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Dados Internacionais de Catalogasso na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gongalves, Maria Magaly Trindade ‘Teoria da literatura "revisitada” / Magaly ‘Trindade Gongalves,Zina C. Bellodi. — Petsépolis, RJ: Vores, 2005. ISBN 85.326.3100.2 Bibliografia 1. Literatura ~ Histéria eerftica 2. Teoria literiria 1. Bellodi, Zina Castell TL Tul. 04-7372 cpp-801 Indices para catélogo sistematico: 1. Teoria da literatura : Histéria¢ crtica 801 Magaly Trindade Goncalves Zina C. Bellodi Teoria da Literatura “revisitada” y EDITORA VvozES Petropolis, 2008 ainda desenvolvidas, em grande parte por Valéry, no sécu- lo XX. A continuidade é um fato mais significativo do que aruptura na passagem para o século XX, embora néo pare- a. T'S. Eliot inieia seu aprendizado teérico no contato com os simbolistas. O século XX presenciou o aparecimento de vétios mo- vimentos, varias posigdes diante do literdtio. Através dos movimentos e das posigées desenvolveu-se aatividade teé- rica critica, com uma rapidez que néo fora experimenta- da nos séculos anteriores. Podemos comesar com o Formalismo Russo como uma forma estridentemente nova de visualizar o literétio. Formalismo Russo Embora o Formalismo Russo, como movimento dos e- ‘udos literérios, tenha uma Histéria delimitada, a signifi cago e o alcance das teorias formalistas so extremamente amplos e nfo se resumem a um determinado momento his- ‘rico. As primeirassistematizagSes da Histéria e da doucti- nado Formalism Russo aparecem com Victor Erlich, como estudo bésico do movimento, ¢ T. Todorov. Em 1914/15, um grupo de estudantes da Universidade de Moscou fundou 0 Circulo Lingiistco de Moscow, que se propunha desenvolver os estudos de Lingisticae de poé- tica, Roman Jakobson foi um de seus fundadores, Em 1916, tum grupo de linglistas ede estudiosos da Literatura fundou 2 OPOJAZ que significa Sociedade para o Estudo da Lin- ‘guagem Podtica. V. Shklovski eFichembaum foram dois par~ ticipantes deste grupo, o qual, a partir de 1924 mais ou me- 105. Victor Etch -0.€;;T. Todorov -0.C, nota 74 12 nos, comegou a sentir a oposiglo que Ihe fazia grupo mar- xista. Esto é fundamental no Formalismo, que, como gru- po de estudiosos, foi destruido pelo marxismo. Este fato ilustra algo muito sério na Hist6ria humana: o quanto @ vida cultural de um pais pode ficar na dependéncia de uma siuasao politica. Se os formalistas néo tivessem sido disper- sados pelo mundo, ralvez continuassem o seu trabalho na Riissa. A diferenga é que nfo ficaram juntos, mas a maioria permaneceu atuante em outtos paises. ‘A estética do Formalismo tem pouco a ver com as for- ‘mulag6es marxistas. Parece estar no extremo oposto. A crf- tica marxista oficial procura ver na obra o reflexo de con- flicos sociais, exigindo dela um funcionamento transfor- mador da realidade social. Na verdade, toda grande obra, num certo sentido, pode ser um elemento transformador dasociedade de mancira indireta, mas no como propos- ta inicia. Quando os marsistas exigem isto, exigem algo ‘muito especfico, pois pensam na obra como uma arma de luta do partido. Isto corresponde a certas priticas literdrias desenvolvi- das no mundo comunista, mas é preciso esclarecet que es- tas posigdes, na verdade, nfo correspondem estritamente 3 csséncia da visio marxista da Literatura. Pode-se dizer que (os maristas deturparam Marx ¢ Engels, que nfo propuse- ram uma visio tio limitadora da obra literdtia. De qualquer modo, o Formalismo no se volta para o estudo dos reflexos sociais numa obra, nem procura ligi-la ‘com 0 contexto social: sua perspectiva no € geneticista. Pode-se dizer que, enquanto visio estritamente imanentista da obra, o Formalismo, até certo ponto, coloca entre parén- teses 0 problema do “reference”, limitando-se ao estudo da “mensagem”. Como se vers, entretanto, o referente passa 2 terum certo papel na visio formalist, quando esta estabele- 113 ce uma relagio entre a mensagem ¢0 destinatiio. A relagao que existe, para o formalista, entre a mensagem e o destina- ‘tério, nada tem a ver com o utilitarismo pseudomanxista. O Formalismo admite que a poesia tem um papel, mas este papel € diferente daquele que certas correntes criticas Ihe atribuem. O Formalismo Russo ndo véa Literatura propria- ‘mente como uma forma de conscientizaro leitor em relagao ‘205 confltos socials. Se o Formalismo atribui algum papel 3 Literatura, no que se refere a0 leitor, este, na verdade, cor- responde ao de recuperacio da realidade para o destinatério, 2 partir do processo de “estranhamento” © Formalismo Russo surgiu como primeira reaslo sis- tematizadora aos estudos geneticistas da Literatura, como reagZo ao determinism, numa preocupagao em fazer com que os estudos literrios se voltassem para a obra em si, en- quanto objeto autnomo de investigago. Neste sentido, 0 Formalismo aparece como um desenvolvimento mais in- tensificado de algumas idéias que jé haviam aparecido en- tre alguns simbolistas franceses, para os quais um poema adquitia um estaruto quase ontol6gico. Na verdade, a vi- so da obra como artefato em sie, portanto, como objeto formado, jé aparece no século XIX em Edgar Alan Poe", «que tanto impacto causou em Baudelaire. E preciso esclarecer-se que a posigio formalista nfo foi a deignorara Histéria com os condicionamentos reais que ela obviamente impée. Trarava-se, para o formalista, de deixar de lado fatos que sio dados por conhecidos, para {que os estudos literdrios se situassem em seu objeto pré- prio: a obra. Outro fato importante é que 0 Formalismo inaugurou uuma série de correntes criticas cuja tOnica é, deliberada- 106, Edger Alan Poe “The philosophy of compostion’,O.C, neta 89 14 mente, desprezar os fatores extrinsecos para se delimitar 20 estudo intrinseco da Literatura. Esta foi a diretriz funda- mental do New Criticiom, do Estruturalismo, da prépria Semidtica da Desconstrugao. ‘Um dos primeiros tedricos do Formalismo, B. Eichem- baum’, diz que esta abordagem deveria ser chamada mor- foldgica, para diferencié-la de abordagens como a psicolé- gica, a socioldgica e outras. Na abordagem formalista (morfolégica para Eichembaum), 0 objeto da investiga- «fo seriaa obra (estudo imanente, intrinseco), ¢ nas outras © objeto nao seria ela, mas alguma coisa que nela se reflete ‘Um dos primeiros fatos que 0 movimento colocou foi a autonomia dos estudos literdtios. Para estabelecé-lo ele- geram a obra como objeto de estudo, Jakobson tem uma frase que resume a proposta inicial do Formalismo, ao di- zer que a investigacio literéria tem com objeto néo a Lite- ratura em sua totalidade mas a “liverariedade” (literatur- nei), ito &, a especificidade do objeto liverério. O importante nas formulagdes de Jakobson ede Bichem- baum é que o investigador deve se preocupar unicamente com os tragos especificadores da obra literdria. A procura dessa literariedade, dentro do Formalismo, fica situada, por exemplo, no poema e nfo no poeta, na obra e néo no autor. Tudo isso teve o papel importante de arrancar a cri- tica ao determinismo, 20 positivismo, que acabam por obs- curecer 0 objeto do estudo literério, isto é, a obra. E claro que 0 positivismo rejeitado pelos formalistas precisa ser explicitado: trata-se de posigées geneticistas que estabeleciam uma ligagdo quase mecinica entre fatores diversos (hist6ricos, socais ¢ psicolégicos) e a obra. Num 107. orisichembaum~Ver alguns de seus textos no tad Teoa da Lite- ratwra~fomalistas sos, nota 74 1s ‘outro sentido, como diz Victor Erlich, os formalistas eram. “campedes confessos do neopositivismo”"* na medida em que procuravam afastar-se de conceitas aprioristicos (de nnatuteza filos6fica) quanto & natureza da criagao artistica. De fato, ndo especulavam sobre conceitos como a Beleza ¢ ‘ Absoluto. A posigio formalista, como jé foi dito, ndo é, entretanto, de negar a Histéria, a Socioiogia ea Psicologia. (3 formalistas dao este tipo de conhecimento como pres- suposto, principalmente 2 Histéria. E um pressuposto, portanto pode ficar de lado. Na procura da lterariedade, fogem aos determinantes externos, mas poderiam cair ain- da cm uma cilada, que é a seguinte: em ver de estudar a obra, estudar 0 poeta, explicar a obra em fungio do poeta, explicar a especificidade da obra, nao pela obra, mas pelo autor. Em outras palavras, a obra seria “especial” porque produzida por um “serespecial". Eles, entretanto, rejeitam todas as teorias que se preocupam em justificar a criagio ppoética a partir de faculdades mentais peculiares (as teorias ‘que falam do génio, da imaginacio). Nao que tais coisas sejam cotalmente falsas, mas se se ficar neste estudo, aca- ba-se por nfo estudar a obra criada, mas o processo de ct ‘40, e isso interessaria & Psicologia nfo & Critica e& Teo- fia da Literatura, Existe uma coisa que talver seja teal ~ deixar de lado as preocupages com a mente do autor é um ‘passo necessério para o estudo intrinseco da obra. Forgar 0 estudo intrinseco da obra é um dos grandes métitos do Formalismo Russo. primeiro passo para o Formalismo, como doutrina, foi, assim, uma luta para o estudo intr{nseco da obra, pro- ‘curando a literariedade. A partir dal, ele comega a investi gar o que diferencia a Literatura da ndo-Literatura. A espe- 108, Vitor Eich O., . 171, nota 74 116 cificidade nao seré determinada pelo assunto, isto é, esfe- rada realidade com a qual o autor lida na obra. Em princi- pio, qualquer assunto, qualquer esfera da realidade pode funcionar como tema. Nao existem assuntos poéticos € no-poéticos. Certas formulagées do Neoclassicismo fa- em essa separagio, 0 que no leva a muita coisa. ‘Accspecificidade nfo esté na face da realidade que o au- torescolhe. Os formalistas comegam pelo prinefpio segun- do o qual a caracteristica fundamental, marcante da Lite- ratura imaginativa, em contraposiglo aos escritos nao lite- rio, €0 uso das “imagens”. B ¢ por isso que vao quase sempre para a poesia. Mas esse uso das imagens, que carac- terizaria 0 discurso postico (no sentido amplo, aristotéli- 0) no se confunde com seu uso, por exemplo, na pintu- ra, Mais uma ver, 0s formalistas comecam por esclarecer as coisas. Quando se falava em imagem poética, falava-se apenas em termos de vivacidade, na possibilidade que @ imagem tem de transmitir uma forma. Portanto, era 0 var lor pict6rico da imagem, para dara sensa¢io visual do ob- jeto, Antes dos Formalistas, aimagem valia pela capacidade de transmicir, de exprimir uma idéia. O poeta, em vez de descrever algo de maneira objetiva, sugeriria o objeto pelo uso das imagens. Este ndo caracterizaalinguagem poética, porque o pocta pode ou néo usé-las, paraestabelecer 0 dis- tanciamento ou estranhamento, isto é, a poesia evidencia tum processo oposto 20 de uma comunicagio didética. [Nesta faz-se de tudo para trazer para perto 0 objeto distan- te. A poesia faz 0 contrério. Ela ¢ um processo inverso ¢ tende a apresentar o familiar de tal mancira que parece es- tranho, desconhecido e novo. A poesia provoca uma nova percepgio da realidade e a imagem contribui para isso. O principio do estranhamento, sem essa denominagio, apa- rece jd num dos teéricos do Romantismo inglés, Samuel 7 ‘Taylor Coleridge na Biagraphia Literaria™, Nesta obra Co- leridge propée, como um dos tragos especificos da poesia, a capacidade de proporcionar uma visio das coisas familiares ‘econhecidas de maneira que elas aparecam com aspectos nao ppercebidos anteriormente, provocando assim uma sensacio sais ricae plena de vida na mente do leitor. Coleridge vé 2 genialidade de Wordsworth exatamente na capacidade que este tem de tomar estranho 0 que € familiar. (O estranhamento funciona como um ant{doto contra a automatizagio da percepcao, conseguido, is vezes, numa linguagem despojada. A imagem dentro da poesia nao exis- te para obedecer lei da economia na expressio. Hé uma teoria segundo a qual rodos os recursos usados na lingua- gem 0 sio por economia. Na prosa didria, se se usa uma ‘metéfora, usa-se por economia, para trazer, por exemplo, 0 objeto mais préximo. A meréfora cconomiza energia. Na verdad, lei da economia ndo se aplica Literatura. A po- esia pode nao existir para tornar mais préximo 0 objeto dlistante, mas para tornar distante o objeto préximo. Obser- ‘vamos como o principio do estranhamento tem uma ana- logia com aquilo que, muito mais recentemente, Barthes coloca ao dizer que, anal de contas,o papel da poesia nao € “falar” o inefével e sim silenciar 0 “diavel”. E claro que, vista por um certo prisma, a idéia de lterariedade pode ser encarada como algo que leva a uma rautologia. No processo de especificagso da literariedade os for- rmalistas comesaram por definir a poesia, nfo por aquilo que ela é, mas por aquilo que ela faz. Lembremos, por ou- tro lado, Jean Cocteau, um das maiores poetas do Surrea- lismo francés, que diz que a poesia ilumina o lugar comum de tal maneira que esse lugar comum vai surpreender em 108.57. Coleridge -0.C, nota 67. 118 toda sua novidade, seu frescor, em seu vigor primordial Este € 0 trabalho do poeta. ponto de partida ¢ estabelecer a literariedade, 0 que toma a Literatura especifica e que nfo permite que ela se confunda, por exemplo, com uma reportagem de jornal. Os formalistas chegam & conclusio de que o papel da poe- sia€ ode restabelecer uma realidade em todo o seu vigor, 0 da recuperagio do mundo real (zquele que ficou perdido para nés), recuperacio da realidade através do processo de estranhamento, na medida em que o poeta fala de tal ma- neira que o familiar parece estranho, o que nos permite ver ‘© mundo de uma forma nova, mais rica, integral. Em relagio & proposta inicial, estabelecer a literarieda- de, a especificidade do fendmeno literdrio, em certos ca- 05, 60 no-uso da imagem que provoca tal efeito. Definir 4 poesia em sta finalidade, em seu papel, o que nao ¢ erra- do, & uma forma de comecar a discutir 0 problema, mas ino é uma forma de definir o objeto em si; éuma parte do objeto que esté sendo definida. As pesquisas formalistas, contudo, nfo se detiveram af e partiram para o estudo do objeto em si, da poesia em si. Os problemas fundamentais levantados pela teoria for- ‘alista vio aparecer aliados & Lingiistica moderna e & Se- iologia, principalmente nos estudos de R. Jakobson. Este faz um deslocamento de foco de interesse. Os primeiros for- ‘alistas colocam a problematica do litertio na aticude do Ieitor diante da realidade. Quando falam em restauracéo da ppetcepgo estio pensando no leitor. Este estabelece com a realidade uma relasio que se torna mais ou menos mecini- «a, porque, pela automatizagio da percepcio, 0 leitorjé nfo cestf percebendo 0 mundo. A poesia, pelo estranhamento, acaba provocando no leitor um novo relacionamento coma realidade, porque ele passa a perceber 0 que jé nfo percebia 19 mais, f um ensiquecimento da percepsio da realidade, Para Jakobson, a especificidade do literério esté na maneira como © autor usa 0 seu meio, isto é, a linguagem. ‘A idéia bisica do Formalismo, em sua evolucio, éa pro- pposigio da “palavrapodtica’. Na poesia palavra no ¢ perce- bida simplesmente como forma transparente que femete a uum objeto (denotagio), nem simples explosio de emogSes; cla é (peo seu significado, seu arranjo com outras palavras no discurso) uma realidade que tem peso ¢ valor proprios, ad- uirindo um aspecto quase de “substincia”. A palavra poética tem dois valores, pois funciona em termos de “sgn” isto serve para remeter a um conceito, mas vale também em si mesma, como sendo ela prépria uma realidade. ‘As posig6es formalstas mais maduras, como aque apa- rece com Eichembauim, acentuam a multiplicidade de sig- nificagdes como caracteristica do discurso poético, onde o objetivo é torar perceptivel a textura total da palavra. Portanto, os formalistas nio rejeitam o aspecto semintico da palavra: para o efeito estético 0 nexo semintico é tio es- sencial quanto 0 aspecto sonoro. ‘Alguns formalistas interessam-se particularmente pe- los problemas técnicos das formas narrativas. Shklowski ¢ Bichembaum se preocuparam em estabelecer ima teo- ria da prosa, estudando este, por exemplo, a composigao da obra de Gogol, “O Capote”, nos anos 60. Num autor ‘como Todorov jé observamos essa preocupagio sob a for- ma de um projeto ambicioso, que é formular os principios dle uma “gramitica da narrativa’ Ito aparece, por exem- plo, em sua obra La poétique de la prose”. Quando Todo- 110." Todorov ~ La paique de a prose, Pals, Sul, 1971. H tradugio puro portugute: Poca ds prose, de Maria de Santa Cu, Lisboa, Eaigbes 50.1979] 120 rov chegou a esbogar uma “gramética da narrativa” (1968), ‘partir do Decameron, suas pesquisas jéestavam no cam- po do Estruturalismo. ‘Tynianov aborda a evolucéo literdria a partir de um conceito basico: substituigao de sistemas. Para ele, a obra literdria € um sistema, ea Literatura é um sistema maisam- plo, Num estudo posterior, juntamente com Jakobson, ‘Tynianov formula seus conceitos de maneira mais con-

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