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Resenhas Lend Medeiros de Menez Os indesejaveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsdo na capital federal No rastro dessa tendéncia de longa duragio na Histéria, — os movimentos de discriminacio ¢ rejeico ao imigrante no mundo ocidental ~ surge, muito oportu- namente, este livro de Lend Menezes so- bre os indesejdveis, isto &, 0s estrangeiros, considerados como as sobras da moder- aidade. Como a prépria autor firma, ele procura fangar um olhar sobre o homem: comum, vindo do estrangeiro como imi- grante, em sua luta pela sobrevivéncia na sociedade pautada pela ordem eo progresso de final dos oitocentos e inicio dos nove centos, na qual a exclusao consticuia uma pritica regular. Emboraa historiografia re- gistre alguns livros sobre esses grupos, si- tuados nas fimbrias da sociedade, sio tex- tos, em geral, que abordam seja a questo da grande imigracio, seja a insergio desse imigrante em um mercado de trabalho ide- alizado, como ersatz para uma mio-de- obra, agora liberta, hd pouco escrava. A originalidade deste trabalho, a0 contrario, reside em uma anilise que pretende, atra- vés de pequenas historias de vida sobre 0 cotidiano do imigrante quase andnimo, articular a histéria social com a histéria econémica, cultural e das mentalidades. Configura-se, assim, uma visio de época segundo qual a sociedade, esse organismo vito, vulnerdvel a uma contaminagio, de- 134 (1890-1930) Rio de Janeiro: EDUERYJ, 1996. 307 p via resguardar-se, por meio de uma bar- reira constante ¢ sem tréguas contra in- vasio de males morais que, sob as formas mais variadas, a Europa despejava conti- nuamente no pais. Para tanto, vale-se de fontes diver- sas, incluindo os documentos oficiais (re~ latérios ministeriais ¢ dos chefes de po- licia, legislagao de época, cédigo penal, discursos parlamencares, correspondén- cia diplomécica, atos internacionais) a imprensa (grandes periddicos, jornais operdrios, revistas ¢ crénicas) cartas de arquivos particulares; ¢ a literatura ci- entifica e médica. O trabalho ainda apre- senta, como ponto chave para a andlise, uma document: (0, até agora, pouco plorada, que sio os processos ¢ listas de expulsio de imigrantes. Através desse rico manancial, a autora transporta o lei- tor a uma conjuntura marcada pela cir- culagio internacional de individuos de varias procedéncias, que trazem, a0 cru- zar 0s mares, no s6 0 sonho de ascender socialmente pelo trabalho, mas de con quiscar também um novo lar. Sonho que, no entanto, acabava por se desfazer, com freqiiéncia, nas ruas da miséria, em uma cela de prisio ou no pordo do navio que 0s levava, abruptamente, de volta a0 pais, de origem O livro estd estruturado em erés partes principais. Na primeira, estudam-se as “Lu- zes © sombras no drama da modernidade”, descrevendo-se 0 processo civilizatério d sencadeado na capital brasileira e identifi- cando-se 0 ¢ iio dessas mudangas, em contraste com seus bastidores, para descortinar-se uma outra cidade, mergulha- dla nas sombras. E nesse espago velado que se situam os escrangeiros, prota igonistas do drama, esforgando-se para ocupar os luga- res até muito recentemente desempenha- dos pelos escravos. Num segundo momento, os im an- tes sto analisados a partir de sua ago co- tidiana, tanto no mundo do trabalho, quanto no mundo do crime. Considera- dos, pela imprensa de época, como Arpe- des indesejdve, tizados em fungio de uma militancia po- litica, caso em que se destacavam os anar- . eles podiam ser estigma- quistas ¢ 0s comunistas, embora nem sempre trouxessem de fora essas ideolo- gias; especialmente os primeiros, muitas vezes chegados ao Brasil ainda em tenra idade. Em outro grupo, distinguiam-se os habitués dos cdrceres — vadios, mendi- g0s, jogadores, ébrios e ladrées — direra- mente provenientes do mundo da pobre za urbana. Por fim, assinalavam-se 0s cri minosos internacionais, vinculados, no Ambito mundial, a0 comércio do prazer: 0s céftens. A tilcima parte do livro trata da re- pressio, desencadeada pelo poder oficial, atrav dos processos de expulsio Correspondia & necessidade de limpar ¢ higienizat a cidade, para transformd-la em uma vitrine do progresso. Nesse momen- to, com a implantagio do novo regime republicano, a manutengio da ordem publica e da seguranga nacional assumi- am o primeiro plano das preocupagées das elites dirigentes, constituidas pelos pro- prietdrios de terras, seus representantes politicos, os segmencos médios ligados & xpansio urbana que participavam da limitada ¢ ra ptiblica de poder, ¢ até mesmo uma parte expressiva dos meios is, Elites, porém, identifi o do progresso que nao alt se @ estructura econdmico-social, nem intelect jas a uma vi ra abalasse o sistema oligérquico, em que se fundavam, para a qual os intelectuais manejando 0 discurso cientificn da €poca am 0s argumentos ideoldgicos para justificar 2 expulsio dos indesejaveis sob fornec a forma de medidas administrativas, que se convertiam, assim, em inscrumento politico de primeira ordem. Nesse senti- do, todo aquele que fosse considerado nocivo e pernicioso & sociedade ¢ aos in- devia ser climinado do ceresses da naga corpo social, punindo-se nao sé. aqueles que cometiam delitos ¢ neles reincidiam mas também os indigentes, enfermos ou invilidos, que sobrecarregariam os cofres piiblicos e, sobretudo, aqueles cujas opi- nides politicas nao coincidissem com a do governo Sob essa perspectiva, justapunha-se 20 elemento nacional, principalmente ao ex escravo recém-liberto, que cabia enqua- 0 Esse ou- tro, esse estrangeiro, provinha das sobras sociais do mundo europeu, e sua alte- ridade justificava, por si mesma, a des- confianca com que era visto. Por con- seguince, devia ser vigiado ¢ contido; ¢, , expulso. Essa atitu- de definia-se como uma medida de disc drar nessa sociedade, um aut se cal ocorress¢ plina em relacdo ao espaco piblico e se, de um lado, voltava-se contra o estran- geiro pobre e contestador, de outro, tam- bém servia para aliviar a tenso social na capital, a0 dirigit para aqueles, como bodes expiatérios, a repressio. Para além das questdes nacionais, situava-se o pri- mordial - a manutengio da ordem e da limpeza na cidade do progresso. O trabalho, sem ditvida, impressiona 6 leitor pela riqueza e pelo amplo mare- rial de pesquisa analisado. Escrito em lin- guagem direta, correta e simples, 0 li ulerapassa a fronteira do mundo acadé- mico, tornando acessivel aos interessados © resgate ¢ 0 conhecimento das histérias de vida desses outros, que também cons- cruiram o Brasil. Além disso, a obra ofe- rece novas perspectivas de andlise: em pri- meiro lugar, a0 demonstrar o potencial dos excluidos em uma luta social, especi- FO 136 almente a dos anarquistas, para além de uma organizagio operiria; em segundo, ao estabelecer que a “questio estrangei- ra", to caracteristica do contexto social mais amplo de 1930, no se encerrou naquele momento. Assim, ao contestar a visio historica oficial da passividade po- pular, Or indesejdveis revela-se um Livro particularmente oportuno para servir de ponto de parcida para outros questiona- mentos em torno do carater (des)ordeiro do povo carioca Liteia M. Bastos P. das Neves

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