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PROVOCAR COM OPORTUNIDADES AS EXPERIENCIAS As criangas construtoras de microculturas de Aldo Fortunati e Sara Zingoni As condigdes para 0 protagonismo das criangas As pesquisas realizadas nos tiltimos anos nos centros para a infancia em San Miniato tém indagado quais os processos que determinam, desde a experiéncia da adaptacao ao nido, o desenvolvimento de microculturas dentro do grupo de criancas que compartilham a experiéncia no nido. & importante salientar desde 0 inicio que, quando se utiliza a expresso microcultura, néo se prerende dar a ela uma representacio diminutiva em relagao 4 do adulto, mas, sim, dar a ideia de que se desenvolve dentro de microcontextos de experiéncia, que sf ~ em uma perspectiva sistémica —os que as criangas compartilham dentro de um centro educacional. A énfase da pesquisa se concentra em dar visibilidade e valor ao protagonismo que as criangas possuem dentro desse processo, alimentando ao longo do tempo o desenvolvimento de experiéncias = muitas vezes, organizadas basicamente por elas mesmas ~ que iniciam e sio alimentadas ao compartilharem o espaco eo tempo. Mesmo considerando a grande capacidade de auto-organizacao as agdes naturais de protagonismo das criangas, seria um engano pensar que a presenca do adulto neste contexto nio seja importante. ‘As condigdes espaco-temporais em que as experiéncias das criangas acontecem devem ser consideradas muito importantes para os processos que se realizam e que se poderdo realizar ¢ se trata, evidentemente, de condigdes que resultam das intengdes planejadas dos adultos, os quais procuraram organizar o ambiente colocando a disposigao das criancas oportunidades e possibilidades que orientam as experiéncias, mas que também incentivam a interpretacées originais, novas ¢ diferentes daquelas que © espaco se propde a realizar. A atenco aos tempos é algo que, com frequéncia, é desconsiderada, mas que é importante & adaptago e & consolidagio do grupo, tanto para o nascimento como para a evolucdo das relagdes. O tempo para permitir experiéncias, que no deve ser definido com rigidez, mas que, pelo contrario, deve ser flexivel, ajuda a dar a cada momento da rotina dignidade educativa e verdadeiras ocasides para explorar as proprias potencialidades ¢ as dos outros, buscando acolher as diferencas e os tempos de cada um como ingredientes naturais € recurso para todo 0 grupo. Se o conhecimento da dimensio social dos grupos, o planejamento, a verificago e 0 cuidado constante com a organizagio dos espacos, dos materiais ¢ dos tempos so clementos importantes para tornar conercta a ideia do papel de um educador que transforma as préprias agoes desde o “pensar as necessidades” até o “provocar as possibilidades”, 0s educadores nao devem nunca parar de agir ativamente, buscando construir situagées férteis para seguiz, acompanhar ¢ ampliar as interagées, as relagdes ¢ os percursos de brincadeiras das criancas. Estar junto e ao lado evidente que quem, na realidade, menos se vé—o adulto que esta ali, que observa, segue, acompanha e que decide, de vez em quando, se e como interagir para sustentar e “provocar” também diretamente as experiéncias que estdo acontecendo —é tio determinante para aquilo que as situagdes produzem, 4 medida que conseguem nao inyadir a cena, participando ndo como o professor que sabe tudo, nem como o diretor que atribui os papéis, mas, ao invés disso, como simples—e nao menos importante — “participante do jogo”, disponivel e atento a cultivar 0 didlogo tanto quanto cada uma das criangas ali presentes. interessante refletiz sobre a maneira como os educadores esto com as criangas sobre o palco, sem roubar a cena, mas dando apoio para (© cenéirio que elas mesmas claboram, complicam, arriscam-se com fragmentos de memérias de experiéncias ja vivenciadas no nido ou no contexto familiar. © adulto é presente, observador incansdvel, mas também coprotagonista nos momentos em que a relacio com uma ou mais criangas pode sustentar uma possivel evolugao do rumo da brincadeira, pode acolher uma solicitagéo de auxilio, consolar a frustracio de algo que deu errado ¢ as légrimas por uma recusa. Nessa perspectiva, o educador pode acolher e dar a mao as criangas —no sentido literal ou metaf6rico ~ para acompanhar-lhes ao inicio de um percurso, no qual existe uma situago complexa propondo limites e possibilidades. O que se oferece para a crianca nao é um esquema predefinido de ages, mas um caminho para prosseguir com contetidos e significados que 0 adulto, genericamente, imaginou ao elaborar o projeto, imaginando quais competéncias, quais processos, quais relagdes podem tomar forma a partir da experiéncia. © educador representa, portanto, uma parte dos recursos disponibilizados pelas situacdes propostas, e, nessa perspectiva, nao se isenta das responsabilidades que so préprias de sua funcao, mas a interpreta de uma maneira diferente e cficaz, justamente porque como coprotagonista de uma histéria, que toma forma através das experiéncias cotidianas e ndo impondo-se como um sujeito que transfere conhecimento a pequenos espectadores, como se 0 conhecimento fosse somente uma histéria escrita pelos outros. A escolha de valorizar a observacdo como estratégia que permite conhecer ¢ reconhecer as potencialidades e as competéncias das criancas tem acompanhado, nos iiltimos anos, a evolugao das ideias ¢ 0 crescimento da nocao sobre o quanto as criangas podem ealizaz em um contexto educativo favoravel. As documentacées dio visibilidade as competéncias e aos processos através dos quais elas se desenvolvem e a possibilidade de uma reflexo coletiva sobre o quanto 0s vinculos ¢ as oportunidades oferecidas as criancas podem influenciar na expressao das potencialidades. Partindo dessa ideia, a utilizacao de documentagdes em video é considerada importante também para o projeto de formacio, pois propicia sustentar uma discussao critica entre possiveis pontos de vista e interpretages divergentes que, frequentemente, trazem um resultado positivo a0 adicionar sensibilidade para a observagio de cada um. A observagao dos movimentos das criangas pelo ambiente e a maneira como clas se relacionam com os instrumentos ¢ com os materiais colocados a sua disposicao oferecem aos educadores uma primeira pista sobre os possiveis percursos das brincadeiras © adulto acompanha o transito das criangas de um canto para 0 outro, as corridas ¢ as paradas, é interessado quando as observa por longos perfodos na exploracao de um objeto, quando o deixam cair com forca ou, entéo, quando colocam dois objetos bem perto um do outro criando combinagdes, jung&es que dio vida a rumores, sons, inclusdes, sobreposigdes e construgies. As microculturas como histérias do grupo Observar com atencio as primeiras exploragées individuais, que se enriquecem quando acontecem em pequenos grupos ou em duplas, representa uma primeira verificacao das potencialidades oferecidas pelos cantos organizados e pelos materiais neles presentes. Ao mesmo tempo, esse olhar atento pode tornar visiveis e compreensiveis a quantidade ea qualidade dos significados compartilhados, bem como as maneiras de comunicacdo utilizadas. Os significados compartilhados so construfdos a partir de uma forte conotagdo de cada objeto e instrumento a disposigio das criangas. As caracteristicas podem set qualitativas em relagao aos materiais que 0 compéem (“a boneea de pano”), mas também ampliadas e apoiadas por fortes referéncias que pertencem as vivencias do grupo ("a boneca de pano que a av6 Lisa consertou"); a ampliagéo, além de apoiar a especificidade de cada objeto, o enriquece pelo incentivo a uma experiéncia vivenciada concretamente pelas criangas, e 0 educador provoca uma reclaboracio compartilhada que se realiza cada ver que as criangas encontram aquele objeto. Dar a cada objeto ou classe de objetos e instrumentos a disposigao ‘uma forte identidade, alimenta o interesse pelo seu cuidado e cria lacos, de propriedade que se interligam com o sentimento de pertencimento. Desde o segundo ou terceiro més de frequéncia ao nido, o grupo das criancas novas, quando apoiado por um grupo quantitativamente equilibrado de criancas que jd esto em seu segundo ano de frequéncia 20 nido, demonstra claramente conhecer bem a posigdo de todos os materiais presentes no ambiente; a maior parte das criangas de 18 a 24 meses recouhece cada objeto colocado A disposicao, ¢, quando solicitado, é capaz de procuré-lo, utiliza-lo e colocé-lo em seu préprio lugar. A maior parte das criangas entre 24 e 36 meses é capaz de nomeé-lo, ¢ muitas delas conseguem também ampliar em linguagem oral suas caracteristicas ¢ fungdes, além das conotagdes sociais que os identificam e os distinguem. O surgimento da linguagem oral, que acontece justamente no period em que as criancas frequentam o nido, ocupa um papel determinante para a construco ¢ ampliacdo de uma memoria compartilhada; 0 risco pode existir quando os educadores, visando a um desenvolvimento precoce, o identificam como o principal recurso de relacdes nas experiéncias com as criangas, esvaziando a cultura do grupo da originalidade de seus participantes, como se as acdes das criangas se tornassem invisiveis. Observar as trajetdrias tragadas pelos olhares das criangas permite captar os primeitos movimentos de imitagées, ¢ as suas repeticdes denotam um claro sinal de interesse demonstrado por uma crianga em relacdo as aces da outra, possibilitando captar o surgimento da intengio da agio de espelhamento, a troca de papéis, e, finalmente, perceber no rosto das criancas o prazer que torna explicito o inicio da brincadeira. Acbusca-por interagSes entre-as ériangas é-alimentada pelos.objetos ¢.materiais-disponiveis.e; quando esses tecursos.se apresentam-com sua identidade hist6rica.e,social,.a sua utilizagao-dentro de-uma brineadeira g¢‘transforma-em uma elaboragéo compartilhada da cultura do-grupo. Os deslocamentos das criangas pelo ambiente denotam a intengao na busca de possibilidades de cooperagao. A observagio proporciona aos educadores antecipar as possiveis mudancas das duplas ou dos pequenos grupos pelo ambiente, e, entao, organizar a disposicio dos espacos para que eles possam ser transformados tanto pelos repousos quanto pelas ages das criangas, e esperar o tempo em que as aces compartilhadas evoluam para pensamentos compartilhado: Dividir com os outros 0 percurso de uma brincadeira marca a histéria do grupo, deixando nela uma nova marca (0 doutor dos dentes, o trem veloz, as compras no centro comercial, o piquenique, a brincadeira do fogo, os lenhadores, etc); esses scripts se originam como imitacao das acées didrias dos adultos; quando o educador esté atento a evidenciar, nem que seja um sé sinal, cle poder, entao, sustentar uma devolutiva ou uma narrativa desta ago, adicionando-a para a meméria do grupo. As criancas percebem rapidamente quando os adultos presentes esto observando com ateng&o suas ages, mesmo quando essa atengio se da somente com 0 olbar ou com gestos silenciosos, elas compreendem imediatamente 0 peso ¢ 0 valor ¢, em muitos casos, utilizam essa atencao para comunicar aos companheiros que aquilo que eles esto vendo é interessante aos seus olhos; como exemplo, a utilizacao das méquinas forogréficas ou do celular para fingir que fazem fotos ou videos, permanecendo nos limites das situagdes do jogo. O adulto esté presente quando consegue observar o desapontamento por uma frustragao de uma mensagem dita, mas no compreendida, ou de uma intenciio que nao consegue ser finalizada, ¢ est pronto para observar as estratégias que as criangas so capazes de realizar para resgatar a comunicacao interrompida, para continuar a brincadeira, para interromper ou reorientar uma agao buscando outzas possibilidades. Asestratégias individuais que cada crianga utiliza. para sustentar/ aprofundar/reorientar.as incompreensdes, as discrepancias, os conflitgs.nas relagdes cotidianas ou durante as brincadeiras também: séo observadas atencamente por todo 0 grupo. Aquelas selecionadas como mais adequadas, considerando a claboragio pessoal de cada uma e inserindo-se na situaciio que esta acontecendo, se transformam, com 0 passar do tempo, em estratégias imitadas ¢ reconhecidas de imediato por todo 0 grupo. %6 Somente observando as criangas é que o adulto pode conquistar a sua leveza, caminhar a seu lado, ¢ contribuir para tecer os fios da rede de aces ¢ intecages que esto em jogo sem intezrompé-la ou rompé-la, mas constcuindo oportunidades para possiveis novas experiéncias ¢ novas aprendizagens. Estar na brincadeira como adulto significa saber compreender se € quando é 0 momento de uma intervengiio verbal de espelhamento, de expansio ou de explicitagao de intengdes, regras ou emoc&es, mas também, c talvez principalmente, quando a mesma intervengio pode ser traduzida em saber colher 0 momento mais adequado para recompor, reordenar, fornecer ow retirar os materiais¢ os instrumentos disponiveis em um ou em outro cantinho de brincadciras. Nesta idade, a linguagem é uma verdadeira riqueza quando nao se limita a sedimentar a experiéncia, mas é complementar a uma acio que multiplica para as criancas as oportunidades para a insergio de processos de experigncia divergentes, abertos & constcucio de novos conhecimentos. As microculturas do grupo se alimentam do tempo e dos tempos de toda a rotina no nido, dos momentos de cuidados, no almoso, no repouso e nas diversas experiéncias de brincadeiras, que, em seu complexo, se transformam em um caleidoscépio colorido que atinge a construgao do conhecimento de todos e de cada um. A fluidez dos tempos de conex4o entre uma e outra atividade permite relagdes légicas, ligacdes casuais e combinag&o entre areas tematicas diferentes, transformando em tempos também muito rapidos tudo aquilo que, a um olhar superficial, poderia parecer como uma situago em que todos os dias so iguais. Por fim, nfo se deve esquecer que outro recurso significativo é representado pela experiéncia que cada crianga vive fora do nido; os momentos de transi¢ao que acontecem na chegada e na saida, nesse quadro, se apresentam como as situagoes mais ricas de contaminagao direta ou indireta. ‘Também aquele passo de recuo dos educadores nos momentos de transigao cotidiana presenteia imagens de protagonismo ativo das criangas e torna visiveis capacidades ¢ competéncias ao acolher as necessidades, as exigéncias, os desejos daqueles que saem e entram, mas também de compartilhar e alimentar os contetidos, elaborar € transferir os significados. As relagdes de acompanhamento e de divisdo nao se limitam as criangas, mas se abrem também aos pais, aos seus hébitos, a0 seu modo de colocar-se e de estar dentro do nido, e isso também ajuda a dar sentido a formas de vida ¢ de relagdes que se encontram e que, cm sua complexidade, constituem a trama das experiéncias de crescimento e de mudancas que cada um constr6i junto aos outros.

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