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SOS So OOS Os Oe ee Retratos e Lembrancas ngs Diptaado com Canscanet pos Padaria Espiritual Esta noite, ao sair do cinema, parei defronte dos des- trocos fanebres do Café Java, sacrificado a estética da Pra- ca do Ferreira, que éo centro vital de nossa urbs. E nessa contemplacao veio-me uma grande tristeza e uma grande saudade. Ali reinou Mané Coco, o fundador dessa instituicio popular que era o café hoje desaparecido. Mané Coco, de seu verdadeiro nome, Manoel Perei- ra dos Santos, era um homem excelente, muito inteligente, embora destitufdo de cultivo. A sua tinica erudigao consis- lo Dom Jodo de Guerra Junqueiro, ta a ponta e do qual recitava tre- uu mesmo sem propésito algum. ‘do de um terno de fraque cor de de rosa a lapela, ele tinha a eaexclusao da grava- tia no conhecimento d que ele sabia de cor de pont chos a propésito de tudo o1 Sempre corretamente vestic cinza, sempre com uma gran originalidade de nunca usar gravata, ta o exclufa de todas as festas e solenidades. Com muita habilidade para mecanica, consertava toda a espécie de maquinas, especialmente as de costura € relégios. Quanto a estes, conta-se que ele devolvia ao pro- prietério um embrulhinho com algumas pegas que haviam sobrado. Mané Coco foi, a principio, um némade aventureiro: andou pelo norte e pelo sul, correu Seca e Meca, e afinal achou no Café Java um ponto de apoio ¢ uma fonte segura de receita. Retratose Lembrangas | 15 Diptaad com Camscanet generoso, distri- Fixou-se ali e prosperou. Alegre € s fregueses € mil buia pilhérias e versos de Dom Jodo com © réis com os pobres. Mas a estes dizia sempre: — VA trabalhar, meu amigo, pois quem nao tr nao tem direito a vida! Numa revista de ano por A. Peixoto e por mim e repr antigo Teatro S. Luiz, aparecia & o Mané Coco, que era maravilhosamen rapaz da Escola Militar, de nome Pinheiro. Se ele via passar em frente ao Java alguma decaida decadente, 14 vinha uma citagao de Dom Jodo: ‘abalha — do ano de 1892, creio — escrita esentada com sucesso no m cena 0 Café Java com te imitado por um m Joao, as palidas amantes Nés somos, Do cantar. Que tu assassinaste a rirea Ese era uma mo¢a bonita, ele exclamava: Oh, maravilha da eterna formosura! Ese passava um enterro de crianga: Deixai, deixai voar as andorinhas Em busca das paragens luminosas. Nos primeiros tempos de Republica, Mané Coco foi nomeado subdelegado da Capital e um dia, no sei por que, demitido. Indignado, ele comentava assim 0 caso: — Isto é 14 terra! Pois chama-se um homem de bem ao telefone, em sua casa, para dizer: estois demitido! (O tratamento vos tinha comecado a ser posto em vogae dava lugar, como ainda hoje, a flexdes erroneas.) wet oo a ie antes do Java ja possuira um Estami- a ae re As io do cabaretier: em Paris ele estaria a frente ‘osos cafés excéntricos de Montmartre. 16 | Anténio Sales Diptaad com Camscanet Essa sua aptidao se manifestava pela sua simpatia aos intelectuais: Joao Lopes, Justiniano de Serpa, Oliveira Paiva, Anténio Martins e todos os jornalistas e escritores do seu tempo o estimaram e recebiam dele todas as provas de consideracao. E foi no Java que, com a colaboracao material de Mané Coco, nasceu a Padaria Espiritual. Eramos um pequeno grupo de rapazes — Lopes Filho, Ulisses Bezerra, Sabino Batista, Alvaro Martins, Temisto- cles Machado, Tibircio de Freitas e eu, que ali nos juntava- mos a uma mesa para conversarmos de letras. Eu era o tinico que tinha um livro de versos publicado — Versos Diversos, que recebera acolhimento lisonjeiro do publico e da critica. Ulisses e Sabino insistiram para que formdssemos um grémio literdrio para despertar o gosto das letras, entao em estado de letargia; mas eu me opunha. Uma sociedade literaria, como ja se haviam fundado tantas, com um cardater formal de academia-mirim, bur- guesa, retérica e quase burocratica, era cousa para qual eu ~ sentia uma negagao absoluta. — S6 se fosse uma cousa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que sacudisse 0 nosso meio e tivesse uma repercussao 1a fora. — Pois seja assim, diziam os outros. Nessa noite foi aceita em principio a ideia de fundar- se a sociedade, e eu encarregado de lhe achar um nome. No dia seguinte, depois de ter dormido sobre o caso, eu apresentava o nome — Padaria Espiritual, que foi recebi- do com bravos! O titulo da sociedade foi o ponto de partida para se achar todos os elementos que constituiram 0 seu sucesso de originalidade. Tomei o compromisso de escrever, nao os estatutos, Mas 0 programa com que a sociedade devia apresentar-se RetratoseLembrangas | 17 Diptaado com Canscanet ao piiblico, programa que escrevi dentro de poucos dia quando publicado, se tornou conhecido do pais inteiro las numerosas transcrigdes que teve na imprensa: 0 Jor, do Comercio o reproduziu na integra. Faltava uma casa: esta foi um armazém pertencente ao gy. merciante José Bruno Menescal, a rua Formosa (hoje Baro go Rio Branco), onde est a agéncia comercial do Sr. Anténio Fitiza, Nio sé de letras se preocupava a “Padaria”, mas tam. bém de artes, e assim incorporamos os violinistas Henrique Jorge e Carlos Victor e o desenhista Francisco Sa‘, que de. corou artisticamente as paredes do armazém com 0 nome de cada Padeiro, cercado de vinhetas e alegorias tragadas a giz de cor. Faltava mobilia: como obté-la? Imaginou-se uma subscrigéio para um fim caridoso, e 4 tarde tinhamos dinheiro suficiente para comprar uma grande mesa, um ar- mirio e uma diizia de cadeiras. Convidamos algumas figuras estranhas ao nosso nii- cleo primitivo, que de pronto se reuniram a nds. E, afinal, na noite de 30 de maio de 1892, realizou-se a primeira fornada da Padaria Espiritual, presidida interi- namente por mim, que nao quis ser o Padeiro-mor, indi- cando para esse posto o meu amigo Jovino Guedes. Os padeiros usaram todos um nome de guerra, e a ata da primeira sesso est firmada por Moacir Jurema (Antonio Sales), Frivolino Catavento (Ulisses Bezerra), Alcino Bandolim (Carlos Victor), Anat6lio Gerval (Lopes Filho), Paulo Kanda- laskaia (Joaquim Victoriano), Télio Guanabara (Temistocles Machado), Lucas Bizarro (Livio Barreto), Corregio del Sarto (Francisco 4), Licio Jaguar (Tibarcio de Freitas), Policarpo Estouro (Alvaro Martins), Silvino Batalha (J. de Moura Caval- canti), José Marbri (José Maria Brigido), e Félix Guanabarino “Luisi idem ® Raimundo Teofilo de Moura S 0, De. nal 18 | Antonio Sales Diptaado com Camscanet (Adolfo Caminha). A margem esto escritos a lapis os nomes de Satiro Alegrete (Sabino Batista), Sarazate Mirim (Henrique Jorge) e Aurélio Sanhacu (Antonio de Castro), que estavam presentes, mas esqueceram de assinar a ata. Na sesso seguinte ja figura Wenceslau Tupiniquim (Jovino Guedes) como o Padeiro-mor, presidindo a sesso. Esta primeira fase da “Padaria” foi quase que somente de divertimento e de blague. Nossa associacao cafra no gosto do publico: toda gen- te achava graca nessa nossa boémia intelectual, que safa dos moldes j4 conhecidos e nao ofendia em cousa alguma aos bons costumes. As familias faziam sereno a porta do Forno para as- sistir As nossas sessdes, e, quando festejavamos o natalicio de um Padeiro, nos mandavam doces e flores e nos empres- tavam louca e talheres. Nos dias em que nao nos reunfamos no Forno, famos para o Java, nao para o pavilhao comum, mas para um pi- toresco quiosque que 0 Mané Coco preparara ao lado para nosso gozo exclusivo. Depois de alguns meses de funcionamento no armazém do José Bruno, que um dia no-lo reclamou para uso de seu comércio (parece que os pagamentos dos aluguéis nao esta- vam muito em dia), o Forno transportou-se para outro prédio do mesmo quarteirao da rua Formosa, prédio de cuja fachada um dos nossos, com uma barba postiga, fez uma conferéncia para 0 auditério que se aglomerava na rua, tendo por tema as palavras de Hamleto a Ofélia: “Entra para um convento!” Fizemos diversos pic-nies, e as vezes saiamos a noite em sere- nata pela cidade ao som da flauta, violino e violao. No Forno, recebemos a visita de Pardal Mallet, quan- do passou desterrado para Cucuf, e de Raimundo Correia, quando aqui esteve a passeio. eo Retratose Lembrangas | 19. Diptaad com Camscanet O belo poeta Livio Barreto teve uma aventura senga_ cional: em viagem de Camocim para c4, naufragou, e, en sopado e tremente, escreveu na praia a poesia “Naufragoy que leu no Forno, ainda transtornado pelo desastre e met. do numas vastas roupas que Ihe haviam emprestado, Certa ocasiiio houve uma crise na Padaria: Alvaro Martins e Temistocles Machado nos abandonaram e com outros elementos fundaram o Centro Literdrio, que assy. miu a atitude de rival da “Padaria”. Mais tarde o Forno deixou de existir, e as reunides se faziam uma vez por semana em casa dos Padeiros.., que tinham casa. Ja ai a “Padaria” tinha tomado uma feigao menos boa- mia, e em casa de José Carlos Junior, na de Rodolfo Te6filo, na de Lopes Filho ou na minha, com a presenca de senhoras e de cavalheiros que metiam empenhos para assistir 4s nossag sessGes, liam-se versos e prosa, contavam-se anedotas, fazia-se miisica e tudo acabava em torno de uma mesa de ché e bolos, A diregao da “Padaria” passara de Jovino Guedes a José Carlos Jinior, um grande e culto espirito que se extin- guiu sem ter tido tempo de revelar plenamente seus tesou- ros de saber e de talento. Afinal Rodolfo Te6filo, que, ao contrario das corujas, nao saja de casa a noite, tendo sido eleito Padeiro-mor, deu a nossa associacdo uma feiciio séria. Terminava assim a época em que 0 Mané Coco, feste- jando o natalicio de um Padeiro, embandeirava em arco 0 Café Java, iluminava-o a noite a giorno, fazia uma enorme jarra de alu para dar gratuitamente aos fregueses e elabo- rava um balao monstro, de dez metros de comprimento, com o letreiro —- PADARIA ESPIRITUAL, para, dizia ele, levar ao Padre Eterno a noticia de nossos feitos. O éxito da Padaria Espiritual comegara por surpreen- der a nés mesmos: sua popularidade se afirmou cada dia de 20 | Antonio Sales Diptaado com Canscanet uma maneira estrondosa: a vasta correspondéncia a meu cargo, na qualidade de 1° forneiro (1° secretario), era uma tarefa bem pesada, e entre as cartas recebidas havia as de muitos pontos do pais e até do estrangeiro. Afonso Celso nos dedicara seu romance Um Invejado; os mais notiveis homens de letras do Rio nos votavam gran- de simpatia e Raimundo Correia, que aqui esteve conosco, escrevia-nos cartas frementes de entusiasmo. Quando transferi minha residéncia para o Rio, ao ser apresentado a alguém, vinha invariavelmente a pergunta: “E da Padaria’? E 0 mesmo se deu em Sao Paulo, em Minas eno Rio Grande do Sul. A importancia que tomara nossa associagao nos fez compenetrarmo-nos de nossa responsabilidade, e nos di- tou o dever de correspondermos a expectativa piblica. Sob a direcdo de Rodolfo Teéfilo, a casa deste tornou-se 0 forno oficial e tmico da Padaria: reuniamos ali sob a égide da santa esposa do nosso patriarca, que assumiu as fungdes de nossa padroeira intelectual e doméstica. D. Raimundinha era uma espécie de mie espiritual de nés todos e com uma dedicagao e solicitude infatigaveis nos acolhia em sua casa uma vez por semana e preparava uma bela e copiosa mesa de doces, que era a parte final de nossas sessGes. Mas nem por isso nossas reunides se tornaram me- nos alegres: entremeando as leituras, vinham as anedotas, os comentarios espirituosos, as pilhérias felizes e as impa- gaveis historias de Anténio Bezerra, que ele narrava com todo o chiste de um consumado diseur. E a um canto er- guia-se o pavilhao da “Padaria”, encarnado, com uma pena e uma espiga de trigo entrelagadas, tendo no alto a nossa divisa: AMOR E TRABALHO. E comegamos a publicar livros: minhas Trovas do Norte, Contos do Cearé de Eduardo Sabéia, Contos Serta- Retratos eLembrangas | 21 Diptaado com Canscanet rjost de Jose Carvalho, Brilhantes ¢ Maria Ritta de Ro. doifo tedfilo, Flocos e Vagas de Sabino Batista, Phantoy de Lopes Filho, Cromos de Xavier de C astro, Marinhas de Antonio de Castro ¢ afinal Dolentes de Livio Barreto. va por tudo 0 que dizia res. peito as letras e 4 promovia festivais, acolhia artis. tas e escritores que por aqui pa savam, ¢ foi ela que primej- ro tomou a iniciativa duma homenagem publica a Juvenal Galeno, no dia do seu 59° natalicio. A essa festa se incor. porou o atual Presidente do Estado, como representante da Academia Cearense, e fez entéo um de seus mais belog \ “Padari discursos literaria 4 Eis como a essa oragio se refere Moacir Jurema, na crénica do Pao: “Falou em seguida 0 Serpa. Nao sabemos se ele j4 teve alguns momentos infelizes em sua vida de orador; mas estamos convencidos de que poucos momentos felizes tera tido como esse em que saudou Juvenal. A sua alocugao foi uma verdadeira torrente de frases de uma profunda emo- _ cao poctica, lampejantes de imagens felicissimas, repleta de criteriosos conceitos sobre a individualidade do Poeta das Lendas e Cangées Populares”. A “Padaria” j nao era somente uma forga mentalem nosso meio: era também uma forea social pela simpatia que #cereavit, conquistando todas as boas vontades e abrindo-lhe todos os coragées e toda Ss portas, Mas dentro em pouco a morte e 0 exilio comegaram a dizimar suas fileiras. Sucessivamente faleciam Xavier de Ca Carlos Jiinior, Livio Barreto, Lopes Filho, Sa- bino Batista e Artur Tedfilo’, Uns partiram para o Norte, Para o Sul emigrdvamos Adolfo Caminha, Tibiireio de Frei- tas, Moura Ferreira, Roberto de Alencar e eu, * Perfis Sertanejos Oprimedy a talecer foi Joaquim Vietoriano, 2 I Antonie Sates os Diptaad com Camscanet A “Padaria” ainda viveu penosamente até o fim de 1898; a derradeira ata escrita por Waldemiro Cavalcanti (Ivan d’Azoff) é de 20 de dezembro desse ano, e tem apenas as assinaturas de Rodolfo Teéfilo, dele Waldemiro, de Ulis- ses Bezerra, de Sabino Batista e de Lopes Filho, dos quais existe apenas 0 primeiro, E entao terminou a bela e curiosa aventura que foi a Padaria Espiritual, nao sem deixar uma tradi¢ao de inteli- géncia e de graga em nossas letras e uma funda e indelével saudade no coragio de seus membros sobreviventes. Ceara, 1920. Retratose Lembrangas | 23, Diptaad com Camscanet Retratos ¢ Lembranga: 2M ed Copyright © 2010 Secretaria da Cultura do Bstado do Card ‘Todos os direitos reservados & protegidos pela Lei n° 9.610 de 19.02.1988, Re: 10s direitos desta edigo A Sceretaria da Cultura do Estado do Ceara Afonso Albuquerque Lima, s/n, 3° andar, Fortaleza, Cearé CEP: 60.839-900 ywwwesecult.ce.gov.br 7 9 4, Impresso no Brasil/Printed in Brazil 6 Coordenagio editorial B v \ 6 atu Raymundo Netto , Che Capa e projeto grifico Mariano Souza Raymundo Netto Programacao visual e diagramagio Jozias Rodrigues Revisaio Sinzio de Azevedo Raymundo Netto Lazaro Rodrigues Retrato da Capa: “Anténio Sales”, 6leo sobre madeira, por Otacilio de Azevedo (acervo de Sanzio de Azevedo) Folha de rosto: capa da 1° edicao de Retratos e Lembrangas: reminiscéncias literdrias As fotos dos itens acima descritos pertencem ao acervo de Raymundo Netto, ea edigao origirial de Retratos e Lembrancas: reminiscéncias literGrias, & biblioteca particular de Sanzio de Azevedo. Catalogagéo na Fonte Bibliotecdria Gabriela Alves Gomes CRB 3-1116 Sales, Antonio Retratos e lembrangas/ Antonio Sales. — Fortaleza: SECULT/CE, 2010. 212p. il ISBN 978-85-88828-69-8 Co-edigéio com a Secretaria de Cultura do Estado do Cearé - SECULT 4. Literatura. I. SECULT/CE. II. Titulo CDD B869 Diptaad com Camscanet

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