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Primeia edigo publicada nos Estados Unidos pela Princeton University Press, yoy © The Trustees of the National Gallery of Art, Washington, DC, The Huakah Kerlin Literary ‘Trust, e Henry Hardy, 1999, 2013 Conferéncias A.W. Mellon sobre Belas-Artes, 1965, da Natlonal Gallery of Art, publ Estados Unidos pela Princeton University Press, na série Bollingen XXXV, v. 4 ‘Telegrama de Helen Rapp © the BBC 1965 itulo original: The Roots of Romanticism Copyright da tradugio © 2015 Tres Estrelas ~selo editorial da Publifolha Editora Lda, ‘Todos os direitos reservados, Nenluuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissio expressa e por ese da Publifolha Editora Ltda, detentora do selo editorial Trés Estrelas, EDITOR Alcino Leite Neto EDITOR-ASSISTENTE Bruno Zeni COORDENAGAO DE PRODUGAO GRAFICA Mariana Metidieri PRODUGAO GRAFICA Iris Polachini capa Luciana Facchini IMAGEM DA CAPA. A erupgéio do Vestivio (1824), tela de Johan Christian Dahl | Christie's Images|Corbis/Latinstock PROJETO GRAFICO DO MIOLO Mayumi Okuyama EDITORAGAO ELETRONICA Jussara Fino PREPARAGAO Marcia Menin REVISAO Carmen. S, Costa e Beatriz de Freitas Moreira Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicagio (cir) (Camara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Berlin, Isaiah, 1909-1997 As raizes do romantismo/tsaiah Berlin; edigio de Henry Hardy; tradugio Isa Mara Lando,—1. ed. Sao Paulo: Trés Estrelas, 2035. ISBN 978-85-68493-08-3, 1. Arte— Filosofia ~ Século 18 2. Estética 3. Literatura ocidental 4.Romantismo 5, Romantismo na arte |. Hardy, Henry. Il Titulo. 15-0133, cD0-700.4145 indices para catélogo sistemitico: 1.Romantismo: Artes 700.4145 Este livro segue as regras do Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa (1990), em vigor desde 1° de janeiro de 2009. y TRES. ESTRELAS Al, Bardo de Limeira, 401, 6°andar CEP 01202-900, Sio Paulo, sP Tel. (n) 3224-2186/2187)2197 editorasestrelas@editora3estrelas.com.br wwweditorasestrelas.com.br Em busca de uma definicado Seria de esperar que cu comecasse com algum tipo de definicio do Romantismo, ou pelo menos alguma generalizaco, a fim de deixar claro 0 que quero dizer com essa Palavra. No entanto, nao me proponho entrar nessa armadilha. O eminente eerudito pro- fessor Northrop Frye! observa que quando alguém se dispoe a fazer uma generaliza¢ao sobre o tema do Romantismo, mesmo algo tio inécuo como, por exemplo, dizer que surgiu uma nova atitude entre os poetas ingleses em relacao a natureza — em Wordsworth € Coleridge, digamos, em contraste com Racine e Pope -, sempre haverd aquele que apresentard provas em contrdrio com base nos escritos de Homero, Kalidasa, épicos arabes pré-islamicos, poesia da Espanha medieval... e, por fim, até os proprios Racine Pope. Por essa razo, nao me proponho generalizar, e sim transmitir de alguma outra maneira 0 que creio que o Romantismo seja. Na verdade, a literatura sobre o Romantismo é maior do que o Proprio Romantismo, e, por sua vez, a literatura que define de que Se ocupa a literatura sobre o Romantismo também é bem grande. Trata-sedeuma espécie de piramide invertida. £ um assunto conf °° €perigoso, no qual muitos jé perderam, eu nao diria os sentidos, ™as pelo menos o senso de diregdo. f como aquela caverna cee descrita Por Virgilio, onde todos os passos seguem em uma SO te $40, oua caverna de Polifemo — quem entra parece que nunc . Saird, Por isso, € com alguma apreensao que me lanco noassunto- a mais x te 3 F ‘ 3 B Aimportancia do Romantismo éter sido o maior movimento recente que transformou a vida e o pensamento do mundo ociden- tal. Creio ser ele a maior mudanga ja ocorrida na consciéncia do Ocidente, e todas as outras mudangas que aconteceram ao longo dos séculos xix e Xx me parecem, em comparagao, menos impor- tantes e, de todo modo, profundamente influenciadas por ele. A historia, nao so do pensamento, mas da consciéncia, da opi- nido, assim como da agio, da moral, da politica, da estética, é em grande medida, uma historia dos modelos dominantes. Sempre que olhamos para qualquer civilizagao, vamos descobrir que seus escritos e outros produtos culturais mais caracteristicos refletem determinado tipo de vida que domina os que sao responsdveis por esses escritos —ou pintam esses quadros, ou produzem essas misicas especificas. E, para identificar uma civilizagao, para explicar que tipo de civilizagio elaé, para compreender o mundo no qual aqueles homens pensavam, sentiam e agiam, é importante tentar, ao maximo possivel, isolar o padrao dominante a que essa cultura obedece. Consideremos, por exemplo, a filosofia grega ou a literatura grega da época classica. Se lermos, digamos, a filosofia de Platao, veremos que ele é dominado por um modelo geométrico ou matemitico. £ nitido que seu pensa- mento funciona segundo linhas que so condicionadas pela ideia de que hd certas verdades axiomaticas, irredutiveis, inquebrantaveis que permitem, mediante uma légica severa, deduzir algumas conclusdes absolutamente infaliveis; que é possivel atingir esse tipo de sabedo- ria absoluta por meio de um método especial, que ele recomenda; que existe uma coisa que é 0 conhecimento absoluto a ser obtido no mundo, e, se conseguirmos atingir esse conhecimento absoluto, do qual a geometria, e de fato a matematica em geral, é o exemplo mais proximo, o paradigma mais perfeito, entao poderemos organizar nos- * sa vida em termos desse conhecimento, em termos dessas verdades, 24. ae omen Seo y de uma vez por todas, de maneira estatica, que nio Necessita de mais pudlanga algumas € ento se pode esperar que todo o sofrimento toda a diivida, toda a ignorancia, todasas formas de vicio e insensatez, humanos: desaparegam da face da Terra. Essa nogio de que existe em algum lugar uma visio perfeita — eque ela precisa apenas de certo tipo de disciplina severa ou de certo tipo de método para atingir essa verdade, que é andloga, detodo modo, as verdades frias e isoladas da matemitica — tal ideia afeta muitos outros pensadores da era pés-platénica: com certeza o Renascimento, que tinha ideias semelhantes, com certeza pen- sadores como Spinoza, pensadores do século xvitie também pensa- dores do século x1x, que acreditavam ser possivel alcangar um tipo de conhecimento, se nao absoluto, pelo menos quase absoluto e, nesses termos, organizar o mundo, criar alguma ordem racional na qual a tragédia, o vicio e a estupidez, que causaram tanta des- truigio no passado, pudessem finalmente ser evitados pelo uso de informagées cuidadosamente adquiridas e pela aplicagio a elas Esse é um tipo de modelo, que oferego apenas como exemplo. Tais modelos invariavelmente comegam por libertar as pessoas do erro, da confusao, de algum mundo ininteligivel que elas pro- curam explicar para si mesmas por meio de um modelo, mas aca- bam, quase sempre, por escravizar esas mesmias pessoas, por néo explicarem o todo da experiéncia. Comegam como libertadores e acabam em algum tipo de despotismo. Vejamos mais um exemplo: uma cultura paralela, a da bipiit, @ dos judeus em um periodo correspondente ao de Platao. Aqui Yamos encontrar um outro modelo, um conjunto de idefas total- Mente diversas, que teriam sido ininteligiveis para 0s gregos: A : feta Cultura da qual surgiu 0 judaismo, e também o cristianism 25 em grande medida, éa da vida famili talvez das relagdes dos membros de uma tribo entre si. Relagdes fun- damentais, segundo as quais a natureza ea vida sao explicadas, tais como 0 amor dos filhos pelo pai, a fraternidade entre os homens, o perdao, os comandos emitidos por um superior a um inferior, 0 senso de dever, a transgressao, 0 pecado e, portanto, a necessidade de expia-lo—todo esse complexo de qualidades, com base nas quais ar, das relagSes entre paic filho, 0 Universo inteiro é explicado por aqueles que criaram a Biblia e por aqueles que foram, em grande parte, influenciados por ela, teria sido totalmente ininteligivel para os gregos. Consideremos um salmo muito conhecido que diz: “Quando Israel saiu do Egito [...] O mar viue fugiu; 0 Jordo voltou atras. Os montes saltaram como carneiros, e as colinas como cordeiri- nhos”, ea Terra recebe a ordem de tremer “[..] diante do Senhor”? Isso teria sido totalmente ininteligivel para Plato ou Aristoteles, Pois toda essa concep¢ao de mundo que reage pessoalmente as ordens do Senhor, a ideia de que todos os relacionamentos, tanto animados como inanimados, devem ser interpretados segundo as relagGes entre os seres humanos ou pelo menos segundo as relagdes entre personalidades, em um caso divinas, no outro caso humanas, € muito distante da concepco grega do que era um deus e quais €ram suas relacdes com a humanidade. Vem dai a auséncia entre Os gregos da nocio de obrigacao, a auséncia da nogio de dever, que € to dificil de compreender para os que os leem com lentes Parcialmente afetadas pelo judaismo. Permitam-me tentar dar uma ideia de como diferentes modelos _ podem ser estranhos, Pois isso ¢ importante simplesmente para tra- sara hist6ria dessas transformages da consciéncia. Revolugées con- sideraveis ocorreram no Panorama geral da humanidade, cujo rumo _ Por vezes é dificil de tragar, pois nds as engolimos como se fossem ae bemconhecidas. Giambattista Vico, pensadoritaliano que floresceu no inicio do século xvii ee € que se pode dizer que um homem totalmente pobre e esquecido tenha florescido — foi talvezo primeiro a chamar nossa aten¢éo para a estranheza das culturas antigas. Ele aponta, por exemplo, que na citacao “Jovis omnia plena”® (Tudo esta repleto de Japiter), o final de um hexametro latino bem conhecido, algo é dito que para nds nao é totalmente inteligivel. De um lado, Japiter uma divindade, um grande deus barbudo que desfecha raios etrovoes. De outro, 0 verso diz que tudo — “omnia” — esta “repleto” desse ser barbudo, algo que nao é inteligivel diretamente. Vico entao argumenta, com grande imaginacao e de maneira convincente, quea visio desses povos antigos, tao distantes de nés, deve ter sido muito diferente da nossa para que eles concebessem sua divindade nao sé como um gigante barbudo comandando os deuses e os homens, mas também como algo de que todo 0 firmamento pudesse estar repleto. Gostaria de dar um exemplo mais conhecido. Quando Arist6- teles, na Etica a Nicémaco, discute o tema da amizade, ele diz, de um modo que para nés é um tanto surpreendente, que existem varios tipos de amigos. Por exemplo, existe a amizade que consiste em uma paixio ardorosa de um ser humano por outro, e também aquela que consiste nas relagGes de negécios, no comércio, na compra e venda. O fato de que, para Aristételes, nao haja nada de estranho em dizer que existem dois tipos de amigos, de um lado pessoas cuja vida inteira é dedicada ao amor ou pelo menos cujas emocoes sao ardorosamente envolvidas pelo amor, e, de outro, pessoas que ven- dem Sapatos para outras, e que ambas sao espécies do mesmo genus ~tudo isso é para nés dificil de entender por causa do cristianismo, ©u do movimento romantico, ou do que quer que sej2. Dou esses exemplos apenas para mostrar que essas culturas antigas sio mais estranhas do que pensamos e que ocorreral 7 transformag6es maiores na historia da consciéncia humana do que perceberiamos fazendo uma Ieitura comum ¢ acritica dog classicos. Ha, naturalmente, muitos outros exemplos. O mundo pode ser concebido de maneira organica, como uma arvore, em que cada parte vive para todas as outras partes ¢ por meio de todas as outras partes, ou de mancira mecanicista, talvez como resultado de algum modelo cientifico, em que as partes so externas umas as outras e em que o Estado, ou qualquer outra instituigéo humana, éconsiderado um instrumento destinado a promover a felicidade oua impedir que as pessoas acabem umas com as outras. Essas si0 concepgées de vida muito diferentes, pertencem a tendéncias de opiniao diferentes e so influenciadas por consideracGes diferentes. O que acontece, em regra, é que alguma disciplina ganha a ascendéncia — digamos a fisica ou a quimica — e, em razao da enorme influéncia que exerce sobre a imaginagao de sua geragio, é aplicada também a outras esferas. Isso aconteceu com a sociologia no século XIX; isso aconteceu com a psicologia em nosso século. Minha tese é que o movimento romantico foi uma transformacgao tao gigantesca e radical que depois dele nada mais foi o mesmo. E nessa tese que quero me concentrar. Onde surgiu o movimento romantico? Decerto nfo na Inglater- ra, embora tecnicamente, tenha sido l4—é 0 que dir&o todos os histo- riadores. Mas, de todo modo, nao foi l4 que ele se deu em sua forma mais dramatica, Aqui surge a pergunta: quando falo em Romantismo, estou me referindo a algo que aconteceu em dado momento hist6- rico, como parece que estou dizendo, ou, talvez, a uma mentalidade permanente que nao é exclusiva de uma época, nem é monopolizada por ela? Herbert Read ¢ Kenneth Clark’ adotaram a posigao de que * Ambos, assim como Berlin, também proferiram Conferéncias Mellon. 28 o Romantismo é um estado de espirito permanente que pode ser encontrado em qualquer lugar. mas linhas de Adriano; enneth Clark 0 encontra em algu- Herbert Read cita numerosos exemplos. 0 barao Scilliére,* que escreveu extensamente sobre o assunto, cita Plato e Plotino, e também o romancista grego Heliodoro e muitas outras pessoas que, em sua opinizio, eram escritores romanticos. Nao desejo entrar nessa questao —talvez seja verdade. O tema de que cu, pessoalmente, desejo tratar ¢ confinado no seme Nao quero tratar de uma atitude humana permanente, mas de uma transforma- so especial que ocorreu em dado momento da historia e que nos afeta ainda hoje/Assim, proponho confinar minha atengio ao que se passou no segundo terco do século xvi. Ese passou nao na Ingla- terra nem na Franga, mas sim, em sua maior parte, na Alemanha. [A visio corrente da historia e das transfor rmacées histéricas nos da esse relato. Comecamos com o dix-huiti&me’ francés, um século elegante em que tudo se inicia calmo e suave, as regras sao obedecidas na vida e na arte, ha um avanco geral da razao, a racio- nalidade est progredindo, a Igreja esta recuando, a irracionalidade vai cedendo aos grandes ataques feitos contra ela pelos philosophes franceses. Existe paz, existe calma, constroem-se edificios elegantes, ha uma crenga na aplicagao da razio universal tanto as questdes humanas como a pratica artistica, 4 moral, a politica, a filosofia. Evem entao uma sibita invasdo, aparentemente inexplicdvel. De tepente ha uma violenta erupcao de emogao, de entusiasmo. Surge um interesse pelos edificios géticos, pela introspecgao, As pessoas subitamente se tornam neur6ticas e melancélicas; passam a admi- rar 0s voos inexplicaveis do génio espontaneo, Ha uma debandada geral daquele estado de coisas simétrico, elegante, vitreo, Ao mesmo * Em frances no original, século xvi. 29 tempo, ocorrem outras mudaicas. Eclode ae grande Tevolugio, hy descontentamento; cortam a cabega do rei; comeca o Terror, Nao é muito claro o que essas duas revolugées tém a ver uma coma outra. Ao lermos a historia, ha um sentimento geral de que algo catastréfico ocorreu no final do século xvitt. No inicio as coisas pareciam ir relativamente tranquilas, e entéo acontece uma reviravolta repentina. Algunsa recebem bem, outros a condenam. Os que acon. denam supGem que essa antes da reviravolta vivia-se em uma época elegante e pacifica, a qual quem nao conheceu nao sabera jamais o que é 0 verdadeiro plaisir de vivre,’ como disse Talleyrand.’ Outros dizem que essa época foi artificial e hipécrita e que a Revolucao trouxe um reinado de mais justiga, mais humanidade, mais liberdade, mais com- preensao do homem pelo homem. Seja como for, a questo é: qualéa relacdo entre a chamada revolucao romantica —a stibita irrup¢do nos dominios da arte e da moral dessa nova e turbulenta atitude—ea revo- lugao normalmente conhecida como Revolucao Francesa? Sera que as pessoas que dangaram sobreas ruinas da Bastilha, as que cortaram a cabeca de Luis xvi eram as mesmas que foram afetadas pelo stibito culto ao génio, ou pela sibita irrupgao do emocionalismo, de que nos falam, ou pelas suibitas turbuléncia e perturbacao que inundaram o mundo ocidental? Aparentemente, nao. Sem diivida, os principios em nome dos quais se travou a Revolucao Francesa eram principios da 1azao, da ordem, da justica universais, com pouca relago com o senso de singularidade, a profunda introspeccao emocional, o senso das dife- rencas entre as coisas, mais das dessemelhancas que das semelhancas, aspectos com que 0 movimento romantico em geral é associado. Eo que dizer de Rousseau? Rousseau, claro, é corretamente associado ao movimento romantico como sendo, em certo sentido, _* Prazer de viver; as vezes citado como “douceur de vivre” (dogura de viver). um de seus pais. Mas o Rous ‘eaut que foi responsavel plas ideias de ‘aut que foi responsivel pelas ideias dos jaco- nceses mio é 0 mesmo Rousseau, pa Robespierre, o Rous: binos fi rece-me, que tem uma conexiio Sbvia com o Romantismo, Aquele Rousseau 60 que escre- veu O contrato social, um tratado tipicamente classico que fala sobre a08 principios originais, primarios, que todos tém em comum; 0 reinado da raz oretorno do homem 10 universal, que une os homens, em contraste com as emogdes, que dividem os homens; o primado da justica universal e da paz universal, oposto aos conflitos e as turbu- Iencias e as perturbagées que langam o coragao humano para longe da mente e dividem os homens, colocando-os uns contra os outros. Assim, € dificil ver qual é a relacao dessa grande reviravolta romantica com a revolucio politica. E depois ha também a Revo- lug&o Industrial, que nao pode ser considerada irrelevante. Afinal, ideias nao geram ideias. Certos fatores sociais e econdmicos sio responsaveis por grandes convulsées na consciéncia humana. Temos um problema nas maos. Ha a Revolugao Industrial, ha a grande revolucio politica francesa sob os auspicios classicos e ha arevolucio romantica. Consideremos até mesmo a grande arte da Revolugo Francesa. Olhando, por exemplo, para as grandes pin- turas revolucionarias de Jacques-Louis David, é dificil conecta-lo especificamente com a revolugao romantica. Os quadros de David tém uma espécie de eloquéncia, a austera eloquéncia jacobina de um retorno a Esparta, um retorno a Roma; eles comunicam um protesto contra a frivolidade ea superficialidade da vida, que tema ver com as pregagdes de homens como Maquiavel, ou Savonarola, ‘ou Mably, pessoas que denunciaram a frivolidade de sua época em nome de ideais eternos de tipo universal, enquanto o movimento romAntico, segundo nos dizem todos os seus historiadores, foi um protesto apaixonado contra a universalidade de qualquer tipo. Portanto, se coloca, pelo menos a primeira vista, um problema Para compreender o que aconteceu. Para dar uma ideia do que considero ter sido essa grande Tup. tura, e por que creio que nesses anos, entre 1760 € 1830, ocorrey algo transformador, um forte rompimento na consciéncia europeia, para dar pelo menos algumas provas preliminares de por que penso que se pode dizer isso, gostaria de partir de um exemplo. Suponha- mos que vocé estivesse viajando pela Europa Ocidental na década de 1820 e que conversasse, na Franca, com os jovens vanguardistas que eram amigos de Victor Hugo, os Hugolatres.” Suponhamos que fosse a Alemanha e l conversasse com as pessoas que receberama visita de Madame de Staél, a escritora que interpretou a alma alemi para os franceses. Suponhamos que conhecesse os irmaos Schlegel, grandes tedricos do Romantismo, ou um ou dois amigos de Goethe em Weimar, tal como o fabulista e poeta Tieck, ou outras pessoas relacionadas com o movimento romintico e seus seguidores nas universidades, estudantes, rapazes, pintores, escultores, que foram profundamente influenciados pela obra desses poetas, dramatut- gos e criticos. Suponhamos que vocé conversasse na Inglaterra com alguém que foi influenciado por, digamos, Coleridge ou, acima de tudo, por Byron — com qualquer pessoa influenciada por Byron, fosse na Inglaterra, ou na Franga, ou na Italia, ou além do Reno, ou além do Elba. Suponhamos que vocé conversasse com essas pessoas. Vocé descobriria que para elas 0 ideal de vida era algo rdximo do que descreverei a seguir. s valores aos quais elas atribuiam a maior importancia integridade, sinceridade, disponibilidade para sacrificar a vida alguma chama interior, dedicacao a algum ideal pelo qual valia a eram para + “Hug6latras" por analogia com “idélatras". pena sacrificar tudo aquilo que a pessoa 6, pelo qual valia a pena viver e também morrer. Vocé descobriria que elas nao estavam Tnteressadas principalmente no conhecimento ou no avanco da ciéncia, nao estavam interessadas no poder politico, na felicidade, nao estavam interessadas, acima de tudo, em se adaptar a vida, em encontrar seu lugar na sociedade, em viver em paz. com seu governo, até mesmo em lealdade a seu rei oua sua reptblica. Vocé descobriria que o bom-senso, a moderagao, estava muito longe de seus pensamentos. Vocé descobriria que elas acreditavam na necessidade de lutar por suas crencas até 0 tiltimo alento d e que acreditavam no valor do martirio como tal - martirio pelo qué, isso nao importava. Vocé descobriria que elas acreditavam que as minorias eram mais santas do que as maiorias, que o fracasso era mais nobre do que o sucesso, o qual tinha algo de inferior e ‘vulgar. A prOpria nogio de idealismo, nfo no sentido filoséfico, mas no sentido comum em que nds a usamos, isto é, o estado men- tal de um homem que esta disposto a sacrificar muita coisa pelos principios ou por alguma conviccao, que nao esta disposto a se vender, que est disposto a ir paraa fogueira por algo em queacre- = dita, porque acredita naquilo— essa atitude O queas pessoas admiravam era a sinceridade, o empenho de todo © coracao, a pureza de alma, a capacidade e a disponibilidade para se dedicar a seu ideal, qualquer que fosse. Qualquer que fosse 0 ideal: isso é o mais importante. Supo- nhamos que vocé tivesse uma conversa no século xvi com alguém que lutava nas grandes guerras religiosas que dilaceravam a Europa naquele periodo, e suponhamos que vocé dissesse para um catélico dessa época, envolvido nas hostilidades: “E claro que esses protestan- tes acreditam no que é falso; é claro que acreditar nisso em que eles acreditam é atrair a perdicao; eles sao perigosos para a salvaciio das ie % 33 almas humanas, e nao ha nada mais importante que isso; Mas ¢ so tao sinceros, tao prontos a morrer pela causa em que acted les aintegridade deles é tao espléndida que é preciso conceder ape admiragio pela dignidade moral e pela sublimidade de Pessoas ire esto dispostas a fazer isso”. Tal sentimento seria ininteligivel, Qual. quer pessoa que realmente conhecesse, que achasse que conhecia a verdade, digamos um catdlico que acreditasse nas verdades Pregadas pela Igreja, saberia que as pessoas capazes de se colocar por inteiro na teoria ena pratica da falsidade eram simplesmente pessoas perigosas , quanto mais sinceras fossem, mais perigosas, mais loucas. Nenhum cavaleiro cristo teria suposto, ao lutar contra os mucul- manos, que se esperava dele que admirasse a pureza e a sincerida- de com que esses pagios acreditavam em suas doutrinas absurdas. Sem divida, se vocé fosse uma pessoa decente e matasse um inimigo corajoso, nao seria obrigado a cuspir sobre o cadaver. Vocé seguiria oraciocinio de que era uma pena tanta coragem (uma qualidade uni- versalmente admirada), tanta capacidade, tanta devogao serem apli- cadas a uma causa tao palpavelmente absurda ou perigosa. Mas vocé nao teria dito: “Pouco importa no que essas pessoas acreditam; 0 que importa é0 estado de espirito em que elas esto quando acreditam. 0 que importa é que nao se venderam, que eram homens integros. Séo homens que eu posso respeitar. Se eles tivessem passado para nosso lado simplesmente para se salvar, isso teria sido uma forma de ac muito egoista, muito prudente, muito desprezivel”. Esse €0 estado de ‘Se eu acredito em uma coisa espirito em que as pessoas devem dizer: evocé acredita em outra, ent&o é importante que lutemos um contra outro. Talvez seja bom que vocé me mate ou que eu mate voce; talve2 emum duelo, o melhor seria que os dois matassem um ao outro; me a pior de todas as coisas possiveis seria entrar em um acordo, pos isso significaria que nds dois traimos 0 ideal que estd dentro de nos « 34. O martirio, é claro, sempre foi ad mirado, mas o martirio pela verdade. Os cris fos admiravam os m artires porque eram teste- munhas da verdade. Se fossem testemunhas da falsidade, nao haveria nada de admirvel neles — talvez algo digno de pena, mas decerto nada para admirar,Na década de 1820, 0 estado mental, o motivo, é mais importante do que a consequéncia, a intengao é mais importante do que o efeito. Pureza de coragio, integridade, devogio, dedicagao — todas essas coisas que hoje admiramos sem muita dificuldade, que entraram na propria textura de nossas ati- tudes morais, tornaram-se mais ou menos comuns, primeiro entre as minorias, disseminando-se pouco a pouco. Eis um exemplo do que quero dizer que ocorreu com essa mudanga. Vejamos a pega de Voltaire sobre Maomé. Voltaire n’io estava particularmente interessado em Maomé, ea peca tencionava ser, sem dtivida, um ataque contra a Igreja. No entanto, Maomé apa- rece como um monstro supersticioso, cruel e fanatico, que esmaga todos os esforgos em prol da liberdade, da justiga, da razao e, por- tanto, deve ser acusado como inimigo de tudo 0 que Voltaire tinha como mais importante: a tolerancia, a justia, a verdade, a civilizacio. Consideremos agora o que Carlyle tem a dizer, muito mais tarde. Maomé é descrito por Carlyle — que é um representante altamente caracteristico, ainda que um tanto exagerado, do movimento roman- tico-em um livro chamado On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History [Sobre herdis, a adoragio ao herdie o heroico na historia], no qual muitos herdis s4o enumerados e analisados, Maomé é descrito como “uma massa incandescente de Vida forjada do grande seio da propria Natureza”’* fi um homem de ardente sinceridade ¢ poder e, Portanto, para ser admirado; a ele se contrapde o século xvi, que no é admirado, que é pervertido e intitil, que, para Carlyle, éum “século ressequido, [..] de segunda mao"? Carlyle nfio tem o menor as verdades do Alcorao nem supée, de modo algum, que enha algo em que ele, Carlyle, poderia acreditar, Maome cao por ser uma forca clementar, alguém que vive consigo grande namero de seguidores; na figutg fendmeno tremendo, um episddio grandy interesse n Alcorao cont suscita sua admira uma vida intensa, tem deMaomé ele identifica um ecomovente na vida da humanidade. Aimportancia de Maomé é seu carater e nao suas crencas. Saber lo em que Maomé acreditava era verdadeiro ou falso teria parecido para Carlyle perfeitamente irrelevante. Ele diz, no decurso dos mesmos ensaios: “O sublime catolicismo de Dante [..] tem de ser dilacerado por um Lutero; 0 nobre feudalismo de Shakespeare [...] tem de acabar em uma Revolucao Francesa”.* E por que tem de ser assim? Porque nao importa se 0 catolicismo sublime de Dante é ver- dadeiro ou nao. Importa que é um grande movimento, que jé esgo- tou seu tempo de vida, e agora algo igualmente poderoso, igualmente sério, igualmente sincero, igualmente profundo, igualmente tremen- do deve tomar seu lugar. A importancia da Revolugao Francesa foi o grande impacto que exerceu sobre a consciéncia da humanidade; foi ter sido feita por homens que agiam com profunda seriedade e empenho, e nao eram simplesmente hipécritas sorridentes, que era a opiniio de Carlyle sobre Voltaire. Essa é uma atitude, eu nao diria totalmente nova, porque é muito perigoso dizer isso, mas, de todo modo, nova o bastante para merecer atengio; e, seja 14 qual for a se aquil sua causa, ocorreu, parece-me, em algum momento entre os anos 1760 e 1830, Comecou na Alemanha e cresceu em ritmo acelerado. Vejamos outro exemplo do que quero dizer: a atitude para com atragédia. As geracGes anteriores acreditavam que a tragédia sempre ocorria em razio dealgum tipo de erro. Alguém se equivocou, alguém cometeu um erro, Foi um erro moral ou um erro intelectual. Podia ter sido evitado ou podia ser inevitavel. Para os gregos, a tragédia era um He erro que os deuses lancavam sobre os homens, que ninguém sujeito a cles talvez pudesse evitar; mas, em principio, se esses homens fossem oniscientes, ndo teriam cometido OS graves erros que cometeram e, portanto, nao teriam atraido a desgraca sobre si préprios. Se Edipo soubesse que Laio era seu pai, nao o teria assassinado, Isso 6 verdade, até certo ponto, mesmo nas tragédias de Shakespeare. Se, em Otelo, 0 mouro soubesse que Desdémona era inocente, o desfecho dessa tra- gédia nao poderia ter ocorrido. Portanto, a tragédia é fundada sobre uma falta inevitavel, ou talvez evitavel, de algo nos homens — falta de conhecimento, de habilidade, de coragem moral, de capacidade de viver, de agir corretamente quando sabe qual 6a aco correta, ou © que quer que seja. Homens melhores — moralmente mais fortes, intelectualmente mais aptos e, acima de tudo, pessoas oniscientes, talvez também com poder suficiente - sempre podiam evitar aquilo que é, de fato, a substancia da tragédia. As coisas nao sao assim no inicio do século x1x ou mesmo no final do xvimt. Quem ler a tragédia de Schiller Os bandoleiros, a qual voltarei mais adiante, vai descobrir que Karl Moor, o her6i-vilao, é um homem que se vinga de uma sociedade detestavel tornando-se bandido e cometendo uma série de crimes atrozes. Ele é punido no final, mas —caso se pergunte: “Quem € 0 culpado? £0 lado de onde ele provém? Serao seus valores totalmente corruptos ou totalmente insanos? Qual dos dois lados esta certo?” — nao ha uma resposta que se possa obter nessa tragédia, e para Schiller a propria pergunta teria parecido superficial e cega. Aqui ha uma colisao, talvez uma colisio inevitavel, entre con- juntos de valores incompativeis. As geragdes anteriores supunham que todas as coisas boas podiam ser reconciliadas. Isso nao é mais verdade. Se vocés lerem a tragédia de Biichner A morte de Danton, em que Robespierre finalmente causa a morte de Danton e de Desmou- 37 .s no transcurso da Revolugao, e perguntarem “Robespierre estava ao fazer isso?”, a resposta € nao; a tragédia é tal que Danton, se um revolucionario sincero que cometeu alguns erros, nao merecia morrer, € contudo Robespierre estava perfeitamente certoaomandé-lo paraa guilhotina. Aqui hauma colisao entre o que “o bem contra o bem”.’ Nao se deve a Hegel mais tarde chamou de“ ‘0 de tipo inevitavel, de elementos soltos — |. 7 ‘um erro, esima algum conflit. vagando pela Terra, de valores que nao podem ser reconciliados, 0 que importa é que as pessoas devem se dedicar a esses valores com lin: errado embora fos: todo o seu ser. Se fizerem isso, servirao como heréis para a tragédia, Senioo fizerem, sero burgueses mediocres, membros da burguesia, nao servirdo para nada e nio valera a pena escrever sobre elas. A figura que domina 0 século x1x como imagem éa figura desgrenhada de Beethoven em seu s6tao. Beethoven é um homem que expressa aquilo que est4 dentro dele. Ele é pobre, é ignorante, é grosseiro. Nao tem boas maneiras, sabe pouco e talvez no seja uma figura muito interessante, exceto pela inspiracaio que o impele paraa frente. Mas ele nao se vende. Senta-se em seu soto e cria. Elecria de acordo com a luz que esta dentro dele, e isso é tudo o que um homem deve fazer; é isso que faz de um homem um herdi. Mesmo que ele nao seja um génio como Beethoven, mesmo que, tal como o herdi do romance de Balzac A obra-prima ignorada, seja louco e recubra@ tela com tintas, de modo que no final nao haja nada de inteligivel, apenas uma confusio horrivel de borrées incompreensiveis e irracio- nais—mesmo assim essa figura é digna de algo mais do que pena, ele éum homem que se dedicou a um ideal, que pos de lado o mundo, que representa as qualidades mais heroicas, mais abnegadas, mais espléndidas que um ser humano pode ter. Théophile Gautier, em ‘| sett famoso prefacio a Mademoiselle de Maupin, de 1835, defendendo@ nogao de arte pela arte, diz, dirigindo-se aos criticos em geral etam- 38 bém ao puiblico:" io! Tolos e cretinos que voces so, um livro nao vai fazer um prato de sopa; um romance nao éum par de botas; um soneto no é uma seringa; um drama nao éuma estrada de ferro. [...] Nao, duzentas mil vezes nao”. A tese de Gautier é quea antiga defesa da arte (bem distinta da escola da utilidade social que ele esta atacando ~ Saint-Simon, os utilitaristas e os socialistas), a ideia de que o propésito da arte é dar prazer a um grande nimero de pessoas, ou mesmo a um pequeno niimero de conhecedores de formagao esmerada — nao é valida. O propésito da arte é produzir beleza, e, se apenas 0 proprio it to é belo, essa ja € uma justificativa suficiente para sua existéncia. Eevidente que algo ocorreu para mudar a consciéncia a esse grau, afastando-a da nogao de que existem verdades universais, cino- nes artisticos universais, que todas as atividades humanas tém como fim tiltimo fazer as coisas direito, e que os critérios para fazer as coi- sas direito eram ptiblicos, eram demonstraveis, que todos os homens inteligentes, aplicando seu intelecto, iriam descobri-los —afastando aconsciéncia de tudo isso para adotar uma atitude completamente diferente em relaco a vida e em relagao a acao. Algo ocorreu, sem davida. Quando perguntamos 0 qué, dizem-nos que houve uma grande guinada para o emocionalismo, que houve um stibito inte- resse pelo primitivo e pelo remoto — 0 remoto no tempo eo remoto no espaco—, que houve um surto de desejo de infinito. Algo foi dito sobre “a emogio recolhida em tranquilidade”,"' algo foi dito — mas no est claro 0 que isso tem a ver com qualquer das coisas que acabo de mencionar— sobre os romances de Walter Scott, as cangdes de Schubert, os quadros de Delacroix, a ascenstio da adoragao ao Estado ea propaganda alemi em favor da autossuficiéncia econdmica, ¢ também sobre as qualidades sobre-humanas, a admiragio ao génio indémito, os fora da lei, os herdis, 0 esteticismo, a autodestruigio. 39 isas tem em comum? Se tentarmos deseo. 1m tanto surpreendente. Permitam. as CO} O que todas ess brir, veremos uma perspectiva t as definicdes de Romantismo que recolhi nos as mais eminentes que ja escreveram -me apresentar algum escritos de algumas das pesso sobre o assunto; clas mostram que o assunto nao énada facil, Stendhal"? diz que o romantico €0 moderno € 0 interessante; o classicismo é 0 velho, o magante. Isso talvez nao seja tao simples quanto parece: 0 que ele quer dizer é queo Romantismo é uma tentatj- va de compreender as forgas que se movem na propria vida da pessoa, endo é uma fuga para algo obsoleto. Contudo, o que ele realmente diz, no livro sobre Racine e Shakespeare, € 0 que acabei de enunciar, Seu contemporaneo Goethe, por sua vez, diz que o Romantismo éa doenga, 0 fraco, o doentio, o grito de guerra de uma escola de poetas tresloucados e de reaciondrios catélicos, ao passo que 0 classicismoé forte, novo, alegre, robusto como Homero, como A cangiio dos nibelun- ‘gos. Nietzsche diz que nao é uma doenga, mas uma terapia, a cura para uma doenga. Sismondi, um critico suico de consideravel imaginacio, embora nao tao simpatizante do Romantismo, apesar de ser amigo de Madame de Staél, diz que o Romantismo é uma uniao entre amor, religiao e cavalaria andante. No entanto, Friedrich von Gentz, que era o principal agente de Metternich nessa época e um contemporaneo exato de Sismondi, diz que o Romantismo é uma das cabegas de uma hidra tricéfala, sendo as outras duas cabecas a Reforma ea Revolucio: é,na verdade, uma ameaga de esquerda, uma ameaga 4 religiao, @ tradig&o e ao passado, que deve ser erradicada. Os jovens romanticos franceses, “les jeunes-France”, ecoam isso dizendo: “Le romantisme cet la Révolution”.? Révolution contra o qué? Aparentemente, contra tudo. Diz: Heine que o Romantismo é a flor que brotou do sangued® Cristo, um novo despertar da poesia da sonambula Idade Média, pindculos sonhadores que nos contemplam com os olhos profundos e dolorosos de espectros de sorriso fixo. Os marxistas acrescenta- riam que foi de fato uma fuga dos horrores da Revolugio Industrial, e Ruskin concordaria, dizendo que foi um contraste entre o belo passado e 0 assustador e monétono presente; isso é uma modifica- ao da visio de Heine, mas nem tao diferente assim. Taine, porém, diz que o Romantismo é uma revolta burguesa contra a aristocracia aps 1789; o Romantismo é a expressao da energia e da forca dos novos arrivistas — exatamente o oposto. Ea expressio do vigoroso poder de propulsao da nova burguesia contra os antigos valores decentes e conservadores da sociedade e da historia. Ea expressaio —nao da fraqueza nem do desespero, mas de um otimismo brutal. Friedrich Schlegel, 0 maior precursor, o maior arauto e profeta do Romantismo que ja existiu, diz que hé no homem um terrivel desejo insatisfeito de algar voo para o infinito, um desejo febril de | romper 0s estreitos vinculos da individualidade. Sentimentos um tanto semelhantes podem ser encontrados em Coleridge e também em Shelley. Mas Ferdinand Brunetiére, no final do século x1x, diz que se trata de egoismo literdrio, de um realce da individualidade em detrimento do mundo mais amplo ao redor, que é 0 oposto da auto- transcendéncia, é pura autoafirmacao; e 0 barao Seilligre concorda, e acrescenta egomania e primitivismo; ¢ Irving Babbitt faz eco. Oirmio de Friedrich Schlegel, August Wilhelm Schlegel, e Mada- me de Staél concordam que o Romantismo vem dos paises romani- cos, ou pelo menos das linguas romanicas, que vem, na verdade, de uma modificagao dos versos dos trovadores provengais; mas Renan “Giz que o Romantismo é celta. Gaston Paris diz que é bretao; Seilliére diz que vem de uma mistura de Plato ¢ Pseudo-Dionisio Areopagita. Joseph Nadler, um erudito critico alemao, diz que o Romantismo & na verdade, a saudade daqueles alemdes que viviam entre Elbaeo Niemen —sua saudade da velha Alemanha Central, de onde tinha 4L Ka yindo outrora, 0 devaneio deexilados colonos. Eichendorff diz need anostalgia da Igreja Cal briand, que nao vivia ent rimentava esas emogoes, diz ma alma brincando consigo mesm: 14 Joseph Aynard’ diz que éa vontade de amar alguma de ou uma emog¢ao para Com Os Outros, € nao para te o oposto do desejo de poder. Middleton jalmente um escritor romantico je Rousseau foram t6lica por parte dos protestantes. Mas Chateay, tre o Elba e o Niemen e, portanto, nao expe, que 0 deleite secreto ¢ inexpriming deu a: “Falo perpetuamente sobre mim mesmo”. coisa, uma atitu consigo mesmo, exatame! Murry diz que Shakespeare foi essenc eacrescenta que todos os grandes escritores desd romanticos. No entanto, 0 eminente critico marxista Georg Lukacs'* diz que nenhum grande escritor romantico, muito menos Walter Scott, Victor Hugo e Stendhal. Se considerarmos essas citagdes de homens que, afinal, mere- cem ser lidos, que sao, em outros aspectos, escritores profundose brilhantes sobre muitos assuntos, fica claro que ha alguma dificulda- deem descobrir o elemento comum em todas essas generalizagoes. E por essa razao que Northrop Frye foi tao sabio ao alertar contra isso. Todas essas definigdes concorrentes nunca, que eu saiba, foram realmente objeto de protesto de ninguém; nunca incorreram na ira da critica com a mesma intensidade que poderia ser desfechada contra qualquer um que tivesse dado definicdes ou generalizagoes universalmente consideradas absurdas e irrelevantes. O préximo passo é ver quais caracteristicas tém sido chamadas de romanticas pelos escritores que abordaram o assunto e pelos criticos. Surge um resultado muito peculiar. A variedade dos exem- plos que acumulei é tanta que a dificuldade deste assunto que tive a imprudéncia de escolher parece ainda mais extrema. ae : primitivo, o ignorante, éa juventude, @ er la do homem natural, mas também é palide2, febre, doenca, decadéncia, la maladie du siécle fa doenca do século], La Belle Dame Sans Merci [A bela dama sem miseric6rdia], a Danga da Morte, na verdade a pr6pria Morte. £.a ctipula de vidro multicolo- rido de Shelley, e é também o esplendor branco da eternidade. Ea plenitude vigorosa e confusa e a riqueza da vida — Fiille des Lebens—-, amultiplicidade inexaurivel, a turbuléncia, a violéncia, 0 conflito, o caos, mas também éa paz, a uniaio com o grande “Eu”, a harmonia com a ordem natural, a musica das esferas, a dissolucao no eterno espirito que tudo contém. £ 0 estranho, 0 exdtico, 0 grotesco, 0 misterioso, 0 sobrenatural, as ruinas, o luar, castelos encantados, trombetas de caga, elfos, gigantes, grifos, cascatas, o velho moinho no Floss, as trevas e os poderes das trevas, fantasmas, vampiros, o terror sem nome, o irracional, 0 indizivel. Também ¢ 0 familiar, o sentido da tradicao particular de cada um, lo com o aspe to sorridente da natureza de todo dia e as cenas e sons habituais da gente simples e contente do campo, a sabedoria si ¢ feliz dos filhos da terra, com suas faces rosadas. £ 0 antigo, 0 histérico, sio as catedrais géticas, as névoas da Antiguidade, as raizes antigas ea velha ordem com suas qualidades nao analisaveis, suas leal- dades profundas mas inexprimiveis, 0 impalpavel, o impondera- vel, Também é a busca da novidade, a mudanga revolucionaria, a preocupac3o com o presente fugaz, 0 desejo de viver no momento, a rejeicao do conhecimento, o passado e 0 futuro, 0 idilio pastoral da feliz inocéncia, a alegria no instante que passa, uma sensagao ostalgia, é devaneio, sao sonhos inebrian- tes, 6a doce melancolia e a amarga melancolia, a solidao, os sofri- mentos do exilio, o sentimento de alienagao, o vagar em lugares e em tempos remotos, em espe- de atemporalidade. £ n remotos, em especial o Oriente, cial a Idade Média. Mas também € 0 prazer da cooperagio em um esforco criativo comum, a sensacao de fazer parte de uma igreja, 43 uma classe, um partido, uma tradigdo, uma grande hiera: Tquia sing, trica e abrangente, cavaleiros ¢ vassalos, as fileiras da Igreja, og lacos sociais organicos, a uniaio mistica, uma s6 fé, uma s6 Cerra, um s6 sangue, “la terre et les morts” [a terra e os mortos], como disse Ban. rés,!” a grande sociedade dos mortos e dos vivos e dos ainda Por nascer.!E 0 conservadorismo tory de Scott, Southey e Wordsworth, eéoradicalismo de Shelley, Biichner e Stendhal. £ o med ievalismo estético de Chateaubriand, e é a aversao de Michelet 4 Idade Média, Ea adoracao a autoridade de que fala Carlyle, e 0 6dio a autoridade de Victor Hugo. £o extremo misticismo da natureza, eo extremo esteticismo antinaturalista. E energia, forca, vontade, vida, étalage du moi [ostentacao do eu]; também é autotortura, autoaniquila- ¢40, suicidio. £ 0 primitivo, o nao sofisticado, o seio da natureza, campos verdes, vaquinhas com sinetas, riachos murmurantes, 0 céu azul infinito. Nao menos, porém, é também 0 dandismo, 0 desejo de se vestir bem, os coletes vermelhos, as perucas verdes, os cabelos azuis, que os seguidores de pessoas como Gérard de Nerval usavam em Paris em certo periodo. Ea lagosta que Nerval levava a passear pelas ruas de Paris presa por uma cordinha. £0 exibicionismo selvagem, a excentricidade, é a batalha de Ernani, é oenfado (ennui), o taedium vitae [tédio da vida], é a morte de Sarda- népolis (pintada por Delacroix, composta por Berlioz e narrada por Byron). £ a convulsio de grandes impérios, as guerras, a mor tandade e a derrocada dos mundos. £ 0 herdi romantico —o rebel- de, homme fatal, a alma condenada, 0 corsdrio, Manfred, Giaout, Lara, Caim, toda a galeria de Personagens dos poemas heroicos de Byron, £ Melmoth, é Jean Sbogar, todos os parias e os Ismaéis, assim como as cortesis de coragaio de ouro e os condenados de coragio nobre da ficgao oitocentista. f beber usando como taca um cranio humano, é Berlioz dizendo que queria escalar o Vestivio 44 ee para comungar com uma alma gémea. Sao celebracées satanicas, aironia cinica, 0 riso diabdlico, os herdis negros, mas também a visio que Blake tinha de Deus e seus anjos, a grande sociedade crista, a ordem eterna e “o céu estrelado”, que mal pode “expressar os pensamentos e emog6es infinitas que enchem a alma de um cristo”. £, em suma, a unidade e a multiplicidade. fa fidelidade imprecisao tentadora do contorno misterioso. E beleza e feiura. £ aarte pela arte, ea arte como um instrumento de salvacio social. E forga e fraqueza, individualismo e coletivismo, pureza e corrup- cio, revolucio e reacio, paz e guerra, amor a vida e amor 4 morte. Talvez nao surpreenda que, diante disso, A. O. Lovejoy,” cer- tamente 0 erudito mais escrupuloso e um dos mais esclarecedores que ja trataram da histéria das ideias dos dois tiltimos séculos, tenha chegado perto do desespero. Ele deslindou muitas correntes do pen- samento romantico, tantas quantas conseguiu, e nao sé descobriu que algumas contradizem as outras, o que evidentemente é verdade, e que algumas sao totalmente irrelevantes para as outras, como foi ainda mais longe. Lovejoy considerou duas caracteristicas que ninguém negaria serem do Romantismo, como o primitivismo ea excentricidade — o dandismo -, e perguntou o que elas tinham em gewechutricicade ,ocandsinos: comum.. O primitivismo, que comegou na poesia inglesa e até certo ponto na prosa inglesa no inicio do século xviii, comemora 0 bom selvagem, a vida simples, os padrées irregulares da agao espontanea, contra a sofisticagao corrupta eo verso alexandrino de uma sociedade altamente refinada. £ uma tentativa de demonstrar que existe uma lei natural e que a melhor maneira de descobri-la é no coragao singelo, ainda nao instruido, do indio ou da crianga nao corrompidos. Mas, pergunta Lovejoy, bem razoavelmente, o que isso tem em comum com os coletes vermelhos, os cabelos azuis, as perucas verdes, 45 oabsinto, a morte, 0 suicidio ca excentricidade geral dos seguido. res de Gérard de Nerval ¢ Théophile Gautier? Ele conclui dizendg que realmente nao vé 0 que possa existir em comum entre as duas coisas, e podemos simpatizar com esse raciocinio. E possivel dizer, talvez, que ha um ar de revolta nos dois, que ambos se revoltaram 1 tipo de civilizagéo—um, a fim deir para uma ilha como contra alguiy ali comungar com a natureza ¢ viver entreas Robinson Crusoe, para pessoas simples, no corrompid esteticismo e dandismo. No entanto, a mera revolta, a mera dentincia da corrupgio nao pode ser romantica. Nao consideramos os profetas hebreus, ou Savonarola, ou mesmo os pregadores metodistas parti- cularmente romanticos. Isso estaria muito longe da verdade. Podemos, assim, simpatizar com o desespero de Lovejoy. Gostaria de citar uma passagem de George Boas, discipulo de Lovejoy, que escreveu a respeito: as; ea outra, em busca de um violento Depois da discriminagio entre os varios Romantismos feita por Lovejoy, nao deveria haver mais nenhuma discussio sobre o que o Romantismo realmente foi. Ja houve doutrinas estéticas diversas, algumas das quais relacionadas logicamente com outras, outras nao relacionadas, todas chamadas pelo mesmo nome. Mas esse fato no implica que todas tivessem uma esséncia em comum, assim como © fato de que centenas de pessoas se chamam John Smith nao significa que todas tém a mesma filiagdo. Esse é, talvez, o erro mais comum & enganoso decorrente da confusio de ideias e palavras. Poderiamos talvez, deveriamos, falar durante horas apenas sobre isso.” eee de aliviar agora mesmo 0 temor dos ouvintes, afian sando que nao pretendo fazer isso, Ao mesmo tempo, porém, crei? ue ej i que tanto Lovejoy como Boas, embora sejam eminentes estudiosos etenham dado uma grande contribuigao para iluminara teflexao, no presente caso esto enganados. Houve de fato um movimento romantico; ele teve algo que lhe era central; ele criou uma grande revolugao na consciéncia; e é importante descobrir 0 que é. Pode-se, claro, desistir do jogo todo, Pode-se dizer, como Valéry, que palavras como romantismo ¢ classicismo, palavras como humanismo enaturalismo nao sao nomes com que se possa trabalhar, em absoluto, “Nao se pode ficar bébado, nao se pode matar a sede com os rétulos das garrafas.”” H4 muito a dizer em favor desse ponto de vista. Ao mesmo tempo, é impossivel tragar o curso da histéria humana, a menos que utilizemos algumas generalizagdes. Portanto, por mais dificil que seja, é importante descobrir qual foi a causa da enorme revolucao na consciéncia humana que ocorreu naqueles séculos. Ha pessoas que, confrontadas com essa abundancia de provas que tentei coletar, podem sentir alguma simpatia pelo falecido Sir Arthur Quiller-Couch, que disse com tipica animacao britanica: “Todo esse alvoroco sobre [a diferenca entre Classicismo e Romantismo] nao constitui nada que deva perturbar um homem saudavel’.> Devo dizer que nao compartilho desse ponto de vista. Parece- ~me excessivamente derrotista. Portanto, farei o maximo para expli- cara que veio, a meu ver, o movimento romAntico. A tinica maneira sdesensata de se aproximar dele, ou pelo menosa tinica maneira que achei atil até hoje, é pelo método histérico, lento e paciente: exa- minar 0 inicio do século xvi, refletir sobre qual era a situagao na €poca e entao considerar, um por um, quais fatores a abalaram e qual combinagao ou confluéncia de elementos, mais para o final do século, causou 0 que me parece ser a maior transformagao da consciéncia do Ocidente, certamente em nossa época. 47

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