamelotes siderais, etéreos...

E fico, às vezes, lívido, sonhando


Com o rosário de dor da minha vida:
- Contas que minha mãe juntou chorando...
(SILVA, 2000, p. 13)

No poema, é frequente o jogo entre a saudade e a memória. Assim como a voz poética
chega a declarar nos versos do poema Tântalo do Infinito. “Pois a memória que há de quem
amamos/ Primeiro, é como sombra: aonde vamos/ Vai sempre nos acompanhando” (SILVA,
2000, p. 98; 13). O pranto da figura materna que clama pelo filho e roga por ele, “piedosa e
triste”, acompanha-o.
Nesta interface entre memória e suas evocações, encontra-se a memória lírica, de
natureza individual, que segundo o pesquisador Paulo Brito (2000, p. 125), expressa a
subjetividade inconfundível do sujeito. “Para o poeta lírico, a memória individual é um
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repertório de causas, explicações e justificativas que lhe permitem criar o seu mito pessoal de
individualidade única e singular”. Tais características ocasionam o prazer proporcionado pela
poesia lírica, pois, o leitor, entre diferenças e semelhanças, se reconhece nos versos, na
certeza da condição humana, que tanto o eu lírico que escreveu, quando quem lê, são
singulares, porém semelhantes diante das lembranças.
Essas recordações, quando poeticamente organizadas, evocam ilustrações que compõe
o repertório imagético do poema. Para Alfredo Bosi (2000, p. 29; 30), a imagem no poema é a
“palavra articulada”. Ou seja, a organização fônica que gera um novo código. Imagens que
podem suscitadas pelas reminiscências ou pelo sonho. As imagens seguem formando um
imaginário na mente do leitor, assim como “a oração não se dá toda, de vez: o morfema segue
o morfema; o sintagma, o sintagma. E entre a cadeia das frases e a cadeia dos eventos, vai se
urdindo a teia dos significados, a realidade do paciente do conceito”. Em outro poema, o eu
lírico afirma a contribuição da memória na construção das imagens. “Minha memória vai
reproduzindo:/ O céu azul... parece até mais lindo”; “As árvores... As casas... Vejo e sinto/
Quais se fossem imagens verdadeiras” (SILVA, 2000, p. 228).
O exercício memória-imagem/ imaginação – imagem do eu lírico, segundo Ferreira
(2010, p. 32) ocorre em dois momentos distintos:

Em primeiro lugar, pelo eu lírico e posteriormente pela consciência de quem


lê o poema, e que paralelamente produz ou reproduz em sua consciência as
imagens criadas. Assim, o leitor imagina junto com o eu lírico e pode ‘ver’ o
que se fala.

A palavra busca a imagem. O campo semântico, formado pela escolha lexical dos
vocábulos do poema, auxilia uma leitura de significados reais. A “imagem de piedade” parece
formar um quadro imagético, pintado com as palavras da mescla entre religiosidade e “a alma
de ser excêntrico e sombrio”. À relação entre o concreto e o abstrato também merece
destaque, o dualidade indissociável das lágrimas de afeto e bondade/ rio invisível da saudade/
um rosário de lágrimas/ e outros. Uma sequência vocabular que remete-nos a concretude dos
acontecimentos do pretérito e a fluída da memória.
A persona lírica recorda sua mãe em momentos singulares. Sugere uma mulher que
pratica os costumes religiosos de um determinado meio social. O costume de rezar rosários
contando suas gotas. Ações que são representadas por intermédio dos versos. Para Octavio
Paz (1982), o poeta articula, por meio da linguagem, a consciência de si e do meio o qual está
inserido. A voz de si e do outrem. Vozes que se dividem no tempo. Nos versos de Mater é
perceptível o choro da mãe e o reconhecimento do filho por suas lágrimas. O eu lírico revela
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sua condição de perdido, mas também reconhece as lágrimas “de afeto e de bondade”,
“velando” pelo seu destino.
As vozes que ecoam dos versos, determinam o material fônico passivo de significação.
“A toada da linguagem afina as múltiplas situações emotivas e volitivas de quem fala” (BOSI,
2000, p. 119). Desempenha a função de portadora de uma significação e transmite-a
eventualmente na comunicação mental de muitos sujeitos conscientes. Personificar os seres
inanimados produz um forte efeito sob a palavra pronunciada. Deixando de ser apenas um
choro, mas um pranto que de “tantas lágrimas forma um rio”. Um rosário não mais de contas
simples, mas sim, de lágrimas. Que trouxe dor, tanto para quem o rezava quanto para quem se
lembrava da ação.
Quanto à melodia do poema, marcada fortemente pela presença das vogais, revelam a
subjetividade do sujeito lírico, suas angústias, sua melancolia, e a saudade do ser materno. As
sucessões de reticências nos conduzem, enquanto leitores, a uma pausa longa, sinônimo de
reflexão, ato semelhante ao clamor da mãe pelo filho. O intenso choro, os suspiros, a cisma
são exemplos de possibilidades expressivas, ligadas diretamente a sensações visuais e,
exequíveis pela persona representada – a mãe, a mater.
A última estrofe do último soneto, o eu lírico reconhece o sofrimento de sua mãe ao
velar pelo destino do filho. A afirmativa desmitifica a ideia proposta na primeira estrofe do
primeiro soneto, quando a voz lírica coloca à prova a veracidade da hipérbole do rio de
lágrimas. Rio que se transformou em memória, se não da mãe, mas certamente do filho, que
em registros poéticos eterniza a presença da mãe intercessora.

Considerações Finais

Mater, em sua conjuntura poética, representa mais que a imagem de uma mãe piedosa.
Apresenta uma leitura imagética que produz seus significados não apenas pela organização
formal dos vocábulos, mas principalmente pela estrutura dos versos. O sentido se constrói na
própria tessitura do poema.
Em nossa análise, apresentamos a inter-relação entre memória e a escrita poética. A
possibilidade de diálogo entre o discurso ficcional e o discurso real. Lembrar dos
acontecimentos do pretérito para, no presente, registrar e eterniza-los por intermédio dos
versos. Dando sempre ênfase à figura da mãe, ser materno que em prantos roga pelo filho.
Sentido que se presentifica na estrutura do poema e nos auxilia na compreensão do mesmo.
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Por fim, concluímos que o poema Mater, além da riqueza de imagens, é rico em
sentido semântico, e que essa mescla se apresenta de maneira interna. O eu lírico, retrabalha
as lembranças, constituído o todo poético, ou seja, uma poética da memória.

Referências

AQUINO, Graça. A memória como evocação: um estudo sobre a obra O Arada, de Zila
Mamede. Natal: A.S. Editores, 2005.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BRITTo, Paulo Henrique. Poesia e memória. IN: PEDROSA, Célia. Mais poesia hoje. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2000.
DA COSTA E SILVA. Poesias completas. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
GUIDA, Angela. A poética do tempo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro: 2013.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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POETA E EU-POÉTICO UNIDOS PELA “FATALIDADE” FEMININA: UM


ESTUDO RESIDUAL DA OBRA DE VINICIUS DE MORAES

Mary Nascimento da Silva Leitão


UFC

Introdução

Caminhamos em direção ao estudo dos poemas dos quais nos ocuparemos neste
trabalho. Viajaremos, diga-se de passagem, não só no sentido de passear por cada verso,
compreendendo cada palavra, mas também no sentido de voltar no tempo, buscando perceber
traços de mentalidades de épocas anteriores que se cristalizaram ao longo dos séculos
podendo ser, dessa forma, apreciados na poesia viniciana. Esses traços foram observados
tanto numa perspectiva literária, quanto numa perspectiva histórica. Afinal, a teoria utilizada
nesse estudo, nos permite relacionar a Literatura com as mais diversas áreas de conhecimento,
seja a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicologia, enfim, a todas as áreas que lhe
forem lindeiras1. E tudo isso foi permitido, a partir do instante em que verificamos na obra do
poeta carioca a presença de imagens femininas diferenciadas, cada qual com peculiaridades
passíveis de estudos residuais a partir das próprias escolas literárias anteriores à de Vinicius.
A imagem da mulher em dado contexto histórico também foi ideia surgida com a percepção
singular do poeta em estudo que, muitas vezes, ao representar aspectos femininos fugia dos
moldes de sua época.
Não é novidade afirmar que as mulheres dos textos de Vinicius têm um lugar
privilegiado. Sendo o escritor considerado pelos críticos como “o poeta das mulheres”,
identificamos, desde o início de sua obra, o grande apreço demonstrado pelo ser feminino,
desde as mulheres mais puras, até as mais profanas: “O poeta é bom/ Ele ama as mulheres
castas e as mulheres impuras”. Os versos foram retirados de “O poeta”, inserido na primeira
obra de Vinícius de Moraes O caminho para a distância (1933). Desde então, vários são os
textos encontrados na obra do poetinha fazendo referências a diferentes tipos de mulheres,
variação esta perceptível até nos títulos de alguns deles: “A esposa”, “A uma mulher”,
“Minha mãe”, “A volta da mulher morena”, “Poema para todas as mulheres”, “A mulher que
passa”, “A mulher na noite”, “Uma mulher no meio da noite”.

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A palavra “lindeiras” refere-se às áreas que estão às margens da Literatura.
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Entretanto, vale ressaltar, depois da leitura dos inúmeros poemas que tomam por base
o ser feminino, resolvemos organizá-los em diferentes tipologias, resultando na nossa
Dissertação de Mestrado intitulada “Representações femininas na lírica residual de
Vinicius de Moraes”. Analisamos em âmbito geral a relação homem-mulher numa
perspectiva amorosa. Portanto, as tipologias mãe, filha, Nossa Senhora, não entraram no
nosso estudo. Foram, de fato, cinco categorias escolhidas: a) A esposa; b) A amada; c) A
passante; d) A prostituta; e) A mulher fatal. Além destas, construímos outro tópico
denominado “A mulher que fica”, no intuito de acrescentar alguns comentários a respeito do
corpo feminino que não couberam nos pontos anteriores. Contudo, nesse momento, nos
debruçaremos, apenas, sobre uma tipologia: a mulher fatal.
É preciso considerar que a representação estudada insere-se na relação amorosa
homem-mulher. A mulher fatal, com todos os seus anseios, inquietudes e estímulos
proporciona ao eu-poético instantes de angústia e prazer, cada um segundo a fase estudada.

A mulher fatal na obra viniciana

Utilizamos a expressão mulher fatal para designar aquela que provoca desejos.
Referimo-nos à mulher que aparenta muito mais corpo do que alma, e por isso estimula a
angústia dos seguidores da fé religiosa, comumente aflitos com os sentimentos ocasionados
pelos prazeres da carne. Poderíamos ter usado o termo profana2, tantas vezes empregado pela
crítica viniciana. Todavia, entendemos que esse termo, por exprimir aquilo que não está de
acordo com a religião ou não a tem como propósito, mantém um sentido originário e, no caso
de nossa pesquisa, na própria mulher. A designação fatal parte da perspectiva de quem analisa
aquela que assim foi nomeada. Portanto, para nós, a mulher não se posta como fatal, mas,
quem a observa pode denominá-la como tal, diferentemente da profana, que conscientemente
está longe dos preceitos religiosos.
Na obra de Vinicius essa ideia de “fatalidade” aparece desde o início de sua produção,
em O caminho para a distância, quando o eu-poético enxerga angústia nos olhos da mulher e
quando tenta afastá-la do “fardo da carne”:

A UMA MULHER

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o

2
Segundo Massaud Moisés, profano é tudo aquilo que fica fora, “diante (pro) do templo (fanum)” (MOISÉS,
2008, p.53).
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[teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.
(MORAES, 2008, p.191-192)

A angústia, o sofrimento, a piedade, o fardo da carne e a morte são os elementos


norteadores não só desse poema, mas da primeira fase da obra de Vinicius. A imposição do
homem, portando-se como ser superior, torna-se nítida tanto no acomodamento do seu corpo
sobre o da mulher, quanto na piedade sentida por ele. Essa piedade surge por não poder o eu-
poético ofertar um carinho descomprometido, sem o importuno fardo da carne. O corpo
feminino suscita desejos incontroláveis, capazes de acobertar o sentimento mais sublime.
Resta, dessa forma, a fuga, única saída para o livramento da morte, presente no corpo da
amada. Era preciso manter a imagem serena e tranquila do encontro, o instante em que o
sofrimento ainda não o tivesse arruinado. Trata-se da dor de um pecador que, por todas as
formas busca resistir aos anseios da carne, despertados pela mulher sedutora e fatal. Todavia,
nem sempre essa fuga é possível, tendo em vista a intensidade do grande desejo sentido pelo
eu-poético. Principalmente quando dele se aproxima “A mulher na noite”:

Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.


A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas - vinhas
[andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus
[olhos.
Eu estava imóvel - tu caminhavas para mim como um pinheiro
[erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no
[meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o
[meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam
[sobre os meus lábios.
[...]
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.
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Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe


E não havia mais vida na minha frente.
(MORAES, 2008, p.219)

Além da escuridão introdutora de uma imagem obscura, percebemos a firmeza de uma


mulher que se aproxima do ser masculino com aspecto demoníaco. É uma mulher fatal,
irresistível aos olhos de quem a vê, bloqueadora de quaisquer chances de autoproteção. A sua
chegada implicou uma desordem apocalíptica, repleta de insetos, uivos de lobas, cabras
cheirando forte, formigas e cobras. Estes são elementos desencadeadores da morte masculina.
Contudo, todo o martírio vivido parte de uma imagem construída pela mente do eu-poético. O
espectro da mulher surge inicialmente apenas anunciando o encontro, ápice da grande
conturbação.
Essa aflição se reflete em cada gesto concebido naquele instante de intimidade, que ao
invés de ser prazeroso é atormentador. O ato sexual é versificado de forma grotesca,
demonstrando através de imagens sensoriais o significado daquela entrega momentânea para o
eu-poético: “parecia ouvir uivos de lobas”, “os insetos procriavam e zumbiam”.
Quando retomamos a concepção do corpo para o cristianismo, logo recordamos da
imagem do corpo de Cristo. E, de forma ainda mais aprofundada, lembramos o sacrifício
vivido por Jesus, que teve seu corpo torturado em benefício da humanidade.
No caso do eu-poético viniciano, a tortura está justamente em não entregar-se aos
encantos femininos. O grande sacrifício é a abstinência dos prazeres da carne, no intuito de
conservar-se puro e imaculado. Segundo Gélis:

Domar a própria carne é antes de tudo infligir-se uma feroz disciplina.


Imaginando e aplicando-lhe as coações mais dolorosas, todos aqueles que
desprezam o corpo e rejeitam este mundo terrestre esperam de fato adquirir o
mérito santificante. O “ódio do corpo”, que leva à sua destruição lenta e
sistemática, não procede de uma conduta nova no âmbito religioso (GÉLIS,
2009, p.55).

Em oposição a essa figura conduzida pela religiosidade, aparece a imagem da mulher


como mediadora do pecado. Seria um corpo mundano, demoníaco.
Retomando os textos de Vinicius, vale ressaltar que todo martírio descrito parte de
quem narra os acontecimentos, portanto, as imagens são edificadas segundo a visão masculina
construída acerca da mulher. Esta, sendo fruto de uma imaginação, é anunciada no título e
fantasiada no texto, mostrando-se como aquela que abala os sentidos do eu-lírico, causando-o
sofrimento.
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Mais uma vez notamos a treva se sobrepondo à luz. E todos os elementos norteadores
dessa negrura dominam o corpo do ser angustiado, que desponta cheio de incômodos, como
se fervilhasse a cada contato com a mulher. O pecado, representado pela presença da cobra e
da luta contra o desejo carnal, é o responsável por conduzir o eu-poético às trevas e mais
ainda à morte. Segundo Elizabeth Dias Martins:

Ao modo de Almeida Garrett, nos poemas Folhas Caídas, Vinicius se debate


entre o amar, sentimento espiritualizado em que a mulher é vista como ser
sacralizado e sublime, e o querer físico, carnalizante, através do qual a
mulher exerce papel demoníaco (MARTINS, 2002, p.09).

De fato, isso é perceptível nos dois poemas estudados até o momento nesse tópico.
Contudo, mais do que relacioná-los com a obra do romântico Almeida Garrett, podemos
estabelecer a similitude dessa ideia com a inovação introduzida pela Escola Romântica.
Deparamo-nos com o egocentrismo, por exemplo, nos poemas da primeira fase da produção
viniciana, haja vista a exagerada preocupação em resguardar-se dos prazeres mundanos. O
“eu”, desse modo, enfoca suas angústias, necessidades e medos, deixando a amada em
segundo plano. A imagem da mulher surge nos poemas como a responsável pelos tormentos
masculinos. Portanto, se tivéssemos que identificar o lado do Bem e o do Mal, de certo, este
seria feminino. Isso tudo só comprova o individualismo do “eu-poético”, que mesmo
colocando a mulher num plano de evidência, todas as imagens apresentadas são frutos de uma
angústia masculina pessoal, principiadas pelo temor de vivenciar o pecado. Massaud Moisés
comenta o sentimentalismo presente na era romântica, fato que contribuiu para a substituição
da fantasia pela especulação. O autor explica ainda que o “sentimentalismo implica
introversão, e os românticos se voltam para si, na sondagem do mundo interior, onde vegetam
sentimentos vagos” (MOISÉS, 2008, p. 117). E ao voltarem-se para si, os românticos acabam
submergindo na tristeza e melancolia, alcançando, dessa forma, o “mal do século”3.

3
MAL DU SIÈCLE – Fr., Mal do Século, sofrimento cósmico. Mal-estar existencial causado por certa feição do
romantismo, e com ele identificado. Enraizado na poesia da sensibilidade e no culto do “eu” em voga nas
literaturas anglo-saxônicas na segunda metade do século XIII e presente em Génie de Christianisme (1802), de
Chateaubriand, nos romances de Nodier (Les Proscrits, 1802; Le Peintre de Salzburg, 1803; em Obermann
1804, de Sénancour; MéditationsPoétiques ,1820, de Lamartine, - veio definir-se no prefácio de Vigne a
Gradeur et Servitude Militaires,1835, em La Confession d’un Enfant duSiècle, 1836 , de Musset. Pessimismo
extremo em face do passado e do futuro, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza,
culto do mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico, ausência
da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito “vago das paixões” (Chateaubriand), desencanto
em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentido vital, depressão profunda, abulia resultando
em males físicos, mentais ou imaginários, que levam à morte precoce ou ao suicídio, - caracterizam o mal do
século, que se prolongaria além da revolução romântica, até o fim do século XIX (PEYRE, 2004, p. 272-273).
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Nos textos do poeta moderno que se referem principalmente à sua primeira fase,
encontramos claros resíduos românticos. A angústia que se transforma tantas vezes em
desespero é um desses traços encontrados:

Longe do mistério do teu amor, curvado, eu fiquei ante tuas


[partes intocadas
Cheio de desejo e inquietação, com uma enorme vontade de
[chorar no teu vestido.
Para desvendar as tuas formas nas minhas lágrimas
Agoniado abracei-te e ocultei o meu sopro quente no teu ventre
E logo te senti como um cepo e em torno a mim eram monges
[brancos em ofício de mortos
E também - quem chorou? - Vozes como lamentações se
[repetindo.
No horror da treva cravou-se em meus olhos uma estranha
[máscara de dois gumes
E sobre o meu peito e sobre os meus braços, tenazes de fogo, e
[sob os meus pés piras ardendo.
Oh, tudo era martírio dentro daquelas vozes soluçando
Tudo era dor e escura angústia dentro da noite despertada!
(MORAES, 2008, p.218)

O trecho de “O Cadafalso” mostra o desespero causado pela ausência da concretização


do amor. O que seria um momento de realização amorosa transforma-se em instantes de
agonia. Mais uma vez as diversas imagens negativas preenchem o espaço do poema, dentre
estas, a treva, a dor e os mortos, todas, ligadas à concepção do feminino.
Outro elemento incutido no espírito romântico é a qualidade da imaginação. Esse
atributo é o que dava aos poetas a “capacidade de criar mundos imaginários, acreditando por
outro lado na realidade deles” (COUTINHO, 1978, p. 143). Além disso, era uma imaginação
voltada para o religioso e o metafísico, o que contribuía para a inserção num mundo invisível.
No caso dos textos de Vinicius, esse adentramento ao mundo imaginário era de cunho
significativamente negativo, fato que notamos na continuação de “O Cadafalso”:

"Me salvem - gritei - me salvem que não sou eu!" - e as


[ladainhas repetia - me salvem que não sou eu!
E veio então uma mulher como uma visão sangrenta de revolta
Que com mão de gigante colheu o que de sexo havia em mim e
[o espremeu amargamente
E que separou a minha cabeça violentamente do meu corpo.
Nesse momento eu tive de partir e todos fugiam aterrados
Porque misteriosamente meu corpo transportava minha cabeça
[para o inferno...
(MORAES, 2008, p.218- 219)
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Além de toda a construção baseada em devaneios resultantes da criatividade


imaginária, notam-se, mais uma vez, vestígios do “mal do século”. Os gritos de desespero são
a consequência de uma criação imaginária fantasiosa. A mulher representando a face do mal
destrói o eu-poético cortando-lhe a cabeça. Referida atitude, como bem explanou Elizabeth
Dias Martins, nos faz lembrar a passagem bíblica em que Salomé pede a cabeça de João
Batista por medo do que ele pudesse dizer a respeito de seu adultério. Contudo, a diferença
estre os dois casos “é a inversão de papéis em termo de valores; neste, o homem é condenado
pela voluptuosidade; naquele, Salomé pulsava de desejo carnal, cabendo-lhe a condenação de
conduzir a própria cabeça ao inferno” (MARTINS, 2002, p.13).
A mulher fatal é capaz de suscitar uma angústia mortal. Em cada atitude sua há traços
da imaginação do eu-poético, que enxerga no ser feminino a morada do pecado e da perdição.
A imagem fantasiada pelo poeta atinge dois extremos: a serenidade e a conturbação. Isso
porque às vezes a mulher é parte de uma paisagem calma, outras, de uma paisagem agitada,
como é o caso do último poema citado. Referido conflito está presente em “Agonia”:

No teu grande corpo branco depois eu fiquei.


Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de
[areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem
[noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
(MORAES, 2008, p.219-220)

Outrora a amada concedeu uma paisagem calma. No entanto, após um contato maior
entre os corpos, tudo se transformou em angústia, visto que a tempestade passara destruindo a
beleza do corpo feminino. Consequentemente, “tudo era estéril, monstruoso e sem vida”.
Esses conflitos pessoais podem ser resumidos numa única angústia: a luta entre o
sagrado e o profano. Não à toa, a primeira fase da produção poética de Vinicius foi
denominada transcendental, posto que essa estreita relação do homem com o pecado é
constantemente resgatada em seus versos. O anseio por Deus em oposição às urgências
terrenas também esteve presente em uma época anterior à escrita dos textos vinicianos. No
caso, referimo-nos ao Barroco. Nesse período, a angústia, a tensão espiritual e o misticismo
eram algumas das vertentes que se destacavam. Além dessas, temos os diversos paradoxos,
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que também encontramos na obra do poeta carioca. Dentre estes: o Bem e o Mal; céu e
inferno; pecado e arrependimento. A propósito, Afrânio Coutinho afirma:

São, por isso, o dualismo, a oposição ou as oposições, contrastes e


contradições, o estado de conflito e tensão, oriundos do duelo entre o espírito
cristão, antiterreno, teocêntrico, e o espirito secular, racionalista, mundano,
que caracterizam a essência do espírito barroco. Daí uma série de antíteses –
ascetismo e mundanidade, carne e espírito, sensualismo e misticismo,
religiosidade e erotismo, realismo e idealismo, naturalismo e ilusionismo,
céu e terra, verdadeiras dicotomias ou “conflitos de tendências antitéticas”
(Meissner), “violentas desarmonias” (Wellek), tradutoras da tensão entre as
formas clássicas e o ethos cristão, entre as tradições medievais e o crescente
espírito secularista inaugurado pelo Renascimento. A alma barroca é
composta desse dualismo, desse estado de tensão e conflito, exprimindo uma
gigantesca tentativa de conciliação de dois polos considerados então
inconciliáveis e opostos: a razão e a fé (COUTINHO, 1978, p.98-99).

O curioso é o fato dessas tensões se manifestarem sempre a partir de um contato com o


corpo feminino. Este, sendo estimulador de fantasias negativas, aparece na dialética sagrado–
profano. Esse aspecto pode mais uma vez ser retomado noutro poema intitulado “Alba”:

Ontem, Alba, sofri porque vi subitamente a nódoa rubra entre a


[carne pálida ferida
Eu vinha passando tão calmo, Alba, tão longe da angústia, tão
[suavizado
Quando a visão daquela flor gloriosa matando a serenidade dos
[lírios entrou em mim
E eu senti correr em meu corpo palpitações desordenadas de
[luxúria.
Eu sofri, minha amiga, porque aquela rosa me trouxe a
[lembrança do teu sexo que eu não via
Sob a lívida pureza da tua pele aveludada e calma
Eu sofri porque de repente senti o vento e vi que estava nu e
[ardente
[...]
(MORAES, 2008, p.223)

É um dos poucos poemas de Vinicius em que a mulher ganha nome, se individualiza.


Trata-se, ao mesmo tempo, de um marco sexual e de uma reiteração de extrema pureza.
Dessa forma, o sentimento transmitido por Alba, que antes era puro, agora se tornou profano,
devido às sensações causadas por ele. O sofrimento pela culpa de sentir o prazer da carne
envolve o ser masculino, fazendo florescer em seu peito a intranquilidade. A calma logo se
transformou em angústia, e a suavidade e serenidade transformaram-se em palpitações. O
corpo de Alba é responsável pela perturbação masculina que, diante da flor, imagem tão
singela e pura, sente-se desnorteado. Mas a flor surgida aqui recebe outra conotação, pois
além de ser gloriosa, mata a serenidade dos lírios que penetravam o eu-poético. Nos textos
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referentes à figura da esposa e da passante, por exemplo, a relação homem-mulher acontece


simplesmente através do olhar, aspecto divergente do que ocorre com a mulher fatal, e, mais
especificamente, no poema “Alba”, quando o desejo passa a ser consumado. Portanto, neste
poema, ocorre uma dupla relação entre o amor idealizado e o carnal.
Tudo isso, leva-nos a crer que estamos nos referindo, de certo, a uma fase tenebrosa, a
qual, seguindo o modelo barroco, prestou-se a falar “uma linguagem de emotividade, de
transcendentalismo, de ambiguidade” (COUTINHO, 1978, p. 101).
Embora o Barroco brasileiro se diferencie do português, do francês e do italiano,
dentre outros, há características universais passíveis de serem identificadas nos estudos
literários respeitantes ao século XVII. É o caso do dualismo, tão frequente na obra de
Vinicius. Ora, ainda segundo Afrânio Coutinho, uma das predileções do Barroco era “a
preferência pelos aspectos cruéis, espantosos, terríveis, sangrentos, repugnantes”, requisitos
também encontráveis na fase transcendental do poeta carioca.
Todavia, essa fase tenebrosa não dura para sempre. Logo nos deparamos com um
conjunto de textos nos quais podemos perceber outra visão concernente à mulher. O tom
místico e espiritualizado muitas vezes permanece. Já a relação homem-mulher ganha nova
aparência. Aquela que diz respeito à mulher fatal continua a fazer parte do arsenal poético
viniciano. Porém, passa a ser abordada de maneira desidealizada, aceitando-se suas curvas e o
efeito causado por elas:

SONETO DE DEVOÇÃO

Essa mulher que se arremessa, fria


E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

[...]

Essa mulher é um mundo! - uma cadela


Talvez... - mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela.
(MORAES, 2008, p.275)

Ainda estamos numa fase intermediária, mas todas as amarras parecem libertadas. A
construção de poemas mais curtos ocorre ao lado de uma linguagem despudorada e da
representação de uma mulher bela por seus apetrechos eróticos. Observa-se um novo
Vinicius, isto é, o verdadeiro Vinicius.
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O texto apresenta uma mulher entregue totalmente aos carinhos e jogos eróticos do eu-
poético masculino. Trata-se de uma imagem fria e lúbrica; alguém que diz versos, mas
também diz nomes feios; é melancólica, mas ri; ela proclama tanto a miséria quanto a
grandeza do amor; é um mundo, mas também pode ser uma cadela. Esses paradoxos,
diferentemente do dualismo Barroco, enfatizam a relação da obra de Vinicius com a
concepção romântica, na qual a “imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade,
conquistam aos poucos o lugar que era ocupado pela razão” (COUTINHO, 1978, p. 141). São
termos contraditórios, mas enobrecem a construção erótica do texto. É, por certo, uma mulher
fatal, conquistadora dos melhores carinhos concedidos pelo ser masculino. Ela fez por
merecer. Entregou-se aos encantos da paixão e mais ainda aos prazeres da carne. Esse é um
aspecto completamente ausente na fase anterior da obra ora estudada. Segundo Afrânio
Coutinho:

O Romantismo é subjetivismo. A atitude romântica é pessoal e íntima. É o


mundo visto através da personalidade do artista. O que revela é a atitude
pessoal, o mundo interior; o estado de alma provocado pela realidade
exterior. Romantismo é subjetivismo, é a libertação do mundo interior, do
inconsciente; é o primado exuberante da emoção, imaginação, paixão,
intuição, liberdade pessoal e interior. Romantismo é liberdade do indivíduo
(COUTINHO, 1978, p.147).

A imagem de uma mulher subjugada aos desejos masculinos surge como forma de
enaltecimento feminino. É ela quem se arremessa nos braços do amado, quem faz juras de
amor e diz nomes feios, quem ri dos receios masculinos e guarda a marca dos dentes em seu
corpo. Além disso, é um mundo, mas talvez uma cadela, aspecto que momentaneamente faz
da mulher um ser inferior. É o retrato de uma entrega total. Contudo, esses aspectos que
podem reduzir a representação feminina, buscam, na verdade, enaltecê-las, pois o objetivo
primeiro é dizer que ela foi intensa, além de perfeita no ato sexual. O uso da palavra amor
surge no poema como sinônimo de sexo: “Essa mulher que a cada amor proclama/ A miséria
e a grandeza de quem ama”. Contudo, nesse último verso se contém a ideia de amor diferente
do primeiro já citado, fazendo com que esses conceitos se entrecruzem.
Num outro texto, a personagem feminina surge, de fato, subjugada ao eu-poético. Aqui
não há enaltecimento da imagem da mulher. Em vez disso, o homem é o destaque:

Uma lua no céu apareceu


Cheia e branca; foi quando, emocionada
A mulher a meu lado estremeceu
E se entregou sem que eu dissesse nada.
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Larguei-as pela jovem madrugada


Ambas cheias e brancas e sem véu
Perdida uma, a outra abandonada
Uma nua na terra, outra no céu.

Mas não partira delas; a mais louca


Apaixonou-me o pensamento; dei-o
Feliz - eu de amor pouco e vida pouca

Mas que tinha deixado em meu enleio


Um sorriso de carne em sua boca
Uma gota de leite no seu seio.
(MORAES, 2008, p.320)

O “Soneto de Despedida”, desde o início, faz uma comparação entre a mulher e a lua.
Aquela, emocionada, entrega-se sem qualquer reação de seu amado, o qual, posteriormente,
largou-a depois de ter usufruído de seu corpo. Entretanto, tendo ele se apaixonado, deixou sua
marca em seus lábios e seios.
Referido texto nos evoca um poema de Alphonsus de Guimaraens, intitulado
“Ismália”. Este, os mais apreciados entre os simbolistas, se constrói de maneira narrativa e
envolve uma mesma imagem em duas instâncias distintas: no céu e no mar:

Quando Ismália enlouqueceu,


Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,


Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu


As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu


Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
(MOISÉS, 2012, p.348-349)
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Os versos breves e cadenciados, a forte musicalidade rítmica observada pelo uso das
rimas alternadas (abab) e as repetições, fruto de uma estrutura paralelística, demonstram o
resgate de uma tradição poética medieval. O interessante é que tais aspectos também se
encontram no “Soneto de Despedida”. E não se trata apenas de uma semelhança estrutural,
pois a temática da loucura se pronuncia em ambos os textos. Sendo um dos assuntos
recorrentes do Simbolismo, a loucura em “Ismália” se dá pela obsessão da personagem em
querer alcançar a lua. Já no texto de Vinicius, a loucura estava no amor concedido ao eu-
poético, fazendo a mulher entregar-se sem pudores sob aquela noite enluarada. Nos dois
poemas a ideia de que tudo é simples e possível é o que faz as personagens loucas, pois não
refletem sobre as consequências de seus atos.
Alguns versos vinicianos demonstram concreta relação com o texto de Alphonsus de
Guimaraens. O verso “Viu uma lua no céu” do poema Ismália, pode ser encontrado em outro
registro no texto de Vinícius: “Uma lua no céu apareceu”. Ao mesmo tempo em que Ismália
enlouquece, a personagem feminina do outro poema estremece. Percebemos, ainda, um
exemplo de paralelismo no “Soneto de Despedida” à moda de Guimaraens: “Perdida uma, a
outra abandonada”. O paradoxo encontrado em Ismália envolvendo o céu e o mar, em
Vinicius surge como terra e céu: “Uma nua na terra, a outra no céu”. Os desfechos evocam
mais uma estrutura paralelística: “Sua alma subiu ao céu/ Seu corpo desceu ao mar” (Ismália);
“Um sorriso de carne na sua boca/ Uma gota de leite no seu seio” (Soneto de Despedida). No
primeiro, a clara ideia de morte; no segundo, poderíamos constatar essa mesma ideia se
considerarmos o abandono como uma espécie de morte. Seria uma morte daquele momento,
do sentimento que apenas deixou marcas. Uma morte do amor passageiro, vivido numa única
noite de lua cheia.
Essa imitação de elementos presentes no texto de Alphonsus de Guimaraes, além da
intertextualidade, inevitável e nem por isso explorável, mostra-nos um resgate do modelo
simbolista. E este, por ora, apresenta resíduos medievais. Tudo isso, enfatiza aquilo que
expomos desde o início; ora, as escolas literárias não existem independentes umas das outras
e, muito menos, das diversas épocas históricas. Portanto, esse resgate confirma o processo de
hibridismo cultural encontrável nas diversas obras literárias, apresentando as diversas
influências adquiridas ao longo do tempo.

Considerações Finais
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Uma obra como a do poeta carioca precisa ser perpetuada. E isso se torna possível
quando produções, tais como as de Vinicius, são investigadas à luz de “novas” teorias.
Classificar o poeta carioca exclusivamente como moderno não se torna viável, quando
se sabe como multifacetada é sua obra. E não nos reportamos apenas a essas relações com
outras épocas. Na verdade, lembramo-nos das diversas temáticas utilizadas em seus poemas,
que facilmente se explicam quando tomamos por base as palavras de Antonio Candido:

Infância na praia, familiaridade com as coisas do mar, geografia fantástica


do corpo feminino dissolvida na sua história pessoal, procura do sentido da
vida, infinita paciência e compreensão do outro, experiência com a palavra
no limite constante em que ela parece dissolver-se noutra coisa, milagrosa
capacidade de achados, malabarismo que na verdade é encarnação do
necessário, superação de qualquer preconceito que separe verso e prosa.
Vinicius diverso e sempre o mesmo (CANDIDO, 2008, p. 122).

Essa diversidade vem comprovar o que defendemos desde o início desse trabalho: os
tempos e as culturas estão em constantes entrecruzamentos. Não há como limitar Vinicius ou
qualquer outro autor à época em que produziu seus textos. Seria, desse modo, reduzir as
inúmeras possibilidades de estudos. A mulher fatal, presente na mentalidade de diversos
autores em diferentes épocas, é apenas um dos elementos que comprovam o exposto até aqui.

Referências

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial


Humanitas, 2006.
______. “[Vinicius de Moraes]”. In: MORAES, Vinicius. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, ed. 2008.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira S.A, 1978.
GÉLIS, Jacques. “O corpo a Igreja e o sagrado”. In: CORBIN A., COURTINE, J.J.,
VIGARELLO, G. História do Corpo: 1. Da Renascença às Luzes. 3ª ed. – Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009.
MARTINS, Elizabeth Dias. “Vinícius: Uma poética residual”. In: Modernismo: 80 Anos.
Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 2002.
______. A literatura portuguesa. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
MORAES, Vinicius. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
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PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, por Rubenita Moreira. Em


05/06/ 2006. Fortaleza – CE.
______. “Mentalidade e Residualidade na lírica camoniana”. In: “Escritos do Cotidiano;
estudos de literatura e cultura. Fortaleza: 7 sóis, 2003. p. 85-102.
______. O jogo de duplos na poesia de Sá-Carneiro. 1998. 232f. (Tese – Doutorado em
Letras). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
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REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA POESIA ERÓTICA DE


GREGORIO DE MATOS

Thalita Rose Tamiarana Gadelha


FAFIRE

Introdução

Gregório de Matos e Guerra (1636-1695), alcunhado de Boca do Inferno e enaltecido


como o maior poeta barroco do Brasil, desenvolveu uma poesia lírico/religiosa e
satírico/erótica carregada de liberdade e manifestos.
Através de sua produção erótica, podemos observar o modo como a sociedade do
século XVII se apresenta: mercantil e explorada, repleta de problemáticas desgostosos, suja e
imoral, desvalorizando a imagem da mulher colonial.
Num jogo entre dominantes e dominados Gregório se revela um homem nem um
pouco preocupado com a posição da mulher na sociedade em que viveu, pelo contrário, nos
apresenta de uma forma muito natural e espontânea a inferioridade feminina construída
através dos aspectos dominantes do patriarcado.
A análise dos três poemas eróticos propostos - “Pica-flor”, “Ao mesmo capitão
fretandolhe a Amasia chamado Surucucu” e “A huma Dama por nome Maria Viegas, que
falava fresco, e corria por conta do Capitão Bento Rabello seu amigo” - que norteiam este
trabalho, revela as manifestações masculinas de sua época e as variadas concepções
femininas, que, através de teorias comprobatórias, pretende demonstrar um caráter particular
da poesia barroca brasileira.
Buscando, através desses textos, a visão da mulher por um homem, isto é, a forma
como a mulher colonial é representada e apresentada na referida obra gregoriana, de forma
crítica, esta análise busca, através de estudos de gênero atrelados a conceitos básicos de
psicanálise, interpretar o modo de vida da mulher colonial e, não só a forma como ela é vista
através da figura masculina, mas também, a forma como ela se coloca frente à condição de
subordinação e inferioridade.
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Gregório de Matos e a Bahia Barroca

Gregório de Matos e Guerra encontra-se no âmbito da Literatura Brasileira como uns


dos maiores poetas da história do Brasil, visto que permanece muito a frente dos de sua época,
pois, as temáticas abordadas e a forma como elas foram trabalhadas fazem de Gregório um
poeta original e inovador, sem medo das críticas e perseguições de que certamente seria alvo;
um homem repleto de vigor, liberdade e manifestos.
Temáticas como a religiosidade, a feminilidade e os “causos” políticos, ainda hoje são
trabalhados com pudor, pois, o refreamento encontra-se intimamente vigente no que diz
respeito ao social; mas não quando os referimos ao poeta barroco. Num eterno convívio de
dominantes e dominados, Gregório também viveu e, de uma forma ironicamente inteligente
soube fazer uso do escracho e da picardia para tratar de questões tão arriscadas como bem
afirma Hansen:

[...] Costuma-se erigir Gregório de Matos como homem libertário dos textos
sempre supostos paródicos, porque satíricos. Encarnando-se no século XVII
como desejo do interprete e reencarnando-se no século XX como autor
barroco e liberal “progressista”, crítico do oficialismo das instituições
dominantes. (HANSEN, 2004, p. 39).

Embora o alvo maior de investigações em sua poesia seja por sua produção aguçada,
crítica e escrachada, que pelos aspectos histórico-sociais das mulheres de sua época, faz-se
necessária esta análise, pois, o desejo pela mulher provoca no poeta maldito a necessidade de
descrevê-la e, assim, revela a sua condição na sociedade do século XVII, isto é, Gregório, em
sua poesia, classifica a mulher colonial, tira de todas elas a independência e apresenta as
relações de dominância masculina através dos desejos eróticos, movidos pela busca incessante
do prazer.
Em sua poesia, as negras são tratadas de uma forma diferente das brancas, as escravas
das sinhazinhas, as prostitutas das damas, as profanas das religiosas, compreendendo uma
separação clara de condição social entre essas mulheres. Desta maneira, Gregório apresenta
seu ponto de vista masculino em uma sociedade patriarcal, ponto de vista este que tanto
inferiorizou a mulher na colônia.
Quatro séculos depois, cabe-nos perceber até que ponto a mulher foi explorada e
dominada na colônia, bem como até onde a mulher, coisificada, servia para a satisfação dos
prazeres da sociedade vigente. Os impulsos e atividades prazerosas são, sem pudor,
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trabalhados e pouco ou nada têm a ver com as leis da racionalidade que acabam por desvendar
os verdadeiros disfarces das personagens dos seus poemas.
O erotismo, do francês érotisme, designa não só um estado de excitação sexual, mas
também a exaltação do próprio sexo no campo de ação das artes, apresentando-nos o signo da
diferença de relação homem-mulher. Para isso, Alberoni (1989, p. 74) explicita que “o
erotismo é uma fantasia de identificação com as partes eróticas do corpo. Precisa falar delas,
ilustrá-las, desnudar o que está encoberto. [...] O erótico é, portanto, uma pornografia
pessoal”.
O termo nos é apresentado como o nosso lado mais agressivo e animalesco (FREUD,
2009), que se encontra dominado pelos desejos da natureza sexual e livre de qualquer
imposição cultural e social buscando sempre a satisfação de um desejo que causará prazer. O
poeta baiano sabe trabalhar implícita e explicitamente as questões sexuais e analisa a
sociedade e a cultura da época de uma forma viva e audaciosa.
Para que se analise as questões destes impulsos tratados nos poemas, deve-se ter
consciência de que Freud elaborou um modelo explicativo para a estrutura do sistema
psíquico humano de cada ser. Ele é visto como resultado de interação de três partes: ID, Ego e
Superego. Dentro da obra erótica gregoriana nos voltaremos apenas para o ID (em alemão es,
"ele, isso") e o Ego (em alemão ich, "eu"), isto é, a relação do inconsciente e do consciente,
que é fonte primária para florescimento do erotismo.

O ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências


deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina
irrestritamente no id, pelo principio de realidade. Para o ego, a percepção
desempenha o papel que no id, cabe ao instinto. O ego representa o que pode
ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as
paixões (FREUD, 2009, Vol. XIX p. 38-39).

Com o desenvolvimento do estudo das fases psicossexuais, Freud comprovou que a


relação de passado e presente permanecerá interrelacionada na vida do indivíduo. Esta
relação se dá a partir de um sistema de repressões que os seres humanos são obrigados a viver
e que são determinantes para a construção psíquica de cada homem.
O descaso à mulher é exposto em toda a obra gregoriana sem nenhuma crítica, pelo
contrário, é tratado como uma prática absolutamente normal e frequente dos homens. Para
isto, Birman (2001) traduz os costumes patriarcais da sociedade:

Deslocando-se livremente entre os espaços público e privado, isto é, entre os


espaços social e familiar, ao homem era permitido o duplo exercício erótico
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e reprodutivo. Se a família era, assim, o sacrossanto espaço para a


reprodução da espécie, o espaço social enquanto tal era o lugar efetivo para a
existência do erotismo. (BIRMAN, 2001, p. 72).

Esta prática de promover uma frequência erótica fora do âmbito familiar torna-se
ícone para o estudo da poesia erótica de Gregório de Matos, comprovando que à mulher, na
condição de mãe, lhe era proibida a prática erótica, enquanto ao homem sempre foi permitida
tanto a prática erótica quanto a prática reprodutora; contanto que tudo fosse bem dividido.
Percebe-se então que a prática erótica vigente em sua poesia pertence aos homens,
totalmente acobertado pela sociedade - pois, vive-se um sistema patriarcal, onde a dominação
do homem sobrepõe os desejos femininos - juntamente com as prostitutas que estão fora dos
padrões familiares de reprodução justamente por alimentar seus desejos eróticos.
No poema ‘Pica-flor’, a impossibilidade da religiosa de ceder a vez aos impulsos
torna-se peça chave para a sátira gregoriana, onde o poeta responde à ironia com outra,
envolvendo não só os aspectos relacionados às leis da Igreja, impedindo a irmã de ceder a
“sugestão” do poeta, como aos próprios pudores que a mesma escolheu para si, o celibato.
No segundo poema proposto, Gregório apresenta o descaso à mulher, onde o capitão,
intitulado Surucucu nos versos, realiza seus impulsos eróticos com a mesma, que só possui
contatos íntimos com o capitão pelo grau social dele; segundo o poeta, ela aparenta não ter
outra escolha, contudo, Gregório não livra o interesse da mulher ao ato. O poeta Baiano
também nos apresenta um capitão aparentemente forte no que diz respeito ao sexo, mas,
totalmente irresoluto no que diz respeito à política.
Já no poema de Maria Viegas, senhora sustentada pelo Capitão Bento Rabello,
Gregório de Matos nos revela uma mulher que falava palavras proibidas para as mulheres de
respeito daquela época, palavras de baixo calão que só eram permitidas que saíssem da boca
dos homens. O poeta revela sua posição patriarcal, rebaixando a mulher a condição de
prostituta pelo fato de dizer e fazer o que pensa e sente vontade.

Gregório e a condição feminina: passes e impasses

Não desconhecemos que Gregório de Matos, livre de qualquer dogmatismo, nos


apresenta uma nova forma de ver e viver a vida em busca de liberdade e revela, através de sua
poesia, as mazelas do seu povo.
O Boca do Inferno , inconformado com a corrupção e as atrocidades do governo e da
igreja, nunca deixou de escrachar a sociedade do século XVII, entretanto, também não
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desconhecemos que o poeta não se preocupa com a condição da mulher na sociedade em que
viveu, ao contrário, Gregório de Matos se revela um homem machista, que reduz a mulher a
condição de objeto e que valoriza o patriarcado, revelando não só a sua postura de aristocrata
e homem mas, acima de tudo, revelando o comportamento do povo baiano na era colonial.
Devemos nos voltar também para o comportamento da mulher colonial, a forma como
ela se posiciona frente ao patriarcado, sua condição submissa ou ainda o tímido
inconformismo de sua condição inferior.
Ousado, Gregório de Matos, no poema “Pica-flor”, devolve a sátira feita por uma
freira que compara sua fisionomia com a de um pica-flor, nome antigo do beija-flor. Pela
semelhança do nariz delgado do poeta com o bico do animal, a irmã debocha do “Boca do
Inferno” que andava desgostoso quanto ao comportamento da Igreja e, obviamente, não
deixaria de responder com uma inteligente sátira, construída não só para atingir e devolver a
zombaria, como para atingir a Igreja na figura da religiosa.

A uma freira que satirizando a delgada


fisionomia do poeta lhe chamou "Pica-Flor"

Décima

Se Pica-Flor me chamais,
Pica-Flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome que me dais,
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica,
Que fico então Pica-Flor.
(MATOS, 2010, p. 651).

Gregório apresenta uma décima, de caráter erótico composto por trocadilhos


inteligentes em estilo cultista e uma linguagem nada convencional que transpõe, através das
entrelinhas, o real significado destas palavras no poema, aparentemente fora de qualquer
convenção erótica, como o “pica-flor” ou ainda simplesmente “flor”.
Observa-se que estas singelas palavras, carregadas pela oralidade, possuem um caráter
intimista e acabam por revelar um poema cheio de mensagens reveladoras quanto às questões
sociais no que se refere à Igreja. Gregório conclui a conversa com uma irmã religiosa, que,
tenta fazer uso da sátira, forte arma do poeta, contudo, acaba perdendo para o concorrente.
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Nesta perspectiva, o poeta acaba por “devolver na mesma moeda” a sátira afirmando
ser sim um pica-flor, mas que fará com que a flor que a mesma freira guarda, seja penetrada
pelo Pica, ou seja, pelo próprio poeta. A flor, nada mais é do que a genitália feminina e o bico
do beija-flor a genitália masculina.
Assim, Gregório personifica o pica-flor e escandaliza o pudor imposto pela igreja
católica às freira, maquiada pelas mais variadas questões sócio-culturais, através da genitália
da freira representada na flor (KEHL, 2008, p.53). Transforma a freira numa mulher sedenta
de prazer e ele no homem que satisfará os desejos físicos da mesma “picando sua flor” através
do sexo, caso ela permita que o faça.
Para tanto, Araújo (2009, p.68) explica que o comportamento das freiras devia ser
sempre de passividade , sem qualquer manifestação de sexualidade, vaidade ou sedução,
afinal, elas dedicam suas vidas a Cristo e a Igreja, e portanto, devem seguir a palavra sagrada.
O que acontece, no entanto, é a aparição de “freiráticos”, como Gregório de Matos, que
frequentavam as celas das religiosas, e num jogo de sedução, satisfaziam seus prazeres e os
das religiosas.

O último lugar onde se poderia esperar a manifestação da sexualidade


feminina seria nas celas dos conventos, pois ali as mulheres deviam
recolher-se por expontânea vontade e, como “esposas de Cristo” renunciar
por completo aos prazeres sensuais. (PRIORI, 2009, p. 68)

Na segunda análise, Gregório não maquia significado algum procurando ser o mais
direto possível; aqui, o social, o político e o feminino são as chaves da poesia:

Ao mesmo capitão fretandolhe a amasia certo homem chamado O Surucucu.

Passou o surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luísa o cu:
Jesu nome de Jesu,
disse a Mulata assustada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da escolta
dê uma volta, e na volta
poderá dar-me a dentada.

Apenas isto escutou,


quando a boa cobra solta
deu a volta, mas a volta
não foi, a que a namorou:
porque o bom Adão achou
no Paraíso, ao entrar,
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sem poder a Eva falar,


jurando o seu nome em vão,
pecou no segundo então,
por no sexto não pecar.

O seu Santo nome disse


em vão: mas o capitão
perguntou a Luísa então
a causa da parvoíce:
ela; porque ele ouvisse,
toda de risinhos morta,
este mandu (disse absorta)
não repara, que se implica
marchar eu com outra pica,
tendo o Capitão à porta?

Saiba, Senhor Capitão,


que se Luísa, se fornica,
antes com homem de pica,
que com homem de bastão:
porém se este toleirão,
quiser vomitar peçonha,
livrar-me-ei dessa erronha,
pois na sua cara vejo,
que terá muito de pejo,
mas tem mui pouca vergonha.

Prometeu vir do passeio


veio como um corrupio,
eu não vi homem tão frio,
que tão depressa se veio:
sobre ser frio é mui feio;
sobre ser feio é mui tolo:
porém se o meu porta-colo
não erra, tem o magano
nos culhões muito tutano,
na testa pouco miolo.
(MATOS, 2010, p. 299-300).

Atenta-se para a construção do feminino perante a sociedade baiana, onde o descaso à


mulher é exposto em versos sem nenhuma crítica, pelo contrário, é tratado como uma prática
absolutamente normal e frequente dos homens.
No que diz respeito ao âmbito sacrossanto familiar, cabia às mulheres a reprodução,
pois para Araújo (2009, p.73) “A mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo
algum amante”, enquanto no que se refere às mulheres propensas ao erotismo, isto é, fora do
contexto social de família, o costume erótico era totalmente normal e aceito por todos, o que
acontece no poema em análise.
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Percebe-se então que a prática erótica promovida neste poema pertence a um homem
totalmente acobertado pelo social - pois, vive-se um sistema patriarcal, onde a dominação do
homem sobrepõe os desejos femininos - juntamente com uma mulher fora dos padrões
familiares de reprodução justamente por alimentar seus desejos eróticos.
Nota-se, primeiramente, que Gregório inicia sua sátira com a nomeação do capitão
referido: surucucu, um réptil das matas tropicais brasileiras que pode atingir 3,60m de
comprimento, sendo esta a maior cobra venenosa do Brasil (AURÉLIO, 1988 p. 618).
Portanto, Gregório inicia seu discurso poético atingindo diretamente o capitão
chamando-o cobra venenosa. Em seguida prossegue com a sátira, afirmando estar o mesmo
capitão no cio, estado de receptividade sexual extrema por que passam as fêmeas de
muitos mamíferos (AURÉLIO,1988 p. 152).
Torna-se visível a percepção da sátira unida ao erotismo de Gregório no que se refere à
construção da personagem no poema, onde o capitão encontra-se em estado de cio, estado este
que não pertence aos seres humanos. O incansável Gregório ainda se permite rimar cu com
Jesu, num vocabulário familiar e grosseiro. Ao dessacralizar o sagrado, Gregório quebra todos
os paradigmas direcionados à moral e boa conduta.
Prossegue Gregório com a picardia ao capitão informando-nos de que ele convidou a
negra Luísa ao ato sexual apenas por um assobio. Formam-se aí dois caminhos de análise,
pois, o poeta tanto satiriza o capitão, que fez uso de um gesto cotidiano do povo, o assobio -
podendo considerar um ato gentalha para um nobre – quanto inicia sua aspereza ao caráter
feminino exposto em Luísa, pois, a uma mulher dentro dos padrões sacrossantos da família, a
uma mulher destinada à maternidade, o capitão não chamaria com um assobio (BIRMAN,
2001, p. 72).
Gregório de Matos afirma que bastou um simplório assobio de um capitão para que a
mulher se dirigisse a ele, o ouvisse e pusesse em prática sua sugestão; o sexo promovido pelos
prazeres eróticos. Deve-se tomar cuidado com a questão sugestiva deste assobio, porque a real
intenção do poeta é informar que a mulher cede facilmente à chamada masculina sem
pestanejar.
O poeta permanece com a sátira e em seguida faz uso direto e escrachado do poder
erótico de persuasão informando ser o assobio forma de chamado do capitão para a
consumação do sexo anal com a mulher. Sendo esta uma forma sexual de alto grau
preconceituoso, ainda nos dias de hoje, o que faz do poema um texto forte e direto.
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Gregório continua a narrativa afirmando que a mulher convenceu o capitão de voltar


posteriormente para que se conclua o ato sexual. Aqui, o poeta compara Luísa a Eva e o
Capitão a Adão, fazendo um confronto entre este trecho do poema e a passagem bíblica da
tentação da serpente, que termina numa negação de Eva para com Adão e vice-versa. Aqui a
negra Luísa é mais uma vez rebaixada à condição de inferioridade; o pecado original
instaurado em Eva – mulher fraca que cedeu às obras do demônio – é então transmitido de
mulher para mulher e por isso, não se deve considerar qualquer questionamento feminino, já
que ele é fonte do pecado original.
Assim, a mulher do poema prossegue afirmando que se implica marchar ela com outra
“pica” tendo o capitão à “porta”, isto é, pode ela ter relações com outro homem estando o
capitão ao seu redor, contudo, não deve. E aqui são observadas mais duas comparações: pica,
representando outro homem através da genitália masculina, e porta, representando a genitália
feminina pelo vão de entrada da sua própria casa.
Estes tratamentos chulos, relacionados aos aspectos eróticos da mulher, podem ser
compreendidos mais uma vez no que diz Birman quanto à prática erótica das prostitutas bem
como o comportamento da sociedade quanto ao posicionamento masculino.

A higiene social e a política médica articulavam-se, numa rede complexa, às


recentes práticas da ginecologia, da obstetrícia e da pediatria, com a
finalidade de promover sempre melhores condições sanitárias ativa da
qualidade da população. O desejo e a reprodução poderiam ser bem
regulados, nas suas distribuições deliberadas entre o espaço público e
privado, isto é, entre o espaço social ampliado e a família. (BIRMAM, 2001,
p. 74).

Assim, Gregório explicita um acontecimento comum de sua região no poema, onde


Luísa, naturalmente, por estar fora do padrão de maternidade, justamente por ceder aos
impulsos eróticos, tornando-se assim uma prostituta, porque às mulheres de família não lhes
era permitida a prática erótica, está propensa a trocar um homem por outro. Contudo, por se
tratar de um capitão, Luísa não ousa fazer a troca por saber que o poder patriarcal e político
deste homem permanecem em voga.
Gregório de Matos conclui sua narração afirmando Luísa ter esperado o capitão e
concluído o ato sexual. Ele também informa que a negra prefere outros homens a ele, mas,
pela sua posição social, acaba por esperá-lo e dar preferência. O poeta também afirma ser o
capitão um homem de boa prática sexual, entretanto, totalmente fora dos aspectos
direcionados a sua posição pública, isto é, um homem frio e tolo que não condiz com sua
nomeação.
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Observa-se em todo o corpo do poema que a esta mulher que entregou-se aos desejos
do inconsciente lhe fora taxado não só um nome que a impulsiona a inferioridade, como a
todos os costumes e relações direcionados a ela. Totalmente desvalorizada, primeiramente por
sua posição de mulher e, posteriormente, por sua cor e pela preferência aos impulsos eróticos,
Luísa continua em sua posição subalterna em relação à superioridade patriarcal.
Dentro da mesma ótica de análise, no terceiro poema, Maria Viegas já sofre no título
porque falava obscenidades e porque dependia financeiramente do capitão Bento Rabello.
Diferentemente de Luísa, que é tratada como prostituta e negra, Maria Viegas é tratada de
início como senhora e dama, portanto, mulher de respeito. No entanto, no decorrer do texto
Gregório de Matos muda seu conceito e transforma Viegas numa mulher de nenhum valor,
que não se conforma com sua condição de subordinada e que por ceder à busca do prazer não
merece nenhuma consideração.

A huma Dama por nome Maria Viegas, que falava fresco e corria por conta
do Capitão Bento Rabello seu amigo
Senhora Cota Vieira,
Deus me não salve a minha alma,
se vós não me pareceis
uma linda, e gentil dama.
Tão risonha como a Aurora,
tão alegre como a Páscoa,
mais belicosa que o fogo,
e mais corrente que a água.
Picará como nascida
na picardia da França
e assim francesa nas obras,
Portuguesa nas palavras.
Tudo chamais por seu nome
tão propriamente , tão clara,
que ao cono lhe chamais cono,
chamais caralho à caralha.
Malditas da maldição
de Deus sejam as tavascas,
que de surradas nas obras
põem de bioco as palavras.
Há cousa como chamar,
o que uma cousa se chama,
porque sirva de sustento
à luxúria que desmaia.
Há cousa como falar,
como Pai Adão falava
pão por pão ,vinho por vinho,
e caralho por caralha.
Quem pôs o nome de crica
à crica, que se esparralha
senão nosso Pai Adão
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quando com Eva brincava?


Pois se pôs o nome às cousas
o pai da nossa prosápia,
porque Deus lho permitiu,
nós por que hemos de emenda-lás?
Mas tornando ao vosso garbo,
sois, Maricas, tão bizarra,
que esteve nem mais nem menos
por vos dar a piçalhada.
Teve debaixo da língua
o pedir-vos uma lasca
da nata do vosso cono,
se é, que tem côdea essa nata.
Quando a culatra vos vi
tão tremenda e rebolada,
meti logo a mão na porra,
e estive saca, não saca,
Mas reverente adverti,
que alí o Capitão estava
senhor das minhas ações
e dono da vossa casa.
Porque inda que sempre diz,
que assentou convosco a espada,
eu creio, no que Deus disse,
não no que um berrante fala.
Quem, o que deve a um amigo
em respeitos lhe não paga,
não é amigo, nem homem,
é uma besta assalvajada.
Mas andar, foda ele embora,
isso não importa nada,
teremos amores secos,
seco é o biscouto e campa.
Falaremos sempre aos molhos,
e riremos as canadas,
folgaremos, que amor seco
sem molhar beiço se passa.
Irei conversar convosco,
e a reverenda Madrasta
entre os pontinhos que der
meta sua colherada.
Assim se passa uma vida
tão santa e tão ajustada
que ganharemos o céu
na sacra via às braçadas.
Meus recados à Velhinha,
Outros tantos à Mulata,
à Negrinha da corrente
e às vossas Damas pintadas.
(MATOS, 2010, p. 437 a 439)
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O poeta maldito inicia a sátira se voltando para Deus para que Ele não o salve caso o
próprio poeta esteja mentindo em relação à Maria Viegas, senhora linda e gentil. Faz uso da
comparação enaltecendo a aurora e a páscoa junto ao riso e a alegria da mesma dama.
No entanto, os problemas da senhora Maria Viegas, segundo o mesmo poeta, estão
inicialmente nas palavras, pois buscando inspiração na picardia francesa e astúcia portuguesa
a dama não se preocupa em falar palavras de baixo calão, palavras estas que estão diretamente
ligadas ao erótico, como “cono” e “caralho”, que só podiam ser proferidas pela boca de um
homem.
O boca do inferno amaldiçoa a mulher que a pouco cobria de elogios por ser repleto de
luxúria todo o posicionamento da mesma senhora Viegas. Como afirma Araújo (2009, p.73)
“Assim devia ser e assim era: a sexualidade negada em benefício do espírito irrompia na
clausura feminina, incontida, imoderada, impudica, mas exercida com a descrição possível”.
Portanto, a Maria Viegas é uma senhora que não se conforma com o posicionamento
masculino de imposição à submissão feminina e não teme em dizer palavras proibidas para
mulheres nem muito menos deixar de satisfazer seus prazeres porque os mesmos eram
considerados amaldiçoados, se vindos de uma dama.
Adão, homem e responsável pela criação dos nomes de todas as coisas, segundo a
bíblia, podia proferir as palavras chulas que a uma dama não era permitido pois Eva não o fez.
Desta mesma maneira, Gregório de Matos vai convencendo o leitor de que a senhora Maria
Viegas não merece mais nenhum prestígio e que ele, assim como Adão, pode proferir as
mesmas palavras que a dita senhora proferia, pois é homem.
E assim ele o faz e acrescenta outras tantas fazendo uma brincadeira com dois
personagens sagrados como Adão e Eva, descrevendo o ato sexual dos dois, justamente
quando Adão decidiu dar nome a genitália feminina: Quem pôs o nome de crica/ à crica, que
se esparralha/ senão nosso Pai Adão/ quando com Eva brincava.
O poema prossegue com Gregório de Matos revelando seu desejo em fazer sexo com a
Maria Viegas, já que ela não merecia mais respeito algum, e assim, satisfazendo seus
impulsos eróticos apresentados pelo id, o inconsciente, além de participar da satisfação do
prazer sexual da própria Maria Viegas.

[...] Segundo esta visão, temos de distinguir duas classes de instintos, uma
das quais, os instintos sexuais ou Eros, é, de longe, a mais conspícua e
acessível ao estudo. Ela abrange não apenas o instinto sexual desinibido
propriamente dito e os impulsos instintuais de natureza inibida quanto ao
objetivo ou sublimada que dele derivam, mas também o instinto
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autopreservativo, que deve ser atribuído ao ego [...]. (FREUD, 2009, Vol.
XIX p.53)

É através deste instinto sexual desinibido estudado por Freud que Gregório explicita
em seu poema. Tanto o poeta quanto a Maria Viegas são levados pelo impulso instintual de
natureza inibida; ela por fazer e falar coisas proibidas a senhoras respeitáveis e ele por expor
seus desejos e práticas na poesia.
Gregório prossegue com o texto e permanece indeciso quanto a satisfação plena de
seus desejos já que o respeitável capitão Bento Rabello era o legítimo possuidor da senhora
Maria Viegas e portanto ele não devia possuí-la.
Embebido aos prazeres e levado pelo inconsciente, pela busca incessante do prazer, ele
trai o amigo e capitão, taxando-o besta, e faz com a senhora Viegas o que ela merecia; rir e
folgar com ele a vontade.
O poeta conclui nomeando a senhora de Madrastra, por não respeitar o capitão
Rabello, e afirma que ela esteve condizente com o posicionamento dele. Gregório de Matos
não tira a culpa da mulher retratada no poema em nenhum momento, afinal sempre foi de sua
vontade a satisfação verbal e física de seus prazeres, e por isso, o poeta faz com que Maria
Viegas comungue das suas mesmas fantasias e desejos.
Sem se desligar da galhofa, o poeta maldito brinca com as mulheres de diferentes
classes sociais e afirma que tanto a velhinha, quanto à mulata ou à negra acorrentada, podem
seguir o exemplo da Maria Viegas se assim desejarem satisfazer seus mais ocultos e proibidos
prazeres eróticos. Quanto às damas, estas que assim o fizerem, usarão seu status para
mascarar a verdade mais vibrante impulsionada pelo id, a consumação do prazer estimulada
no inconsciente.

Considerações Finais

Pode-se compreender, portanto, a relação entre a figura feminina e a poesia satírico-


erótica gregoriana, onde, a partir destes três poemas a mulher é apresentada num contexto de
subordinação e desrespeito.
Mesmo que seja da vontade da mulher, a ela a satisfação dos desejos sexuais não é
permitida. Assim os estudos de gênero podem, perfeitamente, ser aplicados nestes três
poemas, pois, atrelados a conceitos básicos de psicanálise pode-se observar, através das
entrelinhas, um outro parâmetro analítico à obra gregoriana.
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Analisamos três poemas e três mulheres diferentes: uma freira que através do celibato
se escondia sempre que podia, mas que não tinha liberdade para a satisfação erótica, uma
mulata e prostituta, que inicialmente pela condição social que pertencia, unida a sua cor de
pele, foi totalmente desrespeitada e como não estava dentro dos padrões sacrossantos
familiares que a sociedade e a igreja impuseram passou a ser tratada como objeto e, por
último, uma dama que também revela seu inconformismo por não poder satisfazer seus
prazeres e, portanto, passa a não ser mais respeitada como dama, e sim, como objeto fonte de
prazer.
O rebelde Gregório de Matos sabe como ninguém prender o leitor e apresentar suas
ideias de uma forma inovadora para a época, sempre num tom forte e sarcástico, na busca por
um leitor mais crítico e conhecedor das mazelas de seu tempo; mazelas estas que ainda estão
presentes, fazendo de Gregório e sua poesia ícones fortemente atualizados para a sociedade
pós-moderna.
Não há como não perceber que a alcunha de “Boca do Inferno” realmente tornou-se a
melhor apresentação para o poeta Gregório. Um homem que, mesmo com a proteção junto
aos conhecimentos políticos, teve coragem para expor suas ideias e não fez silêncio diante de
todos os problemas vividos em sociedade: seja a igreja, como fonte de privação eterna do
prazer, seja a política, como princípio de corrupção de uma sociedade ou, ainda, a relação
homem-mulher, causa primeira da diferenciação quanto à posição social, política e econômica
entre essas criaturas, ideias estas claramente apresentadas neste trabalho a partir dos poemas
propostos.
Talvez, análise mais crítica em relação à alcunha de “Boca do Inferno” seja revelar o
poeta maldito como homem nem um pouco preocupado com a posição da mulher em
sociedade, pela forma como o próprio poeta trata a mulher e sua condição de submissão e
posição inferior frente à dominação e ao poder masculinos.
O próprio Gregório de Matos é um dos contribuintes para a desvalorização da mulher
na colônia. Crítico em umas questões, totalmente acomodado e condizente em outras. Por isso
sim, boca do inferno.

Referências

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Paulo: Círculo do livro, 1986.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
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Contexto, 2009.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 920

ARIANO SUASSUNA: AMOR E MORTE, UMA TRAVESSIA

Osmirely Cavalcante Rufino


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte- UERN

Apresentação do autor

O presente trabalho visa o estudo do poema “Amor e Morte” do escritor, dramaturgo,


romancista e poeta, Ariano Vilar Suassuna. Nascido em 16 de Junho de 1927, na cidade da
Paraíba, atual João Pessoa. Posteriormente, em meados de 1942, muda-se para Recife, onde
em 1945, conhece Hermilo Borba Filho na Faculdade de Direito, junto com este, Suassuna
funda o Teatro do Estudante de Pernambuco - TEP. Em 1947, escreve sua primeira peça, cujo
titulo era Uma Mulher Vestida de Sol. Nos anos seguintes, suas peças são Cantam as Harpas
de Sião ou O desertor de Princesa e Os homens de barro foram montadas pelo TEP.
Em 1950, recebe o Prêmio Martins pela peça teatral O Auto João da Cruz . No
intervalo entre os anos de 1951 e 1955, Arianos escreve Torturas de um Coração (1951), O
Castigo da Soberba (1953), O Rico Avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955).
No ano de 1957, foi encenada a sua peça O Casamento Suspeitoso, em São Paulo, e O
Santo e a Porca; em 1958, foi encenada a sua peça O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna;
em 1959, A Pena e a Lei, premiada dez anos depois no Festival Latino-Americano de Teatro.
No mesmo ano, junto com Hermilo Borba, funda o Teatro Popular do Nordeste.
Em meados de 1970, Ariano inicia o Movimento Armorial, convocando grandes
nomes da música a juntar-se ao movimento que ocorreria em Recife, em 18 de outubro de
1970, com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial”.
Entre 1958 e 1979, publica o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
Vai-e-Volta (1971) e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça
Caetana (1976), classificando-os como “romance armorial-popular brasileiro”.
No dia 3 de agosto de 1989, foi eleito o sexto ocupante da cadeira nº 32 da Academia
Brasileira de Letras - ABL, sucedendo Genolino Amado.
Faleceu no dia 23 de julho de 2014, no Recife, aos 87 anos, vitima de um acidente
vascular cerebral (AVC).
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O poema

Do ponto de vista formal, o poema caracteriza -se como soneto clássico, posto que em
sua metrificação - os versos são decassílabos , as rimas são regulares (ABBA; ABBA; CCD;
EED). Apresenta a estrutura fixa de 2 (dois) quartetos e 2 (tercetos).
A escrita erudita da língua fica marcada no soneto principalmente através das
expressões: ILUMINEIRA, CINZEL, JAVARDA. Características do estilo literário
parnasiano, estilo que se caracteriza pela utilização de vocábulos eruditos.
O poeta interpreta de forma real as seguintes abstrações: Cobra, Corça, Leoparda,
Anjo, Cinzel, Porco, Divino, Morte, Cutelos, Asas, Dragões. A personificação deste
elementos fica evidente por meio do uso de formas maiúsculas, na primeira letras, o que
provoca uma ambiguidade entre o real e o não- real.

Ariano Suassuna e Augusto dos Anjos

Conterrâneos, nascidos na Paraíba, poetas singulares da literatura brasileira,


partilhavam de uma mesma temática principal em suas obras :A Morte para ambos era um
tema corriqueiro e suas obras. Para Suassuna a arte, o amor pelo sexo e a morte são os modos
pelos quais o ser humano deixa-se tocar por uma divindade:

“nossa busca da Beleza pela Arte, do Amor pelo Sexo, da Morte como fonte
de Vida, [são] os três ásperos e belos caminhos através dos quais o homem
mortal às vezes experimenta ainda nesse mundo escuro, o toque da
Divindade imortal “
(Suassuna, 2008, p. 227)

Já Augusto dos anjos no poema Cismas do destino descreve a morte como o ponto
final da última cena da vida.

“Morte, ponto final da última cena,


Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!”
(Anjos. A dos.1995,p.37-38)

Ambos expressão a mesma temática em suas obras, embora cada qual direcione ao seu
ponto de vista próprio criando poemas semelhantes e diferentes ao mesmo tempo.
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O amor para Suassuna é como um prêmio que colorará o sofrimento de uma vida, uma
alegria para aquele que padeceu durante sua trajetória. O pessimista Augusto o enxerga como
uma ilusão, quiçá uma mentira.

Realidade e ficção

O poema apresenta através de pares opositivos, um conflito entre o mundo e a ideia,


na segunda estrofe, especificamente nos seus dois primeiros versos encontramos o par ANJO
x PORCO:

“O Anjo sopra a corneta e se retarda:


seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.”

Nestes versos presencia-se uma oposição entre algo santo, o anjo, e algo profano, o
porco, causando uma dualidade entre os termos e o significado a que se propõem.
O segundo par surge no último verso do soneto que é ASAS x DRAGÕES, .que
remete a mesma ambiguidade do par anterior.
Suassuna cria uma ponte entre o real e o imaginário/ficcional, por meio de figura tais
como os pares descritos a cima, criando uma estética própria.

Considerações finais

Ariano consegue em um mesmo soneto compilar concepções distintas, tais como o


amor e a morte dentre de uma perspectiva simples e envolvente, criando por meio de
elementos opositivos uma ligação entre o esperado e o inesperado, fazendo com que seu
poema tenha um tom de simples.
Portanto, a beleza de o amor e a morte está no encontro de formas distintas de
escrever, ou seja, a de Suassuna e Augusto dos Anjos, tão diferentes e ao mesmo tempo tão
semelhantes ,o qual influência no cenário imagético de quem aprecia tal beleza expressa em
versos, uma travessia entre dois “mundos “ incorporados no “amor” e “na “morte”, que para
Ariano era a sinfonia barroca da vida.

Referências

ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias, 40ªedição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1995.


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BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira, 33.Ed. São Paulo. Cutrix, 1994.
JOBIM, José Luis. História da literatura ,In: ______. Palavras de critica. Rio de janeiro:
Imago ed. pp.127-150.
MOISES, Massaud. A analise literária.7. Ed. São Paulo. Cultrix, 1998.
NEWTON JÚNIOR, C. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna.
Recife: UFPE, 1999.
SANTOS, I.M.F.dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o movimento
Armorial. Campinas, SP: UNICAMP, 1999.
SUASSUNA, A. Almanaque armorial. Seleção, organização e prefácio de Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
TAVARES, B. ABC de Ariano Suassuna. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
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LITERATURA, CULTURA E TRADUÇÃO

CONCEIÇÃO EVARISTO E O CÂNONE NO BRASIL

Ana Ximenes Gomes de Oliveira


PPGL/UFPB

Na escuridão da noite
Meu corpo igual
Bóia lágrimas oceânico
Crivando buscas e
Cravando sonhos
Aquilombando esperanças
Na escuridão da noite.

Conceição Evaristo

Conceição Evaristo é uma escritora mineira nascida em 1946, doutora em Literatura


Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Poetisa e ficcionista, a autora atua
também como pesquisadora em literatura afro-brasileira e na sua relação com as literaturas
africanas de língua portuguesa. A escrita de Evaristo opera como uma ação direta contra a
hegemonia do cânone literário branco e falocêntrico do Brasil:

O que eu tenho pontuado é isso: é o direito da escrita e da leitura que o povo


pede, que o povo demanda. É um direito de qualquer um, escrevendo ou não
segundo as normas cultas da língua. É um direito que as pessoas também
querem exercer. Então Carolina Maria de Jesus não tinha nenhuma
dificuldade de dizer, de se afirmar como escritora. (…) E quando mulheres
do povo como Carolina, como minha mãe, como eu, nos dispomos a
escrever, eu acho que a gente está rompendo com o lugar que normalmente
nos é reservado, né? A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela
pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é uma
coisa… é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito. (…)
Então eu gosto de dizer isso: escrever, o exercício da escrita, é um direito
que todo mundo tem. Como o exercício da leitura, como o exercício do
prazer, como ter uma casa, como ter a comida (…). A literatura feita pelas
pessoas do povo, ela rompe com o lugar pré-determinado.1

Além de Evaristo, outras escritoras como a própria Carolina Maria de Jesus, a Ana
Maria Gonçalves, fazem parte de um grupo de escritoras contemporâneas, negras, com uma
escrita singular que exprimem experiências vividas e herdadas de suas ancestralidades.

1
Entrevista de Conceição Evaristo concedida a Bárbara Araújo (Blogueiras Feministas) em 30 de Setembro de
2010. Disponível em http://blogueirasfeministas.com/2011/11/conceicao-evaristo/ Acesso em 13 de Outubro de
2014.
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A crítica literária brasileira na atualidade vem discutindo bastante a questão de


formação do cânone na literatura, brasileira e universal. Entretanto, tal discussão ainda se
constitui insuficiente para uma remodelação conceitual e estrutural do que possa vir a ser
literatura. O próprio critério de qualidade por vezes se torna secundário neste conjunto, que
sofre influência do poder social, político e mercadológico. Tal poder é exercido, também,
sobre o conhecimento, que manipulado pelas estruturas sociais e ideológicas, cria uma
conceituação e uma formação de opinião tendenciosa ao patriarcado, o que tende a excluir ou
marginalizar autorias femininas e as discussões de gênero, assim como as abordagens que
tematizam o envolvimento racial identitário na obra, hoje resgatadas principalmente pelos
estudos culturais.
A discussão entre Literatura e Cânone no Brasil é extremamente válida quando se
deseja (re)pensar o que é deglutido como uma literatura fecunda para a pesquisa. A
cultura/herança negra no Brasil é um dos elementos que necessita e se faz urgente de uma
revisão canônica, ato que já vem sido construído desde meados do século XX, como aponta
Florentina da Silva Souza, que explicita em sua tese/livro a necessidade de discussão dos
lugares ocupados pelo negro na sociedade brasileira, que inclui também no campo das Letras,
no meio acadêmico e mercadológico:

No universo acadêmico, nas décadas de setenta e de oitenta, contatei a


publicação de estudos diretamente ligados À história e/ou à cultura negra no
Brasil, os quais indicam a existência de um certo interesse e disposição de
parte da intelectualidade brasileira para o estudo e revisão da história do
negro no país. (SOUZA, 2006, p. 33).

A pesquisadora expõe que não só a atuação e autoria afro-descendente é motivo de


recusa para a hegemonia da literatura no Brasil, mas também a revisão das questões
etnicorraciais é notoriamente insuficiente por parte dos intelectuais. Entretanto, por ser este
tema um elemento intrínseco à nossa identidade cultural, em sua gênese, é visto que este
assunto motiva debates em vários segmentos sociais. É importante ressaltar sua complexidade
na análise social do país, por envolver questões políticas, individuais/subjetivas, históricas e
antropológicas entrelaçadas entre si. O racismo, fruto de um ideal de “branqueamento”
incutido desde a colonização portuguesa, é um tema/problema social que não pode ser
normalizado/banalizado no inconsciente coletivo da nação, para que assim não seja
normatizado, ocultamente, pela sociedade de elite:

Em cada país ou cultura, a depender do grupo que interessa incluir ou


excluir, o racismo ganha endereços e manifestações diferentes, mantendo-se,
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todavia, o pressuposto da existência de raças inferiores que, por conseguinte,


devem ser excluídas das oportunidades educacionais e de trabalho, quando
não levadas ao extermínio. (SOUZA, 2006, p. 47).

A necessidade de debate se faz no âmbito mais profundo da sociedade, pois uma


possível revisão superficial de conceitos gera um agravamento no problema secular que se
vive. Tal debate necessita, ainda, transcender as barreiras da intelectualidade científica,
possibilitando uma consciência rediscutida, atingindo, também, as atuações pragmáticas do
cotidiano social. Ainda segundo Souza (2006), quando cita o pensamento de Gramsci sobre o
assunto, é visto que: “ficam evidentes as estratégias utilizadas pela cultura hegemônica para
promover adequações no seu discurso de modo a viabilizar a absorção das mudanças que as
pressões do grupo minoritário terminam por promover na organização da sociedade.” (p. 129).

A Escrevivência de Evaristo

A naturalização do olhar brasileiro avesso às questões de afrobrasilidade é um dos


elementos que mais dificultam a consciência assumida da miscigenação nacional, na qual
fazemos parte. Como fala Souza (2006) “a categoria ‘afro-descendente’ significa um
repertório variado de tradições e experiências culturais.” (p. 131). Conceição Evaristo é uma
autora que simboliza essa multiplicidade de experiências herdadas do nosso período
escravagista e do nosso pós-colonialismo. A autora coloca o negro como centro de sua
narrativa, prioritariamente a mulher, traduzindo em prosa e poesia o que a cultura africana nos
deixou como tradição e cultura e o que construímos a partir dela, erguendo nossa própria
identidade. “[...] toda a minha escrita, poemas, contos, romances e até ensaios, cumpre um ato
de escrevivência.” (EVARISTO, 2013, p. 31).
Falar sobre a escrita de Conceição Evaristo é iniciar primeiramente uma fala sobre
nossas origens identitárias enquanto nação. Por isso, a temática africana e seu processo
diaspórico na comunidade brasileira, é notória, não necessariamente em sua narrativa exposta,
mas nas entrelinhas de sua escrita, na sua gênese enquanto formação de discurso, de
identidade etnicorracial, da sua cultura.
A discussão sobre África, o que é África e que África conhecemos, transcende a ideia
estética de um continente exótico e ainda pouco desconhecido para o Ocidente. O Ocidente
(nós do Ocidente) tem por vezes a limitação, leviana, de apontar ou dissertar sobre África
através de sua imagem estereotipada pelos de fora. O que se pode observar, mesmo sabendo
que é uma sabedoria externa ao contexto, é que tal continente se alicerça sobre lutas,
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conquistas de independência, conflitos intra-raciais, multiculturalismo regional, e elementos


estéticos e linguísticos do tribalismo cultural2.
O escritor africano, nos remetendo a pergunta Que África escreve o escritor africano?
indagada por Mia Couto em seu livro Pensatempos, se volta para seu país, para sua terra, para
reescrever suas origens com maior apropriação e maior sentimento de pertença colocado na
história de seu povo, história essa que precisa ser recontada, considerando as marcas da
colonização. A literatura pós-colonial olha para o futuro se voltando para o passado de forma
questionadora e impossível de esquecer (tendo a palavra ‘esquecimento’ no sentido de um
emudecimento sobre o assunto com a esperança de se falar de novos temas). A colonização
deixa lacunas que marcam uma identidade e uma sociedade regional. A África que escreve o
escritor africano representa uma “desrrotulação” do aprisionamento criado pela formação
estética do continente pelos países ocidentais, principalmente eurocêntricos. Esse escritor
toma o lugar dos segundos e terceiros que falaram por ele, como nos diz Couto (1998):

O nosso papel é o de criarmos os pressupostos de um pensamento mais


nosso, para que a avaliação do nosso lugar e do nosso tempo deixe de ser
feita a partir de categorias criadas pelos outros. E passarmos a interrogar
aquilo que nos parece natural e inquestionável: conceitos como os direitos
humanos, a democracia, a africanidade. (p. 59, 60).

Por mais anti-colonial que seja qualquer busca de identidade (ou afirmação desta) é
preciso saber que na modernidade, tanto a cultura da metrópole como de toda a sociedade
europeia, assim como a americana e como a cultura local de África, fazem parte de um
compêndio de elementos fortes que estruturam um hibridismo cultural longe de um purismo
platônico. Essa ideia de puro foi mais um conceito criado pelo eurocentrismo como um status
irreal de existência em qualquer sociedade humana. Mesmo assim, foi propagado por muito
tempo como forma de hierarquização entre raças e culturas distintas.
Assim, semelhante a esta motivação do escritor africano, que se ver necessitado de
expor uma visão experienciada de seu continente, uma autora como Conceição Evaristo
escreve (re)construindo um lugar desrrotulado de sua história. A “escrevivência” de Evaristo,
termo criado por ela que transparece a mistura de ficção e memória histórica de um povo,
transmite uma reflexão sobre sua experiência vivida como mulher, negra e afro-descendente.
Além de sua narrativa em prosa, Evaristo também possui poemas que exploram de forma

2
Termo usado pelo autor Severino Elias Ngoenha, em seu texto Identidade moçambicana: já e ainda não,
presente no livro de Carlos Serra: Identidade, moçambicanidade, moçambicanização. 1998. p. 17-34.
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visceral essa temática, como poder ser visto no poema “A noite não adormece nos olhos das
mulheres”:

A noite não adormece


nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece


nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá


jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
(EVARISTO, 2008).

Logo na primeira estrofe é visto que a memória é extremamente importante para a


auto-afirmação da cultura afro-brasileira. A memória é um dos elementos-base para a
reconstrução de uma identidade cultural, pois mesmo que tal identidade frutifique um
elemento híbrido no projeto identitário, as experiências vividas de uma ancestralidade
nacional compõem o futuro. Como “memória” não se deve entender uma prisão ao passado,
mas sim uma consciência da necessidade de afirmação de si, enquanto sujeito social, para
uma mudança posterior. Segundo Le Goff: “A memória, na qual cresce a história, que por sua
vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao futuro. Devemos trabalhar de forma
que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.” (LE GOFF,
2003, 471).
A autora ao dizer que A noite não adormece nos olhos das mulheres demonstra o
papel da mulher como alicerce para a história de sua cultura. Evaristo aborda a fertilidade
feminina como, também, resistência. As mulheres simbolizam a criação, a natureza fértil, e
constroem sua força como uma militância infinita. Porém, tal fertilidade não se veste como a
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construção social, vista na formação ocidental judaico-cristã, mas sim como um dos
elementos que compõem esse ser-mulher.
É difícil se entender como o feminino e ter que permanecer inserida nesta sociedade
patriarcalista. No poema eu-mulher o eu-lírico demonstra esse reconhecimento “universal” do
sujeito feminino e da força geradora que este representa e movimenta na natureza, mesmo
ainda tendo que se perceber sob as forças do patriarcado:

Eu-mulher em rios vermelhos


inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes - agora - o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
(EVARISTO, 2008)

Este poema é conhecido como uma espécie de manifesto feminino, que expõe
concisamente a força feminina que envolve todo o universo humano. Como aponta Rocha
(2014):

Na esteira feminista social, cultural, artística e literária, Conceição Evaristo


enfatiza, de forma verbal e visceral, que o poder feminino não se reduz à
maternidade biológica em sua dimensão maior - casa/ criança/ cozinha/
tanque/ igreja -, mas abrange e valoriza outras formas de maternidade: a
social, a de mulheres que, apesar de não serem mães biológicas, amam,
educam, orientam e apóiam seus “rebentos”, e são capazes de gestar e gerar
ideias, ensinamentos e projetos em prol de um futuro sem patriarcalismo e
pleno de igualdade dos direitos humanos. (p. 262).

No romance Ponciá Vicêncio, da mesma autora, é vista a necessidade de


esquecimentos quando se pensa em futuro. Tal “necessidade” se firma pelo passado histórico
da cultura negra advindo da escravidão e da herança escravagista que compõe o pensamento
da sociedade branca ocidental. Na obra, a autora explora, também, a maternidade como um
elo entre a ancestralidade indetitária, que constroi uma resistência como ação política de
unidade. As mulheres participam de uma sociedade falocentrada, porém constroem uma visão
matriarcal na pragmática do núcleo familiar. É válido lembrar que um dos elementos de tal
construção é a coisificação do trabalho do homem negro (ainda fruto da herança escravagista),
que não o tem respeitado nenhum dos seus direitos básicos como ser humano, como a
educação, o descanso e o direito, ou a possibilidade, de participação familiar efetiva, tendo
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que permanecer por muito tempo ausente de casa, o que contribui para que a mulher seja o
centro, informalmente, do seio familiar neste contexto.
A personagem Ponciá Vicêncio tem nas mulheres de sua família, assim como da
comunidade onde nasceu, uma identificação ancestral, porém no seu universo de ser-mãe
existe uma frustração latente, pois ao gerar sete bebês, frutos da sua relação com seu homem,
todos estes nascem mortos. A experiência da maternidade cria uma frustração enquanto
mulher-indivíduo para Ponciá, que entrelaça sua subjetividade com o sentimento maternal e,
pressionada pelo seu marido, sente uma cobrança social em cima desta função, onde sua
própria identidade é posta secundariamente. A mulher-negra como mãe no centro da família
não é recorrente no histórico da literatura brasileira, onde essa mulher sempre, em sua
extrema maioria, foi representada como a babá ou a mulher de forma secundária. Ver-se,
então, que no romance citado de Evaristo, esta “tradição” literária é subvertida. Ponciá
Vicêncio é um romance de formação e por isso expõe uma imagem-histórica do Brasil que
identifica e situa o leitor na sua formação identitária. Há, portanto, um reconhecimento social
do leitor diante da protagonista.
Segundo Candido (2000) a literatura faz parte de uma tríade composta por: autor,
obra, público. Esta composição em sociedade demonstra que tal arte se estrutura de forma
dialética com estes elementos, sendo um reflexo dos discursos produzidos. A literatura afro-
brasileira espelha uma demanda discursiva de um passado histórico, ideologicamente
marginalizado. Aquilo que é marginalizado pela sociedade de elite, com o pensamento
hegemônico, na verdade faz parte de um centro, visto a sociedade a partir de como ela
realmente se configura miscigenada, e não a partir de um ideal euro-centrado de sociedade
branca, classe média. A literatura afro-descendente de Conceição Evaristo coloca em ênfase
as gerações futuras de mulheres negras com uma consciência de si e autoconfiança de suas
identidades históricas. Tal característica de suas narrativas se configura como um dos
elementos que expõem a autora para uma projeção universal. Ponciá Vicêncio é um dos
romances que compõem a bibliografia da autora, ao lado de Becos da Memória (romance),
Poemas da recordação e outros movimentos (poesia) e Insubmissas lágrimas de mulheres
(contos), além das publicações na coletânea Cadernos Negros.

A (não) necessidade do cânone literário


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A qualidade de uma obra literária, assim como sua entrada para o cânone da literatura
contemporânea atualmente, é uma tarefa complexa de se identificar. Devido a forte influência
do valor de mercado, que inclui valores estético-ideológicos, políticos e econômicos, torna-se
necessária uma reflexão crítica sobre a relevância de tais obras. A extensa produção é quase
incalculável, mas o crítico deve se ater a valores que não se percam da literariedade, para
assim analisar sua importância artística e, posteriormente, político-social para o público, como
aponta Ginzburg (2012):

Em tempos em que a complexidade da indústra cultural desafia as ciências


humanas como um campo cifrado, parece improvável que a relevância de
obras literárias possa ser avaliada de modo independente do impacto do
mercado. O questionamento do valor estético poderia demandar uma
percepção crítica dos mecanismos de descartabilidade de valor propostos
pelo consumo. (p. 39).

Por vivermos em uma sociedade espetaculosa, em que os modelos e vontades se retro-


alimentam de forma alienante, principalmente na cultura de massa, a demanda é por
literaturas que expõem o medo e a insegurança do indivíduo, sozinho ou na coletividade, que
consolam e ao mesmo tempo se identificam com tal público. Por isso, a produção deste
modelo aumenta ao mesmo tempo em que estes próprios sentimentos crescem. Há uma
relação construída para se auto-alimentar e reproduzir, pois diante de tais sentimentos de
fragilidade, assim como aqueles que expressam os modelos de vida e os arquétipos
padronizados para serem seguidos, a tendência natural é que se busque tal literatura (tendo
"literatura" como uma arte que se constrói para o/a partir do indivíduo).
Há uma posição avessa do cânone ao se voltar às questões que envolvem os segmentos
sociais na discussão da qualidade literária ou da pergunta anterior à determinada obra: Isso é
literatura?. Assim como já cita Conceição Evaristo, anteriormente, a escrita de segmentos
sociais, como o movimento negro, o feminismo, entre outros, é antes de tudo uma ação
política, um posicionamento social que se recusa a aceitar um lugar pré-estabelecido a ocupar.
O cânone questiona sobre uma possível fuga ao estético nas escritas que se voltam para este
resgate de cunho social, entretanto, como já interroga Jaime Ginzburg, é preciso questionar o
conceito de estético que este cânone se utiliza para opinar, pois experiências sociais, que
expõem o entrelaçamento do indivíduo na coletividade gerando uma construção imagética
deste ser em sociedade, compactuando ou se opondo aos papeis sociais existentes e
(re)criando a história que será alimento do próprio fazer literário é sim um critério estético
relevante transposto na obra e passível de avaliação crítico-literária. Tal valor citado não pode
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ser único de avaliação para que a obra seja sempre posta e debatida a partir de sua
literariedade. Com relação a este tipo de crítica, Ginzburg (2012) diz que:

Se consideramos conservadora e autoritária a posição de defender que uma


obra de arte é boa porque manifesta uma universalidade, que mascara
conflitos, podemos também considerar passível de controvérsia a posição
segundo a qual uma obra é relevante porque corresponde a valores de um
grupo social específico. O preço pago por trabalhos de crítica que se
assumem como associados a uma causa, como o feminismo ou o movimento
negro, é o confronto com os interesses hegemônicos. (p. 49).

Se observarmos que o cânone é um tipo de "instituição" abstrata formada pelos


intelectuais e pela sociedade de elite que exclui na tentativa de universalizar; Se analisarmos
que tal "instituição" institui valores estéticos de avaliação, envolvidos pelos valores político-
ideológicos de uma nação, que tenta manter de forma antidemocrática obras literárias acima
de outras apenas para uma manutenção de ideais de consumo servindo aos ideais de mercado,
dentro dos limites que a indústria cultural permite; Então, pode-se induzir que a não-entrada
ao cânone, voluntaria ou involuntariamente, é um posicionamento ideológico que expressa um
discurso oculto do anti-elitismo literário. Este posicionamento se coloca contra o
enclausuramento estético de mercado na tentativa de descentralizar a construção imagética de
que apenas as obras incluídas no cânone são detentoras de qualidade crítica.
Apesar da literatura de Evaristo ser construída numa narrativa ficcionista, seus
personagens apresentam um resgate e uma espécie de reescritura dos registros históricos
brasileiros, vivencidados principlamente pelo povo de pele negra. Jaime Ginzburg sobre a
chamada “literatura de testemunho” diz que “o problema do valor do texto, da relevância da
escrita, não se insere em um campo de autonomia da arte, mas é lançado no âmbito
abrangente dos direitos civis.” (2012, p.52). Portanto, uma literatura como tal extrapola os
intuitos e lugares canônicos a serem destinados, pois se constitui como uma produção que age
contrapondo o discurso do autoritarismo literário. “Essa literatura também não se filia aos
ideários nacionalistas, tão importantes na historiografia canônica brasileira.” (GINZBURG,
2012, p.53). Por isso mesmo, uma autora como Conceição Evaristo não segue tal discurso
historiográfico, que servindo aos moldes canônicos exclui uma literatura que naturalmente se
encaminhe a redefinir, ou rediscutir, os registros históricos da produção literária do Brasil e da
formação identitária que esta construiu. É, assim como aponta o crítico, um discurso que vai
contra o discurso oficial, o que não poderia ser diferente considerando que tal discurso vigente
é feito para favorecer uma minoria (dita pelo senso de “normalidade” como maioria) que não
representa indivíduo algum.
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ISBN: 978-85-6641465-3
Página 933

Últimas considerações

Falar da obra de Conceição Evaristo e dissertar sobre as críticas existentes ao cânone


literário brasileiro não consiste ser uma tarefa simples ou linear. A autora consegue trazer
concisamente em sua produção literária os discursos políticos e históricos que lhe constroem,
junto à lírica poética com a qual se reconhece e que se formou naturalmente. A luta contra a
exclusão social, a marginalização do negro, a vida desassistida nas favelas pela sociedade e
pelos governos, assim como as relações afetivas e as discussões sobre feminilidade e
fecundidade incorporam sua temática, a exemplo disso está o conto Ana Davenga que narra a
história de um casal que mora num barraco em uma favela do Rio de Janeiro.
Contudo, se torna complexo observar a literatura afro-brasileira como o lugar do
diferente, pois essa “diferença” que lhe é apontada está contida na nossa memória-histórica
enquanto nação. Todos os brasileiros fazem parte desta herança advinda da colonialidade e do
seu período posterior. Questões de raça e etnia não se apresentam suficientes para uma
diferenciação estrutural da sociedade. A identidade cultural a qual compartilhamos cria uma
espécie de unidade identitária híbrida, que independe de uma decisão autônoma do indivíduo,
pois é histórica e social. Conceição Evaristo deixa bem claro em seus romances e em seus
poemas o valor que a memória tem como indicação de futuro. Uma memória que cria
horizontes melhores a partir do momento em que assume e absorve esta sabedoria mística,
onde nosso passado físico comprova em sua história. Escrever transparece, assim, uma forma
de desconstruir a imagem imposta do sujeito negro feminino, protagonizando-o como sujeito
social. Assim posto, Evaristo narra a história individual de suas protagonistas, mas que é
coletivizada a partir de uma memória história de nação, com o desígnio de apontar um futuro
mais igualitário.

Referências

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz: Publifolha,


2000.
COUTO, Mia. Pensatempos. Lisboa: Caminho, 1998.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte:
Nandyala, 2008.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 934

EVARISTO, Conceição. “Nos gritos d’oxum quero entrelaçar minha escrevivência”. In:
DUARTE, Constância Lima; MAIA, Claudia; ABREU, Laile Ribeiro de; BARROCA, Iara
Christina Silva; PERES, Maria de Fátima Moreira (org), Arquivos Femininos: Literatura,
valores, sentidos. Florianópolis: Ed. Mulheres. 2014.
GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: EDUSP, 2012.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. [Tradução de Irene Ferreira, Bernardo
Leitão e Suzana Ferreira Borges]. 5. Ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. p. 419-476.
ROCHA, Denise. “Um canto à maternidade: eu-mulher, de Conceição Evaristo”. In:
DUARTE, Constância Lima; MAIA, Claudia; ABREU, Laile Ribeiro de; BARROCA, Iara
Christina Silva; PERES, Maria de Fátima Moreira (org), Arquivos Femininos: Literatura,
valores, sentidos. Florianópolis: Ed. Mulheres. 2014.
SOUZA, Maria Florentina de. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU.
Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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REVISITANDO O ROMANTISMO POR MEIO DO PASTICHE: UMA LEITURA DE


“H.M.S. CORMORANT EM PARANAGUÁ”, DE RUBEM FONSECA

Bruno Ricardo de Souto Leite1

Introdução

Na coletânea O cobrador, publicada em 1979, Rubem Fonseca aborda a Guerra do


Paraguai em um pequeno conto chamado “A caminho de Assunção”. Já em “H.M.S.
Cormorant em Paranaguá”, do mesmo livro, outra questão que marcou a nossa história no
século XIX entra em foco: a “Lei Bill Aberdeen”. A obra é, ainda, um pastiche do
Romantismo.
A respeito de “H.M.S....” Antonio Esteves (2010, p. 106) afirma que “Pode-se resumir
o argumento do conto de modo bastante simples: em sua agonia, o poeta Álvares de Azevedo
rememora os elementos mais importantes de sua vida.” A síntese é incorreta (ou pelo menos
incompleta) e não dá conta da riqueza da obra.
Por quê?
Podemos começar pela improbabilidade de “os elementos mais importantes” da vida
de alguém (mesmo de uma vida curta, como no caso) se passarem em apenas uma única noite
(tempo que dura o relato delirante em que a narração consiste). Além disso, o conto é
majoritariamente composto por fantasias de um narrador-protagonista inspirado em Álvares
de Azevedo que vira um títere nas mãos de Rubem Fonseca para representar
metonimicamente a segunda geração do Romantismo brasileiro. O ficcionista discute temas
como a influência europeia sobre nossa cultura, e questões extraliterárias, como a escravidão,
a soberania nacional e a condição da mulher.
O fato histórico aludido no conto é um conflito em Paranaguá que tem raízes na “Lei
Bill Aberdeen”, aquela na qual a Inglaterra se deu o direito de aprisionar navios negreiros
brasileiros em nossos próprios portos.
Mas que o leitor não se engane. O autor, habilmente e sem didatismo, nos mostra que
certas questões políticas do século XIX ainda não estão esgotadas, a exemplo da
(inter?)dependência cultural e econômica entre as nações e a sua autonomia.

1
Mestre em Literatura e Cultura pelo PPGL/UFPB.
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Analisamos o conto à luz da metaficção historiográfica e da paródia (nos termos do


Pós-Modernismo): “[...] a paródia pós-moderna [...] sempre é crítica. Isso ocorre porque [ela]
revela de forma mais patente a diferença entre os textos parodiados e paródicos em termos
estéticos, históricos e políticos.” (PEREIRA, 2012, p. 63).
“H.M.S....” é narrado em primeira pessoa. E no presente, numa linguagem direta,
alternando comentário, ação e descrição. O ritmo é ágil, como a mente de um indivíduo
atormentado que tem pressa de viver.
A paródia, que “cria sua própria comédia além da sua crítica” (WAUGH, 2003, p. 69),
pode ser apresentada na forma de pastiche de uma forma literária qualquer. Explicando
melhor: segundo Waugh, alguns romances pós-modernos aparentemente copiam uma
expressão literária “ultrapassada” para denunciar ao leitor hodierno daquele estilo os
convencionalismos que o leitor do passado não percebia. Dessa maneira, a forma antiga ganha
um novo sentido, um novo sopro. (Cf. WAUGH, op. cit. p. 4).

[...]belo pastiche que Rubem Fonseca faz do poeta romântico, incorporando


à sua prosa tão contemporânea a eloquência exaltada de Manuel. Trechos
inteiros de poemas são assim recuperados para nós, e ganham em seu novo
contexto prosaico uma força poética que não suspeitávamos que ainda
persistisse na retórica juvenil de Álvares de Azevedo. (LAFETÁ, 2004, p.
195).

De fato, podemos perfeitamente ler “H.M.S. Cormorant em Paranaguá” como um


pastiche da poesia de Álvares de Azevedo, conforme provam trechos como o seguinte:

Eu te amo, tens o encanto da espontânea canção dos passarinhos, tens os


seios alvos e macios como o pêlo sedoso dos arminhos.
Como podes dizer que os meus seios são alvos e macios se nunca os viste
nem tocaste?
Licença poética, justifico-me. (FONSECA, 2004. p. 581-582).

A cômica retruca de Teresa aos versos de “Meu anjo” farão o leitor “ingênuo" de
Álvares de Azevedo nunca mais lê-lo da mesma forma. Mateus Andrade Pereira (2012, p. 63)
afirma que

A paródia instala a diferença e a ironia com relação a seus intertextos, e


assim subverte a estética dominante e sua ideologia. Entretanto, essa
subversão também pressupõe uma cumplicidade com essas mesmas formas
dominantes e sua ideologia, pois, para que a paródia funcione, ela depende
sempre de seu intertexto.

Quando trabalha com fórmulas gastas mas que ainda têm validade para um certo nicho
de leitores, a paródia os coloca em desconforto. O pastiche denuncia a esse leitor a
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artificialidade da ficção – não só do gênero parodiado, mas de qualquer ficção. E, levando o


leitor a entender o ficcional como construção, ele também começa a suspeitar que tudo ao seu
redor, mesmo o que chama de realidade, é igualmente uma elaboração. Nas palavras de
Patricia Waugh, “a metaficção oferece o reconhecimento, não que o cotidiano deixou de ser
importante, mas que sua formulação através de códigos sociais e culturais está mais próxima
do mítico e do filosófico do que se costumava assumir.” (WAUGH, 2003, p. 1623). Já Gustavo
Bernardo (2010, p. 183) assinala que “A ficção que chama a atenção sobre a sua própria
condição ficcional termina por levantar questões relevantes sobre as relações entre ficção e
realidade e, adiante, questões decisivas sobre a própria realidade.”
Nada é natural ou gratuito. Nada é simples.
Além do mais, argumenta Waugh, o que leva os artistas contemporâneos a se
interessarem pela metaficção é a ausência de modelos estéticos claros para os quais se opor,
como ocorreu até o Modernismo. Quando não há mais o que superar, resta o que parodiar. Os
escritores pós-modernos conseguiram engendrar “uma forma ficcional culturalmente
relevante e compreensível para os leitores contemporâneos” (WAUGH, 2003, p. 184), que
olha para si mesma e, consequentemente, para esse mundo difícil de explicar dos nossos dias.
Literatura pós-moderna para um mundo pós-moderno. Fabiano da Conceição Silva (2010, p.
98) tem opinião parecida:

A arte contemporânea, também chamada pós-moderna, introduz um novo


olhar sobre o papel das ficções literárias, rompendo com a radicalidade
absoluta da modernidade e se voltando para a tradição. Mas tal retorno deve
ser compreendido como uma recuperação crítica de todo o legado
abandonado pela arte moderna.

David Lodge, ele mesmo um romancista, vê o ficcionista contemporâneo emparedado


pela tradição e pelo “ambiente cultural moderno”. Mas em vez de sucumbir, ele se alimenta
dessa tradição.

A metaficção não é, portanto, uma invenção moderna, mas uma forma que
muitos escritores contemporâneos julgam interessante, porque se sentem
sufocados por seus antecedentes literários, oprimidos pelo medo de que tudo
o que tenham a dizer já tenha sido dito antes e condenados pelo ambiente
cultural moderno a ter essa consciência. (LODGE, 2011, p. 14).

2
Sempre com tradução nossa.
3
“No original: “[...]metafiction offers the recognition, not that the everyday has ceased to matter, but that its
formulation through social and cultural codes brings it closer to the philosophical and mythic than was once
assumed.”
4
No original: “a fictional form that is culturally relevant and comprehensible to contemporary readers.”
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Referindo-se a Italo Calvino, Jorge Luis Borges e ao norte-americano John Barth,


Lodge entende que nesses artistas “o discurso metaficcional deixa de ser um refúgio ou um
álibi que o escritor eventualmente usa para escapar às limitações do Realismo tradicional e
transforma-se na preocupação e na inspiração central da obra literária.” (Ibidem, p. 215).
Ao demonstrar como, no romance Bufo &Spallanzani, Rubem Fonseca ao mesmo
tempo se insere nas categorias de romance policial e as subverte, Ana Cristina Carvalho
(2013, p. 163) entende que “a apropriação paródica permite também a reatualização da forma
na relativização das bases do gênero. É um modo de se repensar o gênero e a própria tradição
literária a partir do alargamento da forma canônica”.
Em síntese, a paródia é benéfica para o desenvolvimento e sobrevivência da ficção,
defende Waugh, por ela não deixar o romance “se acomodar” enquanto forma. No mundo do
futebol se diz que “em time que está ganhando não se mexe”. A paródia mostra aos escritores
que em time que está ganhando se mexe sim, do contrário ele para de ganhar.

O manejo das fontes históricas e biográficas por Rubem Fonseca: uma imprecisão
consciente

O protagonista do conto “H.M.S. Cormorant em Paranaguá” se chama, ou diz se


chamar, Manoel – prenome de Álvares de Azevedo. O personagem é um “Frankenstein”
construído com retalhos da vida e da obra do poeta da Lira dos vinte anos. Quem ele é “de
fato” não sabemos. E faz parte do interesse da obra o mistério absoluto que cerca esse
narrador: Quem ele é? Onde vive? Em que época?
Ao longo do conto são espalhadas algumas pistas. Muito poucas, que deixam mais
perguntas do que explicações. As informações sobre Manoel são fornecidas por ele mesmo e
por outros personagens. Um, em especial, tem a função de resgatá-lo do delírio para o que
chamaremos de “plano da realidade”, e assim lança algumas centelhas sobre sua “verdadeira”
identidade: o médico Bustamante.
As intervenções deste se dão em momentos-chave, no início – “Quem sou eu? O Dr.
Bustamante no hospital tem respostas: um poeta que apenas tem para provar seu valor o
aplauso dos estudantes e dos bêbados.” Ao que nosso poeta(?) responde: “Mas pro inferno
Bustamante, tenho o talento que apregôo, sou quem eu penso que sou e ainda terei tempo de
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alcançar a glória e morrer cedo, como Byron[...]” (FONSECA, 2004, p. 573-574) – e no fim
do conto, epifânico5, como todo o resto:

Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta, sedutor de


mulheres, que o Cormorant foi embora, que eu não sou Álvares de Azevedo,
que o Schottisch virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra,
novos escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai.
(Ibidem, p. 584).

“Chamai meu pai”. O conto se encerra. Álvares de Azevedo (o verdadeiro) teria


proferido como últimas palavras exatamente “Que fatalidade, meu pai!” (Cf. MAGALHÃES
JÚNIOR, 1962, p. 205).
Dados biográficos há aos montes no texto (é feita até uma referência ao peso do
cérebro de Byron), mas o tempo e o espaço parecem ser propositalmente confusos. Azevedo
realmente morreu na casa dos pais, no Rio de Janeiro. Também há no conto referências ao
bairro da Cancela e ao Teatro São Pedro, localizados naquela cidade. No entanto, outras
passagens ocorrem em São Paulo, como um baile a que comparece uma filha bastarda do
imperador Dom Pedro I e um diplomata italiano. Sem falar na própria residência do poeta,
onde se passa boa parte do enredo, que ficava na capital paulista, onde ele cursava Direito. A
propósito, bem diferente da efervescente megalópole de hoje, a São Paulo daqueles meados
do século XIX, segundo Ubiratan Machado (2010, p. 19), não passava de um “Burgo
tristonho e sempre coberto de nevoeiro, onde a grande diversão era comer jaboticabas.”. [sic].
Assim, no “plano da realidade” o protagonista encontra-se preso a uma cama de
hospital, já no “plano do delírio” ele e os demais personagens transitam entre o Rio, São
Paulo e a taberna. É notável que o espaço do conto se divida entre a cidade que Azevedo
nasceu e amou, a que estudou e produziu (mas detestou) e a taberna da sua poesia6.
O tempo histórico é igualmente indefinido. As indicações de Bustamante são inexatas
(“outros navios de guerra”, “o Schottisch virou chorinho”, etc.). Por não ser datado, o conto se
passará sempre no tempo de quem o lê. Fonseca toma o seu leitor pelo braço – o de qualquer
época – e o convida a dar uma olhada em torno de si e se perguntar o que mudou, quais são os
navios de guerra, quem são os novos escravos, onde estão os poetas? De acordo com Linda
Hutcheon (1991, p. 147), “A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o

5
“Na ficção moderna, ao funcionar como clímax ou resolução de uma história ou episódio, a epifania assume o
papel que era desempenhado pelas ações decisivas na narrativa tradicional.” (LODGE, 2011, p. 155).
6
Boa parte da narrativa se passa na “Taberna do Sapo e das Três Cobras”, o mesmo estabelecimento que serve
de cenário para o pequeno poema dramático de Azevedo, Os boêmios (AZEVEDO, 2005, p. 48).
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passado na ficção e na história é - em ambos os casos - revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser


conclusivo e teleológico.”
O compromisso de Rubem Fonseca não é com um realismo ingênuo, como seria de se
esperar de um romance histórico “pré-histórico”. Sua ficção não sofre de complexo de
inferioridade em relação à historiografia positivista. Seu objetivo e sua arte é fazer literatura
explorando a História (a geral e a literária), transformando-a em espelho para o leitor.

Romantismo e nacionalismo na visão pós-moderna de Rubem Fonseca

Ainda não discutimos o evento histórico que ocupa posição central no conto – a ponto
de dar-lhe o nome. H.M.S. Cormorant era o cruzador da marinha britânica que, em 1850,
tinha carta branca do governo de “Her Majesty” para perseguir e afundar navios brasileiros
em nossa própria costa, por desobedecerem à “Lei Bill Aberdeen”, ou seja, continuar trazendo
escravos da África. Muitos brasileiros encararam essa postura como arrogante e um
desrespeito à soberania nacional. Ao aprisionar três navios em Paranaguá, os habitantes
daquela cidade portuária reagiram disparando os canhões do forte contra o “Cormorant”,
gerando um incidente diplomático.
Se imediatamente antes e imediatamente após a independência, a nação a ser rejeitada
era Portugal, ao longo do século XIX foi aflorando, ao que parece, uma forte anglofobia (o
que lembra o sentimento de muitos em relação aos Estados Unidos, mais recentemente,
acusando aquele país de manter uma política externa autoritária).
Um exemplo é a “Questão Christie”, da qual trata Ubiratan Machado no seu A vida
literária no Brasil durante o Romantismo, e que nos diz muito sobre a “diplomacia” britânica
do período.
Em fins de 1862, três marinheiros ingleses foram presos por baderna, no Rio de
Janeiro. Então, o ministro plenipotenciário inglês William Dougal Christie exige satisfações
do governo brasileiro, e, além disso,

punição dos policiais que haviam tido o topete de prender súditos de Her
Majesty, the Queen. As exigências, descabidas e ainda por cima formuladas
de maneira agressiva e desrespeitosa, desagradam o governo brasileiro.
Christie não se contém. Em boletim de 30 de dezembro, afixado na porta da
representação inglesa, informa o início de represálias, por meio de navios de
guerra[...]. Para começar, são apresados cinco navios brasileiros.
(MACHADO, 2010, p. 31).
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A comoção entre a intelectualidade local é imediata. Alguém mandou publicar em um


jornal: “Maldição de Deus a todo o brasileiro que comprar gêneros ingleses. Maldição de
Deus a todo o brasileiro que vender víveres à esquadra inglesa”. (Loc. cit.) Machado de Assis
até compôs um hino para a causa.
Outra atitude representativa dessa crise veio de um monumento do nosso primeiro
Romantismo:

Gonçalves Dias, residindo então na Alemanha, fica indignado com a


arrogância britânica e sugere “que se rasgue na rua a casaca do brasileiro que
trouxer um objeto de fabricação inglesa”. Para o poeta, porém, não basta
essa satisfação ao amor próprio. Era preciso que o país rompesse as relações
diplomáticas com seu agressor, para sempre: “Fique em boa hora essa
semente de ódio para o futuro: nem sempre seremos o que somos, nem eles o
que são, e da Inglaterra tudo é preferível à sua amizade.” (MACHADO,
2010, p. 33).

Karin Volobuef (1999, p. 284) observa que “a espinha dorsal do nosso Romantismo é
o cunho nacionalista; como resultado, ele tende a valorizar o que é brasileiro e criticar o que é
estrangeiro.” E “[...]seria errôneo considerar o Romantismo brasileiro um movimento cultural
que se teria subtraído a qualquer crítica da sociedade de seu tempo.”
Também para Antonio Candido (2002, p. 23, 39-40), o Romantismo no Brasil “se
confundiu em grande parte com nacionalismo, [...] destacadamente na sua primeira fase, mas
não se restringindo a ela”. O crítico também afirma, em outro momento, que “O Romantismo
corresponde ao momento histórico em que o homem adquire a ideia da liberdade.” (Idem,
1988, p. 2).
A liberdade não se restringiu ao plano ideológico, mas se refletiu em mudanças
estéticas significativas, conforme observa Marisa Lajolo (2001, p. 79): “A prática literária que
engessava o texto com normas e regras, cedeu lugar a outro figurino, que via a liberdade com
valor maior”. Bem humorada, a autora afirma que os românticos inauguraram a “poesia de
protesto”. (Ibidem, p. 80).
Luís Augusto Fischer vai pelo mesmo caminho. O crítico e professor gaúcho afirma
que essa “tendência libertária” que foi o Romantismo “reinventou quase tudo” e moldou o
conceito de artista que perdura até hoje no imaginário popular. “[...]até então, artista era um
sujeito hábil em repetir determinados padrões já assentados na tradição; a partir do
Romantismo, artista é o que inventa, o que cria aquilo que não existia.” (FISCHER, 2008, p.
134-35).
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Voltando ao conto, o incidente de Paranaguá coloca Manoel a favor dos revoltosos que
dispararam contra o navio de guerra inglês, ao passo que Byron (que no conto é uma espécie
de amigo imaginário de Manoel) sai em defesa de seus conterrâneos, por entender que tais
medidas extremas se justificavam face o horror da escravidão.

No ano do seu nascimento, Manoel, em 1831, entraram no Brasil apenas


cento e trinta escravos, diz Byron, mas, nos vinte anos que se passaram
desde então, o nefando tráfico foi aumentado e quatrocentos e oitenta e seis
mil quinhentos e vinte e seis escravos negros vieram para este país, de
Angola, Moçambique, Guiné, Congo, empilhados pior do que animais, nos
porões desses navios que a Armada da Inglaterra apresa e incendeia.
(FONSECA, 2004, p. 579).

O brasileiro replica:

Os ingleses, retruco, descobriram uma forma mais sutil e aparentemente


limpa de explorar o negro sem ter que transportá-lo através dos mares até a
Inglaterra: a colonização, a exploração do escravo na própria terra dele. Ah,
as hipócritas consciências calvinistas! (Ibidem, p. 580).

O outro não deixa barato:

Byron diz que despreza um país onde a economia nacional e o bem-estar de


um pequeno grupo de privilegiados se baseia na exploração de escravos
ferozmente subjugados. A Inglaterra fez uma promessa de acabar com o
tráfico de escravos, de fazer valer o direito humano do negro à liberdade.
Byron, com um copo na mão, brinda aos ministros de Sua Majestade
Britânica. (Loc. cit.).

A defesa da liberdade é coerente com o político Byron. Em um de seus poucos


discursos na Câmara dos Lordes, o poeta saiu em defesa dos ludistas, os tecelões que
protestavam contra as máquinas recém-criadas que estavam roubando seus empregos. Além
disso,

Byron participou do grupo revolucionário dos carbonários, pelo fim do


domínio austríaco no norte da Itália. Decidiu ainda participar da luta pela
liberação da Grécia do domínio otomano, em 1823, a convite do comitê
Greco-londrino. Participou como soldado e também financiando a luta com
seu próprio dinheiro, doando 4000 libras. (TORRÃO FILHO, 2000, p. 163).

Álvares de Azevedo, por sua vez, não entrou para o cânone literário nacional por sua
obra transpirar ideais libertários. Mas ele não fechou os olhos à política, como comprova o
discurso que proferiu por ocasião da instalação da Sociedade Acadêmica Ensaio Filosófico
(1850), composta por acadêmicos de Direito da faculdade de São Paulo. O jovem estudante é
contundente ao cobrar ação das autoridades para elevar a educação formal do país e sonha
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com o desenvolvimento da poesia e da ciência nacionais e a integração das academias (Cf.


HELLER et. al., 1982, p. 86-92).
Lafetá (2004, p.198) tem um palpite sobre a escolha de Álvares de Azevedo (em tese
um alienado) para protagonizar uma obra de tamanha octanagem política:

É curioso que ele [Rubem Fonseca] tenha escolhido justamente Álvares de


Azevedo – o ‘intimista’, que foi acusado em seu tempo de imitar os autores
estrangeiros, pouco contribuindo na formação da literatura nacional -, como
protagonista deste conto exemplar. Mas entende-se: era preciso um
verdadeiro poeta, no espírito de quem as contradições se cruzassem com
força, para delinear este pequeno quadro poderoso, de dúvidas e hesitações,
que mostram a condição de nosso escritor.

Mas os motivos da eleição de Azevedo vão além. Afinal, a ligação do poeta ao caso
Cormorant não nasceu na cabeça de Rubem Fonseca (daí para temperar o conto com política
“foi um pulo”). Segundo o biógrafo Magalhães Júnior (1962, p. 152), no poema Pedro Ivo,
“Maneco” aproveita os versos de exaltação ao líder da Revolução Praieira, deflagrada em
Pernambuco, para atacar a subserviência do governo imperial à Coroa britânica. A epígrafe
desse poema, de Alexandre Herculano, já aponta nessa direção: “Tristes coroas, sob as quais
às vezes/ Está gravada uma inscrição d’Infâmia” (AZEVEDO, 2005, p. 91).
Nas duas estrofes transcritas abaixo, o tom sobe ao ponto de o Eu-lírico se referir aos
burocratas do Partido Conservador, os mesmos que mantinham o rebelde Pedro Ivo preso em
condições sub-humanas, de “malditos”, comparando sua atitude à de Messalina:

Sim, o império salvai, mas não com sangue!


Vede – a pátria debruça o peito exangue
Onde essa turba corvejou, cevou-se!
Nas glórias do passado eles cuspiram!
Vede – a pátria ao Bretão ajoelhou-se,
Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!
Eles a prostituíram!

Malditos! Do presente na ruína


Como torpe, despida Messalina
Aos apertos infames do estrangeiro,
Traficam dessa mãe que os embalou!
Almas descridas do sonhar primeiro
Venderiam o beijo derradeiro
Da virgem que os amou! (Ibidem, p. 92).

Agora, ao conto. Vejamos a técnica que Fonseca lança mão para transformar os versos
de Azevedo em prosa, no instante em que Manoel, na taberna, fica sabendo sobre o ocorrido
em Paranaguá e os frequentadores pedem um canto de protesto:
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Queremos ouvir o poeta!, bradam as vozes das mesas envoltas em fumaça.


Levanto-me e com meu olhar faço cessar o tilintar dos copos, a risada das
hetairas, a cantilena dos ébrios. Triste coroa sobre a qual acaba de ser
gravada uma inscrição de infâmia! Envolto em seu manto prostituto, nosso
Imperador olvida-se das Glórias que sonhava. Para ele, maldição! Seu leito
lava em lodaçal corrupto. Vede – a Pátria debruça o peito exangue onde a
turba corvejou! Na Glória, no Passado eles cuspiram! Vede – a Pátria ao
Bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se. Eles a
prostituíram! Malditos! (FONSECA, 2004, p. 80).

Manoel faz uma reflexão em que associa a submissão política do Brasil à Inglaterra a
uma influência mais fluida, menos palpável - a dominação cultural:

Byron não precisa de mim, nem a Inglaterra do Brasil, ele é o meu paragon e
o Brasil uma colônia da pérfida Albion. Ser fraco custa um preço alto, chego
às vezes a pensar que o inglês é uma língua mais bonita do que a nossa.
Cormorant só invadiu Paranaguá porque Byron, Keats, Shelley invadiram
antes a minha mente. A colonização se faz em nome de Deus, da Lógica, da
Razão, da Estética e da Civilização. Os imperialistas levam o nosso ouro e
corrompem a nossa alma. Byron e Schomberg [comandante do H.M.S.
Cormorant] eram iguais – a Poesia e o Canhão a serviço da Dominação.
(FONSECA, 2004, p. 581).

Linda Hutcheon (1991, p. 280) considera o questionamento dos campos da ficção e da


História, com a consciência – e o aproveitamento – das interseções entre ambos, uma marca
do Pós-Modernismo. Rubem Fonseca com efeito discute História e literatura através da
ficção. E o faz lançando mão, por exemplo, em “H.M.S...”, de dois ícones da literatura, um de
cada lado do Atlântico – e do jogo da colonização.
É válido observar que, intencionalmente ou não, ao se inspirar na literatura que o
antecedeu para criar a atmosfera e os personagens do conto, Rubem Fonseca ecoa o próprio
Romantismo, o alvo de seu pastiche, cujos poetas “beberam em todas as literaturas 7”. Eis aí
uma correspondência entre os românticos e os autores pós-modernos. Assim como Álvares de
Azevedo é o modelo para o protagonista de “H.M.S....”, Byron serviu de inspiração para o
“Poema do Frade”, de Azevedo. A literatura se alimenta de si mesma, ontem e hoje.
O nosso Maneco não faz questão de esconder a admiração pelo bardo inglês. O que se
traduz, por exemplo, em inúmeras epígrafes e citações. Só em Noite na taverna, Byron é
citado em quatro oportunidades. Já no prefácio de O Conde Lopo, o poeta tece elogios à obra
desse “Bretão sarcástico e desesperançado [...] tão invejado gozador da vida que não se

7
A expressão é de Paul Van Tieghem (In COUTINHO e CARVALHAL, 1994, p. 93). Antonio Candido, por seu
turno, afirma que “Foi durante o movimento romântico que os nossos homens de letras começaram a consumir
considerável literatura em outras línguas.” (2002, p. 84).
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poderia dar como nenhum modelo de moral”, classifica de “primor” Don Juan em duas
ocasiões, e afirma que os cantos de Byron são “ardentes como o tremor do enlevo no sorver
dos beijos” (AZEVEDO, 2005, p. 119, 120).
É digno de nota, nesse sentido, que Fonseca toma emprestado a Álvares de Azevedo e
aos demais românticos o gosto pela epígrafe, como a pedir a bênção a quem lhe abriu
caminhos. Em “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, por exemplo, o contista adota
como epígrafe um trecho de “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro” (1862-3), de
Joaquim Manuel de Macedo, dando continuidade a uma tradição de flaneurs cariocas na
ficção.
A propósito, Ângela Prysthon (1999, p. 22) entende que:

Particularmente quando ambienta seus contos no Rio de Janeiro, Fonseca


reitera toda uma tradição de literatura urbana compartilhada por Joaquim
Manuel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis e João do Rio, com
seus contrastes, com a exploração simultânea do submundo carioca e da alta
sociedade, com o choque entre os extremos [...] em uma das maiores
metrópoles brasileiras. Quiçá o melhor exemplo desse traço seja
precisamente o conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”[...]

Heloisa Costa Miltom (1996, p. 73), a respeito do “novo romance histórico hispano-
americano” (o qual, citando expressão de Emir Rodrigues Monegal, “goza de buena salud”),
afirma que:

Já não se trata mais do romance histórico em sua versão tradicional, mas


desse novo romance histórico que, sem prescindir das formulações
historiográficas, outorga-se, como nunca, o direito de reinventá-las. Opera-se
então um processo de resgate artístico da memória[...]

O mesmo se pode afirmar do conto que ora analisamos. Por meio da paródia, aqui
vista como “forma irônica de intertextualidade” (HUTCHEON, 1991, p. 283), o pastiche é a
única possibilidade de reinserir de modo relevante em nossos dias uma forma cultural
d’antanho, como o Romantismo. “H.M.S...” é um pastiche, mas um pastiche sério, que faz rir
mas também lança luz sobre o passado e o presente - uma vez que, bem como na metade do
século XIX, somos ainda uma nação “em desenvolvimento”.
Essa atualidade, que pode escapar a uma leitura apressada, é mais uma característica
presente no conto que Heloisa Costa Miltom (Op. cit., p. 74) enxerga no romance histórico
latino-americano contemporâneo: “Com a narrativa histórica, o passado adquire uma
organicidade que propicia à visão do presente lidar com inquietudes e indagações, espelhá-las
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e compor, talvez, novos universos de interrogações, em atendimento à dinâmica vital do ser


humano.”

Referências

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UMA VISÃO ANTIMISÓGINA EM CHRISTINE DE PIZAN: A CIDADE DAS


DAMAS

Daniel Eduardo da Silva1

Desde os tempos mais remotos as palavras dirigidas às mulheres na literatura se


revestiram de profundos julgamentos mediante a segregação social destas em relação aos
homens, e foram subestimadas, sobretudo no tocante à sua constituição física em
desvantagem anatômica servilizando-se ao corpo do homem. Este discurso misógino está
enviesado sob a égide da dominação masculina presente na história e nos escritos literários
uma vez que coloca a mulher sob a subordinação do seu espírito à supremacia do patriarcado.
A misoginia2 reflete-se na literatura uma vez que poetas, escritores e filósofos empreendem
um aviltamento androcêntrico à imagem da mulher na história livresca.

O discurso da misoginia é tão persistente na Idade média que a uniformidade


de seus termos fornece uma ligação importante entre este período e o
presente, impondo ainda mais o assunto porque, como veremos, tais termos
ainda governam (conscientemente ou não) as formas pelas quais é concebida
a questão da mulher - tanto por mulheres quanto por homens. Este não é de
modo algum um ponto óbvio e, para amarrá-lo, irei reportar-me não só aos
antifeministas canônicos da Idade Média, mas também aos seus herdeiros
espirituais – os filósofos, novelistas, especialistas médicos, cientistas sociais,
e críticos do século XIX, cujo tipo particular de romantismos e de misoginia
naturalista carrega consigo uma extensa carga de atitudes não examinadas do
passado medieval e mesmo patrístico (BLOCH, 1995, p. 14).

Segundo Bloch, na sua obra Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico


Ocidental (1995), nos apresenta bem o percurso histórico ao longo da história como a
misoginia promove uma cegueira uma vez que viabiliza a ideia de que as mulheres são
inferiorizadas aos homens e, portanto devem permanecer subordinadas a estes em todos os
aspectos, quer sejam, intelectuais, sociais, políticos, religiosos ou culturais. Estes preconceitos
contra a mulher são sustentados por um discurso antifeminista oriundo de um conhecimento
antigo que perdura até os tempos atuais.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor
Efetivo de Filosofia da Educação Básica 3 do Governo da Paraíba.
2
Misoginia, segundo Bloch, é o modo difamatório de falar sobre as mulheres, o que é diferente de fazer algo a
elas, embora o discurso possa ser uma forma de ação e mesmo de prática social, ou pelo menos um seu
componente ideológico. Uma tal distinção entre palavras e feitos, no que tange às relações entre os sexos, é o
fundamento necessário de uma compreensão dialética e política do fenômeno, historicamente inspirada, uma
compreensão de que outro modo permaneceria irremediavelmente emaranhada no literalismo de uma falsa
ideologia, um literalismo que se arrisca a tomar a diferença entre os gêneros sexuais, em vez do exercício
opressivo de poder por parte de qualquer um dos sexos, como a verdadeira causa histórica da injustiça social.
(BLOCH, R. Howard, Misoginia Medieval, 1995, p. 12).
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(...) Ao explorar as armadilhas e paradoxos deste discurso socialmente


sancionado, não é suficiente simplesmente recitar mais uma vez a história de
uma injúria, uma litania de desgraça. Como atesta a persistência dos topoi do
antifeminismo, a retidão moral e os contra-exemplos – tanto medievais como
modernos – historicamente nunca foram suficientes, nem mesmos eficientes.
É preciso levar os clichês anitfeministas até o seu limite para desmascarar
suas incoerências internas – desconstruir, em suma, aquilo que não
desaparece apenas pelo desmascaramento ou pelo desejo de que não fosse
assim (BLOCH, 1995, p. 11).

Considerando o que foi dito acima, o tópico do antifeminismo é um estudo que


legitima o problema da misoginia como representação discursiva quando este cria e promove
ataques contra as mulheres. Desse modo, fica evidenciando um discurso histórico e social que
embora muitas das vezes não seja declarado como o que percebemos ou aprovamos, ficando
dessa forma o dito pelo não dito, está sutilmente representado por um séquito genuinamente
patriarcal que é fundamentado em um androcentrismo literário e representativo salvaguardado
pelas autoridades intelectuais vigentes na tradição livresca.
O pensamento antimisógino de Christine de Pizan (1364 – c. 1430) em sua obra Le
Livre de La Cité des Dames, O Livro d´A Cidade das Damas nos apresenta uma visão
arrojada da narradora para a sua época, viabilizando que a única maneira para o êxito de um
desafio à misoginia, implicava em desmoralizar a idoneidade de prestigiosas autoridades
intelectuais e literárias da tradição literária, partindo do mundo clássico, do bíblico, da
patrística e da vernaculidade medievais para destronar a supremacia patriarcal que vinha das
sociedades antigas. Assim, Pizan descentraliza o poder masculino na literatura que tinha o
domínio preeminentemente de autores de toda a história ocidental face à presença da mulher
na escrita literária.
A partir da leitura de Mateolo3, que falava mal da reputação das mulheres, sempre lhe
ficava algo não tão agradável, que não poderia edificar-lhe em moral, tampouco em virtude.
“Porém, a leitura daquele livro, apesar de não ter nenhuma autoridade, suscitou em mim uma
reflexão que me atordoou profundamente” (PZAN, 2021, p.58). Pizan não concordava que
entre os pontos-de-vista dos sábios, poetas e filósofos a mulher poderia ser má e inclinada
profundamente aos vícios. Ela não aceitava que tantos homens pudessem ter falado de
maneira tão enganosa e em tantas obras sendo quase impossível encontrar algum elogio moral
ou virtuoso sobre a mulher. (PIZAN, 2012, p.59). Pizan reflete bastante e decidi escrever em
defesa do feminino na história da literatura.

3
Les Lamentations de Matheolus: obra latina, traduzida em francês por Jean Le Fevre de Resoon, em 1724. A
edição mais recente da obra data de 1922, publicada pela editora Champio-Honoré.
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Desse modo, a autora em defesa da mulher, com grande habilidade, talvez inspirando-
se em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, Pizan ostenta , não o tema religioso, ou
místico, mas ilustra em sua Cidade das Damas, a boa reputação das mulheres, utilizando-se
de elementos históricos e lendários, trazendo à tona, a estética feminina, ressaltando também
temas morais, bíblicos, para justificar que a mulher considerada o “sexo frágil”, possui a
fortaleza da racionalidade e da inteligência equitativamente tanto quanto o homem,
desfazendo assim, a autora, a discriminação do sexo inferiorizado na literatura ao longo de
séculos na tradição literária.
O livro A Cidade das Damas, desenvolve um pensamento antimisógino de Christine
de Pizan desvencilhando-se do androcentrismo literário tão explícito na baixa Idade Média.
Christine de Pizan é considerada avant la lettre na história da literatura ocidental devido à sua
originalidade e coragem de escrever em defesa das mulheres em pleno medievo. Partimos da
indagação: até que ponto a narrativa de Pizan é uma resposta não só à sociedade misógina
medieval, mas também à nossa época contemporânea? A cidade das damas é um texto gerado
no ardor da transição medieval para o Renascimento. Podemos conceber com a meditação de
nossa autora que o seu pensamento antimisógino lança hoje luzes sobre as questões
contemporâneas acerca dos estudos de gênero em relação à crítica feminista.
Remontando-nos à Antiguidade, no tocante aos pontos de vista de Aristóteles (384-
322 a. C.) e Santo Agostinho (354-430) em relação às mulheres, constatamos que Christine de
Pizan foi uma leitora crítica e ávida desses pensadores apresentando em A Cidade das Damas,
seu descontentamento sobre a concepção da mulher escrita pelos filósofos, escritores e poetas.
Pizan pretende conceber nos textos de Aristóteles e Santo Agostinho uma filosofia isenta de
difamação das mulheres. Desse modo, não podemos separar o discurso filosófico do texto
literário, pois ambos estão imbricados sob um viés discriminatório acerca da mulher e sua
constituição física.
Christine de Pìzan como mulher e filósofa, ao utilizar silogismos e alegorias, afirma
uma filosofia hostil às mulheres, pois a própria filosofia antiga e medieval foi escrita por
homens eruditos e pensadores que retratam historicamente o androcentrismo literário
combatido por Pizan em A cidade das damas. A saber, os silogismos eram métodos de
dedução por meio de uma conclusão, a partir de duas premissas, por inferência lógica. As
alegorias eram recursos literários utilizado pelos autores antigos para representar idéias por
meio de imagens.
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Na filosofia, a alegoria assume um simbolismo concreto, a exemplo da Alegoria da


Caverna, de Platão (c. 427-348 ou 347 a. C.). Este simbolismo caracteriza um dispositivo dos
sentidos por meio do qual a razão não consegue alcançar, ou seja, mediante a personificação
de idéias como pessoas, distinguindo nesse caso, a alegoria como algo mais claro de se
entender e o simbolismo como algo mais obscuro, tendo necessidade de uma exegese no
tocante ao tema tratado.
Nesse sentido, compreendemos as raízes misóginas mediante as obras antigas e
medievais como De Generatione animalium [Sobre a geração de animais], de Aristóteles e De
genesi ad litteram, [Sobre o sentido literal do Gênesis], de Santo Agostinho. Estas obras
filosóficas podem ser tomadas como indícios das questões relativas à inferiorização da mulher
face ao homem na Antiguidade clássica e no Medievo.
Tomando como ponto de partida a narrativa de Pizan, A Cidade das Damas,
identificamos as raízes misóginas e androcêntricas que partem da Antiguidade até à Idade
Média passando necessariamente, por algumas obras literárias, como o Roman de la Rose
(1230), mencionadas no livro de Pizan, as quais constroem os argumentos para a edificação
de sua cidade utópica cujo objetivo é proteger as mulheres vítimas das agressões da sociedade
falocêntrica.
No tocante à Antiguidade, na obra De Generatione Animalium (Sobre a geração de
animais), de Aristóteles encontramos a concepção filosófica clássica em relação à constituição
física das mulheres e sua inferioridade à anatomia do homem que acarretaria a insipiência
racional feminina na ausência de uma inteligência equitativa em relação ao homem. As
concepções deturpadas e segregatórias sobre a mulher partem de Aristóteles e se estendem até
Galeno (130-200), como podemos conceber nas considerações de Fonseca:

O Estagirita havia limitado o papel da mulher na procriação àquele de


matéria prima apenas, a esperar a agência formadora do sêmen masculino,
detentor do princípio da alma. Isso fazia da mulher uma espécie de macho
deformado, inoperante em termos de contribuição ativa no ato da procriação
(ARISTOTLE, 1973, p. 91-3, 97, 101 – 3, 173-5, 185, 459-61). Com essa
mesma visão aristotélica hierárquica dos sexos, Galeno acreditava que
devido à insuficiência de calor no corpo feminino, a sua genitália não podia
ter as necessárias condições dilatadoras para se avultar para fora. Ficava,
portanto, numa configuração anatômica inversa à da genitália do homem,
fato, que corroborava a teoria da fêmea parecer um macho deformado
[GALLEN, 1968, p. 630-2]. (FONSECA, 2011, p. 304).

Segundo Huismann (1993, p. 50), Santo Agostinho, representante máximo da


patrística nos primórdios da Idade Média, escreveu A cidade de Deus, respondendo à
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acusação feita pelos pagãos em 410 de que os cristãos eram acusados do abandono do culto
aos deuses antigos na Roma pagã. Nesse intuito, o bispo de Hipona, empreende a defesa dos
cristãos apresentando uma série de argumentos sobre a natureza do bem e do mal e alega que,
embora a queda de Roma tenha sido considerada um mal, em contrapartida gerou de certo
modo um bem com a expansão do cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. Estes
argumentos foram apresentados para provar que os bens terrestres são perecíveis e que o
homem deve alçar sua fronte para o alto, para “A Cidade de Deus”, onde os bens espirituais
não perecem, e as virtudes cristãs e as boas obras são recompensadas e incomensuráveis.
Para Santo Agostinho, somente a providência de Deus é responsável pela glória de
Roma e não os deuses pagãos. Agostinho condena os pagãos pela idolatria dos deuses no
intuito de obterem bens materiais, e também os pseudos filósofos que justificam essas práticas
pagãs para assegurar aos infiéis a felicidade terrestre.
Considerando as reflexões acima, Christine de Pizan lança mão da estratégia
silogística para construir “A cidade das Damas”. O intuito de Pizan é confrontar os
sentimentos misóginos que cerceiam a humanidade desde o Gênesis, quando Eva na
concepção bíblica, desobedece as ordens divinas e levou Adão a pecar contra Deus. Tanto a
cidade de Santo Agostinho quanto a de Pizan falam de um lugar metafísico a partir de um
sentimento utópico que levará seus habitantes à felicidade plena. Esta concepção agostiniana
impulsiona Pizan a edificar A Cidade das Damas em um plano também elevado, a rigor um
lugar utópico e harmonioso garantido pelas três damas: a Razão, a Retidão e a Justiça.
A Cidade das Damas foi construída sobre alicerces sólidos, pois foi concebida com os
elevados princípios fortalecidos pelas três damas protetoras. Para Santo Agostinho, a cidade
terrestre (pagã), fundada no amor humano e no desprezo de Deus, não possui um ideal de
civilização, nem de felicidade em oposição à cidade de Deus. Para Pizan, a cidade das damas
opõe-se ao androcentrismo literário e à misoginia medieval empreendendo a edificação de
uma cidade em defesa das mulheres lutando pela visibilidade da mulher na literatura e na
sociedade.
Ademais, a tônica alegórica ganha forças logo no primeiro livro de A Cidade das
Damas, quando a narradora-personagem recebe a visita das três damas iluminadas a Razão, a
Retidão e a Justiça. Estas três damas vindas do trono de Deus, nos remetem à uma inevitável
comparação à civitate (divina) de Santo Agostinho, que se contrapõe à cidade terrestre.
Segundo Santo Agostinho, na cidade terrestre os homens se entregam aos vícios,
males morais e toda forma de concupiscência. Em oposição a este quadro, A Cidade das
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Damas, edifica-se sobre alicerces sólidos, uma vez que é simbolizada como uma construção
defensiva para as mulheres das mais altas estirpes considerando-se os variados contextos quer
sejam, o histórico, o bíblico e o literário.
De acordo com Deplagne (2012, p. 41), o termo “dama” utilizado por Pizan em sua
obra é fundamentalmente relevante e literariamente bem aplicado para distinguir que não se
trata de qualquer mulher que ela quer mencionar e/ou elogiar, mas de nobres damas, mulheres
guerreiras, virtuosas e sábias dadas a conhecer publicamente ao longo da história na obra de
Pizan. Na qualidade de dama e nobre, profundamente letrada e esclarecida, Pizan enalteceu a
mulher por meio de argumentos e de exemplos contundentes advindos de mulheres virtuosas.
Podemos, portanto referendar como nossas as considerações de Deplagne sobre a palavra
“damas” no título da obra A Cidade das Damas:

... Christine evidencia o caráter distintivo desse vocábulo feminino,


referindo-se em particular às mulheres nobres, santas, virtuosas, de grandes
qualidades. Não basta ser mulher, biologicamente falando para Christine de
Pizan. O povoamento da “Cidade” foi concebido a partir justamente desta
distinção de valores, como explica a própria autora no último capítulo:
“<<...vous toutes, celles qui aimez gloire, vertu et loz, povez estre hebergees,
tant lês passees damescomme les presentes et celles a avenir, car pour toute
4
dame honorable est faicte es fondee>>. (DEPLAGNE, 2012, p. 41-42).

Constatamos na História universal que o androcentrismo presente na literatura soma-se


ao machismo, à misoginia e à discriminação social em todos os aspectos hostilizando a
mulher. Os arquétipos femininos criados pelas sociedades patriarcais sempre relegaram a
imagem da mulher à sombra dos homens, colocando-a perifericamente na história e longe dos
acontecimentos importantes da sociedade. Esse regime político que era estabelecido pelo
patriarcado na história das civilizações, cujo significado etimológico vem do grego
patriarchés que significa chefe de família; de pater, pai e arché que significa governo,
caracterizava-se pela descendência patrilinear, isto é, exclusivamente paterna e pela
autoridade doméstica do pai. Sobressai-se, portanto o poder centralizador concretizado pelos
homens, salvaguardando um estatuto de supremacia sobre as mulheres se refletindo também
essa realidade social na literatura.
Christine de Pizan participou ativamente da Querelle de Femmes no medievo. Esta
querela foi um debate literário iniciado na última década do século XIV estendendo-se até o
final do século XVIII. A nossa ilustre escritora estava sempre presente nos salões literários no

4
...todas vocês, que amam a glória, a virtude e a notoriedade, poderão hospedar-se; pois ela foi fundada e
construída para todas as mulheres honradas – as do passado, as do presente e as do futuro (PIZAN, 2012, p. 338).
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intuito de discutir o papel social e literário da mulher, refutando assim, a pseudo-imagem que
se criou em torno da mulher na Idade Média. Nesse sentido, O Roman de La Rose (1230),
poema francês medieval que alegoriza o amor, e constrói a imagem da mulher em uma escala
hierárquica inferior ao homem em todos os aspectos, fortalece a ideia de que a mulher foi a
porta de entrada de todos os males do mundo. (ALLEN, 2009, p.32).
No medievo, o poema Roman foi uma obra inacabada, mas teve ampla leitura e
divulgação à época. Ele falava do amor usando alegorias próprias daquele tempo. Pois, a
alegoria era uma figura de linguagem bastante recorrente na Idade Média. O livro é dividido
em duas partes e tem como autor Guilherme de Lorris, em 1230. Embora a mulher tenha sido
enaltecida através do L´esprit courtois nos romances de cavalaria com Lancelot e a rainha
Guenièvre, pelas lendas medievais como, Tristão e Isolda, vê-se em contrapartida que à
segunda parte do Roman, escrita por Jean de Meun cerca de 1275, assumiu um caráter
depreciativo da mulher diminuindo sua condição e o seu papel social feminino.
Totalmente imbuída do propósito de extirpar a hostilidade masculina contra as
mulheres na literatura, Pizan decide partir em defesa das mulheres através da literatura
epistolar. Utiliza-se das armas que dispunha, a inteligência e o conhecimento; deixando à
história das mulheres a utópica cidade das damas.
Christine de Pizan tem um papel decisivo em redefinir a memória da mulher na
literatura universal, buscando fontes históricas e literárias de autoras femininas em confronto
com o poder misógino antigo e medieval. Seu desafio é desconstruir a apologia de homens
autores nas diversas literaturas para enfatizar que a mulher também escreveu e tem sua
participação de certo modo, ofuscadamente, na contribuição livresca da arte da pena.
A narradora no seu projeto literário toma como base também o De mulieribus claris
(Sobre mulheres famosas), de Giovanni Boccacio, primeiramente publicado em 13745.
Embora tenha existido esse livro, com personagens femininas destacadas por esse autor, a
força impulsionadora do patriarcado, não permitiu a evidência das mulheres, caracterizando
assim, o preconceito em relação às mulheres e supervalorizando, como de praxe, a escrita
masculina na história da literatura. Nesse sentido, Pizan, elabora uma desconstrução desta
escrita misógina, para representar as mulheres em sua defesa que fora à todo custo relegada e
preterida pelo mundo livresco.

5
BOCCACIO, Giovanni. Concerning Famous Women (De mulieribus claris). Trad. E. J. Richards. London:
Allen & Unwin, 1964.
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 955

Vemos no primeiro livro de A cidade das damas, a autora se posicionar contra a


autoridade de Mateolo em Les Lamentations, quando indignada com filósofos, poetas e
oradores, misóginos declarados, que ela chega a nomear, como é o caso de Ovídio, Cecco
d´Ascoli, Cícero, Catão, o Jovem e Aristóteles, concluem estes, segundo Pizan, que o
comportamento da mulher é carregada de vícios e que Deus não teria outra maneira de tê-las
criado senão como vis criaturas deformadas moralmente retomando estes a tradição
anatomista e fisiologista atribuída a Aristóteles e a Galeno.
Essas considerações de Pizan passam pelas teorias de Aristóteles de Galeno sobre a
insuficiência anatômica feminina e de seu corpo inferiorizado ao do homem e das
considerações de Santo Agostinho. O argumento de Pizan refuta-se na controvérsia teológica
da criação da mulher á imagem de Deus, e que ela é mais nobre parte da criação terrestre.
Esse argumento é ratificado pela autora ao relatara a visita dessas três damas criadas por Deus
e iluminadas por ele. Desse modo, na é a toa que a narradora traz a Dama Razão que inicia a
sua instrução no intento de construir a Cidade das Damas e desconstruir a misoginia presente
na literatura.
Dessa maneira, para desarrazoar os preconceitos que se fossilizaram ao longo da
tradição literária contra a mulher, Pizan evoca Deus, e ao lamentar-se com Ele sobre a
inferiorização da mulher apresenta sua concepção em relação à criação divina da mulher feita
por Ele mesmo da mesma forma como criou o homem, como uma coisa boa e louvável.
Mediante o silogismo filosófico o argumento de Pizan refuta a misoginia quando identifica
uma controvérsia teológica da criação da mulher à imagem de Deus boníssimo e
perfeitíssimo, uma vez que ela é caracterizada na tradição literária subjugada ao homem e
inclinada aos vícios, ao passo que foi criada por Deus que é perfeito.

Ah, Deus como é possível? Como acreditar, sem cair no erro, que tua infinita
sabedoria e perfeita bondade tinham podido criar alguma coisa que não fosse
completamente boa? Não é verdade que criaste a mulher com um deliberado
propósito? E, desde então, não lhe deste todas as inclinações que gostarias
que ela tivesse? Pois, como seria possível teres te enganado? (PIZAN, 2012,
p. 60).

Pizan indigna-se com Deus e desespera-se de ter nascido mulher e ser vitimada de
tantos preconceitos e escândalos face ao homem. “Que pena, meu Deus! Por que não me
fizeste nascer homem para que minhas inclinações estivessem a teu serviço, para que em nada
me enganasse, para que eu tivesse esta grande perfeição que os homens dizem ter?” (PIZAN,
2012, p. 60). Pizan lamenta-se de ter nascido mulher, de possuir um corpo feminino, que é
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ISBN: 978-85-6641465-3
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sinônimo de imperfeição, de fraqueza e de inferioridade ratificado pelos ataques misóginos na


literatura e também no âmbito social.
Nesse intuito, a partir de uma mística visão que tem Pizan, a narradora é aconselhada
pelas três damas virtuosas a edificar uma fortaleza que é construída para salvaguardar e
defender as mulheres da violência dirigida a elas. Mantém assim doravante um eloqüente e
sábio diálogo com elas. Este argumento é ratificado pela autora ao relatar a visita das três
damas criadas por Deus e iluminadas por Ele
Nesse itinerário, no livro A Cidade das Damas, a narradora-personagem ao receber a
visita de três senhoras soberanas e iluminadas, que são a personificação da Razão, Retidão e
Justiça, utiliza-se prontamente do raciocínio silogístico para refutar os preconceitos misóginos
evidenciando a Dama Razão ao argumentar que não se pode considerar pura e simplesmente a
mulher encoberta de vícios, pois se esta também foi criada por Deus, não poderia ser uma
coisa má e medonha. Para Pizan, cria-se um jogo de antíteses, uma vez que ao condenarem o
fogo porque queima e a água porque afoga, paradoxalmente, ambos os elementos têm seu
lado para o bem e para o mal, caracterizando assim uma contradição.

Prezada filha, deves saber que a providência divina, que não faz nada ao
acaso, encarregou-nos de morar entre as pessoas desse mundo de baixo,
apesar de nossa essência celeste, para zelarmos na manutenção e na boa
ordem das leis convenientes aos diversos estados, e que fizemos segundo a
vontade de Deus, pois somos todas as três filhas de Deus e de nascimento
divino. (PIZAN, 2012, p. 64).

Vemos assim, em Pizan, as três damas como belezas morais, criadas diretamente por
Deus, e sendo femininas, residem nos meios dos homens norteando suas ações. Como pode
então ser afirmado pelos misóginos que a mulher é repleta de vícios se as fontes da beleza
moral emanam do próprio Deus? Eis o argumento da autora na sua obra.
Em suma, baseando-se nas leituras dos textos pertinentes a este estudo, veremos nos
dias de hoje que para o leitor contemporâneo mediante o discurso desconstrutor de Pizan
acerca do pensamento misógino, a mulher submissa aos ideais conservadores das sociedades
patriarcais ainda hoje sofre com o legado dos preconceitos misóginos. Apesar das
transformações da sociedade ao longo dos séculos, as iluminadas damas de Pizan perdem o
caráter extraordinário para darem lugar à mulher como sujeito inserido histórica e socialmente
na evolução das mulheres escritoras no fazer literário.

Referências
A literatura & tempo: cem anos de encantamento
II Congresso Nacional de Literatura – ANAIS
ISBN: 978-85-6641465-3
Página 957

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ALLEN, P. The Concept of Woman. The Aristotelian Revolution. 1250. Montreal: Eden Press,
1985.
ARISTOTLE. De generatione animalium. In: SMITH, John Alexander; ROSS, William
David (eds.). The works of Aristotle translated into English.Oxford: Clarendon Press,1912.
AUGUSTINE, St. St Augustine: the literal meaning of Genesis (De Genesis ad litteram).
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BLOCH, R. Howard. A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio
de Janeiro, Editora 34, 1995.
BOCCACCIO, G. Contos do Decameron. São Paulo: Scrinium, 1996.
CALADO, L. E. F. A Cidade das Damas: A construção da memória feminina no imaginário
utópico de Christine de Pizan. 2006. 371 f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
FONSECA, P. C. L. Vozes da misoginia medieval: Aristóteles disseminando em Santo Isidoro
de Sevilha, Santo Anselmo e São Tomas de Aquino. Notandum, n. 21, p. 23-29, 2009.
______. Christine de Pizan e Le Livre de La Cité des Dames: pontos de releitura da visão
tradicional da mulher. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário
Internacional Mulher e Literatura. Disponível em: <http://www.telunb.com.br/mulherelite
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JEAN DE MEUN. The romance of the rose by Guillaume de Lorris and Jean de Meun.
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PIZAN, Christine de. A Cidade das Damas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012. 352 p.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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O HUMANO DECADENTE EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO CARRERO

Eliene Medeiros da Costa

A Literatura e o cotidiano

Uma das características da Literatura moderna e contemporânea é narrar o cotidiano.


No livro A cultura do romance, Franco Moretti defende a tese de que a história da Literatura
confunde-se com a história da cultura. Destaca que houve uma substituição, que se deu, na
arte, no âmbito das histórias sagradas e das grandes cenas das histórias profanas pela imitação
das ações humanas significativas, numa nova forma de estabelecer relações entre descrição e
narrativa. Pois, não é mais a história mundial, representativa de uma coletividade, que conta,
mas histórias abertas que mostram o caráter ordinário da vida. Onde residem vozes
escondidas, formas banais abscônditas de fazer o cotidiano. Nesse contexto, alguns autores
preferem, cada vez mais, deslocarem o inaudito para a opacidade e colocar em relevo o
cotidiano. E, ao descrevê-lo e narrá-lo nos apresentam uma superabundância de
possibilidades, um mundo de preenchimentos, onde a trama se adensa e enche-se de mil
coisas.
No mesmo livro, Claudio Magris, destaca a forte relação existente entre a
modernidade e o romance. Para ele, o romance, em sua concepção moderna, caracteriza o
mundo moderno, da mesma forma que a onda não poderia existir sem o mar. Uma vez que
reflete os dilemas do homem moderno, torna-se a “antiepopeia do desencantamento, da vida
fragmentária e desagregada” (MAGRIS, 2009; p.1018). Onde o indivíduo/personagem vive
em meio ao caos, a angústia do mundo. Nesse sentido, uma das temáticas que podem ser
encontradas no romance é o niilismo. Segundo Amaral (2011):

o niilismo é descrito e comentado por Nietzsche como um movimento de


negação da vida, um processo que move a história do ocidente, à medida que
o homem experimenta o vazio de sentido como conseqüência da
desvalorização dos valores supremos, os quais se dispunham, in
phisiologicis, como exigências para a conservação “de uma determinada
espécie de vida” (AMARAL, 2011; p. 110).

Dessa forma, o personagem literário, tal qual o homem que representa, ao abandonar
seus valores supremos e seus heróis como força representativa, como acontecia em épocas
anteriores, está diante do nada. Isso gera um estranhamento em relação a sua condição de
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existência no mundo, já que o ser humano já não coincide consigo mesmo, o mundo exterior
já não o representa mais. Isso o coloca frente a um universo de desilusão em que

a força do espírito pode estar fatigada, esgotada, de modo que os fins e os


valores de até então são inadequados e não encontram mais nenhum crédito,
de modo que a síntese dos valores e dos fins [...] dissolve-se, de maneira que
os valores fazem guerra, isoladamente, uns aos outros: esfacelamento -,
modo que tudo o que refresca,cura, apazigua, entorpece, vem para o primeiro
plano, sob diversos disfarces: religioso, ou moral, ou político, ou estético etc.
(NIETZSCHE, 2008; p. 37; apud AMARAL, 2011; p. 111).

Na compreensão da dissolução desses valores supremos se faz necessário entender o


conceito de décadence. A qual é expressa como uma crise de valores. Nesse contexto, o
niilismo não se constitui como a causa dessa degeneração, mas como sua lógica, já que a
décadence é conduzida pela ‘vontade do Nada’. Ela é definida por Giacoia (2000) como:

Processo de degeneração, dissolução anárquica de uma concreção vital, cuja


estrutura e coesão consiste na hierarquia das forças que a constituem. Uma
formação orgânica decadente caracteriza-se, pois, como uma unidade em
desagregação, cujas partes tendem à anarquia dos elementos‟, à dissolução
da totalidade que outrora constituíam (GIACOIA, 2000; p. 21; apud
AMARAL, 2011; p. 112).

Nesse sentido, o vício, a doença, a libertinagem, o pessimismo são consequências da


decadência. Características que se fazem presentes em diversas obras literárias
contemporâneas. É o caso da obra Maçã agreste do escritor pernambucano Raimundo
Carrero.

A decadência humana em Maçã agreste

O romance Maçã agreste retrata o declínio de uma família que descende da


decadência canavieira nordestina. Decadência que também a atinge. Ernesto, o pai, na
juventude levara uma vida leviana, dedicando-se a festas, gastando o dinheiro do pai em
Recife, onde fora estudar Direito, e deitando-se com as negras cativas do Engenho. Após o
término dos estudos, como não consegue um emprego que o satisfaça na capital, volta ao
Engenho, junto à esposa, Dolores, com quem se casara por conveniência. Com a morte dos
pais, que acontece logo depois, Ernesto fica responsável pelo Engenho, o qual em pouco
tempo vai à falência. Resta-lhe apenas um casarão em Recife, comprado graças à insistência
de Dolores que não suportara vê-lo continuar com os hábitos da juventude, deitando-se com
as negras, mesmo depois de casado. Os filhos do malfadado casamento, Raquel e Jeremias,
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são a continuidade dessa decadência. Abandonam a casa paterna, Raquel para ser prostituta e
Jeremias, para tocar saxofone num cabaré. Vivendo em meio à miséria, Jeremias funda uma
seita baseada na prostituição, na violência, na exploração infantil e no roubo. Com a ausência
dos filhos, Dolores assassina Ernesto com um tiro. Após cumprir pena pelo crime, retorna ao
casarão para vê-lo ser esvaziado por seu advogado que o vende em troca de honorários. Após
presenciar tal cena vai à procura dos filhos.
A obra Maçã agreste foi publicada em 1989 e inaugura uma nova fase da obra do
escritor Raimundo Carrero. Fase que se caracteriza pela ambientação dos personagens na
cidade do Recife e também por manter uma continuidade com as obras vindouras. As
personagens apresentadas nessa narrativa vão aparecer, muitas vezes, completamente
ressignificadas em obras escritas posteriormente. De forma, elas mantêm uma espécie de
intratextualidade que pode ser percebida num diálogo recorrente entre as obras, em alguns
casos, fatos que ficam obscuros num texto são elucidados em outro. Nesse sentido, destacam-
se, A minha alma é irmã de deus, Seria uma sombria noite secreta, O amor não tem bons
sentimentos e Tangolomango: ritual das paixões deste mundo. Nessas obras, personagens se
repetem, histórias são recontadas, mal entendidos são explicados. Tomamos como exemplo o
caso do assassinato de Ernesto, que em Maçã agreste fica meio obscuro, sendo esclarecido
melhor em O amor não tem bons sentimentos. Onde fica esclarecido que Dolores assassinou o
marido.
Esta obra foi caracterizada pelo jornalista, Carlos Menezes do jornal O Globo como
uma “sinfonia a cinco vozes”, pois “se impõe diante da violência, da crueldade e do cinismo
contemporâneos, e assim aprofunda e leva a conhecer melhor o abismo da condição humana”
(PEREIRA, 2009; p. 36). Trata de um personagem solitário em sua essência, que mesmo
quando está em meio a uma multidão sente-se só, o personagem Jeremias.
Em O delicado abismo da loucura, José Castelo caracteriza a obra de Raimundo
Carrero como uma escrita só lâmina, devido a sua configuração voltada a narrar, muitas
vezes, o lado obscuro do ser humano. O qual está sempre envolvido por uma espécie de
penumbra. Exemplo disso é o Judas de Sombra severa que vive com o rosto constantemente
escondido sob a aba do chapéu. Segundo Conceição (2004):

Carrero desafia o homem a não fugir de si mesmo. Sua Literatura o forja a


enxergar comportamentos tidos como inaceitáveis pela sociedade, porém
frequentes na condição humana. Carrero parece, ter consciência do poder
que tem a Literatura de fazer tremer as bases da cultura, [...] (CONCEIÇÃO,
2004; p. 15).
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Esses comportamentos são concretizados nas obras através de incestos, assassinatos,


estupros, dentre outros. Castelo (2005) ainda destaca que há em Carrero assim como nos
mestres russos um interesse pelos subterrâneos, pelo obscuro e pelos abismos. Pois seus
personagens “configuram a própria condição humana. A vida é ambígua e mutilada”
(CASTELO, 2005; p. 17). Estão condenados à infelicidade, pena imposta por uma condição
existencial que eles sofrem, marcada pela dificuldade de aceitar a fragilidade da vida e a
fatalidade a que estão sujeitos. O que os leva a uma eterna busca, estão sempre a buscar algo
que nunca encontram. Uma procura que pode ser percebida num estado de consciência
perturbado, como se o mundo não os compreendesse ou se não pudessem ser compreendidos
pelo mundo.
Em Maça agreste destaca-se a decadência humana. O vocábulo decadência é descrito
pelo dicionário online de português como: “Ação ou efeito de decair. Condição ou estado
daquilo que está se deteriorando ou tende a se extinguir; [...] Estado de degradação; que está
próximo do fim ou da ruína”. A degradação presente na obra em estudo se dá em diferentes
aspectos: social, moral, religioso, econômico.
No plano social, percebemos que o romance encontra-se povoado por uma parcela da
sociedade composta pelos marginalizados: ladrões, prostitutas, assassinos, etc. Caracterizada
pelo narrador como “os abandonados da sorte, os destroçados” ou “figuras de um mundo
irremediavelmente em decadência”. Dessa forma, a família de Jeremias, todos os personagens
que aparecem na narrativa e o próprio ambiente em que o enredo acontece, a cidade do
Recife, caracterizam-se como símbolos desse mundo decadente. A Recife retratada na obra é
descrita como uma “cidade coberta pelo lodo da miséria”. Apesar de viver, até o momento
em que abandona o casarão, numa região nobre da cidade e de ter uma profissão, professor,
Jeremias parece preso a esse universo de decadência:

Pensava insistentemente na noite, nas duas noites, em que vagou pelas ruas
da zona em decadência, vazias, escuras e vazias, as mulheres paradas nas
esquinas, ostentando misérias e doenças, rindo, e rindo, e rindo sem dentes,
as mulheres implorando companhias, e ele andando, andando, andando, sem
conseguir parar, fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do
infinito. Rodopiando. Às vezes rodopiando pelo mesmo quarteirão, parava
junto de Alvarenga, em vigilância perpétua, e conversava, retirava-se sem se
despedir e continuava andando, fiel guarda da noite, incapaz de guardar a si
mesmo, ia até o princípio da ponte mas não conseguia atravessá-la, não
conseguia. Ali os pés chumbavam-se ordenando-lhe o retorno, e retornava,
era um desses cães perdidos, que farejam calçadas, cheiram o chão, mudam
de destino (CARRERRO, 1989; p. 213).
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Percebe-se nesse momento o completo estado de inquietude em que o personagem se


encontra, incapaz de um minuto de paz. Apesar de estar imerso num universo de decadência,
desilusão e angústia, ele não almeja retirar-se dele. Parece que só nesse ambiente ele se
completa. E por mais que tente atravessar a ponte, que metafórica e literalmente o retiraria
desse universo, não consegue e sempre retorna. Temos em um primeiro plano uma cena
corriqueira de uma grande cidade, um ponto de prostituição, temos uma cena banal do
cotidiano que é ressignificada pelo ir e vir de Jeremias em meio à cena decadente, composta
pelas prostitutas miseráveis e doentes, ostentando sua miséria sorrindo sem dentes.
Esse constante caminhar de Jeremias remete ao personagem do conto O homem na
multidão de Edgar Allan Poe. Personagem emblemático da literatura contemporânea que se
caracteriza por peregrinar por ruas movimentadas pelo constante ir e vir de pessoas. A história
é narrada da perspectiva de um narrador personagem que em determinado dia se depara com
um homem que lhe chama a atenção, o qual resolve seguir. Percurso que dura por volta de
vinte e quatro horas, no qual o homem seguido pelo narrador não fala com ninguém, nem para
de caminhar, sempre buscando as ruas e os lugares movimentados, e se angustiando quando
percebe que o lugar onde se encontra está perdendo o movimento de pessoas. Dessa forma, o
fato de Jeremias permanecer durante duas noites “andando, andando, andando, sem conseguir
parar, fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do infinito”, dialoga com o
comportamento do homem da multidão e parece demarcar uma consciência angustiada,
vagando em meio aos pobres, prostitutas e miseráveis, como se fosse atraído por aquele
ambiente.
Atração que pode ser justificada pela preocupação que sente ao ver o sofrimento
dessas pessoas. Uma vez que, ao caminhar pelas ruas do Recife, Jeremias se angustia vendo o
sofrimento de seus habitantes miseráveis. E analogamente ao Jeremias bíblico lamenta-se por
não ter permanecido no ventre materno:

Saí de casa, outro dia, ao anoitecer. Sem dizer nada a ninguém lamentava-me
por não ter permanecido no ventre de minha mãe para não ser obrigado a
assistir ao desespero do mundo, para não me ser imposta a visão de homens
e mulheres que vivem os grandes tormentos, que formam a contorção da
existência e que são incapazes de construir a estrada que nos leva à casa do
sacrifício (CARRERO, 1989; p. 29) (Grifo nosso).

Lamenta-se pelo fato de ter que presenciar o sofrimento do mundo. Um mundo em que
as pessoas estão famintas e desesperadas, se contorcendo em torno de sua própria existência.
Sem serem capazes de encontrar um caminho que as leve “à casa do sacrifício”, um caminho
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que conduza à salvação, que traga a esperança de dias melhores. Diante disso sagra-se profeta.
Afirma que sua missão é como um chamamento divino, que visa salvar da dor e da fome do
frio e do calor, da ira e da perseguição, os desvalidos que andam pelas ruas desnutridos e
desnudos. Cria uma seita e sai pelas ruas em busca de seguidores oferecendo falsos milagres.
É seguido por uma multidão de miseráveis que buscam livrar-se de seus males:

Protegidos em muletas, arrastados em carros de madeira, pulando numa


única perna, os aleijados se aproximavam, os loucos tresvariando, excitados
e mistificados, os mendigos retirando moedas de mochilas imundas,
estendendo as mãos esqueléticas e comprando porções do vinho milagroso,
capaz de restituir o viço, de sarar os males, trazendo sorte e dinheiro
(CARRERO, 1989; p. 29).

Ironicamente explora àqueles de quem anteriormente se compadecera, vendendo-lhes


porções milagrosas e extorquindo-lhes o pouco que têm. Jeremias é o profeta da decadência.
A decadência está em sua vida pessoal, no meio em que vive e também na seita que lidera, já
que Os Soldados da Pátria por Cristo é uma seita baseada em falsos milagres e na violência,
pois organiza assaltos, explora crianças e pratica uma série de atos considerados ilícitos.
Características essas, que dialogam com a decadência, no sentido de que as práticas pregadas
por essa seita remetem a idéia de um humano desprovido de valores religiosos, pelo menos
dos valores aceitos socialmente. Mesmo porque o motivo que o levou a “oficializar” os
trabalhos de sua seita foi uma ameaça de Daniel, um adolescente delinquente que cometera
alguns assassinatos nos quais indiretamente Jeremias estava envolvido: “Daniel quer proteção,
terá. Formaremos um grupo de salteadores, de vagabundos e de criminosos. Terão toda a noite
para roubar e matar, durante o dia rezaremos e louvaremos a Deus e a pátria. Sou o que sou e
sendo o que sou não retornarei mais à poeira antiga” (CARRERO, 1989; p. 223). Dessa
forma, a trama desenvolvida na obra apresenta um protagonista que tem um misto de santo e
de bandido, o qual apresenta galhardamente duas faces, durante o dia lidera a seita e a noite os
bandidos, estupradores e assassinos que praticam os mais diversos crimes.
A decadência social também é inerente à família de Jeremias, uma vez que a pobreza
desencadeada pela perda dos bens materiais pertencentes ao pai deixou-os à margem da
sociedade. Seu pai metaforiza a decadência da cultura canavieira. Sua mãe torna-se assassina,
sua irmã decide ser prostituta, após perder passivamente a virgindade com um suposto
desconhecido no escuro de um dos pavilhões do Engenho, que na verdade era seu próprio pai.
E Jeremias torna-se o profeta dessa decadência, o mestre de uma seita baseada na violência e
nos mais diversos crimes.
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No plano moral, destacamos a falta de princípios éticos e morais de Ernesto que já na


adolescência buscava corrigir suas falhas oferecendo jantares aos professores, elogiando-os
com discursos nas festas da faculdade, levando seus filhos para férias no Engenho ou
“apaixonando-se” por suas filhas para não ser reprovado. A ausência dos princípios morais é
ainda mais demarcada nas relações sexuais que mantém com a filha na casa onde mora com
Jeremias. Outro traço que define a ruína desses princípios é o comportamento dos membros
da seita liderada por Jeremias, que em nome de uma suposta religião, estupram, roubam,
enganam e matam.
No plano religioso, destaca-se a seita criada por Jeremias, nomeada Soldados da
Pátria por Cristo, que subverte as normas pregadas pelas religiões oficiais. Essa subversão
caracteriza-se pelos princípios que norteiam a seita, já que a noite é um “horário livre para
estupros, assaltos, putaria, chantagem, vadiagem, molecagem e outras atividades exclusivas
dos integrantes da confraria” (CARRERO, 1989; p. 207). Princípios completamente
contrários àqueles pregados pelas religiões.
No plano econômico, a decadência se dá pela falência de Ernesto que passa a ser
sustentado pelo salário de professor de Jeremias. É apontada também pelo trabalho que ele e a
irmã passam a exercer e pelo próprio casarão, resquício da época em que o pai era um rico
latifundiário: “Naquele tempo a decadência da família não era apenas sentida, mas vista e até
tocada. A decadência profunda e física, empurrada para a desgraça, revelada na casa sem
pintura e nos móveis gastos” (CARRERO, 1989; p. 166). Uma decadência que pode ser vista,
sentida e até tocada. Materializada e metaforizada na casa sem pintura e nos móveis gastos. É
caracterizada pelo narrador como uma decadência profunda e física que empurra os
personagens para a desgraça. A qual é revelada pela prostituição, assassinato e demais
transgressões praticadas pelos personagens.
A subversão do personagem Jeremias, o coloca em meio a uma espécie de mundo
subterrâneo que o aproxima do homem do subsolo de Dostoiévski. A novela O homem do
subterrâneo retrata o cotidiano de um personagem profundamente egoísta e apático a
sociedade, vive recluso numa pequena casa, não tem amigos, não trabalha, não tem religião e
sente-se superior aos demais indivíduos, aqueles pertencentes à superfície. O subsolo
representa a fuga do homem moderno dos conflitos que surgem na sociedade, frutos de um
novo estado de organização social, política, religiosa e de pensamento, ancorados numa
quebra dos valores vigentes. Para Frank (2002)
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a expressão “homem do subterrâneo” tornou-se parte do vocabulário da


cultura contemporânea, e essa personagem alcançou hoje em dia [...] a
estatura de uma das grandes criações literárias arquetípicas. Nenhum livro ou
ensaio que estuda a situação precária do homem moderno estaria completo
sem alguma alusão à explosiva figura de Dostoiévski (FRANK, 2002; p.
427).

Percebe-se, dessa forma, a importância do homem do subterrâneo para compreender a


situação do homem moderno. O personagem carreriano se assemelha ao homem do
subterrâneo no que diz respeito a mostrar-se apático à sociedade, pelo menos a parcela mais
abastada dela. Ele sente-se sufocado em meio aos prédios da cidade do Recife, em meio aos
ricos. No entanto, não se isola da sociedade, ao contrário, mistura-se aos esquecidos, aos
abandonados pela sociedade, aos decadentes. Seu subsolo é um mundo assinalado pela
degradação e pela ruína.
Assim, Maçã agreste é uma obra marcada pela degradação humana, já que seus
personagens têm como traço marcante a ruína. Ernesto caracterizado pela degradação moral e
econômica. Degradação que reflete em todo o núcleo familiar, revelado no assassinato
cometido por Dolores e também na vida levada pelos seus filhos, Raquel e Jeremias, frutos da
decadência dos pais, caracterizados pela prostituição e por uma série de atitudes que remetem
à decadência e à degradação. Características que segundo Cruz (1998), fazem parte das
sociedades modernas. Dessa forma, a família de Jeremias parece ser apenas um pequeno
núcleo da sociedade representada na obra.
O personagem Jeremias é metaforizado como símbolo dessa decadência, pois escolhe
ser profeta, funda sua própria “religião” que é baseada em seus próprios princípios. Princípios
degradantes, uma vez que subvertem os valores sociais, morais, e até mesmo os valores
religiosos, à medida que está baseada na violência e em atos ilícitos.

Considerações finais

A obra Maça agreste tematiza o cotidiano da cidade do Recife. Coloca em cena o


caráter ordinário da vida dos miseráveis da cidade que é “recriada” por Carrero. Na narrativa
nos deparamos com um homem sem heróis e que graças a isso se vê diante do nada. O que
provoca um estranhamento em relação ao mundo, uma vez que o personagem central da
narrativa, Jeremias, constantemente questiona sua condição de existência nele. Seus
questionamentos o aproximam do profeta bíblico de nome análogo, pois deseja ter morrido no
ventre da mãe para não ter que presenciar o sofrimento existente no mundo. Fato que o coloca
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frente a um niilismo equiparado ao do “homem do subterrâneo” de Dostoievski. Percebemos


também em Jeremias uma inquietude semelhante a do “homem da multidão” de Edgar Allan
Poe, já que perambula noites a fio, pelas ruas do Recife, em meio aos miseráveis e aos
enjeitados pelo mundo parecendo fascinado por eles. E, ao liderar uma seita, Soldados da
Pátria por Cristo, baseiada na prostituição e na criminalidade, se caracteriza como a metáfora
da decadência humana. Decadência essa que está no cerne de sua família. O niilismo ou
descrença vivido por Jeremias o leva a abandonar sua vida de professor e inserir-se em meio
aos bandidos e prostitutas, esse é o seu subterrâneo.
Em Maçã agreste as normas ditadas pela sociedade são comparadas a um circo, em
que o palhaço, o grande representante do picadeiro é o ser humano do submundo, as
prostitutas, os bandidos e as crianças prostituídas pelo sexo e pelo contexto sócio-histórico-
cultural em que vivem. São as personagens de um mundo irremediavelmente em decadência.
Semelhantes aos ratos que Conrado, amigo de Ernesto, cria. Podemos dizer que as normas
sociais são subvertidas nos aspectos: moral, físico, social, religioso e econômico. Os
personagens vivem à margem da sociedade e não seguem as regras ditadas por ela, conduzem
a vida à margem de tudo que pode ser aceitável socialmente como conduta normal do ser
humano.
Esse romance, pertence ao conjunto de obras que retratam a modernidade e tematizam
o cotidiano, focando na decadência humana, uma vez que seus personagens são
representativos de uma subversão social, física, religiosa e moral negativa. É um texto que nos
coloca frente a um retrato social que todos fingem não verem, ao colocar em cena um cenário
dominado pela decadência. Há uma desagregação de valores que está demarcada no núcleo
familiar de Jeremias que se faz presente também na sociedade representada na obra. Fato que
coloca a obra em diálogo com os temas e problemas discutidos na literatura moderna e
contemporânea.
Maçã agreste tende conduzir seu leitor a se deparar com um quadro social presente
nas grandes cidades, caracterizado pela pobreza. O qual muitas vezes só é visto com objetivos
negativos ou simplesmente passa despercebido porque a sociedade tenta invisibilizá-lo a todo
custo. O próprio Jeremias se angustia diante da decadência que vai encontrando. Acreditamos
que um dos objetivos do romance é mostrar um quadro da cidade do Recife, que poderia ser
de qualquer cidade grande, em que os personagens pintados são aqueles que quase sempre
passam despercebidos. Um desses momentos é quando somos levados pelo narrador a
caminhar entre os vendedores ambulantes da cidade ou no passeio que Jeremias faz pela zona
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de baixo meretrício. Como obra literária, o respectivo romance não busca desmerecer o valor
desses membros da sociedade. Apenas mostrar que eles estão na sociedade e fazem parte dela.
Apesar de serem mostrados como decadentes, não entendemos que haja alguma tentativa de
condená-los, mas de torná-los visíveis em sua condição ou forma/escolha de vida.
Referências

AMARAL, Cassiano Clemente R. Algumas considerações sobre Memórias do Subsolo a


partir de um referencial nietzscheano. In: 6° Encontro na Graduação em Filosofia da
Unesp. Vol. 4, n° 1, 2011.
CARRERO, Raimundo. Maçã Agreste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
CASTELO, José. Uma escrita só lâmina. In: CARRERO, Raimundo. O delicado abismo da
loucura. São Paulo: Iluminuras, 2005.
CONCEIÇÃO, Auríbio F. Somos Pedras que se Consomem em Angustia: a temática da
inquietação no diálogo entre Graciliano Ramos e Raimundo Carrero. 2004. 100f.
Dissertação (Mestrado em Letras e Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro
de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
CRUZ, Elcy Luiz. A Simulação Real: narrativa carreriana em “Somos Pedras que se
Consomem” e o e o mundo pós- moderno. 1998.159f. Dissertação (Mestrado em Letras e
Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
Dicionário online de português. http://www.dicio.com.br/decadencia/ Acesso em: 14 de
outubro de 2014.
DOSTOIÈVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução Boris Schnaiderman. São Paulo:
Editora 34, 2009 (6ª Edição).
FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação 1860-1865. Tradução Geraldo
Gerson de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
MORETTI, Franco (Org.). O Romance. A Cultura do Romance. Tradução Denise
Bottmann. São Paulo: Cosacnaify, 2009.
NEVES, Edilene Soares. A Construção social e Intertextual em “A Sombra Severa” de
Raimundo Carrero. 1999.136f. Dissertação (Mestrado em Letras e Lingüística. Área de
concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife.
PEREIRA, Marcelo. Raimundo Carrero: A fragmentação do humano. Recife:
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Caleidoscópio, 2009.
POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Histórias Extraordinárias. Tradução de P.
Nasetti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2000.
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ASPECTOS ALEGÓRICOS EM: “A BELA E A FERA” E “EMANCIPAÇÃO: UMA


FÁBULA DA VIDA”

Thalita Raquel de Carvalho Rodrigues1

O conto “A Bela e a Fera ou A ferida grande demais”, foi escrito por Clarice em 1977,
em seu último ano de vida, sendo publicada postumamente em 1979, depois de ser organizado
por Olga Borelli. Já a narrativa da escritora norte-america, Kate Chopin. “Emancipação: a
fábula da vida”2 foi escrita em 1869, no século anterior à obra de Clarice. Neste trabalho
usaremos como corpus os respectivos contos e analisaremos as alegorias presentes nas
narrativas em questão.
Clarice e Kate são conhecidas pelo grande repertório de contos que escreveram
durante suas carreiras literárias. Ambos os contos são bem fiéis ao gênero que se enquadram,
são narrativas curtas, com espaço e tempo bem delimitados, com poucos personagens. De
D’Onófrio define conto da seguinte forma: “O conto erudito distingue-se do romance e da
novela por ser uma narrativa curta. [...] Ele possui todos os ingredientes do romance, mas em
dose diminuta. O foco narrativo geralmente é único” ( D’ONÓFRIO, 1995, p. 121).
Como bem sugeriu Millet(1957) que “a fábula é uma narrativa alegórica que se terá
uma moralidade”, e complementa ainda sua definição da seguinte forma: “é afinal, uma
maneira agradável de explicar uma verdade, que de outro modo poderia chocar. A fábula
nunca deve desviar do seu objeto moral. Deve ser sempre a ilustração de um código de ética”
(MILLET, 1957, p. 27). É justamente o que ocorre nas narrativas estudadas, tanto no conto de
Clarice, quanto no de Kate Chopin, percebe-se esse caráter fabular que se manifesta com
intuito de transmitir uma moral, mas de modo mais discreto, através das alegorias.
Para explicitar e fundamentar melhor este trabalho, trazemos o conceito o seguinte
conceito de alegoria, definido por Kothe:

representação concreta de uma idéia abstrata. Exposição de um pensamento


sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa.
Subjacente ao seu nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma
metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição
do pensamento em causa por outro, ligado ao primeiro por uma relação de
semelhança (KOTHE, 1986, p. 90)

1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB
2
Tradução de Denise Mariné
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Os dois contos possuem enredos que convergem em alguns aspectos. Em A Bela e a


Fera, Carla (protagonista da narrativa), uma mulher da elite carioca, após deixar o salão de
beleza se depara com um mendigo de muletas que possuía uma ferida enorme e repugnante
em sua perna. Já em “Emancipação: a fábula da vida”, O personagem principal é um animal
inominado que vive enjaulado, mas que certo dia encontra a porta de sua jaula aberta, depois
de hesitar por algum tempo, o animal decide seguir em frente e deixar sua “prisão”. Temos
então um relevante ponto de convergência entre as narrativas, as personagens principais de
ambas, se deparam com uma situação diferente da realidade vivida por elas, que
proporcionarão para as duas uma mudança.
De acordo com as palavras de Marli Silva Froés e complementando o que foi dito
anteriormente:

[...]o conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, escrito em 1977, traz
uma personagem feminina, Carla de Souza e Santos, tipicamente burguesa,
que ao deparar com a alteridade faz descobertas de si e constrói leituras
provocativamente poéticas e sociológicas da sua existência, das dos seus
supostos “semelhantes” e do diferente. O leitor se depara com o que há de
mais humano e ou inumano nas pessoas. (FROES, 2010, p.4)

O conto inicia-se com a palavra “começa”, quebrando um pouco a perspectiva de


conto de fadas que o título “A Bela e Fera” poderia aparentar trazer. Depois a autora continua
a narrativa da seguinte forma:

Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace


Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio; eram quatro horas da tarde. E
de repente lembrou-se: tinha dito a “seu” José para vir buscá-la ás cinco, não
calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só massagem. [...]
Que devia fazer?Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos
cruzeiros e o homem do táxi não teria troco.(LISPECTOR, 1999, p. 95)

Pela descrição feita no primeiro parágrafo da narrativa, já era previsível que a


protagonista da história era uma mulher de posses. Mais adiante no texto é possível constatar
isso, quando o narrador se refere ao nome da personagem da seguinte forma: “Carla de Sousa
e Santos. Eram importantes o “de” e o “e”: marcavam, classe e quatrocentos anos de carioca”.
A epifania acontece com Carla se depara com o diferente do que lhe era habitual, no
caso em questão, quando ela é abordada pelo mendigo:

Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta parou diante dela e
disse:
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
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“Socorro!!!” gritou se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do


homem. “Socorre-me Deus” disse baixinho.
Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta. Se tivesse
marcado com „seu‟ José na saída da Avenida Atlântica5, o hotel onde ficava
o cabeleleiro não permitiria que “essa gente” se aproximasse. Mas a Avenida
Copacabana tudo era possível: pessoas de toda a espécie. (LISPECTOR,
1999, p.96-97)

A partir deste encontro com o mendigo, Carla começa divagar e refletir sobre sua vida.
De acordo com as palavras de Marli Silva Froes:

No conto A Bela e a Fera, o mendigo com sua ferida grande demais,


possibilitou à protagonista entrar em contato com as suas “feridas internas”.
Essa personagem, duramente, passou a não suportar o mundo, nem a si
própria. (FROES, 2010, p.7)

A alegoria do conto “A bela e a fera ou A ferida grande demais”,esta presente na


ferida do mendigo, Carla acostumada a viver em sua redoma, pouca vezes entrando em
contato com as pessoas na rua, se ver ao lado de uma pessoa que carrega uma úlcera
repugnante. Essa ferida não possui apenas um sentido literal, ela proporciona uma
interpretação muita mais profunda e significativa. A chaga aberta, pode-se por assim dizer, é
uma chaga social, das grandes desigualdades entre pobres e ricos, desigualdades essas que
muitas vezes são imperceptíveis aos olhos dos mais favorecidos, como era o caso da
personagem Carla, que se chocou com a as diferenças discrepantes existentes entre ela e o
mendigo.
O próprio título do conto em aberto, que sugeri duas opções “A bela e fera ou ‘a’
ferida grande demais”, remetem ao enredo da história. A bela seria a personagem principal
Carla, uma mulher bonita, rica e bem cuidada, e a fera remeteria ao mendigo e sua condição
assustadora, que causava medo e ojeriza. A outra opção de título “A ferida grande demais”, se
refere a úlcera do mendigo e toda, mas também como foi dito anteriormente a chaga a aberta
das diferenças sócias, mas também uma ferida trazida por Carla, uma ferida interna, na alma,
no conto ela se compara ao mendigo dizendo:

“Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi
esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo
pelo amor de Deus que me achem bonita, aceitável, e minha roupa de alma
está maltrapilha” (LISPECTOR, 1999, p. 103.)

No conto “Emancipação: a fábula da vida”, o animal de qual o leitor não tem


conhecimento da espécie, encontra sua gaiola incidentalmente estava aberta. “Então uma vez
parado sob uma torrente de Luz, ele inspira- o apoio nos membros fortes e de um salto se vai”
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(CHOPIN, 2011, p. 70). A alegoria do animal enjaulado não representa somente a liberdade
de um ser que passou muitos anos preso. A alegoria está justamente nas estrelinhas, no que
não é dito diretamente. De acordo como Marcela Silvestre significa:

uma fuga da condição feminina claustrofóbica na sociedade ao longo dos


tempos . A idéia é facilmente comprovada pela ausência de especificação do
tipo de animal que protagoniza a história, podendo ser retratado inclusive
como um ser humano do sexo feminino. (SILVESTRE, 2011, p.188)

Para compreender melhor essas autoras é importante conhecer um pouco a temática


que ambas optaram por seguir e em enfatizar em suas obras experiências feminina através de
um olhar feminino e a partir da perspectiva de seus personagens, podemos observar que os
textos escolhidos para análise, possuem artifícios que não tornam as narrativas lógicas. A
presença das alegorias permite uma visão além do que é dito e que quando interpretada em
suas minúcias passa a ter um sentido mais coerente dentro da narrativa.

Referências

CHOPIN, Kate. Emancipação: uma fábula da vida. Trad. Denise Mariné. In: BROSE,
Elizabeth, R. Z. ; CARDOSO, B. M; VIEGAS-FARIA, B. (orgs). Kate Chopin: contos
traduzidos e comentados – estudos literários e humanidades médicas. Porto Alegre: Casa
Editorial Lumiara, 2011
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1 – prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo:
Ática, 1995.
FRÓES, Marli Silva. A Bela e a fera ou A ferida grande demais: da perplexidade produtiva e
de quando o texto literário é arquivo. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina
/files/2010/01/Marli-Silva-Froes.pdf. Acesso em: 13 Out. 2014
KOTHE, Flávio R. A alegoria. SP: Ática, 1986.
LISPECTOR, Clarice. A Bela e a fera ou A ferida grande demais. in: A Bela e a Fera. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p. 95- 105.
MILLET, Sergio.Obras primas da fábula universal- seleção introdução e notas. São Paulo:
Martins Fontes, 1957
OLIVEIRA, Luciene Guimarães. “A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais”, de Clarice
Lispector: transtextualidade e transcriação. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.
br/index.php/emtese/article/view/3694. Acesso em: 13 de outubro de 2013
SILVESTRE, Marcela. Fábula da emancipação . In:KNOP, Márcia e GUERRA, Henrique.
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Iniciação a Kate Chopin (tempo e espaço). In: BROSE, Elizabeth, R. Z.; CARDOSO, B. M;
VIEGAS-FARIA, B. (orgs). Kate Chopin: contos traduzidos e comentados – estudos
literários e humanidades médicas. Porto Alegre: Casa Editorial Lumiara, 2011.
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JOVENS, GÊNIOS & BESTAS: PRECOCIDADE E BESTIALOGIA EM AUGUSTO


DOS ANJOS E ARTHUR RIMBAUD

Guilherme Fernandes Garcia

“A Poesia dos insanos ofusca a dos sensatos”


Platão, Fédon.

À Guisa de intuição

Ao introduzir-se nos campos de estudos literários, este trabalho tem por finalidade
abordar as questões da bestialogia e da precocidade nas formações das poéticas de Augusto
dos Anjos (1884-1914) e de Arthur Rimbaud (1854-1891). A partir do entendimento de que
criações elaboradas por poetas muito jovens, em formação de caráter, ambos tendo começado
a escrever muito cedo, ainda na infância, e escrito a maioria de suas mais importantes peças
sem sequer haver atingido a maioridade, ou pouco mais que isso. E lê-los sob a ótica da
poesia bestialógica que, como quis Massaud Moisés: “A poesia bestialógica ou pantagruélica,
jorrando das profundezas do subconsciente ainda mal desperto, se destinava ao riso
inconseqüentemente estúrdio e as fugas sem retorno.” (MOISÉS, 1983).
Veremos entre os conceitos que guiaram a formulação do trabalho, os de precocidade e
de bestialogia, que definem-se por:
a) Precocidade: característica ou estado do que é precoce.
a.1) Precoce: 1- que frutifica ou amadurece antes do tempo normal ou antes dos demais;
temporão. 2- que acontece muito cedo para os padrões normais, prematuro, antecipado,
extemporâneo. 3- que muito cedo demonstra capacidades ou habilidades próprias de crianças
mais velhas ou de adultos.<músico p.><gênio p.> (HOUAISS, 2001, p. 2282)
b) Bestialogia: ato ou capacidade de proferir bestialógicos.
b.1) Bestialógicos: 1- sem nexo, estapafúrdio, asneirento, disparatado. 2- escrito, discurso ou
afirmação cheia de absurdos ou asneiras, béstia. (HOUAISS, 2001, p. 439)
Na literatura, o bestialógico ou pantagruélico é um tipo de poesia cujos versos não têm
nenhum sentido aparente, ainda que bem metrificados, se utilizam do burlesco, do satírico, do
nonsense, do tom grotesco, da poética do absurdo; remontam à sátira menipéia e têm suas
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sementes plantadas no Brasil pelo poeta Bernardo Guimarães, da segunda geração de poetas
românticos.
A ideia central deste trabalho é fazer ver, através da análise dos estudos da fortuna
crítica de Augusto dos Anjos, elegendo o de Fausto Cunha, - que é, aliás, o único estudioso a
sugerir a possibilidade de estudos das obras destes dois vates, a partir da perspectiva da
bestialogia: “A interpretação do bestialógico augustiano como intencional viria colocá-lo num
grupo extraordinário, onde já se encontram Artaud e Jarry, e o aproximaria ainda mais de
Baudelaire, de Verlaine, de Rimbaud.” (CUNHA, p. 168).
De maneira geral intencionamos, dentro da questão da precocidade, destacar as
semelhanças entre ambos no que concernem questões de caráter pessoal e extrínseco às
obras, sem, entretanto, explorar os desdobramentos de caráter psicanalítico, por entendermos
não ser esse o intuito deste trabalho.
Devemos lembrar que Rimbaud viveu muito próximo de uma casta de poetas
excepcionais; tão próximo, que manteve, por anos, relação homoafetiva com o grande poeta
Paul Verlaine. E que, ainda em Charleville, sua cidade natal, teve a influência do amigo,
professor e poeta Georges Izambard. Somado a isso, temos a ascensão e a flanerie ou
“perambulação criativa”, como defino, por Paris, em uma época riquíssima de criação
artística.
Em contraponto, a formação quase que espontânea da poética de Augusto dos Anjos,
que teve na figura do pai, o Dr. Alexandre, um amante das letras, as primeiras influências e
estímulos em direção à literatura, sobretudo, no tocante à possibilidade de acesso a jornais
vindos periodicamente da Europa trazendo resumos dos mais variados assuntos, incluindo, é
claro, poesia.
Muito embora ambos estivessem perdidos, como tratou Edmund White (2010), sendo
um em sua “cidadezinha sonolenta, isolada do grande mundo”; o outro, em um engenho
decadente no sertão de uma Paraíba do Norte em fins de século; pontos em comum costuram
e descosturam as vidas dos dois poetas.Todavia, a linha que os une não é uma linha invisível e
não se precisa de muito para lê-la e percebê-la. Sobre o poeta francês e a a vida dupla de um
rebelde, Edmund White (2010), nos diz “o certo é que Rimbaud, mesmo antes dos dezesseis,
estava tentando se lançar ao mundo.” (WHITE, 2010, p.35).
Por sua vez, Augusto, aos quinze, já viajava com frequência à capital do estado e
começava a sua sempre difícil relação com a intelectualidade local.
Vale destacar que Augusto dos Anjos foi um flâneur à sua maneira, pois ao pensarmos
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que, se à época, um jovem sair de sua cidade natal para alçar estudo em alguma capital era
algo corriqueiro, e ele o fez, indo estudar direito no Recife aos dezenove,. Daí a se ultrapassar
as fronteiras do nordeste de um país continental, se arriscar na “Paris brasileira”, o Rio de
Janeiro, e assim como Rimbaud, não encontrar significativo apoio... Pode-se calcular grande
distância e notar uma disposição de espírito, ainda infinita e socialmente menos adaptável que
a de Arthur, mesmo assim pouco comum aos jovens de sua época.
Já em 1870, aos dezesseis, Rimbaud dizia ao amigo Delahaye que iria escrever em
uma linguagem nova, inventada: “Para criar uma linguagem poética que fale de todos os
sentidos, vou pegar palavras dos vocabulários eruditos e técnicos, de línguas estrangeiras, de
onde for possível...” (WHITE, 2010, p.33).
Não podemos nos furtar de lembrar que essa linguagem nova, técnica e cientificista foi
a pedra de toque da poesia de Augusto. E é essa a mesma pedra que a grande maioria da
crítica de sua época, e ainda depois, não cansou de jogar sobre o poeta do Eu.
Entretanto e entre tantos, alguns poucos conseguiram destarte captar a essência de sua
poesia. Em 1912, ano do lançamento do livro, uma das poucas vozes de peso, o ilustre
Hermes Fontes, se levantou a favor do poeta: “É um trabalho de fôlego novo e de feitio
moderno(...) Todo o livro está cheio de dessas curiosidades, desse alvoroço de idéias novas,
harmonias novas, aspirações novas” (FONTES, 1994, p. 50).
Quero ainda citar afirmações do estudo “Origens de uma poética”, de Alexei Bueno
(2004), a respeito dos poemas de Augusto; em que se diz

[…] possuem essa compreensão pós-baudelairiana das possibilidades


estéticas do horrível que atingiu a poesia ocidental depois de “Une
Charogne” (...) De Poe até Baudelaire, depois através de todos os
decadentes, de um Richepin da Chanson des Gueux ou de um Rollinat de
Les Névroses, essa audácia poética do afrontamento do terrível, tornado
comum na prosa através da análise social dos naturalistas, alcança a poesia
brasileira por meio de nossos próprios decadentistas, mais uma prova da
filiação simbolista do expressionismo de Augusto dos Anjos. (BUENO,
2004, p. 26-27).

Rimbaud foi considerado o grande decadentista e, ainda em Edmund White (2010, p.


40), lemos que se dizia que havia transportado a novas alturas a “nostalgia ignóbil” de
Baudelaire e de que era “perturbadoramente difícil de classificar”.
Temos ainda como farinha para essa massa teórica, declarações de um estudioso da
envergadura de Álvaro Lins (1994) que em seu ensaio “Augusto dos Anjos Poeta Moderno”,
afirma, dentre outras coisas, que:
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Se com Baudelaire de quem se costuma aproximá-lo, ele tem em comum o


elemento satânico - como estão, no entanto distantes um do outro! Em
Baudelaire fundiam-se a preocupação religiosa e a preocupação estética, e o
seu olhar, por mais baixo que ele houvesse caído, estava voltado para os
céus, como um místico exilado, como um cristão nostálgico. Em Augusto
dos Anjos, o naturalismo é o credo, o materialismo é a doutrina, com um
sentimento que não ultrapassa o visível e o sensível se não poeticamente, e o
seu olhar não está especificamente voltado para os mistérios metafísicos,
mas para o subsolo da existência humana (…) Quando se processava sua
formação pessoal e literária, o parnasianismo e o simbolismo ainda estavam
em plena moda no Brasil (...) Augusto dos Anjos não se enquadrou em
nenhuma dessa escolas”(...). Ele é, entre todos os nossos poetas mortos, o
único realmente moderno, com uma poesia que pode ser compreendida e
sentida como a de um contemporâneo (…) Augusto dos Anjos porém está
iluminado por uma projeção de permanente atualidade, que o lança
incessantemente para o futuro(...)”. (LINS, 1994, p. 118-119)

E ainda a defesa apaixonada de outro grande poeta, o maranhense Ferreira Gullar


(1978), que atesta em seu ensaio “Toda a poesia de Augusto Dos Anjos”:

Mas em que me baseio para afirmar que existe no poeta do Eu, elementos
que antecipam a linguagem moderna da poesia brasileira? Para responder
essa questão, devo primeiramente esclarecer o que entendo por poesia
moderna ou nova linguagem da poesia.
O abandono das formas clássicas do poema - a estrofe regular, o verso
metrificado, a rima obrigatória(...) Para conseguir isso, o poeta moderno
lança mão de uma série de recursos que constituem as características de sua
nova linguagem: construção sintática inusitada, ruptura do ritmo espontâneo
da linguagem, choque de palavras e de imagens, enumeração caótica,
mistura de formas verbais, coloquiais e eruditas, de palavras vulgares com
palavras poéticas, etc.
Alguns destes recursos foram utilizados por Augusto dos Anjos (GULLAR,
1978).

Desmistificando o envolvimento

Rimbaud foi considerado morto antes de morrer1, com a publicação “póstuma” do


livro Iluminações, feita por Paul Verlaine, em 1886, foi saudado como um precursor do
Simbolismo, ainda que, segundo Edmund White, “o mais extraordinário é que em sua breve
carreira de escritor, Rimbaud cobriu toda a história da poesia desde o verso latino, passando
pelos românticos, parnasianos e simbolistas até os surrealistas, muito antes de existir o
surrealismo” (WHITE, 2010, p.141).

1
Sabe-se que em vida, Rimbaud publicou às custas de sua mãe um só livro, o volume Uma temporada no
inferno, por um editor belga. O volume Iluminações foi posteriormente publicado por Verlaine. Na ocasião,
Rimbaud se [des]encontrava em algum lugar da África, sendo por seus conterrâneos considerado morto, antes de
morrer, o que ocorreu vias de fato em 1891.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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Lembrando que o poeta francês escrevera toda sua obra entre os quinze e os dezenove
anos, e depois literalmente, sobremaneira literariamente; a abandonou. O que reforça, em
meu entender, a questão da precocidade em Rimbaud, ao pensarmos que tal produção seminal
tenha se dado em tão tenra idade. O mesmo pode valer para Augusto, que teceu, com apenas
dezessete anos., seu “Versos íntimos”, poema que o alçou para um lugar entre os cem
melhores da história de nossa literatura, popularizou e eternizou-o.
Dentre outras similaridades curiosas e pouco estudadas, há também o fato de haverem
publicado seus primeiros poemas quando ambos tinham exatamente quinze anos. Rimbaud
com seu “A consoada dos órfãos”, em La Revue pour Tous, em 1870 e Augusto, o soneto
“Saudade”, no Almanaque do Estado da Paraíba, no ano de 1900. E mais: a de terem em vida
publicado um só livro: Saison en Enfer, de Rimbaud , em 1873; e Eu, de Augusto dos Anjos,
em 1912.
E pode-se ainda, cogitar como uma possível origem psicológica da poética de ambos, -
e o viés psicanalítico deste estudo se estende até aqui- um rancor não declarado por suas
mães, por terem ambas um caráter severo, tido como quase ditatorial.
Exemplo disso é o que se especula sobre o primeiro grande amor de Augusto, a Srta.
Amélia. Augusto apaixonara-se por essa moça e a engravidara. Sinhá mocinha, como era
chamada a mãe de Augusto, mandara alguns capatazes darem um corretivo na moça que
perdeu o filho e veio a falecer. Em outra versão da história, a srta. acabou simplesmente se
casando com um outro rapaz da região dada a proibição do relacionamento pela mãe de
Augusto.
Segundo Filho (1997), “reporta-se a José Lins do Rego, quanto a um depoimento em
que o afamado romancista admite haver o poeta escondido 'uma mágoa secreta, um rancor
que não confessa, contra a própria mãe'” (FILHO, 1997).
Não me parece que se possa comprovar qual seria a verdadeira versão, fato é que
mesmo tendo mantido até o fim de sua vida estreita correspondência com a mãe, haveria de
ter ficado com este ocorrido, mesmo que a simples interdição, eternamente magoado o
coração sensível do poeta.
Em Rimbaud, podemos dizer, a título de ilustração, que em seus últimos dias foi
praticamente extorquido pela mãe, que comprou terrenos com grande parte do dinheiro que
ele juntou em dez anos de trabalho na África. E que foi deixado pela mãe aos cuidados da
irmã, no leito de morte, pois a mesma alegava ter negócios inadiáveis a tratar na ocasião. O
que por si só demonstra a distância que ambos guardavam entre si, sob a máscara de um bom
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convívio, algo muito comum à época.


Muito se estudou acerca da influência de Baudelaire sobre a obra Augustiana. É sabido
que ele possuía a segunda edição de Les Fleurs Du Mal, de 1861, encontrada em um sebo
paraibano com a sua assinatura. Contudo, pouco ou quase nada se escreveu em torno das
possibilidades de aproximação e ou uma possível, e direta influência, de Rimbaud na obra de
Augusto dos Anjos, à exceção de Fausto Cunha e de Ademar Vidal. Este último afirma que:

Depois dos dezessete anos entrou noutro regime de leituras, isto é muniu-se
de Darwin e Haeckel, Nietzsche, Spinoza e Max Nordau, devorando tudo
quanto eles escreveram. Rousseau e Renan, os poetas franceses e
portugueses, anjos do céu e anjos infernais, Rimbaud e Leopardi, nada ficou
sem passar pelos seus olhos, lendo, apreendendo e interpretando com
inteligência sutil (VIDAL, 1967).

Os dois poetas guardam ademais inúmeras semelhanças, como, por exemplo, uma
curiosíssima que percebi no acaso da pesquisa e de leituras comparativas, e que no meu
entender, aproxima-se de uma prova quiçá cabal à filiação de Augusto dos Anjos à Arthur
Rimbaud, se não a de uma influência direta e inequívoca entre eles.
Em um poema rimbaudiano intitulado “H”; de Iluminações, me deparei no penúltimo
verso com a seguinte frase: “L´hydrogène clarteux!”, a qual, em uma tradução literal, ter-se-ia
como: “O hidrogênio luminoso!”
Lemos no conhecido poema Augustiano, “Solilóquio de um visionário” (ANJOS,
1963, p.92), o famoso verso:

Vestido de hidrogênio incandescente,


Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Vemos aqui uma quase tradução literal feita por Augusto, que por uma questão
bastante evidente de manutenção da rima, incandescente / improficuamente, optou por
traduzir “Clarteux”, por “incandescente”, palavra que é perfeitamente cabível como opção de
tradução a “luminoso” e que se encontra no mesmo campo semântico.
Há ainda outra, se não coincidência, que é com relação ao que Montgomery (1996)
chamou de “quantidade excessiva de exclamações, reticências e travessões” na poesia de
Augusto. Podemos também observar, sobretudo na prosa poética de Rimbaud um uso
“exagerado” dos mesmos três elementos. Questão ainda que por muito interessante, está mais
ligada ao campo dos estudos linguísticos e que pretendo neste apenas citar como mais um
elemento de aproximação estilística e estética (MONTGOMERY, 1996, p. 58-68).
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Percorrer este caminho de afirmação de um caráter pré-moderno da poesia de Augusto


dos Anjos é não tão somente uma forma de estabelecermo-nos na posição daqueles, que
entendem nosso vate como um precursor do modernismo em terras brasileiras, bem como
fundar uma aproximação ainda mais estreita inexorável entre Augusto dos Anjos e o, por sua
vez, precursor do modernismo em nível mundial, Arthur Rimbaud.
Para com isso podermos resgatar e conectar à poesia pantagruélica, como uma
modalidade de poesia satânica, nonsense e anárquica, difundida no Brasil por Bernardo
Guimarães no segundo momento do romantismo, por Cruz e Sousa no simbolismo e por
Augusto dos Anjos, herdeiro inconteste da lírica de Cruz e Sousa, no pré-modernismo.
Segundo o importante estudo “Lira Dissonante”, de Fabiano Rodrigo da Silva Santos
(2009)

Além disso, o grotesco abre caminho para a compreensão da lírica brasileira


do século XIX, por um viés diretamente ligado a poética moderna. Isso
porque o grotesco- com seus efeitos dissonantes, forma distorcida e
exploração de temas marginais- permite vislumbrar em pleno Brasil
oitocentista, o desenvolvimento de obras esteticamente ousadas e críticas,
relacionadas intertextualmente à tradições européias pouco rastreadas em
nosso país em termos de suas reverberações. (SANTOS, 2009, p.13).

Segundo o grosso da crítica mundial, temos em Rimbaud não só um satanista, talvez e


se não maior que Baudelaire, também um anarquista, simpatizante dos communards à época
da Comuna de Paris, em 1871. É sabido, pois, que ele esteve em Paris poucas semanas antes
da insurreição anarco-comunista e que conviveu com os seus dissidentes não só em França,
bem como em suas estadas na Inglaterra, ainda que saibamos que o termo “anárquico” aqui
utilizado não está em seu sentido político, mas sim relativo ao caráter transgressor e inovador
de sua obra. Todavia, a poética e a prosa poética Rimbaudiana são impregnadas dos elementos
do nonsense, do burlesco e do absurdo, criando mundos e situações fora do contexto mesmo
das literaturas feitas à época. Sem nos esquecermos de que os temas marginais e a vida dos
marginalizados sempre foram temas caros tanto a Augusto quanto a Rimbaud, que bebeu, o
um, e se embebedou, o outro, em temáticas tidas como próprias de uma baixa cultura.
Lembrando que, segundo Fabiano Rodrigo da Silva Santos (2009), e a maioria dos
estudiosos da história da literatura brasileira, a tradição da crítica no Brasil sempre colocou o
romantismo em destaque na formação de nossa identidade literária nacional e praticamente
todos os movimentos que se seguiram nasceram sob a bandeira de pró ou contra, sendo
reações e contrarreações, uns dos outros, face ao romantismo.
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Essa cadeia de reações motivadas pelo romantismo denuncia a atuação de


um fenômeno cultural no Brasil a partir do romantismo - a modernidade (…)
Pode-se concluir assim que a modernidade no Brasil extrai suas
especificidades estéticas do conflito entre a tentativa de estar em sintonia
com as evoluções artísticas das nações que nos servem de modelo e as
possibilidades em geral limitadas, de nosso ambiente cultural” (SANTOS,
2009, p.24).

Como é sabido, e ainda em Fabiano Santos (2009), a influência francesa foi uma
determinante para o desenvolvimento do romantismo no Brasil. Entretanto nossos poetas
herdaram dos franceses características mais ligadas ao nacionalismo e ao civismo, não
desenvolvendo as características mais contestadoras que o movimento apresentou. Talvez
somente a partir de meados de 1850 podemos perceber o surgimento de uma poética de
inspiração grotesca, com Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa,
segundo Antonio Candido (1993).
Como atesta o próprio nome “Pantagruel”, o gigante glutão, advém do ciclo de
narrativas de François Rabelais e trata-se de uma poesia que busca no absurdo, no
escatológico, na blasfêmia e no grotesco os elementos de sua poética.
Podemos doravante afirmar que ambos tenham se influenciado por sua vez pelas
conhecidas baladas grotescas de tradição anglo-germânicas de escritores mundialmente
famosos como Rabelais, Goethe e Hoffman. Todavia é inegável que foram sobremaneira
influenciados pelo, dentro da tradição moderna, incontornável Baudelaire.
Ao transportarmos tais impressões à poesia de Augusto, filiando-o como herdeiro de
Cruz e Sousa, vemos que a influência do grotesco, ou pantagruélico, de Bernardo Guimarães,
neles, segundo Fabiano Rodrigues, é de linha completamente diferente, uma vez que temos
em Bernardo algo mais próximo do viés cômico e, por sua vez, burlesco.
No caso das poéticas de Cruz e Sousa e Augusto, por sua vez, lemos um grotesco de
caráter mais sério, pessimista e introspectivo, com, pode-se dizer, um fundo mais psicológico,
trágico e próximo ao sublime.
Segundo Antonio Candido (1993):

O que restou dela (da poesia pantagruélica) é muito pouco, ou quase nada.
Tratando-se de um discurso heterodoxo, os seus próprios praticantes não lhe
davam importância prática, como advogados, magistrados, funcionários,
parlamentares, diplomatas ou simples chefes de família, punham de lado as
provas de loucura da mocidade e com certeza destruíram, como fizeram com
a poesia obscena, que jamais pensariam em assim assumir, muito menos
publicar, o que aliás seria impossível no tempo. Só Bernardo Guimarães,
bem menos convencional, guardou, publicou ou deixou reproduzir
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Montgomery algumas de suas produções nesses setores condenados


(Candido, 1993, p. 230).

Conclusão

Como forma de refletirmos conclusivamente o até aqui exposto, este trabalho


procurou lançar luz sobre, acerca das possibilidades de aproximação real, e não tão somente
sugerida, da vida e obra dos dois poetas aqui estudados. Sobre bases que vão além da simples
menção à possíveis filiações entre ambos.
Procuramos demonstrar que existem características e similaridades, primeiramente no
que concerne à vida privada, ou “vidobra”, que vão desde inocentes “coincidências”, como a
exemplo da estreia de ambos na literatura ter se dado na mesma idade de parcos quinze anos.
Há outras menos pueris como, por exemplo, a possível origem de uma lírica iconoclasta ser
uma espécie de raiva, trauma ou desgosto por suas progenitoras. Temos também questões que
nos parecem praticamente incontestes no que se refere a influências. Ao percebermos um caso
de livre tradução ou assimilação voluntária, se preferirem, lidos nos poema “H”, de Rimbaud
e “Solilóquio de um visionário”, de Augusto, o efeito que a poesia do escritor francês exerceu
no paraibano fica claro.
E finalmente, mas não por fim, demonstrar questões nítidas de aproximação no que se
refere ao artesanato poético em ambos, em que se leem/ veem um uso, pode-se dizer,
exagerado dos mesmos sinais gráficos, assinalando mais uma vez a proximidade da urgência
estética em suas poéticas.
Penso que tenhamos conseguido minimamente sugerir e demonstrar que existem
similaridades reais entre tais autores, e que os desdobramentos possíveis de características
marcantes da poética dos vates estudados são palpáveis e carecem de maiores estudos.
Nosso intuito neste trabalho foi demonstrar que Augusto dos Anjos teve a influência
de vários, não tão somente dos portugueses, Antero de Quental e Cesário Verde, como
normalmente se diz, de Baudelaire ou Rollinat, como normalmente se reduz, mas também
influência direta de Arthur Rimbaud.

Referências

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CANDIDO, Antonio. A poesia pantagruélica. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
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Cidades, 1993.
COUTINHO, Afrânio. Brayner, Sônia (Orgs). Augusto dos Anjos: Textos Críticos. Brasília,
INL, 1973.
CUNHA, Fausto. Augusto dos Anjos – Obra completa.
FILHO, Antônio Martins. Reflexões sobre Augusto dos Anjos. Vol. XV. Coleção
Alagadiço Novo. 1997. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/amartins01c.html>
Acessado em 25/04/2013.
FONTES, Hermes. Crônica literária. In: BUENO, Alexei. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994, p.49-52.
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos.
Toda Poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.15-60.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva,
2001.
LINS, Álvaro. Augusto dos Anjos, poeta moderno. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa.
Vol. único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp.116-127.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. Vol. 1: Origens, barroco, arcadismo. São
Paulo: Cultrix; EDUSP, 1983.
MONTGOMERY, José de Vasconcelos. A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. São
Paulo: ANNABLUME, 1996.
MUSSO, Fredéric. Rimbaud: Collection Les Géants. Verona: Editions Pierre Charron, 1972.
SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Lira dissonante: Considerações sobre o aspecto do
grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Souza. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2009.
SILVAIN, René. Rimbaud: Le precurseur. Paris: Boivin et cie., 1954.
VASCONCELOS, Montgomery José de. A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. São
Paulo: Anablume, 1996.
VIDAL, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1967.
WHITE, Edmund. Rimbaud: A vida dupla de um rebelde; Marcos Bagno; São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
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RICOEUR E A TRADUÇÃO

Marcos César Tindo Barbosa


(Universidade de Coimbra)

Introdução

Na recontagem célebre do mito de Babel, o trabalho conjunto de construção da Torre


cessa no momento em que cada trabalhador não percebe mais a linguagem do outro,
representando assim a comunicação como um esforço conjunto entre interlocutores, e não
uma transmissão duma mensagem desde um agente até a um paciente. É a esse mito que
remonta Steiner (1975) para declarar que ouvir significados é traduzir, querendo, com isso,
dizer que a própria compreensão é uma ação de decifragem e que, portanto, a tradução está
formal e pragmaticamente implícita em qualquer ato de comunicação.
A confusão das línguas e a consequente dispersão dos povos é, desde então,
compreendida como uma metáfora para esta catástrofe linguajeira de interincompreensão
generalizada com a qual se tem de lidar a cada contato intercultural, realidade essa que seria
tão nociva como irremediável.
O fenómeno da tradução surge como o único conforto a formar uma ponte que
transcende a limitação a que o género humano está restrito. Por isso, pode-se dizer que o ato
de interpretar um texto de uma língua em outra exista desde o início da civilização humana,
apesar de provavelmente esse ato nem sempre ter tido nome próprio nem feições definidas.
Essa ausência de delimitação técnica e científica só começaria a se dissipar na Antiguidade
greco-romana. Os gregos, apesar de não terem traduzido literatura de nenhuma outra cultura
em volume significativo, cunharam termos que distinguiam a explicação metafórica
(μεταφέρω), a interpretação hermenêutica (ἑμηνεύω), e a paráfrase (μεταφράζω). Os romanos,
porém, apesar de terem um só termo (interpres) para designar ao mesmo tempo o tradutor e o
exegeta, deram à luz a tradução no sentido hodierno.
Data pelo menos desde os tempos de Marco Túlio Cícero (I século a.E.C.) a discussão
sobre o jeito adequado de traduzir (WEISSBORT & EYSTEINSSON, 2006, pp. 20-21): se de
acordo com o sentido (ad sensum) ou de acordo com as palavras (ad verbum), discussão essa
que seria herdada por Quinto Horácio Flaco (I século a.E.C.), o qual priorizou o sentido acima
de qualquer coisa, ao ponto de julgar simplória a condição de “imitador” — compreendido aí
aquele que se prende servilmente às palavras do texto original (HORÁCIO, 1942, p. 460).
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Essas discussões legadas pelos romanos deram origem a uma das duas abordagens (a
normativa e a descritiva) surgidas ao longo da história, com as quais já se estudou a tradução,
qual seja àquela que preconizava a maneira como cada época via ser adequada à ação de
traduzir: a abordagem normativa. Enquanto essa primeira teorização tomou força e se
universalizou na Europa durante a Renascença, a abordagem puramente descritiva do
processo tradutório só viria efetivamente a surgir na segunda metade do século XX. Nesta
nova abordagem, julga-se que a tradução é uma matéria demasiado complexa para poder ser
regulada por regras simplistas e impressionistas que arbitrem erros e acertos (LEFEVERE,
2002, p. 9). É de interesse assinalar que foi nesses dois períodos, Renascença e
Contemporaneidade, que também se deram os maiores crescimentos exponenciais no volume
de traduções publicadas no mundo ocidental (BERMAN, 1988, p. 23), o que explica e
justifica os surgimentos dessas tentativas de teorização.
Um dos primeiros a empreender um estudo sistemático da Teoria da Tradução num
padrão descritivo científico, conforme se entende contemporaneamente, foi Antoine Berman
(1988), no seu artigo intitulado De la Translation à la Traduction. A escola francesa de
teóricos, que se formaria a partir desse marco inicial, buscaria compreender a tradução como
esta se faz, do ponto de vista do tradutor e do processo (re)criativo envolvido no ato de
traduzir.
É no esteio dessa escola que aventa Ricœur o seu opúsculo Sur la Traduction, sobre o
qual se debruçará brevemente este trabalho, para tecer alguns comentários acerca do
fenómeno da tradução a partir do tratamento que lhe é dado pelo teórico.

O próprio e o alheio

Ricœur orienta-se a partir do parâmetro psicológico-filosófico e das suas implicações


na tradução, principalmente em se observando esta como processo (em oposição à observação
do seu produto). É assim que o autor (RICŒUR, 2004, p. 8) relembra Walter Benjamin,
quando discorre acerca do trabalho tradutório, emprestando-lhe, ao descrevê-lo, o sentido
psicanalítico freudiano do «trabalho de lembrança», em que se empreende o esforço de
associações mentais e amarras semânticas, sentido esse que necessariamente inclui o
«trabalho de luto», que é o desapego e a aceitação da perda. Define-se assim, à partida, que a
tradução é inelutavelmente um procedimento que implica tanto a salvação de determinados
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traços do texto original, como também o consentimento ao extravio irreversível de outros


aspetos.
Assim, torna-se patente que os impulsos que movem a tradução como processo — e
que definem a configuração da tradução como produto — dão ares de ter origens e
motivações no plano supralinguístico.
Essa conclusão condiz plenamente com o postulado de Ricœur (2004, p. 15), para
quem a tradução força a língua-alvo a lastrar-se de forasteiridade e a língua-fonte a exilar-se
na outra. O tradutor contraria, destarte, a máxima de que não se pode servir a dois senhores, já
que é condição sine qua non do processo tradutório a submissão tanto à língua do autor da
obra, como à língua do leitor no seu desejo de apropriação do texto. O estrangeiro e o nativo
têm de coabitar na mente do tradutor e gerar rebento no texto deste: Ricœur (ibidem), cita
Berman para afirmar que o tradutor seria ambivalente no plano psíquico. Citando
Schleiermacher, apresenta-o como encarregado duma ação paradoxal: levar o leitor ao autor e
levar o autor ao leitor. Para tanto, não pode somente retocar o texto que pretende traduzir. É
forçoso que o retome do início e o refaça por completo, segundo o seu próprio parecer
enquanto ser bilingue, ambíguo por definição, pertencente a dois universos culturais.
Dessa maneira, o processo da tradução, por ser necessariamente um ato de reescritura,
produz-se sempre para um fim, um propósito que conduzirá a linha ideológica ou artística do
produto final. Naturalmente, essa ideologia embutida não desejaria deixar-se transparecer
como nada além de invisível, como já notou Lefevere (1992, p. 5): uma tradução sempre se
apresenta como a única tradução possível, na qual tudo que lá está corresponde diretamente ao
que há no original. Seguindo essa asserção de Lefevere (op. cit., p. 7), Hermans (2007, p. 88)
considera que a avaliação de uma tradução, de maneira descritiva e isenta, não concerne a
fatores como compreensão ou mesmo equivalência. Seria antes questionar quem traduz o quê,
quando, como, para quem, em que contexto, com que efeito e porquê.

A tradução perfeita

Entretanto, continua-se a ver um texto B chamar-se pelo nome dum texto A, ser lido
como se fosse o texto A, ser dito como sendo o próprio texto A. E é nisso que subsiste aquilo
a que Ricœur (2004, p. 11) chama «o fantasma da tradução perfeita»: um sonho de que uma
tradução poderia ser o original duplicado — sonho que traz consigo (como subproduto)
também o medo de que a tradução, por ser isso mesmo, só poderia ser uma má tradução. Isso
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porque se deseja que o produto da tradução seja diáfano (apresentando-o como não se
tratando senão de uma transposição incólume da mensagem original), mesmo que as suas
caraterísticas sejam, todavia, bem mais prismáticas do que parecem. O ato de traduzir
significa decompor o texto original, eleger as feições que se afigurem transmissíveis, para
enfim compor um outro texto, em outra língua, voltado para outro interlocutor (via de regra,
em outro lugar e outro tempo), que será usado para outros fins. É de se esperar que, nesse
processo, haja uma relocalização discursiva, causada intencional ou inadvertidamente pelo
agente tradutório. E, numa análise que procure erros e acertos, o próprio ato de reescrever o
texto descarateriza-o como idêntico ao original.
Mas a tradução carrega uma aura de messianidade: Ricœur (2004, p. 18) cita
novamente Walter Benjamin com a sua ideia de que o próprio processo tradutório traz em si a
esperança fetichista num caráter salvífico, no qual é necessário que se acredite para que se
possa aliviar a tensão produzida pela receio de não nos entendermos uns aos outros quando
nos inserimos em diferentes sistemas linguísticos.
O dilema da tradução é, assim, o de que: ou as diferentes línguas têm uma
heterogeneidade irreconcilíavel entre elas (e, portanto, a tradução é, em teoria, impossível), ou
existe um fundo comum subjacente que explica e possibilita o facto da tradução. A primeira
alternativa, a da intraduzibilidade, segundo Ricœur (2004, pp. 27-28), é a única conclusão que
decorre da linha de pensamento linguística protagonizada por Sapir e Whorf, a qual insiste
sobre o caráter não imbricável dos sistemas linguísticos. A segunda alternativa advém da
constatação da realidade de que a tradução é, sim, praticada e, portanto, é preciso que ela seja
praticável. Essa possibilidade implicaria, para Ricœur, na existência de estruturas profundas
ocultas que seriam ou o resquício duma língua primeva (e aqui remete-se novamente ao mito
de Babel) ou códigos inatos a priori, universais semânticos transcendentais que podem ser
reconstruídos.
A procura por esse fundo comum deveria levar, destarte, à língua originária, cuja
reconstituição forneceria a linguagem universal das linguagens. Essa quimera seria o único
parâmetro infalível para mensuração e auferição do êxito do processo tradutório. Nada menos
que a possibilidade da tradução perfeita. E isso é o que está na raiz do conceito de absoluto
literário (RICŒUR, 2004, p. 16), esse terceiro texto contra o qual se poderiam verificar as
correspondências entre a língua de chegada e a língua de partida. Na falta dele, somente se
pode dar lugar ao trabalho de luto de que já se falou aqui. Nas palavras de Ricœur (op. cit., p.
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42): «[a]bandonner le rêve de la traduction parfaite reste lʼaveu de la différence indépassable


entre le propre et lʼétranger1».

A tradução como releitura

Observando-se do ponto de vista linguístico, porém, aufere-se inexoravelmente a


impossibilidade de translação entre os dois sistemas envolvidos no processo tradutório, já que,
entre as línguas «[n]on seulement les champs sémantiques ne se superposent pas, mais les
syntaxes ne sont pas équivalentes, les tournures de phrases ne véhiculent pas les mêmes
héritages culturels2» (RICŒUR, 2004, p. 13). Como resultado, o discurso do texto-fonte está
fadado, pela sua própria natureza de “original”, a ser heterogéneo em relação ao texto
traduzido. Daí, o conceito já largamente discutido, por exemplo em Eco (2003, passim) assim
como em tantos outros, da presunção de não traduzibilidade. Aquilo a que se poderia ansiar
deve então ser algo menos que isso.
Devido a essa incomensurabilidade entre os sistemas linguísticos, principalmente no
que diz respeito aos campos semânticos (especialmente no nível lexical, no qual sempre
entram as chamadas conotações, que costumam ter matizes não intelectuais, mas afetivos — e
como a tradução se baseia, de forma muito mais abundante, sobre a escolha do léxico),
traduzir é inelutavelmente, para Venuti (2000, pp. 485-487), muito mais que um ato de
repetição. É antes um ato de reformulação profundamente embebido de motivação ideológica.
Sempre haverá um resíduo de valores, crenças, representações do mundo e referências
históricas, sociais e posicionais, vazado da cultura receptora, que não estavam presentes no
texto original. A tradução como processo tem uma origem estrangeira, mas, como produto,
serve a interesses domésticos.
Essa motivação ideológica é mais acentuadamente visível quando se traduz um texto
que, pela própria natureza do seu género, depende com maior intensidade do sistema
linguístico em que é produzido, como é o caso do texto poético e do texto filosófico (Ricœur,
2004, passim). Nesses casos, a dificuldade no processo tradutório (e, consequentemente, o
estranhamento no produto) advém da união inseparável entre o sentido e a sonoridade, entre o

1 O que se pode traduzir por: «abandonar o sonho da tradução perfeita continua a ser a confissão da diferença
infranqueável entre o próprio e o estrangeiro».
2 O que se pode traduzir por: «não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes não são
equivalentes, as construções de frases não veiculam as mesmas heranças culturais».
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significado e o significante. Qualquer escolha que deva desfazer-se de um deles afetará o


outro.
Pode-se verificar esse fenómeno mesmo no processo de reformulação frasal — como,
por exemplo, na transposição de discurso direto em discurso indireto — aquele fenómeno a
que Jakobson (2007, p. 64) chamou «tradução intralingual» e que Pierce (1998) pôs no centro
do seu conceito da reflexividade da linguagem sobre si mesma. É evidente da própria
experiência de cada um que, ao se tentar dizer algo de outra maneira, se incorre em escolhas
que, mais frequentemente do que não, denunciam juízos de valor. Lembra Ricœur (2004, p.
44), acerca disso, o adágio de Platão segundo o qual o pensamento seria um diálogo da alma
consigo mesma — interiorização que faria da tradução interna um apêndice da tradução
externa.
Com efeito, seria ingénuo pensar que mesmo as descrições mais objetivas de fatos
observáveis do mundo exterior sejam isentas de matizes axiológicos. Uma mesma estrutura
física identicamente observada por falantes diferentes pode ser expressa de forma diversa por
cada um, via estruturas linguísticas diferentes que denotam visões de mundos diferentes. A
existência paralela de formas distintas para estruturar linguisticamente a descrição de uma
mesma coisa, ou de uma mesma ação, é indício de que nenhuma dessas formas reflete a
estrutura física da operação que elas (implicitamente) se arrogam decalcar. Semelhantemente,
estruturas físicas distintas (ou diferenciadas quanto ao nível de conhecimento que delas
temos) podem exprimir-se por uma mesma fórmula linguística inalterada (MOUNIN, 2004,
pp. 56-57). Este último é o caso, para usar um exemplo facilmente verificável, das cores
inteiramente díspares que denominamos pelo mesmo nome: entre o vermelho e o alaranjado
há visivelmente menor distância no espectro da luz do que entre o anil e o índigo; contudo, a
língua continua a chamar a estes dois pelo mesmo nome de ʻazulʼ.
Ocorre, portanto, que o entendimento apropriado, por parte do tradutor, do assunto
tratado no texto-fonte deveria advir do conhecimento de toda a informação necessária para o
verter na língua-alvo. E tal informação jamais poderá ser encontrada em completude nem
dentro do texto a traduzir, nem mesmo no mais completo dos dicionários: primeiramente,
porque perpassa a visão de mundo e as experiências particulares do autor do texto (NIDA &
TABER, 1982, p. 8) e, segundamente, pelo facto de cada texto (ou pode-se dizer “cada
enunciação”) ser um novo evento linguístico-social, e é sabido que não existem compilações a
dar conta de todas as observações contextuais possíveis do material linguístico de certo
idioma. Um resíduo de indeterminismo é, portanto, intrínseco à compreensão de todo
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enunciado, mesmo aquele cujo referente seja fisicamente indutível (QUINE, 1970, pp. 178-
180).
Pode-se por isso afirmar que há sutilezas consideráveis no jogo tradutório, e que a
licença social que o tradutor tem de não ser visto como o Eu do texto traduzido (PYM, 2010,
p. 5) é ilusória e lhe permite liberdades potencialmente perniciosas. Não é simples verificar
até que ponto um texto traduzido coaduna com a formação discursiva do texto-fonte e em que
momento ele passa a convergir em outro discurso, exclusivo do tradutor. Esse fenómeno
torna-se mais claro, principalmente, quando se leva em consideração o dito de Bakhtin (2003,
p. 311) que a reescrita de um texto (com isso entendendo-se a sua retomada, repetição e afins)
perfaz «um acontecimento novo e singular na vida do texto», em que se acresce e reconfigura
a cadeia discursiva a que pertence.
O ato de repetir (ou de tentar repetir, por meio da reordenação das palavras a que se
chama tradução) determinado texto em outra língua que não a sua original é, sem dúvida, um
«acontecimento novo e singular na vida do texto» e, como tal, seria estranho imaginar que
conseguisse isentar o produto de qualquer infusão de outros valores e interpretações. Seria
idealizar o tradutor como dotado de uma passividade em cuja existência não há razão
nenhuma parar crer (HERMANS, 2007, p. 84).

Conclusão

As reflexões de Ricœur acerca do processo tradutório perpassam, naturalmente, as


suas noções de alteridade e ipseidade, e problematizam o conceito essencial do produto da
tradução. Isso chama à reflexão não somente teorias da tradução per se, ou mesmo apenas
teorias linguísticas, mas principalmente leva-nos a ancorar a análise também na Filosofia.
Pela própria natureza dos sistemas linguísticos, das segmentações culturais que
acarretam, em oposição à necessidade humana de agremiação e contato mútuo, o ato de
traduzir pode ser, ao mesmo tempo, um facto e uma impossibilidade, dependendo da forma
como é concebido o processo tradutório. E isso o torna extremamente interessante para
compreender a própria essência da comunicação humana, assim como para elucubrar acerca
de quais lhe seriam os pilares subjacentes que permitiriam que uma ideia seja transposta de
um texto a outro.
Vendo-se a tradução como uma reescritura do texto, revelam-se as estruturas e os
impulsos mais profundos, tanto no nível individual como no nível social, que a movem. A
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aceitação desse caráter originário do fenómeno tradutório, e toda a consequência advinda


disso sobre a relação entre o leitor e o texto, não deverá, contudo, causar-nos a perda da fé na
possibilidade de se verter um texto numa outra língua. Os parâmetros pelos quais a julgarmos
não deverão ser os de “erros” e “acertos”, mas de proximidade no plano da ideologia. E é
sempre importante ter em mente que toda tradução deve sempre ser tomada cum grano salis.

Referências

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Paulo: Martins Fontes, 2003.
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DOMESTICAÇÃO E ESTRANGEIRIZAÇÃO NA TRADUÇÃO DE MANGÁS NO


BRASIL

Melina Cezar Merêncio Galdino1


Mestranda PPGL/UFPB
Marta Pragana Dantas
PPGL/UFPB

Introdução

O mangá tal como o conhecemos hoje encontra sua origem nas xilogravuras do
período Heian (794 – 1185 d. C.) no Japão (NAGADO, 2011, p. 11). As ilustrações eram
caricaturas e tinham cunho humorístico. O trabalho mais antigo conhecido é o Chōjū-giga
que, através de imagens de animais com atributos humanos, caricaturava a sociedade da
época, além de retratar o ofício dos sacerdotes budistas. No século XX Osamu Tezuka, ou o
“Deus do Mangá” como ficou conhecido, foi o responsável pelo impulso dado à publicação de
mangá no Japão pós-guerra.Shin Takarajima (1947), sua primeira obra publicada, vendeu 500
mil cópias (SATO, 2005, p. 33)e a partir dela houve uma revolução no modo de fazer
quadrinhos no Japão. De fato, Tezuka introduziu técnicas cinematográficas em seus desenhos,
além dos “olhos grandes” dos personagens, hoje, uma das principais características dos
mangás.Com a economia abalada e o trauma da guerra ainda tão próximo, os mangás serviam
como um meio de abstração para os japoneses (FONSECA, 2011, p. 240).
Atualmente os mangás e os animês (animações, geralmente adaptações de mangás)
têm um grande impacto na economia japonesa. Os animês são responsáveis por 90% da
exportação televisiva do Japão (SUZUKI, apud. COOPER-CHEN, 2011). E estima-se que o
mangá Dragon Ball,da autoria de Akira Toriyama, publicado entre 1984 e 1995, vendeu mais
de 200 milhões de cópias somente nos países ocidentais (COOPER-CHEN, 2011).Pode-se
assim dizer que a grande difusão de mangás e animês serve como elemento propagador da
cultura japonesa no mundo.
Os mangás chegaram ao Brasil através dos imigrantes japoneses sob a forma de
edições importadas na língua original, servindo como ponte entre os imigrantes e seu país de
origem (FURUYAMA, 2008, p. 28). Desse modo, os habitantes das comunidades nipônicas,
mesmo longe, conseguiam manter uma ligação com o Japão, visto que os mangás, muitas

1
Bolsista Capes
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vezes, traziam informações sobre a atualidade do país, além de reproduzirem as mudanças


linguísticas do idioma japonês. Mas além de importar, os brasileiros descendentes de
japoneses começaram também a produzir mangás. De acordo com Nagado (2011), o primeiro
mangá feito em terra brasileira foi Tupãzinho, O Guri Atômico da autoria de Minami Kenzi,
em 1964, que surgiu após a publicação de tirinhas com o personagem Tupãzinho em um
jornal de São Paulo. Além dos mangás produzidos por Kenzi, outros com influência japonesa
também foram publicados. Entretanto, a primeira tradução só ocorreu em 1988 com a
publicação de Lobo Solitário pela editora Cedibra.
A incorporação de mangás no mercado brasileiro se deve ao grande sucesso das
animações japonesas veiculadas na TV nos anos 90. De acordo com Cooper-Chen (2011), os
animês são responsáveis pela popularidade dos mangás em lugares fora da Ásia. Não é à toa
que, no Brasil, séries como Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball, bastante populares entre o
público, tiveram seus mangás traduzidos.
Os mangás analisados neste trabalho são exemplos de como a popularidade dos
animês influencia as editoras na negociação dos direitos de tradução. O animê Sailor Moon
chegou ao Brasil em 1996, mas, apesar do sucesso, o mangá não foi traduzido na época.
Recentemente foi anunciado um remake do animê, no qual os eventos ocorridos no mangá
seriam reproduzidos mais fielmente do que na primeira versão animada. Depois desse
anúncio, a editora brasileira JBC adquiriu os diretos de tradução de Sailor Moon, que passou a
ser publicado mensalmente. A editora afirma que “tenta, desde 2001, quando lançou seus
primeiros títulos, trazer este título para o Brasil, mas [que] esbarrava em problemas
burocráticos e na vontade da própria autora, que não queria seu mangá fora do Japão naquele
momento.”2
Kuroko no Basket é outro exemplo de popularidade. Da autoria de Tadatoshi Fujimaki,
Kuroko no Basket (ou O basquete de Kuroko) foi publicado semanalmente na revista japonesa
Shonen Jump até setembro de 2014, ganhando uma primeira adaptação para animê em 2012,
outra em 2013 e uma terceira temporada com previsão de lançamento em 2015. Com a
grande fama do animê, os fãs brasileiros se interessaram pelo mangá e fizeram vários pedidos
às editoras para que fosse lançado no Brasil; finalmente, em uma coletiva, a editora Panini
revelou que Kuroko no Basket já estava em processo de tradução.3

2
Disponível em: http://www.editorajbc.com.br/2014/04/04/sailor-moon-finalmente-chega-ao-brasil/ Acesso em:
10 de outubro de 2014.
3
Disponível em: http://www.genkidama.com.br/gyabbo/2014/06/02/kuroko-no-basket-e-confirmado-pela-
editora-panini/ Acesso em: 26 de setembro de 2014.
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A tradução como transmissão de cultura

Lawrence Venuti (2002) afirma que a tradução tem o poder de formar identidades
culturais, ou seja, ela orienta o modo como o leitor estrangeiro vai apreender e então se
relacionar com a cultura que o texto original transmite. Em algumas traduções o texto
traduzido tende a se afastar do original para que possa se “acomodar” à cultura de chegada. A
tradução também é criadora de estereótipos. Para Venuti, “a longo prazo, a tradução penetra
nas relações geopolíticas ao estabelecer as bases culturais da diplomacia, reforçando alianças,
antagonismo e hegemonias entre as nações” (Ibid., p. 130).
Na tradução de mangás, tanto o texto traduzido como também as imagens reforçariam
o modo como o leitor da cultura de chegada percebe a cultura de partida. Em nosso
entendimento, o leitor de chegada, através da leitura, é exposto a vários elementos da cultura
japonesa. Relações de gênero, modos de falar e de se portar em público, transparecem nas
narrativas, fazendo com que o leitor absorva esses elementos como uma “regra” de vida, ou
mesmo uma realidade concreta da cultura de partida, já que alguns deles são recorrentes em
vários mangás. Assim, por exemplo, o modo de tratar as pessoas mais velhas, ou o simples
fato de os personagens tirarem seus sapatos antes de entrar em casa. As falas e as imagens não
somente passam ao leitor um pouco do modo de vida naquela cultura, mas também
contribuem para a criação de estereótipos. Longe de ser somente um modo de abstração, a
leitura de um mangá (ou a visualização de animês) reflete uma cultura que tanto difere da
nossa, levantando questões referentes a diferenças culturais, representações do outro e criação
de estereótipos.
Como exemplo, teríamos a utilização dos honoríficos. A grande maioria dos mangás
traz em sua narrativa alguns honoríficos usados no dia adia do povo japonês e que, mais do
que polidez, determinam e demonstram a posição hierárquica entre os personagens, bem
como o grau de relacionamento entre eles. Entendemos que, através dos honoríficos, o leitor
da língua de chegada pode entender melhor as relações interpessoais na sociedade
nipônica.Sobre os honoríficos, o site da embaixada japonesa no Brasil afirma:

A língua japonesa desenvolveu um sistema inteiro de linguagem honorífica,


chamada keigo, a qual é usada para demonstrar respeito ao interlocutor. Isso
envolve diferentes níveis de discurso, e o falante proficiente de keigo possui
uma ampla gama de palavras e expressões que pode se utilizado [sic],
simplesmente com o objetivo de produzir um maior grau de educação e
respeito. Uma sentença simples poderia ser expressa em mais de 20 modos
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diferentes, dependendo do status do falante em relação ao seu interlocutor. A


escolha do nível de polidez da linguagem apropriada pode ser bastante
desafiadora, uma vez que o status relativo é determinado por uma complexa
combinação de fatores, como status e posição social, idade, gênero, ou
mesmo favores concedidos ou recebidos.4

No contexto dos mangás e animês, são mais comuns os honoríficos san, chan, kun,
senpai, sensei e sama.5 De acordo com informações extraídas do site TVtropes.org:
 San (さん) é o honorífico mais usado já que pode ser empregado tanto para homens como
para mulheres. Seria o equivalente ao nosso “senhor”, “senhora”, “senhorita”.
 Chan (ちゃん) é usado geralmente para se referir a meninas, também servindo para a
composição de apelidos. O honorífico kun (くん) é usado para tratar de pessoas do sexo
masculino, podendo ser utilizado por superiores para se referir a seus subordinados,
homens ou mulheres.
 Senpai (先輩; せんぱい)seria o nosso “veterano” e é usado para se referir a pessoas que
são mais velhas que o interlocutor, não propriamente na idade, mas pessoas que, por
exemplo, estão trabalhando há mais tempo em alguma empresa.
 Sensei (先生) geralmente se refere a professores, mas também pode se referir a escritores,
por exemplo, os mangakás (autores de mangás) são tratados por sensei. Sama (さま) é um
honorífico que demonstra um grande respeito por parte do interlocutor.
Todos os honoríficos citados acima são sufixos e são inseridos após o sobrenome da
pessoa a quem o interlocutor se refere (ex: Hyuuga-san, Kuroko-kun). Senpai e sensei são
honoríficos que acompanham o sobrenome, mas também podem ser usados sozinhos, dentro
de determinado contexto. No Japão, tratar uma pessoa pelo nome de “batismo” ou “nome
dado” releva uma grande intimidade entre os interlocutores; quando não houver essa
intimidade, deve-se sempre utilizar o sobrenome seguido do sufixo san.
Tendo em mente os honoríficos e o modo como as relações interpessoais são
apresentadas por meio deles, buscamos observar de que forma, na tradução, as editoras de
mangás no Brasil lidam com essa questão. Separamos, então, para a análise, as traduções dos
mangás Sailor Moon e Kuroko no Basket, das editoras JBC e Panini respectivamente, que
constituem modelos diferentes no que diz respeito à tradução (ou não) dos honoríficos. Nas
obras analisadas encontramos duas estratégias tradutórias distintas: a domesticação e a

4
Disponível em: http://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/linguajaponesa.html. Acesso em: 10 de setembro de
2014.
5
Disponívelem:http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/UsefulNotes/JapaneseHonorifics?from=Main.JapaneseHo
norifics. Acesso em 10 de setembro de 2014.
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estrangeirização. Antes de partimos para análise convém explicar a definição dessas


estratégias.

Entre a domesticação e a estrangeirização de honoríficos

Para Venuti há estratégias que regem a tradução de um texto. Seriam elas: a


domesticação e a estrangeirização. Em uma tradução domesticadora, a cultura na qual a obra
foi concebida é “apagada” e a cultura de chegada é exaltada. Ou seja, tudo o que for
estrangeiro ou que não se adequar aos padrões
domésticos será removido ou adaptado, pois a
tradução serviria como uma forma de
reconhecimento do leitor (Ibid., 2002, p. 148).
A noção de domesticação se relaciona com a
tradução etnocêntrica que, de acordo com
Berman (2013, p. 39), “traz tudo à sua própria
cultura, às suas normas e valores, e considera o
que se encontra fora dela – o Estrangeiro –
como negativo ou, no máximo, bom para ser
anexado, adaptado, para aumentar a riqueza
desta cultura.”
Na tradução estrangeirizadora, o leitor
da cultura de chegada seria transportado até a
cultura de partida. Para Venuti (1995, p. 23), a
estrangeirização de textos mostra diferenças
linguísticas e valores culturais distintos daqueles da cultura de chegada.
Tendo em vista essas definições, procuramos observar como as traduções dos mangás
1. p. 13 administram os honoríficos presentes nos textos selecionados. Os exemplos analisados neste
trabalho são traduções bem distintas. Ambas as editoras têm estratégias diferentes no que se
refere à questão dos honoríficos. A editora Panini opta pela não tradução de sufixos tais como
san, kun, chan, enquanto a editora JBC os adapta à nossa cultura.
Começaremos a análise com o mangá Sailor Moon. O mangá da autoria de Naoko
Takeuchi foi serializado no Japão entre 1992 e 1997 pela editora Kodansha e conta a história
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de um grupo de garotas adolescentes que, com poderes especiais, buscam salvar a terra do
mal.
Em linhas gerais, as traduções da editora JBC tendem a seguir um modelo mais
domesticador. Em Sailor Moon, vemos uma tentativa de “acomodação”, na qual alguns
aspectos da cultura japonesa são deixados de lado para que a cultura brasileira venha à tona.
Essa domesticação é mais evidente na tradução dos honoríficos. Sufixos tais como san
são,por vezes, adaptados à cultura de chegada e, em outros casos, os honoríficos são excluídos
da tradução. Vejamos um exemplo.
Na imagem apresentada (fig. 1), a protagonista Usagi Tsukino interage com sua
professora e seus colegas de classe. A professora que aparece reclamando no primeiro
quadrinho chama Usagi de Tsukino-san. Mais abaixo vemos uma interação entre Usagi,
Umino (o menino de óculos) e Naru (a menina com um laço de fita nos cabelos). Usagi se
refere a Umino sem honoríficos o que, em determinados contextos, pode ser explicado por
certa inimizade entre os personagens, mas em Sailor Moon essa omissão do honorífico pode
indicar um maior grau de amizade entre eles, pois vemos no mangá que Umino é amigo de
Usagi, embora às vezes ela o ache irritante. Por sua vez, Umino se refere à protagonista como
Usagi-san. Embora Usagi seja o seu “nome de batismo”, com a adição do san o tratamento
torna-se mais formal e não tão “íntimo” como seria se somente Usagi fosse utilizado. A
melhor amiga de Usagi é Naru Osaka, que é tratada por Naru-chan. Novamente vemos o
primeiro nome junto com um sufixo, desta vez demonstrando a proximidade entre as
personagens.
Na edição da JBC, Tsukino-san foi traduzido como senhorita Tsukino. Na fala do
personagem Umino, não há presença do honorífico san, e Naru-chan é somente Naru. Ao
longo da narrativa, a tradução adapta alguns honoríficos (san é traduzido como senhor,
senhora ou senhorita, dependendo do personagem) ou até mesmo exclui alguns, como no caso
de Naru. Entretanto, percebemos que a exclusão dos honoríficos não impede o leitor de
compreender o mangá como um todo, pois no desenrolar da ação é possível perceber os
diferentes graus de relacionamento entres os personagens, mesmo sem a presença (ou com a
adaptação) dos honoríficos.
Um exemplo da não tradução dos honoríficos se encontra no mangá Kuroko no Basket,
da editora Panini. O mangá mostra os desafios de um time de basquete que luta para ser o
melhor entre todos os outros do Japão.
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Do início ao fim, a narrativa mantém os honoríficos tais como no original. A


treinadora do time, por exemplo, refere-se ao protagonista da série como Kuroko-kun. Outro
exemplo que vale a pena ressaltar é o modo como o personagem Ryota Kise se refere às
pessoas por quem nutre certo respeito. Ele adiciona o sufixo chi ao final do nome ou
sobrenome dessas pessoas. Por isso ele trata Kuroko por Kuroko-chi. Outros personagens,
quando falam sobre um aluno mais velho, tratam-no por senpai. Nesse caso a tradução não
omitiu os honoríficos, mas os manteve e, a nosso ver, essa escolha produz um grande impacto
nessa tradução em particular, pois permite ao leitor um conhecimento mais profundo das
relações existentes entre os personagens.
Os honoríficos, em geral, já são bastante conhecidos pelos leitores de mangás, que não
estranhariam o seu uso nos textos. Contudo, para leitores iniciantes, a não tradução desses
honoríficos pode servir como um empecilho à leitura, pois há grandes chances de eles não
entenderem o porquê dos sufixos, podendo mesmo pensar que fazem parte do nome do
personagem. Uma boa estratégia seria o glossário ao final do mangá. A Panini, que mantém
os honoríficos presentes no original6, lança mão desse recurso para explicá-los. O glossário
inclui também outros nomes que não foram traduzidos. Desse modo, a editora Panini
consegue manter um “equilíbrio” na sua tradução, mostrando ao leitor aspectos próprios da
cultura japonesa.

Conclusão

A tradução de mangás no Brasil vem evoluindo com o tempo. Desde a primeira


tradução no Brasil, a maneira de se traduzir mangás mudou. Dentre essas mudanças, as
principais seriam a ordem de leitura mantida no sentido oriental e a tradução realizada
diretamente da língua japonesa (OKA, 2005, p. 86).
Buscamos mostrar neste trabalho diferentes estratégias tradutórias empregadas por
editoras brasileiras na tradução dos títulos desses quadrinhos japoneses. Vimos que a editora
JBC adota um método mais domesticador, visando à adaptação de alguns honoríficos à nossa
cultura, ou mesmo optando por uma total exclusão desses termos. Já a tradução da editora
Panini mantém os honoríficos no original e opta pela inclusão de um glossário com os termos
estrangeiros ao final do mangá.

6
Original aqui no que tange o modo de leitura, poisna tradução os honoríficos são transcritos da língua japonesa
(hiragana, katakana ou kanji) para o romaji, que seria a transcrição fonética para o nosso alfabeto.
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As duas traduções aqui analisadas mostram como essas editoras administram alguns
aspectos culturais da narrativa. Em linhas gerais, podemos afirmar que há um equilíbrio no
quesito domesticação e estrangeirização. Por exemplo, a manutenção do modo de leitura
oriental já constituiria uma estratégia estrangeirizadora. Já o tratamento dado aos nomes, tanto
dos autores na capa do mangá, quanto dos personagens, segue certa domesticação, pois no
Japão o nome de família aparece antes do “nome dado”, ao passo que na tradução essa ordem
não foi mantida. Então a personagem Usagi Tsukino, no texto traduzido, é Tsukino Usagi no
original, assim como Tetsuya Kuroko é Kuroko Tetsuya. Nesse caso, se as editoras tivessem
optado por deixar os nomes na ordem oriental, o leitor teria uma visão de como a cultura
japonesa é organizada nesse aspecto, acentuando, assim, as diferenças e podendo contribuir
para reflexões sobre a diversidade cultural.
No que diz respeito aos honoríficos, acreditamos que, a exclusão ou a adaptação
dessas expressões para o português, não afeta a compreensão do texto, mas priva o leitor de
um maior conhecimento sobre a cultura na qual a obra foi concebida.

Referências

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______. Escândalos da tradução. Trad. Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela,
Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo. Bauru: EDUSC, 2002.
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ISBN: 978-85-6641465-3
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VIDA E OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS

O IMACULADO E O VULGAR EM UM POEMA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Éllen Martins Thomaz de Araújo


Allanna Karla da Silva

“chamas amor aquilo que eu não chamo.”


Augusto dos Anjos

Introdução

Concepções de amor

A vivência de um relacionamento amoroso é um desejo universal de homens e


mulheres, não importando a época, classe econômica ou etnia. O amor pode se manifestar
através da relação entre uma mãe e seu filho, de forma platônica, carnal, entre homens, pelas
coisas materiais e as várias facetas possíveis que esse sentimento pode assumir. O que difere é
a forma de amar, pois cada qual emprega suas singularidades à sua maneira de se interagir
amorosamente. Sua expressão é de extrema relevância, ao passo que seu revés pode ser
causador de conflitos, danos, transtornos, tristezas e agonias. A constante necessidade de
retratar o assunto e experimentá-lo demonstra a sua importância para o ser humano, uma vez
que essa sensação rege a vida e determina as relações que desenvolveremos com nós mesmos
e com todos os indivíduos.
Existem diferentes representações de amor, de acordo com a tripartição Clássica: Eros,
Philia e Ágape. O ἔρως (eros) é um tipo de amor arrebatado, sensual e erotizado. É sinônimo
de paixão e acontece entre os homens de forma carnal. A φιλία (philia), por sua vez, é a
manifestação de um sentimento de cuidado, mas só entre aqueles que possuem um vínculo
emocional. Pode ser definida como “amizade” e essa afeição se revela através da identificação
entre indivíduos unidos por esse laço. Marcondes (2008) acrescenta que a Philia é também “o
termo que se encontra na definição de filosofia (etimologicamente a Philia, da sofia, a
amizade ou busca de sabedoria, o desejo de sabedoria).” O αγάπη (ágape), contudo, é o
sentimento nobre demonstrado e compartilhado pelos homens, sem restrições, seleções e que
não exige recompensa.
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Na obra de Augusto dos Anjos, verificamos a inconstância do assunto em pauta. Sua


rica e extensa obra caracteriza-se pela tendência pessimista, qualidade estética, rebuscamento
da linguagem, cientificismo, entre outras coisas. Elegemos, dessa forma, como objeto de
estudo o poema Idealismo, que apresenta uma crítica às formas mais superficiais de
concretização do amor. Esse sentimento tem se consumado de forma estritamente carnal e é,
nessa perspectiva, que o eu-lírico o entende: como uma farsa na humanidade. A visão poética
de Augusto dos Anjos concebe o amor como imaterial. Para ele, este sentimento apenas é
manifestado através da alma, de forma etérea, impalpável e repleta de virtudes. Dessa forma,
entendemos que, para o eu-lírico, o amor só existe no campo da espiritualidade e de forma
abstrata. Ele defende a posição de que o amor mais profundo é vivenciado pelas almas,
tornando-se louvável, porque é direcionado a algo mais nobre e perene.
Para melhor organizarmos o nosso trabalho, elencamos alguns objetivos. São eles:
discutir e problematizar as concepções de amor presentes no poema Idealismo, de Augusto
dos Anjos, a fim de suscitar questionamentos acerca de como acontecem as relações
amorosas; desenvolver e despertar um saber epistemológico sobre a poética de Augusto dos
Anjos; Percorrer e ressignificar a literatura nordestina. Para tanto, foi feita a divisão do
trabalho em: introdução, espaço onde explicitaremos a divisão clássica em relação aos três
tipos de amor, enfocando o Eros e o Ágape; análise, em que detalharemos a categoria analítica
a partir do poema; seguindo-se das considerações finais e bibliografia correspondente ao
nosso aporte teórico, que nos norteou por um caminho coerente.

Conceituação e resgate mitológico do Eros

O Eros é o tipo de uma manifestação sensual e sexual que se origina da incompletude


do ser humano e que busca a satisfação egóica. Também pode ser visto como paixão, que
consome, desgasta, enfraquece e faz das pessoas escravas de seus anseios e desejos, não
permitindo experimentar um sentimento mais consistente. O verbo grego εραõ (eraõ)
significa, precisamente, desejar. Dessa maneira, o amor Eros representa uma vivência
individual, consistindo no desejo àquele que nos parece belo. Como podemos observar em
Incontri e Bigheto(2008):

O Eros é o amor que brota do desejo, da falta, está sempre procurando se


preencher, está em uma busca apaixonada pelo outro, querendo fundir-se em
uma pessoa só. É arrebatado, compulsivo e perturbador, porque pode nos
tirar do eixo da racionalidade. De qualquer forma, é o amor que sofre, que se
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desespera, que está sempre carente. Mas quando Eros consegue o objeto
almejado, ele perde a força, esvai-se de sua intensidade. Podendo advir até o
desinteresse e o tédio. Por isso, Eros é sempre insatisfeito e nunca se
contenta. (p. 336)

Consoante o trecho recortado, entende-se que o Eros é efêmero e, por isso, logo se
extingue. Em outras palavras, ainda que ele seja avassalador, possui caráter de fragilidade e de
inconstância. Assim o sentimento que a paixão evoca, ainda que seja verdadeiro, não é sólido.
Em sua origem mitológica, o Eros representa um dos mais fortes e imponentes deuses.
Alguns mitos concebem sua existência anterior ao surgimento do mundo grego, Caos,
representando, dessa forma, a força da criação em oposição à desorganização. Na tradição
latina, o Eros era retratado pela imagem do cupido: uma criança irresponsável que ocasionava
transtornos ao flechar corações incompatíveis.

Conceituação e resgate histórico do amor Ágape

Nesta concepção de amor, compreende-se que há o desapego e a renegação do prazer


obtido pelas relações sexuais. Não há egoísmo, ciúmes e não se exige exclusividade ou
mesmo reciprocidade nessa forma de se experimentar o amor. De acordo com Incontri e
Bigheto (2008):

Há um amor que transcende completamente todo o benefício próprio, não


tem nenhum resquício erótico e nenhuma seletividade. É o amor que no
cristianismo se chama caridade, é preferível não utilizar este último termo,
pois, ele foi muito distorcido na cultura ocidental, reduzido a dar esmolas e
ser bonzinho. (p. 345)

A partir do exposto, compreendemos que não é um tipo de amor físico e que, por ser
mais evoluído, pode e deve ser compartilhado com a humanidade. Birchal (1990) apud
Marcondes (2008), o define como “o amor altruísta, o amor doação, entrega, por vezes
mesmo o amor incondicional, transcendente”. Nesta manifestação do amor, são ressaltadas e
motivadas algumas qualidades, tais como: bondade, generosidade, tolerância, humildade e
perdão. Seguindo esse pensamento, seria um erro impor que se ame apenas uma pessoa, pois
ele deve ser entregue sem seleção.
Historicamente, o termo Ágape faz menção às reuniões estabelecidas e perpetuadas
pela tradição cristã, mais especificamente, pelos fiéis. De acordo com Marcondes (2008),
mesmo sob o ponto de vista aporético, essas atitudes de confiança ao desconhecido,
constituem a abertura que permite nos aproximar de outros e aceitá-los como tais. É nisto que
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consiste a base da sociabilidade e da convivência entre os seres humanos. Conforme


Vrissimtzis (2002):

A palavra ágape, ao contrário, foi empregada primeiramente pelos cristãos


primitivos. Denominavam-se Ágapes as refeições comunitárias dos fiéis,
desprovidas, no entanto, de caráter litúrgico, e que geralmente terminavam
em tumulto. Estas foram condenadas pelo apóstolo Paulo e a Igreja proibiu-
as definitivamente ao final do século IV d.C. Os cristãos reinvidicaram o
feito de haver enriquecido o antigo pensamento grego com o que os gregos
supostamente não haviam descoberto até então: ágape, significando amor,
aceitação sincera, fraternidade. (p. 22 e 23)

A exposição corrobora a ideia anteriormente explicitada, através do surgimento do


léxico, a ideia de coletividade presente no termo Ágape. Podemos observar também que, para
os povos clássicos, representados pelos cristãos, a significação daquilo que até hoje buscamos
compreender já estava definida. Num conceito que engloba e valoriza o bem estar de todos. A
partir desta e das outras explicações anteriores, interpretaremos o poema em questão.

O imaculado e o vulgar em Idealismo

Como é sabido, Augusto dos Anjos é conhecido, sobretudo, pela construção do belo
através do feio. Seu arcabouço literário configura-se de características como: beleza áspera e
estranha, termos científicos que corroboram seu intelectualismo; angústia e outros elementos.
No poema Idealismo, especificamente, é retratada uma visão pessimista de amor na
sociedade: o amor corrompido pelos prazeres desenfreados da carne, constituindo-se um amor
fútil, vulgar e superficial. Como se pode observar:

Idealismo
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!


Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,


O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira


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Duma caveira para outra caveira,


Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

No primeiro verso do poema, o eu-lírico estabelece um diálogo com um interlocutor


indefinido. O fato mais relevante deste trecho é a evidente imagem de discordância que o eu-
poético demonstra em relação à opinião de alguém. Ou seja, ele sequer considera discutir o
amor. Nos trechos que se seguem, entenderemos melhor essa relação. Veremos que o
interlocutor representa toda a humanidade e, sobretudo, a forma como o amor é vivenciado.
Para entendermos melhor a questão da forma como o amor pode se assumir socialmente,
Incontri e Bigheto (2008) afirmam:

Certamente, a concepção do que se entende por amor evoluiu e continua a


evoluir constantemente, e acompanha o pensamento das pessoas da época no
qual ele está inserido. Com os avanços sociais, o amor assumiu uma forma
mais física, mais erótica, e principalmente mais sexualizada. Ele se
distanciou do plano espiritual e concentrou-se nas imediaticidades e tornou-
se efêmero e descartável. (p. 335)

A partir disso, temos que o meio social influencia as concepções que um fato de
natureza também social pode adquirir. Esse amor, como se tornou socialmente concebido, é
demasiado fugaz para o eu-lírico. Ele demonstra, a partir dos exemplos, que esta forma do
Eros é autodestrutiva e limitada. No trecho a seguir, fica evidenciado o repúdio à
configuração erótica que o amor possui: “O amor na humanidade é uma mentira.” Neste
trecho, podemos observar a negação categórica do amor na humanidade. Entretanto, é
necessário salientar que o eu-lírico critica a forma vulgarizada de amor que a humanidade
pratica. A forma como as relações amorosas se dão, de maneira sexualizada e estritamente
carnal, não é para o eu-lírico o amor propriamente dito. Sobre o amor que o eu-lírico rejeita,
Incontri e Bigheto (2008) postulam:

Por outro lado, ágape significa “afeto profundo e afeição”. Para sermos
breves e um tanto simplistas, eros corresponde a “estou apaixonado” e ágape
corresponde a “eu amo”. O primeiro termo pressupõe paixão, e o segundo,
serenidade e profundidade. (p. 21 e 22)

Diante do exposto anteriormente, observamos que na sua primeira configuração, o


Eros assume um caráter volátil e passível de irreflexão. Não existe nenhuma nobreza nesta
forma de amar. E é justamente nesse ponto em que a crítica torna-se mais contundente. Essa
visão serve de justificativa para que a persona do poeta não o exalte. Vemos esse pensamento
sintetizado no seguinte trecho: “E é por isto, que na minha lira, / De amores fúteis, poucas
vezes falo.” Apreendemos desses versos que o eu-lírico afirma não compartilhar da ideia de
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que o amor difundido e vivido socialmente constitui uma forma de amor dignificante de se
manifestar. Por isso, revela sua apatia, através do desprezo poético pelo tema. O eu-lírico
critica o amor decorrente da cristalizada concepção social, da falta de perenidade e demasiada
concentração nos prazeres físicos. Incontri e Bigheto (2008) discutem sobre a configuração
que o amor possui socialmente: “Tudo se tornou tão excessivo e prolífero que caímos em um
vazio. Na nossa sociedade, tudo se erotizou, acaba-se até mesmo a referência do que é
prazer.” (p. 348) Os teóricos tencionam evidenciar o exagero que tudo adquiriu nas
sociedades ocidentais: um caráter amiúde fugaz. O amor não foge dessa tendência e as
exemplificações no poema servem de respaldo para a visão pessimista que o eu-lírico
manifesta perante o amor:

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!


Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Além de estabelecer críticas sobre a forma social como o amor é concebido e


manifestado, neste ponto do poema, é possível observar que o eu-lírico exemplifica quão
pífias podem ser a humanidade e suas atitudes. Ao mencionar estes personagens, percebemos
a mesquinhez humana. Eles representam os piores vícios do homem e estão diretamente
ligados a adultério, promiscuidade, avareza e desonestidade. A primeira menção feita no
poema, sibarita, diz respeito a um adjetivo, que representa uma pessoa dada aos prazeres da
vida. Síbaris foi uma cidade grega que se destacava por sua opulência, e disto advém a relação
com entre o adjetivo e a cidade. A segunda figura mencionada no poema, hetaíra, é um nome
que se originou do grego ἑταίραι - hetaírai, que significa “companheira”. Na Grécia Antiga,
diziam respeito às cortesãs e prostitutas. Valéria Mensalina, por sua vez, foi uma imperatriz
romana e a terceira esposa do imperador Cláudio. Ela era conhecida por possuir uma
degradante reputação. Diziam que ela conspirava contra a morte do marido para assumir o
poder. Há mitos de que ela copulou com mais de vinte homens em um único dia. A última
referência, neste trecho do poema, diz respeito à Sardanapalo. Gramaticalmente, este adjetivo
caracteriza uma pessoa que leva uma vida luxuriosa e dissoluta. Historicamente, Sardanapalo
é o nome dado pelos gregos ao rei Assurbanipal, no século VII a.C. Concluímos, portanto, a
partir dessas exposições, que o amor que a humanidade vive é mesquinho, vulgar e,
sobretudo, profano. Essas figuras ressaltam o quanto se pode desvirtuar a beleza despertada
pelo amor Ágape. O oposto disso, e necessário para a superação destes comportamentos, é,
para a voz lírica do poema, o amor Ágape. Este é o conceito que melhor descreve a visão
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transcendente de verdadeiro amor para o eu-lírico. Ou seja, um sentimento que esteja liberto
de quaisquer interesses, sejam o erótico ou o de autobenefício. Ele defende a posição de que o
amor mais profundo é vivenciado pelas almas e, desta maneira, torna-se louvável, porque é
direcionado a algo mais nobre e perene. Sobre esta forma atemporal e etérea de amor, é
exposto que: “Pois é mister que para o amor sagrado, / O mundo fique imaterializado /
Alavanca desviada do seu fulcro.” De acordo com essa estrofe, podemos depreender que, para
o eu-lírico, a única forma existente de amor é através de renegação da carne e dos valores
mundanos. Podemos estabelecer relação entre estes versos e o título do poema: Idealismo é
uma corrente filosófica que afirma que o mundo material só pode ser compreendido
plenamente a partir de sua verdadeira essência espiritual, mental ou subjetiva. Seus opostos
seriam representados pelo Realismo e Materialismo. A corrente Idealista supõe que a única
realidade plena e completa é a de natureza espiritual, sendo a compreensão materialística ou
sensível dos objetos um estágio pouco evoluído e superável. Ou seja, o amor como é
vivenciado socialmente, físico e sexual, é pouco evoluído e carente de se transcender. Para
que possamos visualizar melhor o conceito de amor evoluído que é defendido pelo eu-lírico, é
preciso compreender, de acordo com Incontri e Bigheto (2008) que:

A forma sublime de amor é mesmo o ágape, nele há sublimação da beleza


corpórea que deixa de ser mais importante para valorizar a alma. Esse amor
à alma do outro motiva, procurando levá-lo ao bem, ao belo e à verdade.
(p.353)

A partir dessa exposição, observamos que para os autores, assim como para a persona
do poeta, o amor só se dá verdadeiramente no campo espiritualístico. Temos também que o
amor é, ao mesmo tempo, aprendiz, porque está sempre em busca de entender-se e entender o
mundo, e mestre, porque direciona a coisa amada para a sabedoria, para a compreensão do
universo. Por último, temos que o eu-lírico critica de maneira mais latente após as
considerações feitas ao longo da poesia, o tempo em que se praticará a verdadeira forma de
amor: “E que haja só amizade verdadeira, / Duma caveira para a outra caveira / Do meu
sepulcro para o teu sepulcro?!”. No segundo e último terceto, observamos uma crítica a
respeito de quando se porá em prática a forma verdadeira de amar. É necessário que
esperemos a morte para que haja mudança na forma como tratamos nossos semelhantes.
Compreendemos, portanto, que, na ótica do eu-lírico, o amor é um encantamento que
se sobrepõe aos deleites carnais. Este fenômeno só se concretiza com o amor ao próximo e
com a total renegação do prazer imediato, para que se consiga algo mais consistente. Dessa
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forma, possibilitará a passagem do amor físico, do ato carnal para um processo de elevação
espiritual, alcançando a verdadeira natureza de amar.

Considerações Finais

Com este trabalho, pretendeu-se ampliar as discussões acerca da obra de Augusto dos
Anjos e da visão poética abordada no poema Idealismo. Observamos uma tendência a
defender o amor no campo espiritual, de forma abstrata, em detrimento da paixão carnal,
passageira e superficial. Nesse sentido, o autor dá vida a uma voz poética que concebe o amor
no plano etéreo.
Compreender a poesia de Augusto dos Anjos como dialética e passível de ensejar
discussões profundas sobre a existência humana e temas que continuam sendo relevantes para
a sociedade é sempre um instigante desafio.
Analisar, mais especificamente, o poema Idealismo e as representações do amor
presentes nele constituiu o escopo do nosso trabalho. Ansiamos, além disso, percorrer e
repensar a poesia de Augusto dos Anjos, suscitando discussões sob diferentes perspectivas, a
fim de mantê-la viva, dinâmica e atual.

Referências

INCONTRI, D e BIGHETO, A.C. FILOSOFIA: Construindo o Pensar. São Paulo: Editora


Escada Educacional, 2008.
VRISSIMTZIZ, Nikos A. Eros e Ágape, in Amor, sexo e casamento na Grécia Antiga. Trad.
Luiz Alberto Machado Cabral; rev. Rosana Citino. São Paulo: Odysseus, 2002.
BIRCHAL, Telma. Eros e Ágape, Síntese: Nova Fase, 48, 1990: 95-106.
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006
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“O MORCEGO”, DE AUGUSTO DOS ANJOS, E “O CORVO”, DE POE: SOMBRAS


DO GROTESCO NO VOO DA MODERNIDADE

Alexandre Alves
UERN

Melancolia conjugada: o belo, o grotesco e a pulsão de morte

Swiftly walk o’er the western wave,


Spirit of Night!
Out of the misty eastern cave,
Where, all the long and lone daylight,
Thou wovest dreams of joy and fear,
Which make thee terrible and dear –
Swift be thy flight!

“To night”, Percy Bysshe Shelley

Quando o escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) publicou pela


primeira vez o poema “The Raven” (“O Corvo”) – sem sequer assinar a autoria dele e
recebendo apenas dez dólares como pagamento, segundo Claúdio Weber Abramo (2011) – na
edição de 29 de janeiro de 1845 do jornal The New York Evening Mirror, provavelmente ele
jamais imaginaria que seu texto poético alcançasse tamanha importância a ponto de
influenciar outros autores do outro lado do hemisfério, como é o caso do paraibano Augusto
dos Anjos (1884-1914). Deste lado dos trópicos, o poeta nordestino escreveu inúmeros textos
com uma atmosfera soturna similar presente no lirismo do estadunidense, caso de “Noite de
um visionário” e “O morcego”, mesmo com a diferença linguística, cultural e temporal, visto
que havia se passado mais de meio século até que Augusto dos Anjos publicasse Eu, seu
único livro, editado ainda em vida, dois anos antes de vir a falecer.
Em comum entre os dois poetas, há uma procura por elementos que se distanciam
daquilo que outrora se esperava da poesia até então – linguagem rebuscada e contemplação do
belo como fonte poética, por exemplo – uma vez que ambos convergiam em seus textos
poéticos para uma visão em que medo e horror podem vir a surgir como resultados. O lirismo
agora estaria também voltado ao grotesco e para uma vertente aparentemente esquecida do ser
humano, uma veia de melancolia e desespero que parecem unidos para registrar o lado mais
obscuro do homem. O próprio Edgar Allan Poe, em seu hoje quase monolítico ensaio “A
filosofia da composição” (1846), indica que esta procura pelo belo continua sendo a
“província do poema”, só que, para o estadunidense, isto estaria relacionado com a proposição
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de um “efeito” tanto na composição do poema pelo artista quanto na leitura do texto pelo
leitor, este por sua vez ligado a um determinado “tom”:

Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão


se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm
demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em
seu desenvolvimento, supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva
as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos
(POE, 2009, p. 118).

A poesia de Augusto dos Anjos teria esta mesma ligação com a melancolia, uma vez
que para críticos como Chico Viana (1994), ao comentar um dos poemas (“Os gemidos da
arte”) do livro Eu, percebe que o Eu lírico mostra certa dubiedade ao relatar o seguinte fato:
“Se em alguns passos a personagem lamenta sua tristeza, noutros transparece o desejo que ele
tem de cultivá-la. [...] Ela acaba se constituindo de não apenas em refúgio como também em
alimento, fonte de integração afetiva [...]” (VIANA, 1994, p. 63). É mais que notória a
denominação sobre a obra de Augusto dos Anjos como sendo mórbida ou insistentemente
triste, mas Viana aponta que por trás deste senso comum há mais do que simplesmente um
apego à morbidez, procurando revelar que há uma melancolia em evidência no poeta
paraibano está ligado a uma espécie de “chave psicológica” que envolve a nostalgia por um
objeto perdido, ausente, que gira em torno de uma situação de unidade e também de efeito:

O sentimento de culpa e a pulsão de morte, que a melancolia


privilegiadamente articula, desempenham uma função importante nessa
busca [da nostalgia]: o primeiro, por refletir as renúncias que, ao longo do
tempo, se impuseram ao homem por efeito da civilização – a genealogia da
culpa nos reenvia ao problema das origens. E a pulsão de morte, por atuar
como crítica rigorosa, sugerindo vias alternativas ao cansaço, à velhice, à
mesmidade (VIANA, 1994, p. 39, grifos do autor).

Enfrentar os versos de Augusto dos Anjos é, sim, encontrar o tom melancólico de Poe,
mas igualmente achá-lo junto a esta “pulsão de morte” apontada pelo estudioso paraibano
Chico Viana como uma via crucis lírica que margeia tanto uma beleza marcada pelo objeto
perdido, pela nostalgia, quanto pela culpa voltada ao “problema das origens”, um dos quais
pode ser caracterizado pelo medo, especialmente do desconhecido. Neste viés, há a
possibilidade de interpretar os efeitos poéticos acerca dessa temática que engloba melancolia,
medo e morte através dos símbolos de dois animais de aspecto, no mínimo, negativos: o
morcego e o corvo.
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Já na visão do escritor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937), autor de vários


livros que se tornariam pequenos clássicos da literatura fantástica do século XX 1, na
introdução de um dos poucos artigos de base para a crítica literária voltada às histórias de
terror, o ensaio “O horror sobrenatural em literatura”, publicado originalmente em 1927,
afirma o seguinte:

A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de


medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido. [...] [Há] um
idealismo ingênuo que despreza a motivação estética e pede uma literatura
didática para “elevar” o leitor a um nível adequado de pretensioso otimismo.
[...] O apelo do macabro espectral é geralmente restrito porque exige do
leitor um certo grau de imaginação e uma capacidade de distanciamento da
vida cotidiana. São relativamente poucos os que se libertam o suficiente do
feitiço da rotina diária para responder aos apelos de fora [...] (LOVECRAFT,
2007, p. 13).

Sendo assim, Lovecraft aponta diretamente o medo como fonte primordial de


“motivação estética”, fato que comporta tanto a procura de Poe por um “tom” de beleza
ligado à melancolia quanto a presença do medo como um tipo de mote expondo o escritor
como um ser de imaginação extremamente ligado, por vezes, ao deslocamento em direção ao
“desconhecido”, talvez a uma revelação envolta na busca de outra parte do verdadeiro ser
humano, à procura de si mesmo, como assim fazem Augusto dos Anjos e Edgar Allan Poe.

O morcego e o corvo: ecos semelhantes em hemisférios diferentes

A figuração dos animais no gênero lírico tem sua importância desde antes de Cristo,
quando os primeiros líricos romanos, como Vergílio (71-19 a.C.), expunham em seus textos
“grande delicadeza e revelam a capacidade do poeta de esboçar paisagens rurais e compor
caracteres” (CARDOSO, 2003, p. XIV). Na verdade, em obras como as Bucólicas, traça um
breve perfil das dicotomias entre cidade e campo, com os animais como personagens da parte
I da obra citada (VERGÍLIO, 2003, p. 43):

Como um tolo, Melibeu, pensei que a cidade a que chamam Roma


era semelhante a esta nossa, para onde, nós pastores, muitas vezes,
costumamos levar os filhotinhos separados das ovelhas.
Julgava, assim, os cãezinhos semelhantes aos cães, e os cabritos
às mães; assim costumava confrontar grandes coisas com pequenas.

1
Entre suas mais conhecidas obras figuram Nas montanhas da loucura, A maldição de Sarnath e O horror em
Red Hook.
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Dessa visão campestre – pastores e ovelhas como símbolos de equilíbrio bucólico – da


qual a lírica a estendeu até o período romântico, chegando a um exagero de clichês e
arquétipos em torno disso, um longo tempo se passou na poesia até chegar ao século XIX,
época em que nascem tanto Edgar Allan Poe quanto Augusto dos Anjos em hemisférios
diferentes. Entretanto, ambos possuem uma visão sobre o homem e uma vida bem distinta do
bucolismo que atravessava séculos, sendo uma escrita repleta daquilo considerado como
sendo a duplicidade das ações mentais, entre a razão e a imaginação, cuja última seria de
maior interesse para a poesia, de acordo com Shelley (2008, p. 77):

[a imaginação] como a mente agindo sobre estes pensamentos [da razão]


como para pintá-los com sua própria luz, e compor, a partir deles, outros
pensamentos, cada um contendo em si o princípio de sua própria integridade.
[…] A poesia, em seu sentido comum, pode ser definida como 'a expressão
da imaginação' […].

O poema “O Corvo” – no original “The raven”, contendo pouco mais de cem versos –
é tido como um dos textos essenciais da lírica estadunidense, embora sua própria
engenhosidade na feitura dos versos o faça não estar relacionado, pelo menos, de forma
explícita “a nenhuma das influências então correntes – nem ao romantismo germânico que em
seu tempo dominou a poesia americana […] nem a uma preferência, em seus cenários, por
qualquer terra ou povo determinado” (NABUCO, 2000, p. 51). Elaborado em sextetos, os
quais em cada um deles são ressaltadas as negativas expressões “nothing more” (nunca mais)
e “nevermore” (nunca mais), “O Corvo” apresenta um eu lírico que se depara com a presença
de uma “ave de mau agouro”, como sentencia o próprio autor em “A filosofia da
composição”.
Poe acaba criando um ambiente fantástico com o pássaro servindo de figura central:
“Tinha, pois, de combinar as duas ideias, a de um amante lamentando sua morta amada e a de
um Corvo continuamente repetindo as palavras “Nunca mais'. […] mas a única maneira
inteligível de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregando a palavra” (POE, 2009,
p. 120). Leia-se as duas estrofes iniciais de “O Corvo” (POE, 2009, p. 65):

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,


a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém”, fiquei a murmurar “que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais."
Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
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Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda


algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
– essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.

Nesses versos de abertura, as imagens escolhidas pelo poeta norte-americano vão


sugerindo um clima sombrio (meia-noite), taciturno (gélido dezembro, sombras fantasmais),
solitário, em que o exaustivo ato de ler do eu lírico é interrompido por um som parecido a
uma pessoa batendo à porta, embora não seja um fato conclusivo para o leitor. Na segunda
estrofe fica esclarecido que se trata de uma lembrança relacionada à figura feminina, mas uma
memória melancólica e angustiante (Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda /
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora). É o chamado “efeito” que Poe
queria dar ao seu poema, tópico levantado por ele mesmo em “A filosofia da composição”,
um texto teórico escrito pelo americano para explicar a própria gênese composicional de “O
Corvo”.
Esse mesmo desvão psicológico se sobressai também na abertura de um dos muito
sonetos de Augusto dos Anjos presentes em sua obra Eu, mais especificamente o terceiro
texto da obra. Ao longo dos versos de “O morcego”, há um eco similar das ideias propostos
por Edgar Allan Poe em “O Corvo”, uma vez que na composição poética do paraibano há
tanto a presença humana quanto a de um animal noturno, no caso, um mamífero voador de
aspecto tão negativo quanto o pássaro citado pelo estadunidense. Eis o poema (ANJOS, 2010,
p. 97):

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.


Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."


– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
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São muitas as semelhanças entre os versos do brasileiro e os do norte-americano, a


começar pelo mesmo tom noctâmbulo e espacial do verso de abertura (Meia-noite. Ao meu
quarto me recolho.) e o eu lírico augustiniano prestes a dormir ou descansar, enquanto nos
versos de Poe o sujeito lírico está no hábito de uma leitura à margem da exaustão. Já
reforçando o pensamento anterior do poeta estadunidense quanto a um “efeito” pretendido,
estaria já no começo de ambos os textos aquilo que o leitor pode considerar como sendo um
ambiente noturno, compactuando com as ideias de que, segundo Lovecraft (2007, p. 17),
“Atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério final de autenticidade não é a
harmonização de um enredo, mas a criação de uma determinada sensação”. É aquilo que, indo
novamente ao poema de Poe, encontra-se na quinta e sétima estrofes, quando a figura da ave
que dá título ao poema se torna explícita nos versos de “O Corvo” (POE, 2009, p. 66):

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,


sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror enxuto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.
[…]
Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
– É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.

Enquanto Poe segue gradativamente erguendo a atmosfera sombria (Estarrecido de


ânsia e medo, ante o negror enxuto e quedo) relatada por um eu lírico que enxerga a ave em
revoada insistente (Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:) sob
uma espécie de estribilho (e nada mais), no segundo verso do soneto de Augusto dos Anjos a
revelação do morcego a voar é direta e a reação do narrador agrupa pavor e espanto (Meu
Deus! E este morcego! E, agora, vede:). Em seguida, entra o estilo do poeta paraibano que
alguns críticos admitem ter um caráter “transgressivo e moderno”, vindo a alcançar um molde
no qual se sobressaem “tanto os componentes técnicos literários de seu verso quanto os
aspectos estilísticos e ideológicos, moldando-se sob o signo […] da ruptura para com os
paradigmas estéticos dominantes” (BARBOSA FILHO, 2001, p. 150).
Se o segundo verso se iniciava com uma expressão de cunho popular – Meu Deus! –,
os versos seguintes de “O morcego” exploram as peculiaridades semânticas de Augusto dos
Anjos (Na bruta ardência orgânica da sede, / Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.),
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cujos vocábulos escolhidos mantém uma linguagem culta, mas que, em breve, irá se ladear
nesse mesmo poema com expressões coloquiais, criando um escape da linguagem canonizada
da lírica parnasiana, romântica ou simbolista reinante nos poetas brasileiros da época. Os
versos, na verdade, conduzem a uma visão de repulsa diante da imagem pavorosa do
morcego, cujo ápice é a sensação de medo.
Em sua terceira estrofe, o autor paraibano revela a repulsa do eu lírico frente ao
mamífero voador enquanto o nervosismo se junta ao medo como fator crescente e
claustrofóbico ("Vou mandar levantar outra parede..." / – Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o
ferrolho / E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, / Circularmente sobre a minha rede!).
Há de se notar aqui a mesma técnica usada pelo norte-americano em utilizar do discurso
direto colocado entre aspas, para simbolicamente dar maior verossimilhança ao que é narrado,
justamente para recriar um ambiente psicológico e soturno ao mesmo tempo. Por outro lado, o
referencial do cotidiano brasileiro se impõe no derradeiro verso, em que está deitado em um
objeto corriqueiro (uma rede).
Retomando o poema de Poe, em suas décima quinta e décima sexta estrofes, há um
clímax que se dá pela voz exclamativa do eu lírico, que de mero pensamento sobre a ave
noturna, passa a esbravejar e indagar a ela, como se a mesma estivesse personificada, além de
reforçar a ideia negativa, plena de referências cristãs2, sobre o pássaro que mantém a mesma
resposta sobre a figura feminina trazida desde a segunda estrofe (POE, 2009, p. 68-69):

“Profeta!”, brado, “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal


que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
[…]
“Profeta!”, brado, “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
– essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”.

A figuração e caracterização da ave negra conduzem à manifestação de um


negativismo em evidência por parte do eu lírico, em que vocábulos como “mal”, “infernal”,
“abismo”, “naufrágio”, “estéril terra” e “dor” podem ser todos conduzidos ao auge se

2
Na obra O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (2011), Cláudio Abramo
aponta as diversas possíveis fontes predecessoras que o norte-americano utilizou em seu famoso poema, desde
as puramente literárias – como o poeta alemão Gottfried August Bürger, autor de um poema com o título de
“Leonora” em 1773 – até as claramente bíblicas, citando trechos de Jeremias, Jó e Isaías, entre outros, para
comprovar uma filiação e leitura religiosa na construção do corvo de Poe.
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direcionados ao verso “mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo a verdade:”.
É aqui que a esperada indagação ao Corvo alcança a consciência do eu lírico, a de que a
mulher amada, de nome Lenora, não será vista novamente, tudo planejado pelo norte-
americano como um mote mais do que melancólico, observado que “[…] a morte, pois, de
uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca
mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor” (POE, 2009, p.
120). É justamente essa consciência acerca da morte da figura feminina amada que conduz ao
horror proporcionado por um amor que não pode mais ser alcançado, convencionando o
sentido do poema, como um todo, “na procura de um par que se ajuste com o tom de
melancolia que percorre todo o poema, em toda sua extensão” (ARAÚJO, 2002, p. 96).
Trazendo de volta o poema de Augusto dos Anjos, após o introito repleto de uma aura
“de angústias e obsessões que o poeta encontrava no mundo do próprio 'eu'” (BOSI, 1979, p.
51), em especial a repentina aparição do morcego em meio ao descanso noturno do homem,
nas duas últimas estrofes do poema, existe um percalço similar ao de Poe, ainda que
mantendo certas diferenças na linguagem e na concisão temática. Daquilo que se impõe como
semelhante está a angústia – misturado ao horror – diante da visão do morcego, cuja primeira
reação é o medo, ainda na segunda estrofe (– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho).
Na estrofe seguinte, isto se transforma em repugnância, fazendo o eu lírico partir para
a tentativa de se defender de algo que ele tem como ameaça, mas não sem antes utilizar uma
expressão coloquial logo no início da terceira estrofe, que aproxima os versos da linguagem e
tema prosaicos do futuro Modernismo nacional (Pego de um pau. Esforços faço. Chego / A
tocá-lo. Minh'alma se concentra.). A técnica do enjambement também é outro indício de
modernidade no texto do paraibano, que quebra a sequência frasal em versos distintos, fato
similar ao posicionamento da indagação do derradeiro verso da terceira estrofe (Que ventre
produziu tão feio parto?!), somente respondido na seguinte, como se o sentido tivesse sido
partido pelo espaço em branco entre as estrofes.
Antes que se faça uma resposta, o evidente símbolo do morcego consegue se coadunar
com uma imagem de horror, mas o ambiente noturno – como se fosse o “efeito” almejado por
Edgar Allan Poe – está bem próximo daquilo que Lovecraft aponta como sendo a causa
primordial de tudo, que é o medo:

No começo era o medo, noite antes da luz. Desde sempre e para sempre, a
mais antiga das emoções, da humanidade e dos seus integrantes, […] o medo
tem suas raízes na infância, seja da espécie ou de cada um, originalmente
desamparados. Como do desconhecido, por definição, não se tem nenhum
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saber nem defesa possível, a angústia ocuparia o centro da subjetividade


(CESAROTTO, 2007, p. 11).

Entre os três versos da última estrofe do soneto de Augusto dos Anjos, está um termo
associado ao âmbito da Psicologia, especificamente aquela relacionada a Sigmund Freud 3,
mas que pode muito bem ser tomado como um aceno àquilo de que todos estamos cientes em
determinado instante (A Consciência Humana é este morcego!). A figura do morcego seria
também a própria consciência do ser humano, que procuraria desprezar o lado repugnante da
vida, embora sob a atmosfera noturna e enclausurada de um quarto à meia-noite venha a se
tornar a aparência – sinistra, feia, repulsiva – desse mesmo homem, amedrontado diante de
sua própria condição de horror. No vocábulo coloquial do penúltimo verso está a humanidade
inteira e seu forçoso auto retrato (Por mais que a gente faça, à noite, ele entra), escondido em
meio à escuridão, entretanto, mesmo na ausência da luz, a percepção sobre os fatos se dá de
maneira sorrateira no espaço íntimo do homem (Imperceptivelmente em nosso quarto!), tanto
físico quanto internalizante, psicológico, como se relembrasse que “Os primeiros instintos e
emoções do homem foram sua resposta ao ambiente em que se achava” (LOVECRAFT, 2009,
p. 14).
O efeito, para usar do termo que Edgar Allan Poe tanto prezou em “A filosofia da
composição”, produzido pela leitura dos versos de “O morcego” atenta para o fato de que o
ser humano talvez não possa recusar “de se ater ao mundo das aparências e o anseio de
penetrar a intimidade das coisas e da sua somatória” (PAES, 1985, p. 89). De modo
semelhante ao corvo de Poe, que põe sob pressão um eu lírico ue parece não estar ciente da
morte da amada – e, para isto, a ave aparece para retomar de modo insistente a aura de
negação em torno de um amor agora impossível –, no soneto de Augusto dos Anjos o ato de
apresentar o morcego de modo crescente sob diferentes sensações e emoções (visão, paladar,
medo, tato) se sobrepõe em uma constância que, em suma, revela que o horror de estar diante
do morcego é o mesmo horror de estar diante de si mesmo.

Augusto dos Anjos e Edgar Allan Poe: influência ou confluência?

3
De notória expansão e influência no século XX, o psicólogo austríaco publicou no começo do século citado
algumas obras (entre elas estão Interpretação dos sonhos e Psicopatologia da vida cotidiana) que, de um modo
ou outro, vieram a popularizar termos como “consciente”, “inconsciente” e “subconsciente”, o que revela um
linguajar cientificista com o qual o poeta paraibano é geralmente identificado.
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De conhecida fonte sobre Augusto dos Anjos estão as respostas do poeta quanto a um
“inquérito” feito por Licínio dos Santos e publicado em 1914 na obra A loucura dos
intelectuais, de autoria do autor supracitado. Entre as indagações feitas, realizadas após a
publicação de Eu, uma resposta chama a atenção pela evidência da voz do escritor paraibano:
“Quais os autores que mais o impressionaram? – Shakespeare, Edgar Poe” (SANTOS apud
ANJOS, 2010, p. 11). Esse mesmo inquérito é, para alguns estudiosos, “sem dúvida, da maior
importância para o conhecimento da personalidade do poeta” (BARBOSA apud ANJOS,
2010, p. 83) e no pequeno trecho a citação do autor estadunidense sendo lembrado por
Augusto dos Anjos como um dos que mais o marcaram na literatura surge como uma
incólume certeza de influência.
Diversos outros estudiosos de Augusto dos Anjos determinam outros referenciais
anteriores para a poesia dele, sem citar o britânico e o norte-americano que vieram a
impressionar o paraibano. É comum ser notada a existência de um quadro ambíguo sobre a
poesia de Augusto dos Anjos, simultaneamente única, porém sendo relacionada a outros
autores de renome:

A sua escrita aproveita a divulgação científica que dominou o fim do século


XIX e que ele elaborou num verdadeiro sistema poético, marcado pela
influência de Baudelaire e do português Antero de Quental, além da de Cruz
e Sousa (CANDIDO, 1999, p. 65).

Os nomes do simbolista europeu – não por acaso ensaísta e tradutor de vários textos de
Edgar Allan Poe para a língua francesa4 – do escritor lusitano e do simbolista catarinense
podem impor um conhecimento de uma tradição literária que venha a se relacionar com a
poética de Augusto dos Anjos, especialmente no que tange respeito ao ideário romântico-
funéreo do poeta paraibano – fator típico do chamado Ultrarromantismo5 – e do decadentismo
dos simbolistas, estes de forte presença nos poemas do paraibano:

De um virtuosismo no verso praticamente insuperável, embora de variedade


bastante limitada, a roupagem normal da poesia de Augusto dos Anjos é o
seu sonoríssimo e persistente decassílabo, onde as metáforas mais espantosas
e exatas se amontoam quase claustrofobicamente, dando-nos sempre a
impressão de uma força agrilhoada, de um infinito preso dentro de uma
camisa-de-força, na iminência esperada de explodir, o que é no mínimo um

4
Uma das edições brasileiras na qual se encontram alguns dos textos de Charles Baudelaire acerca do autor
estadunidense está em Ensaios sobre Edgar Allan Poe (2003).
5
Tal corrente é costumeiramente ligada a uma das “gerações” do Romantismo brasileiro, cuja melancolia era
uma de suas marcas, mas Massaud Moisés (2004) anota que a expressão foi usada antes no Romantismo de
Portugal.
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registro perfeito para conter a sua temática de ânsia insanável do absoluto e


desespero concreto (BUENO, 2007, p. 249).

Indo além dos nomes mencionados e relacionando agora as possibilidades de contato


de Augusto dos Anjos com o poema de Edgar Allan Poe, se for observado o fato de que,
segundo Denise Bottman (2010), o poema “O Corvo” foi traduzido por Machado de Assis em
1883 – e colocado na primeira edição de Poesias completas do autor carioca em 1901 – e dois
anos depois sairia o volume Novelas extraordinárias, publicada pela editora carioca H.
Garnier, é fato que a escrita de Edgar Allan Poe já havia alcançado o Brasil no começo do
século XX. Soma-se isto ao fato de já existirem edições publicadas em Portugal, anteriores às
brasileiras e que poderiam chegar aos leitores mais sintonizados com a literatura da época.
Daí chegar a outra instância, a de que Augusto dos Anjos leu a obra do norte-
americano em algum momento de sua juventude, coadunando-se a uma razoável
probabilidade que o poeta paraibano tenha tido acesso, sem aqui criar polêmica, ao
supracitado texto de Poe (e, quiçá, a outros do norte-americano também). Ergue-se aqui mais
um fato da consciência poética que Augusto dos Anjos tinha sobre seu tempo e seus autores.

Considerações finais

Como um efeito – tão necessário à composição poética na visão de Poe – desta leitura
comparativa, surge a tensão provocada pela presença dos dois animais citados nos poemas, o
morcego e o corvo, ambos sendo símbolos de uma procura por um lirismo que margeia o
grotesco como recurso iminente do horror, inclusive presente na poesia finissecular que
geraria a modernidade na Literatura no século XX. Para os conceitos de H.P. Lovecraft, a
presença dos animais em cada poema poderiam se encaixar, em nossa visão, a um instante que
o escritor, de um modo geral, reage a ponto de fazer nascer “um conjunto composto de
emoção aguda e provocação imaginativa cuja vitalidade deve necessariamente durar enquanto
existir a raça humana” (LOVECRAFT, 2009, p. 15).
Para a lírica de Augusto dos Anjos, os versos dele permanecem como um retrato único
na poesia brasileira, uma vez que “falar sobre ele é um exercício de busca, de descobertas, de
renovação e modificação de conhecimentos, havendo, sempre, mais dúvidas que certezas”
(ARAGÃO, 2012, p. 45). O poeta paraibano paira sua criação poética justamente sobre um
conflito, “essa tensão polarizadora entre razão e emoção, entre conhecimento e fantasia,
enfim, entre o eu e o mundo, um dos cernes semânticos que garantem a modernidade na
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poesia de Augusto dos Anjos” (BARBOSA FILHO, 2001, p. 154). E é nessa “tensão
polarizadora” na qual expõe o crítico que o autor de Eu continua fazendo ecoar seus versos
fora do padrão que o cercava nas primeiras décadas de um século que viria nascer a Primeira
Guerra Mundial no mesmo ano em que Augusto dos Anjos viria a falecer.
O que interessa perceber aqui são as sombras do grotesco no voo de uma modernidade
literária – tanto na temática grotesca quanto em uma linguagem nova que começava
timidamente a se espraiar no século que viria nascer o Modernismo – que nascia em ambos os
poetas, de origens distintas, mas também com a dupla de escritores já pronta para antever os
rumos que a linguagem poética tomaria nas primeiras décadas do século XX, época na qual
poesia e o cotidiano se agrupariam em um influxo psicológico sem precedentes. Seria o início
de um posicionamento lírico raro no Ocidente e cuja poética une Augusto dos Anjos e Edgar
Allan Poe sob hemisférios distintos em sua geografia real, mas amalgamados na busca do
homem e do horror presente nas circunstâncias da existência.

Referências

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CARDOSO, Zélia de Almeida. Introdução. In: NERI, Maria Luiza. NOVAK, Maria da Glória
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VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos.
João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 1994.
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O GROTESCO NA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Cássia Alves da Silva

Introdução

Ao lermos a poesia de Augusto dos Anjos, observamos um eu poético em constante


inquietação que provoca uma ebulição no seu ser, resultado de um eu fragmentado.
Através das leituras empreendidas, chegamos à conclusão de que essa fragmentação é,
primeiramente, fruto da influência de diversos estilos literários que ecoam no poeta.
Investigar a presença dos diversos estilos literários em Augusto dos Anjos seria um trabalho
bem mais árduo. Por isso, optamos por averiguar remanescências do Romantismo em na obra
do poeta, observando que essas remanescências fazem aparecer o elemento grotesco. A
inquietação, a busca intensa de completude, a solidão encontradas na obra do poeta brasileiro
são alguns aspectos herdados do Romantismo europeu.
Essa herança é possível por meio dos processos de endoculturação e hibridação
cultural pelos quais passou o poeta e a (s) sociedade (s) da (s) qual (quais) ele faz parte,
especialmente a sociedade que congrega o meio artístico. Com isso, confirmamos a
pertinência da pesquisa empreendida para a execução desse trabalho.
Para efeitos didáticos, nosso trabalho está organizado da seguinte maneira :
Primeiramente, traçamos a definição de grotesco, por meio de um percurso diacrônico.
Depois, refletimos sobre a estética romântica presente no poeta Augusto dos Anjos e, por fim,
analisamos os poemas « Solitário » e « O poeta do hediondo », observando que as
remanescências românticas fazem surgir o elemento grotesco.

Percurso diacrônico do grotesco

Ao analisarmos o grotesco enquanto categoria estética, faz-se necessário um estudo


cuidadoso que atravessa os séculos. Só assim, chegaremos à complexidade da definição de
grotesco. Começamos com a delimitação clara e precisa do Dicionário eletrônico Houaiss da
Língua Portuguesa 3.0 (2001):

Adjetivo e substantivo masculino


1 Rubrica: artes plásticas.
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diz-se de ou cada um dos ornamentos que representam objetos, plantas,


animais e seres humanos ou fantásticos, reunidos em cercaduras, medalhões
e frisos que envolvem os painéis centrais de composições decorativas
realizadas em estuques e esp. em afrescos; brutesco, grutesco
2 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: artes plásticas.
diz-se de, ou estilo artístico ou obra desenvolvida a partir de tais ornamentos
Exs.: a pintura g. de Arcimboldo
o g. dos flamengos e alemães
3 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: artes plásticas, cinema,
fotografia, literatura, teatro.
diz-se de ou categoria estética cuja temática ou cujas imagens privilegiam o
disforme, o ridículo, o extravagante etc.
4 Derivação: por extensão de sentido.
que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil,
bizarro, estapafúrdio ou caricato
Ex.: situação g.
5 Rubrica: artes gráficas.
diz-se de ou caráter tipográfico que apresenta traço uniforme, todo ele da
mesma espessura, e é desprovido de serifa; bastão, bastonete, etrusco, lineal.

Observamos que o dicionário elenca alguns conceitos de grotesco e, de certa forma,


elabora uma definição diacrônica. A primeira remete à época na qual se origina a palavra, isto
é, a renascentista, quando foram feitas escavações em grutas situadas no interior da Casa
Dourada, na qual morou Nero, o imperador romano. Nessas grutas foram encontradas
decorações que agregavam animais e plantas, resultando em um elemento estranho, tendo em
vista que, para aqueles pesquisadores, essa união era uma novidade. O local onde foram
encontradas essas obras deu origem ao vocábulo « grotesco » : gruta, em italiano, grotta. A
partir daí, as obras artísticas desenvolvidas com base nesses ornamentos passam a ser
denominadas arte grotesca. Com o passar dos anos e dos séculos, sobretudo com o advento do
Romantismo, movimento que priviligiou o feio ao lado do belo, o grotesco passou a ser visto
como o disforme, o extravagante, o terrificante, ou seja, tudo que pode causar estranhamento
e provoca terror, mas que, em alguns casos, pode causar também o riso.
Para entendermos o grotesco com mais riqueza de detalhes, é importante ter em mente
o que dizem os principais teóricos do assunto. Victor Hugo, Wolfgang Kayser, Mikhail
Bakhtin, Charles Baudelaire, Henri Bergson, Luigi Pirandello, Umberto Eco são alguns dos
autores que se debruçaram sobre essa temática. Mas, em nosso trabalho, discutiremos as
ideias dos três primeiros autores citados.
Para Victor Hugo, o grotesco é uma categoria estética que se opõe ao sublime.
Segundo o teórico, “o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no
reverso do sublime, o mau com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2002, p. 26). Diante
disso, vemos que, para Victor Hugo, o grotesco é o polo oposto do sublime. Enquanto o
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primeiro engloba as categorias do feio, do disforme, do mal e da sombra, o outro agrega o


belo, o gracioso, o bem e a luz. Além disso, para Hugo, o grotesco pode trazer tanto o
disforme e o horrível, como o cômico e bufo.
Já Wolfgang Kayser (2003) ressalta o caráter abismal do grotesco. Nessa perspectiva,
engloba o angustiante, o sinistro e o fantástico. De acordo com o teórico alemão, o mundo
grotesco é quimérico, caricaturesco, é a confluência entre Bosch e Brueghel. Isso pode ser
constatado por meio dos quadros “Jardim das delícias”, de Bosch e “A parábola dos cegos”,
de Pieter Brueghel, ‘O Velho’, os quais revelam uma grande liberdade criativa. Em Bosch, as
figuras parecem experimentar todos os sentidos ao mesmo tempo, reunindo o elemento
religioso às paixões terrenas, formam, assim, um todo bastante estranho construído de
pedaços. Já o quadro de Brueghel expressa, de modo terrificante, a cegueira humana, seja
metaforicamente ou não. Concluímos que o grotesco para Kayser agrega adjetivos como:
estranho, fantástico, quimérico, angustiante, sinistro, monstruoso, exagerado, excêntrico,
disforme.
Mikhail Bakhtin observa o grotesco a partir da cultura popular, ou seja, é aquilo que se
opõe à cultura oficial. Assim, o mundo do grotesco possui uma lógica invertida com relação à
ordenação da cultura dominante1. Desse modo, tudo que está em lugar elevado, espiritual
passa para o mundo terreno, baixo, corporal, material. Portanto, o riso é permitido em
detrimento da seriedade.

A estética romântica em Augusto dos Anjos

Para compreendermos a presença do espírito romântico em Augusto dos Anjos, faz-se


necessário pontuar as principais características do movimento romântico europeu.
De acordo com Benedito Nunes (2013, p. 52), a sensibilidade romântica, que é
governada pelo:

« Amor da irresolução e da ambivalência » que separa e une estados opostos


– do entusiasmo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exaltação confiante
ao desespero -, contém o elemento reflexivo de ilimitação, de inquietude e
de insatistação permanentes de toda experiência conflitiva aguda, que tende
a reproduzir-se indefinidamente à custa dos antagonismo insolúveis que a
produziram.

1
A cultura dominante, ou cultura oficial, nesse caso, diz respeito àquela formada pelo clero e pela nobreza
durante a Idade Média e o Renascimento.
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Por causa desse caráter conflituoso e interiorizado, essa sensibilidade pode ser
considerada uma categoria universal, mas, ainda segundo Benedito Nunes (2013, p.52),
« somente na época do Romantismo, esse modo de sentir concretizou-se no plano literário e
artístico, adquirindo a feição de um comportamento espiritual definido, que implica uma
forma de visão ou de concepção do mundo ».
É sabido que a obra de Augusto dos Anjos passeia por algumas estéticas literárias.
Verificamos isso por meio da observação dos críticos em geral, os quais evidenciam a
independência estética desse poeta, ou seja, Augusto dos Anjos não se filia de modo
definitivo a nenhuma escola literária, porém sua poesia revela um eu poético fragmentado, na
medida em que partes integrantes de diversas escolas aparecem unidas em seus escritos,
formando um todo, ao mesmo tempo, estranho e inovador.
Com isso, compreendemos a dinamicidade e a fragmentação da obra desse brasileiro
que deixa entrever uma estética moderna como uma colcha de retalhos. Mas, aqui nos
interessa, sobretudo, a estética romântica. Algumas características românticas são esboçadas e
resumidas por Roberto Pontes (2012, p. 47-51), quando o autor analisa a obra do poeta
português Mário de Sá Carneiro. Primeiramente, observa (a) a herança dos românticos
alemães no que diz respeito à (I) interioridade, (II) construção estética parcelar, (III)
centramento do real pela ótica subjetiva, (IV) redução da realidade ao ângulo individualista,
ególatra, narcísico e megalômano, (V) exacerbação do eu. Em seguida, observa (b) a herança
do grotesco romântico. Segundo Pontes, alguns poemas de Sá são como “esgares convertidos
em poesia pela dor humana” (2012, p. 48). Depois, mostra que (c) a preocupação com o
singular e a procura constante da genialidade são também herança dos românticos, bem como
(d) a auto ironia e a morbidez próprias do ultrarromantismo. Utilizamos a mesma taxonomia
para realizar nosso estudo acerca dos aspectos românticos em Augusto dos Anjos.
Conforme as características românticas citadas por Pontes, bem como do panorama do
Romantismo feito no início dessa seção, compreendemos que o poeta Augusto dos Anjos
deixa claro que o espírito romântico remanesce nos primeiros anos do século XX, no Brasil,
por meio de sua poesia.
Compreendemos que a mentalidade romântica povoa o imaginário artístico brasileiro
do início do século XX. Vemos isso por meio dos processos de endoculturação e hibridação
cultural, os quais colaboram para a presença de resíduos românticos numa época pós-
romântica. Esses conceitos estão na base da Teoria da Residualidade proposta pelo teórico
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Roberto Pontes. A teoria diz respeito ao resíduo2 de uma cultura passada encontrado em uma
época posterior. Significa que todos os objetos culturais hoje presentes no nosso meio têm
restos de outra época e cultura próxima ou distante. Isso acontece por causa do que falamos
acima: o processo de endoculturação e o processo de hibridação cultural. Durante esses dois
ocorre também a cristalização do fato cultural. Vejamos detalhadamente cada um dos
conceitos.
A mentalidade define-se como:

Plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão anseios,


esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos
inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela
linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa
manifestação (FRANCO JÚNIOR , 2005, p. 184).

A mentalidade romântica traz o sujeito como foco. A realidade não passa de uma
extensão desse sujeito. Por se focar tanto em si mesmo, o indivíduo romântico acaba
envolvido por imensa solidão e mergulha numa intensa busca de si. Esse modo de pensar
romântico ultrapassa os limites do tempo e, residualmente, viaja por épocas e lugares. Ou
seja, resíduos do Romantismo europeu remanescem no início do século XX no Brasil,
fazendo-se perceber no imaginário de uma nova época, de um novo lugar. O imaginário é,
portanto:

Um sistema, não mera acumulação de suas imagens. (...) Apenas em


conexão com outras, cumprindo seu papel de instituidoras de discursos, de
sistemas semiológicos, é que as imagens – exteriorizadas sob forma verbal,
plástica ou sonora – ganham sentido e, conscientemente ou não, expressão
determinadas cosmovisões (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 100).

Esse sistema de imagens pode ser visto em seu conjunto em diversas partes da cultura
de um povo. Dessa forma, a obra de Augusto dos Anjos traduz o imaginário repleto de
remanescências da mentalidade romântica.
O processo de endoculturação é mais individual. É um caminho pelo qual todos os
seres humanos passam desde o nascimento. É aquilo que se recebe como herança e
internaliza. Tudo que é passado de pai para filho. Todos nós somos endoculturados, quando
entramos em contato com outros indivíduos e culturas não apenas olhamos para esse ou esses
outros, mas passamos por um novo processo de endoculturação. Esse processo nos persegue

2
O resíduo não pode ser visto aqui como algo negativo. Esta palavra foi importada de outra área, mas possui
uma nova significação, embora traga traços da primeira. Ele é a prova de que uma mentalidade de uma época
antiga pode povoar o imaginário doutra época e, assim, formar uma nova mentalidade, mas híbrida.
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durante toda a vida. E é por isso que a mentalidade do passado encontra-se, por meio de
resíduos, no presente. Mário de Sá-Carneiro passa por esse processo. Certamente, o poeta foi
educado dentro do ambiente artístico. É sabido que o pai de Sá costumava patrocinar suas idas
a Paris e a contemplação artística do filho, visto que durante sua curta vida, o poeta viveu para
a arte.
A expressão hibridismo cultural foi desenvolvida por Peter Burke (2003). Para este
professor de história cultural da Universidade de Cambridge, o hibridismo cultural ocorre
quando há a fusão de duas ou mais culturas diferentes, formando uma nova cultura. Roberto
Pontes prefere o termo hibridação em vez de hibridismo. Segundo ele, o primeiro termo
denota uma ideia maior de ação, passa a ideia de constante mudança. Esse é um detalhe
interessante, pois o contato constante entre culturas provoca mudanças contínuas.
A hibridação cultural trata de todas as fusões que envolvem a cultura. São exemplos
disso: “as fusões raciais ou étnicas denominadas mestiçagem, o sincretismo de crenças e
também de outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o culto e popular, o
escrito e o visual nas mensagens midiáticas” (CANCLINI, 2003, p. 7). Ao analisarmos as
diversas estéticas literárias em Portugal, observamos a confluência com diversos países do
continente europeu. Por diversos motivos, entre os quais, a proximidade e a facilidade de
acesso entre esses países, a confluência cultural é muito comum. Por isso, encontramos
diversos aspectos do Romantismo, seja alemão ou inglês, na obra de Augusto dos Anjos, bem
como de outros autores do chamado Pré-Modernismo e do Modernismo brasileiro, é o caso de
Guilherme de Almeida.
Na Teoria da Residualidade, o termo cristalização diz respeito ao polimento de um
elemento cultural, até chegar a uma nova forma. No entanto, deve-se entender esse processo
de refinamento ou polimento como uma mudança pela qual toda cultura tem de passar, porém
essa ação sempre traz e refaz algo do passado. É um processo de atualização do elemento
cultural. No processo de cristalização o resíduo é a essência que remanesce através dos anos.
.
« Solitário » e « O Poeta do Hediondo », elementos grotescos advindos da presença forte
de elementos românticos em Augusto dos Anjos

Nesta seção, observamos como a remanescência de resíduos românticos colaboram


para a construção do grotesco nos poemas « Solitário » e « O poeta do hediondo ». A leitura
dos poemas, bem como da obra Eu e outras poesias (1994), revela um eu inquieto, irresoluto
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diante da ânsia de infinito. Isso nada mais é que a influência do espírito romântico que se
prolonga pela modernidade. O eu poético afasta-se do homem comum e, dessa forma, já se
torna um indivíduo estranho o que facilita o aparecimento do elemento grotesco. É um eu
estilhaçado, sozinho com as vozes que arquiteta. Sua inquietude é fruto da busca de infinito
que se faz presente em boa parte da obra de Augusto dos anjos. Porém, o poeta tem
consciência da impossibilidade de se alcançar o infinito, ou seja, um plano mais elevado.

No poema “Solitário”, o poeta busca o infinito, a completude em outra alma, mas


reconhece que o seu plano é falível. A ânsia de infinito acaba por resultar em angústia
constante, pois a fusão dos corpos não se coaduna com a realidade. Repleto de solidão o poeta
refugia-se à porta de outro ser que pudesse olhar para sua desgraça. Porém, esse outro não
aparece e, assim, a solidão permanece, deixando o eu poético como um “velho caixão a
carregar destroços”.
A partir do exposto, encontramos o elemento grotesco, sobretudo o descrito por
Wolfgang Kaiser (2003). Isto é, Diante do estado de solidão a que está fadado, o eu adquire
um caráter abismal, o qual fica nítido a partir das imagens reveladoras do angustiante, do
sinistro e do fantástico. O frio que fazia “Cortava assim como carniçaria/ O aço das facas
incisivas corta”, o eu poético, diante da permanência da solidão, sai “como quem tudo repele/
(...)/ Levando apenas na tumba carcaça/ O pergaminho singular da pela/ E o chocalho fatídico
dos ossos!” Isso revela o inatural, aquilo que causa estranhamento e nos remete ao sinistro.
São aspectos perturbadores do grotesco definido por Kayser.
Já em “O poeta hediondo”, a ânsia de infinito se apresenta quando o eu poético agrega
dentro de si as desgraças humanas. Porém, mais uma vez, mesmo carregando todas as dores
humanas, o poeta continua sozinho “Cantando sobre os ossos do caminho/ A poesia de tudo
quanto é morto” (ANJOS, 1994, p. 155).
Ao congregar os infortúnios humanos, o poeta vive em um turbilhão, é tomado por um
sentimento de desespero e angústia constantes, como se, tomado de grande aflição, buscasse
encontrar o infinito, a clareza das coisas e até chega a isso por um instante:

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas (ANJOS, 1994, p. 155).
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Mas, observamos que esse momento só é possível através de “alucinatórias


cavalgadas”. Percebe-se mais uma vez a constante presença do perturbador e do monstruoso,
ressaltados através da turbulenta e angustiante alma do poeta. Esse momento de clarividência
se eleva provocando uma dor no cérebro do eu poético, que se reconhece como “a mais
hedionda/ Generalização do Desconforto” (ANJOS, 1994, p. 155).
O grande Desconforto torna-se sempre maior, a ponto de fazer o poeta resignar-se
sozinho/ Cantando sobre os ossos do caminho/ A poesia de tudo quanto é morto” ” (ANJOS,
1994, p. 155). Aqui, a angústia parece se abrandar mediante a certeza maior, ou seja, a morte.
O eu se entrega ao abismal, ao mundo quimérico da morte.
Por fim, confirmamos que os poemas “Solitário” e “O poeta do hediondo” são frutos
de uma reflexão existencial do eu poético que busca definir a vida humana e a si mesmo,
numa tentativa de encontrar a infinitude, a perfeição. Porém, só consegue isso por meio de
imagens extravagantes, absurdas, grotescas, as quais são reflexos de uma alma que vive
turbilhões de conflitos e pensamentos.

Conclusão

Como vimos a partir dos poemas brevemente analisados, Augusto dos Anjos deixa
entrever traços românticos, os quais colaboram para o nascimento de uma poética grotesca.
Como isso é possível? Explicamos através da Teoria da Residualidade, proposta por Roberto
Pontes. Ficou claro, diante do exposto, que os resíduos da estética romântica presentes no
início do século XX, no Brasil, culminaram em uma criação poética repleta de elementos que
se caracterizam como grotesco.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Introdução e comentários de A. Arnoni Prado. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: UNB, 1999.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo:
Unisinos, 2003.
Dicionário Houaiss de língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.
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FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu. Reflexões sobre


imaginário e mentalidade”. Signum Revista da ABREM (Associação Brasileira de Estudos
Medievais), nº 5, p. 73-116, 2003.
GOMES, A. C. & VECHI, C. A. A estética romântica: textos doutrinários comentados. São
Paulo: Atlas, 1992.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução de Celia Berretini. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001.
NUNES, Benedito. “A visão romântica”. In GUINSBURG, J. (Org.) O Romantismo. São
Paulo: Perspectiva, 2013.
PONTES, Roberto. O jogo de duplos na poesia de Mário de Sá-Carneiro. Fortaleza: Edições
UFC, 2012.
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AUGUSTO DOS ANJOS E A EXPANSÃO PARA O UNIVERSO DAS HISTÓRIAS


EM QUADRINHOS

Josival da Fonseca Silva1

Introdução

A expressividade humana é algo brilhante a partir daquilo que pensa e cria. No


expressar que começa a ganhar forma, e posteriormente sendo motivo de compartilhamento,
faz surgir discussões a se gerar novas criações. A escrita foi uma destas invenções, gerando
comunicação e aprendizado e que deu vida a uma biblioteca de verso e prosa em nossa
evolução. A literatura é fruto dessa explosão de ideias convertidas no cotidiano de
personagens fictícios retirados de nossa realidade. É definida como arte na composição de
escritos com os mais variados temas, corridos ou poéticos, presente na história da humanidade
há séculos. A escrita surgiu do falar, do contar histórias, da comunicação entre as pessoas e ao
longo do tempo foi se aprimorando no surgimento de contos, romances e poesias, que se
tornaram uma forma de diversão e entretenimento à população. A esse respeito, Gurgel nos
informa:

A literatura já existia antes mesmo de surgirem os livros, bibliotecas e


internet, e se hoje temos uma literatura que é escrita, não podemos esquecer
que ela nasceu oral e continua a existir assim em muitos lugares. Literatura
é, portanto, uma manifestação cultural surgida no meio das sociedades em
todos os cantos do universo, independente de ser escrita. (GURGEL, 2003,
p.8)

A literatura iniciou-se com maior força cultural no meio aristocrático da população, e


aos poucos entre as classes mais baixas que foram se adequando à alfabetização. Esse número
de leitores foi crescendo, fazendo com que a literatura se multiplicasse em estilos, gêneros e
escolas literárias. A influência dessa leitura, o aprofundamento nos estudos e o conhecimento
cultural de outros países, fez surgir novos escritores. De geração em geração, a valorização da
leitura aquecia a venda de livros inspirando também autores que se iniciavam na arte da
escrita, e que aos poucos alguns iam se destacando no mercado de publicações. As várias
escolas literárias foram surgindo no decorrer desta evolução, e se destacaram no meio,
travando embates entre seus escritores, que defendiam cada um o seu estilo. Na transição
1
Formado em Eucação Artística (Arte visual), ilustrador, quadrinista e colecionador de histórias em quadrinhos.
www.gibiarte.blogspot.com, josival.fs@hotmail.com
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entre os séculos XIX e XX, nesta peleja de penas e tinteiros, quem ganhava era o público
leitor com grandes obras de autores que se destacaram a exemplo de Olavo Bilac
(parnasianismo) e Cruz e Souza (simbolismo). Em meio a esta “guerra literária”, em 20 de
abril 1884 nascia o poeta paraibano Augusto Rodrigues Carvalho dos Anjos, inicialmente
alfabetizado pelo pai, logo tomou gosto pela leitura e pela escrita, e sua poesia foi se
desenvolvendo igualmente ao seu ser. O conjunto desses versos, criados no decorrer dos trinta
anos de sua curta vida deram origem ao livro EU e Outras Poesias. Primeira e única obra
impressa do poeta, mas que obteve um brilho próprio em meio à diversidade de autores e
obras já consagradas. O poeta Augusto dos Anjos se destacou na escrita poética em relação às
demais escolas literárias de sua época, porém, com certeza absorveu um pouco de cada uma
delas, como nos relata Alcides:

A poesia de Augusto dos Anjos mostra algumas características típicas de


ambos os movimentos. Do Parnasianismo, ele mantém o tom de
distanciamento que evita a exploração de temas sentimentais e
autobiográficos. [...] No entanto, os poemas do Eu mostram uma grande
capacidade de transmitir impressões complexas e sutis sobre a vida e os
sentimentos. Nesse aspecto, o autor já parece mais próximo do Simbolismo.
[...] Por isso, muitos críticos, não podendo situá-lo nem no Parnasianismo
nem no Simbolismo, procuram inseri-lo numa outra tendência: o
Cientificismo. (ALCIDES, 2005, p. 12-15)

O livro “EU” surgiu conquistando o público de forma surpreendente, que já estava


acostumado às poesias melódicas das escolas literárias existentes. Do belo extraiu o feio, da
luz extraiu as sombras, da alegria extraiu a tristeza e da vida extraiu a morte, e com estes
elementos se formou uma poética hedionda e melancólica que exalava uma beleza exótica aos
olhos de quem lia com admiração os tão belos versos sombrios. Assim, como até hoje, é
provável que alguém não tenha gostado, mas a verdade é que os poemas de Augusto dos
Anjos surpreenderam naquela época e continuará assim. Desde sua primeira publicação há
mais de um século, a poesia de Augusto dos Anjos continua viva e atual, ao mesmo tempo em
que continua mórbida e bela. Aos leitores, a leitura desta obra vira paixão, que transforma-se
em curiosidade, e posteriormente em pesquisa, que teve início anos depois, logo após a morte
do poeta do hediondo, como ficou conhecido. Centenas de outros trabalhos literários,
biográficos, bibliográficos e de pesquisa já surgiram em torno da obra e da vida do escritor
paraibano, aprofundando-se cada vez mais nesse universo inesgotável de poesia.
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A Literatura e as Histórias em Quadrinhos (HQ’s)

A leitura do EU, obra do escritor paraibano Augusto dos Anjos, instiga o leitor a
explorar e criar mentalmente imagens e cenas ao qual está presa exclusivamente às letras de
sua poesia, partindo apenas da vivência em torno da escuridão, da tristeza, da morte e de
tantos outros elementos amargos do qual conhecemos. E o que dizer quando essas ideias são
transcritas ao papel em forma de desenhos dando uma nova vida a poesia de Augusto dos
Anjos? É a partir desse ponto que exploraremos as histórias em quadrinhos, que tem uma
grande força em comunicar na junção de texto e imagem, onde podem funcionar
independentes um do outro.
As HQ’s são perfeitas nessa liberdade de criar e recriar, fazendo surgir uma grande
variedade de histórias em torno de um mesmo tema. Augusto dos Anjos pode ser recriado em
uma grande gama de histórias, tanto em torno de sua vida como em sua obra. Podendo ser
específico para públicos distintos dependendo do roteiro, da arte e tipo de impressão,
explorando o horror, humor, biografia, filosofia e cotidiano. Essa liberdade de expressão e
recriação pode ir bem além da linguagem dos quadrinhos, sendo transposto ao cordel, a
música, ao cinema e ao teatro. Devido a essa liberdade que os quadrinhos oferecem, muita
coisa pode surgir a partir da poesia do referido poeta. Alguns artistas já recriaram imagens
para ilustrar livros e HQ’s inspirados nos poemas do poeta paraibano, seja em adaptação
literal ou livre. Artistas renomados como Mike Deodato Jr. (ou Deodato Borges Filho), Shiko,
Alexandre Jubran e também amadores - ou mesmo aqueles admiradores da poesia -
contribuíram com trabalhos para impressos, exposição ou mesmo produções na internet como
blogs e sites. Já no caso de Sávio Roz, fã de do poeta e de Batman, recriou uma HQ de quatro
páginas inserindo o super-herói no poema O Morcego.

Na sequência, amostras das artes de Deodato Jr., Jubran, Shiko e Sávio Roz, entre HQ’s e ilustrações.
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Minha experiência com Augusto dos Anjos e as HQ’s

A leitura, através do livro Literatura Comentada Augusto dos Anjos – Zenir Campos
Reis (1982, Editora Abril), para um trabalho da escola em 1993, foi onde teve o primeiro
contato com a escrita deste poeta. Desde então essa admiração só cresceu, e por gostar de
histórias em quadrinhos, começou a produzir algumas delas de apenas uma página inspirado
nestes poemas. Uma destas HQ’s, intitulada “Mas que ideia?”, foi uma releitura do poema
“A ideia”, do livro EU, onde trata da busca da inspiração e da criatividade do homem em suas
produções artísticas. A outra foi uma página de uma série chamada Árvores, onde fala do
tamarindo (fruta e árvore) interligando a infância, vida e obra de Augusto dos Anjos.

Na sequência, páginas das HQ’s “Mas que ideia?” de 2012, e outra da série “Árvores” de junho de
2013. Ambas podem ser vistas neste link: www.gibiarte.blogspot.com.

. Em abril de 2014, ainda inspirado no poeta da morte e dando continuidade a esse

trabalho nos quadrinhos, foi criada uma série de tiras intitulada “Augusto & Eu”, que trata do
próprio poeta, de sua obra e a Morte (fã incondicional do escritor) como companheira. O
“Eu” do título é dúbio, fazendo referência a Morte e ao livro. Em geral, a ação transcorre com
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os dois personagens e o livro junto. Em outras, o livro é o personagem principal falando


diretamente com o leitor. As tiras trazem em seu conteúdo assuntos relacionados ao
“universo” do poeta e também outros decorrentes de nossa contemporaneidade, como o tema
greve, presente em uma delas. É a tal liberdade que os quadrinhos se permitem, um assunto
pode interligar-se a muitos outros. É o que chamamos de gag’s2, que aqui traz o humor negro,
já outras partem para a reflexão e para a crítica social. Seguem algumas tiras como ilustração.

Tiras de “Augusto & Eu”, publicação no jornal A União, João Pessoa, PB.

2
Gag’s, efeito cómico que, numa representação, resulta do que o ator faz ou diz, jogando com o elemento
surpresa. Nas HQ’s, a gag (do inglês, “piada rápida”) é a alma da história, é a “piada” principal. Quanto mais
original e criativa ela é, mais envolvente a história fica. Pode ser transformada em enredo, ou seja, narrativa com
apresentação, conflito, clímax e desfecho.
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Partindo para outras publicações, em 2008, o poema “A Ilha de Cipango” foi adaptado
em quadrinhos por Samuel Casal na coletânea Domínio Público – Literatura em Quadrinhos
(DCL – Difusão Cultural do Livro), trazendo também Olavo Bilac, Machado de Assis e
outros escritores também adaptados por vários autores entre texto e arte. Recentemente, duas
novas edições em quadrinhos abordando a vida do poeta paraibano foram lançadas,
direcionadas ao público em geral. A primeira foi Augusto dos Anjos em Quadrinhos (Editora
Patmos), do autor Jairo Cézar e Luyse Costa (arte). A outra obra foi lançada pela MVC
Editora intitulado Vida e Poesia de Augusto dos Anjos – Para crianças, jovens e adultos,
escrito por Juca Pontes e ilustrado por Lelo Alves.

Capas das HQ’s das editoras DLC e Patmos, adaptando poema e vida em quadrinhos,
respectivamente.

Capa e página da edição em quadrinhos da MVC Editora, com a biografia do poeta paraibano.

Cada leitor (receptor) captará a leitura de forma particular, e perceberá contidas nelas
fatos comum ao nosso cotidiano, principalmente no que diz respeito a morte e a outras
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ISBN: 978-85-6641465-3
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situações sofridas pela sociedade de um modo geral. A HQ mostra essa realidade de forma
criativa, dinâmica e divertida, e extrai do leitor momentos de reflexão sobre a vida e todo o
meio em que vive.
É sobre esta óptica que os quadrinhos surgem como instrumento didático na sala de
aula, fugindo do estigma de ser apenas objeto de leitura, diversão e entretenimento, e do
preconceito que os cercam por parte de muitos adultos por achar que é coisa de criança. Obras
literárias, há décadas, são adaptadas para os quadrinhos, objetivando inicialmente a inserção
da leitura na formação de público e trazendo material de boa qualidade.

A forma mais evidente de colocar o conteúdo de obras literárias num gibi


foi, justamente, a adaptação de grandes clássicos da literatura para os
quadrinhos. Nos Estados Unidos, a primeira publicação a fazer isso foi a
Classics Illustrated, do editor Albert L. Kanter, um título que visava
combater o preconceito que os comics sofriam – que vinha de professores e
educadores em geral, que, nos anos de 1940, achavam que os quadrinhos
acostumavam mal as crianças a uma leitura supostamente pobre. A primeira
edição da então intitulada Classic Comics saiu com a data de outubro de
1941 e trazia como atração a adaptação de os Três Mosqueteiros, de
Alexandre Dumas. As edições seguintes trouxeram quadrinizações de outras
grandes obras, como O Último dos Moicanos, David Copperfield, O Morro
dos Ventos Uivantes, Tom Sawyer e Moby Dick, que por serem versões de
clássicos, não sumiam das bancas americanas e eram constantemente
reimpressas. (PITOMBO, 2008, p. 7)

Essa rica cultura literária em poesia e prosa também traz em seu conteúdo uma vasta
carga histórica, social e cultural. E esses fatos históricos também são relevantes na produção
quadrinística somado a uma boa pesquisa e boas ideias no desenvolvimento de novos álbuns.
Nosso país tem muita história pra contar, com personagens e fatos reais que podem ser
transcritos com maestria aos quadrinhos, com excelente texto e desenhos de leitura agradável
e fluida. É o caso da graphic novel3 Chibata! A Revolta que Abalou o Brasil (Olinto Gadelha
e Hemeterio, Editora Conrad, 2010), em desenhos preto e branco, que conta a história do
marinheiro almirante João Cândido Felisberto (1880-1969), que em 1910, reagiu contra as
chibatadas que a tripulação sofria como castigo pelos seus erros. Este fato ficou conhecido
como “a revolta da chibata”, onde ele se tornou o símbolo dessa libertação.
Augusto dos Anjos também marcou na história de nossa literatura, de nossa cultura
brasileira, surgindo como um inovador numa poética rica e exótica. Suas poesias, resumidas
em um único livro foi suficiente para eternizá-lo nas letras e nos futuros estudos, pesquisas e
3
Graphic novel (novela gráfica), termo criado por Will Eisner (1917–2005), autor de quadrinhos norte
americano criador do personagem The Spirit. Essa denominação foi para o álbum Um Contrato com Deus, de
1978, que diferenciou a obra das revistas comuns, tornando um trabalho autoral e direcionado a um público mais
adulto e de livrarias.
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renovações em torno de sua vida e obra, originando novos leitores e admiradores. Nos versos
de Augusto dos Anjos há também outros enfoques de grande potencial bem relevantes que se
destacam: a psicologia e a filosofia. Ambas são áreas de estudo bem diferenciadas, mas que
de certa forma tem interligações no comportamento humano psicossocial, assim como a
literatura em torno dos psicólogos e filósofos da antiguidade e modernos. A psicologia está
entranhada na poesia do livro EU, de forma a ser pesarosa, obscura e triste, sendo assim
desagradável a muitos leitores, talvez por se deixar levar ou influenciar como se fosse uma
“marionete” ou “personagem” daquilo que leem. Por outro lado, existe uma reflexão nestes
poemas, principalmente naqueles que tratam da morte, levando-se a filosofar sobre algo que
faz parte de nossas vidas profundamente. A maioria dos seres humanos não gostam da ideia
de morrer, uns tem medo e outros não, e essa discussão profunda e filosófica faz parte da
poesia de Augusto dos Anjos e podem dar vasão aos “quadrinhos poético-filosóficos”. Trata-
se da mesma usabilidade de texto e imagem, porém fugindo um pouco da tradicional
sequencialidade de quadro-a-quadro, dando mais liberdade e expressividade na arte através de
experimentações, de forma que a leitura do todo eleve o leitor a reflexão existencial de cunho
filosófico.

Por alguns é chamado de poético filosófico, por outros de fantástico


filosófico. Mas uma coisa é certa: independente da nomenclatura, esse estilo
de quadrinho instiga o pensar e vai além de simplesmente contar histórias.
[...] Poético-filosófico se refere ao conteúdo e forma desse tipo de histórias
em quadrinhos, sendo elas construídas com base na reflexão (filosófica) e,
muitas vezes, no lirismo típico da poesia. (MOURA, 2013, P. 13)

A produção desse tipo de HQ é bem restrita a pequenos grupos e artistas como Gazy
Andraus e Edgar Franco, inicialmente publicando em fanzines como o Barata, e em revistas
como a Tyli-Tyli e Camiño de Rato. A editora Marca de Fantasia, mantida pelo professor
doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Henrique Magalhães, já lançou entre
outros Os quadrinhos poético-filosóficos de Edgar Franco: textos, HQs e entrevistas, livro
que aborda a produção nesse tipo especifíco de quadrinho.

O Poder da Imagem nos Quadrinhos e a Educação

Há tempos e até aos dias atuais, a imagem tem um forte apelo no que diz respeito a
comunicação visual como embalagens, placas, livros, anúncios etc. Sobre o que se diz que,
“uma imagem vale mais que mil palavras”, justifica-se muito na rápida informação e as várias
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interpretações, mesmo que seja acerca de um mesmo assunto. A linguagem gráfica não é algo
novo, ela se reflete nas pinturas rupestres, por exemplo, onde os acontecimentos do cotidiano
eram narrados em desenhos sucessivos, e que até hoje são admirados e estudados no contexto
da arte e da história.
Nestes conceitos de continuidade a partir das pinturas das cavernas e também de
hieróglifos nas pirâmides egípcias, a arte sequencial faz uso substancialmente desse poder,
principalmente aquelas histórias que vem sem nenhum texto de fala ou legenda, onde a leitura
se faz única e exclusivamente das imagens, transmitindo mensagem e ação. É por essas razões
que muitas obras literárias estão sendo adaptadas aos quadrinhos, com formatos, estilos e artes
diferenciados. Tomaremos como exemplo Moby Dick de Herman Melville, que muitas vezes
já saiu em livros por diversas editoras, a mesma também já foi adaptada em quadrinhos por
diversas vezes, como em gibis da série Classics Illustrated, Tio Patinhas 580 a até mesmo
uma versão de Will Eisner (A Baleia Branca). Mesmo nesta diversidade de adaptações, seja
literal ou paródia, ela terá a obra como embasamento, pois muitos detalhes serão
condensados, o que antes foi descrito em palavras, serão substituídos por imagens, através de
cenários e ação, dando vida e movimento em todo o decorrer de cada edição. Outro
diferencial será como cada escritor e ilustrador irá adaptar estes gibis, o que fará de cada um
deles singular na pluralidade em torno da obra original.

Na primeira fila, capas de livros de diversas editoras. Na segunda fila, as várias adaptações em quadrinhos,
das editoras Abril, DCL e Cia das Letras, produzidas por diferentes artistas.
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Outro fator importante sobre esse aumento de gibis adaptados de obras literárias se
deve também ao PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), que dentre a compra de
diversos livros, também são incluídos edições em quadrinhos destas obras, de forma a ampliar
a prática da leitura aos educandos. A poesia do livro EU de Augusto dos Anjos, pela sua
mórbida beleza, transcende a barreira da palavra e pode perfeitamente elevar-se a imagem da
arte sequencial, atendendo a uma renovação da linguagem, expandindo a obra do autor. Um
fator importante da adaptação em gibi é que se pode instigar o aluno em buscar a obra original
ou mesmo apenas pesquisar e conhecer melhor o autor. Como já citado anteriormente, a
transição entre a vida e a morte de Augusto dos Anjos entre os séculos XIX e XX, traz as
marcas de um tempo, no desenvolvimento de novos criadores em evolução das escolas
literárias anteriores de nosso país, que neste contexto é um jogo de ideias e que,
posteriormente, é convertido em letras para o consumo educativo, erudito e cultural.
Se a leitura é um dos caminhos a adentrarmos no mundo do saber, devemos instigar as
crianças a uma leitura de forma prática e lúdica, fazendo um bom uso das revistas em
quadrinhos. Os pais, por serem os primeiros educadores da criança, devem ser também os
fomentadores da leitura, introduzindo não só livros tradicionais, mas também os gibis. Na
escola, as HQ’s podem ser introduzidas na educação no desenvolvimento de leituras coletivas,
originando-se uma infinidade de atividades como escrita, desenhos, teatro, contação de
histórias e o que mais se desejar. O local de leitura pode ser em sala de aula ou em gibiteca
com doações dos próprios alunos, e dessa forma estimulando a interação e leitura na formação
de leitores, e quem sabe no futuro, poetas e escritores!?

Referências

ANJOS. Augusto dos. Eu e outras poesias. Apresentação, notas e comentários Sérgio


Alcides. São Paulo: Ática, 2005.
GURGEL, Tarcísio. Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte. Tarcísio Gurgel,
Vicente Vitoriano, Deífilo Gurgel. João Pessoa, PB: Editora Grafset, 2003.
MOURA, Matheus. Quadrinhos poético filosóficos. Revista Conhecimento Prático
Literatura. São Paulo: Editora Escala, n. 51, 2013.
PITOMBO, Heitor. Literatura e quadrinhos: uma relação onde não existe crise. Revista
Discutindo literatura. São Paulo: Escala Educacional, n. 5, 2008. Especial Quadrinhos.
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SOBRE PRETERIMENTO AMOROSO: UMA LEITURA DOS SONETOS FRIEZA,


DE FLORBELA ESPANCA, E SOLITÁRIO, DE AUGUSTO DOS ANJOS

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso1


Simeia de Castro Ferreira Neves 2

Introdução

Na obra O Banquete3, Platão nos apresenta uma reunião em que os convidados


discorrem, com discursos apologéticos, sobre as grandezas do amor. Os discursistas partem
do pressuposto, apoiados em argumentos por vezes míticos, de que o amor seria um deus.
Embora suas considerações sejam pautadas em imagens detentoras de extrema beleza,
seus discursos se caracterizam por visões míticas antípodas à visão filosófica defendida por
Sócrates – cuja ideia de amor parte do que lhe dissera a sacerdotisa Diotima, que trata o amor
como algo em constante movimentação na busca de alcançar sua plenitude, tendo em vista
que ele está entre o desejo humano de alcançar o que é belo e o que é bom, sendo a força
divina capaz de reger a existência humana.
Dentre os discursistas, observaremos o que é proposto por Aristófanes cujo discurso
apresenta uma forte ligação com a dimensão do homem como ser “inacabado” que busca, na
divindade, a resolução para a angústia de ser perecível, de ser mortal. Sua ênfase recai na
tentativa de demonstrar a incompletude do homem que viveria profundamente a ânsia de
encontrar seu complemento, sua outra metade perdida fatidicamente. De uma perda nasceria,
segundo ele, o amor.
Além disso, Aristófanes enfatiza que o amor seria o deus mais amigo do homem e que,
para compreender as nuanças deste, seria necessário considerá-lo a partir dos gêneros que
comporiam os seres humanos.
Desta feita, Aristófanes diz que existiam três gêneros: masculino, feminino e
andrógino. Os andróginos seriam seres que dispunham de características masculinas e
femininas num mesmo corpo, além de serem dotados de muita força. Eles, por se sentirem

1
Graduado em Letras e Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, Portuguesa e Africana de
Língua Portuguesa, pela Universidade Regional do Cariri – URCA, e Mestrando em Estudos Comparados –
Literatura e Teoria Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail:
emersoncardoso.cardoso@hotmail.com.
2
Graduada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, e Mestranda em Estudos Comparados –
Literatura e Teoria Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: sdcastro7@hotmail.com.
3
PLATÃO. O Banquete. Rio de Janeiro: Editora Abril, 2001.
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capazes de desafiar os deuses, foram punidos. Como punição, Zeus 4 decidira que eles seriam
cortados ao meio.
Em decorrência desse corte, as duas partes que constituíam os andróginos, ao serem
separadas, passaram a viver uma busca constante da sua outra metade, do seu complemento.
Todos os que teriam resultado do corte de um “macho” perseguiriam o “macho”; todos os que
teriam resultado do corte de uma “fêmea” perseguiriam uma “fêmea”; a mesma regra seria
aplicável para as metades que tendiam para o sexo oposto. Essa ideia nos remete à visão de
que o homem busca mais que seu complemento, busca sua integridade perdida, e que essa
busca seria uma tentativa de retornar a algo que seria essencial e imutável.
Estaria confirmada, assim, a ideia de Aristófanes que defendia que da perda nasceria,
por excelência, o amor.
Com essa concepção, como afirma May (2012, p. 76)5, “está preparado o terreno para
Eros, aquele que é o maior dos impulsos de vida, ser – paradoxalmente – um impulso para a
morte”. Desse modo, para May (ibidem, p. 76 – 77):

[…] Eros deseja então uma satisfação que, literalmente, envolve a superação
da vida humana na única forma em que a conhecemos: como indivíduos
cujas vidas são estruturadas pelo tempo e a transitoriedade, e pela
possibilidade de solidão, perda e incompletude em todos os sentidos. Em
outras palavras, nos textos de Platão está preparado o terreno para que o
amor se torne uma imensa força para a destruição – não em resultado de ira,
ciúme e possessividade louca, mas motivado e justificado por nada menos
que seus ideais mais nobres; não de uma maneira abertamente violenta, mas
com uma brutalidade refinadamente sublimada.

O indivíduo, por este ângulo de visão, apoia-se na ideia de que o amor seria algo
indispensável e que precisaria ser buscado, ansiosamente, caso contrário este sofreria as
consequências advindas do vazio, da angústia e da solidão.
Acontece que, ao mesmo tempo em que um indivíduo estaria fadado a sentir
necessidade de encontrar-se com alguém que poderia representar seu complemento, este
estaria, também, predisposto a criar idealizações, falsas expectativas e, por vezes, sofrer
frustrações. Caso a busca não cessasse – por nunca ser encontrada em outrem a possibilidade
do amor –, ou a busca terminasse com o encontro de alguém cujas características não fossem
compatíveis com a expectativa criada a partir das idealizações a que o indivíduo está sujeito, a
frustração seria inevitável.
4
Sobre a figura de Zeus, Vasconcellos (p. 88) afirma que: “Com o raio em uma das mãos e o cetro de rei na
outra, Zeus velava pela ordem do universo, pela concórdia entre os deuses e o cumprimento das promessas e
juramentos. Era o soberano do céu [...]”.
5
MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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Uma das emblemáticas imagens do amor que o Ocidente tem propagado – neste caso,
o amor caracterizado como algo que impulsiona o indivíduo a viver uma busca profunda e
irrefreada, que coaduna com a proposta de Aristófanes –, surge no mito de Eros e Psiquê.
Psiquê desposara, sem ter ciência disto, o deus Eros. Este, que aparecia apenas à noite
para a esposa, advertiu-a de que ela não deveria vê-lo. Instigada pelas irmãs, Psiquê deu vazão
à sua curiosidade e decidiu ver o esposo. Para isto, utilizou-se de uma lucerna e, ao aproximá-
la ao deus, sofreu as consequências de seus atos. Grimal (2000, p. 400)6 descreve esta cena da
seguinte forma:

Descobriu então, adormecido no seu leito, um belo adolescente. Enternecida,


comovida com a surpresa, deixou inadvertidamente cair sobre ele uma gota
de azeite a ferver, de tal modo a mão lhe tremia ao erguer sobre seu rosto a
lucerna. Sentindo a queimadura provocada pelo azeite, o Amor [...] acordou
e, cumprindo as ameaças que fizera a Psique, fugiu para não mais voltar.

Desse momento em diante, Psiquê passaria a procurar o seu amado pelo mundo,
sofrendo as consequências de ter descumprido a promessa que o fizera. Impelida a encontrar
seu amado, e afrontada pela inveja da deusa Afrodite, Psiquê chega a ir ao Hades como uma
das condições para que tivesse de volta o seu esposo.
A sina de quem ama, pelo que colhemos nos mitos acima apresentados, seria andar
errante pelo mundo em busca da sua outra metade para, encontrando-a, vivenciar
devotadamente seu amor. O ato de amar, portanto, constrói no indivíduo uma condição de
profunda entrega e uma desenfreada necessidade de apoderar-se, aproximar-se do objeto
afetivo para, dispondo de sua presença, preservá-lo.
Bauman (2004, p. 24) confirma nossa assertiva, ao discorrer sobre o amor num
contexto atual, o que reforça a ideia de que as concepções sobre o amor, bem como as
experiências de quem o vivencia, parecem, de certa forma, ter sofrido poucas alterações ao
longo dos anos. Ele afirma que: “O amor [...] é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto
cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo”. Para ele, enquanto o
desejo estaria direcionado à ideia de “consumir”, o amor estaria centrado na ideia de
“possuir”. Além disso, Bauman (ibidem, p. 25) afirma que: “O amor aprisiona e coloca o
detido sob custódia. Ele prende para proteger o prisioneiro”.
Neste contexto, seria pertinente, para remetermo-nos ao que pretendemos observar nos
poemas recortados para nosso trabalho, levantar os seguintes questionamentos: como reagiria

6
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
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o indivíduo que devota seu amor a alguém ao deparar-se com a não reciprocidade ante o amor
despendido? Se o amor impele o indivíduo à busca, constrói no amante a necessidade de
possuir o ser amado para, em seguida, protegê-lo, o que resta ao indivíduo que não encontra
no ser amado a mesma dedicação e demonstração de amor?
Ao discorrer sobre o amor, e a ideia propagada pelo senso comum de que o ódio seria
seu contraponto, May (ibidem, p. 323) assinala que não o ódio, mas a repulsa seria o
contraponto do amor. Segundo May (ibidem, 324), “a repulsa é, na direção de suas reações, a
antítese do amor”. Desse modo, onde “o amor reage à promessa do outro com atenção e
paciência máximas, a repulsa reage com um afastamento imediato que foge de qualquer
atenção e paciência”.
Para nosso recorte, discorreremos, por meio de uma abordagem comparatista, sobre os
poemas Frieza7, de Florbela Espanca, e Solitário8, de Augusto dos Anjos. Sugerimos que
ambos os textos apresentam vozes líricas que, numa busca irrefreada, se remetem dramática e
rancorosamente aos seres que representam seus respectivos objetos amorosos e deparam-se,
não sem dor e sofrimento, com uma resposta que é assimilada como repulsa, preterimento e
rejeição.
Passemos, portanto, à análise dos poemas. Faremos, num primeiro momento, a análise
do soneto de Florbela Espanca e, em seguida, do soneto de Augusto dos Anjos.

Sobre o soneto Frieza, de Florbela Espanca

Embora não tenha participado da Revista Orpheu, marco inicial do Modernismo em


Portugal, Florbela Espanca tornou-se um dos nomes mais notáveis em se tratando da estética
modernista portuguesa.
Enquadrando-se como um nome importante surgido no início das visões modernas que
perpassavam a Literatura Portuguesa do início do século XX, Florbela Espanca deparou-se
com problemas existenciais que, transpostos para sua produção literária, transformaram-se em
material literário de reconhecido valor estético.

7
ESPANCA, Florbela. Melhores poemas. Seleção de Zina C. Bellodi. São Paulo: Global, 2005. (Coleção
melhores poemas).
8
ANJOS, Augusto dos. Eu. Organização Fabiano Calixto. São Paulo: Hedra, 2012.
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Sobre a temática dessa poetisa, Bellodi (2005, p. 20)9 afirma que “seu grande tema é a
expressão da dor em várias situações, e com nuances diversificadas, expressão da dor que se
dá no confronto eu-outros”. Bellodi (ibidem, p. 22) enfatiza, ainda, que a obra de Florbela
Espanca está permeada por esse tema e aponta os aspectos através dos quais a dor se
manifesta em seus versos. Ela se manifestaria por meio da “mágoa”, “solidão”, “amargura”,
“frustração”, “busca incessante e intensa”, “entrega irrestrita” e, paradoxalmente, “medo e
recusa de encontrar”.
No soneto Frieza, poema que integra o Livro de Sóror Saudade (1923), localizamos
uma das principais temáticas da poetisa: o amor. Este surge como resultado de uma profunda
sensação de “mágoa” advinda de uma “entrega irrestrita” que não tem a reciprocidade do ser a
quem o amor é direcionado.
Façamos a leitura, a seguir, do poema sobre o qual discorremos:

FRIEZA

Os teus olhos são frios como as espadas,


E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas

Vejo neles imagens retratadas


De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,


Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!


E quanta vez dirás a soluçar:
“Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim!...”

O título Frieza traz componentes semânticos que muito nos auxiliariam para melhor
compreender as ideias expressas no poema. “Frieza”, numa acepção comum, poderia indicar a
ausência de calor, o frio; por outro lado, e este elemento é mais pertinente para o que
discutimos, o vocábulo “frieza”, fora da sua acepção literal, remete-se à ideia de indiferença,
descaso, desprezo, irrelevância que um indivíduo, por algum motivo, parece demonstrar em
relação a outrem.

9
BELLODI, Zina C. Florbela – Vida e obra: uma apresentação. In: Melhores poemas– Florbela Espanca. São
Paulo: Global, 2005. (Coleção melhores poemas).
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O título dessa obra está, portanto, vinculado diretamente ao que o texto propõe, pois
nele há uma voz lírica que denuncia, em suas quatro estrofes, seu interlocutor como um ser
indiferente, capaz de demonstrar descaso, desprezo e preterimento ante sua manifestação de
amor.
Do ponto de vista formal10, podemos dizer que esse texto trata-se de um soneto
decassílabo com rimas ABBA / ABBA / CDC / EDE. Nos quartetos, localizamos rimas
interpoladas e, nos tercetos, rimas encadeadas.
Nas duas estrofes introdutórias, percebe-se a recorrência da consoante fricativa
alveolar11 /s/ que poderia sugerir, nas camadas profundas do texto, a fluidez de espadas que,
em contato com o ar, ocasionariam a produção de sons sibilantes. Isto poderia indicar,
também, numa acepção metafórica, que a indiferença dispendida pelo interlocutor causaria, à
voz lírica, a sensação de ter a alma cortada por espadas tão frias quanto cortantes. Além disso,
a sensação de profunda mágoa, e intensa angústia, poderia ser sugerida pela recorrência de
sons nasais /m/, /n/, /ã/ e /nh/, sugestivos do forte teor melancólico que surge ao longo do
texto.
Outro aspecto a ser considerado nesse texto é o uso exaustivo de adjetivos. Com isso,
o poema adquire teor descritivo apresentado por um ângulo de visão que busca utilizar o
descritivismo como reforço para a expressão das sensações que experimenta. Além disso,
conjunções aditivas sugerem a necessidade de afirmar, como se a voz lírica tentasse expressar
suas insatisfações em um só fôlego, os sofrimentos em profusão que, ao sentir-se preterida,
esta vivencia.
Partiremos, após essa breve explanação de caráter formal, para o que nos interessa
discutir na obra.
Podemos dizer que esse poema apresenta o resultado de uma declaração de amor
proferida por uma voz lírica que, após exprimir seus sentimentos ao ser amado, mostra, em
decorrência do preterimento, seu total inconformismo.
Inicialmente, essa voz lírica passa a estabelecer comparações entre o modo de olhar do
interlocutor e a frieza e violência que seriam peculiares aos metais cortantes. Os vocábulos
“espadas”, “punhais”, “metais” e “lâminas”, que estão no campo semântico de objetos
cortantes, muito utilizados como material bélico no período medieval, aparecem, no texto,
adjetivados pelos vocábulos “claros”, “brilhos” e “fulgores”. Este excesso de claridade seria

10
AZEVEDO, Rafael Sânzio de. Para uma teoria do verso. Fortaleza: EUFC, 1997.
11
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.
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uma metáfora para os olhos do amado que, com seu brilho natural, passa a ter conotação de
armas cujo poder destrutivo seria capaz de perfurar o corpo e, mais que isto, a alma do ser a
quem esse olhar é direcionado.
Nos primeiros versos da segunda estrofe, poderemos nos deparar com a seguinte
imagem: “Vejo neles imagens retratadas / De abandonos cruéis e desleais”. O dêitico “neles”
retoma o vocábulo “olhos” e é como se a voz lírica olhasse para o espelho dos olhos do seu
amado e visse, neste olhar, a reprodução do abandono assimilado como algo “cruel” e
“desleal”. Ao vislumbrar-se num espelho, o indivíduo consegue, é óbvio, ver a si mesmo.
Portanto, ao olhar para os olhos do amado a voz lírica vê, em verdade, a si mesma e,
personificando a imagem do abandono, ao mesmo tempo em que realiza uma perceptível
chantagem emocional, tem piedade de si mesma a ponto de perceber no olhar do seu amado,
não sem rancor e mágoa, a sensação que vivencia em seu próprio íntimo.
Poderíamos, no entanto, considerar também outra leitura para a imagem que esses
versos propõem. Neste caso, poderíamos pensar que a voz lírica apenas aponta, com teor de
recriminação, para o que estaria por trás dos olhos do seu amado: um comportamento
antípodo ao que ela busca em sua visão idealizada do amor.
No olhar do seu amado, ferino como cortantes espadas, estariam: abandono, crueldade,
deslealdade, desejos irreais – teria ele dito que a amava quando, em verdade, apenas a queria
consolar, criando nela falsas expectativas? – e uma vida boêmia – supomos que o “oiro e o sol
das madrugadas”, a que a voz lírica alude no texto, diz respeito às claridades da noite
propensa à boemia e às aventuras amorosas descomprometidas.
Como se quisesse manter seu brio, ante a humilhante constatação de que era preterida,
a voz lírica mantém-se altiva e afirma, ironicamente: “Mas não te invejo, Amor, essa
indiferença / Que viver neste mundo sem amar / É pior que ser cego de nascença”. Em
seguida, ainda projetando no ser amado aquilo que ela vivencia, esta afirma, numa tentativa
de sentir-se superior quando, em verdade, sentia-se inferiorizada, que seu amado “inveja a
dor” que nela seria vívida, intensa.
Preterida, enganada e impotente ante a frieza do seu amado, a voz lírica esparge,
porque lhe resta a palavra como meio através do qual expurgará sua desilusão, sua indignação
contra o homem que a pretere afirmando, como se recorresse a um argumento tão pueril
quanto improvável, que este teria inveja pela dor que ela sente.
A esta, numa tentativa última de externar sua inconformidade, resta impetrar contra
seu amado uma espécie de praga. Ela deseja, amargurada, e em tom vingativo, que no futuro o
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homem que a destrata – isto é confirmado pelo uso do verbo no futuro do presente “dirás” –
seja vitimado pela mesma dor que tumultua sua vida: “Quanta vez dirás a soluçar / Ah! Quem
me dera, Irmã, amar assim”.
Em suma, dentre as temáticas encontradas no texto, podemos destacar: o amor não
correspondido, a frieza por vezes presente nas relações afetivas, a sensação de inferioridade
que o preterimento pode causar a quem confessa seu amor a um ser que não corresponde tal
sentimento e, sobretudo, a dor ocasionada pela incompatibilidade de afetos advinda de quem
busca, de forma idealizada, o seu complemento, seu amor e cai, inopinadamente, na
frustração.
A propósito, se pensarmos esse poema em comparação com o soneto Solitário, de
Augusto dos Anjos, em que aspectos poderemos relacioná-los? Vale lembrar que tanto
Florbela Espanca quanto Augusto dos Anjos foram considerados exímios produtores de
sonetos e inovadores, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo, sendo
considerados, assim, autores de obras inclassificáveis, por amalgamarem aspectos diversos da
estética de várias escolas literárias.
Em ambos os autores, percebemos a recorrência, para ficarmos apenas em um
exemplo, de traços pertinentes à obra Simbolista. Florbela Espanca, assim como Augusto dos
Anjos, recorre ao uso de iniciais maiúsculas no início de alguns vocábulos em vários textos.
No soneto Frieza, poderemos destacar os vocábulos: “Amor” e “Irmã”. No soneto Solitário,
analisado em seguida, percebemos essa característica na escrita do vocábulo “Desgraça”. Em
ambos os autores, essa marca representa uma ênfase que amplia o valor semântico do
vocábulo.
Além disso, Florbela Espanca apresenta nesse soneto a recorrência de aliterações que
propiciam perceptível musicalidade ao texto, algo bem ao gosto dos simbolistas, o que
também acontece na obra de Augusto dos Anjos.
O tema do amor, desta feita expressa na incompatibilidade dos afetos vividos pelas
vozes líricas desses textos, em relação aos objetos a quem estes devotam suas pulsões
amorosas, caracteriza-se como outro aspecto que os aproximaria na criação dessas obras.
Por essas razões, para não nos estendermos, consideramos que seria possível realizar
esta – bem como diversas outras – análise de caráter comparativo entre obras de Florbela
Espanca e Augusto dos Anjos.

Sobre o soneto Solitário, de Augusto dos Anjos


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Pensar a obra de Augusto dos Anjos, cujas características englobam o formalismo


típico da estética parnasiana, a musicalidade pertinente à estética dos simbolistas e que, ao
mesmo tempo, evidencia inovações notáveis, sobretudo num plano da linguagem, é considerar
que este não parece adequar-se a qualquer uma dessas estéticas.
Augusto dos Anjos, segundo Barbosa Filho (2001, p. 152)12, seria um autor cuja obra
em si mesma já apresentaria ideias antípodas. Para esse autor, ao “Augusto cientificista,
naturalista, materialista, pessimista, [...] racional, se opõe o Augusto imaginativo, subjetivo,
às vezes utópico, enfim, o Augusto intuitivo que faz de sua fantasia poética outra via de
acesso à realidade”.
Desta feita, uma das características desse poeta consiste na produção de obras de
intenso lirismo. Podemos confirmar isto pela leitura do soneto Solitário, que consta na única
obra publicada pelo autor: Eu (1912).
Nesse poema, constatamos a ocorrência de uma voz lírica que se remete a um
interlocutor a quem confessa sua passionalidade amorosa. O amor que devota ao ser amado o
torna suscetível e encaminha-o à angústia advinda da frustrante sensação de que o seu amor
não é correspondido.
Façamos, portanto, a leitura do soneto sobre o qual discorremos:

SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia


Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia


Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!


E eu saí, como quem tudo repele,
– Velho caixão a carregar destroços –

Levando apenas na tumbal carcaça


O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

12
BARBOSA FILHO, Hildeberto. Arrecifes e lajedos: breve itinerário da poesia na Paraíba. João Pessoa:
Editora Universitária / UFPB, 2001.
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Do ponto de vista formal, este soneto decassílabo apresenta o seguinte esquema


quanto à rima: ABAB / ABAB / CDE / CDE. As duas primeiras estrofes são compostas por
rima cruzada ou alternada, as últimas apresentam rima encadeada. Dotada de notável lirismo,
essa obra apresenta uma voz lírica que introduz sua confissão de amor por meio de uma símile
no primeiro verso: “Como um fantasma que se refugia / Na solidão da natureza morta, / Por
trás dos ermos túmulos, um dia, / Eu fui refugiar-me à tua porta!”
A voz lírica expressa sua necessidade de estar ao lado do ser amado e, tão passional
quanto, de certa forma, patética, entrega-se à possibilidade de ansiosamente encontrá-lo –
explica-se, portanto, a necessidade de empreender uma busca que o impeliu, como
percebemos no texto, a ir à casa da sua amada. A imagem construída nos remete à estética
romântica que, dentre suas principais características, discorria sobre o amor, sobretudo o amor
que tornava o homem vulnerável à beleza e encantos do ser feminino.
Na segunda estrofe, a voz lírica parece deparar-se com o aspecto mais indigesto a
quem não tem seu amor correspondido: depara-se com a indiferença do ser amado e,
consequentemente, sente-se preterida.
Com imagens que nos permitem aproximações com o soneto de Florbela Espanca –
seja pelas aliterações, pelo uso do vocábulo “frio” ou pela retomada da imagem de objetos
cortantes (“o aço das facas”) que, assumindo um sentido metafórico, representam um corte às
expetativas amorosas alimentadas pela voz lírica do poema –, percebemos que essa voz em
Augusto dos Anjos também goza da mesma sensação de desilusão ante a busca do ser a quem
devota seu amor. Ambos deparam-se, não sem amargura, com o preterimento e a aparente
repulsa advindas do ser amado.
Mas, assim como a voz lírica do soneto Frieza expressa seu amor a um interlocutor
indiferente, a voz lírica do soneto Solitário também o expressa e depara-se com a mesma
demonstração de indiferença com relação ao seu interlocutor. Em decorrência dessa reação,
esta voz lírica lamenta: “Mas tu não vieste ver minha Desgraça! / E eu saí, como quem tudo
repele, / – Velho caixão a carregar destroços –”.
Nessa estrofe, encontramos uma das imagens mais profundas do poema: a voz lírica se
metaforiza na imagem do caixão – caracterizado como velho – que carregaria “destroços”. O
termo “destroços” poderia indicar, metaforicamente, os sentimentos que essa voz traz em si e
que, despedaçados pela figura feminina que o pretere, não seriam, a partir de então, senão
destroços que ele carregaria em si inevitavelmente.
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Atentemos para o termo “Desgraça” que, como é típico dos simbolistas, traz a inicial
maiúscula para enfatizar a mensagem que este termo evoca.
Na estrofe final, que nos apresenta uma das marcas por excelência do estilo de
Augusto dos Anjos, o preterimento amoroso não só representa o dilaceramento da voz lírica,
também a aproxima à imagem de um caixão em que, em seu interior, jazeria um defunto já
carcaça, cujos restos mortais – ossos – estariam a chacoalhar funestamente.
Percebemos, portanto, que em Augusto dos Anjos a sensação de preterimento
experimentada pela voz lírica que este insere em seu soneto passa por uma desilusão tão
profunda quanto a que a voz lírica de Florbela Espanca. Pelas imagens criadas por Augusto
dos Anjos, no entanto, somos levados a crer que a voz lírica do seu poema passa por uma
experiência que o impele a uma visão mais derrotista, pessimista e desencantada da vida.
Enquanto no soneto de Florbela Espanca a voz lírica é capaz de, por meio de um discurso de
desforra e inconformismo, querer se sobrepor ao ser que a pretere, a voz lírica do soneto de
Augusto dos Anjos entrega-se à desilusão e cai numa introspecção que invalida seu gesto
anterior de ir, como num impulso, à casa de sua amada exprimir seu amor. Este entrega-se à
desilusão, sente-se despedaçado, mas não parece querer reivindicar, antes parece restringir-se
à conformidade e lamentar, ao invés de retrucar, ou mostrar seu inconformismo.
A frieza do ser amado conduz essas vozes líricas, como pudemos constatar, à solidão e
à perda de perspectivas em relação aos seres a quem direcionam seus afetos. Como
andróginos partidos que buscam suas metades, ou como Psiquê que busca, errando pelo
mundo, o seu Eros, essas vozes buscam o amor, porém deparam-se com reações inopinadas:
são vítimas de preterimento, ou seja, caem nas sendas amargas dos que amam sem serem
amados.

Condiserações Finais

As vozes líricas desses poemas, ao que supomos, estariam fadadas a lidar com a
rejeição, com a sensação nada agradável de sentirem-se frustradas em decorrência de
mostrarem-se suscetíveis ao amor sem, contudo, serem correspondidas. Estas, longe de
repudiarem seus objetos afetivos, tentam criar, pateticamente, um teor de chantagem
emocional na intenção de comovê-los e suscitar, neles, o mesmo amor que experimentam em
si. Elas trazem em si, portanto, o desejo de encontrar suas metades – assim como nos sugere o
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mito proposto por Aristófanes – e empreendem uma busca nada sutil em direção ao ser amado
– como o fizera Psiquê.
No poema de Florbela Espanca, no entanto, a busca se manifesta por meio da ação
verbal que encontra na retórica um meio através do qual evidenciará toda amargura que traz
em si, ante o evidente preterimento; e no poema de Augusto dos Anjos, além de recursos que
estariam num plano da ação verbal, também é perceptível uma ação prática – a voz lírica neste
autor vai até a casa de sua amada.
Além de serem conhecidos expressivamente pela produção de sonetos, ambos
constroem poemas que perpassam a mera formalidade ao introduzir aspectos inovadores em
suas obras.
Augusto dos Anjos – cuja obra tanto apresenta traços do Simbolismo quanto do
Parnasianismo, bem como aspectos formais e conteudísticos modernistas –, em sua lírica,
como afirma Gouveia (2007, p. 160), “já integra as vertentes estéticas mais radicais do século
vinte, no sentido da adesão à fealdade, à iminência da morte como constitutiva da consciência
em graus inconsoláveis, à irreversibilidade de todo um processo destrutivo inerente à
existência”.
Florbela Espanca, por sua vez, produz uma poesia, como aponta Bellodi (2005, p. 19),
“que pode ser entendida como um corpo estranho na História da Literatura Portuguesa, pois é
difícil classificá-la”. Assim como o poeta brasileiro, a obra de Florbela Espanca remete-nos às
características de obras clássicas, românticas, simbolistas e, sobretudo pela abordagem de
alguns temas, e pela época em que foi produzida, modernista.
Consideramos valorativo, e instigante, pensar a obra desses poetas numa perspectiva
dos estudos comparados. Estamos certo de que muitas abordagens, além das que observamos
neste breve estudo, poderiam ser desenvolvidas. O preterimento amoroso, que se caracteriza
como nossa categoria analítica, em ambos os textos pode ser compreendido como o resultado
frustrante de uma busca amorosa empreendida por vozes líricas que se dispõem a confessar o
amor que sentem sem, contudo, obter uma resposta que correspondesse às expetativas que
alimentam. O discurso lírico, construído sob a égide de imagens dramáticas originais e
criativas, apresentado por esses poetas reforça a ideia de que eles são exímios sonetistas e
devem figurar como os mais representativos da Língua Portuguesa.
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Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu. Organização Fabiano Calixto. São Paulo: Hedra, 2012.
AZEVEDO, Rafael Sânzio de. Para uma teoria do verso. Fortaleza: EUFC, 1997.
BARBOSA FILHO, Hildeberto. Arrecifes e lajedos: breve itinerário da poesia na Paraíba.
João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2001.
BELLODI, Zina C. Florbela – Vida e obra: uma apresentação. In: Melhores poemas– Florbela
Espanca. São Paulo: Global, 2005. (Coleção melhores poemas).
ESPANCA, Florbela. Melhores poemas – Florbela Espanca. Seleção de Zina C. Bellodi. São
Paulo: Global, 2005. (Coleção melhores poemas).
GOUVEIA, Arturo. Bucólicas negativas. In: POSSEBON, Fabricio; COSTA, Rodrigo José
Rocha de Andrade e; SILVA, Leyla Thays Brito da. (orgs.) Antologia bucólica: auctores
minores. João Pessoa: Editora Universitária UFPB / Zarinha Centro de Cultura, 2007.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4.
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2012.
PLATÃO. O Banquete. Rio de Janeiro: Editora Abril, 2001.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Mitos gregos. São Paulo: 1998.

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